ed. 162 - revista caros amigos

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ano XIV nº 162 / 2010 R$ 9,90 José Arbex Jr. “O Estado brasileiro é terrorista” SAÚDE PÚBLICA Por que a OSS privada não funciona KUNTANAWA, um povo em reconstrução PEDRO SANCHES Músicas que as crianças ouvem Entrevista Povo quer mais do mesmo ANA MIRANDA CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FABÍOLA ORTIZ FANIA RODRIGUES FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JÚLIO DELMANTO LINEU KOHATSU LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA EXCLUSIVO HIP HOP DEXTER garante “O RAP SALVA” Domitila Barrios de Chungara Guerreira boliviana volta a falar Eleições PRESIDENCIAIS

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Revista Caros Amigos

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Page 1: Ed. 162 - Revista Caros Amigos

ano XIV nº 162 / 2010

R$ 9,90

ano XIV ano XIV anonº 162 / 2010nº 162 / 2010nº

R$ 9,90

José Arbex Jr.“O Estado brasileiroé terrorista”

SAÚDE PÚBLICAPor que a OSSprivada não funciona

KUNTANAWA, um povo em reconstrução

PEDRO SANCHESMúsicas queas crianças ouvem

Entrevista

Povo quer mais do mesmoANA MIRANDA CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FABÍOLA ORTIZ FANIA RODRIGUES FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JÚLIO DELMANTO LINEU KOHATSU LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA

EXCLUSIVO

HIP HOP

DEXTER garante“O RAP SALVA”

Domitila Barrios de ChungaraGuerreira boliviana volta a falar

Eleições PRESIDENCIAIS

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Page 2: Ed. 162 - Revista Caros Amigos

A Junte A com B e veja como você Bpode mudar certas histórias num clique.A

Segurança no banco de trás

evita acidentes fatais.Semana Nacional de Trânsito18 a 25 de setembro

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a sua vida e a dosoutros passageiros.

Respeite a lei.

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Page 3: Ed. 162 - Revista Caros Amigos

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Page 4: Ed. 162 - Revista Caros Amigos

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Page 5: Ed. 162 - Revista Caros Amigos

3setembro 2009 caros amigos

CAROS AMIGOS ANO XIV 162 SETEMBRO 2010

EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAISFUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008)DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu SÍTIO: Débora Prado de Oliveira, Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242)DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 162, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf

REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

sumárioFoto de capa JESUS CARLOS

O Brasil vive o clima de eleições. Diferentemente dos pleitos anteriores, os principais candidatos presidenciais não se apre-sentam com projetos antagônicos ou notadamente distintos. Ao contrário, reafi rmam e disputam entre si o cetro da continuida-de do mesmo modelo; disputam o gerenciamento do neolibera-lismo reciclado após seguidas crises; disputam a herança do lu-lismo, que tem sido amplamente consagrado por exótico leque de forças sociais e políticas.

Na tentativa de apresentar aos seus leitores um material jor-nalístico mais analítico do que tem sido veiculado pela mídia empresarial e neoliberal, a revista Caros Amigos entrevistou qua-tro intelectuais e militantes políticos de peso – Chico de Olivei-ra, Mauro Iasi, Valter Pomar e Valério Arcary – sobre as propos-tas e os discursos dos candidatos, as bandeiras das esquerdas e os principais problemas que serão enfrentados pelo próximo go-verno federal. O resultado possibilita uma boa compreensão des-se processo.

A edição contempla uma saborosa entrevista com o jornalis-ta, escritor e professor José Arbex Jr., que é antigo colaborador da Caros Amigos e intelectual conhecido em todo o Brasil. Ar-bex fala de sua trajetória política e debate inúmeras questões da atualidade, desde o papel do jornalismo, a atuação do imperia-lismo, as crises do capitalismo, até o jogo atual dos partidos po-líticos. Polemista e provocador, Arbex faz uma análise crítica e aprofundada da situação brasileira e, como sempre, distoa dos parâmetros do pensamento hegemônico e da mesmice que to-mou conta do processo eleitoral e das propostas dos partidos e candidatos.

Além disso, Caros Amigos apresenta uma excelente reporta-gem sobre o processo de privatização dos serviços de saúde no Estado de São Paulo, um crime contra o povo paulista; duas en-trevistas espetaculares, uma com a guerreira boliviana Domiti-la Barrios de Chungara (conhecida pelo livro “Se me deixam fa-lar...”), e outra com o rapper Dexter, um dos mais conhecidos e respeitados do movimento hip hop.

Como sempre, a revista reúne uma boa coletânea de artigos e crônicas de seus ilustres colaboradores.

Vá em frente. Vale a pena conferir.

ALTERCOMAssociação Brasileira de Empresas e

Empreendedores da Comunicação

04 Guto Lacaz.

06 Caros Leitores.

07 Pedro Alexandre Saches fala do Pato Fu e de músicas ouvidas pelas crianças.

08 Rodrigo Vianna em Tacape: a batalha da mídia contra Cristina Kirchner.

Cesar Cardoso faz as contas de quanto custa uma eleição democrática.

09 Joel Rufi no dos Santos: objetos da biblioteca de quem viveu o mesmo tempo.

Guilherme Scalzilli critica a constante violação dos direitos do consumidor.

10 Marcos Bagno comenta os versos livres do compositor Adoniran Barbosa.

Mc Leonardo comenta o atropelamento ocorrido num túnel do Rio de Janeiro.

11 Glauco Mattoso em Porca Miséria: o til e a cedilha só atrapalham a digitação.

Eduardo Matarazzo Suplicy defende o programa Manos&Minas da TV Cultura.

12 Entrevista com José Arbex Jr. analisa jornalismo, política e imperialismo.

18 João Pedro Stedile analisa o sentido das eleições para o movimento social.

Ana Miranda descreve os bosques criados pelo artista Rubens Matuck.

19 Frei Betto analisa as desigualdades do mundo e da América Latina.

Gilberto Felisberto Vasconcellos aponta o caráter paulistocêntrico do poder.

20 Lúcia Rodrigues: o que está em jogo nas eleições presidenciais deste ano.

24 Ensaio Fotográfi co de Lineu Kohatsu: o rio São Francisco na seca.

26 Débora Prado: a entrega da saúde pública para OSS privada não funciona.

30 Gabriela Moncau e Julio Delmanto entrevistam o rapper Dexter.

34 Fabíola Ortiz relata a luta de reconstrução do povo Kuntanawa no Acre.

36 Gershon Knispel mostra que os palestinos repetem agora a diáspora dos judeus.

38 Fania Rodrigues entrevista a guerreira Domitila Barrios de Chungara.

42 Fidel Castro acha que a destruição do mundo está nas mãos de Obama.

44 Renato Pompeu Idéias de Botequim: regime militar, anarquia e culturas vivas.

45 Emir Sader critica a atribuição genérica de que todo poder corrompe.

46 Claudius.

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 162, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo.

Romper com a mesmice

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caros amigos setembro 2010 6

Caros LEITORES

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REDAÇÃOCOMENTÁRIOS SOBRE O CONTEÚDO EDITORIAL,

SUGESTÕES E CRÍTICAS A MATÉRIAS.

EMEIO: [email protected]

CARTAS: RUA PARIS, 856, CEP. 01257-040,

SÃO PAULO, SP.

FAX: (11) 2594-0351

SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO ASSINANTEPARA REGISTRAR MUDANÇA DE ENDEREÇO; ESCLARECER

DÚVIDAS SOBRE OS PRAZOS DE RECEBIMENTO DA REVISTA;

RECLAMAÇÕES; VENCIMENTO E RENOVAÇÕES DA ASSINATURA.

EMEIO: [email protected]

NOVO TEL.: (11) 2594-0376

ARTIGOS CORAJOSOSFormei-me em Letras e tenho uma irmã estu-

dante de Jornalismo. Claro que viramos assinante da Caros, como não poderia deixar de ser. Gosto muito da revista, tem colunistas ótimos e artigos corajosos, ferramentas muitas vezes ausentes na mídia brasileira. Gostaria só de comentar alguns deslizes ocorridos na edição 157, na entrevista com o ministro Juca Ferreira. Percebi que na re-vista às vezes aparecem alguns problemas de dia-gramação, por isso resolvi escrever pois sei que é o leitor, atento e com calma, que acaba perceben-do. Durante minha graduação na UFF tentei fazer um jornal e percebi como é difícil. Aline Miranda - Botafogo, Rio de Janeiro – RJ

REFORMA ESTRUTURALAcredito que o Sr. Emir Sader não leu os de-

mais artigos e entrevistas do número 160/2010 da revista Caros Amigos. Se o tivesse feito, não teria escrito o seu artigo eleitoral “Se Tudo fosse Igual”. Frei Beto, em sua entrevista, afi rma que o governo Lula fomenta a especulação no merca-do fi nanceiro, não fez nenhuma reforma estru-tural, nem agrária, nem da saúde, nem da educa-ção, erradicou os Comitês Gestores do Fome Zero e introduziu o Bolsa Família sob o controle dos Prefeitos (raposas tomando conta do galinheiro). Dom Tomás Balduíno afi rma que “o trabalho es-cravo não foi erradicado no Brasil porque mexe com os interesses dos aliados políticos do gover-no Lula”, os homens do agronegócio (Sarney e cia). Ainda afi rma que o “Brasil é o segundo país do mundo em concentração de terra, em latifún-dio, só perdendo para o Paraguai”, além de citar a presença de trabalho escravo, até mesmo em grandes empresas como a Cosan e a Exxonmo-bil. Ainda afi rma Frei Beto, com o que eu concor-do, o governo Lula cooptou uma parcela impor-tante do movimento social brasileiro, entre eles a CUT. Hoje existem no Brasil a Esquerda, a “Es-querda” e o Domador da “Esquerda”, daí o Brasil ter se tornado o paraíso do capital especulativo, do agronegócio e do trabalho escravo.Aurelio Gonzalez

SIMPLES ASSIMJosé Arbex termina seu artigo da edição de

Junho com a seguinte frase: “Simples assim”. Re-

almente não é difícil entender como os países mais ricos e que exercem certa dominância no planeta se engendram geopoliticamente para co-locar em prática tal dominância. Só não se torna simples de entender porque a mídia brasileira e seus mais variados meios de comunicação, atre-lados a inúmeros interesses, fazem questão de não informar com clareza o que se passa e, numa atitude mais cruel ainda, o faz com a intenção de “emburrecer” a população. Por isso que o artigo é brilhante. Parabéns José Arbex. Rafael Carletti - Manaus, AM

COLUNA DOS ESTUDANTESSou leitor assíduo da revista Caros Amigos. Faz

um ano e meio que tenho a assinatura da mesma e a considero um dos melhores meios de comunica-ção do Brasil, pois traz com imparcialidade e ou-sadia notícias que em outros meios, como a Veja, Isto É e a Rede Globo, são manipuladas descarada-mente com um discurso pró capitalismo envergo-nhando tragicamente o jornalismo brasileiro. Su-giro aos editores e diretores da Caros Amigos que criem uma coluna destinada aos estudantes uni-versitários tanto de jornalismo como outras áreas das ciências humanas (Direito, História, Relações Internacionais etc) para que os mesmos expo-nham suas opiniões sobre o caminhar sociopolíti-co e econômico da nossa sociedade.Diego de Lima Leal - Estudante de Direito

LIXO RADIOATIVOPrezada Joelma Couto. Sobre o seu artigo, ex-

celente, gostaria de dizer que a torta II trazida de Santo Amaro passava pela cidade de Andradas por suas principais ruas. Era promotor de Justiça na Comarca e ajuizei uma ação civil pública para impedir a passagem. A ação foi julgada proce-dente e o material radioativo passou a ser trans-portado por uma rota alternativa pela Rodovia Fernão Dias. Mas o importante foi que a INB ao contestar a ação, juntou um protocolo considera-do como de Segurança Nacional, passando o pro-cesso a correr em segredo de justiça. Pelo proto-colo, que nunca foi observado, demonstrando o risco e perigo, a torta II seria acondicionada em barris de aço, transportada por carreta, em com-boio com viaturas da polícia federal. Ambulân-cia com médico e enfermeiros. Um veículo espe-

cial com técnicos da INB para eventual acidente e manejo com o material. Veículo do Corpo de Bombeiros e outras medidas como sobreaviso das polícias civil e militar durante o trajeto, hospi-tais em alerta, tudo devidamente mapeado com as ruas da cidade fotografadas e outros cuidados. Se o material não fosse perigoso, por que todas essas medidas de segurança? Parabéns.Nivio Leandro Previato

FIDEL CULPADOLeio sempre e presenteio a Caros Amigos, para

mim o único produto decente na mídia impres-sa, mas nunca entenderei a fi nalidade de manter uma coluna com aquele senhor que apregoa que a Língua não precisa de códigos fi xos, que não existe “erro”, que qualquer um pode falar ou es-crever como lhe convier. Aliás, ele escreve mui-to mal, se tive a paciência de lê-lo mais de 3 ve-zes... Sempre me parece perdido no que é a Caros Amigos, única exceção. Gostaria também de sa-ber se consigo enviar carta ao Fidel, através de vocês, na verdade gostaria de saber se ele já viu e se é negativo mandar cópia do que acho a mais terna homenagem feita a ela pela sétima arte, o fi lme “A culpa é do Fidel”.Arcileia

COCA COLASorri de felicidade: acabo de receber o n.161

da revista. Ao virar a contra-capa, no entanto, chorei de frustração e desencanto. A minha pri-meira reação e vontade foi a de suspender a as-sinatura. Pobre Caros Amigos: sem Marilena Fe-linto e anunciante do maior símbolo da potência do mal. Que decepção!!!!!!!!!!!!Thimoteo Camacho - Vitória/ES

OCUPAÇÃO DESORDENADAOlá caros amigos, li a entrevista da Ermínia

Maricato da edição de maio. Parabéns a todos. Gostaria muito de um contato com ela, sou pre-feito de Jacareí, sou do PT, estudante de Arquite-tura e Urbanismo e partilho muito da visão dela sobre as cidades e enfrento muitos desafi os aqui em Jacareí na questão urbana, tento ordenar a nossa ocupação para ter um pouco de equilíbrio, não é fácil e a pressão é forte. Hamilton Ribeiro Mota - Prefeito de Jacareí, es-tudante de Arquitetura e Urbanismo

ASSINE A REVISTAwww.lojacarosamigos.com.br

TEL.: (11) 2594-0376(DE SEGUNDA A SEXTA-FEIRA, DAS 9 ÀS 18H)

SÍTIO: www.carosamigos.com.br

FALE CONOSCO

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Page 7: Ed. 162 - Revista Caros Amigos

7setembro 2010 caros amigos

PAÇOCAPedro Alexandre Sanches

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Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

Ora, é só mais uma banda pop en-tre milhares que a indústria fonográfica sempre tentou (e muitas vezes conseguiu) nos empurrar. É mais ou menos imediato avaliar assim o Pato Fu, por mais que o conjunto de gravadoras mul-tinacionais que antigamente atendia pelo pom-poso nome de “indústria fonográfica” há mui-to não esteja com essa bola toda para emplacar seus produtos e armações. Em agosto, essa ban-da lançou novo disco com blitz orquestrada nos maiores jornais, conseguiu emplacar música na novela das sete da Globo etc. e tal.

É preciso, no entanto, observar mais de per-to o que acontece com o quinteto radicado em Belo Horizonte (MG), já com 18 anos de estra-da no cangote. O Pato Fu iniciou jornada com Rotomusic de Liquidificapum, CD lançado em 1993 por um selo independente mineiro chama-do Cogumelo. Atraiu atenção imediata e assi-nou contrato com a multinacional BMG, à qual permaneceu conectado até o disco Toda Cura para Todo Mal (2005), quando a BMG, imersa na grande crise da indústria de CDs, se fundiu com a também multinacional Sony (em 2008, a Sony incorporaria, digeriria e extinguiria a BMG).

Desde então, o Pato Fu tem cumprido uma trajetória essencialmente independente, a partir do selo próprio Rotomusic, não muito mais que um escritório e um estúdio caseiro localizado na casa do casal Fernanda Takai-John Ulhoa. Por conta própria, financiaram e levaram a cabo Da-qui pro Futuro (2007) e, agora, o décimo álbum, Música de Brinquedo, distribuído diretamente por uma grande fábrica, a Microservice, sem in-termediação de gravadora, direitos autorais re-duzidos a 10% das receitas e que tais.

O grupo hoje é, a um só tempo, under-ground e mainstream. Mistura hábitos, carate-rísticas e padrões dos dois mundos, num típi-co efeito de transição. E Música de Brinquedo é pop à medida que nos acostumamos quando

a BMG nos apresentou o Pato Fu, mas traz um dado criativo inédito, e até certa medida surpre-endente. É um disco de releituras de canções co-nhecidas da MPB, do pop mundial e do rock na-cional (Ovelha Negra, de Rita Lee, Frevo Mulher, de Zé Ramalho, Live and Let Die, de Paul McCar-tney, e assim por diante), totalmente executado com instrumentos de brinquedo, sem tentativas de maquiar suas limitações.

Ora, parece banal. Sim, mas é uma ideia que teria ínfimas chances de ser execu-tada, se proposta a uma “grande” gravadora – mal comparando, seria algo como um jornalista tentar fazer reportagem simpática ao MST num “grande” jornal. O CD é simples e despretensioso, mas dispõe de liberdade, artigo raro nas gravado-ras hoje em escombros - um sinal entusiasmante de que, sim, vivemos novos tempos.

Não deixa de ser um trabalho híbrido entre os novos e os velhos costumes, e isso se reflete no próprio conteúdo. É um disco adulto para ser ouvido por crianças e um disco infantil dirigi-do aos adultos, simultaneamente. E, no apelo in-fantil que carrega, reata de quebra uma tradição praticada no passado – dentro da grande indús-tria – por artistas como Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Dori Caymmi, entre muitos outros. Lembremos.

Em 1977, a Globo lançava a trilha sono-ra do Sítio do Picapau Amarelo, sob direção mu-sical de Dori Caymmi, que convocou um elen-co dito de esquerda (João Bosco, Ivan Lins, Jards Macalé, MPB 4 etc.) para cantar os temas de Vis-conde de Sabugosa, Dona Benta etc. Sérgio Ri-cardo compôs e interpretou em tom pessimista o tema da boneca Emília, entre versos como “por mais que o sol se esconda e cruzes se cravem no raiar do dia” – em plena Globo, em plena vigên-cia da ditadura.

Pouco depois, A Arca de Noé (1980) inaugu-rou uma era platinada de musicais infantis glo-

bais, sob a pena correta – e frívola – do “poeti-nha” Vinicius. Entre as músicas que as crianças adoravam, havia uma Lição de Piano, interpreta-da em tom de discotheque pelas Frenéticas, que hoje em dia pararia na Justiça, por incitação à pedofilia: versava sobre o encontro apimentado entre uma menininha e seu professor de piano, encerrada no sofá, sob gemidos. Ninguém deu um pio na época, nem à direita nem à esquerda.

Exemplo máximo de apropriação es-querdista da MPB para crianças foi a peça mu-sical Os Saltimbancos (1977), de Chico Buarque, bancada em disco, assim como A Arca de Noé, pela multinacional Philips (hoje Universal). Os quatro bichos cantores de Chico forjavam um re-trato perfeito do proletariado explorado por “pa-trões” e “barões” fartamente criticados na narra-tiva. O jumento trabalhava de graça, era manso e não fazia pirraça. O cão vivia com o rabo en-tre as pernas e exercia fidelidade à própria farda, na guarda do portão do dono. A galinha fabrica-va ovos em ritmo de linha de montagem. A gata (Nara Leão) era acariciada, aliciada e desprezada pela sociedade (uma trabalhadora do sexo?). Ao final (feliz), nossos bichos fujões descobriam, so-cialistas, que “todos juntos somos fortes/ somos flecha e somos arco/ todos nós no mesmo barco/ não há nada pra temer”.

Perto desse ideário denso e maciço, soa mes-mo modesta a proposta da Música de Brinque-do do Pato Fu. Não conta com o fogo participa-tivo de Chico, Dori e Sérgio Ricardo nos anos de chumbo. Possuem, no entanto, o que os sol-dados armados de então jamais possuíram: in-dependência e liberdade. Talvez eles (nós) não saibam(os) manejar de modo natural tais instru-mentos (infantis?), mas não restam dúvidas: são (somos) saltimbancos, filhos de carne e osso da-queles chicos.

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

As músicas que as CriANÇAs Ouvem

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caros amigos setembro 20108

Cesar Cardoso

...é a eterna vigilância. Pra ter vi-gilância eterna é só instalar umas câmeras de vídeo e botar a plaquinha de “sorria, você está sendo filmado”. Mas pra ter liberdade tem que ter democracia, pra ter democracia tem que ter eleição e pra ter eleição tem que ter candidato. Ora, se o candidato garante a eleição que garante a democracia que ga-rante a liberdade, basta saber quanto cus-ta um candidato pra descobrir o verdadeiro preço da liberdade.

Vamos às contas? Candidato é que nem o Milton Nas-

cimento: tem que ir aonde o povo está. Se for a pé, consegue uns mil votos. De van, uns dois mil. Agora, de jatinho, você roda o país e garante uns cem mil votos. Preço desse vale-transporte aéreo? 400 mil. E pechinchando!

E os panfletos e santinhos, quem distri-bui? Pede pra família que sai de graça. Mas teu filho foi a praia, tua mulher a manicu-re e a sogra vota no adversário. Então bota aí 200 mil pros cabos eleitorais distribuírem teus panfletos e saírem na porrada com os cabos eleitorais do adversário, enquanto vo-cês se xingam no debate da tv.

Mas antes de abrir a boca no debate, con-trate uma agência de publicidade e esqueça as ideias. Você tem que se vender que nem sabão e agradar o eleitor. Custo? 800 mil. Afinal você vai aparecer em tv, rádio, inter-net, facebook, twitter, celular, mp3 e pen-drive.

Pra terminar, candidato tem que ter samba. E começando com “olha o fulano aí, gente!” Não é nenhum samba enredo da Mangueira, mas bota mais uns cem mil.

Agora a gente soma tudo e conclui que o preço da liberdade não é a eterna vigilância. É um milhão e quinhentos mil reais.

Diante desse absurdo, uma pergunta maior se impõe: pode pagar em três vezes no cartão?

Às vezes os jornais mentem. Outras ve-zes, distorcem. E outras, ainda, manipulam in-formações para embaralhar o leitor e dificultar o conhecimento de determinado fato. Mas há situ-ações em que conseguem fazer tudo isso ao mes-mo tempo, num só título.

O Globo é especialista nessa última modalida-de. “Cristina usa ditadura para controlar jornais”. O título apareceu na capa do diário carioca, no fim de agosto.

O que quer dizer isso? A matéria faz referên-cia à decisão da presidenta da Argentina, Cristi-na Kirchner, de exigir investigações sobre a ven-da da empresa Papel Prensa, durante a ditadura militar. Cristina apresentou indícios fortes de que a empresa foi comprada pelos diários Clarin e La Nacion, em 1976, graças à enorme pressão exer-cida pela ditadura contra os antigos proprietários da Papel Prensa.

Mas voltemos ao título de O Globo. Ele dá a entender que Cristina usa métodos ditato-riais. O correto – mesmo se o jornal quisesse fa-zer um título crítico – seria dizer: “Cristina usa caso da ditadura...”, ou “Cristina usa fato da dita-dura...”. Mas o jornal apela para o duplo sentido que não tem nada de engraçado. Serve para en-ganar, iludir. Trata o leitor como idiota.

A segunda parte da manchete também distorce a verdade. Cristina não fala em intervir nos jornais, não quer “controlar” o que eles devem ou não pu-blicar. O que ela pretende é exigir a investigação de um fato que – se comprovado – mostra como esses impérios midiáticos (especialmente o Clarin, que possui jornal, TV, operadora de TV a cabo – como a Globo no Brasil) foram construídos em parceria com a sanguinolenta ditadura argentina.

O Globo entende de ditadura como poucos (talvez, só a Folha de S. Paulo entenda de ditadura mais do que o diário da família Marinho). O gru-po Globo – como o Clarin – cresceu à sombra da ditadura brasileira. Deu apoio (aí, sim) a um regi-me que censurava, controlava e fechava jornais. Em troca, cresceu.

Por que O Globo está tão preocupado com a situação na Argentina? É que naquele país (assim como na Venezuela e na Bolivia – cada qual com suas peculiaridades) trava-se de forma aberta um

combate entre os grandes meios de comunicação e o governo. Nos três países citados, a oposição tradicional se esfacelou e os setores conservado-res tentam se reorganizar tendo como eixo os ve-lhos meios de comunicação.

O que isso tem a ver com o Brasil? A elei-ção de outubro, aqui, deve apontar para um cami-nho muito semelhante. DEM e PSDB podem sofrer uma derrota histórica. Derrota eleitoral e política, já que o candidato da oposição abriu mão de de-fender o programa liberal e tentou, de forma pa-tética, colar sua imagem a Lula.

A fragilidade da oposição – antes mesmo do processo eleitoral - já fizera a presidenta da As-sociação Nacional dos Jornais (ANJ), Judith Brito, dar uma declaração emblemática: “a imprensa é hoje a verdadeira oposição no Brasil”.

Tudo ficou exposto, de forma didática.Além disso, houve dois outros episódios emble-

máticos durante a campanha: a forma agressiva como os apresentadores do JN da TV Globo trata-ram a candidata do PT durante uma bateria de en-trevistas, e a manipulação de perguntas no debate organizado pela Folha/UOL (três internautas esco-lhidos para fazer perguntas aos candidatos eram, coincidentemente, ligados ao PSDB; só que o pú-blico não foi informado disso.

Diante de tantos sinais de tomada de par-tido, Lula resolveu colocar o tema no centro do debate eleitoral. Tem feito pequenos ataques aos jornais. Contou, por exemplo, que em 2002 o di-retor da Folha tentou desqualificá-lo pela falta de estudo. Lula expôs quem são os donos da mídia no Brasil. Como são, como pensam.

O título de O Globo indica que os velhos jor-nais preparam-se para uma situação nova no Bra-sil. Uma situação em que a mídia pode caminhar para o centro do debate. Fora do governo a par-tir de 2011, Lula talvez tenha disposição para tra-var esse combate – mostrando como os jornais re-presentam interesses específicos conservadores e antinacionais.

Também aqui no Brasil – e com algum atraso – a batalha da mídia pode se transformar na mãe de todas as batalhas.

tacapeRodrigo Vianna

Rodrigo Vianna é jornalista.

O preço da LIBERDADE...

Cesar Cardoso é historiador e leciona na Univer-sity of Tchucarramãe.

A MÃE DE TODAS AS BATALHAS

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Page 9: Ed. 162 - Revista Caros Amigos

9setembro 2010 caros amigos

Guilherme Scalzilli

O propósito inicial dessa coluna foi falar de livros. Da poltrona, fitaria minhas estantes, soltaria a imaginação, reativaria lembranças. Era inevitável que acabasse entrando em po-lítica, tanto a de longa duração quanto a ime-diata, levado por livros. Uma ou outra vez en-traria no que chamamos de filosofia, tanto a canônica quanto a barata. Apesar de peque-nos arranhões o retorno que tenho dos leito-res é positivo.

Como toda biblioteca, a minha tem objetos - um saveirozinho de Paraty, anterior à FLIP e mesmo à Rio-Santos, um caminhão em barro de Barranquilla, Colômbia, comprado na saí-da do Museu do Ouro, em Bogotá... Já me de-tenho aqui para dizer ao leitor que nenhum museu me impressionou como este, nem o Britânico com seus templos inteiros roubados da Grécia. O Museu do Ouro faz chorar, lá es-tão os artefatos sofisticadíssimo da arte pré-colombiana, testemunhos da dupla cruelda-de da Conquista, a dos espanhóis como a dos caciques nativos.

E tem fotos, através das quais também in-cursiono pela política e a filosofia.

Há de um lado as canônicas: Fidel, descan-sando numa rede em Sierra Maestra; Gueva-ra, fumando um charutão em Havana; Lênin, com sua cara asiática e boné de motorista de taxi espanhol; Einstein, em Princeton, de tes-ta enorme e olhar cansado; James Baldwin, com sua cabeça de melão, autografando No-body knows my name; Samora Machel, de olhos arregalados, rindo como um pandeiris-ta de escola de samba; Cruz e Sousa, mais um acadêmico alemão em negativo que um poe-ta catarinense; Pixinguinha, em uniforme da polícia militar...

A certa distância desses, há, digamos, um segundo time: Thiago de Mello, sempre de branco, num momento em que me contava mais uma história de Zé Lins do Rego; Pelé, na Serra da Barriga, convidado por mim, apertado por papagaios de pirata; Ailton Cre-nac, abraçado comigo e dois caciques tere-nas; Milton Gonçalves, o grande ator, ami-go da juventude, no lançamento de um livro meu; Manoel Zapata, polígrafo que me ensi-nou a amar a Colômbia, mais parecida com o Brasil, ao menos no seu litoral caribenho, do que imaginamos, na Costa do Marfim, num almoço que era um antílope assado comido

com a mão. E um terceiro: Zizinho, o maior de todos os jogadores que vi; Rivelino e Brito, com quem joguei em peladas paulistanas...

Nenhuma dessas fotos bibliotecárias me comove mais, porém, que a de Luís Eduardo Merlino. Com o tempo, só lembram dele os fa-miliares e uns poucos que o amaram. Assas-sinado pelo DOI-CODI, era um revolucioná-rio que não mirava só na revolução, amava o jazz, recitava Fernando Pessoa. Um retrato na parede, mas como dói.

Minhas fotos contam minha história pes-soal. Seriam insignificantes, a não ser para mim e, talvez, durante algum tempo, para meus filhos e netos que um dia se desfarão delas e dos livros. Contam também a histó-ria de uma geração? É provável: Einstein, Lê-nin, Samora, Fidel, Pixinguinha... Só que ge-ração é um conceito enganoso, atravessado como tudo pela linha de classe. Meus amigos mais antigos não colecionariam qualquer re-trato daqueles, nem mesmo de Zizinho. Ne-nhum deles tem biblioteca, estante só de dis-cos. Sua geração não é a mesma que a minha, embora tenhamos a mesma idade e vivido ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo e não o mes-mo tempo.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amare-la). www.guilhermescalzilli.blogspot.comJoel Rufino é historiador e escritor.

A violação dos direitos do consumidor brasileiro atingiu níveis insuportáveis. Enquanto as autoridades repetem os jargões da cidadania, interesses privados violentam moral e financei-ramente milhões de pessoas indefesas. Em ple-na euforia desenvolvimentista, a sociedade con-tinua presa num capitalismo pré-histórico, lesivo e inescrupuloso. Ninguém age contra esses ab-surdos cotidianos.

Passada a histeria inicial, as empresas adap-taram-se ao teatro da fiscalização irrelevan-te. “Propaganda enganosa” virou pleonasmo e, no fundo, uma qualificação bastante confortá-vel para o delito. As vítimas, desinformadas, in-crédulas ou preguiçosas, dificilmente reclamam. Mas podemos culpá-las? Os Procons, sucateados e afeitos a intervenções políticas, são máquinas de moer paciências e bravatear resoluções me-nosprezadas. As sanções, limitadas e eventuais, resultam desprezíveis perante os recursos dos in-fratores. E basta-lhes ignorá-las, deixando que as catacumbas judiciais posterguem seus casti-gos até um futuro incerto.

No mundo tenebroso dos serviços es-senciais e planos médicos, esse pesadelo ganha cores surreais. O crime é escancarado e impu-ne. Os poucos funcionários de concessionárias que ouviram falar em regulamentações zombam delas às próprias ouvidorias. Os órgãos “respon-sáveis” fingem que mandam e as companhias, quando respondem, prometem “estar verifican-do” nosso status de imbecis. Afinal, continuare-mos pagando fortunas para tais punguistas, pois inexistem alternativas a eles. Nada como priva-tizar monopólios.

Os maiores transgressores das normas de con-sumo são justamente os principais anunciantes da mídia nacional. A imprensa jamais defenderá que os bandidos recebam as punições rigorosas e definitivas que merecem. E o governo federal, acuado pelos fantasmas do desemprego e da es-tatização, prefere parecer apenas covarde.

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MINHA GERAÇÃOPagando para sofrer

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caros amigos agosto 2010 10

Mc Leonardo

Foi celebrado o centenário de um nome da música popular brasileira que é um ver-dadeiro personagem da nossa história cultu-ral: Adoniran Barbosa. Esse João Rubinato (seu nome verdadeiro) recorreu a uma lin-guagem que tentava representar, com mui-ta graça, o cotidiano das classes mais hu-mildes da cidade de São Paulo, sobretudo dos imigrantes italianos. É preciso ressaltar, no entanto, que essa linguagem aparece ali de modo caricatural e nunca como a trans-crição fiel de alguma variedade linguística autêntica. E é aí que mora o perigo quan-do tentam utilizar Adoniran na escola para o estudo da variação linguística.

Adoniran, junto com o personagem Chico Bento (de Maurício de Sousa), o compositor Luís Gonzaga e o poeta Patativa do Assaré, compõe o grupo das “vítimas” preferenciais do trabalho que se faz, em muitos materiais didáticos, com o fenômeno da variação. O grande problema é que existe ali uma ten-dência a tratar da variação linguística em geral como sinônimo de variedades regio-nais, rurais ou de pessoas não-escolarizadas. Parece estar por trás dessa tendência a supo-sição (falsa) de que os falantes urbanos e es-colarizados usam a língua de um modo mais “correto”, mais próximo do padrão, e que no uso que eles fazem não existe variação, o que não é verdade.

Daí a insistência dos materiais didáticos em apresentar como exemplos de variação linguística uma tirinha do Chico Bento, um samba de Adoniran, um baião de Luís Gon-zaga ou um poema de Patativa. Qual o pro-blema? Muito simples: não são represen-tações fiéis das variedades linguísticas que supostamente veiculam. Não são, nem têm que ser, já que em todas essas manifesta-ções está presente uma intenção lúdica, ar-tística, estética e, nem de longe, um traba-lho científico rigoroso. A responsabilidade pelo problema não é de Maurício de Sousa, não é de Adoniran, nem de Gonzagão, nem de Patativa — o problema está no uso ina-dequado que se faz dos trabalhos criativos dessas pessoas.

Os primeiros versos do conhecido “Sam-ba do Arnesto”, por exemplo, dizem assim: “O Arnesto nos convidou / prum samba, ele

mora no Brás, / nós fumo e não encontre-mo ninguém...”. Ora, a terceira palavra do primeiro verso, o pronome oblíquo “nos”, é de uso muito restrito no português brasileiro contemporâneo falado, sobretudo nas varie-dades ditas “populares”, como aquela que o samba pretende retratar. Dificilmente as pes-soas que usam as outras formas linguísticas que aparecem no samba ― “nós fumo”, “en-contremo”, “vortemo”, “nós num vai mais”, “reiva”, “ponhado” etc. ― usariam esse “nos” oblíquo. Mais provável seria “convidou nós” ou “convidou a gente”. No entanto, como o compromisso de Adoniran é com a música e a métrica dos versos, ele usou o “nos”, opção perfeitamente legítima para um compositor.

Limitar o estudo da variação às falas ru-rais ou urbanas sem prestígio é criar uma falsa sinonímia entre variação linguística e “erro”, o que só serve para estimular o pre-conceito linguístico, já tão impregnado na nossa cultura.

falar brasileiroMarcos Bagno

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Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Na noite de 20 de julho deste ano ocorreu um acidente no túnel acústico (que liga o Bairro de São Conrado ao Leblon, na zona sul do Rio) que cau-sou a morte do músico Rafael Mascarenhas.

Os responsáveis pelo fechamento do túnel, já de-veriam ter liberado legalmente o espaço do túnel quando o mesmo estivesse fechado para manuten-ção, já que os amantes de esporte estão acostuma-dos a ocupar ilegalmente o local.

Segundo a Prefeitura do Rio, as galerias que li-gam um túnel ao outro ficam abertas para o caso de uma emergência.

O atropelador Rafael Bussamra juntamen-te com um amigo em outro carro, entraram no túnel sentido São Conrado e usaram uma das galerias do túnel para retornar sentido Leblon.

O atropelado Rafael Mascarenhas juntamente com seus amigos entraram no túnel para andar de skate, fato que levou seu atropelamento e morte.

Rafael Bussamra depois que atrope-lou saiu do local sem prestar socorro, tentou subor-nar policiais e levou o carro para uma oficina onde foi desmontado, fato que dificultou o trabalho da perícia que queria saber se Rafael Bussamra esta-va ou não “batendo um pega” ou “fazendo um ra-cha” como falam.

Ao sair do túnel, Rafael Bussamra foi parado por dois policiais que o abordaram e segundo o próprio Rafael, tentaram lhe extorquir 10 mil reais para li-berá-lo, fato que acabou envolvendo o pai de Rafa-el no crime de corrupção já que o rapaz não tinha o dinheiro na hora.

A Policia Militar concluiu que o pai de Ra-fael corrompeu o Sargento Marcelo Leal e o Cabo Marcelo Bigon.

Sobre o erro dos policiais eu não vou ter espaço para comentar aqui, mas vale lembrar que corrupção ativa e passiva, extorsão e agressão são práticas co-nhecidas por moradores do Rio, pois são praticadas por boa parte da Polícia, Polícia esta que é despre-parada e mal paga no nosso Estado.

De todos os erros acima por mim rela-tados, o único acidental foi o atropelamento.

Erros no túnEl,

um acidenteVIVA ADONIRAN BARBOSA!

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11setembro 2010 caros amigos

Qualquer internauta em phase de alpha-betização ja percebeu que o til e a cedilha só atrapalham a digitação e que a informa-tica, como está baseada no inglez, fica li-vre do problema. Na verdade, o portuguez tambem podia se livrar, mesmo parcialmen-te, dessa praga addicional e polluidora. O systema que adopto, hoje substituido pela maldicta orthographia phonetica, tem como uma de suas characteristicas a minima ac-centuação:

vogaes como “I” e “U” nunca levam agu-do nem circumflexo, e as demais não pre-cisam ser accentuadas nos paroxytonos e proparoxytonos, como em “pharmacia”, “espherico”, “commercio”, “phosphoro”, “chrysanthemo”, “sciencia”, “ephemero” ou “phenomeno”. O til desapparece em pala-vras como “orgam” ou “Estevam”. Quanto à cedilha, pode ser evitada em formas como “dansa”, “disfarsar”, “assucar”, “carcassa”, “Suissa”, “Jussara”, “Mossoró” ou “Payssan-du”. Argumentos em contrario são frageis. Si podemos escolher entre o francez “danse” e o inglez “dance”, por que não escolhermos a melhor forma? Si a etymologia de “farsa” não é a mesma de “disfarsar”, por que não

uniformizarmos, ja que o supposto etymo “disfressar” não é cedilhado? Nos tupinis-mos, qualquer graphia é mera convenção, donde podermos escolher sem resalvas. O hespanhol se livra da cedilha usando o “Z”, como em “cabeza”, e mantendo o “I” na de-sinencia “ción”, que no italiano é “zione” e no inglez “tion”, como no francez. O portu-guez parece condemnado a manter o terrivel “ção”, com cedilha e til, creando monstren-gos internauticos como “informacao”. Para isso não ha “solucao”... Mas isso não tira o merito do systema etymologico: antes eli-minar em parte os superfluos accentos, que não eliminar nada. É como na burocracia ou na democracia. Antes abolir um, entre mui-tos carimbos, que não abolir nenhum. Antes cassar um politico com ficha suja, que não cassar nenhum.

porca miséria!Glauco Mattoso

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Eduardo Matarazzo Suplicy

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Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Renovo o apelo que fiz, da tribuna do Senado e em carta, ao Presidente da Fundação Padre Anchie-ta, João Sayad, para que reconsidere sua decisão de retirar da programação da TV Cultura Manos&Minas. Trata-se do primeiro programa em rede aberta de te-levisão que deu espaço para o Hip-Hop. Propiciou que artistas como DJ, Grafitti, Bboys, Emicida, DJ Erick Jay, Per Raps se apresentassem, com respeito e dignidade, e ganhassem visibilidade na grande imprensa.

Artistas consagrados do Rap nacional, como Rappin Hood, Thaíde e Max BO – que antes fazia sucesso no programa Brothers com Supla e João Suplicy, na Rede TV – se tornaram âncoras do Manos&Minas. O progra-ma também revelou o rapper Kamau, autor de um livro, em linguagem típica do rap, para o ensino fundamental. Abriu espaço para Ferréz e outros escritores.

No tempo em que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda menino, saiu do interior de Pernambu-co para vir, com sua mãe e irmãos, encontrar seu pai em São Paulo, o que acontecia no Brasil era retratado pelas canções de Patativa do Assaré, como “Triste Par-tida”, entoadas pelo sertanejo Luís Gonzaga. Hoje, se quisermos conhecer o sentimento dos jovens da peri-feria das grandes metrópoles, precisamos ouvir o que dizem composições como “O Homem na Estrada”, ou “Vida Loka”, de Mano Brown, dos Racionais MCs.

Sugiro ao Presidente João Sayad que compareça ao Festival da Godoy, que este ano acontece em 11 de se-tembro na Favela da Godoy. Ali onde termina a Aveni-da Albert Sabin, no Capão Redondo, em São Paulo, as famílias se organizam para fazer uma espécie de quer-messe com a venda de comes e bebes, artesanatos, nas janelas e portas de suas casas. Naquela rua se reúnem quase cinco mil crianças, jovens e seus pais desde à tar-de até a madrugada seguinte. Ali se apresentam os mais diversos conjuntos de Rap. Os Racionais MCs costumam tocar por último, mesmo assim o pessoal espera para vê-los, quase ao amanhecer.

Ao conhecer o que lá se passa, como em tantos outros bairros de muitas cidades, o presidente Sayad se dará conta do valor cultural inestimável de Manos&Minas. Da mesma maneira que a TV Cultura tem, há trinta anos, o programa de música sertaneja de Inezita Barroso, Viola, Minha Viola, será próprio que também continue com um dedicado à cultura Hip Hop. Também será oportuno que dialogue antes com Rapin Hood, que deixou o programa por discordar das mudan-ças em relação ao projeto inicial.

“Manos&Minas” merece continuar

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INTENÇÃO SEM EXTENSÃO [SONETO 3360]

Accento, til, cedilha... a maldicção em bençam quasi tem transformação.

O accento é dispensavel, seja agudo ou seja circumflexo: assim, “sciencia”, “chrysanthemo” e “psalmodia” (com “P” mudo).

Tambem o til, às vezes, se dispensa si escrevo “Estevam”, “orpham”, “orgam”, “sotam”, mas mesmo os que o systema antigo adoptam não podem, sem cedilha, escrever “bença”.

Tirei do termo “bençam” quasi tudo de inutil: til, accento... Mas quem vence acedilha, si um “K” vira o “C” desnudo?

Consigo “disfarsar”, “dansar”, mas nãomixturo “paço” e “passo” na eleição.

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caros amigos setembro 2010 12

entrevista José Arbex Jr.

“O Estado brasileiro se estruturou cOntra a naçãO”

Arbex: “O Lula é um bombeiro da luta de classes em escala internacional”.

Participaram: Bárbara Mengardo, Débora Prado, Gabriela Moncau, Gershon Knispel, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya, Paulo Barbosa, Renato Pompeu, Wagner Nabuco. Fotos: Jesus Carlos.

o jornalista e professor José Arbex Jr. é co-nhecido pela profunda formação cultural, capacidade intelectual e por defender com

veemência as suas posições. É colaborador anti-go da revista Caros Amigos, tem vários livros es-critos e uma militância política e social inten-sa, de muitos anos, desde as batalhas da “Libelu” (organização trotskista) no movimento estudan-til dos anos 70, durante a construção do PT nos anos 80 e, posteriormente, no apoio firme e de-dicado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Atualmente é professor de jor-nalismo na PUC-SP, colaborador do jornal Brasil de Fato e presidente da Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes. Mais do que isso: Arbex é um intelectual ousado, coeren-te e instigante. Vale a pena conhecer as suas po-sições – e provocações.

Lúcia Rodrigues - Eu queria que você definisse quem é você?Arbex – (Risos) Eu proponho que seja essa a definição. Próxima questão. Lúcia Rodrigues - Arbex por Arbex.Não tem. Acho que é impossível responder isso. As coisas mudam, né? Você faz uma projeção de quem você é, e a partir dos acontecimentos na tua vida e do intercâmbio com o mundo, aquilo que você achava que você era não é exatamente igual. Então, acho que é um processo de autoco-nhecimento, se é realmente de autoconhecimen-to não é um processo ancorado em estereótipos e medo de mudança, e necessariamente é um pro-cesso refratário, multifacetado, caleidoscópico. Vamos dizer assim. Renato Pompeu - Onde você nasceu?Eu nasci em Marília, no dia 18 de maio de 1957. Renato Pompeu - Seus pais eram o que?Meus pais eram imigrantes da Síria. Como todo imigrante árabe tinha uma lojinha. Gershon Knispel - De que cidade era seu pai?De uma cidadezinha perto de Damasco, mas a origem mais longínqua da minha família é a Palestina.

Lúcia Rodrigues - Seus pais já chegaram casados da Síria?Não, meu pai construiu a primeira casa de alve-

naria em Marília em 1929. Conheceu minha mãe aqui, embora ela também seja da mesma cidade que ele na Síria. Lúcia Rodrigues - Você veio de Marília para São Paulo com quantos anos?Eu saí de Marília e fui pros Estados Unidos com-pletar o colegial com 17 anos. Lúcia Rodrigues - Por que para os Estados Unidos?Porque pintou um concurso em Marília. Renato Pompeu - Mas como foi sua formação antes disso? Seu pai tinha alguma posição política, sua mãe?Meu pai? Nacionalista nasserista [Nasser], tercei-ro mundista. Totalmente anti-imperialista.

Renato Pompeu - Você foi influenciado por causa desses parâmetros?Fui. Só que foi meio atípico, porque aos nove ou dez anos de idade eu ganhei a República do Platão. Aí eu ficava lendo, a bibliotecária pública lá de Marí-lia ligou pra minha mãe pedindo pra proibir que eu entrasse na biblioteca. Porque ela achava um ab-surdo a quantidade de livros que eu lia e não saía da biblioteca. E lia de uma forma desordenada, né? Completamente caótica, porque Marília não tinha nenhuma espécie de referência intelectual. Então eu lia Platão num dia, no dia seguinte lia um romance do Kafka, no outro dia Hermann Hesse, O lobo da estepe, que foi um livro que me influenciou bastan-te. Misturava tudo. Anarquismo com existencialis-mo, com todo tipo de leitura. Então a referência do meu pai foi muito importante, mas foi fraca nesse sentido. Não foi determinante.

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13setembro 2010 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Lúcia Rodrigues - E a sua ida para os Estados Unidos te ajudou a ser de esquerda?Não, ela ajudou a criar o caos. Porque você sai de Marília, uma cidadezinha absolutamente provin-ciana, preconceituosa, de uma classe média ridí-cula, de novos ricos. E aí você vai cair em outro país, eu mal sabia falar inglês. Isso cria um cho-que evidentemente existencial, cultural, muito profundo. E isso ajudou a me desestruturar com-pletamente. E essa desestruturação é que me em-purrou pra esquerda. Quando comecei a procurar respostas, não tinha nenhum intelectual de direi-ta que me desse respostas. Renato Pompeu - Ainda nos Estados Unidos?Nos Estados Unidos foi outra coisa. Eu fiquei na casa de uma família protestante que queria me obrigar a ir ao culto (risos). Eu falei não. Isso deu uma zona lá. Eu fiquei perto do lugar onde nas-ceu a Ku Klux Klan. Lúcia Rodrigues - Em que Estado você estava? Indiana. Na minha cidade não entrava negro. Era uma cidade completamente reacionária. Lúcia Rodrigues - Quanto tempo você ficou nos Estados Unidos?Um ano, dessa vez. Eu voltei depois, em 1987, pra ser correspondente da Folha. Otávio Nagoya - Como começa a sua militância? Você volta para Brasil no movimento estudantil? Anarquista. Eu fiz três meses de cursinho e nes-ses três meses de cursinho houve o assassinato do Herzog e foi convocada a missa para o Herzog. Aí eu fui, ajudei... Lúcia Rodrigues - Você foi diretor do DCE?Não, era levantar dinheiro pra anarquista ser di-retor do DCE... Era um negócio clandestino ainda, mas era engraçado porque quando as tendências iam falar era: Refazendo, aí ia o cara lá e falava; Libelu, ía o cara e falava; Caminhando, ía lá o Cel-sinho ; e aí Kissinger, que era meu apelido lá, e ía eu. Aí eu comecei a formular um negócio que eu chamei de Revolução Permanente. Revolução tem que ser permanente, mas nos termos que eu colocava, intuitivamente, mais ou menos. E aí o pessoal chegou pra mim, de uma certa tendência, e falou: “Olha, tem um cara que fala da Revolu-ção Permanente, um livro histórico sobre a Revo-lução Permanente. Falei sério, quem é? Trotsky. Eu falei nunca li Trotsky e aí os caras me despe-jaram um pilha de livros do Trotsky, que eu de-vorei. E a partir daí me tornei trotskista. Otávio Nagoya - E esse apelido?Kissinger? Entrei na Poli. Fui fazer Engenharia Química. E aí os caras fizeram o miss bicho e eu fui apresentar e como eu tinha chegado dos Esta-

dos Unidos, tava falando inglês fluentemente. Eu apresentei o miss bicho em inglês, aí me botaram o apelido de Kissinger. Lúcia Rodrigues - E o que você achava desse apelido? Engraçado. Lúcia Rodrigues - Não ficava ofendido?Não. Era engraçado. Lúcia Rodrigues: E a tua trajetória dentro da Libelu, como é que foi? Você foi quadro da Libelu?Fui. Eu participei do Comitê Central. Foi tumultu-ada, porque eu não concordava muito, pra variar um pouco. Sempre tinha muita discussão. A Libelu é uma organização fantástica. Ela formou quadros absolutamente fantásticos. Não é a toa que os qua-dros da Libelu, hoje, são os quadros que dirigem o Estado brasileiro. Eu não tô entrando no mérito da posição ideológica, eu tô falando da formação de quadros. E a Libelu tinha uma disciplina, que eu qualificaria como uma disciplina perfeita do ponto de vista da organização de quadros. Por exemplo, pra você entrar na Libelu, que era o braço estu-dantil da organização trotskista OSI (Organização Socialista Internacionalista), você tinha que parti-cipar de um negócio chamado GER (Grupo de Es-tudos Revolucionários), que eram oito encontros quinzenais, para os quais a gente tinha que ler li-vros inteiros. Então se marcava: daqui a 15 dias a gente vai discutir o volume I de O Capital. Você vai ter de ler o volume I do Capital, bicho. Porque os capítulos referentes ao fetichismo da mercado-ria, você vai ter que ler isso. Se você vai lá e fala: “Eu não li, não tive tempo, tô com dor de cabeça”; você tá fora. E dentro da Libelu a gente respeitava de uma forma muito disciplinar a ideia do Centra-lismo Democrático. Nunca houve um episódio em que dois militantes da Libelu falaram duas coisas diferentes numa mesma assembleia, nunca. Mes-mo que eles discordassem internamente. Interna-mente, se quebrava o maior pau. Fechava o tempo, quase saía tapa, mas na hora de intervir na assem-bleia, era intervenção em bloco, todo mundo fa-lando exatamente a mesma coisa. Nunca se ou-viu falar de uma dissensão. A gente respeitava os princípios do Centralismo Democrático, da forma-ção teórica, uma exigência permanente, e da coti-zação. Militante que não pagava a cotização, tava fora, não tinha conversa, a gente respeitava isso de uma forma muito rígida.

Bárbara Mengardo - Em que ano você entrou para a Libelu?1977. Bárbara Mengardo - Quando você desistiu de fazer Engenharia?Eu fui levando, eu fui levando. Pra mim era tran-

quilo cálculo, análise vetorial. Não tinha nenhu-ma dificuldade nisso aí. Então, eu fui levando. Mas aí comecei a militar, fazer imprensa clandes-tina, jornal O Trabalho, imprensa do PT, imprensa da CUT, comecei a ser atraído pelo Jornalismo. E acho que em 1978 eu entrei na ECA e me formei em 1982. Por um tempo levei os dois juntos. Otávio Nagoya - Você se formou em Engenharia?Não. Minha tática foi... meus pais moravam em Marília e toda vez que eu ia pra Marília eu fica-va falando de jornalismo, jornalismo, jornalismo, jornalismo e não falava nada de engenharia. Um dia meu pai virou pra mim e falou: “Você lar-gou Engenharia, né?” Eu falei: “Sim, senhor.” Ele falou: “Você ta fazendo Jornalismo?” “Sim se-nhor.” Ele falou: “Você virou delinquente?” Eu falei: “Sim, senhor (risos)”. Porque, pra ele, jorna-lista e delinquente eram a mesma coisa. Lúcia Rodrigues - Mas foi uma gozação que ele fez?Não. Era o que ele achava. Renato Pompeu - Você acha que estava equivocado?Claro que depois que começou a aparecer meu nome no jornal, ele ficou orgulhoso. Ele colecio-nava meus artigos. Mas eu não discutia com ele, porque cada vez que a gente discutia era uma briga interminável, que não ia levar a absoluta-mente nada. E hoje se você perguntar pra mim o que eu acho do meu pai, se eu tivesse que es-colher uma pessoa como referência, seria exata-mente ele, apesar de ideologicamente a gente ter uma série de discordâncias. Mas era um sujeito que levava ao extremo a ideia de honra, de éti-ca, de dignidade. Ele levava isso a um grau ex-tremado. Eu não conheci outra pessoa tão ínte-gra, quanto meu pai, até hoje. Lúcia Rodrigues - Você destacou a questão da cotização, do Centralismo Democrático e da formação teórica. O Centralismo Democrático existe em várias organizações e a cotização também, porém a formação teórica, hoje, deixa muito a desejar...O Centralismo Democrático não é uma fórmula. Tem gente que acha que Centralismo Democrá-tico se resume a uma fórmula: ampla discussão interna e unidade na ação. O importante é sa-ber até que ponto você está disposto a levar isso até as últimas consequências. E muita gente con-funde Centralismo Democrático com a obediên-cia a uma ordem que vem de cima. E isso na Li-belu nunca existiu. Não havia a ideia que alguém de cima fosse dar uma ordem. Mesmo porque os militantes da Libelu jamais aceitariam esse tipo de coisa. Então, quando você diz que existem vá-rias organizações com Centralismo Democrático, eu tenho minhas dúvidas sobre isso. Eu acho que existe autoritarismo, com discurso de esquerda, que se veste de Centralismo Democrático. Às ve-zes, as pessoas acham que eu tenho o tom meio duro pra discutir, pra falar as coisas. Na verda-

“O jornalismo hoje no Brasil em grandeparte se resume aos escribas do poder”.

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de, isso é uma herança do Centralismo Demo-crático. Você expõe as coisas claramente. Você vai até as últimas consequências com aquilo que você acha, sem ficar com papas na língua, sem ficar com medo de ferir suscetibilidades e se dis-põe também a ouvir. E, a partir dessa discussão, é que surge um consenso eficaz pra ação. Porque uma coisa é estar namorando, outra é eu discutir o que vou fazer que vai comprometer a vida das pessoas. E aí eu acho que não pode ter clemência, leniência cumplicidade, afagar a cabeça. Você fa-lou uma coisa que está errada, tem que dizer: “ É um absurdo o que você acabou de falar, não tem o menor sentido.” Você tem que destruir a posi-ção do cara. Por que? Porque se está num coleti-vo em que a decisão errada pode conduzir pesso-as à morte. Você tem que quebrar o pau, tem que arrebentar, falar o que você acha. O Lênin quan-do achou que tinha que tomar o poder na Rússia em 1917 e a maioria do Comitê Central não quis, votou contra o Lênin, ele foi pras bases, levantou as bases contra o Comitê Central. E pau no cu do Comitê Central. Isso é Centralismo Democrático. Não é isso que existe na maioria das organiza-ções. Então, não é verdade que a maioria das or-ganizações tenha Centralismo Democrático. Hamilton Octavio de Souza - Como é que você começou no jornalismo?Na Libelu, no jornal O Trabalho, jornalismo clan-destino. Depois fui fazer jornalismo na universi-dade, com mimeógrafo a álcool. A gente rodava no mimeógrafo e amanhecia com as mãos sujas de azul. Então a gente imprimia os panfletos. Na época tinha uma tática, você imprimia o panfle-to e deixava a tinta secar, se molhava as folhas com álcool pra grudar uma folha na outra e dei-xava num lugar que ventava. Aí o álcool secava e as folhas soltavam e o vento levava os panfle-tos, pra ditadura não pegar. Otávio Nagoya - Como você chegou na Folha?Em 1983, teve a eleição do Sindicato dos Meta-lúrgicos de São Paulo, uma eleição histórica que, pela primeira vez, a oposição tinha a chance de derrotar o Joaquinzão. E a organização me de-signou pra dirigir essas eleições, pela organiza-ção. Essa é a primeira vez que eu tô contando essa história em público, eu ainda vou escrever sobre isso. A organização tinha a meta de criar uma base metalúrgica em São Paulo. E, corretamente, a organização tinha uma avaliação que se a gen-te conseguisse derrotar o Joaquinzão, isso daria um impulso extraordinário pra revolução brasi-leira, porque você estaria juntando, numa mesma base sindical, o ABC e São Paulo. Não haveria na América Latina nada que se equiparasse em ter-mos de metalúrgicos, poder de força, a essa base unificada, São Bernardo do Campo e São Paulo. E quem impedia essa unificação era o Joaquin-zão. O Joaquinzão sempre foi totalmente contra a CUT, totalmente contra qualquer ideia de sindi-cato independente. O Joaquinzão dedava os ca-ras pra polícia, e o PC tava com o Joaquinzão. Então, a gente tinha que derrotar o Joaquinzão. A organização tinha a meta: derrotar o Joaquin-

zão e pelo menos um militante na chapa na nova diretoria do sindicato. Eu fui com essa missão. E eu não coloquei um militante, coloquei dois, trotskistas. Num processo muito violento. Depois disso, pra minha surpresa, a organização não mo-bilizou um único militante pra participar da cam-panha dos metalúrgicos. A nossa organização ti-nha 500 militantes organizados na cidade de São Paulo. Não mobilizou nenhum. O Joaquim ga-nhou por três mil votos. Minha convicção: se a organização tivesse mobilizado nossos 500 mili-tantes em São Paulo, a gente teria derrotado o Jo-aquim e a história do Brasil seria completamente diferente do que foi. Lúcia Rodrigues – Por que você acha que isso aconteceu?Demorou a entender, porque a organização não mobilizou ninguém. Hoje, eu acho que eu en-tendo. Coincidiu com a estadia no Brasil do Luís Favre, que era da organização. Se ele fosse um agente da social-democracia francesa, ou mes-mo da CIA, não teria causado um estrago maior do que o que causou, na qualidade de represen-tante no Brasil da direção internacional do Comi-tê pela Reconstrução da Quarta Internacional. E, a partir daí, eu escrevi uma carta para o bureau político do Comitê Central, dizendo que eu tava profundamente decepcionado. Na minha opinião, isso foi uma traição ao marxismo, traição à luta de classes, traição ao proletariado, traição à re-volução brasileira e que eu não podia compactu-ar com essa traição e caí fora da organização. Isso no final de 83 começo de 84. Lúcia Rodrigues - Mas você tinha comentado a questão do Centralismo Democrático na Libelu. Não foi feito um amplo debate a respeito disso?Aí é que está. Foi a morte do Centralismo Demo-crático dentro da organização. Otávio de Souza - Mas você não contou como entrou na Folha.Calma. Vou falar. Sai da Libelu, nesse processo de ruptura com o Comitê Central. Otávio Nagoya - Você saiu sozinho? Sozinho. Mandei todo mundo tomar no meio do cu. Renato Pompeu - Todo mundo quem?Comitê Central. Renato Pompeu - Quem era o Comitê Central?Tinham 23 pessoas. Lúcia Rodrigues - O Palocci não fazia parte?Do Comitê Central?! Ah! Era uma figura insigni-ficante, cá entre nós. O Palocci, nunca teve sta-tus intelectual pra fazer parte do Comitê Central. Pelo amor de deus... Lúcia Rodrigues - Mas ele foi Ministro da Fazenda...Ah bom, mas pra isso não precisa ter muito status

intelectual pra fazer o que os caras mandam. Mas aí o que aconteceu, aconteceu que nessa mesma época, pra chegar na Folha, eu fui casado um ano. A primeira e última vez na minha vida. E também briguei com a moça. Lúcia Rodrigues - Ela era trotskista?Era. Lúcia Rodrigues - De O Trabalho?Era. Chega. Não vou falar mais nada dessa moça. Daí eu rompi com ela, rompi com a Libelu, per-di o emprego que era no jornal e aí eu fiquei seis meses da minha vida que deu um apagão. Se você me perguntar o que eu fiz naqueles seis me-ses, eu não tenho a menor ideia. Eu sei que eu ti-nha parado de fumar há muito tempo e eu voltei a fumar, voltei a beber. Eu não lembro o que eu fiz nesses seis meses, não lembro como eu vivia, onde eu dormia. Não lembro. Lúcia Rodrigues - Te fez mal sair da organização? Você dedica sua vida inteira a um projeto de re-volução brasileira, aí você vê a oportunidade de derrotar o Joaquinzão e se sente traído. Isso foi um choque profundo. Um choque ideológico e um choque humano. As pessoas que eu confia-va minha vida nelas, elas foram coniventes com Favre ou se deixaram levar pelo Favre. É óbvio que isso marcou profundamente. Foi um choque absurdo. Não sei como eu sobrevivi. Aí um belo dia, a minha mãe me acha e fala: “Filho, estão te ligando da Folha de S. Paulo. O que da Folha? É da Folha”. Aí me ligaram, o Oscar Pilagallo, que trabalhava na Folha, tinha ganhado uma bolsa de estudos de dois meses pra estudar na Alemanha, ele ia ficar fora, e ele escrevia uma coluna cha-mada tendências internacionais. Queriam que eu o substituísse na coluna.

Gabriela Moncau - Mas como eles chegaram até você?O pessoal da Folha me conhecia. O Caio Túlio Costa, fiz o jornal Avesso com o Caio e com Val-dir Mengardo, o Matinas Suzuki. Eles eram o novo corpo editorial da Folha. Me chamaram pra fazer essa coluna, o editor de economia, pra mi-nha felicidade, era o Aloysio Biondi, não podia ter mestre melhor. Fiquei dois meses fazendo isso, mas também escrevi para todas as editorias, para a ilustrada e até para esportes. Queria ficar na Fo-lha, era minha oportunidade de ter um emprego. Então o Otavio Frias Filho chamou o Carlos Edu-ardo Lins da Silva e perguntou: “Quem é esse lou-co que está escrevendo para todas as editorias?” O Carlos respondeu que “era o cara que está substi-tuindo férias”. O Otavinho falou “contrata” e foi assim. Me contrataram e eu fiquei mais um tempo em esportes e depois fui para exterior. Foi inte-ressante, porque no meio da contratação me per-guntaram quais eram as minhas referências pro-fissionais. Eu falei que era imprensa clandestina, Jornal da CUT, Jornal do PT.

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conciliar os seus princípios pessoais com o trabalho na Folha?Totalmente. Renato Pompeu - Hoje isso é possível?Não sei. Naquele tempo foi possível...

Gabriela Moncau - Você ficou até quando lá?Até 1992, na ECO 92.

Wagner Nabuco – Ainda sobre a Folha, por que você acha que houve a mudança daquele projeto inicial, ainda sob influência de Claúdio Abramo, pro projeto de hoje?A Folha foi brilhante! O Otavio Frias Filho é um in-telectual brilhante! Mostrou isso quando adotou e impôs o manual de redação. Eu vou explicar, por-que acho brilhante: o manual de redação da Folha está longe de ser o primeiro manual de redação do Brasil. O Gilberto Freyre redigiu um manual de re-dação pro Jornal do Commercio, em Pernambuco. Isso nos anos 30, se eu não me engano.

Renato Pompeu - O manual da Folha pode não ter sido o primeiro manual de redação, mas certamente foi o primeiro da redação.É isso que eu vou falar agora. Qual foi a saca-da brilhante do Otavio? Certamente isso foi um balanço da greve dos jornalistas em 1979, quan-do o seu Frias chegou a falar aquela famosa fra-se: “Se os jornalistas continuarem a encher o saco, vou transformar isso aqui em um frigorífico”. En-tão os patrões fizeram o balanço da greve de 79 e, certamente, concluíram que as redações eram as-sembleias permanentes da esquerda. E, de fato, era isso mesmo. Nas redações, as pessoas conversa-vam, disputavam ideias. Fora que era uma delícia, tinha o barulho das máquinas de escrever. E ain-da escrevíamos em papel, então o cara errava: “fi-lho da puta, errei de novo” e jogava no lixo. Então o que o Otavinho fez? Introduziu o computador, que permitiu maior controle sobre a produtivida-de. Quem controlava o computador sabia que ho-ras você começou a escrever um texto e que horas você terminou. E criou um manual, que disciplina o texto, e, na minha opinião, a sua maior ambi-ção é anular o autor, pois o manual tenta estabe-lecer um conjunto de regras tais que, qualquer um que conduzir o texto vai escrever mais ou menos o mesmo texto. Além disso, o manual ainda cria uma série de normas de conduta. Na minha tese do doutorado, um dos capítulos é dedicado a ideia de que a Folha se constituiu como partido, um parti-do centralizado, com um programa político, com código de disciplina, com sanções disciplinares e com norma de recrutamento. E nisso ele foi bri-lhante, realmente conseguiu impor um padrão de controle das redações que domesticou a redação. Hoje, você entra em qualquer redação, é um silên-cio hospitalar, é um controle absoluto daquilo que os trabalhadores fazem lá dentro. E fora o controle ideológico, que é possibilitado pela adoção de nor-mas prévias à produção do texto.

Renato Pompeu - O que você acha da situação do jornalismo na Argentina agora,

na Venezuela, em Cuba e na Bolívia? O problema é o seguinte. A América Latina está passando por um processo extremamente interes-sante que é o protagonismo dos povos originá-rios. Isso aí está acontecendo, porque a situação dos povos originários chegou a um grau de extre-ma miséria insuportável que obrigou esses povos originários a partirem para uma situação de ofen-siva contra o Estado. Não é um processo que de-penda da vontade da Kirchner, ou do Chávez, ou do Evo Morales. Não depende da vontade deles. Nós estamos presenciando uma dinâmica da luta de classes que tem muito mais a ver com o fato das chamadas classes subalternas, o proletariado difuso, os povos originários, eles não estão mais aceitando a situação de miséria que eles vivem, eles estão se mobilizando de todas as formas pos-síveis e imagináveis e obrigando esses governos a adotarem certas medidas. Esses governos tentam controlar a imprensa e enfrentam contradições nisso, porque enfrenta uma imprensa que tradi-cionalmente é subalterna ao imperialismo. Aqui-lo que o Chávez fez na Venezuela, em termos de suspensão de licença de uma TV, os Estados Uni-dos fazem todo dia. Os Estados Unidos suspen-dem licença adoidado. A Espanha, nos últimos 30 anos, outro dia eu li, suspendeu 80 licenças de concessão de radiodifusão. Então eu acho que é uma situação altamente positiva na América La-tina, agora, onde isso vai desembocar...

Débora Prado - Por que no Brasil está diferente? Aqui a direita está mais tranquila?Primeiro, há um equívoco nisso. O Brasil, eu de-safio alguém a encontrar 10 anos de história do Brasil sem que tenha acontecido alguma revolta importante de massa. Sempre houve revolta nes-se país e sempre vai haver revolta nesse país. Se-gundo lugar, morrem 50 mil pessoas por ano nesse país massacradas pela polícia, 50 mil pessoas por ano é mais do que morre no Iraque, é mais do que morre na Palestina, equipara-se ao nível de ma-

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tança do Afeganistão. É o que acontece no Brasil, aí chegamos no aspecto central do problema, por-que você vai falar que essa matança decorre de um processo de lutas fragmentárias, espontâneas, que não tem o conteúdo político ideológico. E é verda-de. Esse é o problema, esse é o problema porque, de fato, a esquerda brasileira nunca conseguiu se constituir como uma alternativa de direção. Quan-do nós construímos o PT, o PT foi cooptado pela burguesia de uma forma brilhante. O Lula é um bombeiro da luta de classes em escala internacio-nal e o PT serve como um acolchoado pra preser-var a ordem e pra impedir que essa revolta latente no povo brasileiro exploda. E, nisso, a burguesia foi brilhante, a forma como ela instrumentalizou o PT e a CUT por meio do seu capataz mor, que é o Lula. Ela conseguiu fazer isso de uma forma bri-lhante e isso tirou três décadas de luta das mãos da vanguarda, a vanguarda brasileira.

Débora Prado - Por isso que o movimento popular não consegue virar a situação?Claro! Inclusive se você ver os movimentos so-ciais no Brasil, o próprio MST está sendo lenta-mente triturado por essa engrenagem, porque, de um lado, você tem programas como o bolsa fa-mília que vão cooptando militantes na base so-cial, os militantes mais pobres, que vão aderindo aos programas de governo. E, do outro lado, você tem a cooptação mesmo, de dirigentes de todos os movimentos e de todos os partidos, que ocupam cargos no Estado, cargos no governo, regiamente pagos. Então, você tem um processo de corrupção institucionalizada. Quer dizer, isso aí vai gerando uma desorganização da esquerda que não conse-gue transformar o conteúdo explosivo que exis-te na base social em uma força organizada. Isso não significa que não haja lutas no Brasil. Há e há muita! Agora, isso não consegue se transfor-mar em forma organizada. Aliás, diga-se de pas-sagem, o seguinte, o imperialismo sempre teve um cuidado especial com o Brasil. E a imprensa brasileira é vital nesse processo.

Hamilton Octavio de Souza - Você tem escrito artigos em que alerta sobre uma explosão da crise. Quais são os sinais disso?Do ponto de vista subjetivo, não vejo nenhum si-nal de recomposição das forças no Brasil. Agora, do ponto de vista objetivo, a situação é diferente. Do ponto de vista objetivo, você tem no país, onde um dos principais agentes financeiros é o Banco Santander, que é um banco espanhol, e ele e a Es-panha estão no limiar de uma crise, que tá sendo anunciada pela The Economist faz tempo muito tempo, temendo que a crise grega atinja a Espa-nha. E vai atingir. Atualmente, 40% da população jovem da Espanha tá desempregada, 40% dos jo-vens espanhóis estão desempregados. É a quarta economia da União Européia e tem um PIB de 1 trilhão e 400 bilhões de dólares e 40% da juventu-de tá desempregada no país e não há nenhum sinal de recuperação econômica. Ao contrário, a Zona do Euro ameaça implodir. Se você pegar a situação da Alemanha e da França, que são os dois maiores credores da Grécia. Se a Grécia não pagar... (risos)

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os compromissos com os bancos alemães e fran-ceses... Essa porra vai pro espaço! Acontece que a Grécia, hoje, tem regiões inteiras onde 40% do comércio tá parado. A Grécia é um país paralisa-do! Por isso que tem um monte de sinais de gran-des teóricos, inclusive aquele que escreve no New York Times, o Krugman, falando abertamente da possibilidade da falência da Zona do Euro. Como é que vai ficar o Brasil? A Telefônica é espanhola, o Santander é espanhol, um monte de indústrias portuguesas, o colchão de dólares que o governo Lula alardeia que ele tem... Se essa porra explode, a fuga de dólares pra Europa pra financiar a cri-se do euro vai transformar esse colchão de dóla-res que o Brasil tem em pó num prazo de sema-nas. Então, o negócio é o seguinte: subjetivamente eu não estou vendo nenhum sinal, agora objetiva-mente estou dizendo, que está se avizinhando uma crise que é inevitável. A menos que aconteça algu-ma coisa extraordinária que eu não consigo ima-ginar qual seja... a crise vem! E aí, quando estou-rar... quando começar a ter desemprego em massa, quando cessarem os créditos fáceis e começar a cobrança desses financiamentos em até 70 meses, que se faz hoje para comprar um carro, uma tele-visão e a classe média não tiver dinheiro pra pa-gar... Aí eu quero ver como vai ficar...

Wagner Nabuco – Quem você tem lido?O Chico de Oliveira, num debate que eu tive com ele outro dia, usou uma formulação que eu achei muito boa. Ele falou o seguinte: nós estamos con-tentes. Quando ele tá falando nós, ele quer dizer a classe média basicamente, que inclui os intelectu-ais universitários. Existe uma ilusão querendo ou não, de que a marolinha do Lula, foi mesmo ma-rolinha e o Brasil tá fora da crise. Existe muita ilusão a esse respeito. E existe uma esquerda que acha que a estabilidade econômica vai durar fore-ver. Acho que a esquerda do ponto de vista inte-lectual está pouco preparada hoje, pra enfrentar a real, para enfrentar aquilo que vem. Acho que um cara como Paulo Arantes tem formulações muito interessantes, o José Paulo Neto tem formulações interessantes, o Carlos Nelson Coutinho, o próprio Chico de Oliveira tem formulações interessantes. No plano internacional, Chomsky ainda é uma re-ferência importante, Emmanuel Wallenstein é uma referência importante, Mészáros tem formulações interessantes. O problema, pra mim, não se colo-ca tanto no campo da formulação, porque eu acho que o marxismo propicia um instrumento teóri-co pra você construir formulações. O problema é a sustentação material das formulações. O que gera preocupação hoje é ver o despreparo dos movi-mentos sociais, inclusive, da direção. Eu faço uma referência direta ao MST, cuja direção eu crítico muito, pela postura que eles têm de defender a candidatura da Dilma Rousseff. Na minha opinião, a Dilma Rousseff é o Lula do mundo bizarro. En-tão, defender a candidatura do Lula do mundo bi-zarro, me parece algo mais bizarro ainda. Porque isso atenua, ameniza a urgência que existe na for-mação de quadros. Você tem a ilusão de que vo-tando na Dilma, você vai protelar a crise ou re-solver a crise, que a crise não vem tão brava, mas

isso não depende da Dilma, não depende de nin-guém, é um dado objetivo. O capitalismo está em chamas. A coisa vai rolar, não depende da vonta-de de ninguém. Isso é obvio. Não acho, portanto que o problema de formulação, seja uma precarie-dade teórica do marxismo. Não é. O marxismo dá todos os instrumentos pra você formular teorica-mente aquilo que é necessário para o mundo hoje. Ele dá esses instrumentos, nós temos esses instru-mentos e podemos formular. O problema é que eu acho que estamos contentes.

Hamilton Octavio de Souza – O que é estar contente?É essa ilusão de que a crise não vem, de que exis-te uma situação estável que vai durar, que não se vê o limite no horizonte, uma sensação de crédito fácil e abundante para comprar o carro e a televi-são em 70 vezes. E que é algo que se vai manter ao longo do tempo. A ideia de que você não precisa organizar militantes para obter conquistas, porque tudo pode ser negociado no âmbito do mercado, das instituições de crédito. Essa sensação.

Gershon Knispel - Em relação à política internacional, o governo de Lula foi uma novidade. Ele foi o único que apoiou o Irã, enquanto China e Rússia estavam pra assinar novas sanções contra o Irã. O Irã hoje é a coisa mais forte na luta contra o imperialismo e, ao mesmo tempo, o Irã é um regime medieval.Bom, primeiro eu que queria falar uma coisa aqui: o Gershon foi uma das grandes aquisições da Ca-ros Amigos, um sujeito que eu tenho orgulho de ser amigo, desde de que eu participei com ele da pas-seata contra o massacre de Jenin, a gente desen-volveu uma amizade muito sólida e, apesar de eu

frequentemente discordar dele por dever de ofício (risos), eu tenho grande admiração pelo Gershon e pela luta que ele trava. Bom, dito isso, eu acho que existe uma situação bem mais ampla do que o pro-blema no Oriente Médio, Israel e Irã. O problema é o seguinte: existem hoje regiões inteiras que estão se desindustrializando nos Estados Unidos. O de-semprego atinge 30%, principalmente aos arredo-res de Detroit. Existem regiões da antiga Alemanha do leste que o desemprego atinge 40%. Você tem esse problema da Zona do Euro, e você tem o pro-blema de que nem todos os malabarismos do Oba-ma estão conseguindo revitalizar a economia dos Estados Unidos. Em outros termos, o imperialismo hoje está caminhando rapidamente para uma situ-ação de impasse, impasse objetivo, impasse eco-nômico, impasse de conseguir preservar as linhas de produção funcionando. Nós conhecemos qual é a receita do imperialismo quando chega numa si-tuação dessa. A receita é guerra. Portanto, o que está acontecendo no Oriente Médio, particulamen-te envolvendo o Irã, deve ser colocada num con-texto muito maior do que os dos conflitos regio-nais. Acho que tem uma convergência de fatores que tão apontando de uma forma mais ou menos inexorável para o ataque ao Irã. Mas por que não aconteceu ainda o ataque ao Irã? Porque depois da derrota no Iraque, depois da derrota no Afega-nistão, eles não têm certeza de quanto tempo le-variam, se é que isso seja possível, pra reestabele-cer a normalização de fluxo de petróleo no mundo, uma vez que iniciem o ataque ao Irã. Porque co-meçou o ataque, o Irã fecha as torneiras, explode o Golfo Pérsico e aí acabou o fluxo de petróleo no mundo. Acho que é só por causa disso que ainda não atacaram.

Gershon Knispel – Tem a ver com a Turquia?Sim, esse é o elemento complicador, absolutamen-te fascinante e terrorífico ao mesmo tempo, que é a posição da Turquia. Desde Kemal Ataturk, em1920, a Turquia começou com as reformas modernizan-tes, Kemal Ataturk separou o Estado da religião, ambicionou fazer da Turquia um Estado laico, em 1930, concedeu o direito de voto às mulheres, an-tes que isso fosse feito no Brasil ou em Portugal ou mesmo na Suíça, que até hoje tem cantão na Suíça, onde mulher não pode votar. O Ataturk quis trans-formar a Turquia num Estado laico. A Turquia foi fundamental, desde Ataturk, para assegurar a es-tabilidade ou a presença do imperialismo ociden-tal no Oriente Médio e na Ásia Central. Só tem um problema, a Turquia se associou a Otan e foi aceita na Otan e é em nome da Turquia que se fez a guerra no Afeganistão, porque é um país da Otan que está lá naquela região. Só que a Turquia não é aceita na União Europeia. Ela faz parte da Otan, mas não faz parte da União Europeia. Hoje, a Ângela Merkel, que é da democracia cristã, já falou que a Turquia não entra na União Europeia; o presidente da União Europeia, o belga Rompuy, já falou que a Turquia não entra na União Europeia, o Sarkozy já falou que a Turquia não entra na União Europeia, to-dos os dirigentes democratas cristãos afirmam que a Turquia não entra na União Europeia. Resultado, a Turquia se sente hoje bucha de canhão. Porque é

“Lula é um quadro valioso do imperialismo”

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boa o suficiente pra fazer parte da Otan, mas não é boa o suficiente pra fazer parte da União Europeia. O que aconteceu? Foi eleito um governo islâmi-co na Turquia, recentemente. É a primeira vez, de-pois de Kemal Ataturk, que se tem na Turquia um governo islamizante. Se a Turquia aprofundar isso e parece que vai aprofundar, que não é por acaso que a frotilha da paz que foi pra Gaza é uma fro-tilha turca. Hoje tem uma situação de tensão cres-cente entre a Turquia e Israel. Esse é um elemen-to que desequilibra toda a equação geopolítica no Oriente Médio, toda, e na Ásia Central.

Hamilton Octavio de Souza - Com relação ao arco de alianças que apóia a Dilma, há alguma diferença com as forças que elegeram o Lula? O que muda do governo Lula para o governo Dilma?Tem várias diferenças, não no arco de aliança, mas naquilo que representa o Lula e o que repre-senta a Dilma. Primeiro, a Dilma não é do PT, ela entrou muito tardiamente no partido, se não me engano em 2002. Portanto, ela não é histórica do PT, ela era do PDT, ela não participou da forma-ção do PT, ela não representa nenhuma base con-solidada dentro do PT, ela não tem expressão no aparelho do PT, ela não controla nem a mãe dela dentro do PT. E eu acho que essa foi uma da ra-zões pro Lula ter escolhido a Dilma, porque para o Lula seria complicado ter uma pessoa que, além de ser presidente do Brasil, controlasse uma par-te significativa do PT. O Lula tem planos de vol-tar em 2014, ele não esconde isso de ninguém, e o Lula é um cara manipulador e controlador por excelência. Quem o conhece minimamente sabe perfeitamente disso. O fato da Dilma ser um “es-tranho no ninho” dentro do PT é um elemen-to para escolha dela, em primeiro lugar. E, em segundo lugar, e exatamente por isso, também porque a Dilma não tem o carisma do Lula. Ali-ás, eu acho que nesse aspecto o Lula é genial. Eu acho que ele é um gênio político contemporâneo em Estado mundial, não existe hoje um político mundial que se equipare ao Lula em termos de competência, de carisma, de desenvoltura.

Renato Pompeu - Estilo Nelson Mandela?É, mas o Mandela nunca extrapolou os limites re-gionais do Sul da África, como o Lula se cons-tituiu numa referência internacional. O Fórum Social Econômico de Davos criou, em 2010, a categoria de estadista mundial só para premiar o Lula e ele não foi receber o prêmio, porque es-tava doente. O Lula foi saudado pelo jornal Ha-aretz como o profeta da paz no Oriente Médio e isso no auge da crise entre Estados Unidos e Isra-el, em março de 2010. Então, o Lula atingiu uma proporção mundial fantástica, o cara é um qua-dro valiosíssimo do imperialismo. E a Dilma não é nada disso, ela é o contrário disso, a Dilma tem o carisma de um defunto. Nós estamos bem no Bra-

sil, entre o Nosferatu e o defunto (risos). A Dilma não tem o carisma do Lula, a Dilma não tem a base que o Lula tinha no PT, e, portanto, eu acho que a Dilma vai ser muito mais refém das forças que estão apoiando ela do que o Lula. O Lula ti-nha uma certa autonomia em relação a suas for-ças porque ele era o próprio Bonaparte, estava acima das facções. Ele impôs o governo que ele quis no Maranhão, mandou os caras do PT lá to-mar no cu, ele quis por o Hélio “Bosta” em Minas, ele botou o cara lá. Então, ele tem uma autono-mia em relação ao aparelho do PT, em relação à base dele, que a Dilma não vai ter. Ele é o único cara no Brasil que hoje senta com o João Pedro Stedile, amanhã com o Sarkozy, depois de ama-nhã com o Obama e daqui cinco dias com o Papa e, se vacilar, ele convida até o Osama (risos). Não tem outro cara que faça isso. Então, eu acho que a Dilma vai pegar um abacaxi.

Wagner Nabuco – Você está dando a vitória da Dilma como certa, então?Eu falei em março pela primeira vez que acho que a Dilma vai ganhar no primeiro turno. Mas, de certo, mesmo, só tem a morte, como diria John Menard Keynes. Mas, para que alguém apoiaria o PSDB hoje? A não ser que seja ideológico, tem a direita ideológica que vai votar no Serra.

Débora Prado – Por que você vota no Plinio?Primeiro, pela dignidade do Plinio, que já é octo-genário e mantém uma disposição de luta abso-lutamente admirável. Embora seja cristão, o que é um ponto lamentável. É um sujeito que tem uma dignidade pessoal extremamente reta, do ponto de vista moral e ético, e é um sujeito que está fa-zendo um discurso que é necessário fazer: está denunciando os dois candidatos que são a mesma coisa e defende a luta pela Reforma Agrária no Brasil, que permanece sendo um desafio funda-mental neste País. Mas, eu não estou votando no Plínio, porque sou contra o PSTU, o PCB, o PCO. Eu acho que a esquerda está tão debilitada que todos esses caras são necessários e importantes, eu gostaria até que houvesse uma frente eleitoral com um candidato único representando toda es-querda. Na ausência dessa frente, eu acho que o Plínio é emblemático, pela história dele, por tudo que ele representa na formação de jovens que po-dem se espelhar no exemplo dele.

Gabriela Moncau - Em relação à organização da esquerda no Brasil, você aponta para a necessidade de criação de um novo partido construído por movimentos sociais, sem se integrar ao Estado tal qual ele é hoje. Quais as chances desse novo partido não seguir os mesmos caminhos do PT, ser anticapitalista e conseguir avançar?Eu inverto tua pergunta. A pergunta é: se nada disso for feito o que vai acontecer? Quando me

perguntam se eu acho que o socialismo é possí-vel, minha resposta é: eu não sei se o socialismo é possível, eu sei que o capitalismo não é mais pos-sível. Por quê? Porque o capitalismo está destruin-do o meio ambiente, está armando um conflito ca-tastrófico na Ásia Central e no Oriente Médio, está acentuando as desigualdades do mundo, está ge-rando um processo em que a ciência cada vez mais é destrutiva e não uma força produtiva. Tanto é as-sim que nunca houve tanta comida e, ao mesmo tempo, tantas pessoas passando fome no mundo: são mais de 1 bilhão de pessoas passando fome, apesar de se ter um super excedente de produção alimentar. Então a pergunta que eu faço é: se os movimentos sociais não se juntarem, se eles não se organizarem, se não saírem da fragmentação que estão hoje, se não houver uma solução alternativa que coloque em questão o Estado brasileiro, qual é nossa perspectiva? E eu respondo: nenhuma.

Gabriela Moncau - Qual o tipo de partido?Eu não sei que tipo de partido vai ser, que tipo de estrutura esse partido vai ter, quem vai ser o diri-gente desse partido e como ele vai ser eleito. Eu sei que ele é necessário. Se as lutas continuarem frag-mentadas, nós vamos ser massacrados. A perspec-tiva de centralização e organização dos movimen-tos sociais é vital e urgente. Nós precisamos juntar todo mundo e dizer que o Estado brasileiro é um Estado terrorista. Ele se constitui em uma exceção no mundo todo. Eu não sei se existe algum outro Estado importante no mundo em que você possa afirmar com todas as letras que a nação se cons-truiu contra o Estado. Foi a única monarquia ab-solutista das Américas e, durante os primeiros 400 anos o Estado brasileiro, ele foi construído pelos senhores de engenhos com a intenção de man-ter a maior parte da população, negros e pobres, numa situação de perpetuação da miséria. Essa é a característica do Estado brasileiro: um Estado terrorista que se manteve e se estruturou contra a nação brasileira. Por isso que acho errado dizer que, no Brasil, o sistema de saúde não funciona. Eu digo que funciona sim, ele foi construído para funcionar desse jeito: para matar pobre na fila do SUS. O sistema tributário brasileiro funciona, ele funciona pra isso: pra obrigar os pobres a pa-gar imposto e isentar os ricos. O Estado brasilei-ro foi construído pra funcionar como ele funcio-na e é por isso que não sai reforma tributária, da saúde. Então, é preciso enxergar o Estado brasi-leiro na sua plenitude histórica: um Estado terro-rista, construído para impedir a organização dos trabalhadores. E nós vimos o que aconteceu to-das as vezes que os trabalhadores tentaram se or-ganizar, nós vimos o que aconteceu em Palmares, em Canudos, com as ligas camponesas: todas as vezes o povo foi sumariamente massacrado. Não há como fazer uma via democrática dentro do Es-tado brasileiro. Democratizar a institucionalidade do terror é impossível. Então, por isso que eu falo num partido com objetivo programático explíci-to de destruir o Estado brasileiro. Mas, o que vem pela frente, eu não sei. Só que, se nós não nos or-ganizarmos, vamos continuar sendo massacrados ou cooptados.

“O Estado brasileiro foi construídopara impedir a organização dos trabalhadores”

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Ana Miranda

Quem imagina que possa haver na confu-são enfumaçada de carros e na impavidez dos edifí-cios, em meio ao burburinho apressado de São Paulo, um bosque? Um calmo e silencioso bosque... passa-gem para outro estado de ser. Bosques são coisas de infância, de gente distraída, melancólica, de gnomos e índios. Gente que tem tempo para viver. Que vive as vidas subjetivas.

Ali na confluência das ruas Iperó, Irmão Gonçalo, Nova Veneza e Costa Lobo mora uma pra-ça em bosque, que se estende pela Agisse. Um bos-que de verdade, com terra nua, alguma relva, folhas secas espalhadas, pequenos animais, pedras, senti-mento de perdição, de quietude... tudo o que um bos-que verdadeiro contém. As luzes que penetram pelas copas das variadas árvores, de acordo com as va-riadas alturas do sol, bordam um labirinto de de-vaneios, aqueles raios todos se derramando a cin-tilar aqui e ali em detalhes, poemas descobertos. O que dizer do canto dos passarinhos? Ouvir... E tri-lhas marcadas pela insistência dos passos, passan-tes poucos, absortos, a esquecer ali suas queixas, ou a ruminá-las. Crianças brincam no coração do bos-que, em brinquedos feitos de troncos, e sem querer aprendem o que é floresta, o que é uma árvore, um ninho ou uma semente.

Esse bosque parece estranho, pois há uma arrumação quase desordenada, e espécies de origens diferentes, árvores nativas e árvores imigrantes, vi-vem lado a lado, com a licença das dríades. Nasceu faz mais de vinte anos, era ali um terreno baldio, como se dizia antigamente, e um dia o artista Ru-bens Matuck plantou árvores, e outras árvores, e fo-ram se chegando outras pessoas; levavam sementes, mudas, cuidados, lutas, ternuras, até mesmo hosti-lidades, e eis o bosque, mais perene e vivo do que nós. Matuck tem alma de árvore, e saiu, por déca-das, plantando também nas ruas de seu bairro, que hoje são telúricas, acalmadas pela presença silencio-sa dessas moças em flor.

Num caderno de Matuck, o menininho escreveu: Hoje – observei – una – arvoré – e – vi – um – tron-co – varios – galhos – e – muitas – folhas – verdes – Gustavo Romano.

Ana Miranda é escritora. Ilus

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Estamos vivendo mais um período de campanha eleitoral. O povo tem o direito de indicar seus representantes para os mais importantes cargos da república. Em Brasília e nos governos estaduais.

Infelizmente, a campanha tem tido pouca parti-cipação popular. Não tem havido debates de proje-tos para a sociedade. Os grandes problemas do povo, como falta de emprego formal, distribuição de ren-da, superávit primário, taxação das fortunas, reforma agrária, garantia de acesso universal de todos jovens a universidade, violência nas periferias, falta de mo-radia, dependência do capital estrangeiro, domínio das transnacionais sobre nossa economia e recursos naturais, estão ausentes dos debates.

As campanhas dos candidatos ao parlamento, beiram ao ridículo e tem se baseado cada vez mais no poder econômico de alguns candidatos que estão gastando fortunas. O núcleo dirigente do agronego-cio, por exemplo, fez uma reunião com suas coopera-tivas empresariais para levantar 800 milhões de re-ais e elegeram a meta de 100 deputados federais do agronegócio. A senadora do DEM, Kátia Abreu e pre-sidenta do CNA, fez um boleto compulsório de 100 reais para enviar a todos fazendeiros do país pedindo contribuição para a candidatura Serra. E por ai vai...

Esse cenário da realidade é resultado de vários fatores: um período histórico de refluxo do movimento de massas; uma dispersão ideológica das forças de esquerda, uma apatia das grandes massas que estão satisfeitas com as pequenas melhorias que obtiveram no governo Lula. E não acreditam que os políticos resolvam seus problemas. E uma estabi-lidade econômica, que evita debates cadentes pró-prios das crises.

João Pedro Stedile

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacio-nal do MST e da Via Campesina Brasil.

Os movimentos sociais e as eleições

Os bosques de Matuck

Essa apatia se deve também à legislação eleitoral, que praticamente impediu a realização de grandes comícios e a participação direta das massas. Hoje, a campanha eleitoral se resume basicamente a televi-são. O marketing eleitoral usa técnicas para “vender” candidatos, e não para debater projetos ou idéias.

Nos movimentos sociais, temos avaliado que apesar da falta de debate em torno de projetos, no entanto as candidaturas a presidente e governado-res representam setores organizados das classes so-ciais. Defendem de fato interesses de classes, ainda que não explícitos.

Defendemos que é uma obrigação política como militantes das mudanças sociais, a necessidade de derrotar a candidatura Serra, por tudo o que ela re-presenta. Defendemos a necessidade de eleger os can-didatos mais progressistas para os governos do estado. E precisamos eleger o maior número possível de par-lamentares de esquerda, comprometidos com a classe trabalhadora. Esses candidatos estão dispersos em inú-meros partidos. Por isso, acreditamos que nessa eleição, não é uma questão de programa ou de partido, é uma questão de compromisso com a classe trabalhadora.

Pessoalmente, sou otimista, e acho que as ur-nas vão desenhar um cenário de melhor correlação de forças institucional, a nível federal, nos governos estaduais e no parlamento, para podermos avançar em mudanças sociais.

Embora, todos saibamos que os espaços institu-cionais são insuficientes, e que a as mudanças de-pendem da combinação dos espaços institucionais com a necessária mobilização das massas.

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Hoje, habitam o planeta 6,8 bilhões de pessoas. Das quais 1,2 bilhão são desnutridos crônicos; 2 bilhões não têm acesso a medicamentos; 884 milhões vi-vem sem água potável; 924 milhões estão sem teto ou se abrigam em moradias precárias; 1,6 bilhão não dispõem de eletricidade; 2,5 bilhões não contam com saneamento básico; 774 milhões de adultos são analfabetos; 18 milhões morrem, por ano, devido à pobreza, a maioria crianças com menos de 5 anos; 218 milhões de jovens, entre 5 e 17 anos, trabalham em regime de semiescravidão.

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população tiveram sua par-ticipação na renda mundial reduzida de 1,16% para 0,92%. A parcela 10% mais rica, que antes dispunha de 64,7% da riqueza mundial, ampliou sua fortuna, passou a dispor de 71,1%. O enriquecimento de uns poucos tem, como contrapartida, o empobrecimento de muitos.

Apenas este aumento de 6,4% da fortuna dos mais ricos seria sufi-ciente para duplicar a renda de 70% da população mundial! O que signifi-caria salvar milhares de vidas e reduzir a penúria e o sofrimento dos mais pobres. Tal benefício se obteria tão somente redistribuindo os ganhos adi-cionais, entre 1988 e 2002, dos 10% mais ricos da população mundial, sem tirar um centavo de suas fortunas. Infelizmente tal medida soa odiosa para as classes dominantes do capitalismo mundial.

Segundo Atilio Boron, “se não se combate a pobreza (nem se fala em er-radicá-la sob o capitalismo) é porque o sistema obedece a uma lógica im-placável centrada na obtenção do lucro, na concentração de riqueza e no aumento incessante da pobreza e da desigualdade econômico-social.”

Se 2/3 da humanidade vivem, segundo a ONU, abaixo da linha da pobreza (= renda mensal inferior a US$ 60), não se pode considerar o capi-talismo um sistema exitoso. Como o socialismo do Leste europeu, ele tam-bém fracassou. A diferença é que fracassou para a maioria da população mundial. E entre aqueles que celebram equivocadamente sua vitória – para eles, bem entendido -, a maioria não se dá conta de que o capitalismo cau-sa desagregação social, destruição do meio ambiente, corrupção política, crise moral e incremento de conflitos bélicos.

Na América Latina, embora o PIB continental possa crescer cerca de 4% este ano, há muita disparidade no interior dos países. No Brasil, por exem-plo, Brasília é nove vezes mais rica do que o Piauí. Há territórios vencedores e perdedores. O desafio é crescer para igualar, e o Estado deve cumprir um papel mais ativo nesse sentido, e não deixar a tarefa para o mercado.

Segundo a Cepal, para reduzir essa iniquidade, os países com menor gas-to social teriam que investir entre 6% e 9% do PIB para assegurar cesta básica mensal à sua população menor de 5 anos, ao grupo com idade aci-ma dos 65 e aos desempregados. No caso das crianças entre 5 e 14 anos, o cálculo se baseia na metade da cesta. O custo para as nações com maior gasto social oscilaria entre 1% e 1,5% do PIB e, para os países intermedi-ários, entre 2% e 4%.

Frei Betto

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da dita-dura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.

Perfil mundial E LATINOAMERICANO

Um dos pontos altos da reflexão de Gunder Frank, articulando numa mesma constelação os níveis regionais, nacionais e internacionais, foi ter percebido que o golpe de 64 era de feição paulista, comandado pelos empresários da Fiesp, que são os agentes do colonialismo interno e os exe-cutores no plano regional dos interesses imperialistas. De lá para cá, o po-der será sempre de caráter paulistocêntrico.

São Paulo, a metrópole nacional sateletizada pela metrópole internacio-nal (Washington), derrubou o presidente da República a fim de recolonizar os satélites regionais dos brasis.

Nova York determina São Paulo e não São Paulo determina Nova York.

Gunder Frank explicou muitas coisas que iriam mais tarde acontecer na história política e cultural do país. Foi o seu pensamento norteado pela to-talidade (o capitalismo cria o centro e periferia tanto no centro quanto na periferia) que lhe possibilitou de maneira pioneira a compreensão do papel protagônico da burguesia bandeirante no golpe de 64, relegando a segun-do plano Minas Gerais e Rio de Janeiro com os tarefeiros Magalhães Pin-to e Carlos Lacerda.

Nos anos 60, primeiro no Rio de Janeiro, no bairro Botafogo, onde nasceu seu primeiro filho com a chilena Marta Fuentes, e até depois do golpe de 64, Gunder Frank reviu o que se escreveu nas ciências sociais, demoliu com o conceito de “modernização” de que se utilizavam os soció-logos liberais. Elaborou a proposição herética sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como dois fenômenos inseparáveis.

Hoje a estupidez eleitoral dá trela no desenvolvimentismo. Isso era men-tira e mistificação já no período Jotaká.

Gunder Frank deixava claro: o centro capitalista (ou as metró-poles) gerou os satélites (ou as periferias), extraindo destes os suprimentos requeridos para a expansão das metrópoles, e com isso distorceu e impediu (com a ajuda das classes dominantes locais) o desenvolvimento das satéli-tes em seu próprio benefício. Elaborada de 1962 a 1967, essa heresia caiu como uma bomba atômica no arraial weberiano dos sociólogos brasileiros, sobretudo os paulistas. Estes no quintal provinciano seguiram o universa-lismo abstrato a perseguir um padrão científico de qualidade na sociologia. Essa crítica já havia aparecido com Guerreiro Ramos (suplente do deputado Leonel Brizola) ao cosmopolitismo paulista de Florestan Fernandes, que é o equivalente da Vera Cruz cinematográfica em São Paulo.

Do lado dos stalinistas, Gunder Frank revelava o mito do feudalismo na história do Brasil (o lance é destruir o capitalismo, dizia ele, não o feudalismo); do lado dos funcionalistas e weberianos, denunciava a concepção equivoca-da acerca de uma “economia dual”, com um setor atrasado e arcaico que pre-cisava ser modernizado por empresários e gerentes empreendedores, os quais mais tarde, na década de 80, estariam na cúpula cipaia do PSBD.

O velho neodesenvolvimentismo de novo

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

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Lúcia Rodrigues

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o que o trabalhador pode esperar do resul-tado das eleições presidenciais de 3 de outubro? Haverá uma guinada na po-

lítica econômica ou os dois candidatos melhor posicionados nas pesquisas, Dilma Rousseff (PT-PMDB) e José Serra (PSDB-DEM), defendem mais do mesmo? Existem divergências de fundo en-tre suas propostas? O modelo de desenvolvimen-to defendido por eles privilegia que setores da sociedade? Há projetos alternativos em disputa com chances reais de chegar à direção do Palá-cio do Planalto?

Para tentar responder a esses e outros questio-namentos a reportagem da Caros Amigos entre-vistou quatro intelectuais, que possuem ligações com partidos de esquerda que disputam a eleição presidencial: os professores de sociologia da USP Francisco de Oliveira, o Chico de Oliveira como é conhecido na academia, e Mauro Iasi, da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e os historiadores Valério Arcary e Valter Pomar. Os três últimos exercem, inclusive, cargos de dire-ção em seus partidos.

Iasi é membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e Arcary e Pomar in-tegram a Direção Nacional do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e do Parti-do dos Trabalhadores (PT), respectivamente. Chi-

acredita que exista uma polarização entre neoli-beralismo e desenvolvimentismo nas discussões sobre a política econômica que deverá ser levada a cabo a partir de janeiro de 2011. “Esta aparen-te diferenciação esconde um pressuposto comum: a aceitação que o desenvolvimento que pode en-frentar as grandes questões da sociedade brasilei-ra exige a manutenção da economia capitalista de mercado e a gestão de uma macroeconomia que dê suporte e incentivo para a economia privada.”

Leia a seguir os principais trechos da entrevis-ta que faz um raio X do que está em jogo nesta eleição presidencial.

O que realmente está em disputa nestas eleições em termos de política econômica e modelo de desenvolvimento?

Chico de Oliveira - Os três candidatos mais cotados, a começar por Dilma Roussef, passando por José Serra e terminando em Marina Silva, não apresentam grandes diferenças em relação à polí-tica econômica, caso vençam as eleições. Recen-temente, Marina Silva surpreendeu porque decla-rou que manterá a política econômica em vigor, o que é claramente contraditório com o discurso ambientalista. As diferenças reais somente come-çam a aparecer com as candidaturas da esquerda, notadamente a de Plinio de Arruda Sampaio.

Intelectuais de várias correntes no campo democrático e de esquerda analisam as propostas e os desdobramentos da campanha eleitoral.

ELEIÇÕES PRESIDENCIAISO Brasil de 2011 vai ter mais do mesmo

co de Oliveira é filiado do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

Para o professor da USP, não há diferenças significativas entre os projetos de Dilma e Serra em termos econômicos. O sociólogo explica que a política econômica do governo Lula deverá ser mantida se um ou outro candidato ganhar a Pre-sidência da República. Ele inclui nessa lista, a candidata do Partido Verde (PV), Marina Silva.

A previsibilidade do que irá ocorrer no futu-ro governo independentemente de quem vença as eleições também é destacada por Arcary. “A sur-presa das eleições presidenciais de 2010 no Bra-sil é que, pela primeira vez desde 1989, não de-verão ter nada de surpreendente, porque não há disputa de projetos alternativos.”

O dirigente do PT Valter Pomar discorda que haja semelhança entre os projetos de Dilma e Ser-ra. “A candidatura Serra expressa uma aliança en-tre setores neoliberais e setores desenvolvimentis-tas conservadores. A candidatura Dilma expressa uma aliança entre setores desenvolvimentistas, conservadores e democrático-populares. O ideal seria uma vitória plena do campo democrático-popular. Mas não há correlação de forças para isto. Eleger Dilma é condição necessária, embora não suficiente, para seguirmos avançando”, ressalta.

Já o docente da Federal do Rio, Mauro Iasi, não

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O programa da Dilma é claramente continu-ar o que o último mandato do Lula realizou, mas os jornais dizem que o sinistro senhor Palocci já pensa que é hora de puxar os freios e deter o crescimento no ritmo tomado depois que deixou a pasta da Fazenda. Quanto ao Serra, ele teve al-gumas críticas no passado à política de FHC, mas parece que sua antiga posição se atenuou.

Em resumo, todos são desenvolvimentistas, e por irônico que pareça, realizam o programa que o Partido Comunista do Brasil - não sua dissen-ção “chinesa” - pregava nos anos 50. Fortalecer a burguesia nacional, aumentar a importância das empresas estatais e diminuir a dependência. Só que as condições de hoje são completamente di-ferentes e já não há como realizar um programa tipo “PCB anos 50”.

Mauro Iasi - O bloco conservador no Brasil

gostaria de reduzir o debate nas presentes eleições sobre a política econômica e o desenvolvimen-to a uma polaridade simplista: neoliberalismo ou desenvolvimentismo. Esta aparente diferenciação esconde um pressuposto comum: a aceitação que o desenvolvimento que pode enfrentar as grandes questões da sociedade brasileira exige a manuten-ção da economia capitalista de mercado e a ges-tão de uma macroeconomia que dê suporte e in-centivo para a economia privada.

A diferença seria uma opção com ênfase no mercado e outra com um maior papel do Estado. O que fica obscurecido é que nem os mais con-victos neoliberais abriram mão da pesada pre-sença do Estado em sua sanha privatista, por exemplo, no socorro ao sistema financeiro e as benesses destinadas ao agronegócio, nem os cha-mados “desenvolvimentistas” deixaram de corte-jar o mercado e dirigir, de fato, a política econô-mica para garantir seu bom funcionamento, com isenções, incentivos e investimentos.

O setor empresarial da agricultura tem verba prevista para o orçamento de 2010 de R$ 92,5 bi-lhões, comparado com apenas R$ 15 bilhões para agricultura familiar, ao mesmo tempo o crédito rural cresceu 335,2% entre 2002 e 2010. O mes-mo poderia ser afirmado do setor industrial, com sucessivas isenções para automóveis e eletrodo-mésticos. Isto significa que em tempos de mono-pólio e concentração acelerada não existe mer-cado sem uma forte presença do Estado.

A verdadeira questão é: em tempos de ênfa-se no mercado com o Estado ajudando, como em FHC, ou de uma maior ênfase na presença do Es-tado para garantir o mercado e o crescimento da economia privada, como com Lula, o Brasil encon-trou um modelo alternativo de desenvolvimento capaz de enfrentar as grandes questões como saú-de, educação, moradia, emprego, reforma agrá-ria e outras? A resposta é: não. Ainda prevalece o mito segundo o qual o desenvolvimento da eco-nomia capitalista de mercado traz em si a virtude de solucionar, aos poucos, as questões sociais e o desenvolvimento humano, o que é falso.

Valério Arcary - A surpresa das eleições pre-sidenciais de 2010 no Brasil é que, pela primeira

vez desde 1989, não deverão ter nada de surpre-endente, porque não há disputa de projetos al-ternativos. O Brasil passou a ser previsível. Não serão surpreendentes por uma razão fundamen-tal: porque é improvável que aquele que vier a ser eleito, seja Dilma ou, menos provável, Serra, surpreenda a nação, como Collor surpreendeu em 1990, com o choque do congelamento da dívida interna, como FHC surpreendeu quando da gre-ve dos petroleiros em 1995, chamando o Exér-cito para invadir as refinarias, desafiando fron-talmente a CUT e conseguindo derrotá-la, como FHC surpreendeu de novo em janeiro de 1999, com o choque da desvalorização cambial, e Lula surpreendeu em 2002, com o choque do mega ajuste fiscal.

Seja eleita Dilma ou Serra não haverá nem surpresa nem choque, mas apenas “business as usual”, ou seja, a estabilidade para os negócios. Existe um grande consenso entre o mundo em-presarial-burguês e os dois candidatos eleitoral-mente favoritos. Dilma como herdeira dos oito anos lulistas de concessões às grandes corpora-ções e políticas sociais focadas; Serra e os dezes-seis anos paulistas de privatizações e choque de gestão dos serviços públicos com as organizações sociais. O consenso remete aos desafios político-econômicos a partir de 2011: manter a busca do superávit fiscal acima de 3% do PIB para permi-tir a rolagem da dívida, mesmo com taxas bási-cas acima de 10% ao ano, sem sacrificar um cres-cimento do PIB próximo a 5% ao ano.

Valter Pomar - Há duas disputas em curso. A primeira diz respeito ao passado: trata-se da disputa entre neoliberalismo e desenvolvimentis-mo. A segunda diz respeito ao futuro: trata-se da disputa entre desenvolvimentismo conservador e desenvolvimentismo democrático-popular.

A candidatura Serra expressa uma aliança en-tre setores neoliberais e setores desenvolvimentis-tas conservadores. A candidatura Dilma expres-sa uma aliança entre setores desenvolvimentistas, conservadores e democrático-populares.

O ideal seria uma vitória plena do campo de-mocrático-popular. Mas não há correlação de for-

ças para isto, motivo pelo qual as candidaturas de ultra-esquerda, mesmo que não queiram, contri-buem para que a disputa vá ao segundo turno, be-neficiando na prática a candidatura Serra.

Não incluo Marina entre as candidaturas de esquerda. Seu discurso e suas alianças revelam, para quem tinha dúvida, que sua candidatura é social-liberal. É a direita jogando verde.

Por tudo isto, eleger Dilma é condição ne-cessária, embora não suficiente, para seguirmos avançando.

Quais são as principais questões nacionaisque o futuro governo deverá enfrentar?

Chico de Oliveira – A principal questão na-cional é a da distribuição da renda. Já somos a oitava economia capitalista do mundo, com uma desigualdade obscena. A distribuição da renda se apresenta como o maior desafio nacional. E não há na perspectiva dos principais candidatos nada que dê a entender que irá ocorrer uma vigorosa e definitiva redistribuição de renda. Mesmo o ho-rizonte quase miraculoso do Pré-Sal não indica, necessariamente, que isto vá acelerar uma melhor distribuição da renda. Pode ser até o contrário, dado o complexo industrial que será necessário pôr em marcha para explorar as chamadas fabulo-sas reservas. Os países mais ricos em petróleo são, não por coincidência, os mais desiguais.

Mauro Iasi - Quando avaliamos todos os pla-nos de desenvolvimento criados no Brasil, de Ge-túlio Vargas para cá, vemos que todos, inclusive os da ditadura militar, afirmavam que era neces-sário diminuir as desigualdades sociais e regio-nais e enfrentar os grandes gargalos do desen-volvimento urbano e rural. Passadas quase seis décadas, vemos o governo afirmando que agora o desenvolvimento proposto enfrentará os gar-galos e encontrará o caminho de um desenvol-vimento dito “sustentável”. No entanto, todos os dados dão conta que as disparidades regionais aprofundam-se, a desigualdade real, entre ricos e pobres, entre quem trabalha e quem acumula ca-pital, aumentam. Na década de 90, os 10% mais ricos detinham algo como 53% da riqueza e hoje ultrapassam 74% da riqueza nacional.

As grandes questões ainda são a desigualda-de social, o precário acesso a educação e saúde de qualidade, o déficit habitacional, a questão agrária e a produção de alimentos, a inviabilida-de da vida nas grandes cidades, seja pela ques-tão da violência, pelo desequilíbrio ecológico ou pela ausência de um planejamento urbano dig-no desse nome. Como esperam enfrentar estes dilemas? Nos respondem: com mais crescimen-to econômico. Ora, estes gargalos não são causa-dos por falta de desenvolvimento capitalista, mas pelo desenvolvimento capitalista. O rumo do de-senvolvimento econômico escolhido irá agravar e não solucionar tais problemas.

Valério Arcary - Não há grandes diferenças entre o que Dilma e Serra representam. São duas candidaturas a serviço dos monopólios, com nu-ances sobre o futuro, porque reivindicam a mes-

Chico de Oliveira, sociólogo e professor da USP e filiado ao PSOL.

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ma interpretação do passado, por isso Serra não pode criticar o governo Lula. Como não pode criticar, não pode crescer. Têm cinco grandes acordos econômicos e políticos de balanço que, alegremente, comemoram: a) a proporção da dí-vida pública em relação ao PIB foi reduzida para menos de 50%, o que favorece, potencialmente, a atração de capital externo do cassino fi nancei-ro, mesmo com a permanência da crise mundial, porque a margem para endividamento do Esta-do é, comparativamente a outros países, gran-de, e esperam que possa compensar o défi cit no balanço de pagamentos, pelo menos, por alguns anos; b) o controle da infl ação foi conquistado com a Lei de Responsabilidade Fiscal e os su-perávits fi scais de, pelo menos 3% do PIB as-seguraram a confi ança da burguesia na moeda nacional e têm permitido que os interesses dos rentistas estejam protegidos; c) a abertura co-mercial e fi nanceira dos anos 90 permitiu uma plena integração no mercado mundial. As im-portações ajudaram a controlar a infl ação, fa-voreceram a reestruturação produtiva, e o Brasil se benefi ciou do aumento da demanda de com-modities que exporta, e não deve ter grandes perdas comerciais, mesmo em um cenário mais grave de recessão prolongada ou até de depres-são mundial; d) a manutenção da independên-cia, na prática, do Banco Central, o favoreci-mento do agronegócio exportador, o impulso do Bndes à formação de grandes monopólios nacio-nais pela concentração de capital, inclusive, com fi nanciamento público das aquisições, potencia-lizaram as condições para que o Estado eleve os investimentos na economia para um patamar acima de 2% do PIB, abaixo dos 4% dos anos 70, mas mais que o dobro dos últimos 25 anos; e) a preservação da relativa paz social alcançada com a parceria dos sindicatos e centrais sindicais com os governos, e as políticas compensatórias para os setores populares mais desorganizados permitem prever um cenário de estabilidade po-lítica, com o isolamento social dos setores sin-dicais mais combativos e a marginalidade da es-querda anticapitalista.

Valter Pomar - A principal questão nacional é o embate entre dois tipos de desenvolvimen-tismo: o conservador, que foi hegemônico na história brasileira; e o desenvolvimentismo de-mocrático-popular, que supõe não apenas cres-cimento com distribuição de renda, mas também reformas estruturais, que alterem a distribuição de riqueza, de propriedade e de poder na socie-dade brasileira.

Caso ganhe Serra, o futuro governo vai jogar todas suas fi chas no desenvolvimentismo conser-vador: crescer, concentrando riqueza e poder.

Caso ganhe Dilma, haverá uma disputa, tanto na sociedade quanto no governo, entre os seto-res conservadores e democrático-populares.

Essa disputa vai se concentrar em uma bata-lha velha e duas batalhas novas. A batalha velha é contra a ditadura da especulação fi nanceira. As duas batalhas novas são a reforma tributária e a reforma política, sem as quais não teremos

hegemonia política, nem força estatal, para via-bilizar outras reformas estruturais.

O que caracteriza as propostas e os discursosdos principais candidatos à presidência?

Chico de Oliveira - Os discursos e propos-tas não têm passado do nível de generalidades, em todas as direções. Há até um suporte socio-político para essa convergência: com Collor e com FHC caminhou-se para nos desembaraçar-mos dos obstáculos que o social opunha à ex-ploração desavergonhada. Lula da Silva realizou o programa neoliberal numa escala jamais ima-ginada. Não adiantam os argumentos da criação de empregos, pois um capitalismo que cresce sem criar empregos ainda está por ser inventado. Os empregos criados por Lula da Silva vão até dois salários mínimos e isto não reduz a desigual-dade. Ao tempo de Celso Furtado, nossa dúvida nacional era sobre a capacidade de crescimento da economia brasileira. Essa dúvida dissipou-se desde a ditadura militar. Agora, nosso desafi o é tornar nossa sociedade um pouquinho menos de-sigualitária. Mas as propostas e os discursos dos candidatos não prometem muito.

Mauro Iasi - A mediocridade e a crença sin-

cera de que somos todos estúpidos. As eleições se transformaram em um jogo de marketing movi-do por pesadas e milionárias máquinas eleitorais. Não importa o que os candidatos são e os verda-deiros interesses que representam, importa o que pode parecer, o que “vende” melhor, o que ganha votos. Nesta lógica mercadológica, todos vêm fa-lar dos problemas da educação, do desequilíbrio ecológico, da miséria, do caos na saúde, como se não tivessem responsabilidade nenhuma sobre o que aí está, como se não fossem os gestores de um longo projeto que governou o país por dezesseis anos. É um desrespeito a nossa inteligência.

Estamos diante de um jogo de máquinas e in-teresses de perpetuação no poder, para manter e reproduzir interesses da chamada pequena polí-tica, e não de um verdadeiro debate político so-bre os rumos do país.

Valério Arcary - Os três candidatos reconhe-

cem diferenças entre si, mas admitem, também, e com estarrecedora franqueza, que são irrele-vantes. Haverá alguma poeira levantada no ar por polêmicas, essencialmente, secundárias, por necessidade eleitoral, portanto, por oportunis-mo. Não foi por outra razão que Marina adian-tou que, se eleita, convidaria para ministros qua-dros do PT e do PSDB. Serra, para não fi car atrás, em generosa reciprocidade, respondeu que con-vidaria quadros do PV e do PT. Não há porque duvidar que Dilma, se eleita, faria, também, os convites mais esdrúxulos, já que o próprio Lula não hesitou em chamar Roberto Rodrigues para a Agricultura e Meirelles para o Banco Central. Tudo isso é possível.

O discurso de Serra remete às ansiedades da grande burguesia, sobretudo paulista, – bancos, empreiteiras, monopólios, multinacionais – que insistem em uma avaliação econômica do que consideram as três fragilidades estruturais do país: a) o Brasil cresceu menos do que poderia porque, em função das necessidades de legitima-ção do regime democrático, depois de 20 anos de ditadura militar, o Estado agigantou-se, ele-vando a carga fi scal de 25% do PIB, em 1985, para 36%, em 2010, para patamares incompa-tíveis com taxas de expansão do PIB mais altas do que 3% ou 4% ao ano; b) o peso da máqui-na pública, 8,5 milhões de funcionários em to-dos os níveis, com salários na administração fe-deral 50% superiores, em média, aos salários de 40 milhões de carteiras assinadas no setor priva-do e da previdência social, 25 milhões de aposen-tados e pensionistas, associado ao aumento dos gastos sociais, inibiu os investimentos estatais na modernização da infraestrutura; c) a proporção do consumo das famílias e do Estado sobre o PIB aumentou, mas a poupança interna permaneceu muito pequena, enquanto o défi cit na conta cor-rente das transações externas cresce, vertigino-samente, e só fecha em função dos investimen-tos estrangeiros.

Dilma defende quase a mesma perspectiva de Serra, com descontos. Depois de terem passado mais de 20 anos na oposição a Figueiredo, Sarney, Collor e Fernando Henrique, os petistas descobri-ram, quando chegaram ao poder em 2002, quase da noite para o dia, que o crescimento lento do ca-pitalismo brasileiro durante 25 anos tinha incon-táveis explicações, mas nenhuma delas era res-ponsabilidade da burguesia rentista. Assim como FHC pediu que se esquecesse tudo o que tinha es-crito antes de chegar ao poder, Lula pediu que se perdoassem as bravatas de 20 anos de oposição.

Valter Pomar - Tanto Serra quanto Dilma jo-gam na retranca. Serra é de oposição, mas não pode exagerar na dose, pois isto deixaria ainda mais evidente que, em caso de vitória, o tucano faria um governo de sentido oposto ao de Lula.

Por sua parte, Dilma deixa claro que pretende dar continuidade ao governo Lula, o que signifi ca seguir mudando o Brasil. Mas ela evita exagerar na dose destas mudanças, pois isto poderia passar a impressão de que fará um governo diferente de Lula, o que seria eleitoralmente danoso.

Mauro Iasi, professor da UFRJ e dirigente do PCB.

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Na prática, estamos vivendo um terceiro turno de 2006, o que é bom eleitoralmente, pois vamos eleger Dilma, mas é insuficiente politicamen-te, pois o governo Dilma vai atuar num cenário bastante distinto, nacional e internacionalmente, daquele que enfrentamos em 2007-2010.

Que bandeiras da luta das esquerdas no Brasil é possível identificar na campanha presidencial?

Chico de Oliveira - Nenhuma das bandeiras clássicas da esquerda, cujo objetivo principal é a igualdade está presente nas principais candi-daturas. As formas tímidas que um discurso re-distributivista aparece na fala da Dilma, seguin-do o programa lulista, não são suficientes para liquidar o maior flagelo brasileiro. O Serra, que a essa altura já aparece como derrotado, nunca disse nada, apenas afirmou que não iria desati-var o Bolsa-Familia que, como programa de re-distribuição de renda, é uma piada de mau gosto. A Marina Silva vem com um discurso ambien-talista, como se os cidadãos fossem gafanhotos que se alimentassem de verde. Só nas candida-turas da esquerda, desde a de Plínio de Arruda Sampaio, passando pela do Zé Maria, é que as bandeiras fortes e clássicas da esquerda apare-cem nitidamente, sendo o centro dos programas. Mas ou nossas teorias e conhecimento da reali-dade brasileira não valem um tostão ou eles não têm chance de conquistar a Presidência.

Mauro Iasi - Parte da esquerda, aquela que se acomodou nos limites da ordem do capi-tal, quer que acreditemos que um ganho para a esquerda é a consolidação da chamada “or-dem democrática” e o fato dos gestores de uma “esquerda responsável” terem tido mais suces-so em garantir um desenvolvimento econômi-co capitalista, amenizando a miséria com polí-ticas paliativas, focalizadas e assistencialistas. Não podemos jamais nos contentar com isso. A principal força responsável pelo aspecto quali-tativo da luta contra a ditadura no sentido da democratização foi a capacidade de luta dos tra-balhadores. A posição passiva e submissa dos

trabalhadores diante da “inevitabilidade” da or-dem capitalista os desarma e prepara o terreno para a flexibilização de direitos, criminalização da pobreza e dos movimentos sociais que man-têm uma perspectiva contestatória.

O limite desta ordem dita democrática é tão mesquinho que a campanha é apresentada como se fosse entre três candidaturas. Uma legislação eleitoral conservadora e discriminatória elimina da visibilidade dos meios de comunicação de to-das as alternativas minimamente críticas, como as campanhas do PCB, do PSTU e do PSOL.

São estas candidaturas de esquerda, no ver-dadeiro sentido da palavra, que ainda apresen-tam as demandas dos trabalhadores e a crítica a ordem capitalista, apresentando, uns mais ou-tros menos, a necessidade da alternativa socia-lista. São uma aragem de bom senso neste mar de pragmatismo conservador.

Valério Arcary - As principais bandeiras per-manecem mais atuais do que nunca: são o au-mento dos salários, o trabalho para todos, a re-dução da jornada de trabalho, a universalização do acesso à educação gratuita e de qualidade, a defesa de mais verbas para a sáude pública, a re-estatização das empresas privatizadas, o não pa-gamento da dívida pública externa e interna, a estatização do setor financeiro, a reforma agrária com a proibição de latifúndios etc. São reivindi-cações que se articulam como um programa de urgência e têm um sentido anticapitalista.

Entretanto, o dilema da esquerda é demonstrar para os trabalhadores e a juventude que este pro-grama é possível. Exige luta e organização, mui-ta luta e muita organização nos sindicatos e movi-mentos sociais, mas é possível. Porque a crença de que seja possível se perdeu e essa é a maior herança do petismo e do lulismo, ou seja, a desesperança.

A história ensina, embora tenha poucos estu-dantes: a expectativa de que o capitalismo pe-riférico brasileiro poderia realizar uma regula-ção social do mercado, quando a ditadura militar acabou, era compartilhada por milhões. Para os trabalhadores dos setores mais organizados do proletariado, a confiança na direção do PT e em

Lula, e as ilusões na estratégia eleitoral de que as mudanças seriam possíveis através da colabora-ção de classes, sem rupturas com as instituições da democracia liberal, ou seja, sem choques di-retos com os grandes capitalistas, significaram uma desesperadora espera de 20 anos.

Foram 20 anos, entre 1982, a primeira parti-cipação eleitoral do PT, e 2002. Dirigidas pelo PT e pela CUT, e apostando que mais cedo ou mais tarde Lula venceria as eleições, as massas popu-lares, pacientemente, aguardaram a hora da vitó-ria eleitoral. Não faltaram tragédias econômicas e comoções sociais nesses 20 anos: duas décadas de crescimento econômico baixo, quase raquíti-co, em que as turbulências da superinflação dos anos 80 deram lugar ao desemprego crônico, ali-mentaram um crescente mal-estar social e moti-varam grandes lutas, algumas ofensivas – como a onda de lutas que começou com as Diretas, em 1984, e se estendeu até o Fora Collor, em 1992, e outras defensivas, entre 1992 e 2002.

Não obstante, o alarme constante diante de represálias dos donos da riqueza, que mantive-ram influência histórica sobre as instituições de poder, a insegurança social dos trabalhadores em si mesmos e na sua capacidade de luta, a imatu-ridade política de uma geração proletária inex-periente e o papel desorganizador e desmobiliza-dor de uma direção sindical e política, CUT e PT, sempre disposta a inflar a força dos poderosos e diminuir a força dos explorados. Todos estes fa-tores favoreceram a estratégia reformista de pre-venir as lutas sindicais, quando evitável, conter a sua radicalização, quando possível, e impedir a sua unificação, quando incontornável, e redire-cionar o descontentamento para as eleições.

As poucas reformas de conteúdo socialmen-te progressista realizadas sob o regime da de-mocracia liberal, como a extensão da previdên-cia social à população rural, ou a implantação do Sistema Único de Saúde, o SUS, ficaram mui-to aquém das necessidades reprimidas durante duas décadas pelo regime militar. As poucas re-formas do governo Lula, como o aumento do sa-lário mínimo levemente acima da inflação, a ex-pansão de vagas no ensino público federal ou as políticas compensatórias como o Bolsa-Família e as cotas de acesso para afrodescendentes foram muito pouco, depois de tantas lutas e tanto tem-po. Mas a classe trabalhadora voltará a lutar no futuro como lutou nos anos 80. As candidaturas de esquerda têm o desafio de serem as porta-vo-zes dessas lutas que estão por vir. Esse é o obje-tivo da candidatura Zé Maria: incendiar a imagi-nação dos trabalhadores de que a vida pode ser melhor com um projeto socialista.

Valter Pomar - Na campanha Dilma, bem como nas campanhas de candidatos dos peque-nos partidos de esquerda, aparece a pauta histó-rica da esquerda brasileira: soberania nacional, democracia política, igualdade social, desenvol-vimento e integração.

Valter Pomar, historiador e dirigente do PT.

Valério Arcary, historiador e dirigente do PSTU.

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Julho de 2010. Dias sem chuva, céu azul, luminosidade impressionan-te. A temperatura é amena. Na alvorada, as lavadeiras seguem para a beira do rio, alguns pescadores vão chegando, outros vão saindo. Alguns barcos retornam vazios denunciando a escassez de peixes. Nunca havia visto o rio na seca. O rio fica raso - dizem os ribeirinhos; surgem as coroas. No encontro do São Francisco com o Grande, em frente à cidade de Barra, há um trecho em que é possível ficar de pé, com a água nos joelhos. A erosão é notável nas margens. Por outro lado, em povoados rurais, as casas já recebem luz elétrica e água encanada. Em Barra, o projeto de tratamento de esgoto já se encontra em execução. Na van que vol-tava de Xique-xique se discutiu política. Agora só retorno na cheia.

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Débora Prado

unidades com pintura fresca, recepção, cafezinho e promessa de pouca fila. A transferência de grande parte da gestão

de hospitais, ambulatórios e laboratórios no Es-tado de São Paulo para a iniciativa privada foi anunciada pelo governo como uma solução ino-vadora para o déficit da saúde pública. Com mais flexibilidade e eficiência, esses ‘empreendedores filantrópicos’ são experts na otimização e geren-ciamento de recursos, melhorando o atendimen-to à população com menor custo, certo? Errado. A mercantilização da área tem gerado prejuízos para os funcionários e pacientes, já foi alvo de pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inqué-rito) na Assembleia Legislativa paulista e des-pertou a ira do CNS (Conselho Nacional de Saú-de), sem comprovar que haja de fato economia para os cofres públicos.

vidas a partir da década de 1990 no Brasil foi pelos serviços. Inúmeros hospitais públicos ter-ceirizam desde os serviços menos complexos, como segurança e limpeza, até serviços como a radiologia e o próprio atendimento médico. O principal instrumento para promover a privati-zação da saúde no País, entretanto, foi a entrega da gestão de hospitais para as Organizações So-ciais de Saúde (OSS) – com destaque para o Es-tado de São Paulo, que se tornou o grande flan-co desse modelo.

“As OSS vieram com uma promessa de reno-var, de melhorar um quadro em que tudo estava muito antigo – desde a estrutura até os profissio-nais, que não tinham incentivos pra atualização. Mas, é difícil dizer que melhorou, esse mode-lo mercantilizou mais a questão da saúde e esti-mulou a competitividade. Você passa a ter uma

As denúncias vêm de diversos lados: traba-lhadores da saúde relatam instabilidade e assédio moral; no atendimento, o sistema de metas nu-méricas impostas de cima para baixo prejudica a atenção às necessidades locais da população; ju-ristas contestam a constitucionalidade da medi-da, especialistas duvidam da capacidade do Es-tado fiscalizar o custo dos serviços nas unidades, após a transferência da gestão para o setor priva-do. Com um processo pouco transparente de ter-ceirização, ainda há suspeitas de favorecimento financeiro e político sendo apuradas pelo CNS.

A Constituição Federal, com a implementa-ção do SUS (Sistema Único de Saúde), prevê que a saúde deve ser totalmente pública e é vetada a transferência de propriedade do Estado para o setor privado. Com isso, a saída encontrada para incluir a área na onda de privatizações promo-

Saúde pública leiloada

Funcionários públicos, economistas, juristas e parlamentares avaliam os problemas da privatização da saúde no Estado de São Paulo via transferência da administração para as Organizações Sociais. A mercantilização gera prejuízos aos usuários sem comprovar economia aos cofres públicos.

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de passagem. “Falta médico no mercado para tra-balhar com pobre, a rotatividade é muito gran-de. Eles ficam lá até conseguir algo melhor. Nor-malmente, o salário é alto, e, ainda assim, em 3 anos tive 6 médicos diferentes na minha equipe”, conta. Por outro lado, pode faltar recursos bási-cos, como curativos e materiais para fazer sutu-ra. Um funcionário de uma Organização Parceira conta que faltam materiais mínimos na sua uni-dade, como um aparelho de medir pressão. Isto porque, se este item não está previsto no con-vênio firmado, ele não é comprado pelo admi-nistrador privado, pois não haverá o reembol-so do Estado.

Este funcionário avalia que a aparência mais nova das unidades geridas pelas organizações privadas agrada uma parte da população, mas assegura que o atendimento piorou bastante. “As metas são indicadores de produção, o problema é que elas aparecem de cima pra baixo, não são discutidas com a região, não levam em consi-deração a conjuntura e as necessidades locais. E o profissional é tão ameaçado e pressionado, que ele entra numa dinâmica de não dar conta e aí troca de unidade. Então tem uma rotativida-de muito grande de profissionais, principalmente médicos, e isso prejudica o vínculo de quem está lá com a população local”, lamenta.

Para ele, isto faz muita diferença. “Tem questão, por exemplo, que é de saúde mental. Uma pessoa pode ir todo dia à unidade relatar um problema di-ferente e ele fica passando por procedimentos pa-drões, faz várias consultas, por não ter um profis-sional que se envolva com o local e perceba que o problema é de outra ordem”, exemplifica.

CoNdições de trabalhoAlém dos funcionários diretos das OSS, os tra-

balhadores do Estado, contratados por concur-so público, também acusam as novas adminis-tradores de assédio moral e pressão no local de trabalho. Segundo Helcio Aparecido Marcelino, secretário geral do SindSaúde (Sindicato dos Tra-balhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo), como o administrador privado não pode demitir facilmente um funcionário público, a tá-tica que tem sido implementada é de pressionar os concursados para que eles peçam transferên-cia para uma unidade que esteja sobre adminis-tração direta do Estado.

Assim, a entidade gestora pode contratar ou-tros funcionários, sem concurso. Isso levou o Sin-dsaúde a realizar uma série de debates e reuniões em todo o estado para organizar os trabalhadores,

o que resultou num dossiê de denúncias divulga-do em dezembro de 2007. O relatório constatou que, no caso dos laboratórios, estava ocorrendo um processo semelhante ao dos hospitais. O go-verno do Estado criou novas unidades administra-tivas – os Centros Estaduais de Análises Clínicas (CEACs), responsáveis pelos serviços laboratoriais de hospitais e unidades de uma região definida pelo governo. A gestão dessas unidades é transfe-rida para uma OSS que, por sua vez, terceiriza os serviços para uma empresa privada.

O secretário geral do SindSaúde afirma que “a qualidade dos exames caiu assustadoramen-te, sem contar que os exames mais complexos e mais caros continuam sendo feitos pelo Estado, ou seja, aquilo que é fácil de fazer ficou para o laboratório privado e o Estado continua fazen-do os exames mais caros. Não há diminuição do gasto público”.

Ele relata, ainda, que a entidade recebeu de-núncias de pessoas que trabalham doentes ou passam semanas sem folgar, após os plantões. “Na área técnica, o funcionário faz 12h de plan-tão e depois teria uma folga. Mas há o plantão extra, o funcionário pode vender essa folga e fa-zer outro plantão por R$ 120,00. Temos vários casos de gente que ficou três ou quatro dias di-reto dentro do hospital e depois se acidentou no trânsito”, acusa Helcio.

o outro ladoO mais recente alvo deste processo é o anti-

go Hospital Brigadeiro, que passou por uma re-forma e teve seu nome alterado para Hospital de Transplantes Euryclides de Jesus Zerbini, quando a gestão da unidade foi para a Associação Paulis-ta para o Desenvolvimento de Medicina (SPDM) – uma OSS ligada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – em junho deste ano.

Antes de a sua gerência passar para a admi-nistração privada, o governo estadual gastou R$ 37,3 milhões na unidade. Os funcionários do hospital relatam que, após a mudança, foi pro-movida uma forte redução no número de médi-cos e enfermeiros. Apesar da redução do quadro, o superintendente da unidade, Otávio Becker, co-memora o aumento numérico das metas: segun-do ele, o atendimento ambulatorial subiu de cer-ca 3,5 mil pacientes mensais para 9,7 mil.

De acordo com Nacime Salomão Mansur, su-perintendente de Hospitais Afiliados da SPDM, a associação administra hoje 10 hospitais no Esta-do de São Paulo, todos do SUS. No antigo Hos-pital Brigadeiro, há, atualmente, 1281 funcioná-rios, sendo destes 424 celetistas. Nacime afirma que a associação só trabalha com contratações via CLT e admite que alguns funcionários estatu-tários pediram transferência para outras unida-des após a entrega da gestão para a SPDM, mas, segundo ele, o choque de gestão é comum quan-do há uma troca na administração: “Nós em ne-nhum momento tivemos uma postura impositiva, as coisas mudam, há a forma de organização do

“Vira realmente um mercado, assim como o McDonald’s, tem o funcionário do mês, que mostrou mais números, mesmo que não tenha trabalhado de acordo com as necessidades da população.”

noção de que a saúde é número, é meta, porque a meta representa produção e a produção dá vi-sibilidade. Acho que sumiu a qualidade, aquela ideia da saúde pública com um sentimento mais integral e transdisciplinar”, avalia uma enfermei-ra que já passou por diversas OSS na cidade de São Paulo e prefere não se identificar.

A Lei Complementar número 846/1998 regu-lamenta a remuneração que cada OSS receberá e prevê que o montante deve ser proporcional ao percentual das metas cumpridas. É justamente aí que reside o primeiro problema, conforme rela-ta a enfermeira. Ela avalia que os investimentos em insfraestrutura poderiam ter sido feitos sem a transferência da gestão para a iniciativa priva-da, pois este sistema de metas penaliza os traba-lhadores e os usuários.

“Você tem que atingir a meta, além de fazer o trabalho administrativo e ainda fazer os projetos que a OSS quer pra ter mais visibilidade, como de reciclagem. Tudo isso em um tempo recorde e muito centrado em patologia. Por exemplo, a população num local pode ter o maior risco para sua saúde por uso de drogas e isso não vai impor-tar, as metas são focadas em hipertensão, diabe-tes, gestantes, crianças e idosos. Os números es-tão muito longe da realidade”, conta.

As metas são instituídas no contrato com o Estado e podem variar de acordo com o progra-ma em que a unidade se insere. A remuneração varia de acordo com cada unidade e convênio firmado com o Estado e, legalmente, as adminis-tradoras não podem ter fins lucrativos, apesar de decidirem a destinação de gordas fatias do or-çamento público. O profissional, normalmente, é avaliado por um número de atendimentos re-alizados ou visitas domiciliares. No caso da en-fermeira, cuja equipe se enquadra no Programa Saúde da Família, é pedido 192 consultas e 32 vi-sitas mensais, enquanto dos médicos que traba-lham com ela são requeridas 400 consultas/mês e 42 visitas domiciliares.

“Vira realmente um mercado, assim como o McDonald’s, tem o funcionário do mês, aquele que mostrou mais números, mesmo que ele não tenha trabalhado de acordo com as necessida-des da população. E se você questiona, pode ser demitido, tenho vários amigos que perderam o emprego. O assedio moral é muito grande”. Ela relata casos de racismo e pressões para que pro-fissionais não tornassem públicos os problemas dentro da OSS para não haver um marketing ne-gativo para a gestora.

Já para os médicos, as OSS se tornam um local

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horário, por exemplo, isso gera um certo descon-tentamento porque as coisas não são mais como antes, há regras que anteriormente não tinham e algumas pessoas não se adaptam”.

Em relação ao sistema de metas, o superinten-dente nega que haja pressão sobre os funcionários. “Nós temos metas, mas elas não são cobradas dos funcionários. Essas metas são fixadas num contra-to de gestão por qualquer ente estatal, seja Estado, prefeitura, etc. E o contrato no Estado de São Pau-lo é muito bem feito, há uma série de obrigações que a entidade tem que cumprir. Além disso, ela tem metas quantitativas e qualitativas. As metas quantitativas é uma quantidade “X” de produção - internações, cirurgia, etc - e tem essas de quali-dade, que é a parte variável do contrato de gestão. Mas, essas metas não são transferidas para os tra-balhadores, pelo contrário, trabalhamos com re-cursos humanos, motivação”. Defensor deste mo-delo, Nacime considera o contrato de gestão como um instrumento de controle social e avalia que as OSS conseguem produzir mais.

Não é NovidadeAs denúncias relatadas hoje já haviam sido

alvo de investigação em 2007, numa sub-rela-toria da CPI da Saúde realizada pela Assembleia Legislativa de São Paulo. O relatório final da Co-missão, de autoria do deputado estadual Hamilton Pereira (PT), afirma:“A gestão por cumprimento de metas, por processos e por produtividade uti-lizados nas Organizações Sociais gera uma situ-ação de instabilidade para os trabalhadores por elas contratados ocasionando uma superexplo-ração. (...) Outra questão grave foi o problema de ‘quarteirização’, a terceirização ou contratação de empresas por parte das OS’s, encontradas em todos os hospitais (...) Diante do quadro apura-do, constata-se que o chamado ‘melhor desem-penho’ dos Hospitais geridos por Organizações Sociais de Saúde pouco significam na prática. A conclusão a que se chega, na presente questão, é que o frágil controle do Estado sobre essas enti-dades e sobre a execução da assitência à saúde, aliada à grave precarização do trabalho nas OS’s, justifica a necessidade de um processo de rever-são da gestão (...)”.

Apesar disso, o total de hospitais gerenciados pelas organizações subiu de 13, em 2007, para 22, em julho deste ano, de acordo com a apuração do CNS. O relatório do deputado estadual Raul Mar-celo (PSOL), Sub-Relator de Organizações Sociais da CPI, apontou também para a necessidade de uma CPI específica para investigar as relações en-tre as OSs e o governo do PSDB, em São Paulo, mas como o partido tem maioria na Alesp, a de-núncia não foi adiante.

“A bancada do PSDB dificultou ao máximo a criação da sub-relatoria para investigar as OSs, no entanto, conseguimos aprovar num cochilo da base do Governo, quando da votação do nos-so requerimento. Mas, a situação mudou com-pletamente na votação do nosso relatório e das

suas respectivas conclusões e propostas, porque além das denúncias de falta de transparência, participação e controle social sobre estes hospi-tais, também propusemos o retorno dos hospi-tais entregues às OSs para a administração direta. Isso é possível do ponto de vista administrativo e comprovamos em nosso relatório, para alterar o projeto de privatização hoje em curso no nos-so Estado. Mas todas nossas propostas sofreram limitação total”.

Em 2007, o deputado visitou 7 dos 13 hos-pitais geridos por OSS. O quadro apurado não mudou: uma OSS, normalmente, gerencia várias unidades, todas terceirizam algum tipo de servi-ço, contratando empresas sem licitação, e o siste-ma de metas para medir a transferência de recur-sos é, no mínimo, questionável - situação que se agrava pela ausência de um mecanismo de fisca-lização que contemplasse a participação dos usu-ários e funcionários.

Seu parecer concluiu: “A terceirização, den-tro das Organizações Sociais, ocasionam gra-ves prejuízos à qualidade do ambiente de traba-lho dos funcionários, caracterizados por desvio de função, sobrecarga de serviços e usual assé-dio moral e alta rotatividade quanto às empresas terceirizadas. As terceirizações também não es-tão submetidas a algumas regras da administra-ção pública como a lei de licitações, fundamen-tal à transparência dos serviços prestados pelo Estado ou para o Estado. Essa falta de transpa-rência pode inclusive proporcionar uso indevi-do dos recursos públicos, que foi o teor de uma série de denúncias recebidas sobre processos de terceirização nos hospitais da administração su-perfaturamento de contratos, prestação de servi-ço aquém do contratado, favorecimento indivi-dual, dentre outros.”

Segundo Raul Marcelo, apesar da sua inves-tigação, a situação só se agravou. “Infelizmente, nosso relatório, fruto de um intenso trabalho ao longo de meses, não foi aprovado. E o pior, logo após o termino da CPI começou a tramitação do PLC 62/08, de autoria do Governo Serra, que am-pliou este processo de privatização da saúde pú-blica no Estado de São Paulo quando foi trans-formado na Lei 1095, em setembro de 2009. O que deixou claro que, se depender da Alesp, com-posta hoje por uma maioria de deputados neoli-berais que dão sustentação ao governo do PSDB, essa situação não será revertida. Pelo contrário, como mostra o histórico recente, esse modelo ne-fasto está aumentando”, lamenta.

De acordo com os dados coletados na CPI, en-tre 2000 e 2007, os gastos proporcionais com as OS’s cresceram 114,14%, saltando de uma fatia de 9,76% para 20,90% dos recursos do Tesouro do Estado com Saúde. O montante total destina-do as OS’s na época estava em torno de R$ 1 bi-lhão. Já o grupo de trabalho criado pelo Conselho Nacional de Saúde para investigar esse mode-lo constatou que, atualmente, há 79 instituições entre Ambulatórios Médicos de Especialidades, hospitais e centros de idoso entregues à gestão de OS’s no Estado de São Paulo, o que compro-mete cerca de 16% do orçamento da Secretaria Estadual de Saúde.

traNsparêNCiaO CNS também está se debruçando em avaliar

este modelo de administração há alguns anos. Um grupo de trabalho foi destacado para fa-zer uma apuração em nível nacional, buscando quantificar o total da saúde entregue a iniciativa privada e qualificar o debate, analisando o custo/benefíco desse modelo para o Estado e para po-pulação. “Não temos a menor dúvida que a po-pulação de São Paulo está sendo duramente pe-nalizada com esse processo de privatização, nós queremos ter os números para comprovar isso. Vamos, pela primeira vez, fazer um levantamen-to criterioso para desmistificar essa propaganda feita pelo governo de São Paulo, sobretudo pelo PSDB, e desqualificar os processos privatizações que, até onde nós sabemos, está tornando insus-tentável a gestão do SUS nos Estados”, afirma o presidente do CNS, Francisco Batista Júnior.

Concretizar a pesquisa, entretanto, tem sido uma tarefa difícil ante a ausência de dados dis-poníveis sobre o tema e o CNS considera recor-rer ao Departamento Nacional de Auditoria do SUS para conseguir informações. “O Estado tem se blindado neste processo pela falta de informa-ções, que não são disponibilizadas, ninguém sabe o custo real deste procedimento”, relata o presi-dente da entidade, complementado: “Com certeza isto está custando um preço impagável para a po-pulação do ponto de vista econômico e social, não temos a menor dúvida disso. Com certeza, existem muitos interesses em jogo que nós queremos ava-liar quem são os proprietários das OSS e que tipo

Moacir Gadotti, Marina Silva e Leonardo Boff participam do primeiro fórum temático sobre educação tecnológica.

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Débora Prado é jornalista.

de relações pessoais ou políticas existem entre os proprietários e o governo de São Paulo. Estamos muito desconfiados que possa estar acontecendo o que aconteceu no Senado, em que pessoas ligadas aos senadores eram contratadas nas terceirizadas. Para nós já passou de todos os limites”.

A investigação é pertinente. Como as OSS são organizações sem fins lucrativos, por exigência da lei, a suspeita é que haja um processo de acumula-ção de riqueza privado por outros meios. De fato, a sub-relatoria realizada durante a CPI da Alesp constatou que este processo ocorria “não por par-te da Organização Social em si, mas por meio dos rendimentos proporcionados a poucos funcioná-rios, em geral, administrativos, remunerações dis-crepantes com as do setor público. Além disso, foi constatado durante as diligências que há casos de hospitais em que as empresa contratadas para prestarem serviços são de posse de pessoas vincu-ladas às OS’s ou professores das instituições de en-sino mantidas pelas mesma Os’s”.

Além da investigação, o CNS espera que Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 1923/98 – que questiona a constitucionalidade da legis-lação que cuida das Organizações Sociais (Lei nº 9.637, de 15 de março de 1998) – tenha uma de-cisão favorável à reversão deste modelo no Su-premo Tribunal Federal.

Para Airton Florentino de Barros, Procura-dor de Justiça e integrante fundador do Ministé-rio Público Democrático, o modelo das OSS é sim inconstitucional, pois o setor privado substitui a ação do Estado. “O Estado não pode deixar de pres-tar esse serviço público essencial, como se pudesse ser substituído pela iniciativa privada, que só pode atuar complementarmente na saúde, segundo nos-sa legislação”, explica. Os equipamentos do Estado fornecidos para particulares também é inconstitu-cional, de acordo com o promotor. “O atendimen-to continua sendo ruim, os preços não diminuem e os ônus sempre caem sobre o povo que precisa des-se serviço e não podem pagar o convênio, e tam-bém por quem paga o convênio, quando deveria ter acesso à saúde pública”, diz.

O deputado Raul Marcelo lembra ainda da força da mobilização social e chama a sociedade para debater este tema e resistir às privatizações. “Também incentivamos a organização de um Fó-rum em Defesa da Saúde Pública, que tem como objetivo primeiro organizar a resistência ao pro-cesso de privatização da saúde pública em nosso Estado, bem como enfrentar esse processo tam-bém nos municípios. Participamos de forma in-

tensa da luta contra a entrega da rede básica de Saúde para as OSs na Cidade de Osasco, e da luta pela volta do Hospital Ouro Verde, de Campinas, para a administração municipal, com a defesa do fim do contrato de gestão com a OSs. Este fórum se reúne uma vez por mês em São Paulo e pode ser acompanhado pela internet no site www.fo-rumpopulardesaude.com.br.”, indica.

Gestão efiCieNte?Os defensores deste modelo rebatem as acu-

sações, entretanto, afirmando que a melhora na gestão permite ampliar os atendimentos, bene-ficiando a saúde pública. Este princípio, porém, também é questionado.

A economista Maria Luiza Levi realizou um estudo econômico deste modelo para seu douto-rado na USP (Universidade de São Paulo), quan-do analisou a experiência de implantação do mo-delo OSS em São Paulo, “buscando compreender as questões que se colocam para a adoção de modelos centrados na administração privada de unidades de saúde no âmbito do SUS, seja do ponto de vista sistêmico, seja com relação aos elementos de natureza prática relacionados à sua gestão financeira por parte do Estado”, segundo sua própria tese.

A professora avalia que o modelo até possui

uma perspectiva positiva no sentido de utilizar o regime mais flexível da administração privada para agilizar os atendimentos. Entretanto, os da-dos sugerem que a gestão financeira do mode-lo OSS pela Secretaria de Estado da Saúde se dá sob bases frágeis, com serviços de saúde relati-vamente semelhantes adquiridos a preços muito distintos, e com um perfil das internações hospi-talares excessivamente heterogêneo para permi-tir comparações diretas entre custos.

Em entrevista a Caros Amigos, a economista avalia que o Estado perdeu o poder de regula-mentação, o controle financeiro está muito aquém do desejado e, assim, o modelo precisaria de um aprimoramento considerável. “Ele não acompa-nha, não fixa salário, não controla como se paga o salário, o que se compra. Teria que haver um jei-to de mensurar o preço desse serviço realizado nas OSS e isso não é feito. No meu estudo eu conse-gui medir que o preço unitário não é padrão, cada OSS trabalha com um preço diferente da outra em serviços que deveriam ser compatíveis. Isto gera uma dificuldade na hora de regular o repasse fi-nanceiro para estas unidades, neste modelo você não tem como mensurar o custo. E, teoricamente, para o Estado comprar esse serviço, ele teria que ter uma forma de balizar o ‘valor’ desse ‘produto’. Mas, você não tem como saber se é muito mais econômico, se é menos.”, explica.

Outro aspecto complicado do ponto de vista econômico, segundo ela, é que várias entidades que administram os hospitais via OSS também atuam no sistema privado em hospitais particu-lares, mas com um certificado da filantropia, o que lhe assegura uma vantagem em relação aos seus ‘concorrentes’ via isenções tributárias.

Deste modo, ainda, o recurso público serve para fortalecer o sistema de saúde privado no País, no lugar de se expandir. Para Maria Luiza, um dos principais problemas deste modelo é jus-tamente este: “nos sistemas universais, o gasto com saúde deveria ser totalmente público. Tudo bem se, eventualmente, os prestadores dos servi-ços são privados e até com fins lucrativos, como é o caso da França, por exemplo. A gerência é secundária, o problema é o financiamento e, no Brasil, praticamente metade do financiamento da saúde é privada”.

De fato, segundo o OECD Health Data 2010, uma publicação da Organização para Coopera-ção e Desenvolvimento Econômico, apenas 56% dos gastos em saúde no Brasil foi financiado por recursos públicos em 2008 - porcentagem bem abaixo da media dos países que compõem a or-ganização que foi de 72,8% no mesmo ano.

Enquanto o debate gera polêmica, o modelo das OSS se expande em São Paulo e no Brasil, ao passo que a saúde pública segue sendo sucatea-da. Nesse ínterim, uma outra estatística aumen-ta: a do número de notícias sobre mortes de pa-cientes na fila do SUS.

“A terceirização ocasiona graves prejuízos à qualidade do ambiente de trabalho dos funcionários, caracterizados por

desvio de função, sobrecarga de serviços e usual assédio moral e alta rotatividade quanto às empresas terceirizadas.”

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entrevista DEXTER

é o que eu falo pra vocês: o rap salva”. Du-rante as horas que passou com a repor-tagem da Caros Amigos em Campinas,

Marcos Fernandes de Omena (ou Dexter) repetiu diversas vezes esta frase. De fato, o rap é funda-mental nos 37 anos de vida de Marcos, cerca de um terço deles vividos atrás das grades. Ouvin-do Racionais MC’s conheceu a política, o movi-mento negro, teve orgulho de sua cor e disposi-ção de lutar pelo respeito a ela.

Atrás de dinheiro para uma gravação, Dexter buscou “meios não convencionais” e acabou preso. Já havia cumprido o período de pena que lhe per-mitiria progredir para outro regime que não o fe-chado mas, sem saber desse direito, aproveitou a primeira oportunidade que teve para fugir. Em qua-tro dias participou de cinco assaltos e um homicí-dio. Voltou condenado a 38 anos de cadeia. Com o tempo, fez “do pior o melhor”, e não deixou que as grades aprisionassem seu rap. Primeiro no gru-po 509-E (número da cela que ocupava com o can-tor Afro-X no Carandiru), depois em carreira solo, seguiu compondo e gravando, se tornando um dos principais nomes do rap nacional. Em 2009 lançou o disco Dexter e convidados – ao vivo, com partici-pações de grandes nomes do hip hop.

Ainda cumprindo pena no presídio de Hortolândia (SP), um dos mais respeitados compositores do hip hop, Marcos Fernandes de Omena (Dexter) encontrou na música o caminho da libertação. Mas, alerta, “o rap não vai ter como mudar a vida de todo mundo”. Por gabriela moncau e Julio Delmanto

Atualmente em regime semi-aberto, trabalha durante o dia numa loja de roupas e discos em Campinas, onde também recebe seus amigos e parceiros de rap. Às 18 horas tem que estar de volta à Hortolândia. Entre trabalho na loja e di-versas chamadas no celular, lapida letras e mú-sicas para um novo disco a ser lançado ano que vem, além de planejar escrever um livro. Falou sobre sua trajetória, suas posições políticas e o atual cenário da música brasileira. Diz que hoje não pegaria mais numa arma para buscar suas necessidades, mas lembra: “o rap não vai ter como mudar a vida de todo mundo”.

Caros Amigos – Conte a sua trajetória, onde você cresceu?Dexter - Nasci no dia 17 de agosto de 1973, em São Paulo e fui criado nas ruas do Jardim Calux, em São Bernardo do Campo. Minha mãe biológi-ca não teve condições de me criar e aos 13 dias de vida me entregou para uma mulher, Dona Ma-rina Maria de Omena, minha mãe de fato, porque mãe é aquela cria, não aquela que põe no mundo. Vivia nas ruas de terra, nos campinhos do Jar-dim Calux, um morro que desde aquela época era bastante respeitado. Minha mãe já tinha duas fi -

“O rap salva”

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Novo sítio: www.carosamigos.com.br

lhas e era viúva quando me pegou pra criar. Ela dava uma segurada em mim, na época tinha uns bailes muito da hora, baile de preto, da função. Ela tinha medo, por conta da malandragem. Mas pô, a malandragem de antigamente é diferente da de hoje. Ela queria que eu vivesse uma vida padronizada, ganhasse um salário mínimo. Acho que é o sonho de toda mãe da periferia, que o fi-lho simplesmente estude, vire um operário pa-drão, não vire ladrão.

A sua mãe mora onde, hoje?Hoje ela mora no sul de Minas. Quando eu fui

preso tirei minha mãe do Calux. Infelizmente ela tem a doença de Chagas, que não tem cura, mas tem como a pessoa se manter com uns remédios, impedir que a doença se alastre. Ela já tava apo-sentada, varreu ruas por 17 anos, teve um pro-blema no joelho e aí nós vendemos a casa em São Bernardo do Campo e compramos um terre-no numa região de Itapeva. Quando o 509-E es-tourou, eu consegui ganhar um dinheiro e a gen-te fez uma casinha melhor, um sobrado.

E a sua adolescência?No Calux, vi muitos amigos partirem pro cri-

me e não voltarem mais. Vi muitos amigos in-felizmente morrerem com essa política retarda-da que existe dentro da periferia, em especial no gueto, nas favelas. Essa coisa enraizada da droga, do álcool, e de você querer ser alguém dentro da quebrada, né? Querer ter um carro, uma mina da hora. Isso muitas vezes o sistema não te oferece, o salário que a gente ganha não permite. Muitos ca-ras não suportam não conseguir esses sonhos de consumo, e vão buscar. Há muito tempo percebi que a televisão é a pior doutrinadora que nós te-mos. E a Igreja Católica também, claro. Mas cada um de nós tem uma TV dentro de casa, não um padre. Então o barato é louco, se você não tiver aquele tênis, você não é merecedor de ter aque-la mina. Você acaba enveredando por outros ca-minhos mesmo, às vezes a sua frustração é tanta que você entra no mundo das drogas, da bebida. Ou você resolve escrever sua história de outro jei-to, pega numa arma e tal, e por aí vai. Nunca vi ninguém falar que foi roubar pra comprar os li-vros, que são caros também, entendeu?

Quais os fatores que geram essa revolta?São vários os problemas de um cara que mora

dentro da favela. Se ele não joga bola, se ele não faz um samba, quem é esse cara? O estudo é pre-cário. Aí o pretinho vai na escola e ouve que o Zumbi foi assassinado por Domingos Jorge Ve-lho e ponto, na verdade não é isso. O branquinho aprende que na história existiram heróis e sen-te orgulho de ser branco, mas não sente orgulho de ser pobre. Então é uma confusão de sentimen-tos. Eu consegui entender essas coisas e sair disso através do rap, que é a música do povo, através de outros jovens que entenderam mais cedo que eu, passaram pra mim e eu abracei, falei pô, ta aqui ó, minha válvula de escape. Eu também era um cara revoltado, às vezes é até inconsciente. Já peguei numa arma e fui assaltar os playboy.

Mas eu não fui porque eu tinha consciência da minha revolta, eu fui levado inconscientemente, você acredita nisso? Eu tava lá roubando o boy, olhando pra ele e pensando “mano, esse cara é diferente de mim, eu tenho que roubar dele”, mas eu não sabia o porquê disso. Sabia que eu que-ria o que ele tinha, mas o ódio que eu sentia dele naquele momento eu não sabia explicar. Tem-pos depois eu entendi o que gera isso. O fato de você ser pobre e ele ter uma condição melhor, mano. Nos anos 90 passava pelos boy e pensa-va “ô mano, por que eles têm e eu não tenho?”. A mãe deles não varria a rua que nem a minha mãe, entende? Se a gente for puxar o fio da me-ada, irmão, a gente vai chegar até a escravidão. O que meu povo herdou? Os pretos e descenden-tes dos mesmos?

Como era a sua cabeça quando jovem, vendo os seus amigos e conhecidos do bairro morrendo de graça?

Então, irmão, enquanto você é jovem e não descobre as coisas, não entende direito aquilo ali. Você sabe que aquilo acontece todo dia, que é uma rotina massacrante, mas não entende por-que aquilo acontece, essa política de que a po-lícia entra na favela pra matar mesmo, que são pagos pra isso, autorizados. Eles têm que mostrar serviço pra sociedade. A gente é um inimigo em potencial, só pelo fato de ter nascido preto, de ser forte, de andar gingando na rua. Essas coisas a gente nem sabe, irmão, antes da gente ler, se in-formar, estudar, andar com uma rapaziada com uma mentalidade da hora. Eu sinto muito orgu-lho de cantar rap, o rap é o melhor amigo que eu tenho, já salvou muitas vidas, já ajudou mui-ta gente a entender as coisas, a ter auto-estima, a discutir de igual pra igual. Hoje você vê meu povo fazendo palestra em faculdade, discutindo com os boy de igual pra igual e até mais, ensi-nando pros caras como é que as coisas funcio-nam. Isso é lindo. To trabalhando dois paralelos, o social e o racial. São os problemas que eu vejo no meu país, na rua, e que não estão separados. Vamo chegar no shopping aí nós dois, eu com dinheiro e você sem. Você acha que o seguran-ça vai ficar de olho em quem? Em você? Vai fi-car em mim. O preto no Brasil é sinônimo de ma-landragem, de crime, de assalto. Eu ando por aí e vejo muitas terras no Brasil, terra demais. Mas ao mesmo tempo vejo um monte de mendigo, um monte de gente sem ter onde morar. O Brasil é um bagulho louco, por que não bota essas pesso-as pra morar lá? Não dá pra acreditar, irmão.

Quando você começou a se interessar pelo rap?A batida do rap, acho que em 1984, 1985, eu

já ouvia os Metralhas, que cantavam o Rap da abolição e tal. Acho que é coisa de preto mes-mo, descendente de africano, a batida do som é outra fita, contagia. Quando eu ouvi o rap, que é derivado do funk, do soul, do blues e tal, aí eu endoidei, as batidas parecem o pulsar do cora-ção. É aquele lance, os caras já tinham a ideia, já sabiam o que era ser preto no Brasil, e a gen-te ainda não entendia. Decidi fazer rap uns cin-

co anos depois, em 1990, quando eu ouvi Pâni-co na Zona Sul, do Racionais. Inconscientemente tudo que a gente vivia dentro da periferia a gen-te queria falar de alguma forma, a gente não sa-bia como. Aquele lance que eu falei, cada um ex-travasa do seu jeito. Só que quando eu ouvi essa música foi como se acendesse uma lâmpada: aí o vírus da revolução entrou na minha veia. Foi no domingo à tarde, eu to lá em casa me prepa-rando pra ir pro baile e de repente entra Pânico na Zona Sul, em cima do James Brown. Eu tava pondo o tênis, pensei “porra, que som louco”: “Então, quando o dia escurece, só quem é de lá sabe o que acontece”. Com 17 anos eu conheci meu pai, quis passar um tempo com ele em Dia-dema. Conheci mais dois irmãos, o Tatá e o Beto, que eram mais velhos e curtiam as mesmas coi-sas que eu, soul, funk, rap, os baile. O legal dis-so tudo não foi tanto conhecer meu pai, porque aí conheci uma pessoa que bebia, chegava em casa embriagado, queria bater na mulher dele, que eu chamo carinhosamente de tia Dorinha. Mas meus irmãos não, uns caras firmão, a gente jogava bola, saía junto. A gente teve essa identi-ficação, e foi nessa época que eu descobri o rap. Comecei a raciocinar em cima daquelas letras to-das, as coisas que eu vi durante a minha infância e adolescência, queria falar isso de alguma forma e descobri. Me via no Brown. Aí nesse dia tam-bém fiz uma promessa pra mim mesmo, que um dia eu ia conhecer esse malucão.

Então foi quase imediato o seu gostar e o seu querer fazer rap?

Comecei a fazer rap no outro dia! Peguei um papel e uma caneta e comecei a rimar. Saiu uma música, o nome era Violência do subconsciente. O que quer dizer isso, né mano? (Risos) Mas enfim, aí entrei de cabeça no rap mesmo, comecei a enten-der enquanto cultura, conforme eu ia descobrin-do mais sobre essa música mais eu me encanta-va. Era uma música que falava sobre os problemas sociais, reunia milhares de pessoas pra falar sobre consciência política, discutir os problemas da que-brada e do Brasil, às vezes até do mundo. Esse as-sunto me tomava de tal forma que eu comecei a ler demais, ter sede de conhecimento.

O que você tava lendo na época?Pô, logo de cara já fui a ler a autobiogra-

fia do Martin Luther King. Hoje eu vejo uns ca-ras fazendo rap de qualquer jeito, eu acho um puta dum desrespeito. Falando de ouro, de car-ro, de tênis, de mulher. Não dá. As pessoas que se mantém hoje no rap, como linha de frente, a maioria é da minha época, aprenderam a fazer rap dessa forma: tiveram que ler, estudar, buscar o autoconhecimento. Tempos depois que eu co-mecei a fazer rap, eu ouvi os Racionais cantan-do “Precisamos de um líder com crédito popular, como Malcolm X em outros tempos foi na Amé-rica, que seja negro até os ossos, um dos nos-sos”. Mas espera aí, quem é Malcolm X? Aí fui atrás, achei. Quando eu li Malcolm X, meu Deus velho, me senti útil, me senti muito bem. Veio o filme “Malcolm X”, fui lá assistir num cinema na

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Consolação, o bagulho lotado, os caras do movi-mento negro, os caras do rap, todo mundo junto, fiquei feliz, pensei “tamo junto, tamo nos organi-zando”. Nem o movimento negro conseguiu isso, o rap é foda, o rap é muito louco. Acho que o movimento negro conseguiu reuniões. O rap não, o rap conseguiu... pô, é uma cultura, né, tio? É uma base, é cabuloso, é sólido. Não que o movi-mento negro não seja, o movimento negro é mui-to importante, mas acho que o rap transcendeu, conseguiu trazer quem precisava vir: a juventu-de. Quando a juventude tá junto é foda, ninguém segura. Os caras não conseguiram alcançar o que a gente conseguiu com o rap. Porque é música, a música nada mais é que o retrato dos diversos afetos da alma, então te chama pra próximo e te chama pra guerra também. A música tem esse poder, o poder da transformação.

Então o rap te instigou a ir atrás de um conhecimento que a escola não tinha estimulado?

Exatamente. Nem a política da escola alcançou o que o rap deu pra gente. Vem um intelectual pra mim e fala “Dexter, você tem que ler Malcolm X”. Mas aí, o intelectual vai falar o que é que eu te-nho que ler? Aí chega um parceiro e fala: “Negão, eu li lá e foi foda, você tem que ler”, imediatamen-te passo a me interessar. Percebe a diferença? É a identificação. Foi isso que aconteceu com o rap. O rap é pra mim um grande professor.

Você já era o Dexter?Já era o Dexter. Logo quando eu li a autobio-

grafia do Martin Luther King eu descobri que um dos filhos dele chama-se Dexter. E achei muito louco o nome, aí fui ao dicionário e vi que Dexter significa destro, de direito, correto, passa pelo es-perto, sagaz. E me identifiquei com o nome por-que pra sobreviver na periferia você tem que ser isso mesmo, se você não for correto você vai ser cobrado depois. Você tem que ser um cara ligei-ro, porque a polícia está lá pra te exterminar. Aí quando eu li e assisti Malcolm X eu descobri que o X representa o desconhecido, e os caras do islã usam o X pra representar um sobrenome africa-no que eles não conhecem. Aí o X do Dexter tam-bém ganhou mais força. Com o passar do tem-po ninguém mais me chamava de Marquinhos ou de Marcos. No final de 97 o grupo que eu fa-zia parte, Tribunal Popular, recebeu a proposta de gravar um single. Entramos em estúdio aí eu chamei o Edi Rock pra participar de uma música chamada De preto pra preto e o Brown pra pro-duzir a Legítima Defesa. Logo em seguida o Au-gusto, da gravadora, foi lesado pelo sócio dele, e ficou sem o dinheiro pra pagar o estúdio. Eu fa-lei “pô, mano e agora? Tenho o Brown e o Edi Rock gravando com a gente, como vou perder essa oportunidade? Não posso!”. Era em torno de R$4700 pra terminar as gravações. E aí eu fui buscar, de uma forma não tão convencional. Foi quando eu fui preso. É tudo uma questão de so-lucionar o caso, senso de justiça, sabe assim? Os crimes que os Dexters cometem por aí servem de bode expiatório, uma espécie de camuflagem... O

disco acabou saindo, e eu continuei preso. Eu fui preso em janeiro de 98, e fiquei um ano sem rap, meio frustrado e tal.

Mas como foi pra você essa experiência? Você estava envolvido com o rap e acabou indo parar na cadeia...

Ah, foi difícil né, meu. Na verdade é assim, a maioria das pessoas tem um poder de adaptação muito grande. Mesmo porque no meu caso com todas aquelas pessoas que tavam ali rolava o lan-ce da identificação: eram da mesma cor que eu, mesma idade, moram nos mesmos lugares, en-tão as ideias eram parecidas. Graças a Deus, eu consegui fazer do pior o melhor. Um tempo de-pois comecei a fazer letras e tal. Eu sempre fui um cara que vivi ali, entre a linha do bem e do mal. Então pra fazer o mal – que pra sociedade você ir buscar um dinheiro que não tem é fazer mal, certo? - é “um, dois”, basta você ter dispo-sição. E disposição você sempre tem.

É só precisar. É só você precisar, irmão. Na época eu queria

gravar, era um sonho, eu tinha o Brown e o Edi Rock na mão e precisava de dinheiro. Eu penso que desde que você não se mate e nem vá pre-so, tudo é válido pelo seu sonho, você tem que ir buscar mesmo. Só que hoje o “você tem que bus-car mesmo” que eu falo é diferente de você pegar uma arma e ir buscar o ilícito pra conquistar o lícito, entende? Hoje eu não pegaria mais numa arma pra assaltar e conquistar um dinheiro.

Mas também não é um caminho que você necessariamente condene, certo? Porque na música Como vai seu mundo quando você fala do crime, dá o conselho: “se tiver como, desista”...

Por que eu falo “se tiver como”? Tem o cara que não quer estudar, não canta rap, não joga bola, não lê, não escreve, o que sobra prum cara desse? É pra ele que eu falo: “se tiver como”. Tem cara que não tem, eu tenho vários parceiros lá dentro que me falam: “Dexter, queria eu ter a oportunidade que você teve, irmão, que eu tam-bém abandonaria o crime. Eu não quero o crime, não quero pra minha família, pros meus filhos, mas infelizmente eu to nele, não sei fazer outra coisa”. Ou seja, é um cara que tá condenado a morrer no crime. O rap não vai ter como mudar a vida de todo mundo.

Você podia contar um pouco do seu dia a dia na cadeia, como surgiu o 509-E. Nas suas letras você fala muito em liberdade...

A liberdade física dentro de uma prisão é 100% presente. Passado um tempo eu comecei a me inti-tular exilado e não preso. Porque eu vi muito cara preso pela consciência, eu acho que estar preso é isso. Você pode ser um cara preso ao vício, pre-so a uma mulher, preso a um carro... Mas eu pas-sei a me intitular exilado, me identificar como um cara que foi afastado da família e dos amigos por um determinado tempo mas que um dia vai vol-tar. E na prisão a recuperação por parte do siste-

ma não existe, política de ressocialização não tem, tudo tem que ser iniciativa própria. Pouco se estu-da, pouco se trabalha dentro de uma prisão, seres humanos são jogados dentro de um quadrado dois por dois e já era, se virem. Em algumas cadeias você convive com ratos, baratas, percevejos. Pra resumir: cadeia não recupera ninguém, a cadeia traz mais revolta, mais mágoa, mais tristeza.

E como foi continuar produzindo música lá dentro?

O que eu fiz foi pegar o que tinha de melhor e apresentar. Tive essa sorte, de poder mostrar do que eu era capaz, e me foi dada essa oportunida-de, até mesmo pelo histórico da Casa de Deten-ção, que a gente conseguiu as coisas com mais facilidade, porque quando o 509-E explodiu já tinha um trabalho sendo desenvolvido ali den-tro, “Talentos aprisionados”, por uma pessoa que trabalhava na época com teatro. No meio des-se trabalho foi descoberto o 509-E, a gente teve uma abertura muito grande, foram 7 meses de saídas: shows, palestras em escolas e faculdades, trocando ideia com a molecada. Em 2003 o 509-E acabou, o Afro-x foi pra rua e a gente já não encontrou motivos pra continuar juntos, eu tava falando de umas coisas, ele tava vivendo outras, enfim. Em 2004 eu começo a trabalhar o disco Exilado sim, preso não, e foi muito bom, acho que a real afirmação do Dexter foi aí.

Como foi o começo dessa nova etapa? Quando o grupo acabou, eu continuei fazendo

as coisas no mesmo teor do 509-E, que era o bara-to que acreditava antes e ainda acredito: a revolu-ção mental das pessoas. Lancei Exilado sim, preso não, um disco totalmente gravado dentro da prisão, em 2004. Nessa época, eu estava em São Vicente, e sentindo falta de pessoas linha de frente no rap nacional fazendo mais coisas, pro próprio rap e pra eles mesmos. Resolvi juntar essas pessoas, e aí es-colhi alguns nomes, dentre eles o Brown, Edi Rock, MV Bill, Gog, a Tina. O disco foi lançado em 2005, e em uma semana a gente vendeu 3 mil cópias.

Como avalia o rap hoje? Tudo evoluiu né? E às vezes a evolução não é

uma coisa muito boa. Acho que antes de você co-meçar a falar de ouro, de carro, de mulheres, você tem que ter algumas coisas que são prioridades na vida de um ser humano. Por exemplo, um convê-nio médico. Às vezes o cara nem tem isso, que pra saúde dele é importante, e ele tá falando de car-ro e de ouro na música dele, meu. Será que real-mente faz parte do mundo dele isso daí? Nem uma casa pra morar ele tem. Acho que esse rap cum-pre o mesmo papel que a televisão, te incentiva a ter coisas que você não tem. Esse rap consumista, rap glamoroso, rap de ostentação, pode te levar a caminhos diferentes do que aquele rap que eu co-nheci, que me incentivou a fazer outras coisas.

Parece muito influenciado pelo rap gringo né?Parece não, é. Todo mundo quer ser 50 Cent.

Só que a rapaziada esquece que o 50 Cent veio no Brasil e desprezou os brasileiros. Um fã subiu no

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Julio Delmanto é jornalista.Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo.

palco, ele se assustou e empurrou o cara com vio-lência, pediu pra trancar o camarim pra ele passar por trás. Isso aí é o rap americano, é o americano em si, os caras têm um lado sexista pra caralho, sei lá qualé que é a fita. E no Brasil a gente tá em ou-tra parada, outra dimensão, outra caminhada.

Como você encara o Brown falando que não quer ser refém do que ele criou?

Ele pode até não querer, mas ele é a referên-cia maior do rap. Ele tem um compromisso com o rap, o Edi Rock tem, o KL Jay tem, o Ice Blue tem, não adianta. E eu acho louvável isso.

Talvez ele esteja respondendo às críticas que as pessoas fazem a ele fazer propaganda da Nike, o MV Bill fazer da Nextel, o que você acha disso?

Tudo é evolução, não dá pro mundo andar e você ficar parado. Vai chegar uma hora que as empresas vão procurar. Acho que negociar, aprender a negociar, é uma coisa; a gente se ven-der é outra.

Como diria que é a cabeça do preso para a política? Desacreditado? Revoltado? Tá afim de participar?

Olha, eu acho que tem que chegar mais próximo deles as coisas. Não existe uma política de ressocia-lização. E voto, preso não vota né, mano? A parti-cipação do preso na política é inexistente na verda-de, porque não tem incentivo. Em 2002 quando o

Lula foi entrar, era Serra e Lula. Foi traçado um pla-no dentro das cadeias, de informação. Ou seja, re-sumindo, se o Serra entrar ele é de extrema direita, só quer construir cadeia, nossa vida aqui vai piorar, enquanto o Lula não, ele é mais aberto, mais par-ticipativo, mais ser humano. Então houve um mo-vimento muito grande de apoio ao Lula dentro do sistema. Eu vi a força que a gente tem. Eu mesmo trabalhei nessa política, de ir de barraco em barraco [cela] trocando ideia com a rapaziada, explicando o que era a política daquele ano, a eleição.

Então você fez campanha pro Lula?Claro que eu fiz, eu acreditava e acredito no

Lula. Realmente algumas coisas mudaram. Ele é um cara que veio do povo, que veio da minha quebrada também, de São Bernardo, é um cara que veio da raiz, da pobreza, mano. Eu diria que o Lula é também Flor de Lótus – que é o título do meu novo CD, eu nunca tinha falado isso, hein? Todas essas coisas que acontecem no Brasil eu considero como se fosse o lodo, num panorama geral: corrupção, desvio de verba, crime em as-censão, pedofilia, cemitérios clandestinos desde a época da ditadura... todas essas coisas negati-vas eu considero o lodo. Mas o Lula, o Brown, o Hood, o Grégory, o Júlio, a Gabriela... eu consi-dero Flor de Lótus. É uma planta, originária da Índia, que só nasce no lodo – e eles consideram a mais bonita de lá. Então acho que estamos no lodo mas somos todos flores bonitas que pode-

mos dar bons frutos, essa é a ideia do novo dis-co. Em meio a essas andanças por tantas cadeias eu conheci muito cara flor de lótus, muito cara bom, bonito interiormente falando. Então é isso, o Lula é um flor de lótus, eu acreditei e gostei de como ele governou, acredito que temos que dar seguimento nessa política, com a Dilma. Talvez a burguesia não concorde comigo.

Esse período em que você esteve preso foi exatamente o da consolidação dos comandos dentro das cadeias. Você sentiu essa mudança?

Com certeza. Muita coisa mudou pra melhor, antigamente morria-se muito dentro da prisão, hoje não mais. Foi política implantada: “não morre mais ninguém”. Acho que os linhas de frente dessa disciplina acreditam que se somos seres humanos somos capazes de conversar pra resolver, de dialogar sem que alguém tenha que morrer e alguém tenha que matar. Acho válido, a vida é muito preciosa. Obviamente existem ou-tras coisas a se considerar aí, dentro da hierar-quia do crime e tal.

E quanto à visão que os setores dominantes e em especial a mídia ainda tem do rap e do hip hop, como você avalia?

Os caras têm uma visão diferente mesmo do que nós somos e representamos. Porque o rap mete o dedo na ferida e o rap não tem destaque na televisão como o samba e o sertanejo justa-mente por isso, é uma visão política de esquerda. Então por exemplo eu que to preso e to fazendo rap às vezes sou tachado pela mídia como PCC. E eu não sou PCC, eu sou rapper. Meu nome é Dex-ter e eu sou rapper, eu canto rap.

Qual a previsão para ganhar a liberdade? Eu entro num lapso em fevereiro de 2011, lap-

so é o tempo que você tem pra entrar com os pe-didos de progressão do regime. Então to aguar-dando aí, na disciplina. A pena vai até 2037, minha cadeia é 38 anos e um mês. Obviamen-te que tirando 30 é o máximo. Mas é isso, to aguardando na disciplina, tamo aí com um pro-jeto “Dexter e convidados”, dia 10 de outubro a gente tá vindo com o show em Campinas.

Pra encerrar você podia falar algo sobre o papel da sua família durante esse período que passou preso.

Foi muito importante na minha ressocializa-ção, acho que a gente depende disso, dos fami-liares e dos amigos. A minha esposa foi impres-cindível pra minha retomada, até mesmo no rap. Patrícia é uma mulher maravilhosa, me ajudou muito, é uma guerreira que mesmo com os pés sangrando vem trilhando essa caminhada comi-go, firme e forte. Isso se estende à minha mãe, minhas irmãs, enfim, pessoas que sempre me es-tenderam a mão. Família é imprescindível pro presidiário, se você é abandonado, as perspecti-vas de coisas boas se tornam remotas.

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eles eram apenas cinco em 1911 e hoje são cerca de 400. Os Kuntanawa foram ex-terminados no início do século 20 com

o avanço da extração da borracha, durante as perseguições armadas aos povos indígenas que acompanharam a abertura e a instalação dos se-ringais em todo o Acre. Os Kuntanawa não falam mais a sua língua indígena, pertencente ao tron-co linguístico Pano. Agora todos falam o portu-guês. Sua cultura praticamente desapareceu.

“Nós somos a prova viva de que é possível er-guer uma nação, trazer de volta aquilo que foi esquecido”, afirmou Haru Xinã Kuntanawa, em-baixador mundial da paz pelas Nações Unidas. Haru é uma jovem liderança indígena de 28 anos e pertence à etnia Kuntanawa. Líder de 11 et-nias dos povos Pano, José Flávio do Nascimento (nome de registro) atua na Organização dos Po-vos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ) e tomou para si a importante missão: levar de volta à casa o seu povo, fortalecer os valores culturais e lin-guísticos dos Kuntanawa e promover o resgate de seus rituais sagrados há muito tempo perdidos.

“Acreditei que era possível e tenho certeza, mais do que nunca, que o meu povo erguerá a sua história novamente”, confia Haru ao lembrar o recente passado marcado pela matança de seus parentes. “Me traz um sentimento de tristeza. É algo muito recente, não tem nem um século que passou o massacre de 1911. Hoje temos um pou-co mais de 300 Kuntanawa e o meu objetivo é juntar o nosso povo de volta para casa”.

Eles são uma etnia em reconstrução em to-dos os sentidos: a língua, a pintura corporal, os cantos, rituais sagrados com uso de medicinas da floresta e o sentimento de pertencimento à sua terra.

No final de julho, diversos povos do tron-co Pano se reuniram na aldeia Kuntamanã, no Acre, neste que foi um primeiro movimento de

mobilização e revitalização de suas tradições. Na semana do 26 ao 31 de julho, os Kuntana-wa realizaram o seu primeiro festival cultural, o “Corredor Pano”. Neste que foi um encontro para um momento de auto afirmação de sua unidade em meio às diferenças étnicas, estavam todos lá: Huni Kuin, Yawanawa, Shanenawa, Shawãda-wa, Jaminawa, Nukini, Marubo e Katukina. To-dos eram convidados e protagonistas do que se-ria o grande encontro dos povos de língua Pano. Foram seis dias de atividades de confraterniza-ção, rodas de ‘mariri’ no terreiro (dança indíge-na), brincadeiras, cantos, pescaria, troca de pre-sentes e rituais sagrados com o consumo de rapé e ‘yahuasca’, o cipó da Amazónia bebido de for-ma ritualística pelos povos do Acre.

“Quando os povos se juntam, têm uma força grande para recuperar e fortalecer as suas tradi-ções. Temos todos uma história compatível dos povos”, salienta Haru. À beira do rio Tejo, na Re-serva Extrativista (Resex) do Alto Juruá próxi-mo à fronteira com o Peru, reuniram-se naqueles dias 200 pessoas, entre indígenas e convidados ‘brancos’, brasileiros e estrangeiros.

É através do contato com as etnias vizinhas do tronco Pano que se traçou a estratégia de re-constituir a língua de seu povo por meio de ou-tras similares. Os esforços de reconstrução da lín-gua têm sido empreendidos também por meio de fragmentos ainda vivos na memória da matriar-ca do grupo e de canções ‘ayahuasqueiras’ du-rante os rituais sagrados.

A terrAReafirmar o sangue indígena passa também

pela conquista de um território próprio. A de-marcação da terra é uma das grandes causas que os Kuntanawa abraçam e que estão se preparan-do para enfrentar. O desafio é que a área de 80 a 100 mil hectares de terra que este povo rei-vindica está inteiramente sobreposta pela Reser-va Extrativista do Alto Juruá, onde inclusive os Kuntanawa são um dos principais responsáveis pela criação.

“Estamos lutando pela demarcação da nossa terra. Estamos dentro de uma reserva que foi cria-da pelo nosso povo na década de 80 para 90, quan-do houve a proposta de criação dessa reserva. Aqui

Povo indígena no Acre, considerado extinto, ressurge a partir de seus descendentes misturados com “brancos” e hoje luta pela demarcação de suas terras no estado.

Kuntanawa, um povo em reconstrução

Índios dançam Mariri no encontro indígena na aldeia Kuntanawa.

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era dominado pelos patrões com trabalho forçado indígena”, explica Haru ao afirmar que seus ances-trais têm as suas raízes naquelas terras.

Contudo, “o modelo de reserva extrativista não é o modelo adequado para os povos indíge-nas”, argumenta a liderança. “Nós estamos rei-vindicando, mas essa terra a gente já considera demarcada. É a terra Kuntanawa. Temos raízes plantadas nessa terra. Estamos esperando o mo-mento oficial da demarcação pelo governo brasi-leiro”, defende. “O que nós queremos é proteger, chamar a atenção para a consciência ecológi-ca”, promete.

O esforço de demarcação já vem de 2001, com a reivindicação apresentada à Fundação Nacio-nal do Índio (Funai). Em 2003, o povo Kuntana-wa obteve o apoio público do Conselho Indigenis-ta Missionário (Cimi) e da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj) para garantir que os Kuntanawa sejam reconhecidos enquanto tais e tenham a sua área indígena demarcada.

Foram eles que ajudaram a fundar a reserva extrativista, no início da década de 90. Hoje, no entanto, discordam sobre o usufruto dos recursos naturais e minerais e passaram a agrupar-se em torno do local onde se situa o agrupamento prin-cipal, a aldeia Kuntamanã, conhecida pelo anti-go nome ‘Sete Estrelas’.

Primeira reserva extrativista a ser criada no Brasil, a Resex do Alto Juruá tem uma área de 506 mil hectares. Os indígenas reivindicam o equivalente a quase um quinto da área da reser-va. No ano de 2008, o Ministério Público Fede-ral no Acre ingressou com ação civil pública para obrigar a Funai e a União a procederem a demar-cação e o registro das terras, localizadas na re-gião do rio Tejo, próximo à vila de Restauração com cerca de 130 casas, pertencente ao municí-pio de Marechal Thaumaturgo.

Ciente que um processo de demarcação pode levar cerca de 10 anos ou até mais e gerar um debate polêmico na sociedade, Haru, em nome de seu povo, garante estar preparado: “Eu estou preparado de espírito, corpo, alma e coração para lutar por essa terra, proteger, manter e resgatar. Também já ganhamos novos aliados”, promete.

Perigo dA AmAzôNiAO maior perigo da Amazônia hoje é o desma-

tamento, garante Haru, principalmente na reser-va extrativista. Este tem sido um motivo de pre-ocupação por parte dos moradores da reserva. “Muitos não índios vieram de fora e o gado é um grande perigo”, critica o Kuntanawa ao reclamar da intensa presença de ‘brancos’ na reserva que estão explorando de uma forma irresponsável os recursos da floresta.

Num apelo para a recuperação da floresta, pe-quenas iniciativas próprias já estão surgindo en-tre os Kuntanawa. Projetos de reflorestamento que, apesar da falta de recursos e apoio, estão ga-nhando força, atingindo nativos da reserva e ad-quirindo um grande potencial.

É o caso de José Osmildo do Nascimento, pri-mo de Haru, que, aos 36 anos de idade e pouco estudo, dá o exemplo ao seu povo de como re-cuperar a mata e garantir a sua subsistência de forma sustentável.

“Os meus filhos já veem o meu exemplo e aprendem comigo”, disse Zé Osmildo que vive junto com sua esposa, Elisanete, de 28 anos, e seus dois filhos de 10 e 8 anos, Érica e Emerson.

“A terra é um paraíso. É maravilhoso viver na Amazônia. Aqui tem muito e de tudo”, confirma o indígena. É só saber aproveitar os benefícios da

floresta sem devastar. Zé Osmildo já refloresta há quatro anos. O seu incentivo foi o povo Ashaninka, uma das tribos mais organizadas do Acre, que o en-sinou a plantar diversas mudas de diferentes espé-cies de madeira e frutos, conta o Kuntanawa.

Na área onde vive, próximo à vila de Restau-ração, onde se concentra grande parte dos Kunta-nawa hoje, Zé Osmildo planta de tudo. Desde fru-tos como cupuaçu, biribá (chamado também de araticum ou conhecido por muitos de fruta-do-conde), uvalha, ananá, abacaxi, acerola, côco, la-ranja, caju, jabuticaba, graviola, fruta pão, além de citronela, milho, pupunha (palmeira nativa da região amazônica de onde se tira o palmito), bu-riti, e árvores de madeira de lei como mogno, ce-dro, cerejeira e copaíba.

O sonho de Zé Osmildo é levar o seu projeto a outras comunidades do Acre. “Quero ver o nosso povo forte, todos juntos de mãos dadas reflores-tando”, afirma. “Acho importante reflorestar, estou fazendo o bem para os meus filhos, o meu povo e para a natureza também que é a nossa mãe”, disse Zé. Com uma vida simples numa pequena casa de madeira à beira do rio Tejo, ele se diz feliz por ter a oportunidade de “cuidar da floresta”.

No tempo que a borracha “dava dinheiro”, re-lembra, não havia desmatamento. Mas depois do declínio da atividade, Zé Osmildo, assim como tantos outros nativos e não-índios, passaram a desmatar. “Senti que eu estava destruindo. Hoje eu tenho esse trabalho aqui com amor, eu traba-lho com amor e faz toda a diferença”.

Apesar de embrionária, a ideia de José Osmildo e sua família está surtindo efeito. Eles já ganharam incentivo da prefeitura de Marechal Thaumatur-go e sua produção já é comercializada na vila de Restauração. Mas as dificuldades são ainda gran-des, confessa. “O recurso é pouco, não tem ener-gia, a gasolina é cara e falta equipamento para a gente trabalhar. Estou por conta própria”.

As distâncias na reserva são grandes e tudo é feito através de rios. Neste período de seca, uma das maiores registradas nos últimos 20 anos, le-va-se cerca de 10 horas de barco da vila de Res-tauração até o Marechal Thaumaturgo, o muni-cípio mais próximo.

Sem saber escrever, Zé Osmildo trabalha com o apoio de sua esposa que faz todos os relatórios de plantio de mudas e calcula o tempo de cada cultivo. A falta de ajudantes impede que o reflo-restamento seja ampliado. “Não damos conta do serviço”, resume.

Todos os dias após a escola, seus filhos aju-dam a reflorestar e a cuidar das mudas até tor-narem-se árvores. Esse é o maior legado que Os-mildo quer deixar para os seus filhos: “Daqui a algum tempo na reserva extrativista só vai haver fazenda e criadores de gado desmatando. Hoje em dia nós temos que cuidar da nossa floresta que está em pé. É a nossa vida e é ela que dá o ar para respirarmos todos os dias”.

Fabíola Ortiz é jornalista.

Índios dançam Mariri no encontro indígena na aldeia Kuntanawa.

Indígena com rosto pintado de urucum.

Indígena com plantas medicinais.

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Quando, em 1743, Moshe Mendelssohn entrou ainda jovem em Berlim, pelo portão destinado a vacas, burros e judeus, isso foi o início de um florescimento cultural excepcional, de 200 anos, com pontos altos na ciência, na arte, na música. Essa árvore, porém, foi cortada quando Hitler as-sumiu o governo na Alemanha.

Moshe Mendelssohn, Heinrich Heine, Sig-mund Freud, Hannah Arendt e Albert Einstein, Felix Mendelssohn-Bartholdy, são alguns nomes que simbolizam muitas pessoas bem dotadas e gênios judaicos que contribuíram para a cultura alemã. Isso chegou ao fim com o assassínio em massa e a queima de milhões de livros, além do que foram igualmente executados os que distri-buíam e divulgavam esses livros.

Mas as obras não são prova da superioridade judaica. Quanto mais nos aprofundamos a respei-to desse fenômeno de emigração, quando vários grupos de estrangeiros chegam a um lugar, nota-mos que as dificuldades que enfrentam no novo país é que deram motivação a eles para se inte-grarem da maneira mais rápida possível.

Palestinos rePetem os judeus Quando terminou o mandato britânico na Pales-

tina em 1948, e a guerra começou a partir daí, tudo isso levou centenas de milhares de árabes palestinos a fugirem, deixando os limites do cessar-fogo, que já ampliavam as fronteiras de Israel bem além do que havia sido determinado pela ONU. A maioria desses palestinos acabou permanecendo até hoje, enquanto seu número triplicou, nos campos de refugiados, lon-ge das fronteiras, na Jordânia, Egito, Síria e Líbano.

Os poucos que tinham meios financeiros con-tinuaram a sua fuga rumo à Europa, Estados Uni-dos, Canadá e América do Sul. Foram chamados “os judeus da Diáspora do século 20”. Seus filhos vieram a assumir posições de liderança no campo intelectual, como escritores, artistas, economis-tas, professores de universidades bem conheci-das, diretores de departamentos em hospitais nas mais importantes capitais do mundo.

minoria árabe em israelO destino dos palestinos que preferiram ficar

em Israel foi se tornar uma minoria étnica, víti-ma de perseguições e de leis discriminatórias nos campos econômico, social e cultural. Mas esses palestinos também não ficaram inertes, aceitan-do o seu destino – hoje estão também exercendo papéis importantes nas universidades, nos hospi-tais, na literatura, na poesia, no teatro, no cine-ma, nas artes plásticas, nas cidades centrais de Israel, onde recebem importantes prêmios. O es-critor árabe israelense Emil Habibi ganhou em 1994, pouco antes de falecer, o Prêmio de Israel, o mais importante do país.

Os primeiros pioneiros de origem judaica che-garam no fim do século 19 para trabalharem em fazendas que o barão Hirsch comprou de efêndis turcos e de palestinos proprietários. Desde o iní-cio do século 20 começaram a chegar os sobre-viventes do pogrom de Kichinev, na Ucrânia; de aldeias de nomes esquecidos na Rússia tzarista, e vítimas do antissemitismo na Polônia.

emigração da alemanha nazista

Esses imigrantes judeus chegaram à Palestina em meados da década de 1930, fugindo do Tercei-ro Reich de Hitler. Entre eles, diferentemente das levas anteriores, compostas de pessoas comuns, estavam alguns dos mais importantes intelectu-ais da Alemanha. Também não foram recebidos pela comunidade judaica de então na Palestina com flores, bem ao contrário.

Os judeus autóctones os trataram como infe-riores, os chamavam pejorativamente de “iekes”, ou “jaquetas”, porque os judeus alemães usavam jaquetas abotoadas até o pescoço mesmo em dias de calor sufocante. Eram professores, cirurgiões famosos, juízes, artistas, que, por causa das leis britânicas, não podiam exercer suas profissões e tinham de, por exemplo, vender cachorro-quen-te na rua, trabalhar na construção civil ou como mensageiros.

Os líderes intelectuais dessa imigração alemã fundaram o movimento Aliança de Paz, para tra-tar os palestinos como aliados na luta contra o ocupante britânico. Foram ignorados e humilha-dos pela liderança de David Ben Gurion, que dis-se: “Vocês não conhecem os árabes, virem para eles as costas e vocês serão apunhalados”. Foi ele que comandou a Realpolitik... Essa imigração vi-rou também uma minoria perseguida.

sobreviventes do holocaustoNem os refugiados dos campos de extermínio e

que bateram nos portões da Palestina foram rece-bidos com tapete vermelho pela comunidade judai-ca. Os judeus da Polônia foram chamados “Polnis-chen Dripcke” (“os poloneses que se acotovelam”); suas jovens foram chamadas de “prostitutas polo-nesas”. Com os judeus da Romênia foi pior, foram chamados de “Romanishe Ganef”, ou seja, “ladrão romeno”, tratados como minoria rebaixada.

a chegada dos sefardinsUma multidão de judeus dos países árabes

chegou imediatamente durante a Guerra de 1948, na maioria marroquinos. O pejorativo deles foi o mais vergonhoso: “faca marroquina”, todos eles marginalizados, de baixa renda. A minoria ju-daica marroquina que tinha dinheiro preferia ir para a França.

Em 1959, os sefardins, em pleno regime do Partido Trabalhista, se revoltaram no Vale do Sa-lib, um bairro central da parte baixa de Haifa, no passado um bairro árabe bem antigo, datado de logo depois que os Cruzados partiram da Pales-tina, após séculos foi esvaziado por terem fugido em massa os árabes muçulmanos, assim que o jo-vem Exército de Israel lá entrou. Suas casas foram declaradas propriedades abandonadas e incorpo-radas ao Estado. Essas casas, bem arruinadas pela guerra, foram dadas a esses novos imigrantes se-fardins, depois que foram desfeitos os acampa-mentos de tendas onde haviam sido recebidos.

A pobreza, a falta de perspectiva, a ausência

Gershon Knispel

Sefardins nos campos de tendas Soldada Abergil com suas vítimas humilhadas O levante no Vale SalibOs líderes dos Panteras Negras de Israel contrariam a maioria que foram para a

direita e eles se juntaram com o PC do Israel e viraram membros do parlamento

À Procura de uma identidade

Sefardins nos campos de tendasSoldada Abergil com suas vítimas humilhadasA chegada dos sobreviventesO levante no Vale SalibProfessores e médicos viraram mensageiros de ruaA chegada na velha-nova pátriaO menino dos judeus da Etiópia descriminadoOs líderes dos panteras negras de Israel contrariam a maioria que foram para a direita e eles se juntaram com

o PC do Israel e viraram membros do parlamento

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de infraestrutura de saúde, sanitária e educacio-nal, foram os motivos do início do grande levan-te dos sefardins contra o establishment.

Isso foi o detonador da grande explosão dos outros centros de judeus marroquinos em todo o país. As chamadas “cidades em desenvolvimen-to” foram localizadas num afastamento total em relação às regiões centrais de Israel, no deserto do Negev, no Sul do país, como as cidades de Dimona e Jerucham, Arad, Kiriat-Gat, Aschdod e ainda Carmiel, Alta Nazaré, Migdal-Haehek e Maalot, no Norte, na Galiléia, onde havia a maioria de árabes. Os judeus marroquinos eram assim tratados como eram tratados antigamente os leprosos, isolados e tornados miseráveis.

Já os kibbutzim – aldeias coletivas, uma ex-periência inicialmente socialista, algumas dé-cadas depois de sua criação, não podiam mais sobreviver só com a agricultura e instalaram in-dústrias, onde foram trabalhar esses grupos de imigrantes humilhados com um salário abaixo do mínimo por serviços que os filhos dos fun-dadores dos kibbutzim não queriam mais exe-cutar. Essa foi a primeira queda deixando o so-cialismo atrás.

O choque causado pelas revoltas dos judeus orientais afetou tanto a opinião pública que co-missões de inquérito foram criadas, mas, orien-tadas pelo governo, elas concluíram que essas minorias judaicas orientais eram como a “gera-ção do deserto”, que precisaria de quarenta anos, como no tempo de Moisés, de purificação para deixar de ser “uma escória”.

Dali em diante, os judeus europeus foram ficando em melhor situação e os judeus orien-tais em piores condições, de modo que as de-sigualdades aumentaram. A cultura dos sefar-dins empobreceu, cheios de raiva e de inveja, até que a coisa explodiu novamente em março de 1971, no antigo bairro árabe de Musrara, na divisa de Jerusalém Ocidental com Oriental. O bairro havia sido abandonado pelos árabes du-rante e após as Guerras de 1948 e 1967 e foi tomado por judeus marroquinos, iraquianos e outros orientais.

Essa crise eclodiu ao mesmo tempo em que chegavam os primeiros judeus vindos da União

Soviética, com muitas facilidades do governo de Israel. Os judeus orientais, revoltados, ad-quiriram o renome de Panteras Negras israe-lenses. Mais que isso, desenvolveram um cres-cente ódio que permanece até hoje, após três e quatro gerações.

E a agitação social e política lembrava a Re-pública de Weimar da Alemanha dos anos 1920, com seu lumpemproletariado atirado aos braços da oposição nazista. Os judeus orientais também foram jogados na mão dos extremistas de direi-ta, como Menachem Begin. Seis anos depois, Be-gin podia alcançar seu grande sucesso inespera-do, ao derrotar o histórico Partido Trabalhista que Ben Gurion havia fundado.

Esperava-se que justamente os judeus origi-nários dos países árabes fossem mostrar solida-riedade com a minoria árabe israelense, seja pela língua árabe comum, seja por terem a mesma cultura e gastronomia desenvolvidas na chama-da Era de Ouro em que judeus e árabes eram ir-mãos, na glória e no sofrimento; até a cultura e gastronomia comum a judeus orientais e árabes foram desprezadas pelos judeus europeus. Mas aconteceu o contrário: xingados como “piores do que os árabes tão odiados” pela comunidade asquenazi, eles queriam se livrar dessa mancha. Os judeus orientais viraram as costas para os árabes israelenses e palestinos, com ódio cres-cente, até hoje.

Exemplo disso, gritante e atual, é exibido em um escândalo que chocou o mundo inteiro, a pu-blicação de fotos da ex-soldada Eden Abergil, de origem marroquina, posando arrogantemen-te junto a árabes amarrados e com olhos ven-dados, declarando: “Gostaria de matar os árabes e até destroçá-los. Eu odeio os árabes, desejo a eles tudo de pior”, diz em seu site.

O mais impressionante é que essa minoria judaica oriental se tornou a maioria em Isra-el, por causa das diferenças das respectivas ta-xas de fertilidade, e muitos dos sefardins assu-miram postos de relevo, inclusive o de chefe do Exército, de generais, ministros e parlamentares (formam quase a metade do Parlamento). Orga-nizaram até um Partido Sefardim, o Shas, um partido-chave para formar coalizões governa-

mentais. Nos últimos dias, o mundo inteiro fi-cou sabendo que o líder espiritual do Shas, rabi-no Ovadia Yosef, 89 anos, fez uma provocação inimaginável até pouco tempo, três dias antes do encontro de Netanyahu com Abbas, o dirigen-te da Autoridade Palestina. Yosef declarou num sermão pelo rádio: “Abu Mazen (outro nome de Abbas) e todas essas pessoas malignas deveriam desaparecer da Terra”. Acrescentou que Deus de-veria enviar uma praga contra os palestinos.

Mas os sefardins não se livraram da pecha de serem considerados inferiores aos asquenazis. Isso se agrava, e muito, no caso dos judeus da Etiópia, cuja terceira geração está entrando nas escolas, universidades e no Exército, mas são negros. Ainda não se deixa misturar nas escolas esses filhos da imigração com os judeus brancos, por causa da revolta dos pais deles.

Nos dias que correm, a Suprema Corte de Is-rael está lidando com a questão de que os judeus ortodoxos não querem misturar em suas escolas os asquenazis e sefardins.

ePílogoEssa realidade nua e cruel que estamos en-

frentando, de que os partidos neonazistas e ne-ofascistas que estão crescendo como cogumelos depois da chuva, na Europa unida, nos países que no passado não muito distante eram vis-tos como liberais e abertos, onde ficam cada vez mais ruidosos os gritos de fechar as portas aos novos imigrantes e de expulsar os antigos, na Escandinávia, Holanda, Bélgica, França, Grã-Bretanha e Alemanha, essa é uma realidade de mortos que acordam de novo.

Outra notícia que deixa uma grande inter-rogação: um dos princípios básicos que levou a fundar o Estado de Israel, fundado como Estado judeu para os judeus da Diáspora: perto de 1,5 milhão de cidadãos judeus israelenses, 30 por cento da população total, já estão radicados nos EUA. A emigração a partir de Israel é maior do que a imigração para lá.

No próximo artigo: “síndrome da imigração afetando o mundo inteiro”.

Rabino Ovadia Josef - chefe do rabinato de Israel (1972-1983)

que defendeu a devolução das terras aos palestinos na

fundação do Partido SHAS em 1990

A chegada dos sobreviventes

Gershon Knispel é artista plástico.

Professores e médicos viraram mensageiros de ruaO menino dos judeus da Etiópia descriminado

Sefardins nos campos de tendasSoldada Abergil com suas vítimas humilhadasA chegada dos sobreviventesO levante no Vale SalibProfessores e médicos viraram mensageiros de ruaA chegada na velha-nova pátriaO menino dos judeus da Etiópia descriminadoOs líderes dos panteras negras de Israel contrariam a maioria que foram para a direita e eles se juntaram com

o PC do Israel e viraram membros do parlamento

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uma mulher das minas, dona de casa e com pouca escolaridade desafiou a dita-dura militar em seu país na década de

1970, os preconceitos da comunidade internacio-nal e principalmente os seus próprios medos. O ano era 1975, quando a boliviana Domitila Bar-rios de Chungara, dirigente sindical do Comité de Amas de Casa del Distrito Minero Siglo XXlI, foi enviada à conferência mundial do Ano Interna-cional das Mulheres, na Cidade do México, com a missão de denunciar os massacres e a violação diária dos Direitos Humanos nas minas da Bolí-via. Trouxe a público, por exemplo, o massacre de San Juan, em 1967, quando o ditador René Bar-rientos ordenou o ataque do exército contra as comunidades mineras de Catavi e Llalagua. De-zenas de trabalhadores foram mortos, e Domitila, que estava grávida, foi presa e torturada até per-der seu filho. Seu discurso calou o público elitis-ta da conferência e entrou para a história. A edu-cadora brasileira Moema Viezzer estava presente, entendeu a importância do que ouvia e gravou tudo o que disse a líder sindical boliviana. O de-poimento resultou no livro “Si me permiten ha-blar” que conta um pouco da história e das con-dições sociais das minas, que enriqueceu tantos

países, mas que só deixou miséria e monções de pobreza ao povo boliviano. O livro foi traduzido em todos os idiomas e a trajetória de luta de Domi-tila Chungara correu o mundo. A coragem e for-ça dessa mulher foi tão grande que, no Natal de 1978, foi a La Paz, com mais quatro mulheres lu-tar pelos direitos que seus maridos, que, por tra-balharem até a exaustão, não tinham tempo nem energia para lutar.

Juntas, essas cinco mulheres e uma penca de fi-lhos, saíram de suas casas dizendo que iriam der-rubar a ditadura. Era difícil de acreditar. Foram às ruas e iniciaram uma greve de fome. Um sacer-dote se juntou a elas. Mas derrubar uma ditadura ainda faltava muito. No entanto, mais pessoas se juntaram à causa e em pouco tempo tinham mais de 1.500 pessoas. Depois de algumas horas, a no-tícia correu e os manifestantes pacíficos já eram milhares. 23 dias depois das cinco bravas mulheres começarem a greve de fome, as ruas, as diferentes cidades da Bolívia foram ocupadas por manifes-tantes. Outro governo militar chegava ao fim.

Mesmo doente, Domitila Chungara aceitou nos receber no hospital cubano de Cochabamba, onde estava internada há mais de 10 dias. Confira agora a entrevista exclusiva concedida pela ex-líder sin-

dical, hoje com 73 anos, já com o corpo cansado e maltratado pela vida, mas com uma mente bas-tante lúcida e um senso crítico apurado.

Fania Rodrigues – Pode nos contar um pouco de sua trajetória e como surgiu a idéia de publicar um livro?Domitila –Em 1975 foi realizada, no México, a Tribuna del Año Internacional de la Mujer. Essa foi a primeira vez que participamos de uma con-ferência mundial. Como diziam que era um even-to que representava mulheres de diferentes po-vos pensei que iria encontrar camponesas, donas de casas, mulheres trabalhadoras e pobres. Entre-tanto, não foi assim. As mulheres presentes eram quase todas com formação acadêmica e comple-tamente diferentes de nós (bolivianas), donas de casa e mulheres das minas. Enviada pelo Sindi-cato de Mineiros, do qual pertencia, minha tare-fa era denunciar o que acontecia nas minas: os salários injustos, as precárias habitações e a in-suficiência de alimento para nossos filhos, que quase nunca tomavam leite. Aproveitamos a tri-buna para denunciar tudo isso. Mas os organiza-dores e participantes dessa conferência não es-tavam interessados em nossos problemas sociais.

Por Fania Rodrigues

Guerreira

da paz

entrevista Domitila Barrios De Chungara

“Recordo-me de uma assembléia de tra-balhadores, nas minas da Bolívia, já faz um tempinho, mais de 30 anos: uma mulher lançou-se entre os homens e perguntou qual é nosso inimigo principal. Escutaram-se vozes que respondiam: ‘o imperialismo’, ‘a oligarquia’, ‘a burocracia’… E ela, Domitila Chungara, esclareceu: ‘Não, companheiros. Nosso inimigo principal é o medo, e o leva-mos dentro de nós.’ Eu tive a sorte de escu-tá-la. Nunca esqueci.” Eduardo Galeano

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Quando chegou minha vez de falar na tribuna to-dos começaram a gritar dizendo que meu discur-so era político e que o que nós estávamos fazen-do era nada mais que política. Mas, do que mais poderíamos falar se essa era a nossa realidade? Nesse momento, também percebi que tinha uma mulher gravando tudo o que eu falava, tratava-se de Moema Viezzer. Depois do evento, fui visi-tar uma comunidade de bolivianos na Cidade do México. Era 6 de agosto, data do nosso aniver-sário pátrio (Dia da Pátria) e havia uma come-moração. Encontrei-me com Moema novamente nesse dia. Conversamos e depois disso estabe-leceu-se então uma amizade. Visitamos alguns bairros bolivianos e Moema seguia gravando. Por fim, ela me disse: “Domitila tudo o que dis-se aqui é muito lindo. Eu gostaria de fazer um documento e enviar ao seu sindicato para mos-trar como foi bem representado.” No entanto, re-sultou que tudo o que havia gravado, depois de transcrito, totalizou 800 páginas. Então nasceu a idéia de escrever um livro. A embaixada cuba-na no México se propôs a publicar as 800 pági-nas na íntegra. Publicamos e ganhamos um prê-mio com esse livro. Nessa mesma época a Editora Século XXI nos propôs que fosse reduzido a 200 páginas. Eles queriam publicar o livro em todos os idiomas. Nesse momento (década de 1970), vi-víamos uma ditadura militar na Bolívia, não tí-nhamos liberdade para nada e era preciso contar ao mundo o que se passava no nosso país. En-tão, decidimos pela proposta da Século XXI. Re-duzimos o livro e publicamos.

Essa foi primeira vez que uma mulher das minas, camponesa e de origem indígena foi escutada em uma conferência mundial. Foi difícil quebrar as barreiras e preconceitos?

Para mim, não foi muito difícil, porque tive a ajuda do meu pai. Ele me tirou esse comple-xo de ser mulher. Sempre me disse que homens e mulheres podem fazer as mesmas coisas. Minha maior dificuldade era falar para o público. Quan-do não sabemos, temos medo. Mas, no transcor-rer da vida, se vai aprendendo e isso vai te dando mais segurança. É um aprendizado diário, tanto dos povos, quando dos dirigentes.

Seus pais de onde eram? Em que trabalhavam?

Meu pai foi camponês, era do município de Toledo, Departamento de Oruro. Ele lutou na Guerra do Chaco, contra o Paraguai. Quando regressou à casa, depois do fim dos conflitos, sua mãe estava morta, suas coisas haviam de-saparecido. Então, foi às minas buscar traba-lho, fazer dinheiro e voltar a sua região. Mas, nunca pode voltar, porque a promessa de ri-queza que faziam os patrões era mentira. Se prometiam pagar 10 bolivianos, depois de es-tar trabalhando pagavam 5 bolivianos. Então, eram só dívidas. Porque a empresa fornecia os alimentos e 70% do que ganhava um trabalha-dor era descontado em despesas alimentares. Além disso, os alimentos eram muito pouqui-

nho e de má qualidade. Como nunca sobrava dinheiro para comprar mais comida, os traba-lhadores sempre estavam devendo à empresa, e quando havia reclamação ou protestos reali-zavam os massacres. Desde 1923 que existem massacres contra os trabalhadores das minas, como o de 1942 e o de 1965. Principalmente a Século XX, que era a maior mina da Bolívia, realizou muitos massacres.

Atualmente há minas em funcionamento na Bolívia?

Sim, existem. Mas, são outros setores que es-tão voltando a abri-las. Hoje há pessoas que tra-balham por sua conta, independentes. Mas as em-presas como existiam antes estão em ruínas.

Gostaria de mudar um pouco de tema para falar do cenário político na Bolívia. Quais foram as mudanças depois da vitória de Evo Morales, em dezembro de 2005?

Nesse momento, a Bolívia está caminhando em direção às mudanças que tanto buscamos há mui-tos anos atrás. Alguns falam de 500 anos, outros de 200 anos e há outros que falam de 10 anos. Mas, eu acredito que todas as vezes que lutamos contra as injustiças, os salários injustos, a falta de alimentos corretos, por uma educação para nossos filhos, por saúde, em todas essas lutas, estávamos buscando as mudanças que vemos agora na Bo-lívia. Pela primeira vez, estão apresentando uma real oportunidade de mudança. Antes, somente os mineiros estavam lutando. Havia nossa central de trabalhadores com quem podíamos fazer muitas coisas, inclusive derrubar ditaduras. Mas depois que entramos no século 21, essa central de traba-lhadores quase desapareceu, porque incluíram tra-balhadores de todos os setores, não somente das minas. Decretaram que o patrão tem o direito à “livre contratação” de seus trabalhadores (contra-tos temporários) e, com isso, milhares de operá-rios perderam seus postos de trabalho. Se você an-dar pelas ruas, seguramente no Brasil acontece o mesmo, vai ver crianças que pedem nas ruas, que não têm família, que dormem debaixo das pontes. Isso foi parido pelo neoliberalismo, porque obri-gou os pais de família deixarem o país para procu-rarem trabalho na Argentina ou em outros luga-res. Enquanto isso, a mãe e os filhos ficaram sem casa. Essa foi a pior situação que vivemos na Bo-lívia. E, ansiávamos por mudança. Com Evo con-seguimos, pela primeira vez, unir todos os povos. Foi com a candidatura de Evo que tivemos a opor-tunidade de dialogar e conhecer os indígenas que sempre escutamos falar.

O governo do presidente Evo Morales sofre algumas críticas por muitas vezes concentrar o poder.

Antes de qualquer coisa, gostaria de desta-car a importância desse processo de mudanças. Depois explicar que o MAS (Movimento al So-cialismo), ao qual pertence Evo Morales, nasceu há dez anos e não se trata de um partido polí-tico, mas sim um movimento. E em um movi-

mento entra todo tipo de gente. Porque se fosse um partido e tivesse uma ideologia... esse seria o caminho. Alguns colaboradores (integrantes do MAS) estão fazendo as coisas bem, mas outros só estão tirando proveito da situação (em que o MAS está no poder). Por isso é que eu digo que estou de acordo com o que está fazendo o pre-sidente. Ele tem um caráter bem forte, uma con-duta firme. Também tem alguns colaboradores muito bons. Agora, esse é um momento de defi-nição. Por isso, todos, de todos os lados, temos que ajudar. Um exemplo: o governo doa um ter-reno para que seja construído um galpão para a escola. Contrata-se uma empresa e nunca nin-guém vai ver se a construção é de boa qualida-de, se os materiais utilizados são adequados e em três meses o galpão está caindo. Então diz: “porque o presidente nos enganou...” Mas eu me pergunto: onde estavam os pais de famílias que não se organizaram e não fiscalizaram quan-to e como o cimento foi gasto? Há muita fal-ta de compromisso pessoal. Tem que fiscalizar. Tem que ajudar. Essas são algumas das dificul-dades que enfrentamos, por um lado. E, por ou-tro lado, também temos a oposição, que estava com planos de dividir nosso país. Estava trazen-do mercenários para fazer uma guerra civil. Es-ses mercenários que encabeçavam (os conflitos) são pessoas que estiveram na Bósnia (na guerra) e em muitos lugares, atuando nisso. Algumas vezes, já surpreenderam o exército boliviano e houve enfrentamento. Agora, está acontecendo um julgamento e se está descobrindo que todos esses ricachones (o contrario de pobretones – pobretões) estão metidos nesses conflitos.

A senhora está se referindo ao movimento pela independência de Santa Cruz?

Sim. Mas, não somente de Santa Cruz, mas também querem tornar independente os departa-mentos (equivalente a estado no Brasil) de Sucre, Tarija, Beni e Pando.

Bolívia teve seus territórios roubados de tantas formas e ainda estão tentando dividi-la?

Sim, e a maioria dessas pessoas que pedem in-dependência é estrangeira. O empresário croata (Branko) Marinkovic é uma dessas pessoas inte-ressadas na subdivisão do território boliviano. Ele até cercou uma lagoa para que a população não se aproximasse, como se fosse dono da lagoa. Ma-rinkovic foi acusado pela Fiscalía (promotoria de justiça) boliviana como cúmplice e financiador de uma célula terrorista desmontada em abril de 2009. Segundo a justiça da Bolívia, o croata planejava um atentado contra o presidente Evo Morales.Como mudar o sistema de poder que sempre teve o domínio das oligarquias políticas?

O melhor que fizemos pelo nosso país foi apro-var a nova Constituição. Se ela for aplicada à Bo-lívia, há de ser muito melhor. Mas sim, eles ainda têm muito poder e continuam cometendo fraudes. Em Beni, nas últimas eleições, o MAS tinha uma candidata mulher a governadora. E na contagem de votos, quando abriram a urna onde ela tinha

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votado não havia um único voto para o MAS. Isso nos mostra que estão cometendo fraudes. Isto foi denunciado e estão pedindo anulação das eleições nesse departamento.

Qual seria a solução para acabar com esse tipo de corrupção?

Sabemos que essa briga não é apenas entre os bolivianos. Existe muitos interesses internacio-nais, como os do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, dos países imperialistas e dos ricachones. Espanha sempre levou nosso petróleo praticamente de presente. Considerando que nos-sos países, tanto Brasil quando Bolívia, são ricos em recursos naturais, então pode-se entender os interesses dessa gente, porque nos países europeus já não há quase nada.

Mudando um pouco de tema. Neste ano a Bolívia comemorou os 10 anos da Guerra da Água, em Cochabamba. Que consequências políticas teve essa luta?

No ano 2000, o governo estava privatizan-do todos os serviços públicos e entregando nos-sas riquezas naturais às empresas estrangeiras. No bairro onde vivia, em Cochabamba, não ha-via água encanada. Eu tinha que comprar da cis-terna, que muitas vezes fornecia água suja. Mas a gente não tinha outra opção, então consumíamos daí. Um galão de 20 litros custava mais ou me-nos quatro bolivianos (o equivalente a R$ 1,14). Um dia recebo um boleto dizendo que estava de-vendo 70 bolivianos (R$ 20) de água. Quando perguntamos aos vizinhos ficamos sabendo que todos haviam recebido seus boletos e estavam de-vendo 70, 80 e alguns 100 bolivianos (R$ 30). A gente se perguntava de que água estavam se re-ferindo. Então descemos para a cidade para re-clamar e quando chegamos na empresa já ha-via muita gente fazendo o mesmo. A justificativa que nos deram foi que essa empresa estrangei-ra necessitava de capital para instalar a rede de água nos bairros. Mas, como a gente podia pa-gar se não havia uma gota de água? Foi então que começaram os protestos e as mobilizações. Todos os dias haviam pessoas nas ruas reivindi-cando seus direitos. O governo enviou o exército, houve enfrentamento e mortes. No final, a cida-de inteira de Cochabamba mobilizou-se. Também foram enviadas tropas especiais, conhecidas po-pularmente por “os dálmatas”, devido a seus uni-formes de cor branca com manchas negras. Com isso, os conflitos tornaram-se ainda mais violen-tos. As ruas foram bloqueadas pelos manifestan-tes e toda a cidade parou. Nos bairros de classe média alta nos jogavam bolsas com água, mas fa-zia tanto calor que para nós isso já não era um in-sulto, mas “solidariedade”. Então, esse foi o início de uma nova luta, uma luta de todo o povo. Nos-sa central de trabalhadores, que estava enfraque-cida, ganhou forças novamente depois desse pro-blema da privatização da água. O povo percebeu que podia unir-se, não se importam com as balas e com nada. Depois da Guerra da Água, tivemos a Guerra do Gás, em 2001, dessa vez em La Paz.

Foram muitas mobilizações que resultaram na re-núncia do presidente da Bolívia.

Em Cochabamba, as pessoas têm a cultura de ir à praça central discutir política, todos os dias. Muita gente sai de seus trabalhos no final do dia e antes de ir para a casa vai à praça ouvir, falar e discutir a política. Vi um povo politizado e organizado. E depois de estar na Bolívia um tempo percebi que nós brasileiros ainda sabemos muito pouco sobre esse país.

Claro. Todos os povos nos conhecem através das campanhas turísticas. Os turistas adoram ti-rar fotos de camponês descalço, de uma criança desabrigada e levar para seus países essa imagem estereotipada, mas isso também tem suas conse-quências. Outro dia, veio ao hospital uma senho-ra que mora debaixo de uma ponte. Disse que sua filhinha estava mal e um paciente comentou co-migo: “Que senhora porca, porque não se limpa?”. Mas ela vive deixo de uma ponte! Não tem casa. Não tem nada! Então só veem o que querem ver. Os turistas não veem as pessoas que constroem a Bolívia, os trabalhadores.

Os problemas sociais tanto na Bolívia quanto em outros países da América do Sul permanecem. Mas algumas coisas começaram a mudar depois de alguns governos de esquerda e progressistas. Como a senhora analisa o cenário político na América do Sul?

Sabemos que a direita não vai querer perder. Vão usar qualquer motivo para voltar ao poder. Aqui em Cochabamba temos canais de televisão. Mas é uma imprensa mentirosa. Eles nunca mos-tram as coisas boas que está fazendo o governo. Esse é o começo de algo. Sabemos disso. Mas se todos não participarmos desse processo vão nos liquidar. Temos que formar novos quadros políti-cos, novos dirigentes, para que assim possam res-ponder com responsabilidade.

Na opinião da senhora, faltam novos líderes políticos e novas vozes na América Latina?

Sim, seguramente. Os dirigentes que surgiram na Bolívia foram quase todos assassinados pelas ditaduras. Nós, poucos, que sobrevivemos esta-mos todos velhos. Agora temos que formar uma nova geração. Temos que formar e capacitar no-vas pessoas. Eu e meu companheiro temos uma escola de formação política. Uma vez veio um bom grupo. Estávamos muito felizes com esse grupo de jovens. Passamos primeiro o que tem que saber: a história do nosso país, para saber o que aconteceu e como aconteceu. Depois temos que estudar economia, para saber como funcio-na a questão com o Fundo Monetário Interna-cional, entre outras coisas. Então quando leram o programa nos disseram: “Essas coisas todas nós

sabemos. O que queremos saber é como pode-mos ser senadores, deputados e como ser alcalde (prefeito).” Mas eu nunca fui senadora, nem de-putada, nem alcalde. As pessoas estão vendo a possibilidade de ser um líder político, uma opor-tunidade de chegar ao poder e ganhar dinhei-ro. Então falta muito interesse político. Ao MAS também falta muita coisa, como por exemplo, ter um projeto político, um documento. Dizem: “Vamos ao Socialismo”, mas falta dizer como vão ao socialismo. Isso nos faz muita falta.

Como funciona essa escola de formação política, existe há quanto tempo?

Quando sai das minas (1986) queria seguir parti-cipando, porque era dirigente sindical. Nessa época, uma pessoa me convidou para ir ao departamen-to de Tarija para falar na Federação de Campone-ses. Depois, surgiram outros convites e me dei con-ta que as pessoas não conheciam a histórias das minas. Com o tempo, recebemos convites em todo o país. Comecei a falar não apenas da história das minas, mas também a explicar porque na Bolívia, um país tão rico em recursos naturais e minerais, a gente vive tão pobre. Levam nossa matéria pri-ma quase de graça e depois as devolve a nosso país em forma de produtos, bastante caros. Também fa-lava sobre a dívida externa e tantas outras coisas. Depois de explicar tudo isso sempre diziam: “bom, já sabemos que é assim, mas e agora? O que faze-mos?” Durante as eleições percebemos que as pes-soas necessitavam de capacitação política. Por isso, decidimos criar essa escola e damos cursos a quem esteja interessado em aprender. Inclusive o atual ministro de Justiça nos convidou a dar alguns cur-sos em várias cidades bolivianas. Agora, temos um pequeno grupo que está estudando. O que nos fal-ta algumas vezes são recursos, porque não recebe-mos nenhum tipo de ajuda financeira.

Onde funciona essa escola? E quando tempo dura o curso?

A escola funciona na minha casa. E cursos du-ram até dois anos. Muitas vezes vêm grupos de longe, de 10 ou 15 pessoas, não apenas para estu-dar, mas também para dormir e cozinhar na mi-nha casa. Nesses casos, damos pequenos cursos de 15 dias e selecionamos os conteúdos principais, mas é muito resumido. Para um curso de forma-ção política é necessário mais tempo. Não cobra-mos nada dos alunos, mas tem que trazer para co-mer, porque não podemos oferecer.

As escolas públicas não ensinam política, nem em Bolívia, nem no Brasil. A senhora acha que as crianças poderiam ter formação política?

Claro que sim. O ser humano assim como deve aprender a ler e escrever também tem que aprender

“Nós, poucos, que sobrevivemos estamos todos velhos. Agora temos que formar uma nova geração.”

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política. Todos nós, desde que nascemos, somos se-res políticos, mas muita gente não se dá conta.

Agora, na Bolívia, o governo está exigindo que os funcionários públicos estudem pelo menos um dos idiomas indígenas oficiais do país.

Isso é muito importante. Imagine a situação dos indígenas camponeses que vem do campo, que não sabem falar uma palavra de castelhano e não o atendem. Por mais que o funcionário tenha boa vontade, não entende o que esses indígenas camponeses falam. Esse é um grande avanço, por-que as escolas estão ensinado inglês e francês, mas quando vamos praticar o inglês e o francês? De-veríamos estar estudando Quéchua e Aymara (as duas línguas indígenas mais faladas na Bolívia).

A senhora acredita que isso também passa por uma questão da legitimação da identidade cultural desse povo? Muita gente tem vergonha de falar os idiomas originários e muitos bolivianos ainda acreditam que as pessoas falam espanhol são melhores que essas que ainda conservam seus idiomas originários.

Os meios de comunicação o que te dizem? Essa é uma informação que recebemos diariamente. Quando trabalhava nas minas todos os dias a gen-te assistia um filme. A gente terminada de jantar e ia para o cinema. E o que nos mostra esses filmes? As melhores pessoas, os heróis eram os gringos, os norte-americanos. O mal, o maldito e o droga-dinho sempre tinha nossa cara. Era gordo, bigo-dudo, cabelo negro. Então você no espelho e sua cara não é igual a do jovem ou da garota do filme. Mas sim a cara do bandido ou da bandida. Então, a gente começa a ter vergonha da gente mesmo. No nosso acampamento de mineiros a gente fez uma análise sobre isso. Nossos filhos começaram a pintar os cabelos, a querer mudar as cores dos olhos e se o mocinho tinha cabeça raspada que-riam raspar também, se as calças eram mais largas queriam imitar. Começam a negar suas origens in-dígenas, porque sempre estão fazendo com que te-nhamos vergonha disso. Você viu esse filme dos norte-americanos chamado Avatar?

Sim.Bem, o que você achou?

Li muitas críticas que diziam que era filme que está na contramão dos interesses do império capitalista. Mas, na película o herói, o de coração bom e forte é o norte-americano. Isso não mudou.

Claro, querem que pensemos que está na con-tramão do império. Mas no filme quem vai salvar os indígenas do império? Não são os verdadei-ros avatares, mas o herói norte-americano. Então continuam nos discriminando, nos subestimando. Esse filme para mim é discriminatório e soberbo. Porque o povo da floresta poderia ter se organi-zado e lutado. Entretanto, nos mostra que sem o gringo não poderiam ter ganhado a guerra. No en-tanto, acredito que há um novo despertar. Claro

que algumas pessoas ainda não têm muito claro quem é o verdadeiro inimigo e pensa que o inimi-go é o trabalhador. Mas temos que deixar claro. Onde está o inimigo principal?

Na opinião da senhora, hoje, qual é o principal inimigo do povo boliviano?

É o que chamamos de meia-lua. Essa é nossa principal inimiga.

O que é a meia-lua?São essas pessoas que estão organizadas para se-

parar nosso país. Sempre estiveram divididos. Eles são os patrões, o “terratenetes”, grandes milioná-rios, que estão claramente separados daqueles que não tem nada. Agora eles querem ficar com as me-lhores zonas, de clima tropical, onde tem bastan-te vegetação e água. Tiraram as terras dos guara-nis e da maioria dos povos indígenas dessa região.

Para finalizar, gostaria de deixar alguma mensagem?

Agora estamos discutindo o problema de como

salvar a nossa Madre Tierra (Mãe Terra). Salvar o meio ambiente da contaminação. As águas potá-veis estão desaparecendo. E, isso é conseqüência desse sistema que tem desgastado tanto as matérias primas. A Terra está morrendo e os autores desses crimes não querem assumir suas responsabilidades, por isso a Cumbre sobre los Câmbios Climáticos y los Derechos de la Mãe Tierra foi muito importan-te. Porque a Terra não tem dono, ela é de todos. Eu me pergunto: seria tão tonto o ser humano que em vez de preservar a terra para produzir alimen-tos para seus filhos e netos, por algumas notas de dólar, esse papel sujo, estão tratando de fazer mais e mais riquezas? Afinal, para que vai servir os dó-lares quando não houver mais alimentos? Temos que adotar medidas, porque não se trata apenas de salvar os “pobrezinhos do terceiro mundo”, mas de salvar toda a Humanidade, inclusive os filhos e ne-tos desses burgueses que não querem entender que estão matando nossa Pachamama (Mãe Terra, nos idiomas Quéchua e Aymara).

A históriA que comoveu o mundo A vida e a luta de Domitila Barrios de Chungara ganharam a dimensão do

mundo no célebre livro da brasileira Moema Viezzer, editado primeiramente no México, em 1977, com o título “Si Me Permiten Hablar” e, no ano seguinte, no Brasil, com o nome de “Se me deixam falar...”, onde teve várias edições e se tornou famoso. Boliviana, mulher de mineiro, mãe de sete filhos, Domitila foi a única mulher trabalhadora a participar na Tribuna do Ano Internacional da Mulher, organizada pelas Nações Unidas, em 1975, no México.

E o que ela falou mexeu com o mundo...

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Há dois dias, assisti Vanessa Davies em seu programa Contragolpe, do canal 8, da TV venezuelana. Ela entrevistava e multiplicava suas perguntas di-rigidas a Basem Tajeldine, venezuelano inteligente e honesto, cujo rosto trans-parecia nobreza. No momento em que liguei o aparelho de televisão, estava em debate minha opinião de que apenas Obama podia impedir a guerra.

Imediatamente, veio à memória do historiador a ideia do enorme poder que lhe era atribuído. E, com certeza, é assim. Contudo, estamos pensando em dois poderes diferentes. O poder político real nos Estados Unidos está nas mãos da poderosa oligarquia dos multimilionários, que governam não só esse país, mas também o mundo: o gigantesco poder do Clube Bilderberg descrito por Daniel Estulin, criado pelos Rockefellers e pela Comissão Trilateral.

O aparelho militar dos Estados Unidos com seus organismos de segurança é muito mais poderoso que Barack Obama, presidente dos Esta-dos Unidos. Ele não criou esse aparelho, e também o aparelho não o criou. Foram as excepcionais circunstâncias da crise econômica e da guerra os fatores principais que levaram um descendente do setor mais discrimina-do dos Estados Unidos, dotado de cultura e inteligência, a assumir o car-go que ocupa.

Em que alicerça o poder de Obama neste momento? Por que eu afirmo que a guerra ou a paz vão depender dele? Tomara que a entrevista da jorna-lista com o historiador sirva para ilustrar o assunto.

Vou dizer de outro jeito: a famosa mala com as chaves e o botão para lançar uma bomba nuclear surgiu devido à terrível decisão em que Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

A destruição do mundo está nas mãos de Obama

isso resultaria, o caráter devastador da arma, e a necessidade de não per-der uma fração de minuto. Kennedy e Khruchov passaram por essa experi-ência e Cuba esteve a ponto de ser o primeiro alvo de um ataque em mas-sa com tais armas.

Ainda lembro a angústia refletida nas perguntas que Kennedy indicou ao jor-nalista francês Jean-Daniel me fazer quando soube que viria a Cuba e se reuniria comigo. “Será que Castro sabe que estivemos à beira de uma guerra mundial?”

Desde então, decorreu já quase meio século. O mundo mudou; muito mais de 20 mil armas nucleares foram desenvolvidas e o poder destruidor delas é equi-valente a quase 450 mil vezes o daquela que devastou a cidade de Hiroshima. Qualquer um tem direito de se perguntar: Para quê serve a mala nuclear?

Essa mala é algo tão simbólico quanto o bastão de comando que perma-nece nas mãos do presidente como pura ficção.

Ora, bem. Eu me referi não a que Obama seja poderoso ou muito poderoso; ele prefere praticar basquetebol ou proferir discursos. Além disso, foi-lhe confe-rido o Prêmio Nobel da Paz. Michael Moore exortou-o a que ele o ganhasse ago-ra. Talvez nunca ninguém imaginasse, e ele ainda menos, que nesta etapa final do ano 2010, se ele acatar as instruções do Conselho de Segurança das Nações Unidas — ao qual talvez seja exortado com firmeza por um sul-coreano chama-do Ban Ki-moon — será responsável pela extinção da espécie humana.

Fidel Castro

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IDEIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

Um dos lançamentos recentes mais importantes é o livro “Cale-se – A saga de Vannuchi Leme, A USP como aldeia gaulesa, O show proibido de Gilberto Gil”, editado por A Girafa, em que o jornalista Caio Túlio Costa, um dos respon-sáveis pela renovação da “Folha de S. Paulo” nos anos 1980 e que atualmente dirige o Portal Ig, descreve o movimento estudantil paulista de resistência ao regime militar nos anos 1970; quadros dos grupos políticos estudantis de então estão até hoje atuan-tes no PT e no PSDB. Os pontos altos do livro são a missa de sé-timo dia em 1973 pela morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme, assassinado por agentes

do regime militar, missa que foi a primeira grande manifestação de mas-sa em São Paulo desde as passeatas de 1968, e o show “Cálice”, de Gilber-to Gil, que chegou a ser proibido pelas autoridades da época. Mas o livro tem muito mais coisas, como a primeira descrição da execução, por agen-tes do regime militar, do também estudante Ronald Mouth Queiróz, e um histórico de grupos políticos como a Ação Libertadora Nacional e a Ação Popular, além de um balanço, três décadas depois, do que aconteceu com os participantes daquelas movimentações. Não perca.

Pela Garimpo saiu o livro “Anarquia e cristianismo”, do sociólogo e te-ólogo protestante francês Jacques Ellul (1912-1994), segundo o qual “o cristianismo carrega em si uma predisposição à insubmissão, à dissidência e até mesmo à recusa de todo tipo de hierarquia... inclusive interna”. Ellul refere-se, naturalmente, ao cristianismo dos primeiros séculos, já que, “ao longo da história, principalmente a partir do século 19, o cristianismo pas-sou a ser, de maneira geral, identifi cado com o conservadorismo político e social. Mas nem sempre foi assim. Em sua gênese, a Igreja Cristã se dis-tinguia de grande parte dos demais movimentos de fundamento religioso por sua ousadia e seu inconformismo diante do poder e de toda a opres-são que ele representava”.

Já a obra “Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima”, do historia-dor Célio Turino, publicado pela Anita Garibaldi, é assim apresentada pelo cientista político Emir Sader: “Quando o ministro Gilberto Gil convidou Célio Turino para desenvolver um programa de democratização e acesso à cultu-ra, mal se podia imaginar as extraordinárias iniciativas, que cruzam o Brasil de um ponto a outro, do sertão ao mar, da Amazônia às pampas. Neste be-líssimo livro – não resisto a usar as palavras belo, beleza, a melhor forma de

defi ni-lo – Célio mostra como sua trajetória se confunde com a bus-ca de políticas culturais democrá-ticas e populares para o Brasil (....). Venha, na leitura deste livro, a co-nhecer o Brasil, o Brasil silenciado, o Brasil que era convidado antes apenas para assistir ao país inventado pelas elites brancas do sul e que agora vai forjando os espaços e os tempos da sua emancipação”. Vemos em suma como, em literalmente centenas de Pontos de Cultura por todo o País, se manifestam, dos índios da Amazônia aos mes-tiços de Campinas-SP, passando pelos negros da Bahia, as riquíssimas diver-sidades culturais brasileiras, durante séculos não só combatidas como mais miseravelmente desprezadas pelas elites ditas brancas.

Seria muito útil combinar a leitura do livro de Turino com a do volume “A história da destruição cultural da América Latina – Da conquista à glo-balização”, lançado pela Editora Nova Fronteira, de autoria do pesquisador venezuelano Fernando Báez, celebrizado por sua obra “História universal da destruição dos livros”. Báez relata: “Além do roubo de matérias-primas, descobri que mais enfurecida e descarada foi a destruição cultural, ou et-nocídio; cada assassínio proporcionava desculpas para aniquilar com mais força os símbolos das vítimas; cada novo tormento exigia uma transcultu-ração mais acelerada”.

Este ano se comemoram 150 anos do nascimento do compositor aus-tríaco Gustav Mahler e no ano que vem se lembrarão os 100 anos de sua morte. A propósito dessas importantes datas, a Autêntica lança no Bra-sil o lindo livro do psiquiatra, psicanalista e crítico cultural argentino Ar-noldo Liberman, “Gustav Mahler – Um coração angustiado – Uma bio-grafi a em quatro movimentos”. Mahler, um dos maiores músicos de todos os tempos, sofreu por ser judeu na Boê-mia em que nasceu; por ser natural da Boêmia na Áustria em que cresceu; por ser natural da Áustria-Hungria na Ale-manha em que se estabeleceu – numa época em que o russo Tchaikovski, por exemplo, era considerado um composi-tor “menor”, por não ser de origem ale-mã. O livro informa e emociona.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

REGIME MILITAR, ANARQUIA, cultura viva, culturas mortas,

o Brasil que era convidado antes apenas para assistir ao país inventado pelas

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Entre as frases que correm soltas e parecem, inclusive pela força da sua formulação, evidentes por si mesmas, se prestam a somar-se à desmoralização da política, das ações coletivas, do Es-tado, favorecendo, como contrapartida, o individualismo, o egoís-mo, o mercado – que busca congregar a todos como indivíduos na sua dimensão de consumidores.

Há poderes corruptos e outros não. Absolutizar é fazer o jogo dos que querem governos e Estados fracos, como os monopólios priva-dos da mídia. Como dizer que “político é corrupto”, que “partidos são tudo a mesma coisa”, que “as pessoas não prestam”, que “todo mundo é egoísta”, “que o mundo não tem jeito”, “que as coisas es-tão cada vez pior no Brasil e no mundo”.

O senso comum costuma ser a representação popular de grandes preconceitos. Aparece como “verdades” evidentes por si mesmas, que nem precisam demonstração. E camuflam valores mui-to reacionários.

O poder da ditadura, o do Collor, o do FHC e o do Lula são iguais? Basta se chegar ao poder, para alguém se tornar corrupto? O poder de uma grande potência imperialista, como os EUA, é mais ou me-nos corrupto que o poder de um país da periferia? O poder de um grande conglomerado econômico transnacional é maior ou menor do que o dos governos?

Uma ONG internacional publica anualmente o ranking do que seriam os governos mais corruptos do mundo. Em um deles co-locou o Haiti entre os líderes. Será que o governo do Haiti é mais ou menos corrupto que o governo dos EUA?

Mas o principal problema dessa lista é que ela lista os corrup-tos, mas não os corruptores, que certamente estão entre as gran-des corporações multinacionais. Emir Sader é cientista político.

O PODER CORROMPE?

sugEstõEs dE lEituRa

Essa visão criminalizadora da política e do poder sugere que as pessoas são “boas” na “sociedade civil” e quando “entram” para o Esta-do, para a política, se corrompem. É a visão que sustenta a opinião, tão disseminada, de “quanto menos imposto se paga, melhor”, de que “o seu imposto está sustentando aos burocratas” etc.

Do que se trata é de historicizar o tema. Há poderes e poderes. Todos eles têm natureza de classe. Mas mesmo nesse marco, há po-deres assentados diretamente em organizações populares, em diri-gentes com compromisso ideológico com os processos de transfor-mação profunda da realidade.

Senão contribuiríamos para a rejeição da política, deixando para que ela seja feita justamente pelos políticos tradicionais, acostumados a ti-rar proveitos do Estado e dos governos, a desmoralizar a política.

Emir Sader

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