ed. 154 - revista caros amigos

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ano XIII número 154 janeiro 2010 R$ 9,90 Novo sítio: www.carosamigos.com.br Contra as patentes do capitalismo ENTREVISTA Partido Pirata Editoras enganam leitores com plágio nas traduções Letícia Sabatella Uma atriz comprometida com as lutas sociais Mais uma freira na mira do latifúndio Irmã Geraldinha O Estado terrorista no Rio Grande do Sul Pedro Alexandre Sanches estreia com a coluna Paçoca ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ BIANCA COSTA CAMILA ARÊAS CARLOS LATUFF CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA ISADORA ATAÍDE JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO VILELA GUSMÃO MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO MIGUEL ENRIQUE STEDILE PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU ROBERTO DORNELLES TATIANA MERLINO

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Capa Letícia Sabattella

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Page 1: Ed. 154 - Revista Caros Amigos

ano XIII número 154 janeiro 2010R$ 9,90

ano XIII ano XIII ano número 154 número 154 número janeiro 2010janeiro 2010janeiroR$ 9,90

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Contra as patentes do capitalismo

ENTREVISTA

Partido Pirata

Editoras enganam leitores com plágio nas traduções

Letícia SabatellaUma atriz comprometida com as lutas sociais

Mais uma freira na mira do latifúndio

Irmã Geraldinha

O Estado terroristano Rio Grande do Sul

Pedro Alexandre Sanches estreia com

a coluna Paçoca

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ BIANCA COSTA CAMILA ARÊAS CARLOS LATUFF CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA ISADORA ATAÍDE JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO VILELA GUSMÃO MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO MIGUEL ENRIQUE STEDILE PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU ROBERTO DORNELLES TATIANA MERLINO

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Page 2: Ed. 154 - Revista Caros Amigos

( ) Paz ( ) Felicidade ( ) Casar ( ) Meu time campeão ( ) Carro novo ( ) Saúde ( ) Promoção no emprego ( ) Sorte ( ) Acordar mais cedo ( ) O hexa ( ) Ganhar na loteria( ) A viagem dos sonhos ( ) Passar no vestibular ( ) Parar de fumar ( ) Minha casa própria ( ) Emagrecer ( ) Aumento de salário ( ) Um emprego novo ( ) Passar no concurso ( ) Um novo amor ( ) Casa na praia ( ) Sorrir mais ( ) Engordar ( ) Aprender a dizer não ( ) Arrumar o armário ( ) Manter a calma ( ) Ler mais ( ) Passear com o cachorro ( ) Pôr o cinema em dia ( ) Mais chuva no campo ( ) Menos chuva na praia ( ) Rever velhos amigos ( ) Esperança ( ) Começar a malhar ( ) Tomar um banho de loja ( ) Correr uma maratona ( ) Criar um blog ( ) Um fi m de semana sem celular Mudar para uma cidade grande ( ) Mudar para uma cidade pequena ( ) Mais tempo com a família ( ) Terminar meu curso Um país mais justo( ) Escrever um livro ( ) Ter um fi lho ( ) Plantar uma árvore ( ) Começar o regime ( ) Terminar um projeto Fazer novos amigos( ) Andar mais descalço ( ) Comer jabuticaba no pé ( ) Voltar a jogar futebol ( ) Reformar a casa Me irritar menos ( ) Um mundo mais sustentável ( ) Mais cooperação entre as pessoas ( ) Mais entendimento entre as nações Esquecer as preocupações( ) Fazer uma coisa diferente ( ) Trocar os móveis da casa ( ) Andar mais de bicicleta ( ) Caminhar na chuva( ) Ver mais o pôr do sol ( ) Prosperidade ( ) Esquiar na neve ( ) Perdoar alguém ( ) Ir ao estádio Trocar de hábitos ( ) Fé ( ) Esvaziar as gavetas ( ) Aprender um novo idioma ( ) Passar a tarde vendo fi lmes e comendo pipocas Ajudar alguém que precisa( ) Contar histórias para os netos ( ) Vencer o medo ( ) Cumprimentar os vizinhos ( ) Realizar o desejo de uma pessoa querida Receber uma visita inesperada ( ) Rir dos próprios erros ( ) Dar um abraço gostoso na mãe ( ) Ouvir mais música Encher a casa de amigos ( ) Agarrar uma oportunidade ( ) Ficar na janela olhando a lua ( ) Visitar a Muralha da China( ) Descobrir uma praia nova ( ) Marcar o gol do título ( ) Pagar uma rodada para os amigos Reencontrar um amigo de infância ( ) Fazer as pazes consigo mesmo ( ) Fazer um elogio ( ) Encarar um novo desafi o Sair do aluguel ( ) Nunca mais usar o despertador ( ) Assistir aos shows que eu gosto ( ) Não me preocupar com meu peso Praticar um esporte( ) Levar a academia a sério ( ) Ficar zen no trânsito ( ) Menos poluição ( ) Acreditar nos meus sonhos Respeito à natureza( ) Contar novas piadas ( ) Fazer uma boa ação ( ) Um basta na violência ( ) Aprender a dançar Começar um negócio próprio ( ) Melhorar a postura ( ) Escalar montanhas ( ) Mandar fl ores sem motivos Ser maissolidário ( ) Fazer um trabalho voluntário ( ) Acordar mais cedo ( ) Ousar mais ( ) Dinheiro no bolso Mais entendimentoentre as nações ( ) Namorar muito ( ) Esquecer as preocupações ( ) Ir a um concerto ( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de hábitos ( ) Passar a tarde vendo fi lmes e comendo pipocas ( ) Mudar a rotina ( ) Ajudar alguém que precisa ( ) Realizar o desejo de uma pessoa querida ( ) Incentivar alguém ( ) Receber uma visita inesperada ( ) Ter o trabalho reconhecido ( ) Tomar um banho de cachoeira ( ) Voar de asa-delta ( ) Pescar ( ) Colocar a agenda em dia ( ) Emendar um feriado ( ) Reencontrar umamigo de infância ( ) Aprender a cozinhar ( ) Voltar a estudar ( ) Viver mais aventuras ( ) Tomar um banho de sol ( ) Viajar para a lua ( ) Uma TV nova ( ) Acampar

Menos chuva na praia ( ) Rever velhos amigos ( ) Esperança ( ) Começar a malhar ( ) Tomar um Um fi m de semana sem celular ( ) O fi m das guerras ( ) Mudar o visual ( ) Morar no sítio ( ) Mudar para uma

Terminar meu curso ( ) Conhecer a praia ( ) Conhecer outro país ( ) Um país mais justoTerminar um projeto ( ) Dormir mais ( ) Acordar mais cedo ( ) Fazer novos amigos

Reformar a casa ( ) Alegria ( ) Dinheiro no bolso ( ) Me levar menos a sério ( ) Me Mais entendimento entre as nações ( ) Namorar muito ( ) Esquecer as preocupações( ) Dar presentes ( ) Ganhar presentes ( ) Pintar um quadro ( ) Caminhar na chuva

Ir ao estádio ( ) Ir a um concerto ( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de Passar a tarde vendo fi lmes e comendo pipocas ( ) Mudar a rotina ( ) Ajudar alguém que precisa

Realizar o desejo de uma pessoa querida ( ) Incentivar alguém ( ) Receber uma visita Ouvir mais música ( ) Ter o trabalho reconhecido ( ) Tomar um banho de cachoeira ( ) Encher

( ) Fazer um churrasco com os amigos ( ) Tirar férias ( ) Visitar a Muralha da ChinaPagar uma rodada para os amigos ( ) Colocar a agenda em dia ( ) Emendar um feriado ( ) Reencontrar um amigo

Encarar um novo desafi o ( ) Tomar um banho de sol ( ) Viajar para a lua ( ) Uma TV nova ( ) Sair Não me preocupar com meu peso ( ) Deixar o cabelo crescer ( ) Praticar um esporte

Acreditar nos meus sonhos ( ) Aprender a cozinhar ( ) Voltar a estudar ( ) Respeito à naturezaAprender a dançar ( ) Dar afeto ( ) Receber afeto ( ) Abrir uma poupança ( ) Começar um

Mandar fl ores sem motivos ( ) Caminhar na praia à luz da lua ( ) Nadar com os golfi nhos ( ) Ser maisDinheiro no bolso ( ) Me levar menos a sério ( ) Superação ( ) Mais entendimento( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de hábitos ( ) Passar a tarde vendo

O que você quer realizar em 2010?

Corra atrás dos seus desejos. E, se

precisar de uma mãozinha, a CAIXA

está aí para isso mesmo. Boas festas.

SAC CAIXA: 0800 726 0101 Informações, reclamações, sugestões e elogios0800 726 2492 - Atendimento a defi cientes auditivos0800 725 7474 - Ouvidoria

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( ) Paz ( ) Felicidade ( ) Casar ( ) Meu time campeão ( ) Carro novo ( ) Saúde ( ) Promoção no emprego ( ) Sorte ( ) Acordar mais cedo ( ) O hexa ( ) Ganhar na loteria( ) A viagem dos sonhos ( ) Passar no vestibular ( ) Parar de fumar ( ) Minha casa própria ( ) Emagrecer ( ) Aumento de salário ( ) Um emprego novo ( ) Passar no concurso ( ) Um novo amor ( ) Casa na praia ( ) Sorrir mais ( ) Engordar ( ) Aprender a dizer não ( ) Arrumar o armário ( ) Manter a calma ( ) Ler mais ( ) Passear com o cachorro ( ) Pôr o cinema em dia ( ) Mais chuva no campo ( ) Menos chuva na praia ( ) Rever velhos amigos ( ) Esperança ( ) Começar a malhar ( ) Tomar um banho de loja ( ) Correr uma maratona ( ) Criar um blog ( ) Um fi m de semana sem celular Mudar para uma cidade grande ( ) Mudar para uma cidade pequena ( ) Mais tempo com a família ( ) Terminar meu curso Um país mais justo( ) Escrever um livro ( ) Ter um fi lho ( ) Plantar uma árvore ( ) Começar o regime ( ) Terminar um projeto Fazer novos amigos( ) Andar mais descalço ( ) Comer jabuticaba no pé ( ) Voltar a jogar futebol ( ) Reformar a casa Me irritar menos ( ) Um mundo mais sustentável ( ) Mais cooperação entre as pessoas ( ) Mais entendimento entre as nações Esquecer as preocupações( ) Fazer uma coisa diferente ( ) Trocar os móveis da casa ( ) Andar mais de bicicleta ( ) Caminhar na chuva( ) Ver mais o pôr do sol ( ) Prosperidade ( ) Esquiar na neve ( ) Perdoar alguém ( ) Ir ao estádio Trocar de hábitos ( ) Fé ( ) Esvaziar as gavetas ( ) Aprender um novo idioma ( ) Passar a tarde vendo fi lmes e comendo pipocas Ajudar alguém que precisa( ) Contar histórias para os netos ( ) Vencer o medo ( ) Cumprimentar os vizinhos ( ) Realizar o desejo de uma pessoa querida Receber uma visita inesperada ( ) Rir dos próprios erros ( ) Dar um abraço gostoso na mãe ( ) Ouvir mais música Encher a casa de amigos ( ) Agarrar uma oportunidade ( ) Ficar na janela olhando a lua ( ) Visitar a Muralha da China( ) Descobrir uma praia nova ( ) Marcar o gol do título ( ) Pagar uma rodada para os amigos Reencontrar um amigo de infância ( ) Fazer as pazes consigo mesmo ( ) Fazer um elogio ( ) Encarar um novo desafi o Sair do aluguel ( ) Nunca mais usar o despertador ( ) Assistir aos shows que eu gosto ( ) Não me preocupar com meu peso Praticar um esporte( ) Levar a academia a sério ( ) Ficar zen no trânsito ( ) Menos poluição ( ) Acreditar nos meus sonhos Respeito à natureza( ) Contar novas piadas ( ) Fazer uma boa ação ( ) Um basta na violência ( ) Aprender a dançar Começar um negócio próprio ( ) Melhorar a postura ( ) Escalar montanhas ( ) Mandar fl ores sem motivos Ser maissolidário ( ) Fazer um trabalho voluntário ( ) Acordar mais cedo ( ) Ousar mais ( ) Dinheiro no bolso Mais entendimentoentre as nações ( ) Namorar muito ( ) Esquecer as preocupações ( ) Ir a um concerto ( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de hábitos ( ) Passar a tarde vendo fi lmes e comendo pipocas ( ) Mudar a rotina ( ) Ajudar alguém que precisa ( ) Realizar o desejo de uma pessoa querida ( ) Incentivar alguém ( ) Receber uma visita inesperada ( ) Ter o trabalho reconhecido ( ) Tomar um banho de cachoeira ( ) Voar de asa-delta ( ) Pescar ( ) Colocar a agenda em dia ( ) Emendar um feriado ( ) Reencontrar umamigo de infância ( ) Aprender a cozinhar ( ) Voltar a estudar ( ) Viver mais aventuras ( ) Tomar um banho de sol ( ) Viajar para a lua ( ) Uma TV nova ( ) Acampar

Menos chuva na praia ( ) Rever velhos amigos ( ) Esperança ( ) Começar a malhar ( ) Tomar um Um fi m de semana sem celular ( ) O fi m das guerras ( ) Mudar o visual ( ) Morar no sítio ( ) Mudar para uma

Terminar meu curso ( ) Conhecer a praia ( ) Conhecer outro país ( ) Um país mais justoTerminar um projeto ( ) Dormir mais ( ) Acordar mais cedo ( ) Fazer novos amigos

Reformar a casa ( ) Alegria ( ) Dinheiro no bolso ( ) Me levar menos a sério ( ) Me Mais entendimento entre as nações ( ) Namorar muito ( ) Esquecer as preocupações( ) Dar presentes ( ) Ganhar presentes ( ) Pintar um quadro ( ) Caminhar na chuva

Ir ao estádio ( ) Ir a um concerto ( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de Passar a tarde vendo fi lmes e comendo pipocas ( ) Mudar a rotina ( ) Ajudar alguém que precisa

Realizar o desejo de uma pessoa querida ( ) Incentivar alguém ( ) Receber uma visita Ouvir mais música ( ) Ter o trabalho reconhecido ( ) Tomar um banho de cachoeira ( ) Encher

( ) Fazer um churrasco com os amigos ( ) Tirar férias ( ) Visitar a Muralha da ChinaPagar uma rodada para os amigos ( ) Colocar a agenda em dia ( ) Emendar um feriado ( ) Reencontrar um amigo

Encarar um novo desafi o ( ) Tomar um banho de sol ( ) Viajar para a lua ( ) Uma TV nova ( ) Sair Não me preocupar com meu peso ( ) Deixar o cabelo crescer ( ) Praticar um esporte

Acreditar nos meus sonhos ( ) Aprender a cozinhar ( ) Voltar a estudar ( ) Respeito à naturezaAprender a dançar ( ) Dar afeto ( ) Receber afeto ( ) Abrir uma poupança ( ) Começar um

Mandar fl ores sem motivos ( ) Caminhar na praia à luz da lua ( ) Nadar com os golfi nhos ( ) Ser maisDinheiro no bolso ( ) Me levar menos a sério ( ) Superação ( ) Mais entendimento( ) Pintar a casa ( ) Plantar um jardim ( ) Trocar de hábitos ( ) Passar a tarde vendo

O que você quer realizar em 2010?

Corra atrás dos seus desejos. E, se

precisar de uma mãozinha, a CAIXA

está aí para isso mesmo. Boas festas.

SAC CAIXA: 0800 726 0101 Informações, reclamações, sugestões e elogios0800 726 2492 - Atendimento a defi cientes auditivos0800 725 7474 - Ouvidoria

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Page 4: Ed. 154 - Revista Caros Amigos

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5setembro 2009 caros amigos

CAROS AMIGOS ANO XIII 154 jANeIRO 2010

EDITORA CASA AMARELA ­Revistas­•­LivRos­•­seRviços­editoRiaisfundadoR:­séRgio­de­souza­(1934-2008)diRetoR­geRaL:­WagneR­nabuco­de­aRaújo

EDITOR: hamilton Octavio de souza EDITORa aDjunTa: Tatiana Merlino EDITOREs EsPECIaIs: josé arbex jr e Renato Pompeu EDITORa DE aRTE: Lucia Tavares assIsTEnTE DE aRTE: henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRaFIa: Walter Firmo REPÓRTEREs: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORREsPOnDEnTEs: Marcelo salles (Rio de janeiro) e anelise sanchez (Roma) sECRETÁRIa Da REDaÇÃO: simone alves REvIsORa: Mariana salzstein DIRETOR DE MaRKETInG: andré herrmann PuBLICIDaDE: Melissa Rigo CIRCuLaÇÃO: Pedro nabuco de araújo RELaÇõEs InsTITuCIOnaIs: Cecília Figueira de Mello aDMInIsTRaTIvO E FInanCEIRO: Ingrid hentschel, Elisângela santana COnTROLE E PROCEssOs: Wanderley alves LIvROs Casa aMaRELa: Clarice alvon síTIO: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau assEssORIa DE IMPREnsa: Kyra Piscitelli aPOIO: Maura Carvalho, Douglas jerônimo e neidivaldo dos anjos aTEnDIMEnTO aO LEITOR: Priscila nunes alves, Zélia Coelho assEssORIa juRíDICa: Marco Túlio Bottino, aton Fon Filho, juvelino strozake, Luis F. X. soares de Mello, Eduardo Gutierrez e susana Paim Figueiredo REPREsEnTanTE DE PuBLICIDaDE: BRasíLIa: joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

jORnaLIsTa REsPOnsÁvEL: haMILTOn OCTavIO DE sOuZa (MTB 11.242)DIRETOR GERaL: WaGnER naBuCO DE aRaújO

CaROs aMIGOs, ano XIII, nº 154, é uma publicação mensal da Editora Casa amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de são Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DInaP s/a - Distribuidora nacional de Publicações, são Paulo. IMPREssÃO: Bangraf

REDaÇÃO E aDMInIsTRaÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, são Paulo, sP

sumárioFoto de capa Jesus carlos

04 Guto Lacaz.

06 Marcos Bagno lembra que as línguas estão em permanente transformação.

Mc Leonardo relata a guerra da audiência na TV em cima da violência urbana.

07 José Arbex Jr. analisa as dificuldades inéditas dos eua na américa latina.

08 Joel Rufino dos Santos fala sobre José lins do rego e a vitória do Flamengo.

Guilherme Scalzilli critica a fórmula que elitiza ainda mais o futebol brasileiro.

09 Ferréz faz ficção em cima do faroeste preferido na guerra contra os pobres.

10 Glauco Mattoso Porca Miséria: soneto para uma conga.

Eduardo Matarazzo Suplicy defende o projeto de consolidação das leis sociais.

11 Pedro Alexandre Sanches Paçoca: uma viagem nas adversidades culturais.

12 entrevista com Letícia Sabatella, uma atriz comprometida com as lutas sociais.

17 Hamilton Octavio de Souza entrelinhas: alucinaram a Internet.

Cesar Cardoso faz um relato profundo sobre o que é lutar o bom combate.

18 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.

Ana Miranda declara todo o seu amor para Filomena Jardelina.

19 João Pedro Stedile propõe o debate sobre um projeto para o Brasil em 2010.

Emir Sader antecipa o que está em jogo na eleição presidencial de 2010.

20 Marcelo Gusmão fala da pesquisadora que identifica plágio na tradução de livros.

22 Gershon Knispel aponta mais uma falsificação da história na segunda Guerra.

24 Ensaio Fotográfico de carlos latuff sobre “os palestinos da amazônia”.

26 Lúcia Rodrigues denuncia as ameaças do “coronelismo” em salto da Divisa (MG).

30 entrevista com Leandro Scalabrin: “o rio Grande do sul vive um estado de exceção”.

33 Frei Betto propõe reflexões sobre a realidade e uma nova qualidade de vida em 2010.

Fidel Castro comenta a revolução Bolivariana, a paz e os ataques do imperialismo.

34 Marcelo Salles entrevista Moacir Gadotti sobre o fórum da educação tecnológica.

36 Anelise Sanchez debate a situação das crianças encarceradas com suas mães na Itália.

38 Camila Arêas relata o esquema de perseguição aos imigrantes ilegais na França.

40 Isadora Ataíde fala sobre o trabalho de Pilar del río, a mulher de José saramago.

42 Gabriela Moncau relata a luta do Partido Pirata contra as patentes privadas.

44 Gilberto Felisberto Vasconcellos ataca o vampiro tucano entreguista.

45 Renato Pompeu Idéias de Botequim.

46 Claudius.

O coronelismo continua vivo, forte e impune. Em Salto da Di-visa, município de Minas Gerais na fronteira com a Bahia, no Vale do Jequitinhonha, as famílias de trabalhadores rurais acam-padas estão sob permanente ameaça dos latifundiários. A Irmã Geraldinha, freira católica, que atua no acampamento e defende a reforma agrária, está marcada para morrer. A jornalista Lúcia Rodrigues foi até lá para ver a situação dos sem-terra, ouvir os depoimentos sobre as ameaças e fazer um relato sobre a dura vida dos sem-terra e a corajosa resistência da Irmã Geraldinha.

Em entrevista para o jornalista Miguel Enrique Stedile, no Rio Grande do Sul, o advogado Leandro Scalabrin, da Co-missão de Direitos Humanos da OAB, denuncia o autoritaris-mo do governo gaúcho e as violências praticadas pela Bri-gada Militar nos últimos anos. Outra reportagem, de Camila Arêas, mostra a resistência dos imigrantes ilegais na França, que ocuparam prédios públicos para protestar contra o trata-mento desumano que recebem naquele país.

A atriz Letícia Sabatella conta – em entrevista exclusiva para Caros Amigos – um pouco de sua trajetória profissional, desde a primeira peça de teatro, em Curitiba, até o seu trabalho nas no-velas da TV Globo. Conta também por que apóia, há anos, de-terminados movimentos sociais, inclusive o MST. Ela e outros atores criaram o Movimento Humanos Direitos, que presta soli-dariedade em várias frentes de luta.

A repórter Gabriela Moncau desvenda as atividades e pro-postas do Partido Pirata, que foi criado na Suécia em 2006, está organizado em mais de 30 países, inclusive no Brasil, de-fende a liberação dos direitos autorais e faz combate cerrado às patentes do capitalismo.

Outras reportagens, artigos e entrevistas completam a pre-sente edição, reforçada também com a estréia da coluna do jornalista Pedro Alexandre Sanches, que promete mostrar as diversidades culturais do Brasil não contempladas pela mí-dia conservadora.

Em frente!

Sobre lutas e resistências

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5janeiro 2010 caros amigos

Jogos olímpicos Gostaria de parabenizá-los pela matéria so-

bre os Jogos Olímpicos de 2016 (edição 152) por apresentar o assunto através de uma visão abran-gente. Apoiada em dados precisos tais como cus-tos, antecedentes, tensões, interesses e agentes sociais envolvidos, nos permitiu perceber a gravi-dade da situação que se afigura para a cidade do Rio de Janeiro (e consequentemente para o país) nos próximos anos. Acredito, porém, que a con-tribuição de seu texto teria sido ainda mais pre-ciosa se houvesse explicitado com mais clareza os vínculos de membros do governo federal com o empresário Eike Batista e a participação de am-bos na empreitada dos Jogos Olímpicos. Herta Franco, [email protected]

Eduardo galEanoÉ sempre bom ouvir ou ler o genial e criati-

vo Eduardo Galeano (edição 152). Na esteira da sua entrevista, aproveito para corroborar as suas opiniões sobre o caráter belicista e terrorista da política norte-americana e a hipocrisia ianque quando fiscaliza os governos que mostram in-teresses ou já desenvolvem seus programas nu-cleares. Ao acenar para o mundo com o temor das armas, querem nos fazer esquecer de que até hoje foram só eles mesmos que jogaram bombas atômicas sobre os adversários.Alberto da Hora, Natal/RN

FErrézO texto do Ferréz da edição 152 fala da tris-

te situação em que se encontram os moradores do “lugar que um dia foi a favela Portelinha, no Capão Redondo...”. Francamente, quis acreditar algum tempo atrás que talvez existissem alguns bons policiais, mas estou desconfiada da sopa... as pessoas continuam vivas, Ferréz? Sei lá o que houve nesse dia, pois sabemos dos mandos e des-mandos da polícia, especialmente nas periferias.

Há uns anos atrás, em frente à casa da minha

mãe, houve uma dessas “batidas” e meu sobri-nho foi revistado. Minha irmã, que estava per-to, interferiu dizendo que ele morava ali naquela casa e perguntou se ela podia ir pegar a iden-tidade. Um dos policiais a mandou se afastar e disse irônico: “seu filho está em boas mãos, está na mão da polícia”. Quando o policial o libe-rou, abaixou a calça do meu sobrinho, o empur-rou na direção de minha irmã e disse “corre lá pra barra da saia da mamãe, sua bichinha”. On-tem, 26/11/2009, esse mesmo sobrinho, que hoje tem 22 anos foi parado de novo pela polícia. En-quanto era revistado, disse que era trabalhador e se eles queriam que fosse até a casa pegar a car-teira de trabalho. O policial estendeu a mão para ele, como se fosse cumprimentá-lo e disse “é isso aí, muito bem, trabalhador.”. Ao invés do poli-cial apertá-la, deu um forte tapa no rosto dele. Até quando a periferia será desrespeitada? Até quando a periferia vai ser considerada antro de bandidos? A periferia grita um grito silencioso. Ninguém escuta...Mara Reis, São Paulo/SP

caros amigosHá pouco tempo assinei a revista por simpa-

tia à sua linha editorial. Sinto uma desintoxica-ção mental ao ler as matérias e entrevistas da edição 152. Além da apresentação gráfica refi-nada em novo papel. Continuem com esse per-fil, divulgando um pensamento crítico indepen-dente chancelado pela credibilidade que o não alinhamento lhes privilegia. Cumprimento a to-dos, desejando boas festividades e continuidade nos anos que se aproximam.Silvio Roberto Santos, Canindé/CE

povo mapuchEGostei muito de ler sobre “el pueblo mapuche

en lucha” na edição 151. Parabéns! A América Latina é esquecida dos jornais, revistas, rádios, televisões e universidades brasileiras. Quando no-

Caros leitores

Nov

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amig

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om.b

rfale conosco

ticiam fatos, de modo geral distorcem a realidade. Também foi muito bom ler a entrevista com Gale-ano (edição 152). As lutas estão muito fragmen-tadas, índios lutam por suas cotas, negros do ou-tro lado, proletárias e proletários sem união, sem saúde pública, gays em suas passeatas..Felipe Silva, [email protected]

Emir sadErSem dúvida, oportuna a crônica de Emir Sa-

der, “Fracassomaníacos” (edição 151), ao lem-brar a frase mal feita de Fernando Henrique Car-doso, FHC, sobre o Governo Lula: “o governo Lula acabou”. Agora, vem uma afirmação duvi-dosa e hipócrita, na Revista ISTOÉ, 25.11.2009, p.30, do mesmo FHC: “Que diferença há entre o meu governo e o de Lula? Muito pouco”. Fer-nando Henrique “pulou” de enfoque? Mas foi “chefe” de um Governo medíocre, que teve o Consenso de Washington mandando, quase ma-tando o país. Felizmente, o Governo FHC não matou o país, pois as privatizações foram estan-cadas. Além de errada, a venda da Vale do Rio Doce foi feita a preços medíocres. José de Jesus Moreira de Moraes Rego, Brasília/DF

monopólio do sacroEscrevo para parabenizar a revista, da qual

sou leitora assídua, mas ao mesmo tempo me questiono por que é tão preconceituosa e parcial quando se trata de religião, principalmente a ca-tólica? Para demonstrar minha indignação com a campanha citada na reportagem “O monopó-lio do sacro” (edição 152), faço uso das palavras da psicóloga Renate Jost de Morais em seu livro “O inconsciente sem fronteiras”: “Nenhuma fi-losofia, nenhuma orientação religiosa ou políti-ca, nem mesmo as ciências humanísticas conse-guem sustentar uma população sadia e alegre se suas bases não se assentarem sobre os princípios que nos foram legados pelo cristianismo...” Josane Manente Melhem, [email protected]

redação

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tel.: (11) 2594-0376(de segunda a sexta-Feira, das 9 às 18h)

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Page 7: Ed. 154 - Revista Caros Amigos

caros amigos janeiro 2010 6

Mc Leonardo

Uma das grandes contribuições da ciência linguística foi provar a existência de traços universais, presentes em todas as línguas hu-manas. E poderia ser diferente? Afinal, todos os humanos, apesar de diferenças externas, superficiais (cor da pele, formato dos olhos, textura do cabelo), são biologicamente uma única espécie, dotada das mesmas potencia-lidades cognitivas, já que o cérebro é o mes-mo. Por isso, o grande Lévi-Strauss pôde ela-borar uma antropologia que identificava o que há de comum, de similar e de universal nas culturas humanas, apesar das aparentes diferenças.

Com isso, aprendemos que as línguas pas-sam pelas mesmas etapas em suas transfor-mações. A mudança linguística é um proces-so sociocognitivo, isto é, ela se deve a fatores sociais (variação dialetal, contatos entre fa-lantes de línguas diferentes etc.) e a proces-samentos mentais (analogia, reanálise, me-táfora, metonímia, abdução etc.) e ocorre ininterruptamente. Só que ocorre, em cada língua, com ritmos diferentes.

Para o senso comum, porém, herdeiro de uma visão arcaica e pré-científica de lin-guagem, surgida no mundo grego no sécu-lo III a.C., a mudança linguística represen-ta a “corrupção” e a “degradação” da língua, sempre identificada exclusivamente com a língua escrita dos grandes escritores, como se não existisse a língua falada e como se a escrita não se manifestasse também em ou-tros tipos e gêneros textuais.

Essas ideologia preconceituosa impede que as pessoas (inclusive profissionais da linguagem, professores de línguas e, algu-mas vezes, até linguistas!) percebam fenô-menos interessantíssimos que servem (ou de-veriam servir) de base para muitas deduções importantes sobre o funcionamento das lín-guas. A cegueira (e a surdez) linguística se enraizou profundamente na cultura ociden-tal e os cento e poucos anos de vida de uma verdadeira ciência da linguagem ainda não foram suficientes para abrir as mentes, os ouvidos e os olhos da maioria das pessoas sobre o assunto.

Os brasileiros vão estudar inglês e aprendem que nessa língua a morfologia verbal é simplís-sima. No presente, a única forma diferente das

outras é a da 3a pessoa do singular, que ganha um -s (he lives), enquanto as outras permane-cem idênticas (I, you, we, they live). No passa-do, tudo fica exatamente igual (I, you, he, she, it, we, you they lived). Ninguém se assusta com isso, ninguém ri disso, e muitos até acham bom que seja assim, porque é mais fácil de aprender do que nas línguas (como o português, o ale-mão etc.) que têm uma morfologia verbal bem mais diversificada.

Qual é a reação, porém, desses mesmos brasileiros quando topam com algo do tipo eu morava, tu morava, ele morava, nós mo-rava, vocês morava, eles morava? O riso, o deboche ou, no melhor dos casos, a compai-xão pelos “infelizes caipiras” que “não sabem falar direito”, como se fossem menos inte-ligentes ou até menos humanos que os de-mais falantes. Ora, do ponto de vista exclu-sivamente estrutural, não há nada de melhor em I / you/ he / she / it/ we / you / they li-ved nem nada de pior em eu / tu / você / ele / ela / nós / a gente / vocês / eles / elas mo-rava... O fenômeno linguístico é o mesmo, a recepção sociocultural do fenômeno — e só ela — é que é diferente. E é aí que a porca torce o rabo!

falar brasileiroMarcos Bagno

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Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Quem ri do quê?

Há mais ou menos dois anos a rede Glo-bo vem perdendo audiência pra rede Record no horá-rio da segunda edição de seu jornal local no Rio.

E perde pra um programa apresentado pelo De-putado Wagner Montes, que condena as instituições defensoras dos direitos humanos e diz que polícia tem que “largar o aço” e “sentar o dedo”; entre ou-tras opiniões absurdas, ele lamenta quando o acusa-do de ter atirado na policia não é morto e faz a fes-ta quando o desfecho é sua morte.

Pra não ficar pra trás, a rede Globo contratou no ultimo mês de novembro nada mais nada menos que Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE e agora comen-tarista da guerra urbana que vive o Rio de Janeiro.

No documentário “Diário de uma guerra parti-cular”, Pimentel foi perguntado sobre o que sentia quando matava um bandido na favela. Ele respondeu: “A sensação é só de dever cumprido”. No livro “Elite da Tropa” e no filme “Tropa de Elite” (ambos ele aju-dou a escrever), Pimentel mostra algumas caracterís-ticas da polícia do Rio de Janeiro: despreparada, tor-turadora, corrupta e assassina.

Mas agora ele volta à cena como porta-voz dessa mesma polícia, legitimando a metodologia de implementação das chamadas UPPs (Unidade de Po-lícia Pacificadora).

Quem acha que moradores de favela não querem a polícia ali está enganado. O problema é que a po-lícia que eles veem fora da favela, que respeita as pessoas, nunca foi vista dentro. E as chamadas UPPs estão ignorando todos os tipos de direitos dos mo-radores das favelas que eles dizem estar pacifican-do. Na visão deles, os moradores têm que entender o momento de transição que estamos vivendo e acei-tar tais abusos e excessos.

Bom, tudo o que sabemos sobre o que se pas-sa hoje dentro dessas favelas do Rio é através de cartas da Secretaria de Segurança, que vão pras redações de jornal; eles opinam da maneira que bem entendem.

Como em qualquer guerra, quem tá no front não fala: nem o PM nem o favelado; só os senhores da guerra, através de seus poderosos veículos de co-municação.

Informações da guerra

Mc Leonardo é presidente da APAFUNK, cantor e compositor.

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7janeiro 2010 caros amigos

José Arbex Jr.

Sem acordo sobre Honduras: Arturo Valen-zuela, o novo secretário assistente do Departamento de Estado dos Estados Unidos para o hemisfério ocidental, visitou o Brasil em 14 de dezembro, com o objetivo de forçar um acordo sobre o futuro de Honduras. Queria que o governo brasileiro endossasse a farsa eleitoral, em 29 de novembro, que conduziu Porfírio Lobo à pre-sidência (segundo informações não confirmadas, Lobo é associado ao grupo católico fundamentalista Opus Dei). Ou que, pelo menos, emitisse uma declaração para ate-nuar sua condenação total do processo. Valenzuela saiu de mãos abanando. Marco Aurélio García, assessor para a política externa do presidente Luís Inácio Lula da Sil-va, tentou atenuar as discrepâncias em suas declara-ções à imprensa, mas reiterou a posição brasileira.

Sinal dos tempos: historicamente, Honduras sempre foi a típica “república de bananas”. Está sob in-tervenção militar dos Estados Unidos desde 1904, quan-do marines foram convocados para esmagar uma revol-ta de camponeses contra o regime de superexploração da mão de obra imposto pela sinistramente famosa Uni-ted Fruit e outras empresas que exploravam cultivos tro-picais. Ao longo da Guerra Fria, e em particular nos anos 80, Honduras era conhecida como o “porta-aviões não naufragável dos Estados Unidos”, pois o seu território era livremente utilizado pela CIA e por militares ianques para combater movimentos “inimigos”, como o governo san-dinista da Nicarágua e a luta revolucionária em El Sal-vador. Hoje, Washington mal consegue articular um gol-pe de Estado em Honduras. É um fiasco.

A “ala combativa” dos governos latino-americanos (Venezuela, Bolívia, Argentina, Paraguai, Equador, Ni-carágua e, claro, Cuba) condenou inequivocamente o golpe, ao passo que os governos vassalos (sobretudo, Colômbia e México) se calaram, para em seguida re-conhecerem o resultado da farsa eleitoral. A posição do Brasil, nesse contexto, tornou-se muito importante para Washington. A manifestação favorável de Brasília poderia compensar a condenação pela maioria esmaga-dora dos governos do hemisfério ocidental. Mas Lula, ao menos até o momento, não cedeu.

E os atritos com Valenzuela não se limitaram a Hon-duras. O emissário de Barack Obama foi obrigado a ou-vir de García que o Brasil tampouco aprova o recém-as-sinado acordo de Washington com Bogotá, que permite

aos Estados Unidos manter centenas de soldados e ci-vis em até dez bases militares daquele país, pelos pró-ximos dez anos. No auge da “crise das bases”, Lula pe-diu a Obama que explicasse o acordo numa reunião de cúpula da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Obama não aceitou. Finalmente, outro ponto da con-versa girou em torno da visita ao Brasil, em novembro, do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. A re-cepção oferecida por Lula produziu ataques histéricos por parte da secretária de estado Hillary Clinton.

Independentemente das razões que le-vam o governo Lula a assumir uma posição de resis-tência ao imperialismo estadunidense, quando já cedeu tantas vezes ao longo dos últimos seis anos, o fato é que Washington enfrenta dificuldades inéditas para man-ter a lógica da Doutrina Monroe. Desde 1823, quando o presidente James Monroe anunciou a sua doutrina, o hemisfério sul é tido como uma espécie de “quintal” dos Estados Unidos, sua “área de influência”, fora do alcan-ce das outras potências colonialistas. O único país que desafiou a doutrina e conseguiu manter a sua sobera-nia foi a pequena ilha cubana (e por isso não é perdoa-da por Washington). Até anteontem, a hegemonia esta-dunidense absoluta. Há menos de duas décadas, a Casa Branca pôde ordenar a invasão de Granada (1983) e a do Panamá (1989) sem encontrar qualquer resistência. Hoje, até mesmo o governo Lula, saudado por Barack Obama como alguém “da turma”, enfrenta com pala-vras e atos a petulância ianque.

A Doutrina Monroe agoniza, e este é um dado central, especialmente numa conjuntura mundial em que a disputa pelo controle das reservas de petróleo, minérios, água e biodiversidade tende a ser um marco determinante do século 21. A agonia da Doutrina Mon-roe, com o consequente alargamento das fissuras entre governos latino-americanos e Washington, abre a pos-sibilidade do desenvolvimento do movimento de mas-sas, em escala jamais vista (como já foi anunciado pelo papel de liderança dos povos originários). Além disso, o enfraquecimento da hegemonia estadunidense na re-gião abre o espaço para o surgimento de alianças e diá-logos até há pouco impensáveis (por exemplo: o diálogo entre Venezuela e Irã, ou mesmo a relativa autonomia com que o Brasil recebeu o presidente iraniano).

Mas afirmar que a Doutrina Monroe agoniza não

significa, de modo algum, que ela deixou de existir, ou que seus estertores serão breves. Ao contrário. A agonia do Império Romano durou dois séculos, pelo menos, e produziu muitas mortes e sofrimento. Washington não entregará facilmente a rapadura, e tanto o acordo com a Colômbia, a “ressurreição” da Quarta Frota, também denunciada por Lula, e o próprio golpe em Honduras são claros sinais disso.

Sob Obama, a política imperialista dos Es-tados Unidos mantém toda a agressividade exibida sob George Bush. A diferença é o sorriso na cara. Obama acaba de ser agraciado com o Nobel da Paz, uma indicação muito forte de que os governantes eu-ropeus tentam reunificar a “sagrada aliança” com os Estados Unidos, única potência capaz, hoje, de asse-gurar as condições minimamente necessárias ao fun-cionamento do capitalismo. A permanência da Otan, uma aliança militar que, formalmente, perdeu sua função com o fim da Guerra Fria, é a expressão mili-tar da “sagrada aliança” contemporânea.

Obama quer comprometer ainda mais as forças da Otan – isto é, das potências europeias centrais, incluin-do Alemanha, França e Ingalterra - no Afeganistão, como usa a Otan como ponta de lança contra a Rússia, encarada pela Casa Branca como grande rival pelo con-trole da Eurásia. As tentativas de incorporar a Ucrânia e a Geórgia, bem como os acordos militares com a Po-lônia e a ofensiva contra o Irã são expressões dessa po-lítica, que, aliás, não é nova: foi anunciada, em 1992, por Zbigniew Brzezinski, ex-assessor de segurança na-cional no governo Jimmy Carter, no livro “The Grande Chessboard – American Primacy and its Geoestrategic Imperatives”.

Mas a reviravolta na América Latina não estava nos planos de ninguém. Nem mesmo Brzezinski, com toda a sua inegável capacidade de estrategista, pôde detec-tar esse “pequeno imprevisto”: os povos da América La-tina, incluindo a pequena Honduras, são capazes de di-zer não. Trata-se de uma dessas peças que, de vez em quando, a luta de classes prega nas potências hegemô-nicas, permitindo que o improvável se torne possível.

Obama já enfrenta o inferno no Afeganistão. Ele que se cuide na América Latina.

José Arbex Jr. é jornalista.

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Os iNferNOs

de Obama

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caros amigos janeiro 20108

Guilherme Scalzilli

Numa de suas memórias, Zé Lins do Rego conta como se apaixonou pelo Flamengo. Chegado ao Rio, começou a frequentar está-dios de futebol, a escrever, aqui e ali, sobre o clube. Uma noite lhe bate na porta um senhor negro com um pedido: o filho estava desen-ganado pelos médicos e queria porque que-ria falar com o escritor. Zé Lins estranhou e, embora ainda não vivêssemos a paranoia de hoje, quando o homem lhe disse que mora-va no Morro da Providência, pensou em re-cusar. O pedido, porém, lhe pareceu tão insó-lito, o homem tão sincero, que topou. Era no topo do morro. O garoto estava com a barri-ga aberta, não viveria muito. “Pedi pra trazer o senhor aqui pra lhe fazer um pedido. Que o senhor mande cobrir o meu caixão com uma bandeira oficial do Flamengo, pra que ao ve-rem meu enterro passar, meus amigos digam: Foi Flamengo até morrer”.

Me lembrei dessa história no dia em que o Flamengo foi campeão brasileiro de 2009. Não é triste só porque um menino estava morrendo, mas por revelar (ou esconder, se o leitor preferir) uma forma de dominação es-petacular da sociedade brasileira: a paixão popular explorada por empresários, cartolas e comunicadores esportivos – a legião de J. Hawilas, Márcios Bragas e Galvões Buenos.

O vídeofutebol é um composto de patro-cínio, merchandising, comercialização de jo-gos e direitos de imagem. Os pioneiros, há cinquenta anos, foram os irmãos alemães fa-bricantes de calçados, Adolf Dassler (Adidas) e Rudolf Dassler (Puma), o primeiro hábil em se ligar a grandes cartolas como João Have-lange (daí a suspeita de que a Copa de 98 te-ria sido vendida pela Nike, patrocinadora da seleção brasileira, à Adidas, patrocinadora da França), o segundo a grandes estrelas como Pelé. Uma das empresas do ramo se chama Traffic Sports, o nome é ótimo. O que eles compram barato e vendem caro? A paixão do torcedor. A contar do profissionalismo no Brasil já vão perto de oitenta anos. Cada jogo da Champions League, dos campeonatos es-panhol, italiano e inglês, da Copa do Mundo, retransmitidos para o mundo inteiro, é um negócio da China.

Zé Lins foi um homem apaixonado, fa-zendo muitos amigos e inimigos. O futebol só se tornou negócio da China após a sua morte.

Ele é do tempo de Leônidas e Zizinho, gran-des artistas que tiveram popularidade máxi-ma, mas pouquíssimo ganharam. Aquele foi o tempo da “cultura do populismo”, anterior à sociedade do espetáculo, em que havia ca-nais de comunicação entre os poderosos e os de baixo. A sociedade era igualmente injusta, mas ainda as ideias e sentimentos das elites faziam algum sentido para os demais. O rádio não era, como é a televisão, um motor de pro-duzir alienação e humilhação diária dos po-bres. Gosto de uma maldição chinesa: “Toma-ra que vivas numa época interessante”.

O leitor sabe que esta coluna é sobre li-vros. Não crítica de livros, mas um mergu-lho impressionista no seu interior, o que nos tem levado à Grécia, Rússia, Dores do Indaiá, Medellín, Chicago, Teresina... Às vezes o ro-teiro é inverso, parto de acontecimentos para livros. Hoje, parti do moribundinho da Provi-dência para uma maldição chinesa.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.gui-lhermescalzilli.blogspot.comJoel Rufino é historiador e escritor. Il

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A maldição chinesa

A fórmula de pontos corridos represen-ta a definitiva elitização do futebol nacional. Em sua vigência, as melhores colocações do Cam-peonato Brasileiro serão sempre ocupadas por clubes que receberem os maiores repasses fi-nanceiros, enquanto competidores menos favo-recidos lutarão contra o rebaixamento e conso-lações efêmeras.

Esse fato inquestionável tem sido minimi-zado pela crônica das capitais, graças ao títu-lo aparentemente imprevisível do Flamengo e a fracassos isolados de outros poderosos. Mas em nenhum caso a tendência geral do modelo foi contrariada.

Qualquer processo classificatório permite mi-lhares de métodos, todos sujeitos à interferência de arbitragens tendenciosas, tribunais abjetos, influências diversas. Ainda que houvesse deba-te aberto e desapegado sobre novas estratégias de competitividade (por exemplo, o sorteio de atletas promissores, nos moldes dos “drafts” da NBA americana), qualquer moralização do es-porte passaria necessariamente pela distribui-ção equitativa das verbas milionárias oriundas de patrocínios e transmissões televisivas.

O sistema atual, defendido como o mais “justo”, legitima uma estrutura viciada, onde as cotas definem previamente o encami-nhamento da disputa. As disparidades resultan-tes, imensas e decisivas, inviabilizam qualquer ilusão de equilíbrio: eis o mecanismo que se es-conde no elogio à regularidade dos clubes bem sucedidos. Ora, nada contrariará o mito da “com-petência” dos vitoriosos enquanto os adversários estiverem inferiorizados desde o início.

Os privilégios transformam as com-petições longas e desgastantes em farsas des-tinadas ao regozijo de uma aristocracia imutá-vel que domina os bastidores da cartolagem. Por isso há tanto medo das surpresas possibilitadas pelo sistema de grupos, ou “mata-mata”, com decisões sucessivas. O monopólio não admite o imponderável.

Time pobre não tem vez

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9janeiro 2010 caros amigos

Ferréz

Os carros pretos chegam.Homens mascarados com rostos aparentes, com

armas e coletes.A polícia pisa no lixo, passa pelo córrego,

corre pelas vielas, avança pelos barracos, paten-teia o espetáculo.

Também acessível para quem quiser ver em um jogo de Playstation.

Ao vivo, ao vivo, chama o moto link!Se fosse em São Paulo, seria só na hora do pro-

grama do Datena, o efetivo da policia só trabalha nesse horário.

Mas é Rio e é 40 graus.Corpos magros, sem camisa, descalços, não vão

abastecer a mercadoria do turista, não vão aliviar a tensão do empresário, não vão fazer rir o futu-ro arquiteto, não vão deixar mais alegre a festa de formatura, hoje não, hoje eles correm, e enquanto correm pensam em ter artigos da Ecko.

Mulheres correm, crianças andam, ba-las passam, lojas fecham e fazem o balanço do que vão deixar de ganhar.

O espetáculo continua, alguns colocam ven-das para não ver, outros olham para o mar, ou-tros criam taxas e mais impostos para um dia se mandar.

Entulho, madeira queimada, pneus, carros velhos, fumaça, pipas no céu, ameaças, laquê e ca-netas Mont Blanc.

Há alguns meses um jovem corria de um heli-cóptero, da TV Sony todo mundo assistiu almoçan-do, como se fosse às olimpíadas... do Faustão.

Tiros, o jovem preto-pobre-trafi cante caiu. Palmas! Está salvo o Brasil. No outro dia o assun-to era o clima.

Arruda e seus milhões não dão ibope, não parece fi lme do Rambo.

O desbarrancamento, as mortes, não é culpa do estado rico, é culpa dos moradores, que deixam os esgotos caírem nos morros.

O povo é culpado.Você já viu como andam quentes esses dias,

Lia?Claro, Alfonso, está infernal.O repórter formado na FAAP não vai mais apro-

veitar a carona no helicóptero da polícia.A emissora que pertence à LIFE não vai

sobrevoar aquele amontoado de tijolos vermelhos vendidos no Armazém Gonsales.

As Casas Bahia não vão subir o morro, a Mara-braz e seus relógios do Zezé de Camargo e Lucia-no não vão mais abrir uma fi lial ali.

Tudo isso não será mais feito, pelo menos até as armas, entre elas a Uzzy, serem recolhidas, potentes armas, potentes empresas que sabem dis-tribuir no terceiro mundo, segundo em vendas de cosméticos e primeiro colocado no ranking inter-nacional de combate à fome.

Agora a preocupação são as armas, nem pessoas, nem moradores, nem viciados, nem inocentes con-sumidores que tanto nutrem tudo isso.

O perigo são as armas.Indignada, pisando na lama, em volta da fu-

maça, num calor infernal, com cheiro de pólvora e suor no ar, rodeada por menores e não meninos, por “supostos” bandidos e não por moradores, a re-pórter com sobrancelha defi nitiva, vestindo Guc-ci esbraveja:

– O que está acontecendo, por que es-tão fazendo isso com o Rio de Janeiro, o que há de errado?

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma fi lha num país chamado periferia.

Ficcionando A REALIDADE

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caros amigos janeiro 2010 10

Soffrer purifica, segundo os religiosos. Soffrer excita, segundo os masochistas. Para uma creança, que não tem noção de pecca-do nem de orgasmo, soffrer é só o que vem antes do allivio. Quando eu me machuca-va e mamãe passava alcohol na ferida, mi-nha reacção era repetir, chorando, o dictado que ella usava: o que arde, cura; o que aper-ta, segura. Por isso não me conformei quan-do me disseram que agora o Merthiolate não arde mais. Não sei si eu usaria um remedio que não fosse ruim, como o oleo de figado de bacalháo ou o cha preto sem assucar. Quem sabe a iniciação sexual ou espiritual não es-taria na pharmacopéa tradicional?

Mas tudo na vida admitte excepções. Ao lado da injecção na bunda e do motor-zinho do dentista, sempre existem as com-pensações, typo xaropes assucarados ou saes effervescentes. Sempre achei que o lado bom das indigestões era o momento de jogar num copo d’agua aquelle pozinho magico que nos faz arrotar de satisfacção... As unicas coi-

sas para as quaes nunca achei solução, seja amarga ou doce, foram os gazes accumulados e a prisão de ventre. Dahi tirei a conclusão de que certos soffrimentos precisam ser en-carados como parte da nossa existencia, typo um karma ou estigma. Que nem a classe po-litica na sociedade: é o cancer inextirpavel e perenne. Mas si nenhum producto faz effei-to para alguns males, resta-nos a trilha so-nora do annuncio radiophonico. No caso do sal de fructa, era uma conga cuja lettra di-zia: “Alka Seltzer, existe apenas um, e como Alka Seltzer não pode haver nenhum...” Até me lembra algo “differente de tudo que está ahi”... E para a propaganda politica, qual se-ria a trilha? Marcha funebre ou marchinha carnavalesca?

Masochismos à parte, prefiro aquella mais facil de dançar...

porca miséria!Glauco Mattoso

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

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Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

De tanto virar thema musicalem scenas de comedia, essa dançantee sacudida moda ao Sonrisalfoi logo associada, dalli em deante...

Ao Sonrisal, ou algo semelhante,um Eno, um Alka Seltzer, emfim um salde fructas, antiacido a quem jantedemais: é effervescente e não faz mal...

Sem contraindicações, esse pó branconão é como a tal dança em solavancoque lhe serviu de rhythmo commercial...

A conga embrulha o estomago, si fordançada no seu maximo vigor,mas quem é dado a pós acha normal...

Soneto para uma conga [1733]

O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva solici-tou aos seus ministros Luiz Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência, e Tarso Genro, da Justiça, que apresen-tem um anteprojeto de Consolidação das Leis Sociais – CLS. O propósito é consolidar o conjunto de normas sociais existentes desde a Constituição de 1988 e, so-bretudo, desde o início de seu primeiro Governo, em 2003. A iniciativa guarda relação com a Consolidação das Leis do Trabalho editada, em 1943, pelo Presiden-te Getúlio Vargas.

Em entrevista ao O Estado de S. Paulo, em 11.10.09, o ministro Tarso Genro informou que a CLS englobaria projetos definidos em lei como Pro-Jovem; ProUNI; Bolsa Família; Minha Casa, Minha Vida; Pronasci e outros baseados em decretos e portarias. Esses se tornariam obrigação legal para os próximos governos.

O Presidente Lula sancionou, em 8 de janeiro de 2004, a Lei 10.835/2004, que institui a Renda Básica de Cidadania – RBC, cuja proposição foi aprovada con-sensualmente por todos os partidos no Senado Fede-ral, em dezembro de 2002 e, na Câmara dos Deputa-dos, um ano depois. Essa Lei se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros aqui residentes há pelo menos cinco anos, não impor-tando a sua condição socioeconômica, receberem uma renda que será igual para todos, suficiente para aten-der as necessidades básicas de cada pessoa, tendo em conta o grau de desenvolvimento do País e as possibili-dades orçamentárias.

O parágrafo primeiro da Lei da RBC dispõe que sua implementação será realizada por etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se os mais necessitados. O Programa Bolsa Família constitui o primeiro passo na direção de alcançarmos a RBC para todas as pessoas.

Nos próximos dias 30 de junho e 1 e 2 de julho, na FEA-USP, será realizado o XIII Congresso Internacional da BIEN-Basic Income Earth Network, ou Rede Mun-dial da Renda Básica, ocasião em que estarão presen-tes pensadores dos cinco continentes que abraçaram esta causa. O presidente Lula fará a palestra de aber-tura. É grande a expectativa acerca de sua exposição sobre como o Brasil, após consolidar o Bolsa Família para um quarto de sua população, instituirá a Renda Básica Incondicional.

A Consolidação das Leis Sociais e a Renda Básica

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11janeiro 2010 caros amigos

O palco está montado sob uma lona de circo, e a estrutura de picadeiro borra a distin-ção entre palco e plateia. O palco ainda fica um nível acima (seriam semideuses os astros pop?), mas a plateia a todo momento parece que vai subir, tomar de assalto a ribalta, raptar a espo-sa do palhaço, roubar o show.

Uma moça de pele escura, aspecto hippie e graciosos gestos de bailarina oriental, dança concentrada diante do palco, um degrau abai-xo, não importa que estilo musical esteja pas-sando ali por cima. Tece evoluções com o auxí-lio de uma canga, e na canga, que dança mais que a moça, está inscrita em letras garrafais a palavra Brasil.

O circo está armado na cidade de Vitória, e o que evolui no palco é um festival de rock, integrado à programação do II Fórum de Mídia Livre. No picadeiro e nos auditórios da Univer-sidade Federal do Espírito Santo, onde aconte-ce o encontro, alternam-se músicos sem gra-vadora, jornalistas sem jornalão, fazedores de mídia sem Globo. Um globo da morte faria as vezes de cabine para os DJs, mas, que pena, os circenses donos da lona precisaram dele para outro evento.

Jards Macalé sobe ao palco para se apresen-tar com um jovem grupo capixaba, Sol na Gar-ganta do Futuro. Macalé gosta da molecada, é daqueles artistas que preferem atravessar fron-teiras geracionais a morar isolados em globos blindados no centésimo andar. Põe seu clássico “Vapor Barato” na garganta do futuro e retri-bui com uma versão bem peculiar de “Diz Que Fui por Aí”, sucesso antigo na voz da carioca nascida no Espírito Santo, Nara Leão. Para es-panto de meus ouvidos e olhos acostumados com São Paulo, a plateia, formada majorita-riamente por jovens, canta em coro os versos do samba de 1964.

“Antiarte” é o negócio da banda Vitro-la de três, segundo um de seus integrantes, Felipe Costa.

“Sempre ouvi música árabe na casa do meu pai e da minha avó, porque eles são libaneses. A percussão é quebrada, é uma música nôma-de, de cigano, essa coisa toda de circo”, afirma o músico, esmiuçando o número circense-mu-sical de sua trupe.

A Vitrola de três vem do interior do Espírito

Santo, mais precisamente de Cachoeiro do Ita-pemirim. É a cidade onde nasceu um tal de Ro-berto Carlos – que, a propósito, cantava em cir-cos no início de sua mais tarde platinada carreira. Também capixaba, de Alegre, era o ex-alfaiate Paulo Sérgio, que se tornou ídolo seguindo os passos bregapop de Roberto e morreu precoce-mente em 1980, aos 36 anos, após um derrame sofrido durante um show num... circo.

Ao final da apresentação da Vitrola de três, pergunto a Felipe sobre o fantasma de Roberto Carlos. “Eu esculacho ele um pouqui-nho... Mas é bom saber que ele é de Cachoei-ro”. “Esculacha por quê, em quê?”, “não sei, isso mesmo de o cara... se acovardar talvez... de repente começa a achar que está bom, que vai pro céu, o cansaço que deve dar... mas acho o som dele gostoso, quando ouço”.

Rock e homofobia costumam ser primos em primeiro grau, mas cá em Vitória uma traves-ti subirá ao palco e conquistará no muque um público rock’n’roll. Angela Jackson canta no duro, em geral paródias do tipo transformar o refrão de “A Lua Me Traiu”, da excelente Ban-da Calypso, em “a peruca caiiiiiiu”. “Eu nunca vi ainda uma travesti médica”, dispara a loirí-sisma cantora, ensaiando breve atitude de pro-testo em meio a um show de gargalhadas e aplausos.

No auditório, o debate é sobre “a morte do pop star”. À mesa (da qual eu também par-ticipo), o produtor Pablo Capilé elabora belas imagens sobre os artistas “midialivristas” espa-lhados em rizomas horizontais, contra a árvore centenária e decadente chamada indústria mu-sical. E eu penso nas Torres Gêmeas quando o vejo desenhar com as mãos a estrutura verti-cal caduca, demolida, pisoteada pelo presente efervescente em que vivemos. Pablo, tez de ín-dio matogrossense, celebra o “artista-pedreiro” (“o artista-pedreiro entende que sucesso é pa-gar as contas”) e rega sua fala com uma frase genial: “Hoje o engajamento não é mais ‘cami-nhando e cantando e seguindo a canção’. É ‘ca-minhando e cantando e carregando caixa’.”

Paranaense radicado em São Paulo há dezoi-to anos, me assombro com a constatação recor-rente de que lugares que tenho visitado, como Vitória e Belém, respiram um vigor cultural es-quecido pelo eixão Rio-São Paulo. Quando um

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“Caminhando e cantando e carregando caixa”

Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

roqueiro do Sol na Garganta do Futuro empu-nha de repente um violão, entendo que o pop e o rock, em Vitória, são moldados em MPB. Rom-peram diques e preconceitos que certas capitais tentam atravessar ainda constrangidas.

Entendo em Vitória e em Belém que a ad-versidade é a grande riqueza brasileira. E tor-ço para que, por isso, a cultura paulista volte em breve a ficar interessante. Afinal, São Paulo se isola cada vez mais e é vista de fora com desprezo e pena, e essas são as condições adversas de que terá de se safar, se não quiser submergir de vez no leito imundo do pobre rico rio Tietê.

Um garoto de 18 anos de idade quebra o bar-raco no picadeiro dos DJs. André Paste é um mes-tre precoce na arte do mashup – justaposição caótica de estilos, batidas e músicas que, em meia hora de som, se desenvolvem como se tudo fosse uma música só, feita de um milhão de deliciosos farelos. André recombina referências tão diver-sas quanto Djavú, Michael Jackson, funk carioca, kuduro africano, tecnobrega paraense, Cansei de Ser Sexy, Daniela Mercury, Novos Baianos, Fá-bio Jr. (a melô “Só Você”, dentro da qual se ouve o grito funkeiro “pau no cu do mundo!”), o hoje cult Luiz Caldas (“Haja Amor”), Wando, Olodum misturado com Guns n’Roses... Nenhuma toca do modo ortodoxo, começo-meio-fim; todas deixam gosto de quero-mais, no refrão que não chega ou passa rápido demais. O espetáculo não pode pa-rar: depois do palhaço virão a trapezista, o doma-dor, a cabra ciclista, a girafa seresteira.

Converso com André ao final de sua sen-sacional aparição. Seu sorriso se estende de ore-lha a orelha quando explica que, sem exagero, gosta de tudo, de todo tipo de música. Mas ele acha que não, não tem futuro na música, não. Eu duvido, mas deixo-o partir na velocidade da luz – afinal é madrugada e amanhã André tem de acor-dar cedo para as provas do Enem.

O mais surpreendente é que a música para esse menino já não se divide em brasileira e estran-geira, “brega” e “chique”, binômios assim. André desliza numa explosão simultânea de excesso de liberdade e completa ausência de preconceitos. E esta, acredite, é a receita infalível para a gran-de música brasileira que virá nestes promissores anos 2010.

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conhecida por seu trabalho de atriz, no te-atro, no cinema e nas novelas da TV Glo-bo, Letícia Sabatella tem também uma só-

lida história de compromisso com os movimentos sociais, em especial o MST, e com as lutas em de-fesa do meio ambiente e dos direitos humanos. Em 2003 participou do lançamento do jornal Brasil de Fato, no Fórum Social Mundial realizado em Por-to Alegre; em 2007 foi solidária com a luta de Dom Luíz Flávio Cappio contra a transposição do Rio São Francisco; em 2008 dirigiu o documentário “Ho-txuá” sobre os índios krahôs, no Tocantins. Par-ticipa de várias entidades e do Movimento Huma-nos Direitos, que reúne artistas, jornalistas e outros profissionais comprometidos com as questões so-ciais. Nesta entrevista exclusiva para a revista Ca-ros Amigos, Letícia Sabatella fala sobre a sua car-reira e o que pensa do Brasil. Vale a pena conhecer as suas posições.

Tatiana Merlino - Vamos começar por onde você nasceu.Letícia Sabatella - Eu nasci em Belo Horizonte, e com dois anos fui morar em Volta Grande. Meu pai trabalhava lá ajudando a construir a usina de Foz do Areia. Meu avô também era engenheiro e ajudou a construir o teatro Guaíra, em Curitiba. Meu pai veio de lá e conheceu minha mãe no sul de Minas, em Itajubá. Ela vem de uma família muito ligada à fazenda.

Hamilton Octávio de Souza - A família toda é de Minas?

De Minas... E sempre tinha essa questão, da sau-dade de terra, de fazenda, de natureza e eu sem-pre gostei. Meu pai conta que ele passou a infân-cia em um sítio, com música, plantando... A tia que o criou atendia os pobres da região com homeo-patia. Eles eram kardecistas. Ainda tem essa tradi-ção na família do meu pai, na da minha mãe é ca-tólica, mas com esses valores. Meus pais sempre me levaram muito para a natureza, a gente sem-pre recolhia muito bicho em casa. Minha mãe tem uma habilidade enorme com plantas. E eles cria-vam plantas, pesquisavam flores, meu pai viaja-

entrevista Letícia SabateLLa

Participaram: Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos

va e trazia uma semente diferente de algum lugar e sempre com a memória das avós que ainda estão vivas e trazem essa tradição. Em Curitiba, o quintal da casa da minha avó é o teatro Guaíra e em Itaju-bá, quando a gente ia para Minas mesmo, era a fa-zenda da família.

Hamilton Octávio de Souza - Onde foi a tua infância?

A minha infância foi nesses universos, de Curiti-ba e sul de Minas. Muita música, dança...

Hamilton Octávio de Souza - Você estudou onde?

Em Curitiba. Fiz formação de teatro e dança lá.

Hamilton Octávio de Souza - Você fez ensino fundamental lá?

Tudo lá. Fiz um pouco em Belo Horizonte, até os 2 anos e em Volta Grande a gente estudou na vila com os operários. Minha mãe dava aula lá.

Tatiana Merlino - Você disse que tinha muita música e dança. Você estudou muita música e dança ou tinha na sua casa?

Tinha muita música em casa, minha mãe e meu pai sempre cantando. Minha mãe canta muito. Ela também dava aula para crianças da minha idade. Eles adoravam minha mãe porque era uma pessoa que sempre estimulava essa coisa de turma. Tinha esse colorido, em Itajubá a família também tinha um bloco de carnaval enorme, assim de rua. Cida-de de interior, com muita coisa na rua, muita fes-ta na rua.

Tatiana Merlino - E teatro, quando você começou a estudar?

Teatro foi em Curitiba, com 14 anos. Entrei em um grupo de teatro chamado “Alma Nua” que acon-tecia no colégio de uma tia minha, o Dom Bosco.

Hamilton Octávio de Souza - A tua carreira de atriz começa com este grupo de teatro?

Uma atriz comprometida

A atriz Letícia Sabatella, concede entrevista à Caros Amigos no dia do lançamento do Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, no Sesc Paulista, em São Paulo.

com as lutas sociais

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A primeira peça que eu fiz foi com o grupo “Alma Nua”, o diretor era o Luiz Carlos Teixeira da Silva. Eu só cantava na peça. Foi em 85, eu tinha 14 anos, depois fui para o colégio para fazer teatro. Aí comecei a fazer aula no coral sinfônico do Paraná, depois a fazer faculdade de teatro e com dois anos de faculdade eu já sai de Curitiba para trabalhar.

Gabriela Moncau - Trabalhar onde?Eu fui fazer “Os homens querem paz”, um espe-

cial da Globo.

Tatiana Merlino - E foi aí que você entrou para a Globo?

Foi. Primeiro a gente tinha um grupo também. A gente tocava em um bar e estava juntando dinheiro para tocar lá em Itapema. Aí me chamaram para fa-zer o teste para Teresa Batista, uma minissérie, que depois virou um especial. Depois eu tive que fazer uma novela, e tive que mudar para o Rio mesmo.

Tatina Merlino - Você sempre quis trabalhar na televisão?

Não era o que eu tinha como objetivo não. Como eu estava em Curitiba e havia uma distância, não é uma coisa que você pensava: “ah televisão é ali”. Para mim não era assim. Era bem distante. Mas a gente tinha influência de grandes artistas, de músi-cos, de escritores, de poetas, de teatro, de cantores de ópera. Então eu acho que a gente perseguia um pouco essa formação. Mas acho que antes de pensar em televisão, perseguíamos algumas pessoas que tinham lá mesmo, como atores bons e montagens que a gente via, trabalhos que tinham na assinatura um sotaque cultural de lá. Tinha uma coisa bastante universal, como as óperas que a gente fazia o coro, os balé, muita música clássica... Era impressionante o quanto lotava o Guaíra para assistir ópera.

Hamilton Octávio de Souza - Quem era a tua referência de atores?

Ah! A gente tinha montagens lindas, o Marcelo Marchioro é um diretor que fez coisas que influen-ciaram muita gente, o Raul Cruz, um artista plásti-co impressionante que também fazia teatro, a Lau-ra Schneider já era musa lá e tinha as montagens do Dalton Trevisan, de textos dele. Tínhamos mui-tas cantoras de ópera...

Hamilton Octávio de Souza - E na televisão quando foi que você começou?

Em 90.

Tatiana Merlino - E a primeira novela que você fez qual foi?

Foi o “Dono do Mundo”, em 91.

Gabriela Moncau - E você tinha quantos anos na época?

20 anos.

Tatiana Merlino - E como é que foi entrar para Globo? Como era a sua relação com os outros artistas e com os autores das novelas?

Neófito, coisa de quem estava vendo pela pri-meira vez e descobrindo aquilo. Eu sei que quan-

do eu comecei a fazer o especial, que a gente foi para o Nordeste por 12 dias. Eu achei bem difí-cil, mas achei muito mágica a linguagem. Come-cei trabalhando com o Luiz Fernando Carvalho e ele tinha uma proposta séria com televisão, super exigente. A novela foi muito interessante de fa-zer, mas eu não queria fazer ela naquele momen-to porque exige uma agilidade, porque o ritmo é de indústria. Tem uma qualidade dramatúrgica in-teressante. Muitas vezes tem novelas que questio-nam coisas que movimentam de um jeito a cabe-ça do grande público, e você pensa: “Nossa, é uma arte”. Só que o ritmo de se fazer é muito acelerado, né? Eu comecei fazendo a novela, aí no começo eu fazia cinco cenas por semana. Depois, na segun-da semana eram 20 cenas por dia, muda comple-tamente. Não existe aquilo que você pensava de: “vou fazer uma peça, estudar meses, ler todos os livros daquele autor, ver filmes, vou me inspirar, ouvir música, vou me alimentar de coisas para en-trar nesta personagem, construir esta história jun-to”. Fazer televisão é outra mágica. E é muito Com-media dell’arte, eu brincava com isso. Algumas novelas foram assim. Em “O Clone”, a gente mon-tou uma trupe de Commedia dell’arte no começo e aí o texto entrava e a gente só ia brincando e improvisando. Ás vezes você consegue aproveitar dessa agilidade para fazer alguma coisa com essa linguagem. O Amir Haddad até fala que tem certas personagens na televisão para as quais tem que se pagar taxa de insalubridade. Você adentra em uns universos em um ritmo e com um tratamento que fica às vezes até superficial em virtude do que exi-ge de conhecimento.

Tatiana Merlino - Quantas novelas você já fez?Não sei, tem que contar...

Tatiana Merlino- Mais ou menos, 15?Não, deve chegar a 10.

Gabriela Moncau - Você disse que tinha o teatro muito mais como referência. Por quê você fez essa escolha de entrar para a TV?

Era uma situação de que para ter uma indepen-dência como ator você não recusa personagem. Surgiu um trabalho em uma minissérie, que é uma coisa legal. Então eu pensei: vou fazer uma minis-série e depois volto e continuo estudando, e aí ou-tro dia eu vou lá e faço outra minissérie. Só que aí não foi assim, né? Eu acabei tendo um contrato, tive que cumpri-lo, e aí virou uma novela e não foi uma minissérie. Mas depois disso eu parei, fiquei com um contrato só com obras que eu fizesse e parava mesmo, por conta própria, para estudar. Claro, tem momentos legais fazendo a novela e eu tive condi-ção de estudar com esse dinheiro.

Tatiana Merlino - O que você estudou nestes intervalos?

Ah, de tudo que eu pude. Todas as oficinas que apareciam que dava para fazer de pessoas legais de voz, de corpo, várias coisas, de palhaço. O pró-prio documentário foi um estudo, né? Ir até a tri-bo lá, terminar a faculdade que não tinha termi-nado.. [Letícia dirigiu o documentário “Hotxuá”,

filme sobre a tribo indígena Krahô, localizada no estado de Tocantins]

Gabriela Moncau - Que época você foi lá para Tocantins?

Quando eu fui lá pela primeira vez, a minha filha Clara tinha dois anos. Foi 95 ou 96, eu acho. Aí de-pois eu fui para filmar em 2000 e alguma coisa.

Gabriela Moncau - Você foi direto para a tribo dos índios krahô?

Dos índios krahô...

Gabriela Moncau - E por que você foi a primeira vez?

Para conhecer, e a gente foi fazer uma peça de teatro também. A gente ficou em um sítio traba-lhando, estudando, trabalhando butô e fazendo es-tudos. E fomos estudar temas indígenas. Daí ti-vemos a oportunidade de conhecer esta tribo dos krahô. Passei por vários rituais. Foi uma experiên-cia fascinante ver uma cultura milenar, que na épo-ca estava extremamente abandonada. Eles estavam perto de uma cidadezinha, Itacajá, e os índios eram muito malvistos como pedintes, mendigos... Eles não sabiam quem éramos, então passamos desper-cebidos até que as pessoas da cidade descobriram que estávamos lá e começaram a querer ir para a al-deia. Aí eles começaram a perguntar: “vocês apare-cem na televisão, vocês são artistas?” Só que eu es-tava ali diante de uma cultura milenar, aquilo doía de ver. As coisas mais utilitárias deles têm bom-gosto. Tudo é arte, o tempo inteiro é arte. Quando tem que fazer um ritual para comer uma comida em conjunto são três dias de cantoria seguida. Você vai até entrando em transe de ouvir aquilo.

Hamilton Octávio de Souza – É um documentário, é isso?

É um documentário.

Hamilton Octávio de Souza - Qual é o nome do documentário?

“Hotxuá”, que é o palhaço sagrado da aldeia.

Gabriela Moncau - Você pode contar um pouco dessa experiência? Vocês foram para lá já para filmar o documentário com essa ideia?

Não, a primeira vez não. Fui para conhecer a al-deia e conhecer danças sagradas indígenas.

Hamilton Octávio de Souza - Isso foi iniciativa de quem?

Isso foi iniciativa minha. Eles me pediram ajuda para fazer registros.

Hamilton Octávio de Souza - Foi você quem dirigiu o documentário?

Eu e o Gringo Cardia.

Hamilton Octávio de Souza - E esse documentário passou em algum lugar?

Ele está percorrendo festivais em vários lugares fora do Brasil e aqui também já foi para alguns festi-vais. Foi até para um festival muito bacana agora, o de Cuiabá, que é um festival com indígenas. Fomos para

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a Bahia, para Tiradentes, agora eu estou indo para Porto Velho onde eu vou encontrar outras etnias.

Hamilton Octávio de Souza - E essa experiência, o que significa?

Até como atriz eu aprendi fazendo esse docu-mentário. Você vai pesquisar o palhaço originário de uma tribo e ao mesmo tempo faz a edição dis-so. Você vai lidar com ilha de edição, tecnologia de HD que é alta definição. Então você junta dois pontos, consegue compreender e amplia horizontes também. Em uma experiência destas você aprende muito. Também é uma contrapartida social poder fazer isso. E para mim é um ganho. Fazer este do-cumentário que é um estudo fantástico.

Tatiana Merlino - Você tem outros projetos paralelos ao seu trabalho como atriz na televisão?

Eu acho que sim. Existe vida em toda parte, fora da Globo. Mas tem várias coisas que de algum modo, ali eu tive a sorte de também ter um canal para explorar, como quando a gente fez o “Hoje é dia de Maria” que também tinha um trabalho de corpo, de voz, assim como o do teatro... Mas todos os projetos que eu tenho são relacionados a isso. Eu gosto muito de trabalhar com as comunidades, de juntar essa relação do trabalho da terra junto com o trabalho artístico, mas usar também para prepa-ração para algum trabalho de canto, ou de corpo, ou de teatro. Então eu acho que no futuro eu tenho vontade de juntar essas coisas.

Tatiana Merlino - Qual você acha que é a função social do artista?

Ah, essa é uma pergunta superlegal. O palhaço da aldeia é tão importante quanto o cacique ou o pajé para a sobrevivência da aldeia. Eu gosto mui-to de usar o “Hotxuá” como referência. Ali a auto-estima da aldeia se preserva graças à ação dele e é um espaço de transcendência das dificuldades, de transcender os limites que você acaba tendo que ab-sorver na sua existência, assim como os limites de você conviver numa estrutura social. E o ator, mes-mo com a proposta do entretenimento do palhaço, do humor, ele vai propor essa transcendência de muitas opressões também. Ele ter um senso crítico sobre várias autarquias e muitas posturas autoritá-rias podem ser quebradas ou bloqueadas. Eu acho que pode ser espaço para reflexão. Na Grécia Anti-ga eles receitavam até peças de teatro para os do-entes. Na aldeia, o documentário mostra isso muito claro: ensinar você a absorver coisas difíceis para a sociedade. O palhaço às vezes ensina você a amar coisas que são muito diferentes. Muitas vezes ele é a figura que vai encarnar esse não tão bem visto, ensina o certo através do errado, acho que mantém a integridade em manter a auto estima.

Hamilton Octávio de Souza - Esse tipo de trabalho tem grandes contradições? Como você vê o papel da telenovela?

Agora eu fiz uma novela com uma autora que não vê sentindo em fazer novela que não tenha alguma campanha, alguma proposta social que é a Glória Pe-rez. Nas duas novelas que eu fiz com ela, “O Clone” e

essa de agora, em algum momento ela vai propor re-flexão. Quando ela foi falar dos intocáveis da Índia, ela pensou em casos de esquizofrênicos que vê como casos de intocáveis também. Eu vejo ali um poten-cial conscientizador muito forte em uma novela, ou alienador. Eu acho que é como tudo na nossa socie-dade, a gente tem as duas possibilidades.

Hamilton Octávio de Souza - Dos vários papéis que você fez, qual te agrada mais? Qual novela você acha que tem uma mensagem que combina mais contigo?

Quando eu fiz “O Clone” foi muito legal fazer humor. Eu tinha mais vontade de fazer comédia de costume também, e achei muito legal fazer. Nes-sa novela especificamente aumentaram o número de pessoas que procuraram se tratar de dependên-cia química.

Hamilton Octávio de Souza - Eu não me lembro do “Clone”. Que personagem você fazia?

Eu fazia uma mulçumana que tinha uma identi-ficação enorme com as donas de casa, com as mu-lheres brasileiras. Apesar dela ser mulçumana, vi-via com problema com relação ao marido poder ter outras esposas.

Tatiana Merlino - E como foi fazer essa última personagem que era uma vilã?

Ah, deu trabalho.

Tatiana Merlino - É a primeira vilã da sua carreia?

De uma novela é. Recentemente eu fiz uma dia-ba sexual no “Hoje é dia de Maria”, mas era um pa-pel muito pequeno.

Tatiana Merlino - Então foi muito trabalhoso?Foi. Tinha que pensar demais, e eu não penso

muito. A personagem pensava muito mais que eu para fazer as coisas, então eu tinha uma baita dor de cabeça. Acho que era um personagem para fazer em duas horas ali, como no teatro. Mas nesse ritmo assim de TV, ter que controlar as emoções para po-der ter a frieza da personagem, isso era muito difí-cil, bem difícil.

Tatiana Merlino - Queria voltar a falar daquilo que conversávamos sobre o papel social do artista. Como é que você vê hoje a atuação social dos artistas no Brasil?

Bom. Eu acho que tem trabalhos incríveis. Os próprios movimentos sociais têm artistas fantásti-cos. Acho que o tempo inteiro você vê a arte de um jeito sutil, de um modo poético, metafórico que seja. Mas você vê a arte, você vê muitos artistas, mui-ta música, transformando e fazendo os movimen-tos caminharem... Não sei se você está perguntan-do sobre...

Tatiana Merlino - Os artistas do “mainstream”.Aí é uma faixa estreita do que é o artista.

Hamilton Octávio de Souza - O artista tem um papel bastante privilegiado, ele é reconhecido, é uma figura pública, alguém que pode, dependendo da posição, influenciar em um sentido ou no outro… Qual a tua visão dos artistas hoje na sociedade que a gente vive?

Eu acho que é reflexo da sociedade que a gente vive, que tem de tudo. Eu conheço vários artistas lá no Humanos Direitos que estão se formando, bus-cando conhecer as coisas não só pelo meio de co-municação mais imediato.

Hamilton Octávio de Souza - Como nasceu o Movimento Humanos Direitos?

O Padre Ricardo Rezende, que é uma pessoa que eu conheço há vários anos, levou a gente até Rio Ma-ria, Araguaia, até o sul do Pará e ajudou a gente a en-trar em contato com a realidade do trabalho escravo. Algumas pessoas de algum modo participavam des-sas campanhas para a extinção do trabalho escravo no Brasil e questões relacionadas a direitos huma-nos também, então acabavam conhecendo mesmo os movimentos sociais que estão trabalhando nessa dimensão. Até que um dia o Marcos Winter [ator e integrante do movimento] virou e falou: “Puxa vida, por que a gente não faz um movimento, uma ONG em que a gente possa sempre estar se encontran-do, se informando e se alimentando destas informa-ções e quando acontecer alguma coisa a gente já está apoiando, já dá visibilidade”. É um grupo que na ver-dade serve para dar visibilidade às pessoas que estão precisando de apoio, que estão ameaçadas. A ideia é trazer essas pessoas para serem homenageadas. Uma vez por ano a gente faz uma premiação, levamos es-sas pessoas que vem de vários lugares...

Hamilton Octávio de Souza - O grupo é grande?

O grupo tem aumentado, não tem só artistas co-nhecidos, ele tem formadores de opinião em geral, jornalistas também. E sempre que alguém de algum movimento quer colocar uma causa ou uma ques-tão, a gente faz uma reunião para ouvir essa pes-soa lá, acaba integrando, acaba fortalecendo alguns outros movimentos.

Hamilton Octávio de Souza - Dê alguns exemplos de apoio que vocês deram..

As próprias ações do MST, a questão da greve do Frei Luíz Cappio, a questão da transposição, foi um apoio que o Movimento Humanos Direitos deu em conjunto. Não fui só eu, não foi uma coisa perso-nalizada, eu fui representando eles, levando as as-sinaturas das pessoas e tudo. Já fomos várias vezes ao Senado em momentos em que era votada a PEC que pune com expropriação das terras quem pratica

“Eu vejo um potencial conscientizador muito forte em uma novela,ou alienador. Tudo na nossa sociedade

a gente tem as duas possibilidades”.

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trabalho escravo. Ainda é uma luta do movimento. Tem o caso também de uma fábrica de fogos de ar-tifício que explodiu na Bahia, esperamos que agora vá ser julgado, mas é uma pressão, de algum modo a gente faz essa vigília.

Hamilton Octávio de Souza - Como funciona, vocês se reúnem e decidem dar apoio a uma causa?

É, a gente vai se mantendo informado, de al-gum modo é um movimento que ajuda movimen-tos também.

Gabriela Moncau - De onde surgiu a sua militância?

Ah, de estudante.. Com alguns professores mar-xistas, os amigos...

Hamilton Octávio de Souza - Lá no Paraná ainda?

No Paraná mesmo. Eu acho que o teatro te colo-ca em contato com o lado mais questionador, mais conscientizador. O teatro tem também esse princí-pio que tem na nossa sociedade, de trazer este ou-tro olhar menos pragmático para vida, de pensar em construir a sua carreira e ganhar o seu dinhei-ro. Busca-se voos mais altos. Com isso também co-meça a pensar em uma política, lógico, pensar em um mundo mais igualitário.

Tatiana Merlino - Você se considera uma militante política?

É que eu não sou uma coisa assídua. Mas acho que sou uma cidadã, uma militante cidadã, sou uma cidadã, exerço a cidadania.

Hamilton Octávio de Souza - Desde quando você toma posição? Você manifestou várias

posições que normalmente quem trabalha para a Globo procura não manifestar. Você sempre agiu com independência?

Eu sempre tive muita paz de espírito com os meus posicionamentos, porque eles são feitos de verdade, de ir lá conhecer. Eu, por exemplo, me identifico mais com o movimento dos sem-terra do que com os do sem-teto, mas é uma relação minha com a terra, é realmente um princípio meu. Questão filosófica mesmo, de buscar na terra o alimento.

Tatiana Merlino - Como você conheceu o MST? Como você se aproximou do movimento?

Eu não lembro, acho que foi com o Frei Betto. A primeira vez que eu fui em uma marcha foi com ele. Eu e o Ângelo [Antônio, ator e ex-marido de Letí-cia] a gente foi com o Frei Betto...

Gabriela Mocau - Qual é a tua relação com o Frei Betto?

A gente conheceu ele aqui em São Paulo quan-do faziamos uma peça de teatro, Frei Betto foi as-sistir e nos conheceu.

Gabriela Moncau - Ele te influenciou na tua formação política?

Ah sim, ele é de fato uma pessoa muito impor-tante, acho que pro Brasil, para muitos jovens e o reconhecimento disso fez a gente se aproximar do Frei Betto, claro.

Gabriela Moncau - Você tem alguma religião?Eu fui bem capturada pelo cristianismo, mas não

sei mais se é só. Minha avó é kardecista, eu vou lá no centro espírita, com fé. Vou também na igre-ja católica rezar com bastante fé e vou no Gantois também, cantei com elas.

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Tatiana Merlino - Além do Frei Betto quais são as outras figuras públicas que tenham te influenciado politicamente?

Frei Betto, Leonardo Boff, Marina Silva, Gan-dhi. O Frei Betto já vai mais longe, para mudar o Brasil tem que ter a coragem de entrar para mor-rer... Quando você perguntou sobre esse medo de se expor ou em tomar posições é porque quan-do você vai mesmo em um lugar como Rio Maria, você conhece uma pessoa da Comissão Pastoral da Terra que já levou um tiro na cara e você conversa com ela e ela tem uma leveza de espírito, tem ale-gria de viver. Não é um suicida, não é uma pessoa louca, é uma pessoa muito com pé na realidade e muito a serviço do amor verdadeiro. E aí você di-zer que apoia tal causa, tal movimento, não é nada grave diante dessa realidade, onde você encontra atos realmente heróicos.

Tatiana Merlino - Você já foi constrangida ou questionada alguma vez por causa dos seus posicionamentos políticos?

Já.

Tatiana Merlino - E isso atrapalhou no seu trabalho?

Já atrapalhou.

Tatiana Merlino - Atrapalhou como; de não conseguir um trabalho ou ser constrangida?

Ser constrangida.

Tatiana Merlino - Como é para você, que apoia o MST, trabalhar numa emissora de televisão que criminaliza diariamente o MST, que chama os militantes de bandidos, de invasores

Eu não sei se essa emissora só faz isso. Tam-bém não falo da emissora quando digo que já fui constrangida. Não estou falando da Globo, não foi isso que eu quis dizer. Mas eu já via assim também, a Globo tem muitos artistas verdadeiros ali dentro. Acho que a gente faz trabalhos, como por exemplo “Hoje é dia de Maria”... Era um tra-balho que trazia uma consciência bem legal, re-cuperava um valor que muitos trabalhos trazem, como este valor da terra. Eu já vi também o pro-grama que eu apresentava na Globosat, um pro-grama sobre educação que falava sobre ensino rural e das novas leis de diretrizes e bases e quem mudou a lei foi o MST. Mostrava como exemplo o MST. Eu nunca participei dessa criminalização, eu não vejo isso como exclusividade dessa emis-sora, mas eu acho que a gente tem uma socieda-de que criminaliza o MST mais do que deveria e não criminaliza tanto o latifúndio ou o trabalho escravo quanto deveria. Então realmente a gente tem essa questão social sim. E eu acho que se te-mos uma emissora que ainda pode melhorar nesse sentido, a gente também tem uma sociedade que reflete isso e também precisa ser olhada, também precisa ser questionada sobre esses valores.

Tatiana Merlino - Qual você acha que deve ser a postura dos artistas, dos atores, para ajudar a desmistificar isso?

Conhecer, primeiro, a realidade do país, conhecer

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um assentamento, conhecer a proposta do MST. Acho que cobrar também amadurecimento do movimento em vários aspectos, mas conhecer, não ter preconcei-to. Saber que em um país tão grande, onde 1% das pessoas possui a maioria das terras, essa justiça social tem que ser feita mesmo. E que quando essas pesso-as se reúnem em um movimento, é uma solução para isso, não estão formando quadrilhas, não é isso. Não pode ser comparado a isso. É um movimento social que tenta defender esse direito mais humano.

Hamilton Octávio de Souza - Qual a tua visão política do Brasil?

Eu acho que não está tudo bem. A gente ainda segue um modelo de desenvolvimento que dá von-tade de mudar logo, que está falindo. Acho que tem que mudar isso mesmo, e tem propostas para isso, tem matriz energética para se fazer isso. Há mais condições que outros países chamados de “em de-senvolvimento”. Mesmo pensando em desenvolvi-mento do Brasil para poder ser sustentável, dá para você desenvolver sustentavelmente. Eu acho que o fato da Marina Silva ter se candidatado pode ser uma posição importante. Quem sabe a Dilma Rous-seff agora coloque como colocou para a COP 15 es-sas metas. De qualquer modo, algumas metas sur-giram; a princípio, pelo que a gente via, não tinha uma preocupação ambiental a contento mesmo. Eu participei de reunião de sete horas de duração com lideranças indígenas de quatro etnias que vão ter terras alagadas, movimento de atingidos por barra-gens, de ribeirinhos, MST e sete horas de duração contra a barragem de Estreito e todos dizendo: “Vo-cês vão ser ouvidos, vocês vão ser ouvidos”. Já ti-nha passado por várias instâncias, e eles barravam a barragem, mas faz parte de um projeto de mais 34 barragens ao longo do Tocantins para a extração basicamente de alumínio. E no dia seguinte o Lula anunciando que ia fazer uma política de aceleração do crescimento. Então eu questiono isso, esse PAC, dessa maneira, questiono mesmo.

Tatiana Merlino - E como é que você avalia o governo Lula hoje?

Eu votei nele. Acho que a política econômica dele ainda coloca muitas famílias na miséria em relação ao número que a política assistencialista diz que o governo está tirando. Na verdade, co-loca muitas famílias na miséria... Ouvimos falar de algumas mudanças até relacionadas a ganhos mesmo dos movimentos. Relacionado a trabalho escravo, parece que houve um progresso mais do que no governo FHC, bem mais. Houve medidas que foram implementadas em algum momento, mas eu não sei porque os movimentos são tão vinculados a este governo. Eu sinto que este go-verno também é absorvido por este Estado, que pensa o desenvolvimento dessa maneira. É difí-cil mesmo mudar de uma hora pra outra e a gen-te pode ponderar vários fatores. Não sei se vocês

tem uma avaliação extremamente justa deste go-verno, mas eu não vejo como política de gover-no de mudança, aquilo que a gente esperava. E quando você coloca a transposição, não pensam em um modelo de desenvolvimento para o semiá-rido, que lida com a condição do semiárido como é, que favorece a cultura do semiárido, que dá po-der ao pobre e não para o empresário.

Hamilton Octávio de Souza - Qual a tua perspectiva na eleição presidencial?

Ah, eu vejo uma luz na Marina. Pelo menos é uma pressão maior para essas questões. Acho que o desmatamento também começou a diminuir. Acho que é uma pressão positiva a candidatura da Mari-na. Eu me identifico com ela com certeza.

Hamilton Octávio de Souza - Você se liga mais no modelo ambiental de preservação, não é?

Sim, sabe por quê? Lá na tribo, quando tinha um ritual importante na tribo as crianças estavam recebendo falta na escola. Eles têm um lugar que preservam e que é um santuário ecológico. Sem-pre existiu isso, a gente sabe que a floresta tropi-cal que temos no Brasil surge do movimento mi-gratório, das tribos, precisa de uma ação humana equilibrada para poder existir esta floresta. Depen-de do ser humano também para que ela sobreviva e sempre existiu alguma cultura, extrativismo, san-tuários ecológicos, nos arredores de onde a tribo se localizava. Mesmo ela mudando de lugar, sem-

pre existiram estes lugares respeitados e até hoje os krahô tem. Eles tem um lugar onde eles não vão caçar, porque é lá onde nascem os bichos, um lugar que preservam onde não tocam, porque se não acaba com o equilíbrio. Só que a monocultu-ra da soja está vindo pelo outro lado, barragens estão alagando terra do outro e aí? Cadê o equi-líbrio disso? Onde é que se pensa nessa palavra? E a monocultura da soja acaba com a diversidade do cerrado, com a diversidade linguística de um povo também. O índio nomeia aquilo que está ali, aquilo que ele tem alcance, como o buriti, o jabu-ti. E aí você põe soja, acabou com a língua tam-bém. Então se formos pensar em cultura, temos que pensar em meio-ambiente. O livro do índio é o cerrado, então é colocar um ponto de cultura, fazer um documentário, mas também é preservar, está tudo interligado.

Gabriela Moncau - O que você acha da cobertura que a mídia faz em relação a questões sociais?

Eu vejo muitas deturpações. A marcha do MST que eu vi lá em Brasília foi um exemplo de cida-dania. O próprio Lula reconheceu no dia seguinte. A gente esteve com ele e ele nos falou isso: “Que exemplo de cidadania nos deu o MST”. E o que saiu no jornal foi a pancadaria que teve no final... E eu ouvi da boca do próprio presidente que aqui-lo foi uma infiltração, que houve uma provoca-ção para que aquilo acontecesse. E depois foi co-locado como se fosse um tumulto provocado pelo MST na frente do Planalto. Isso é uma deforma-ção. Foi uma marcha onde havia cursos de filo-sofia, eles levaram coisas que plantaram um ano antes. Era extremamente ecológico, eles levanta-vam acampamento, recolhiam tudo.

“Acho que a gente tem uma sociedade que criminaliza o MST mais do que deveria e não criminaliza tanto o

latifúndio ou o trabalho escravo quanto deveria”.

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17janeiro 2010 caros amigos

Cesar Cardoso

Alguns jornalistas blogueiros descobriram o “meio” ideal para seus negócios privados, em especial para conseguir “patrocinadores” não revelados ao público. Muitos estão mamando nas férteis tetas do governo federal sem pa-gar pedágio às empresas jornalísticas de an-tes. Adotaram o discurso chapa-branca ufa-nista, a crítica superficial à mídia neoliberal, mas continuam defensores incondicionais do capitalismo. É gente de direita que se passa por “independente” no novo papel de “orien-tador” virtual do lumpezinato de classe média. O que importa é cacifar o próprio caixa, não o jornalismo comprometido com a transforma-ção social e a melhoria das condições de vida do povo. Os “pastores” da nova seita pregam a “revolução” internética da comunicação, criam a ilusão de que o novo “meio”, nas mãos de-les, tem tudo a ver com a construção de uma nova sociedade mais democrática; e de outra realidade na qual a “participação” virtual dos seguidores substituirá em definitivo o conflito social real e a luta de classes. O mundo é mes-mo dos espertos!

TUCANARAM O HERZOGCriado pelo Sindicato dos Jornalistas do Es-

tado de São Paulo ainda em plena ditadura ci-vil-militar (1964-1985), para premiar os jorna-listas que denunciam as violações dos direitos humanos, o Prêmio Vladimir Herzog de Direi-tos Humanos e Anistia está agora sob o contro-le do tucanato paulista, coordenado por uma ONG de captação de recursos e patrocinado por empresas que nada têm a ver com a defesa dos direitos humanos. Privatizaram a luta históri-ca dos jornalistas!

CENSURARAM O ESTADÃOO Poder Judiciário tem sido um aliado

exemplar da imprensa neoliberal e oligárqui-ca, especialmente para apoiar a criminaliza-ção dos movimentos sociais e impedir o direi-to de resposta de quem é ofendido pelos meios de comunicação. Mas, para proteger a oligar-quia Sarney, o Judiciário acabou censurando até mesmo o jornal O Estado de S. Paulo, que foi proibido de noticiar as negociatas do fi-lho do senador maranhense apuradas pela Po-lícia Federal na Operação Boi Barrica. Abaixo a censura do Judiciário!

VAIARAM O MINISTROA imprensa neoliberal tentou esconder, mas

a grande estrela da noite de abertura da 1ª Con-ferência Nacional de Comunicação, em dezem-bro, em Brasília, foi mesmo o ministro das con-cessionárias de rádio e TV, Hélio Costa, que levou a maior vaia do ano no evento. Ele e muita gente nos poderes da República conti-nuam defendendo a concentração dos meios de comunicação nas mãos de algumas poucas famílias. Quem pensa seriamente nessa ques-tão, sabe muito bem que sem derrubar o oli-gopólio midiático não existe democratização do setor. E isso não acontecerá sem confron-tos. Pela redistribuição total das concessões de rádio e TV!

EMPASTELARAM A CRISEOs cofres públicos injetam fortunas nos se-

tores financeiros e produtivos; os bancos, a indústria e o comércio facilitam o crédito do consumo a perder de vista; a inadimplência au-menta consistentemente, desde a mensalidade da TV paga até a escola das crianças; crescem os serviços de recuperação de bens vendidos no crediário do varejo e não pagos. A fragmenta-ção do noticiário embaralha a visão do conjun-to. A grande mídia continua martelando todos os dias que a crise econômica está superada, que o Brasil atravessou as turbulências sem so-frer grandes estragos. Todos se sentem seguros e corretamente informados?

entrelinhasa mídia como ela éHamilton Octavio de Souza

Lutei o bom combate. E ele era tão bom e justo e nobre, que eu seguia lutando mes-mo com a chegada da noite, dos ventos, das tem-pestades. E, em meio às trevas, só reconheci meu próprio irmão quando o trespassei com a espada, julgando ser um inimigo.

Aquilo caiu sobre mim como uma maldição. Eu derramara o sangue do meu sangue! Mas o bom combate precisava de mim. E voltei a lutá-lo. E dessa vez matei meu pai. Para melhor lu-tar o bom combate, ele se disfarçara de árvore. Como era uma árvore que não crescia em nossa floresta, tomei-a por uma vegetação inimiga e trespassei-a com a espada. Quando a árvore me disse: “filho, o que fizeste?”, tive consciência de minha nova tragédia.

Sem poder encarar os companhei-ros e a família, parti. Mas nem o coração dilacera-do me impediu de seguir lutando o bom combate. Disfarçado, invadi o território inimigo aleijando, trucidando e matando. Mapeei, uma por uma, as nascentes de água que abasteciam sua capital. E numa só noite, mesmo com a chegada dos ven-tos e das tempestades, envenenei toda a água. De madrugada escutei os gritos dos que morriam. E ao amanhecer entrei, triunfante, na cidade do-minada. Corpos e mais corpos jaziam nas ruas. E pude reconhecer ali minha mãe, minhas irmãs, meus filhos e meus vizinhos. Todos mortos, enve-nenados. Eu não sabia que nós havíamos ganhado a guerra e invadido a cidade uma semana antes.

Me deixei ficar para ser capturado pelo inimigo que voltava. Eles me pegaram, me carre-garam pelas ruas cheias de sangue enquanto da-vam vivas ao seu salvador. Agora sou o maior he-rói da História. Pelo menos da História que eles repetem diariamente em seus livros escolares.

Cesar Cardoso foi dispensado de lutar o bom combate por ter pé chato. E montou o blogue PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com) Il

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novo sítio: www.carosamigos.com.br

Alucinaram a internet

Hamilton Octavio de Souza é [email protected]

UM HERÓI

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caros amigos janeiro 2010 18

Ana MirandaMeMórias De uM jornalista não investigativoRenato Pompeu

Minha gata se chama Filó, nome tênue que representa sua infinita delicadeza. Encontrei-a as-sim, ao acaso, quando procurava uma siamesa para comprar. Na loja, uma gatinha híbrida estava sobre uma mesa, e quando me viu ficou em pé, levantando as patas dianteiras numa dança, saudação, ou en-trega amorosa. Custava pouco mais que um litro de leite. Comprei-a, e eu passei a lhe pertencer.

Seu nome completo é Filomena Jardelina Arena della Luna, que observadores lhe foram adjetivan-do. A pelagem é da cor da areia, com algumas man-chas escuras, o ventre de alvo algodão. Ela é extre-mamente elegante em todos os momentos, mais do que outros gatos que tive, talvez por ser tão del-gada. Lânguida em todos os gestos e ademanes, num curvar-se, num saltar, num virar o rosto, aten-de sensualmente a minhas necessidades estéticas. Seus olhos quase líquidos, ambíguos vidros que con-tenham um mar cambiante, reflexivos como os de uma poetisa triste a procurar uma palavra, acompa-nham-me às vezes com uma confortável intimidade. Mas em outros momentos ela parece divagar dentro de um leve desprezo, com os olhos impassíveis, to-davia sem jamais aparentar superioridade ou arro-gância, tampouco humildade ou submissão. Quem pode acreditar que não há alma atrás desses olhos luminosos? Seus miados expressam palavras abs-tratas, numa linguagem de carícias. Aprendi a amar os gatos em criança, quando os tive na minha casa, meus telhados, ou vendo-os nas fábulas. Eram ma-liciosos, porém leais, e o astuto gato de Cheshire, com truques espantosos, como tirar a própria cabe-ça, ou ficar subitamente invisível, indicava à meni-na Alice-Ana o caminho a seguir, entre elementos do mundo dos mistérios.

Por ação da simples ternura, nós nos aproxima-mos, portanto eu amo a felinidade, e ela, a literatura. Numa mútua, longa e incompleta domesticação, Fi-lomena refestela-se sobre meus dicionários, exami-na longamente in-fólios, ou se posta diante de meu texto como uma deusa egípcia, parecendo por vezes recusar uma vírgula, pesar uma palavra, ou aprovar certa expressão. Guardiã da noite, encarnação das emoções maternas, Filó vela a minha cama, o meu sono e a minha fecundidade. Não precisamos uma da outra para nada. Apenas nos amamos. Provavelmente acreditamos ambas que somos nossas mães.

Gatos literários: Filomena

Ana Miranda é escritora.

Está fazendo dez anos que, a primeiro de ja-neiro de 2000, morreu numa clínica psiquiá-trica em Jaú-SP, o jornalista Sérgio Pompeu, meu irmão mais velho, ex-diretor-adjunto da revista Veja, nascido em Campinas a 24 de ja-neiro de 1938 e autor do romance “Dança, Car-mela, Dança”.

Depois de ter hesitado entre ser jogador de futebol (médio-apoiador de postura clássica, dos times de várzea pelos quais passou, saí-ram profissionais como Valdemar Carabina, de-fensor do Palmeiras; Battaglia, ponta do Corin-thians e do Guarani; Joel, defensor do Palmeiras e do Rosário Central da Argentina, e Aldo, go-leiro do Corinthians e do Fluminense), enge-nheiro ou advogado (formou-se na Faculdade de Direito da USP) e de ter iniciado uma carrei-ra brilhante no Banco do Brasil, Sérgio entrou na Folha da Manhã, hoje Folha de S. Paulo, por concurso, em 1960.

Logo se enturmou com os jovens que preten-diam renovar o jornalismo, encabeçados pelos falecidos Murilo Felisberto e Sérgio de Souza. Destacou-se como líder prático dos jornalistas paulistas na greve de 1961, quando, no piquete diante dos Diários Associados, ao perceber que as granadas de “efeito moral” demoravam para explodir, tomou a iniciativa de chutá-las de vol-ta para os policiais, entre os quais elas passaram a explodir. Seu exemplo logo foi seguido por ou-tros, e os policiais passaram a lançar contra nós potentíssimos jatos d’água, das mangueiras dos Brucutus, carros semelhantes aos Caveirões de hoje. Os jatos ameaçaram nos dispersar e permi-tir a saída dos caminhões de jornais, mas Sérgio

outra vez teve a iniciativa de se agarrar a uns ca-nos incrustados no chão que havia na calçada, outro se agarrou a seus pés, outro se agarrou aos pés do segundo, e assim fomos circulando pelos ares, levados pelos jatos d’água, como se fôsse-mos elos de uma corrente indestrutível. Final-mente, o governador Adhemar de Barros man-dou sustar a operação policial. O resultado foi a instauração do piso salarial – até então o salário mínimo dos jornalistas era o mesmo dos traba-lhadores em geral.

Logo depois, na Copa de 1962, Sérgio Pom-peu participou da primeira experiência práti-ca de inovação do jornalismo em São Paulo (ti-nha havido experiências anteriores no Rio, no Diário Carioca e no Jornal do Brasil), o cader-no especial da Copa da Folha. Posteriormente, participaria da fundação do jornal Notícias Po-pulares, do Jornal da Tarde e da revista Veja. Nesta, depois do afastamento de Mino Carta, di-retor que era crítico do regime militar, Sérgio passou a nadar contra a corrente da nova di-reção, favorável ao regime militar, até que foi afastado da revista. Entre suas coisas, após seu falecimento, encontrei dossiês sobre arbitrarie-dades e atrocidades do regime, que nunca con-seguiu publicar.

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Renato Pompeu é jornalista e [email protected]

Lembranças de Sérgio Pompeu

“Eu sou do tempo do motor amaciando”

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19janeiro 2010 caros amigos

Não podemos ficar apenas entre o retrocesso da vol-ta dos tucanos, e o “melhorismo” da continuidade. Os verdadeiros problemas do povo somente se resolverão com mudanças estru-turais. E para haver mudanças estruturais na economia e no Esta-do é necessário um projeto para o país. Um projeto que não ape-nas elenque ideias e propostas, mas que conscientize as massas, aglutine forças e motive o povo a lutar por ele.

O povo brasileiro enfrenta graves problemas de falta de empre-go: quase 60% da população economicamente ativa está no tra-balho informal, sem direitos trabalhistas e previdência social. A renda continua se concentrando, aumentando as diferenças entre a renda do capital e a renda do trabalho. O ensino superior con-tinua sendo um privilégio para apenas 10% da juventude. Faltam 11 milhões de moradias decentes.

Não há acesso à terra para quatro milhões de famílias de trabalhadores rurais, enquanto a concentração da propriedade se amplia. E embora o sistema único de saúde (SUS) seja uma con-quista, aos pobres restam as filas e um sistema público degrada-do, enquanto a classe média paga cada vez mais caro por sistemas privados. E os meios de comunicação continuam como oligopólio de sete grandes grupos econômicos, que seguem manipulando as mentes e ganhando muito dinheiro.

A taxa de investimento da economia brasileira é ridícula, en-quanto a maior parte da poupança nacional se destina a pagar os juros da dívida interna, que alimenta a especulação financei-ra e a concentração de renda nos bancos. As empresas transna-cionais ampliaram seu controle sobre nossa economia, setores estratégicos e sobre as riquezas naturais. Nossos gastos em tec-nologia são pífios. E nenhuma sociedade consegue resolver seus problemas sem investir na produção de conhecimentos (técnicas) para resolvê-los.

Vamos aproveitar o ano de 2010 para fazer um ver-dadeiro mutirão nacional que levasse o maior número possível de brasileiros a debater quais são os principais problemas, quais são suas causas e quais as verdadeiras saídas.

Somos a nona sociedade do mundo em volume de riqueza pro-duzida. Mas estamos em 75º lugar no nível das condições de vida da população, e somos a sétima pior sociedade do planeta em de-sigualdade social. As soluções para esses problemas não são eco-nômicas ou administrativas. O Brasil não precisa de bons geren-tes. Precisa de povo organizado, consciente, que se mobilize para resolver seus problemas. E de lideranças políticas comprometidas com as mudanças.

João Pedro Stedile

João Pedro Stedile, membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

Emir Sader

É preciso debater umPROJETO PARA O BRASIL

Recém-eleito FHC, a Folha de S. Paulo lançou um caderno que anuncia-va “A Era FHC”. Utopia dos Frias – e de toda a elite branca paulista -, chegava o ilu-minismo caboclo ao poder.

Atribui-se a Roberto Marinho, no momento da queda de Collor, ter dito que “a di-reita já não mais poderá eleger um presidente”, o que significava que teria que bus-car um nome no campo da esquerda ou da oposição à ditadura. FHC adaptou-se ao figurino. Como dizia José Luís Fiori, o plano de estabilização monetária, na sua ver-são brasileira, já existia, faltava quem vestisse o terno. FHC olhou para seus próceres – François Mitterrand e Felipe González - e lhe pareceu que poderia assumir o mes-mo papel no Brasil.

Um (até então) intelectual saiu diretamente da campanha de Lula para um ministério do novo governo. Outro disse que “se esse programa poderia ser aplicado bem, levando em conta as necessidades sociais, seria aplicado pelo governo de FHC”. Isto é, do adesismo ao benefício da dúvida. A imprensa entrou em êxtase: poderia ata-car a esquerda como jurássica, reformas agora pertenciam ao receituário neoliberal, quem se opusesse se tornaria conservador.

Era o Brasil de 1994. Desde então, os dois mandatos fizeram com que FHC se tornasse o político mais odiado do Brasil. (O PT já cogita reservar-lhe um espaço nos seus horários políticos, porque ninguém alavanca mais o governo Lula e a candidatu-ra de Dilma, enquanto a oposição busca um lugar suficientemente grande para tentar esconder o ego do ex-presidente).

O Brasil em 2010 permitirá uma reflexão sobre o quadro político atual, e como se projeta para o futuro. O governo Lula começou com a “Carta aos Brasileiros”, Palocci como virtual primeiro ministro, ajuste fiscal duro, Meirelles no Banco Central, “contin-genciamento” dos recursos, subordinação das políticas sociais ao equilíbrio monetário, reforma da previdência e primeiro grande choque com os movimentos sociais.

Essa primeira etapa terminou coincidindo com a crise de 2005, que desem-bocou em mudanças que alteraram a composição e a orientação predominante no go-verno. A entrada de Dilma Rousseff e a substituição de Palocci não por alguém da sua equipe, mas por um desenvolvimentista como Guido Mantega, marcaram essa infle-xão. Os resultados aí estão, para quem não siga brigando com a realidade: no ritmo de desenvolvimento da economia, nos efeitos das políticas sociais, na política internacio-nal, no papel recuperado para o Estado de indutor do crescimento econômico e pro-motor das políticas sociais, entre outras.

Há quem diga que nada de importante se decide em 2010. Seria o mesmo que tivesse Alckmin ou Lula em 2006? Será o mesmo a volta da equipe tucano-demoníaca ou o apro-fundamento do governo atual com Dilma? Por essa linha passa o futuro do Brasil.

BRASIL 2010

Emir Sader é cientista político.

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

SugESTõES dE LEITuRA

CaimJosé SaramagoCia das LetrasRevoluçõesMichael LowyBoitempo EditorialNietzsChe, o Rebelde aRistoCRátiCoDomenico LosurdoEditora Revan

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caros amigos janeiro 2010 20

Marcelo Villela Gusmão

há pouco mais de dois anos, a traduto-ra Denise Bottmann tem pesquisado os meandros obscuros do mercado livreiro

nacional e revelado algumas práticas nada orto-doxas. A principal delas se esconde por entre as obras estrangeiras aqui publicadas: o plágio de tradução. Até o mês de outubro deste ano, Deni-se já havia denunciado em seu blog “Não Gosto de Plágio” (www.naogostodeplagio.blogspot.com) uma centena deles.

No Brasil, a tradução é um ofício significativo para a cultura. Segundo a Abrates (Associação Bra-sileira de Tradutores e Intérpretes), mais de 80% das publicações em formato de livro são traduções. Ao transpor uma obra literária, artística ou científica para o português, o tradutor passa a ter certos di-reitos sobre a nova criação. Basicamente, quando utilizada para fins comerciais, o profissional res-ponsável deve ser remunerado e ter seu nome es-tampado em cada exemplar da obra.

O que tradutores e leitores meticulosos co-meçaram a perceber é que algumas traduções, principalmente de obras literárias, estavam sen-do publicadas em nome de tradutores desconhe-cidos. Mas não demorou para que descobrissem que, na verdade, eram cópias de antigas tra-duções, com os nomes dos tradutores originais substituídos por outros.

Plagiato, plagiat... PLÁGIO

Denise é historiadora, ex-docente da Unicamp e tradutora do inglês, francês e italiano desde 1984. Assina 70 traduções de livros e artigos das áreas de ciências humanas, teoria e história lite-rária e história da arte. Ela tomou conhecimento desta prática em meados de 2007, após ler a de-núncia de Saulo von Randow Júnior, tradutor di-letante que achou curioso o fato de a tradução do romance Ivanhoé atribuída a Roberto Nunes Whi-taker, e publicada pela editora Nova Cultural na coleção ObrasPrimas em 2002, ser idêntica à feita por Brenno Silveira e publicada pela Martins Edi-tora cinco décadas antes.

Algumas denúncias já circulavam entre in-teressados em literatura e tradução. Em 2002, o tradutor Ivo Barroso relatou na revista eletrôni-ca Agulha as impressionantes semelhanças entre a tradução atribuída a Fábio M. Alberti da peça Cyrano de Bergerac, feita para a Nova Cultural, e o trabalho de Carlos Porto Carreiro, cuja primeira edição data do início do século passado. A versão copiada manteve inclusive erros tipográficos das edições autênticas.

SemeLhançaSA possibilidade de haver versões idênticas de

uma mesma obra é uma façanha praticamente in-concebível para qualquer tradutor com um míni- il

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Pesquisadora denuncia

publicação de cópias de

traduções

mo de bom-senso. As semelhanças podem se limi-tar a uma ou outra palavra, talvez uma frase.

Denise logo constatou que outros títulos da edi-tora Nova Cultural apresentavam o mesmo proble-ma. Somente na coleção ObrasPrimas, suas pesqui-sas identificaram que vinte dos cinquenta volumes tiveram os nomes de seus tradutores originais subs-tituídos ou apagados. O mesmo se repete com livros das coleções Imortais da Literatura Universal e Os Pensadores, publicadas pela editora.

Ao esmiuçar o volume dedicado a Platão, por exemplo, Denise constatou que a tradução atri-buída a Enrico Corvisieri é semelhante à tradução de Jaime Bruna, publicada sob licença pela Abril Cultural. Contudo, para que a cópia não mostras-se sua aparente literalidade, a edição apresenta sinais do que se chama de “tradução por sinoní-mia”, ou a substituição de vocábulos por outros de mesmo sentido, mas mantendo a estrutura grama-tical da outra tradução. Desta forma, “exerceram” é trocado por “tiveram”, “cautela” se torna “pre-caução” e assim por diante.

Tais mudanças não provam se tratar de outra tradução, mas apenas retratam o leque de artima-nhas empregadas. Conforme mostrou Denise, elas vão da simples cópia literal, passando por altera-ções revisórias no início dos parágrafos e chegan-do à reunião de trechos de traduções diferentes.

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21janeiro 2010 caros amigos

Prova desta última proeza ela encontrou, com ajuda da tradutora Joana Canêdo, no Dicionário Filosófico de Voltaire publicado pela editora Mar-tin Claret. As duas edições mais conhecidas, pu-blicadas no século 18, possuem 73 e 134 verbe-tes. Mas a editora brasileira conseguiu adicionar outros dois verbetes ao dicionário, séculos após a morte do iluminista francês.

A curiosa edição ampliada, com tradução atri-buída a Pietro Nassetti, baseia-se na tradução de Líbero Rangel de Tarso, feita para a Atena Edito-ra em 1937, bem como na de Bruno da Ponte e João Lopes Alves para a portuguesa Editorial Pre-sença em 1966 e aqui publicada pela Abril Cul-tural. Segundo Denise, a Martin Claret utilizou os 73 verbetes publicados pela Atena Editora e com-plementou com os da Abril Cultural.

Mas ao fazer isto, a editora esqueceu-se de que uma tradução é diferente de outra. Assim, enquanto a Atena Editora publicou o verbete “bêtes” como “irracionais”, a Abril Cultural o tra-duziu como “animais”, apresentando também di-ferenças de tradução no texto. A Martin Claret, acreditando se tratar de verbetes diferentes, pu-blicou ambos.

O catálogo da editora, composto segundo sua página na internet por cerca de 500 títulos, pos-sui ainda outras controvérsias. Para Denise, 158 obras apresentam problemas relacionados à tra-dução, sendo que 49 delas já foram analisadas e tiveram o plágio confirmado. Curiosamente, 137 foram aparentemente traduzidas por apenas três profissionais: Alex Marins, Jean Melville e Pie-tro Nassetti.

ObraS eSGOtadaSDenise explica que as denúncias de plágios

exigem dela horas diárias em pesquisa. É neces-sário adquirir um exemplar da obra acusada e en-contrar outro da obra plagiada, o que requer certa obstinação, pois, na grande maioria dos casos, os prejudicados são tradutores falecidos, autores de obras esgotadas e publicadas por editoras extin-tas. Seguem-se então horas analisando as edições antes de tudo ser documentado no blog.

Além disso, Denise entra em contato com as editoras, alerta tradutores e herdeiros, reivindica maior atuação dos órgãos públicos, envia e-mails a docentes, pesquisadores e entidades de livros, para que todos estejam cientes das “irregularida-des cometidas em livros publicados por algumas editoras de projeção”.

Até o momento, o saldo da pesquisadora é de 89 tradutores que tiveram suas produções apro-priadas sem os devidos créditos por mais de uma

dúzia de editoras. Obras acusadas de plágio, de acordo com Denise, ainda constam no acervo de bibliotecas, licitações e compras do governo, bi-bliografias de cursos universitários e trabalhos acadêmicos.

O deSenrOLar jurídIcOA atual Lei do Direito Autoral (9.610), criada

em 1998, define que somente tradutores, herdei-ros e editoras podem reclamar na justiça a viola-ção de seus direitos autorais, incluindo plágios de tradução. No entanto, Paulo Oliver, presidente da Comissão de Direito da Propriedade Imaterial da OAB-SP, aponta que há um empecilho financeiro: “não são todos os autores que possuem verba para manter uma ação indenizatória, que pode surgir após uma busca e apreensão, perícias e a compe-tente ação ordinária de indenização”.

O papel do Estado no setor autoral foi sensi-velmente reduzido nas duas últimas décadas. Em 1973, a antiga Lei de Direito Autoral (5.998) esta-belecia a criação do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), “órgão de fiscalização, consulta e assistência, no que diz respeito a direitos do au-tor e direitos que lhes são conexos”, dizia o tex-to da lei. O Conselho foi efetivamente criado três anos depois e sobreviveu até 1990, extinto oficial-mente com a legislação em vigor.

“A questão do direito autoral, se não foi aban-donada, ficou num plano totalmente secundário dentro do governo, naquela filosofia do Estado mínimo, em que o Estado não tem que atuar em áreas que não são da sua alçada. É algo equivoca-do, pois o direito autoral envolve a defesa do pa-trimônio cultural brasileiro”, critica José Vaz de Souza Filho, da Diretoria de Direitos Intelectuais, vinculada à Secretaria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura.

Desde fins de 2007, o Ministério da Cultura trabalha para retomar sua atuação. Em conjunto com profissionais do setor autoral, tem arquiteta-do uma revisão na atual legislação. As reivindi-cações baseiam-se em três áreas: melhor relação entre criadores e investidores, maior acesso da sociedade às produções culturais e ampliação da presença do Estado, que se consolidaria na recria-ção do CNDA, agora sob o nome de Instituto Bra-sileiro de Direito Autoral (IBDA).

Segundo Souza Filho, a previsão é que o IBDA, além de ter competência fiscalizadora e supervi-sora, tenha uma instância administrativa de re-solução de conflitos, auxiliando autores e tradu-tores sem condições de assumir o custo de uma briga judicial.

Durante o III Congresso de Direito de Autor

e Interesse Público, realizado em São Paulo no início de novembro deste ano e último passo antes que o anteprojeto de lei seja submetido à consulta pública, o Ministério da Cultura apre-sentou uma proposta que pode desestimular o plágio de tradução. Sugere que seja criado um mecanismo de licenças não-voluntárias para três hipóteses, duas delas relacionadas ao livro: obras cujas edições estão esgotadas e obras ór-fãs, das quais se desconhece os detentores dos direitos. Nestes casos, se uma editora manifes-tar intenção em reeditar determinada obra, e for constatado existir interesse público por ela, o IBDA poderá conceder uma licença, ficando a editora interessada responsável por remunerar o detentor dos direitos.

reSIStêncIa O governo espera com isso ressuscitar obras há

muito tempo longe das livrarias, seja por resistên-cia dos detentores dos direitos em republicá-las, seja por completo desconhecimento de quem são eles. Assim, a licença não-voluntária permitirá fa-zer dentro da legalidade o que as editoras acusa-das de plágios de tradução fazem ilegalmente. E com sanções mais adequadas sendo discutidas na revisão da lei, a prática pode ser desencorajada, como acredita Denise Bottmann.

Por ora, a tradutora já formalizou cerca de dez denúncias, entre elas a que fez o Ministério Públi-co Estadual solicitar que fosse aberto um inqué-rito contra a editora Martin Claret por violação de direitos autorais. Segundo Luiz Antonio Ribei-ro Longo, delegado titular do 23º Distrito Policial, responsável pela investigação, a perícia está ana-lisando as obras.

Procurada, a editora se manifestou através da advogada Maria Luiza de Freitas Valle Egea. Se-gundo ela, a Martin Claret não confirma que ne-nhum de seus títulos é plágio, mas afirma que a editora “realizou alguns pagamentos para editoras sobre traduções apontadas como plágio”.

A editora Nova Cultural afirmou que, após averiguação, “determinou a retiradas de circu-lação e venda de todas as obras nas quais se constatou qualquer suspeita de problemas”, mas não informou o número de títulos com proble-mas. Afirmou ainda que conversou com os tra-dutores Hernâni Donato e Luiz Costa Lima, cujas traduções de “A Divina Comédia” e “O vermelho e o negro” haviam sido publicadas em nome de outros tradutores.

Entretanto, ainda há muitos tradutores a se-rem ressarcidos, obras a serem retiradas de circu-lação e outros plágios a serem confirmados. Em janeiro deste ano, Denise escreveu em seu blog: “eu fico meio assim, sentindo-me uma espécie de Denise, a caçadora de fraudóides. Mas aí penso: não é possível uma coisa dessas; alguém tem de fazer algo a respeito”. Quando tudo terminar, as pilhas de livros plagiados que hoje abarrotam sua estante não poderão ser doados. Talvez ela faça uma fogueira.

Marcelo Villela Gusmão é jornalista

“Não são todos os autores que possuem verba para manter uma ação indenizatória, que pode

surgir após uma busca e apreensão, perícias e a competente ação ordinária de indenização”

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uma frase se repete há vinte anos em Ber-lim Oriental e não perde atualidade: “Aquilo que nossos líderes comunistas contavam so-

bre nosso bem-estar foi uma mentira grosseira. Mas aquilo que eles contavam sobre o mundo ocidental foi uma verdade absoluta”.

No Festival da Juventude em Moscou, em agosto de 1957, como membro da delegação de Israel, en-contrei meus colegas, jovens artistas da RDA, a Ale-manha Oriental. E fui convidado a visitar a Acade-mia de Belas-Artes em Dresden. Cheguei a Berlim Ocidental, uma vitrina de luxo brilhante, para pro-vocar a inveja dos cidadãos da Alemanha Oriental, que ainda gozavam de movimento livre, pois o me-trô era o mesmo para os dois lados de Berlim, na-quele tempo do pré-Muro.

Deixando Berlim Ocidental, peguei a famosa ave-nida Unter der Linden e a primeira surpresa já me esperava: a placa da rua Rosa Luxemburg, uma tra-vessa da avenida, e embaixo uma reprodução da fra-se escrita por Brecht para a lápide dela no cemitério antigo de Berlim: “Uma combatente judia polonesa, pioneira da luta do proletariado alemão”.

Na sede da organização dos artistas plásticos, o decano da Academia de Dresden, gravador Georg Kötner, me pediu para ir a Dresden, como professor de desenho e pintura. Era uma oportunidade que eu não podia perder. Nasci na Alemanha e, perseguido com os meus pais pelos nazistas, fugimos num navio italiano para a Palestina. Lá chegamos em 1935, an-tes que eu tivesse três anos de idade. Seis tios meus foram exterminados em Auschwitz.

As dificuldades de aprender o hebraico impediam nossa absorção na cultura judaica palestina e conti-nuamos a festejar a cultura da Alemanha. Descobri-mos os brilhantes escritores Stefan Zweig, Thomas Mann e, naturalmente, Brecht, atores como Peter Lorre, Marlene Dietrich; diretores de cinema como Fritz Lang, compositores como Kurt Weil, expres-sionistas como Georg Gross e Max Beckmann, cujas

obras foram proibidas de serem expostas na Ale-manha Nazista, os livros dos escritores foram quei-mados. Essa formação não me deixou fazer parte da maioria dos israelenses, com acusações coletivas contra os alemães. Eu queria ver as diferenças entre as duas Alemanhas.

Filas, filas, filas – essa era a primeira coisa que chamava a atenção na Alemanha Oriental, em es-pecial nas lojas de livros, livros de arte, vitrolas e instrumentos musicais. Eram milhares de jovens do Ocidente. As montanhas dos livros de arte foram praticamente sequestradas num tempo inacredita-velmente acelerado.

Tudo feito pela editoria oficial da Alemanha Oriental, Aufbauverlag. Quando perguntei a assis-tente de arte de Munique, como explicar essa blitz cultural, ele respondeu: “A edição completa da his-tória da arte de Habermann está aqui ao preço sub-sidiado de 25 marcos alemães orientais. Na Alema-nha Ocidental, custa 95 marcos alemães ocidentais. Quando você for para Berlim Ocidental, trocará três marcos orientais por um marco ocidental.”.

SubSidiando o ocidenteOs visitantes do Ocidente, com tudo de bom que

havia lá, vinham fazer fila de madrugada na Ale-manha Oriental. Quando um livro era lançado, su-mia imediatamente. Os cidadãos da própria Alema-nha Oriental só podiam ir às lojas depois do trabalho, à tarde, e se viam frustrados. E o que não foi subsidia-do na Alemanha Oriental? Treze anos depois do fim da guerra, que transformou Berlim numa montanha de ruínas, havia duas ou três famílias em cada apar-tamento dos grandes conjuntos habitacionais na Ber-lim Oriental, enquanto os grandes bairros de moradia foram construídos na periferia, mais baratos.

Os produtos de consumo, roupas, sapatos, padro-nizados, eram produzidos em enormes quantidades, para estarem ao alcance de toda a população, a pre-ços subsidiados, a um terço do preço do produto um

pouco mais luxuoso de Berlim Ocidental. Para o alu-guel, o governo alemão oriental descontava dez por cento do salário da família. A educação era gratuita da creche à universidade. A saúde pública era gra-tuita e o transporte público era muito eficiente. Só havia um tipo de carro particular, o Trabant, de mo-tor de dois tempos, muito econômico em combustí-vel. Para não encher as ruas de carros, só eram fa-bricados em quantidade limitada e controlada. Já nesse tempo as autoridades alemãs orientais que eu encontrava estavam preocupadas com que, com a passagem livre entre as duas Berlins, os produtos subsidiados não fossem parar nas mãos dos berli-nenses ocidentais.

Um dos meus objetivos era encontrar os que ha-viam militado contra o nazismo. A maioria deles fo-ram liquidados em 22 mil campos de concentração na Europa ocupada. A liderança comunista da RDA tinha registros muito significativos. O enorme ma-terial de documentos que sobrou, os testemunhos dos combates de rua entre os camisas pardas (na-zistas) e os vermelhos (comunistas) no fim dos anos 1920, quando o Partido Comunista tinha mais votos do que o Partido Nazista no Reichstag; já nos anos 1930, os grandes cartazes comunistas clandestinos, dizendo “Hitler é a guerra”; a Brigada Tellermann, cujo nome homenageia o secretário-geral do PC ale-mão, preso no dia seguinte à posse de Hitler, tortu-rado até ser morto em 1944. Essa foi a maior entre as brigadas internacionais na defesa do governo le-gítimo republicano espanhol.

Com a derrota terrível na Espanha, resultado da indiferença do “mundo livre”, ainda cego ante o pe-rigo do nazismo, os sobreviventes da Brigada Tel-lermann não podiam voltar para a Alemanha e nem entrar nos países vizinhos, e foram obrigados a atra-vessar o Mediterrâneo rumo ao Bósforo para chegar ao porto de Odessa, na Ucrânia soviética, onde en-traram no Exército Vermelho, na luta para não dei-xarem os invasores nazistas entrarem em Moscou,

Gershon Knispel

a FaLSiFicaÇÃo da HiStóRia - 3A mídia varreu para debaixo do tapete a 2a Guerra, festejando a queda do Muro como o maior acontecimento da história do século 20. Será?

Rosa Luxemburgo, criadora da República de Weimar

Combatentes das brigadas internacionais da guerra civil espanhola barrados na fronteira com a França

Queima de livros em Berlim Marlene Dietrich pede asilo nos Estados Unidos para fugir dos nazistas

Vinte anos da queda do Muro de Berlim

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Leningrado e Stalingrado. Os líderes comunistas, como Wilhelm Pieck, deram o exemplo perseguindo os nazistas até o bunker em 9 de maio de 1945; ele foi nomeado o primeiro presidente da RDA.

No Museu da História Alemã, em Berlim Orien-tal, havia uma exposição muitorica, documentan-do a saga alemã no início do século 20: a República de Weimar, o assassínio dos líderes do Movimento Spartakus, de Karl Liebeknecht e Rosa Luxemburg; os combates de rua, a posse de Hitler como chance-ler, as Leis de Nurembergue, as queimas de livros, a Noite dos Cristais, as terríveis cenas dos campos da morte, documentos de identidade de personalidades judaicas famosas, com o carimbo “Judeu”.

Tive a oportunidade de atravessar durante déca-das, para cima e para baixo, a Alemanha Ocidental, mas nunca vi lá um material como esse de Berlim Oriental. Na Alemanha Ocidental essa coisa vergo-nhosa foi varrida para debaixo do tapete. Tudo isso foi para mim bem mais importante do que o fato lamentável de que, quando eu queria comprar um creme dental em Berlim Oriental, só podia escolher entre duas marcas. Eu não me tornei uma vítima normal da loucura consumista da moda. Enquanto os ambientalistas estão hoje reunidos em Copenha-gen, não vai ser essa reunião que vai acabar com a histeria do consumo em nosso mundo, enquanto a concorrência entre as multinacionais em defesa dos seus produtos toma a maior parte das horas da tele-visão, ao mesmo tempo em que empurram para um canto escondido, com seus enormes anúncios, os ar-tigos dos repórteres dos jornais e das revistas.

O Trabant não precisava de anúncios e foi pro-duzido em proporção com a malha viária, enquan-to o transporte público proporcionava viagens rápi-das para casa e para o trabalho. As multinacionais de carros estão jogando nas ruas uma quantidade de carros que não deixa ninguém andar, a não ser a pé, sem contar o veneno que lançam ao ar.

As organizações nazistas não podiam funcionar na Alemanha Oriental. Quem quisesse defender a pureza racional não gozava de liberdade de expres-são. Agora, o nome da rua que foi dedicado à judia polonesa não existe mais.

A 8 de novembro, nos vinte anos da queda do Muro, a Folha de S. Paulo publicou várias reporta-gens interessantes. Anotei uma delas:

“Pesquisa citada pela Bloomberg aponta um cres-cimento de 55 por cento da violência contra os es-trangeiros no Estado da Saxônia”.

“Em fevereiro, para marcar o aniversário da des-truição de Dresden na Segunda Guerra, grupos neo-nazistas atraíram 6 mil pessoas para uma passeata anti-imigrantes (4 por cento da população é de imi-grantes, diz Hilbert; em 2001, eram 2,5 por cento”.

“Quanto mais se vai para o Leste, rumo à Polônia, onde o setor se calcava na indústria energética a car-vão, mais esse niilismo cresce. Se em Dresden cer-ca de 10 por cento da população foi embora – parte disso acabou voltando -, mais ao Leste há pequenas cidades inteiras sumindo do mapa. Com um alto ín-dice de emigração de jovens, sobretudo mulheres, o que resta nelas é uma massa de homens de meia ida-de desempregada que sobrevive da rede de segurida-de social estatal e da agricultura de subsistência.

“Lugares como Hoyerswerda e Zittau perderam metade dos habitantes e estão desaparecendo”, afir-ma Hilbert. “O governo já não consegue nem mais achar médicos para mandar para lá, ninguém quer ir. Escolas e creches estão fechando’. Em cidades as-sim, os índices de alcoolismo e de doenças psíqui-cas cresce. “Carolin e Sven refletem isso. Os pais dela perderam o emprego e tiveram de aprender a poupar. ‘Eles nunca haviam pensado que teriam de guardar dinheiro ou temer pelo emprego – no velho sistema o emprego estava lá”.

euFoRia poR quê?Vinte anos depois da queda do Muro, os cida-

dãos da antiga Alemanha Oriental ainda se sentem cidadãos de segunda classe. Mas, também em sen-tido internacional, o balanço do resultado da que-da do Muro de Berlim não é auspicioso. O Muro, ao cair, não levou ao desmantelamento da Otan, que ti-nha sido fundada por causa da “ameaça soviética”. Já é rotina que os Estados Unidos e seus seguido-res utilizem um espantalho para criar medo, usando forças sem limites para alimentar seu enorme ape-tite de expansão.

Assim é com o balão que sempre se vai soprando para ele inflar, fazendo a “ameaça islamita” aparecer em tamanhos irreais. Quando a coalizão de Bush uti-lizou isso para a terrível aventura sangrenta de oito anos para acabar com o regime de Saddam Hussein,

que era antifundamentalista, a situação acabou re-forçando os sócios fundamentalistas iraquianos, os xiitas que hoje governam o Iraque, aliados dos xii-tas que hoje governam o Irã.

Isso quando a alegação dos Estados Unidos foi de que enviaram seus soldados para salvar os iraquia-nos e afegães da ignorância cultural que os levaria aos braços dos iranianos e para ensinar, no Iraque e Afeganistão, o que é democracia. Junto com a li-quidação do Iraque, Washington e seus sócios euro-peus conseguiram liquidar a própria ONU, que so-brou como uma coisa vazia, sem significado.

Ficou claro que, ainda no tempo do Muro, se conseguia observar as regras do jogo, por causa do equilíbrio do medo, entre as duas superpotências. A Guerra Fria, que não era uma guerra quente e san-grenta, era quase um benefício, um oásis no deserto, comparada à situação de hoje, em que o mundo está em chamas e a guerra se espalhou por vários paí-ses e ocorreu a divisão da Iugoslávia e da Tchecos-lováquia. Agora a União Europeia dá um ultimato à antiga Europa Oriental, como herança de seu colo-nialismo de “divide e impera”. Ela, a Otan e os EUA exigem que os territórios da Europa Oriental sirvam de bases para mísseis – voltados contra quem?

Enquanto a maioria dos americanos deu os seus votos ao primeiro candidato negro que conseguiu entrar na Casa Branca, prometendo mudar Wa-shington pela base, em menos de um ano Washing-ton mudou Obama. E meu amigo José Arbex tinha razão quando classificou Obama, ainda no meio da campanha eleitoral, como “o falso brilhante”.

Quando Obama consente, pelo silêncio, a amplia-ção das colônias judaicas na Cisjordânia, parece que a construção de um Estado palestino é menos real do que nos tempos de Bush. Menos de dois meses de-pois que a maioria das nações do mundo não reco-nheceram o golpe em Honduras, Obama deu o seu apoio tácito ao governo golpista e Zelaya foi atirado aos cães. Os neonazistas aumentam sua votação no mundo inteiro. Qual precisarão ser a altura do muro, ou melhor, do dique, que vai frear esses tsunamis de catástrofes que chegam para nós umas atrás das ou-tras. E se pergunta de novo: essa euforia pela queda do Muro, será que tem justificação?

Ruínas de Berlim após a guerra Orson Welles no filme “Terceiro Homem”, que expressa a difícil situação de Berlim após a guerra

Gershon Knispel é artista plástico.

Checpoint Charlie Bradenburger para separação de Berlim Ocidental e Berlim Oriental

Mulheres buscam lenha no inverno mais frio de Berlim, em 1945

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ensaio Latuff

A convite do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (CEBRASPO), passei uma semana na companhia de lavradores nos acampamentos da Liga dos Campone-ses Pobres (LCP), no interior de Rondônia. Nestes dias, tive a honra de conhecer suas necessidades e sonhos. Povo forte, que sofre o diabo, mas que não tem medo dele.

São trabalhadores rurais armados de uma força de vontade poderosa. Mas não são os rigores da selva amazônica os maiores inimigos desse povo, e sim fazen-deiros com exércitos formados por assassinos de aluguel e policiais.

Como em tais áreas o supermercado mais próximo pode estar a 80 km, é natural que os camponeses tenham de caçar para comer, o que justifica a posse de velhas espingardas. Operações constantes do IBAMA e das polícias tentam tomar estes ar-mamentos, impedindo os lavradores de se defenderem. Estes, no entanto, seguem resistindo como podem. Não se entregam nunca. São os palestinos da Amazônia.

Dedico este ensaio a Elcio Machado “Sabiá” (que conheci pessoalmente) e Gil-son Gonçalves, ambos sequestrados, torturados e assassinados por pistoleiros em Buritis, no interior de Rondônia, no dia 9 de dezembro de 2009, dois meses depois de ter produzido estas fotos.

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ensaio Latuff

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a luta pela terra no Brasil ainda representa risco de morte para quem defende sua di-visão. Reforma agrária são duas palavras

que quando conjugadas se tornam malditas nos rincões controlados pelo latifúndio. O poder dos coronéis é lei nesses lugares. Domina tudo: des-de a política local à rádio que veicula as notícias. Tudo, absolutamente tudo, é subjugado à lógica de uma oligarquia rural que atravessou séculos intacta e permanece com praticamente a mesma força discricionária do passado.

A pequena Salto da Divisa, município locali-zado no nordeste mineiro do Vale do Jequitinho-nha, é o exemplo gritante dessa realidade. Lati-fúndio e terror se conjugam contra aqueles que ousam se levantar em defesa da reforma agrá-ria. O pavor de retaliações fez com que vários entrevistados pedissem para não ter os nomes

revelados. A reportagem acatou a solicitação e decidiu atribuir nomes fi ctícios a todos os entre-vistados ligados ao MST, menos a Geralda Ma-gela da Fonseca, a irmã Geraldinha, ameaçada de morte pelo latifúndio.

A freira dominicana que vive há mais de três anos no acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) Dom Luciano, onde residem 75 famílias, se transformou no alvo preferencial dos latifundiários. É dela a principal voz que se ergue para denunciar as arbitrarieda-des dos donos da terra na região. A atitude cora-josa rendeu a ira dos que teimam em perpetuar a situação de injustiça.

Irmã Geraldinha convive há meses com o medo de ser assassinada a qualquer momento. No prin-cípio, as ameaças chegavam pelo celular. Em um único dia, recebeu três ligações no aparelho. Do

outro lado da linha, a pessoa não identifi cada transmitia sempre a mensagem de morte. O terro-rismo psicológico fez com que a freira quebras-se o chip do celular. Agora poucos possuem seu novo número, e as ameaças deixaram de ser feitas por via telefônica. Chegam por companheiros que moram no acampamento e que ouvem dizer na ci-dade que ela está marcada para morrer.

No latifúndio brasileiro, ameaça de morte é quase a certeza de concretização. Foi assim com Chico Mendes, irmã Dorothy Stang, Margarida Maria Alves e tantos outros que tombaram na luta por justiça social no campo. Como nos outros ca-sos, o medo não afugentou a freira da resistência aos poderosos. Apenas a fez mudar seus hábitos. Irmã Geraldinha não repete, por exemplo, o per-noite no mesmo barraco. Alterna o sono em vá-rios locais dentro do acampamento, para impedir

Geralda Magela da Fonseca, a irmã Geraldinha, pode ser a próxima vítima do terror imposto pelos latifundiários que querem impedir o avanço da reforma agrária no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres do país. A única plantação de alimentos que existe em Salto da Divisa é a do acampamento do MST. No restante das terras, só capim e poucos bois. Fotos: Lúcia Rodrigues

Lúcia Rodrigues

MORRERGeralda Magela da Fonseca, a Irmã Geraldinha: ameaçada de morte pelo latifúndio, não dorme todas as noites no mesmo barraco.

MORRER

Marcada para

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que o inimigo invada sua casa e a torne presa fácil da morte. A reportagem de Caros Amigos acompa-nhou a via crucis da freira durante quatro dias. Di-vidiu com ela, inclusive, os mesmos barracos.

estado de tensÃo

Um acontecimento em particular deixou a frei-ra temerosa de que um eventual atentado pudesse ocorrer. Era noite, e a informação de uma compa-nheira do acampamento, que havia visto um fei-xe de luz vindo do mato próximo do local onde fo-ram erguidos os barracos, deixou a irmã Geraldinha apreensiva. Olhares mais atentos não identifi caram o alerta, mas também não conseguiram tranquilizar a irmã. Qualquer barulho do lado de fora do barraco era motivo para um sobressalto sobre o colchão.

A ausência de iluminação, o único ponto de energia elétrica no acampamento é o do centro comunitário que também é a única construção em alvenaria, joga contra a segurança dela. A noite sem luar torna o ambiente sombrio. Nos barracos, com paredes feitas de folhas de coqueiro ou de tai-pa (barro prensado entre canas de bambu) e cober-tura com a tradicional lona preta, apenas a luz das velas, que se acendem e se apagam rapidamente para neutralizar o alvo de possíveis ataques.

O esquema de segurança do MST no acampa-mento foi reforçado desde que a freira passou a sofrer ameaças. Na entrada do acampamento da Fazenda Manga do Gustavo, localizada a aproxi-madamente 6 km da cidade, uma corrente de ferro impede a passagem dos carros que se aproximam. Ali, há sentinelas 24 horas por dia. Mas os úni-cos instrumentos de proteção de que os vigilantes dispõem para combater uma eventual invasão de agressores são alguns foguetes, que serão pronta-mente disparados para mobilizar os companhei-ros que vivem no acampamento e atrair a atenção da polícia na cidade.

As mulheres participam do turno das 6h às 18h, os homens assumem a partir das 18h e vão até a manhã do dia seguinte. De uma em uma hora, o turno é trocado. Ninguém passa pela portaria sem a autorização da segurança, mas as condições ge-ográfi cas da área não ajudam no trabalho. Por se tratar de uma fazenda, há inúmeros pontos vul-neráveis dos quais os possíveis assassinos podem se valer, para chegar a pé ao local.

À noite, a segurança é reforçada por uma equi-pe de 24 homens que cuidam da vigilância da área. Além da portaria, uma ronda percorre o acampa-mento com lanternas para verifi car se não há in-vasores que coloquem em risco a vida da frei-ra. A segurança dos companheiros que dividem o acampamento com ela é a única proteção que irmã Geraldinha tem durante a noite. De dia, além da segurança dos sem-terra, a Polícia Militar tam-bém vai ao acampamento, de duas a três vezes, conversa com a religiosa e retorna à cidade.

“A nossa proteção é de 24 horas”, frisa Daniel Monteiro, chefe da segurança do acampamento, para destacar a importância do trabalho desempe-nhado pelos acampados na proteção à freira.

O comando do policiamento militar da cidade foi trocado recentemente. O sargento Clóvis Bon-fim de Morais é o novo responsável pela área. Veio

do município de Teófilo Otoni e traz no braço o brevê de direitos humanos. “Só quem tem muita formação na área (de direitos humanos) usa o bre-vê”, comenta. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República interveio para mudança no policiamento em Salto da Divisa, segundo o co-ordenador do Programa de Proteção aos Defenso-res dos Direitos Humanos, Fernando Matos.

Antes, o poder fardado não falava em direitos humanos e era caudatário dos interesses do latifún-dio. Nem mesmo o ataque de um grupo que tentou incendiar o acampamento do MST demoveu os po-liciais de uma ação contrária aos acampados.

rotina de ameaÇas

“Hoje vou comer bolo na sua casa”, dizia a voz de um homem que se identifi cou como Ilton Guimarães, ex-vereador e muito próximo aos la-tifundiários da cidade. Ele ligou para o celular da acampada Cristina Soares, no dia 27 de julho, um dia após a eleição para a Prefeitura de Salto da Divisa e que deu a vitória a Ronaldo Athayde da Cunha Peixoto (DEM). A eleição aconteceu fora de época devido à cassação pelo TRE do prefeito an-terior. Ronaldo faz parte de uma das duas famí-lias que dominam as terras da região.

O número oculto registrado no identifi cador de chamadas impediu que Cristina soubesse de onde partira a ligação. A frase, aparentemente sem sen-

tido, ganharia lógica no dia seguinte, 28 julho. Um grupo de quatro homens, em um carro, atea-ria fogo no acampamento do MST. O incêndio foi detectado a tempo pelos acampados e não se pro-pagou.

Dentro do automóvel, estavam Ilton Ferrei-ra Guimarães, Paulo Roberto Inácio da Silva, seu fi lho Daniel Salomão Silva e Genilton Menezes Santos, cunhado de José Alziton da Cunha Peixo-to, primo do prefeito eleito e presidente da Fun-dação Tinô da Cunha, a quem pertencem as ter-ras da Fazenda Manga do Gustavo, onde estão acampados os sem-terra, além da Fazenda Mon-te Cristo, que os trabalhadores rurais haviam ocu-pado inicialmente e onde pretendem ser assenta-dos pelo Incra.

Paulo Roberto é o locutor da Rádio Aracuã, controlada pela família Cunha Peixoto. A rádio é uma das trincheiras de ataque da família con-tra a freira e o MST. Irmã Geraldinha é chamada de bruxa por Paulo Roberto. Ele também xinga as mulheres sem-terra de vagabundas, além de afi r-mar que o acampamento é local de prostituição.

A conivência do antigo policiamento com a prática truculenta dos latifundiários se evidenciou na condução do caso. Os policiais demoraram ho-ras para atender ao pedido de socorro, segundo relato dos acampados. Além disso, quando che-garam, inverteram a situação contra os sem-ter-ra, que de vítimas, passaram a réus. O boletim de ocorrência registrado pelos policiais militares co-loca a freira, que nem estava no local no momento do incidente, como sendo responsável por seques-tro e cárcere privado dos quatro homens.

Para desfazer a mentira, irmã Geraldinha teve de viajar 50 km até Jacinto, cidade mais próxima a Salto da Divisa, com delegacia de polícia, para re-gistrar um boletim de ocorrência relatando o que de fato havia ocorrido. Mas o município de Jacin-to não está imune ao poder da família Cunha Pei-xoto. O Fórum da cidade carrega o nome do pai de José Alziton da Cunha Peixoto.

A pressão contra a freira se intensifi cou a par-tir de 28 de outubro, logo após a realização de uma audiência contra o falso boletim de ocorrên-cia da PM, que a transformava em sequestrado-ra. No dia 30, um automóvel marca Corsa aparece próximo à entrada do acampamento. Nesse dia, a freira estava na cidade e voltaria sozinha de ôni-bus para o acampamento. Desceria na estrada e enfrentaria uma longa caminhada até os barra-cos. Certamente cruzaria com o carro que esta-va na tocaia. Mas o frei capuchinho Emílio San-ti Piro, padre da cidade, achou perigoso ela voltar de ônibus e emprestou o seu carro. A solidarieda-de cristã permitiu que ela cruzasse o ponto de en-contro, antes que o veículo que esperava por ela chegasse. Quando irmã Geraldinha recebeu um te-lefonema informando que um carro estava na to-caia à sua espera, ela já estava no acampamen-to. O mesmo veículo foi visto posteriormente na cidade: o motorista queria saber se a irmã estava no município. Na sequência, em 1º de novembro, a freira recebeu os três telefonemas a ameaçan-do de morte e resolveu quebrar o chip para ate-nuar a tormenta.

Os sem-terra protegem a entrada do acampamento do MST 24h por dia.

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O sargento da PM Clovis Bonfim de Morais é o responsável pela proteção policial à irmã Geraldinha.

Pelo menos dois homens que já ameaçaram a freira várias vezes são conhecidos: são dois ex-sem-terra que foram expulsos do movimento pe-los acampados porque eram violentos. Admilson e Caboclo passaram a trabalhar na administração do prefeito Ronaldo. Um é fiscal da varrição de ruas, o outro vigia em uma escola.

Coronelismo

José Alziton é outro que persegue os sem-ter-ra desde o primeiro dia em que o acampamento foi formado. Irmã Geraldinha conta que logo após os sem-terra terem realizado a ocupação, Alziton apareceu na fazenda com duas armas na cintu-ra, fazendo questão de mostrá-las e gritando que aquela fazenda era sua. “Quem mandou vocês en-trarem, isso aqui é meu!”, afirmava, furioso. Ao que os sem-terra respondiam em coro: “MST, a luta é pra valer”.

Alziton não é o dono da fazenda ocupada. Ele presidia, até maio deste ano, o conselho da Fun-dação Tinô da Cunha, proprietária da Fazenda Manga do Gustavo e Monte Cristo, mas foi afas-tado do cargo por má administração. Em seu lu-gar, o Ministério Público nomeou um interventor. Além de Alziton, o prefeito Ronaldo também fa-zia parte do conselho da Fundação.

Os recursos gerados pelas duas fazendas, e por mais três propriedades que pertencem à Fundação deveriam custear os gastos do único hospital da ci-dade que atendia à população. Os recursos desapa-receram e aproximadamente 2 mil cabeças de gado

sumiram do pasto. As dívidas com o INSS atingem a cifra de quase 2 milhões de reais, segundo o pro-motor de Justiça da Comarca de Jacinto, Bruno Cé-sar Medeiros Jardini. “O hospital era utilizado para fazer política, angariar votos, mas o atendimento era precário”, critica o promotor.

O hospital praticamente fechou as portas, só atende casos de urgência. O prefeito não revela para a reportagem que fazia parte do conselho da Fundação Tinô da Cunha, responsável pela admi-nistração do hospital. Antes da eleição que o le-vou ao cargo de prefeito, o primo José Alziton chegou a encaminhar petição ao juiz da Comarca de Jacinto para se manter à frente da Fundação, argumentando que a posse de Ronaldo reduziria o problema financeiro do hospital. O prefeito Ro-naldo nega à Caros Amigos que pretenda destinar recursos da prefeitura para o hospital.

No entanto, ele tentou confundir a reportagem ao afirmar que a prefeitura pagava o salário de três médicos que atendiam no hospital. “O hospi-tal está funcionando porque a prefeitura está pa-gando três médicos.” Na verdade, os médicos pa-gos pela prefeitura não atendem no hospital, mas na unidade básica de saúde. “Ficam de plantão no celular”, reconhece o prefeito. Ele não sabe expli-car como ocorre a convocação dos médicos pelo celular, quando alguém passa mal. O hospital só atende casos de urgência. O prefeito nem ao me-nos sabe quantos enfermeiros trabalham no local. “Saúde é uma coisa muito cara”, afirma o prefeito, que tem um salário mensal de 8 mil reais.

Na região, a diferença de renda entre pobres e ricos é abissal. O próprio prefeito reconhece isso. “Ninguém nega que o município de Salto da Divi-sa tem uma distribuição de renda muito maldosa, muito maléfica”. O poder econômico dos latifun-diários é que permite, por exemplo, que se con-trate o elemento-chave e decisivo no meio agrário para que o terror persista no campo: os pistolei-ros ou jagunços, como são conhecidos os mata-dores de aluguel.

Essa tradição do coronelismo também permeou a família Cunha Peixoto, segundo apurou a repor-tagem. O avô do prefeito Democrata, Ronaldo, ti-nha vários jagunços para eliminar desafetos. A companheira de um desses pistoleiros que mata-va a mando de Orozimbo da Cunha Peixoto, o co-ronel Zimbu, concordou em conversar com a Ca-ros Amigos. Seu verdadeiro nome, por motivos de segurança, também será alterado e o de seu mari-do, omitido. “Os chefes da matança eram o coro-nel Zimbu, avô desse demônio que está na Prefei-tura, dona Inhá, Maria da Conceição Pimenta da Cunha e seu Tinô, Manoel Soares da Cunha Pei-xoto”, conta Alzira Borges. Os dois últimos eram tios-avôs do prefeito.

Alzira sente segurança para contar essa histó-ria porque o marido já morreu, mas tem um pou-co de receio de que sua identidade seja revelada. “Ele falava que se eu contasse alguma coisa, me matava”, recorda. Ela também revela a estratégia utilizada pelos coronéis de Salto da Divisa, que torna compreensível o processo de enorme con-centração de terras nas mãos dessas famílias. “Es-sas fazendas foram tomadas na marra. Eles man-davam os pistoleiros para matar os posseiros. Se algum deles vacilasse e não matasse, morria tam-bém”, conta. Alzira afirma que seu marido foi ma-tador do coronel Zimbu por mais de 20 anos. Ela conhece de perto essa história, mora em Salto da Divisa há mais de 50 anos.

O império conquistado pelos Cunha Peixoto ao longo de gerações é vastíssimo e invade tam-bém o Estado da Bahia. Segundo os sem terra, só em Salto da Divisa esses latifundiários do-minam mais de 90% das terras. O prefeito Ro-naldo nega a versão. “Sei lá, mas deve girar em torno de 20%, 25 %, no máximo 30% das terras. A minha família tem 23 mil hectares, juntan-do irmão, irmãs, primos, tios, todo mundo jun-to, não passa de 30%. Você pode levantar, pode passar no cartório para olhar”, afirma para mi-nimizar a indagação. A reportagem entrou em contato com o Incra para obter detalhes sobre as propriedades, mas alterações no sistema de con-sulta aos dados impediram qualquer tipo de deta-lhamento sobre as propriedades.

“Não sei quantas fazendas a minha família tem. Acho que são 25, 30 fazendas, são fazen-das grandes”, desconversa o prefeito. Ele afirma ser proprietário de duas fazendas, que totalizam aproximadamente 900 hectares: Chácara Baiana e Atalaia. Em toda essa terra, nenhuma plantação. Só capim e aproximadamente 1.500 cabeças de gado de corte espalhadas pelo pasto.

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29janeiro 2010 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Dom Tomás BalDuíNo se soliDariza com a freira

“Não quero um pedaço de terra. Meu objetivo é acompanhar essas pessoas”, declara Dom Tomás Balduíno Lúcia Rodrigues é jornalista.

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O bispo emérito de Goiás, Dom Tomás Bal-duíno, afirma que as ameaças contra a vida de Geralda Magela da Fonseca, a irmã Geraldinha, acontecem devido à sua destacada atuação para a efetivação da reforma agrária na região.

Ele fez questão de ir a Salto da Divisa para prestar solidariedade à freira. “A Geraldinha dá apoio aos trabalhadores e se torna um obstáculo ao latifúndio.” O bispo, de 86 anos de idade, res-salta que a freira tem seu apoio. “Ela não está so-zinha, conta, inclusive, com apoio internacional importante. Vão pensar mais de uma vez antes de praticarem alguma repressão”, conclui, ao se refe-rir a um eventual atentado contra a irmã.

Além de bispo, Dom Tomás também é conse-lheiro da CPT, a Comissão Pastoral da Terra. A participação do clero progressista na luta pela di-visão da terra dá calafrios nos latifundiários da re-gião. As petições encaminhadas por José Alziton da Cunha Peixoto ao juiz da Comarca de Jacinto revelam a ira dos latifundiários contra os religio-sos que defendem a reforma agrária.

“Esses simpatizantes, aliados e defensores da ditadura do proletariado, transvestidos de grupos religiosos ou de pretensos defensores dos direi-tos do cidadão ou de defesa do meio ambiente, infelizmente têm influenciado o digno promo-tor”, afirma uma das passagens. Em outro tre-cho, a ideologização avança. “Alicerçados na Teo-ria da Libertação e amparados pelas Comunidades Eclesiais de Base, estes segmentos pífios, embo-ra barulhentos da Igreja Católica – desprezados e condenados pelo Papa Bento XVI e a maioria do clero contemporâneo, considerados os responsá-veis pelo êxodo dos fiéis – tem de forma irrespon-sável, sob o discurso da proteção aos excluídos, causado a cizânia em diversas regiões do país. No caso em pauta, trabalharam decisivamente para a invasão das terras da Fundação pelo MST”, enfa-tiza o texto. Em uma outra passagem, cita expli-citamente a freira. “Como confessado pela irmã Geralda Magela da Fonseca e seus seguidores... demonstram à sociedade seu caráter ideológico de viés e iminentemente político, toda esta discussão a respeito da Fundação tem como objetivo único manchar a imagem da família Cunha Peixoto.”

O primo de José Alziton e irmão do prefeito Ronaldo, Paulo da Cunha Peixoto, também tem verdadeiro pavor da irmã Geraldinha. “Essa freira não presta, só fica ensinando o que não deve para os acampados”, conta um dos entrevistados que prefere não ter o nome revelado por medo de pos-síveis retaliações em função do que ouviu.

Os ataques contra o clero progressista não intimi-dam Dom Tomás. Ele argumenta que a luta pela re-forma agrária deve ser ainda mais ampla do que a mera conquista de um assentamento. “Deve ter o ob-jetivo de mudar a estrutura fundiária deste país”, sa-lienta. O sacerdote destaca que o Brasil é o recordista em concentração de terras. “Já superou Serra Leoa (na África). É preciso levar democracia ao campo.”

Democracia é tudo o que os coronéis não que-rem que chegue à zona rural. Eles querem conti-nuar mandando. Por isso, perseguem todos aque-les que representam entraves a esse objetivo.

Além dos sem-terra, os latifundiários também perseguem os posseiros. José Alziton chegou a le-var a polícia para sequestrar os animais dos pos-seiros que moram na Fazenda Monte Cristo, da Fundação Tinô da Cunha, que ele presidia até ser destituído do cargo pelo Ministério Público por má administração.

“Pegaram os animais sem a nossa ordem e le-varam. Trouxeram soldados para nos intimidar”, conta um dos posseiros que teve os animais rou-bados na presença da PM. O nível das arbitrarie-dades que são cometidas nos rincões mais distan-tes do país impressiona.

latifúndio improdutivo

A Fazenda Monte Cristo de 1.400 hectares é um latifúndio improdutivo, conforme atesta o laudo do Incra de julho de 2005. O presidente Lula che-gou a assinar o decreto declarando a área de inte-resse social para fins de reforma agrária. A assina-tura do decreto presidencial é o último passo para que a área seja desapropriada pela Justiça.

Mesmo assim, a fazenda está sendo vendida com o consentimento do Ministério Público Es-tadual. O ex-presidente da fundação, José Alzi-ton, estaria, portanto, descumprindo uma deter-minação presidencial ao vender a propriedade. No entanto, os representantes da Fundação Tinô da Cunha deram uma cartada de mestre contra os sem-terra. Valendo-se das brechas da legislação, os advogados entraram com uma ação cautelar, para se prevenir da desapropriação. Eles sabiam que o laudo do Incra só poderia dar no que deu: a terra foi considerada improdutiva.

Mesmo assim o juiz acolheu a ação. “Normal-mente não se suspende um processo governa-mental por qualquer coisa”, frisa o procurador do Incra, Luzio Horta de Oliveira. Ele conta que a ar-gumentação que sustenta a peça afirma que a ren-da do imóvel sustenta um hospital, “e o juiz se sensibilizou com o argumento.”

O Incra recorreu da decisão, mas o tribunal manteve. A baixa celeridade da justiça fez com que o decreto assinado pelo presidente Lula cadu-casse. A ação cautelar deverá ser julgada na 12º Vara Federal de Belo Horizonte. A reportagem da Caros Amigos entrou em contato com o juiz titu-lar da Vara, mas não obteve retorno até o fecha-mento desta edição.

São injustiças como essa que motivam irmã Geraldinha a continuar na luta contra o latifún-dio. A vocação para estar do lado dos oprimidos veio desde cedo. “Com dez, onze anos eu ouvia no rádio notícias sobre as irmãs missionárias que iam pelo mundo evangelizar, e gostava.” Mas os pais pobres acreditavam que para formar uma fi-lha freira era preciso dinheiro. Geraldinha é mi-neira de São Domingos e tinha 14 irmãos. Deixou o sonho adormecido por algum tempo e teve dois namorados antes de se tornar a irmã Geraldinha.

Cresceu no ambiente rural e apesar de ter mui-tas afinidades com a vida religiosa só fez a pri-meira comunhão aos 16 anos. Com 22, foi crisma-da. Foi durante o curso preparatório para o crisma que ela percebeu que poderia se tornar freira. Foi para Salto da Divisa em 1993. Primeiro para mo-rar na cidade, e nestes últimos três anos vivendo sob uma lona preta no acampamento do MST.

“Não quero um pedaço de terra. Meu objetivo é acompanhar essas pessoas”, revela. Ela também milita na área de direitos humanos. É vice-presi-dente do GADDH (Grupo de Apoio e Defesa dos Direitos Humanos).

O bispo Dom Tomás Balduíno apoia a luta por reforma agrária.

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Ações do governo gaúcho retomam métodos das ditaduras militares brasileira e chilena.

Miguel Enrique Stedile

fechamento de escolas, áreas restritas de mani-festações, cancelamento de títulos eleitorais, monitoramento ilegal e classificação de “ter-

roristas” para os movimentos sociais. Em entrevis-ta, o advogado Leandro Scalabrin afirma que as violações do governo gaúcho retomam métodos das ditaduras militares brasileira e chilena. Inte-grante da Rede Nacional de Advogados e Advoga-das Populares (Renaap) e da Comissão de Direitos Humanos da OAB em Passo Fundo (RS), Scala-brin foi a primeira pessoa a denunciar a existên-cia da ata do Ministério Público Estadual pedindo a extinção do MST e as normas da Brigada Mili-tar para despejos, no ano passado.

Como definir a situação dos movimentos sociais e dos direitos humanos no Rio Grande do Sul?

Leandro Scalabrin - O Rio Grande do Sul pode ser considerado um Estado de Exceção porque res-tringe o direito de reunião, de ir e vir, de livre manifestação e de liberdade de imprensa; man-tém banco de dados com informações referentes às convicções ideológicas de cidadãos; viola o si-gilo das comunicações telefônicas; realiza prisões ilegais em massa, tortura, desaparecimentos tem-porários e usa arbitrariamente a força contra pro-testos. A Constituição Federal dispõe que só o Pre-sidente da República poderia restringir os direitos de reunião e sigilo de comunicações, após decre-

tar o Estado de Defesa e depois de ouvir o Conse-lho da República e o Conselho de Defesa Nacional. A Constituição Estadual gaúcha proíbe registros e bancos de dados com informações referentes à convicção política, filosófica ou religiosa. O Esta-do de Exceção vigora no RS desde a promulgação da Instrução Operacional nº 006.1 (IO-6) de outu-bro de 2007 pelo Estado Maior da Brigada Mili-tar. Esta “instrução” promulgada e aplicada pela Brigada Militar restringe o direito de manifesta-ção, reunião, ir e vir e de liberdade de impren-sa, cria um aparato militar para monitoramento e manutenção de banco de dados com convic-ções ideológicas de opositores do governo e mo-

O advogado Leandro Scalabrin foi o primeiro a denunciar o pedido do Ministério Público Estadual de extinção do MST.

“O RS vive um EStadO dE ExcEçãO”

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vimentos sociais; e estabelece o uso da violência contra manifestações. O governo do RS se coloca acima da Constituição e das convenções interna-cionais de direitos humanos ao se auto-atribuir o poder soberano e imperial de definir novas regras excepcionais para a sociedade gaúcha, arbitradas por ele mesmo.

Há paralelos na história brasileira com esta situação no RS hoje?

O paralelo mais recente para a situação do Rio Grande do Sul, onde um general comanda a Segu-rança Pública e os coronéis estão nas ruas dizen-do o que o povo pode fazer ou não, é a ditadura civil-militar brasileira implantada com o golpe de 1º de abril de 1964 e que rompeu uma estabilida-de democrática de 19 anos. Desde a redemocrati-zação em 1985 os militares não detinham tama-nho poder em suas mãos.

De que forma esta situação articula diversas instituições do Estado?

De duas formas, sendo a primeira através da aceitação do que vem ocorrendo pelo Ministé-rio Público Estadual (MPE), que deveria exercer o controle externo sobre a polícia e não o exerce. O CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pes-soa Humana) recomendou ao MPE que ingressasse com ação judicial para revogar a IO-6, mas a re-comendação não foi acatada, ou seja, não se trata de mera omissão, mas de aceitação do Estado de Exceção. Isto não é gratuito: o governo estadual possui vários integrantes do Ministério Público em seu primeiro escalão e não se submeteu ao re-sultado da eleição para o cargo de Procurador Ge-ral de Justiça nomeando a segunda mais votada. A segunda forma de articulação decorre da cria-ção de uma “força especial” dentro do Ministé-rio Público Estadual, que atua de forma integrada com a Brigada Militar, Poder Judiciário e o Servi-ço de Inteligência. Esta “força especial” foi criada a partir da elaboração de um relatório e da apro-vação do voto do Procurador Gilberto Thums pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), onde o caráter do maior movimento social do Es-tado, o dos trabalhadores sem terra, é considera-do “paramilitar”. Somando-se a isto uma procura-dora do Ministério Público Federal ingressou com ação alegando que a organização dos trabalhado-res é uma organização terrorista.

Quais são as consequências práticas desta decisão?

Ao considerar este movimento social como uma organização paramilitar e terrorista, o MPE e aquela procuradora federal praticamente deram sinal verde para a repressão militar ao movimen-to, que é atacado como se fosse um “inimigo” in-terno do Estado. Mas não é só, a partir da deli-beração do CSMP, foram propostas quatro ações civis públicas contra os principais acampamentos de sem-terra no Estado que através do deferimen-to de medidas liminares do Poder Judiciário cria-ram uma “zona de restrição do direito de mani-festação” numa faixa de dois quilômetros ao redor da Fazenda Southal (13.207 hectares) em São Ga-

briel, Fazenda Guerra em Coqueiros do Sul (8.000 hectares), Granja Nenê em Nova Santa Rita (1.246 hectares) e Fazenda Palma (3.029 hectares) em Pe-dro Osório. Através de um TAC - Termo de Ajus-tamento de Conduta – firmado entre a Secretaria Estadual de Educação e o MPE, foram fechadas as Escolas Itinerantes localizadas nos acampamentos de sem-terra no Estado do RS, a partir do ano le-tivo deste ano. E por fim, uma ação civil pública dissolveu o MST na Comarca de Sarandi, onde ele surgiu 25 anos atrás, onde a decisão liminar proi-biu ocupação “por integrantes do MST, de qual-quer outra área localizada há menos do que 5 km de rodovia, seja a via federal, estadual ou muni-cipal. Todas estas ações são encaminhamento da política do MPE. Anteriormente a aprovação da política institucional pelo CSMP, já haviam sido encaminhadas ações na Comarca de Carazinho para cancelar a transferência dos títulos eleitorais de 60 sem-terra acampados em Coqueiros do Sul e impedir as marchas de sem-terra de ingressarem na comarca de Carazinho, jurisdição que abrange os Municípios de Carazinho, Almirante Tamanda-ré do Sul, Coqueiros do Sul e Santo Antônio do Planalto (uma área de 2.108 km2).

Trata-se, então, de uma articulação entre o Poder Executivo e o Ministério Público?

A articulação é mais ampla: envolve os gran-des proprietários rurais representados pela FAR-SUL, empresas multinacionais, a bancada ruralista na Assembleia Legislativa e os grandes meios de comunicação do Estado, todos unindo forças para manter a absurda concentração de terras no RS que coloca a maioria das terras na mão de muito poucos. Este é o objetivo da articulação: manter a disparidade na distribuição de terras e os privi-légios dos proprietários que através delas conse-guem acessar fundos públicos.

E como tem sido o comportamento da Brigada Militar no RS?

A Brigada Militar possui bancos de dados com informações ideológicas de partidos políticos, de-putados, diretórios acadêmicos, sindicatos e mo-vimentos sociais. Monitora as sedes de entidades, lideranças e locais de possíveis manifestações; apreende equipamentos e carros de som de sin-dicatos nas portas de fábrica. Quando identifi-cam pessoas que irão participar de protestos, as pessoas são impedidas de ir e vir, com a deten-ção dos veículos onde estão (ônibus). Se a Briga-da não consegue impedir os protestos, os reprime com uso imoderado de violência, cavalaria, cães e bombas, contra protestos e manifestações de ban-cários, professores, metalúrgicos, comerciários, estudantes, movimentos sociais. Nestes casos a Brigada já quebrou a perna de uma professora, causou hemorragia interna num pequeno agricul-tor, atirou pelas costas contra dois trabalhadores sem-terra tendo matado um deles, além de causar inúmeros ferimentos em cerca de trezentos mani-festantes nos últimos dois anos. Além da violên-cia, usa algemas arbitrariamente e existem casos de desaparecimento temporário de manifestantes, caso de um estudante da UFRGS. Ocorreram vá-

rios casos de prisão temporária em massa de du-zentas, trezentas pessoas, da mesma forma como ocorria no Chile de Pinochet. Durante os despejos a liberdade de imprensa e as prerrogativas de ad-vogados são desrespeitadas. Além de tudo existem dois casos comprovados de tortura em caráter co-letivo contra manifestantes. O ex-ouvidor da Se-cretária de Segurança Pública denunciou o uso de grampos ilegais com finalidade política e existe um fato novo vinculado ao uso de armas de cho-que como forma de torturar manifestantes. Outro fato digno de nota foi a dissolução do Encontro Estadual do MST, com cerca de mil pessoas, na Fa-zenda Annoni, em 2008, exatamente 40 anos de-pois das forças armadas terem feito o mesmo com o congresso da UNE em Ibiúna, São Paulo.

O Governo gaúcho pode alegar que estas ações são legais?

As prisões em massa violam a presunção de inocência prevista na Constituição. A dissolução do congresso do MST, apreensão de carros de som de sindicatos, ameaças públicas, violência contra passeatas, violam o direito constitucional de li-vre manifestação e reunião. O “aparato militar” criado pela Brigada, com atuação na investiga-ção de sindicatos e partidos, na repressão e na ar-ticulação via imprensa e ministério público, viola o princípio constitucional da separação de esferas de atuação das polícias, colocado na constituição para evitar o surgimento de um novo Dops, como este que surgiu no RS. Os grampos ilegais violam o direito de inviolabilidade das comunicações. A política de “ações rígidas”, ou seja, violentas, em manifestações, viola o Código de conduta para os encarregados da aplicação da lei, adotado pela ONU através da Resolução 34/169 de 17/12/1979; e os Princípios Básicos para utilização da força e armas de fogo, adotado pela ONU em 07/07/1990. As deliberações do CSMP violam o princípio cons-titucional e a garantia à sociedade de independên-cia funcional dos Promotores.

O que é possível prever hoje sobre esta situação? A criminalização dos movimentos sociais irá se acentuar?

O aparato militar de repressão política poderá ser adequado ao Estado de Direito com a mudan-ça do comandante supremo da Brigada Militar , o Governador do Estado. Todavia, a deliberação do CSMP que caracteriza o MST como uma organi-zação terrorista, independente da mudança de go-verno, continuará sendo executada nas comarcas onde promotores locais, a despeito de sua inde-pendência funcional, se submeterem à deliberação superior ilegal e encaminharem as ações ali pro-postas, como de fato vem ocorrendo em Carazi-nho, Canoas, Pedro Osório, São Gabriel, onde fo-ram criadas as zonas de restrição de direito (onde não pode haver manifestações), Sarandi (onde o MST foi dissolvido através da proibição de acam-par) e Porto Alegre (onde foi firmado o TAC que fechou as escolas).

Miguel Enrique Stedile é jornalista.

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Em 2009, foram mais de dez protestos contra o governo de Yeda Crusius (PSDB). As manifesta-ções pediam desde o esclarecimento sobre casos de corrupção envolvendo o governo até o impe-dimento da governadora. Tem sido assim ao lon-go dos três anos de governo. Em um dos protestos mais contundentes contra a governadora, orga-nizado pela Via Campesina em 2008, mais de 17 pessoas ficaram feridas. Na ocasião, cerca de 400 policiais militares da Tropa de Choque da Brigada Militar (a polícia militar gaúcha) foram mobiliza-dos para reprimir três mil manifestantes.

Em julho de 2009, uma manifestação organi-zada pelo Fórum dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul, em frente à casa da governadora, expôs o lado autoritário de Yeda Crusius. Na oca-sião, a chefe do executivo acusou os professores de “torturadores de crianças”. Além disso, a po-lícia gaúcha algemou e deu voz de prisão à pre-sidente do Sindicato dos Professores do Estado (CPERS-Sindicato), Rejane de Oliviera e à verea-dora Fernanda Melchionna (Psol).

As manifestações representam o descontentamen-to de grande parte da população gaúcha, que não concorda com as políticas de “choque de gestão” do governo Yeda. Um governo que começou contrarian-do a expectativa dos seus eleitores ao tentar aumentar impostos antes mesmo de assumir o mandato.

A oposição na Assembleia Legislativa tenta re-sistir aos projetos que chegam do Executivo e que priorizam as grandes empresas em detrimento dos interesses da população. No entanto, há uma difi-culdade da oposição em combater e investigar as ações do governo. Para o deputado Raul Pont (PT), a CPI da Corrupção não conseguiu cumprir seu pa-pel, pois a maioria de seus integrantes é da base governista. “Os membros da comissão taparam os ouvidos, se recusaram a ouvir provas. Então, foi a Anticomissão Parlamentar de Inquérito quando os próprios parlamentares se recusaram a ter acesso às provas é porque aquilo foi uma farsa”, denuncia.

Segundo Raul Pont, outra forma da oposição contestar as políticas e as ações do governo, é de-nunciar para a imprensa suas falhas e contradições. Entretanto, conforme Pont, a grande imprensa não repercute as denúncias, e mais do que isso, dissemi-na a versão oficial. “A política neoliberal do gover-no só não é desmascarada para quem não conhece e graças à cumplicidade dos meios de comunicação que sustentam a versão do governo”, afirma.

Em agosto do ano passado o sem-terra Elton Brum da Silva foi assassinado em uma ação da Bri-gada Militar de reintegração de posse da Fazenda

Southal, em São Gabriel, na fronteira oeste. O as-sassinato do sem-terra faz parte de uma política de repressão que levou a Brigada Militar a ser a única polícia do país a não adotar as “Diretrizes Nacio-nais para Execução de Mandados Judiciais de Ma-nutenção e Reintegração de Posse Coletiva”, pro-postas pela Ouvidoria Agrária Federal. Antes disso, em 2007, Yeda extinguiu o Gabinete da Reforma Agrária da Secretaria Estadual de Agricultura, dei-xando claro que no estado a Reforma Agrária se tratava apenas de um caso de polícia.

Para tentar conter o avanço dessas determina-ções, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) aposta na educação como um meio de resistência. Nina Tonin, da coordenação esta-dual do MST, acredita que a educação é um dos instrumentos mais eficazes para resistir às políti-cas excludentes do governo Yeda Crusius. “Nós defendemos a necessidade do conhecimento para os trabalhadores e mesmo com o fechamento das escolas pela governadora, e a repressão aos movi-mentos sociais populares, em condições mais pre-cárias nós temos recebido apoio de entidades e de movimentos sociais em geral, para garantir as condições mínimas de escolarização nos acampa-mentos, e seguimos nesse processo. Também te-mos criado e aberto outros espaços formativos e educativos formais e informais como nunca na história do MST. Nesses 25 anos nunca tivemos tantos camponeses e camponesas jovens e adul-tos estudando de alguma forma para que o campo gaúcho seja um lugar bom de se viver.”

O setor que mais sofreu com as políticas de “choque de gestão” foi justamente a educação. Em 2008, a Secretaria da Educação colocou em práti-ca o projeto de “enturmação”, em que turmas fo-ram extintas para a formação de salas de aulas com mais alunos nas escolas. Ainda neste mesmo ano, o governo alugou contêineres de lata para suprir a falta de salas de aula. Escolas que funcionavam em prédios antigos, que precisavam de reformas, fo-ram substituídas pelas “escolas de lata”. Até o mo-mento, uma ação que deveria ser emergencial, se transformou em uma rotina insalubre para profes-sores e estudantes, em diversas cidades do estado.

A presidente do CPERS, Rejane de Oliveira, afir-ma que o governo representa o projeto neoliberal. Para ela, a proposta de Yeda tem na sua matriz o ataque aos direitos dos trabalhadores, a corrupção e a criminalização dos movimentos sociais. “Nós tomamos uma decisão política de fazer o enfrenta-mento político com este governo. Entendemos que a única forma que o movimento tinha de barrar as

políticas de sucateamento e extermínio das áreas sociais do Estado, como também o ataque frontal aos nossos direitos, era fortalecermos a denúncia do tema da corrupção e enfraquecermos o gover-no a ponto de ele não ter força para votar projetos na Assembleia Legislativa que atacassem os direi-tos dos trabalhadores”, explica.

Ainda conforme Rejane, após as denúncias de corrupção tomarem grandes proporções no Esta-do, os sindicatos e movimentos sociais passaram a ser perseguidos. “Todas as denúncias que nós fizemos geraram, por parte do governo, grandes mecanismos de tentar calar a voz do movimento através de ações na Justiça, indiciamentos, perse-guições políticas, ameaças e a instituição do medo nos locais de trabalho. Isso fez com que o go-verno evitasse o processo de mobilização”. Mas a pressão do governo não teve o efeito desejado. Neste ano, o CPERS protagonizou o movimento “Fora Yeda”, que percorreu as cidades do estado para denunciar os casos de corrupção. Uma pes-quisa realizada pelo Fórum dos Servidores Públi-cos mostrou que 94% dos 94 mil pesquisados afir-maram que a governadora Yeda é culpada pelos casos de corrupção no Estado.

A administração tucana no RS também ten-ta desmontar a legislação ambiental do Estado. Atualmente, tramita na Assembléia o projeto de lei 154/2009, de autoria do deputado Edson Brum (PMDB), que flexibiliza o Código Ambiental e be-neficia o agronegócio. Para tentar reverter esse quadro, ambientalistas, sindicatos e os movimen-tos sociais se uniram para discutir a situação. De acordo com o ambientalista Felipe Amaral, a par-tir da organização desses setores foi possível levar para a sociedade informações a respeito das inten-ções do governo. “Quando a gente identificou essa estratégia do governo, os ambientalistas buscaram articulação com outros setores da sociedade. Uma das características que a gente vem construindo é a articulação com os movimentos sociais urbanos e do campo na tentativa de fortalecer a luta dos am-bientalistas. Essa perspectiva de trabalhar em bloco com os movimentos sociais e sindicatos, possibili-tou que a gente desse uma maior visibilidade para a discussão ambiental,” relata.

Os metalúrgicos também criticam o governo por não propor políticas de alternativa à crise fi-nanceira mundial. Conforme o secretário geral da Federação dos Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, Jairo Carneiro, desde o início da crise, o estado perdeu 50 mil postos de trabalho. Para ele, o go-verno não enfrentou a crise com a seriedade ne-cessária. “Nós observamos que é uma administra-ção que fica se gabando do déficit zero, mas fazer déficit zero é fácil, pois é só não investir, não pagar aumento salarial dos trabalhadores. Mas, ao mesmo tempo em que se gaba do déficit zero, o executivo concede incentivos para a GM. Até quando essas empresas vão ficar sem pagar im-postos? A GM faz 10 anos que não paga e agora vai ficar mais 15?”, questiona.

Bianca Costa e Roberto Dornelles são jornalistas.

Bianca Costa e Roberto Dornelles

RESiStência no campo e na cidade

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33janeiro 2010 caros amigos

Fidel Castro

Chegamos a 2010! Terminou a primeira década do século XXI. Estamos a nos aproximar mais perto de nós mesmos?

Há uma abissal distância entre o que somos e o que queremos ser. Um apetite de Absoluto e a consciência aguda de nossa finitude. Olhamos para trás: a infância que resta na memória com sabor de paraíso perdido, a ado-lescência tecida em sonhos e utopias, os propósitos altruístas. Agora, nas atuais circunstâncias, o salário exíguo num país tão caro; os filhos, sem projeto, apegados à casa; os apetrechos eletrônicos que perenizam a crian-ça que ainda resta em nós.

Em volta, a violência da paisagem urbana e nossa dificuldade de conectar efeitos e causas. Como se meninos de rua fossem cogumelos espontâneos e não frutos do darwinismo econômico que segrega a maioria pobre e favorece a minoria abastada. O mesmo executivo que teme sequestro e brada contra ban-didos, abastece o crime ao consumir drogas e corromper o poder público.

Ano novo, vida nova. No fundo da garganta, um travo. Vontade de remar contra a corrente e, enquanto tantos celebram a pós-modernidade, pedir colo a Deus e resgatar boas coisas: a oração em família, o amor sem pressa, a leitura dos místicos, o diálogo amigável com os filhos, a solidão entre ma-tas, o gesto solidário capaz de amenizar a dor de um enfermo. Reencontrar, no ano que se inicia, a própria humanidade. Despir-se do lobo voraz que, na arena competitiva do mercado, nos faz estranhos a nós mesmos.

Ano novo de eleições. Olhemos a cidade, o estado, o país. As obras que beneficiam empreiteiras trazem proveito à maioria da popula-ção? Melhoram o transporte público, o serviço de saúde, a rede educacio-nal, o saneamento? Nosso bairro tem um bom sistema sanitário, as ruas são limpas, há áreas de lazer? Participamos do debate sobre o orçamen-to municipal? Os políticos em quem votamos têm desempenho satisfató-rio? No combate à violência, eles remetem às áreas de conflito policiais ou professores?

Em política, tolerância é cumplicidade com maracutaias. Voto é dele-gação e, na verdadeira democracia, governa o povo através de seus repre-sentantes e de mobilizações diretas junto ao poder público. Quanto mais cidadania, mais democracia.

Ano de nova qualidade de vida. De menos ansiedade e mais profundidade. Aceitar a proposta de Jesus a Nicodemos: nascer de novo. Mergulho em si, abrir espaço à presença do Inefável. Braços e corações abertos também ao seme-lhante. Recriar-se e apropriar-se da realidade circundante, livre da pasteuriza-ção que nos massifica na mediocridade bovina de quem rumina hábitos mes-quinhos, como se a vida fosse uma janela da qual contemplamos, noite após noite, a realidade desfilar nos ilusórios devaneios de uma telenovela.

Feliz homem novo. Feliz mulher nova. Como filhos das núpcias de Tere-sa de Ávila com Ernesto Che Guevara.

Frei Betto

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de “O desafio ético” (Garamond), entre outros livros. Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba

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ANO NOVO, VIDA NOVA

A Revolução na Venezuela encara problemas completa-mente novos que não existiam quando, há 50 anos, triunfou a Revolu-ção em Cuba.

O tráfico de drogas, o crime organizado, a violência social e o paramili-tarismo mal existiam. Nos Estados Unidos ainda não havia surgido o enor-me mercado atual de drogas que a sociedade de consumo criou naque-le país. Para a Revolução, não significou um grande problema combater o tráfico de drogas em Cuba e impedir sua produção e consumo internos.

Para o México, a América Central e a América do Sul, estes flagelos sig-nificam hoje uma crescente tragédia longe de ser ultrapassada. Ao inter-câmbio desigual, ao protecionismo e ao saque de seus recursos naturais, somaram-se o tráfico de drogas e a violência do crime organizado que o subdesenvolvimento e o gigantesco mercado de drogas dos Estados Unidos criaram nas sociedades latino-americanas. A incapacidade daquele país imperial para impedir o tráfico e o consumo de drogas deu lugar em mui-tas partes ao cultivo de plantas, cujos valores como matérias-primas para as drogas ultrapassavam muitas vezes os dos demais produtos agrícolas.

Os paramilitares da Colômbia constituem hoje a primeira tropa de cho-que do imperialismo para combater a Revolução Bolivariana.

Precisamente por sua origem militar, Chávez sabe que a luta contra o narcotráfico é um pretexto vulgar dos Estados Unidos para justificar um acordo militar que responde inteiramente à concepção estratégica desse país, para estender seu domínio do mundo.

As bases aéreas e a impunidade total dada pela Colômbia a mi-litares e civis ianques no seu território não têm nada a ver com o combate às drogas. Este é hoje um problema mundial; estende-se não apenas pela América do Sul, mas também pela África e por outras áreas. No Afeganis-tão já reina, apesar da presença em massa das tropas ianques.

A droga não deve ser um pretexto para instalar bases, invadir países e levar a violência, a guerra e o saque aos países do Terceiro Mundo. É o pior ambiente para criar virtudes cidadãs e levar educação, saúde e desenvol-vimento a outros povos.

Enganam-se os que acreditam que dividindo colombianos e ve-nezuelanos terão sucesso em seus planos contrarrevolucionários. Muitos dos melhores e mais humildes trabalhadores da Venezuela são colombia-nos e a Revolução lhes deu educação, saúde, emprego, direito à cidadania e outros benefícios para eles e seus entes mais queridos. Todos eles jun-tos, venezuelanos e colombianos, defenderão a grande Pátria do Liberta-dor da América; juntos lutarão pela liberdade e pela paz.

Os milhares de médicos, educadores e outros cooperadores cubanos que cumprem seus deveres internacionalistas na Venezuela estarão jun-to a eles!

A Revolução Bolivariana e A pAz

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Marcelo Salles

debates, atividades culturais e gastronômi-cas, feira tecnológica e até o julgamen-to da anistia de um dos mais importantes

educadores do planeta (Paulo Freire), entre ou-tras coisas. Imagine isso com a participação de 15 mil pessoas de dezoito países, em plena capi-tal da República, com direito à presença do presi-dente Lula na conferência de abertura, e será pos-sível ter uma ideia do que foi o Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, realizado na última semana de novembro. O Centro de Con-venções Ulisses Guimarães, no alto de seus 10 mil m2 ficou pequeno, parecia o Maracanã em dia de jogo do Flamengo.

Moacir Gadotti, doutor em Ciência da Educação pela Universidade de Genebra e um dos organiza-dores do evento, relacionou outros países que já sediaram o Fórum: Bolívia, Colômbia, Chile, Uru-guai e Venezuela. Espanha e Palestina serão os pró-ximos. Em Brasília, o professor elogiou bastante a realização deste que foi o primeiro fórum temático sobre educação tecnológica. (Veja entrevista).

Durante a abertura do fórum, Eliezer Pache-co, Secretário de Educação Profissional e Tecno-lógica do MEC, ressaltou: “Educação técnica não é formação de mão-de-obra para o capital. O jo-vem pode ser mecânico, como também pode ser filósofo ou poeta”. A propósito, Paulo Freire, no livro “Pedagogia do Oprimido”, havia anotado: “A formação técnico-científica não é antagôni-ca à formação humanista dos homens, desde que ciência e tecnologia, na sociedade revolucioná-ria, devem estar a serviço de sua libertação per-manente e de sua humanização”. E o presidente Lula anunciou: nos sete anos de sua gestão foram inauguradas 96 escolas técnicas e 38 institutos fe-derais; até o final do mandato, 214 novas unida-des terão sido implantadas e a rede contará então com 354 escolas.

Entre os debates, um dado em especial causou repercussão: dois terços dos que produziram os campos de concentração nazistas tinham doutora-do. E aí ficou evidenciado o caráter paradoxal da educação, que tanto pode contribuir para o desen-

volvimento quanto pode ser útil à destruição. De-pende de como o conhecimento é aplicado, e neste ponto chegamos a Paulo Freire, fundador da “Pe-dagogia do Oprimido”. Seu método de educação li-bertadora – do educar “com” e não “para”, do todos aprendem juntos, educador e educando – esteve presente neste fórum, sobretudo quando represen-tantes do governo brasileiro analisaram, publica-mente, o processo de anistia política do educador brasileiro.

A Comissão de Anistia fez o julgamento dian-te de milhares de pessoas que lotaram o auditório principal do Centro de Convenções. Um breve his-tórico de Paulo Freire foi recuperado: a extinção de seu Plano Nacional de Alfabetização foi uma das primeiras medidas da ditadura civil-militar, levada a cabo apenas duas semanas depois do golpe. O ato Institucional nº 1 obrigou o professor a abandonar as funções que exercia na então Universidade do Recife, Paulo Freire ficou preso por 70 dias e, em seguida, foi para o exílio. Durante 16 anos, este-ve privado de viver em sua pátria, regressando em

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1980. Enquanto esteve fora, até documentos bási-cos, como passaporte, foram-lhe negados.

A viúva, Ana Maria Freire, fez um discurso emocionado. Conjugou a atuação político-peda-gógica de Paulo Freire com fragmentos de sua in-timidade, do amor por Recife, a quem dedicou até poesias. “A cidade é como uma dama que se en-trega aos poucos”, citou. “Paulo levava a educa-ção libertadora pros quatro cantos do continente, enquanto no Brasil era proibido de pisar (...) Hoje, Paulo, finalmente você pode descansar em paz”. Fez muita gente chorar.

O advogado Edson Pistori, relator do processo, leu seu parecer: “A perseguição que Paulo Frei-re sofreu, mais do que qualquer outro caso que já julgamos nessa comissão, constitui um caso de perseguição política coletiva, que teve implica-ções para milhares de brasileiros”. A decisão teve apoio unânime dos membros do colegiado, que, além do título de anistiado político a Paulo Frei-re concederam ainda uma reparação no valor de 100 mil reais à Ana Maria Freire.

Construindo uma

Primeiro fórum temático sobre educação tecnológica reúne 15 mil pessoas de 18 países. O pedagogo Moacir Gadotti resume a importância do encontro: “Nenhum país pode se desenvolver sem uma base tecnológica”.

educação técnica e libertadora

Moacir Gadotti, Marina Silva e Leonardo Boff participam do primeiro fórum temático sobre educação tecnológica.

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Marcelo Salles é jornalista e coordenador de Caros Amigos no Rio de Janeiro. [email protected]

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“O oprimido precisa de uma pedagogia para entender a opressão”

Organizador do Fórum Mundial de Educação, Moacir Gadotti nasceu no interior de Santa Ca-tarina e tem 68 anos. Pedagogo e filósofo, é dou-tor em Ciência da Educação pela Universidade de Genebra, doutor honoris causa pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e presidente do conselho deliberativo do Instituto Paulo Freire.

O que é o Fórum Mundial de Educação?Nós nascemos dentro do Fórum Social Mun-

dial (FSM), em janeiro de 2001. Havia pouco de-bate relacionado à educação, então as poucas en-tidades de educação que estavam lá propuseram a realização de um Fórum Mundial de Educação com base na mesma filosofia do FSM. O primei-ro foi em outubro de 2001, o segundo em 2003, o terceiro em 2004. Depois, a partir de 2005, os fóruns sempre foram feitos dentro do FSM ou uns dias antes, para aproveitar o espaço e tam-bém para não dispersar esforços e custos com deslocamentos.

Sobre o que foi essa edição, em Brasília?A edição desse ano foi temática, sobre edu-

cação tecnológica profissional. Na Bolívia, hou-ve um sobre Educação Bolivariana, também em Cartagena, na Colômbia, no Chile, na Argenti-na, no Uruguai, na Venezuela, além da Espanha, que vai sediar um temático Educação para a Paz. Na Palestina também está previsto um para ou-tubro de 2010, com o tema Educação Sem Fron-teiras, Educação como diálogo. Querem mostrar uma outra Palestina, da universidade, do estu-do, da arte, da comunicação, das crianças que não aparecem. Só aparece um país desestrutura-do, mas tem um outro lado também. Esse vai ser um grande desafio para nós.

Queremos que o Fórum também seja um es-paço ligado aos movimentos sociais. O direito à educação é defendido não como um direito se-torial, mas integrado a outros direitos. Por isso, a metodologia proposta é a integração da agen-da da educação com as agendas da luta urbana, da Via Campesina, de outros movimentos sociais, direito à água, à terra, à moradia, à cultura... Por que a Finlândia tem os melhores indicadores de desenvolvimento e educação? Também ela conta com as pré-condições: a moradia está resolvida, saúde está resolvida...

O Fórum se diz organizado em torno de uma alternativa ao projeto neoliberal. O que significa isso?

Fundamentalmente, a concepção do projeto

político-pedagógico do neoliberalismo é a visão mercantilista da educação. O neoliberalismo tem a visão de que a educação não é um direito, mas um serviço, ao qual tem acesso aquele que pode pagar. Então essa mercantilização tem sido um combate central por parte do FME, porque a edu-cação é um direito. Como a educação é conside-rada um direito humano, tornar a educação mer-cadoria é a negação desse direito. Como disse o Leonardo Boff em sua palestra no Fórum, essa crise não é mais uma crise financeira, econômi-ca, ou simplesmente uma convergência de crises. Estamos diante de uma crise civilizatória. Esta-mos necessitando de uma outra forma de pro-duzir e reproduzir nossa existência no planeta. O capitalismo, no fundo, por sua ganância pelo lucro, leva à destruição do planeta. Isso Marx já havia previsto, que o capitalismo não destruiria só o ser humano, destruiria a natureza também.

O que seria uma educação libertadora?Alguns acham que isso está superado, que

Paulo Freire está superado. Primeiro devemos reconhecer a humildade de que qualquer con-tribuição é sempre limitada. Mas dizer que está superada é dizer que não há mais oprimido no mundo. O oprimido precisa de uma pedagogia para entender a opressão e superar essa opressão. Então ela é muito válida. A antropologia dele é que o ser humano está em constante mudança. A teoria do conhecimento é que para você se com-pletar como ser humano precisa ser curioso para completar o conhecimento. Ele era muito rigoro-so, dizia que o conhecimento verdadeiro só é ob-jeto quando é compartilhado.

Foram 15 mil inscritos, pessoas de 18 países. Queria que você destacasse os pontos mais importantes.

Foi o primeiro Fórum temático sobre educa-ção tecnológica. Mostra o resultado de um go-verno que levou a sério o ensino técnico e profis-sional. Há dados impressionantes do número de escolas tecnológicas sendo construídas durante o governo Lula. Vão quadruplicar o número que existia anteriormente.

Por que isso é importante?Porque nenhum país no mundo pode se de-

senvolver sem uma base tecnológica, de quadros que são preparados já no ensino médio. Só a re-alização foi o resultado de um avanço impres-sionante nessa área no Brasil. Em segundo lu-gar, temos a concepção do ensino profissional

tecnológico, pois foi realçada a importância de uma formação geral, humanista. A formação tec-nológica não é para o mercado, mas para o ser humano. Não basta hoje apertar um parafuso. O tecnólogo não é quem domina o pedacinho da tecnologia, mas tem uma formação geral que lhe permite migrar entre as áreas. Porque as profis-sões evoluem muito rapidamente. Às vezes você começa um curso de quatro anos numa profissão e, quando termina, essa profissão já desapareceu. Então a formação politécnica é muito importan-te. Isso ficou muito evidente nos debates. E hoje existem mais de 15 mil profissões de nível médio, mas há pouquíssimas ofertas de ensino.

Tive a oportunidade de viver na Bolívia e pude acompanhar a erradicação do analfabetismo nesse país. Por que o Brasil, com tantos recursos, não consegue?

Você sabe que temos o mesmo número de analfabetos de quando Paulo Freire foi exilado? Em torno de 15 milhões. E o triste é que aumen-tou o número de analfabetos adultos, acima de quinze anos. A taxa caiu de 9,9 para 9,8%, isso dos que se declaram analfabetos, dos que se de-claram.

Segundo o Instituto Paulo Montenegro, apenas 26% dos brasileiros entendem o que lêem.

Aí você vê que de cada quatro brasileiros, três são analfabetos. Essa pesquisa do Instituto Pau-lo Montenegro foi feita com dados do IBGE, com todo o seu rigor. Então alguma coisa está errada. Por que não diminuímos, mesmo num governo que se declara tão favorável à educação? Mesmo num governo que tem tido os melhores índices em quase todas as áreas? O Cristovam [Buarque, primeiro ministro da Educação do governo Lula] disse que iria zerar o analfabetismo em quatro anos. Não conseguiu os recursos. No dia 14 de abril de 1964, na ditadura militar, ainda sob o governo de Ranieri Mazzili...

Com duas semanas de ditadura...Exatamente. Duas semanas depois foi extinto

o decreto do Programa Nacional de Alfabetiza-ção do Paulo Freire, que já tinha dois mil núcleos previstos. Então acho que se não fosse isso, hoje estaríamos melhor. Então, hoje, acho que não fi-zemos tudo. Palavras do próprio Lula. O governo gastou com o grupo Abril 719 milhões de reais em publicidade. E o programa Brasil Alfabetiza-do tem apenas 350 milhões de reais. Menos da metade. Pra mim, o essencial é, seguindo Paulo Freire, que dizia que é preciso envolver a socie-dade: empresários, igreja, sindicatos, os parla-mentos, tudo. Mas nós não temos, no Brasil, um movimento de alfabetização na sociedade. Falta o papel indutor do Estado. Concordo com tudo o que o Lula vem fazendo, menos na alfabetização de adultos. Nisso aí não avançamos.

ENTREVISTA: MOACIR GADOTTI

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ROMA – Sábado, 1º de novembro de 2009. Diante da penitenciária feminina de Rebibbia, na periferia da capital italiana, uma ambulância pede passagem para ingressar nos pavilhões do presí-dio. Do lado de fora, duas senhoras distintas e aparentemente alheias à cena atenuam a espera conversando entre um cigarro e outro. Enquan-to isso, divertem-se lembrando os nomes bizarros dos menores que permaneceram sob sua guarda. Um dos últimos era o pequeno Alcapone. Ambas acompanham um casal de crianças bem vestidas em uma visita à própria mãe na casa de reclu-são romana, que hoje abriga cerca de 360 mulhe-res, 200 delas estrangeiras. Segundo os dados di-vulgados pelo Ministério de Justiça, atualmente a Itália possui cinco penitenciárias exclusivamente femininas, além de 52 seções para mulheres nas unidades prisionais masculinas. São nove da ma-nhã e, pouco a pouco, os dez voluntários da asso-ciação A Roma Insieme reúnem-se e começam os preparativos para acolher os pequenos que deixa-rão temporariamente a prisão feminina para viver mais um sábado de liberdade.

É difícil aceitar a ideia de que o cenário de ino-cência da primeira infância seja uma penitenciá-ria. No entanto, atualmente 70 crianças com menos de três anos de idade vivem encarceradas, dividin-do diariamente uma cela com a própria mãe. Na maioria dos casos, trata-se de mulheres de ori-gem estrangeira ou nômades, que graças a uma lei promulgada em 1975 para tutelar o direito à maternidade, podem permanecer com os pró-prios filhos na prisão até que completem três anos de idade.

Mais recentemente, com a chamada lei Finoc-chiaro, em vigor desde 2001, o governo italia-no tentou minimizar o drama das crianças reclu-sas, permitindo que as detentas não reincidentes e com filhos menores de 10 anos pudessem usu-fruir de penas alternativas após cumprir um terço de sua condenação ou o período de 15 anos para os casos de prisão perpétua. No entanto, como muitas mulheres não possuem residência fixa, não podem cumprir a pena em prisão domiciliar ou em regime especial de semiliberdade.

A grAnde cArruAgem Por volta das 9h30, um ônibus colocado à dis-

posição dos voluntários pela prefeitura de Roma entra no pátio do instituto para apanhar seus pas-sageiros mirins. Aos olhos de um adulto, aquele é apenas um meio de transporte coletivo. Mas para as crianças de Rebibbia é uma enorme carruagem pronta a explorar um mundo desconhecido. “Para mim, este tipo de voluntariado é uma espécie de pequena revolução”, comenta Giovanni Giusti-niani, de 63 anos e voluntário de A Roma Insie-me desde 2004. Por motivos de saúde e porque al-guns ainda necessitam de amamentação, somente seis dos 26 menores residentes em Rebibbia pude-ram acompanhar o grupo no passeio até Formello, ao norte de Roma.

Entre as cinco meninas do grupo, Esmeralda é aquela que vive dentro do instituto há mais tem-po; desde os seus 17 dias de vida. Está prestes a completar 3 anos de idade, e assim que apagar as velinhas, sofrerá o trauma da separação da figura materna. Quando as detentas possuem uma famí-

Na Itália, cerca de 70 crianças, em sua maioria filhas de estrangeiras, vivem atrás das grades com as próprias mães. São em número suficiente para causar indignação. E poucas para que o Parlamento decida considerá-las como o resultado de um descaso político.

Anelise Sanchez

lia na Itália, a criança permanece sob os cuidados de seus próprios parentes. Caso contrário, a segun-da opção é colocá-las sob a guarda temporária de uma família italiana. Sobre esta delicada questão, as opiniões são divergentes. Leda Colombini é pre-sidente da associação A Roma Insieme. Ela relata que o voluntariado com as crianças reclusas teve início há aproximadamente quinze anos. “Muitas detentas temem a guarda e às vezes preferem que as crianças permaneçam em institutos para meno-res. O medo de uma eventual adoção e da separa-ção definitiva dos filhos é muito forte”, completa. Elisa Rigoni, produtora de TV e também voluntária da associação há quatro anos, demonstra algumas preocupações em relação a guarda temporária. “O mais importante para a criança é manter viva a sua identidade e os seus vínculos afetivos”.

Na excursão não faltam guloseimas e, dentro do ônibus da associação a ansiedade transforma-se em sorrisos marotos enquadrados por bigodes de chocolate. Com os olhos grudados na janela, Esmeralda começa a entoar uma cantiga suave. Repete o nome de tudo aquilo que observa, prin-cipalmente o que falta nos corredores de Rebi-bbia: grama, flores, sol e nuvens. Brian cochila nos braços de um outro jovem voluntário e Ma-ria, que deu seus primeiros passos nos corredores da penitenciária, passa de um colo ao outro. De-pois de meia hora de viagem, a “carruagem” che-ga à Formello e Leda e seus voluntários são rece-bidos por um casal romano que, pelo menos uma vez por mês, literalmente abre as portas de sua enorme casa para acolher os pequenos. Elisa con-ta que, desde pequenas, as crianças demonstram

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uma verdadeira fobia por espaços com portas fe-chadas e pelo barulho de chaves.

A bAtAlhA políticA Para proporcionar uma condição de normalida-

de aos pequenos, Leda liderou grande batalha polí-tica. Desde 1995, graças a um acordo entre a prefei-tura de Roma e a administração penitenciária, de segunda a sexta-feira as crianças de Rebibbia fre-quentam as creches municipais da vizinhança, di-vididas em grupos para que não se sintam confi-nadas em uma única escola. Uma grande conquista ainda não aplicada em todas as capitais italianas. Assim que chegam a Formello, os voluntários ar-regaçam as mangas e começam a montar brinque-dos, trocar fraldas ou a acompanhar as crianças a apanhar flores e castanhas pelo grande jardim. Entre uma brincadeira e outra, chegam a pergun-tar pela mãe, mas nada que supere o entusiasmo de viver um dia ao ar livre. Ao meio-dia a mesa é posta e nenhuma das crianças faz caretas para degustar a refeição. Logo após o almoço, Milena e Brian são os primeiros a pegar no sono, enquan-to as outras crianças, apesar do cansaço, voltam ao jardim para não perder nem um minuto das brincadeiras.

Enquanto saboreia um café, Leda diz que, pela terceira vez, a associação A Roma Insieme apre-sentou ao Parlamento italiano uma proposta de lei que sugere algumas mudanças na legislação dedicada às mães detentas. Entre elas, reivindica que a reincidência não represente um obstácu-lo para a concessão de penas alternativas, que as prisioneiras possam acompanhar os próprios fi-lhos aos hospitais em caso de internação e que as mulheres de origem estrangeira não sejam auto-maticamente expulsas do país assim após o cum-

primento da pena em território italiano.A chamada lei Finocchiaro, ainda em vigor, tam-

bém estabelece que o cumprimento da pena pode ser adiado no caso de mulheres grávidas ou com fi-lhos menores de um ano, mas não é raro que, sem um apoio familiar e social, para muitas estrangeiras a maternidade dentro de uma cela seja a única al-ternativa. “A penitenciária reproduz as mesmas de-sigualdades da sociedade”, opina Anna Finocchia-ro, autora da lei de 2001. Um caso que ilustrou bem tal situação foi o de Josephine, uma nigeriana de um ano e dez meses que, recentemente, permane-ceu ao lado da mãe, grávida de sete meses, na pe-nitenciária Buoncammino, em Cagliari (Sardenha). A mãe só conseguiu a prisão domiciliar graças a uma grande mobilização política regional. “Muitas crianças permanecem em celas porque, na maior parte dos casos, são filhas de mulheres estrangei-ras que não têm sequer um advogado para tutelá-las”, completa Anna, atualmente senadora do Par-tido Democrático.

Filhos de imigrAntes e invisibilidAde sociAl

De fato, dentre os imigrantes, as detentas com filhos são uma das categorias mais frágeis. Com as regras ainda mais rígidas contra a imigração ilegal na Itália, tudo indica que os casos de mar-ginalização sofrerão um expressivo incremento. Como a clandestinidade é crime, imigrantes sem documentos ficam impossibilitados de registrar o nascimento de seus próprios filhos. “Os paren-tes das detentas que vivem em condição de clan-destinidade não podem sequer visitá-las no presí-dio”, alerta a voluntária Elisa Rigoni, que há anos acompanha a história de muitas famílias de ciga-nos que hoje vivem no chamado campo de Ca-

silino 900, na periferia romana, e nos próximos meses serão transferidos para outras localidades selecionadas pela prefeitura da capital. Apesar de residir em território italiano há mais de 30 anos, o único documento que muitas famílias de origem cigana possuem é uma carteirinha providenciada pela Cruz Vermelha.

Enquanto Rebibbia recebe seus visitantes oca-sionais, as crianças que acompanham Leda come-çam a acordar lentamente, preparando-se para o chá da tarde em Formello, com direito a bolo e a suco de frutas ao lado de uma lareira. A marato-na com os pequenos recomeça. São cinco horas da tarde. O sol já se foi e os voluntários se pre-param para uma nova rodada de troca de fral-das. Em seguida, recolhem os brinquedos espa-lhados pela casa.

O relógio marca quase seis e meia da tarde. As mães de Rebibbia aguardam ansiosas o retor-no dos seus pequenos que nas mãos levam as flo-res recolhidas no jardim e, na ponta da língua, as lembranças de mais um sábado de liberdade. Ao bater do relógio, a carruagem transforma-se no-vamente em ônibus e, assim que o veículo apro-xima-se dos muros da penitenciária, Milena e Jes-sica começam a pronunciar a palavra “mamma”. Enquanto os portões do pátio se abrem e uma ambu-lância se antecipa à entrada do ônibus, as crianças despedem-se dos voluntários. Mais tarde, a TV anun-cia que Diana Bfefari Melazzi, ex-membro da Brigada Vermelha, condenada pela participação no homicídio do professor Marco Biagi, em 2002, enforcou-se na própria cela, na penitenciária feminina de Rebibbia. Um modo inequívoco de lembrar que nem todo con-to de fadas se conclui com um final feliz.

Anelise Sanchez é jornalista.

Segundo os últimos dados divulgados pela associação Antigone, atualmente cerca de trinta grávidas ainda permanecem encarceradas no país. Em 2008, a prisão domiciliar ou cumprida nas chamadas “ca-sas famílias” foi concedida a somente 31 mulheres com filhos me-nores de três anos. Para oferecer a estas mulheres uma maternidade mais digna, em Milão foi inaugurado o ICAM, um instituto que subs-tituiu as celas por quartos e que, além de contar com a participação de educadores especializados, também aboliu os uniformes tradicio-nalmente utilizados pelos guardas penitenciários. Em Roma, exemplos de estruturas que acolhem regularmente mães que cumprem prisão do-miciliar são as associações Ain Karim e Sichem. Hoje, estas casas famí-lia abrigam três jovens detentas com filhos.

Silvia (nome fictício), 25 anos, é de nacionalidade argentina e mãe de três crianças. Em janeiro de 2009 decidiu passar férias em Roma, mesmo grávida de sete meses. Seu pai entregou-lhe algumas garrafas de vinho, pedindo a ela que as desse de presente ao amigo que deve-ria hospedá-la na capital italiana. Assim que desembarcou no aero-porto de Fiumicino foi presa e acusada de tráfico de drogas. Inicial-mente, permaneceu na penitenciária de Civitavecchia e, mais tarde, foi transferida para Rebibbia. Sem falar a língua e com recursos eco-nômicos limitados para pagar um advogado, foi condenada a qua-tro anos de detenção. “Cheguei à casa da família no início de mar-ço e, no final do mês, dei a luz a um menino que frequenta a creche

municipal desde os cinco meses de vida”, conta. Sua sentença ainda não é definitiva, mas por enquanto Silvia deve permanecer em regi-me de confinamento total. Pergunto a ela se pensou na hipótese de delegar aos parentes a educação da criança, mas Silvia responde que sem a companhia de seu filho teria que cumprir a sua pena atrás das grades e não em uma prisão domiciliar.

Já Jessica, outra jovem de 23 anos, nasceu na República Domini-cana mas passou sua infância na capital italiana. Fala com sotaque e mentalidade romana e foi condenada a cinco anos de prisão depois de ter sido presa em Catânia, transportando drogas. Há cerca de um mês, obteve permissão para ausentar-se uma hora e meia por dia. Assim como as outras jovens, três vezes por semana ela frequenta, na própria casa família, um curso de cozinheira, pensando em seu futuro.

A última das detentas é também a mais jovens de todas. Catheri-ne é inglesa, tem apenas 20 anos de idade e se tornou mãe solteira há pouco mais de um ano. Assim como as suas colegas de infortúnio, foi condenada porque transportava drogas a pedido do namorado.

Paola Lamartino, diretora da casa família romana, explica que há mais de dez anos a estrutura abriga detentas com filhos e que, em breve, hospedará temporariamente Michel, de apenas 3 anos de ida-de. Até então, o menor permaneceu em Rebibbia aos cuidados da pró-pria mãe, e agora o desafio dos voluntários é encontrar uma família disposta a acolhê-lo sob a sua tutela.

Detentas contam como vivem a prisão Domiciliar

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PARIS - O termômetro marca cinco graus e a escuridão do inverno se impõe antes das cinco da tarde. No interior do recém criado “Ministério pela Regularização de Todos os Sem-documen-tos” em pleno coração da capital francesa, toma corpo um ritual político acalorado, sem data para terminar. A expectativa paira em torno da nova circular sobre a regularização dos sem-documen-tos (sem visto de moradia) que o ministro da Imi-gração, Eric Besson, anunciou divulgar em breve. Os sem-documentos são mais de 400 mil em toda a França. Trabalham em restaurantes, na constru-ção de prédios e metrôs, como seguranças e em-pregados domésticos. Em meio aos 300 presentes na enorme sala de reunião do “Ministério”, dia 11 de novembro, estão também representantes de sindicatos e partidos políticos. Cada integrante da enorme mesa redonda se apresenta: Mohammed, sem-documento, originário do coletivo do bairro 18; François, representante sindical; Juliette, ci-dadã, e assim seguem por longos minutos. Após a apresentação, dá-se início às denúncias da se-mana: “No total, três trabalhadores foram presos”, enumera a coordenadora da reunião. Inquieto, um sem-documento se levanta para anunciar que um grupo de imigrantes da morada David d’Anger “foi objeto de expulsão”, diz, repetindo o jargão policial, e “encontra-se foragido na fronteira”. So-bre um integrante do “Ministério dos sem-docu-

mentos” que foi preso no dia seguinte à mani-festação, a coordenadora diz que “a boa notícia é que a Prefeitura de Polícia aceitou nos receber para discutir o dossiê de regularização com vistas à obtenção do visto”.

Um anúncio de última hora indigna os pre-sentes à reunião. Ali Toure, mestrando em língua alemã da Universidade de Paris X, que segue seus estudos na França desde 2003, foi detido numa batida policial na estrada. Uma foto do jovem cir-cula pela mesa. Toure portava a carteira de mo-torista em dia, mas não o visto de moradia. Este acabara de lhe ser negado pela Justiça que, no entanto, abriu uma exceção permitindo ao jovem permanecer em território francês até a defesa da tese de mestrado, que seria no mês de novembro. O policial rodoviário, no entanto, o prendeu e, ao invés de comparecer à banca de mestrado, o jo-vem comparecerá à Justiça.

ManifestaçõesAs prisões ilustram o clima de repressão sob o

qual vivem os imigrantes. Para denunciá-lo, as ma-nifestações se tornaram também semanais. Desde 12 de outubro, a França assiste a um movimen-to de greve coordenada pelos sem-documentos. A lista de locais ocupados pelos imigrantes não para de crescer, assim como a repressão policial. Atual-mente a polícia conta 5.200 imigrantes ocupando

Milhares de trabalhadores

imigrantes realizam manifestações

e ocupam locais simbólicos para

protestar contra a repressão policial.

Camila Arêas

mais de 40 lugares simbólicos só na Ile de Fran-ce (Grande Paris). Grandes empresas, restaurantes e parques foram tomados. As reivindicações são apresentadas por uma frente de sindicatos, organi-zações sociais e coletivos de sem-documentos que denunciam a “arbitrariedade policial” no exame dos dossiês e a “política do caso a caso”.

Dentro do “Ministério dos sem-documentos”, a forte expectativa com relação à nova circu-lar oficial do governo sobre a regularização dos sem-documentos é alimentada pela certeza de que a flexibilização será limitada. O objeto da reunião, portanto, é montar um discurso, mos-trando que o movimento seguirá unido em tor-no da reivindicação única: regularização global de todos os sem-documentos. “A nova circular manterá a discriminação aos argelinos, tunisia-nos, marroquinos e trabalhadores sem contra-to. O Estado insistirá na preferência à imigração branca e católica que vem da Europa do Leste. A intenção é criar uma competição entre os imi-grantes”, provoca Jean Claude Amara, porta-voz da organização social Droits Devant.

Porta-voz do “Ministério” criado dia 17 de ju-lho, Anzoumane Sissoko conta que, em 2007, o governo aprovou uma lei que regulariza os traba-lhadores ilegais sob a condição de que não sejam sindicalizados e que seus patrões se engajem no dossiê de regularização: “A lei, portanto, deixa de fo

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França reprime estrangeiros sem visto

Manifestação nacional dos Sem-documentos em Paris, França.

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fora os imigrantes submetidos aos pequenos pa-trões ou aqueles que não têm contrato de traba-lho, que são hoje a maioria”.

Convidado do programa de rádio “A voz dos sem-documentos”, que vai ao ar toda quinta-fei-ra pela estação Frequência Paris Plural, o imi-grante Madibo Traore ilustra bem a questão ao contar que é obrigado a usar a identidade do pri-mo para receber seu salário. A empresa para a qual trabalha, a Seni, assiste hoje a uma greve generalizada dos cerca de 260 sem-documentos que a integram. “O problema é que eu pago os impostos que pesam sobre meu primo, mas não sou considerado um contribuinte e não tenho ne-nhum direito”, conta Traore.

Ninguém mora ou dorme no “Ministério” dos sem-documentos. “Não se trata de uma ocupa-ção, mas de um espaço para reuniões e tomada de decisões”, como faz questão de frisar Sissoko. O “Ministério” engloba três mil pessoas de 23 na-cionalidades e de todos os continentes, embora a África seja mais bem representada. A imensidão do local – um conjunto de prédios de cinco an-dares que pertenciam à Caixa Primária de Segu-ro Saúde, com mais de 15.000 m² – levou o mo-vimento a batizá-lo de “Ministério”. “O nome é simbólico, pois o contexto político opressor de-manda maior visibilidade”. esclarece Sissoko. “Há cinco anos não temos um movimento organiza-do em nível nacional, o caráter ministerial tem esse objetivo”.

Os chefes de polícia se tornaram o principal motivo das mobilizações dos sem-documentos. Desde a posse do presidente Nicolas Sarkozy, em maio de 2007, o governo francês coloca em mar-cha uma política que prioriza a imigração sele-tiva e fomenta as expulsões. Hoje, o governo se orgulha de contabilizar 45 mil imigrantes ilegais expulsos do país em dois anos. Tais metas são atingidas a partir de uma política de cifras im-posta às Prefeituras de Polícia, órgãos regionais responsáveis pela concessão de vistos. Autori-dade máxima desta Prefeitura, os chefes de po-lícia são os mais novos responsáveis por atingir o número de expulsões determinadas pelo gover-no: 25 mil por ano.

arbitrariedadesDe acordo com Michaël Neuman, um dos au-

tores de “Cette France-là”(Esta França aqui), as autoridades policiais “nunca contaram com tanto poder para decidir sobre o futuro dos imigrantes”. Neuman explica que a inédita autonomia conferi-da à polícia é o traço mais marcante da nova polí-tica de imigração: “A decisão do chefe da polícia é soberana. Ele se torna o único a decidir pela re-gularização e os recursos jurídicos ficam dificul-tados”. Além disso, a relação direta entre os chefes de polícia e os governistas, que impõem a política de cotas, terminam “por torná-lo ainda mais re-fém da hierarquia”, descreve Neuman.

Segundo Sissoko, porta-voz do “Ministério”, a organização orienta os “indocumentados” a não andarem com passaporte, “pois uma vez pegos com este documento, são presos e deportados”.

A arbitrariedade policial, associada à fixação

pelas cifras, forma a estrutura da “política do caso a caso”, grande alvo das críticas dos sem-docu-mentos. Na teoria, os critérios são universais. Na prática, no entanto, as cifras obrigam os funcio-nários do Estado a aplicar distinções, a cruzar os critérios de forma aleatória e terminar por discri-minar a regularização de acordo com a origem dos imigrantes.

O sociólogo Damien de Blic, da Universida-de Paris VIII, conta que as autoridades partem de uma lista das profissões regularizáveis, imposta pelo governo, que se limita aos intelectuais e pro-fissionais com formação superior. “O objetivo é tornar os critérios inaplicáveis aos imigrantes tra-balhadores ilegais”.

iMigração seletivaA tendência de endurecimento das leis imi-

gratórias não é nova. Desde 1960, a maior par-te dos governos franceses se dedica a endurecer as condições de entrada e de estadia dos estran-geiros. Imigração seletiva, delito de solidarieda-de, apelo à delação, política do caso a caso são medidas que mantêm os sem-documentos numa zona de não direito. Mas os analistas sublinham que, com Sarkozy, a política ganhou um caráter arbitrário nunca antes visto. O presidente anun-ciou que a partir de 2010, o Parlamento realizará um debate anual sobre os objetivos da nova po-lítica de imigração, mostrando que a política de imigração é central na sua administração. Bes-son declara: “Ao controlar o fluxo de imigração, favorecemos a integração e preservamos nossa identidade nacional”.

A defesa dos valores franceses é a grande dire-triz de Sarkozy. O presidente que havia aprovado a realização de testes de DNA como condição para as regularizações familiares, agora impõe novos critérios: passar por um teste de conhecimento da língua de Molière e dos valores da República.

A obsessão ideológica da defesa da identida-de nacional se expressa na complexa denomina-ção da pasta de Besson – Ministério da Imigra-ção, da Integração, da Identidade Nacional e do Desenvolvimento Solidário – cujos termos foram modificados duas vezes em dois anos em meio às polêmicas epistemológicas. “A mensagem é clara: alguns imigrantes são desejáveis, outros – como os que vêm da África – não o são”, reiteram os au-tores de “Cette France-là”. Na introdução do estu-do, os acadêmicos sublinham que “a característica da política francesa de imigração é hoje discreta-mente, mas voluntariamente discriminatória”.

A relação particular com os africanos, muitos islâmicos, se explica pela história colonial, lem-bra Pierre Henry, porta-voz da organização Fran-ce Terre d’Asile: “Milhares de magrebinos vieram trabalhar na reconstrução do país depois da Se-gunda Guerra Mundial. Hoje, seus filhos e ne-tos que nasceram aqui não conseguem cidada-nia porque ainda não assumimos completamente esta parte da nossa história. Continuamos a dar as costas à África”. O teste de DNA para os africanos foi anulado há um mês com a declaração de Sa-rkozy de que tal prática é “estúpida”. Mas a imi-gração seletiva ganhou corpo com a nova meta

estabelecida de fazer crescer de 7% a 50% a imi-gração econômica.

Com uma relação histórica menos dolorida que os africanos, os latino-americanos também são, no entanto, afetados pela política de cifras. De acordo com o Consulado do Brasil na França, 1.860 brasileiros foram expulsos do país em 2007 por não terem visto de moradia e outros cerca de 1.800 foram barrados nos aeroportos.

O boliviano Roy Gary é o único latino-ameri-cano que hoje integra o Ministério dos sem-do-cumentos, onde fincou um pôster de Evo Mo-rales. O jovem de 26 anos que trabalhou como soldado da ONU, em 2001 no Congo e em 2007 no Zaire, conta, num francês arranhado, que foi atraído por uma oferta da Legião Estrangeira Mi-litar. O objetivo é juntar dinheiro para “levantar uma casa na Bolívia”. Certo de que só segue fir-me na ilegalidade porque é militar de carreira e foi treinado para situações de tensão, Gary não esconde o medo que enfrenta a cada saída na rua: “Fui preso ano passado e queriam me depor-tar. Mas como não tinha passaporte, me ordena-ram voltar à Bolívia imediatamente e me solta-ram. É claro que eu fiquei”. Socialista convicto, o boliviano conta aliviado que está com passagem marcada para Marselha, Sul da França, onde fará testes físicos e psicotécnicos que lhe permitirão reintegrar o batalhão da ONU. Ele se diz mais próximo da nacionalidade francesa.

deportação Enquanto isso, o presidente Sarkozy reitera o

“direito legítimo” da França de eleger seus imi-grantes. Como ilustração deste discurso, Paris e Londres organizaram, dia 21 de outubro, um vôo conjunto a Kabul que deportou três afegães da França e 27 da Grã-Bretanha. Uma semana de-pois, Besson e o ministro de imigração do Reino Unido, Phil Woolas, inauguraram um centro con-junto de informações destinado a lutar contra a imigração ilegal e multiplicar os “voos sob a ban-deira europeia” para levar os imigrantes a seus países de origem. “Esta é uma ideia que a França defende. Se queremos enviar uma mensagem aos estrangeiros, é que a Europa não é mais santuário para os imigrantes ilegais”, reiterou Besson.

De Blic avalia que por causa da França a ques-tão imigratória se tornou prioridade europeia: “Somos o motor da repressão aos imigrantes na Europa. Hoje, constroem-se centros de retenção nas fronteiras para impedir os imigrantes de che-garem às grandes capitais e, assim, tornar o pro-blema invisível”.

Um estudo europeu do Conselho Britânico, di-vulgado em março em Paris, concluiu que “os imi-grantes vindos de países do terceiro mundo, re-sidindo legalmente na França, estão sujeitos às condições mais severas dos 28 países europeus”. O Conselho calculou um Indéx europeu de acordo com critérios como acesso ao mercado de traba-lho, reagrupamento familiar e participação políti-ca. A França se classificou em 11º lugar.

Camila Arêas é jornalista.

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em “O Homem Duplicado”, prometeu-lhe “até o último instante”. “Nas Intermitên-cias da Morte”, a definiu como sua “casa”.

“Nas Pequenas Memórias” queixou-se que ela “tardou a chegar”. Pilar del Río poderia ser a musa de José Saramago. Deixou sua carreira jornalística na televisão espanhola para viver com o escritor português em Lisboa. Desde que estão juntos, há 23 anos, é a sua primeira leitora. Traduz os livros do marido para o espanhol. Tomou a iniciativa de organizar sua coleção e construiu uma bibliote-ca. Estão sempre juntos – em Lisboa e Lanzaro-te ou pelo mundo – e de mãos dadas. É fundado-ra e presidente da Fundação José Saramago. Pilar garante que a musa não existe. “É uma invenção. Um escritor que supostamente tem uma musa, no fundo o que tem é um objeto que lhe facilita pen-sar o que sente por si próprio.”

O víciO das palavrasAos 10 anos, Pilar era uma “viciada em leitura

e em jornalismo”. O cultivo do vício e a sua histó-ria de leitura e leitora a levaram, 26 anos mais tar-de, ao “escritor” e ao “marido” – o modo como ela refere-se ao Nobel varia de acordo com o teor da conversa, o autor ou o homem. Aprendeu a ler em casa. Em Castril, terra da sua mãe, próximo de Se-

vilha, não havia escola e Pilar tinha lições particu-lares. “Eisenhower” é a primeira palavra de que se lembra. A menina de então voltava seus olhos para os textos de opinião dos jornais, os “monárquicos e republicanos e a ditadura espanhola” eram os te-mas que sentia prazer em acompanhar.

A primeira “grande literatura”, na adolescên-cia, foi a russa. Alternava Tolstoi e Dostoievski. Mais do que os personagens, ela “fascinava-se” com os escritores. O que a interessa nos autores, pondera hoje, é a criação, o “levantar mundos com palavras”. Considera-se mais capaz de per-ceber a literatura do que a música ou a arquitetu-ra. Acha que os escritores, entre os artistas, são os menos neuróticos e os que “têm mais conversa”.

a jOrnalista de trincheiraNão são as buzinas, apitos ou gritos de come-

moração que interrompem a conversa. É a jorna-lista em Pilar del Río que interrompe a fala e le-vanta-se para ir à rua ver a comemoração popular de uma vitória portuguesa no campeonato euro-peu. “Não gosto de futebol, mas preciso ver o que se passa, sou jornalista”. Por volta dos 20 anos, a literatura passou a ocupar um espaço menor na vida de Pilar del Río. Para ela, o que importa na vida é ser “cidadã”, e na Espanha da década de 70

Casada com o escritor português há 23 anos, a jornalista espanhola exerce forte influência na vida do marido, inclusive na organização de seu trabalho e de sua obra.

Isadora Ataíde

interveio “como jornalista para fazer um mundo melhor”. Diz que a sua escola foi a da ação dire-ta. “O meu grupo estava na trincheira, na barrica-da. Tinha 20 e poucos anos e trabalhava e escre-via para derrubar a ditadura. Naquele momento, a atividade política de jornalismo era mais impor-tante do que a literatura”. Foi a parcela de exercí-cio jornalístico que chama “sonho”.

Pilar cresceu num meio familiar que diz “estar mais à direita do que Deus” e reivindica a tradição da esquerda social e democrática e dos comunis-tas espanhóis. “O jornalismo quando eu aprendi era uma visão crítica de mundo. Era perguntar-se o porquê das coisas. Com essa visão, não se po-deria chegar a outro modo de ler o mundo: com desconfiança, a perguntar-me o que está por trás e por baixo dos acontecimentos.”

Depois, veio a “realidade”. “A democracia foi sedimentando as coisas, veio a normalidade e com ela, um modo de se fazer jornalismo conformado, servil. Então fui entrincheirar-me no jornalismo cultural.” Em sua fotografia predileta, Pilar está a dormir com a cabeça no ombro de Saramago. Não gosta das câmeras e diz que estas não gos-tam dela, “não sou fotogênica”. Acostumou-se às lentes para apresentar um programa de entrevis-tas culturais, com enfoque na literatura.

Pilar del Río, primeira leitora de

José Saramago

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O encOntrO cOm O escritOr“D. João, quinto do nome na tabela real, irá

esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áus-tria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.” Foi a frase de “arran-que” do “Memorial de Convento” o primeiro en-contro entre Pilar e o escritor. “Nunca havia ou-vido falar do Saramago, a primeira frase, lida na livraria, impressionou-me. Li num fim de sema-na. A todo o momento voltava à orelha do livro para confirmar a data em que ele tinha nascido. Pensava: ‘esse tipo escreve como os grande clás-sicos e é contemporâneo, é de esquerda e marxis-ta’. Achei-o um gênio da crítica social”.

Foi a Lisboa com um amigo em 1986 para “pere-grinar” pelos mesmos caminhos de Ricardo Reis, he-terônimo de Fernando Pessoa e protagonista em “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. Já havia ligado para José Saramago a agradecer pela obra e a propor-lhe um café. Encontraram-se, leram trechos do “Livro do Desassossego” e visitaram Pessoa, no cemitério dos Prazeres. “Descobri que no caso do Saramago havia uma grande naturalidade, ele era igual à sua obra sem distração alguma. Ele não criava ficções, entretenimento, ele escrevia sobre o seu mundo”.

Zeferino Coelho, editor de Saramago, acompa-nha a história entre a jornalista e o escritor desde o princípio. “Posso dizer que foi uma grande pai-xão. Ele fazia coisas como esta: pegar um carro e viajar nove horas para encontrá-la em Sevilha. Nessa altura, já era um escritor famoso, com uma atividade literária muito intensa”.

“Tem ali uma senhora à sua espera. Parou José Anaíço à entrada da sala, viu uma mulher nova, uma rapariga, só pode ser esta, não há aqui outra pessoa, apesar de se estar na contraluz dos cortina-dos das janelas parece simpática, ou mesmo boni-ta, veste calças e casaco azuis, de um tom que deve ser anil, tanto pode ser jornalista como não, mas ao lado de uma cadeira onde se senta tem uma peque-na mala de viagem e sobre os joelhos um pau nem pequeno nem grande, entre um metro e um metro e meio, o efeito é pertubador (...)”. o trecho está na página 119 de “A Jangada de Pedra”, única mani-festação autobiográfica assumida por Saramago.

“Afortunadamente”, Pilar garante que todas as decisões em sua vida são fáceis, inclusive quan-do decidiu-se a mudar de Sevilha para Lisboa, em 1987, e a abandonar o emprego na televisão es-panhola para viver com Saramago. Na altura, pla-nejava ir viver em Madri com o filho do primeiro casamento, Juan José, hoje com 32 anos.

Pilar del Río é nome de rua. Azinhaga - cidade do Alentejo, no sul de Portugal, que viu Saramago nascer - homenageou-a em 2006, por levar o nome da terra “em todos os cantos do mundo”. Embora viva em Lanzarote desde 1993 e passe alguns meses do ano em Lisboa, para além das muitas viagens de trabalho, as cidades não a definem. Diz que a sua cidade é o seu próprio mundo interior.

a tradutOraA língua também não é casa para Pilar. Alega

um “problema” de ouvido, com o que justifica não ter aprendido a falar o português. Noutro dia, uma

carta enviada a Saramago por um italiano vinha escrita em inglês. Pilar devolveu-lhe, a pedir que escrevesse na sua língua natal. “Nós latinos, com algum esforço, podemos nos entender utilizando cada um o seu próprio idioma”. Na sua casa, garan-te, não entra o inglês, “o idioma do império”.

A sua reserva não espelha timidez. Gosta de ter a casa cheia, compartilhar o prazer da vida e das suas leituras, que não são solitárias. Uma das suas maiores dificuldades desde o casamento é conter o entusiasmo enquanto lê o romance que o mari-do está a escrever. “Leio enquanto o livro está a ser escrito. Tenho de conter os meus comentários. Não posso dizer nada porque a escrita, essa sim, é um processo solitário”.

Para Pilar, a melhor leitura é a do tradutor, “o único capaz de colocar-se ao lado do autor”. Vê os acadêmicos e críticos em geral como elocubradores que partem para a leitura com uma ideia pré-conce-bida. Já os leitores, quando são bons – aqueles que reconhecem o autor e tratam de entender o quê cada livro carrega do seu tempo – “completam a obra”.

A oportunidade de fazer a “melhor leitura” apare-ceu por acaso. O tradutor espanhol de José Sarama-go enfrentou problemas de visão depois de Ensaio Sobre a Cegueira. Pilar ofereceu-se para a vaga.

A jornalista lê e traduz o trabalho do marido, mas diz não qualquer intervir nas obras do marido. Ou melhor, houve duas intervenções. “A primeira é no livro Todos os Nomes. Havia uma situação em que faltava luz, mas a secretária eletrônica atendia uma ligação e era deixada uma mensagem. Então observei que sem energia elétrica não era possível acontecer isso. A outra intervenção é em A Caver-na. Quando o Saramago termina um livro, digo a última palavra a um poeta amigo espanhol para que escreva um poema. Nesse caso, a última pa-lavra era ‘bilhete’. Então disse: ‘José, a palavra em espanhol significa dinheiro, vou dizê-la em portu-guês’. Ele mudou a última palavra para ‘entrada’.”

mulheres íntegrasAs mulheres de Saramago são “íntegras” para a

simbiose de mulher, leitora e tradutora que é Pilar. Um pouco como se as personagens literárias refle-tissem a sua própria visão do feminino. Ela concor-da com a afirmação literária do escritor em A Janga-da de Pedra que “a conversa das mulheres sustenta o mundo”. “Fiquei encantada quando li isso. Se não existissem as mulheres a falar, a manter a tradição oral, a expressar o amor, o carinho, os sentimentos, não teríamos alma enquanto espécie. As mulheres de Saramago são mais valentes e não mentem”.

O protagonismo das personagens “sarama-guianas” é determinante no desenrolar das suas histórias. Zeferino garante que as personagens não são inspiradas pela esposa. Todavia, parece-lhe “que talvez José Saramago tenha dentro de si uma ideia de mulher que transpôs para estas per-sonagens. E na vida real teve a sorte de encon-trar essa mulher, Pilar”.

O jornalista João Céu e Silva – autor de “Uma longa viagem com Saramago”, biografia que re-sulta de dezenas de entrevistas entre 2007 e 2008 - pondera que na “história da literatura temos a tendência a ver a mulher do autor famoso como de-

moníaca. Existe preconceito e incômodo com a Pi-lar. Tirando o núcleo duro de amigos, toda a gen-te acha que ela o domina. Mas ela complementa o Saramago a vários níveis, emocional e organi-zacional.”.

A importância da obra e da vida do marido, “muito maiores do que a minha própria vida e obra” levaram Pilar a Lisboa e levaram-na a Lan-zarote – talvez como a mulher do “Conto da Ilha Desconhecida”, que acompanha o navegador em sua viagem. Para além de verter o escritor para o espanhol, Pilar organizou-lhe a biblioteca, estru-tura-lhe a agenda e apresenta os livros do Nobel. Incentivou-lhe a criação de um blog e serve-lhe as refeições. A Pilar, que não deixou que eu mor-resse, assinala Saramago na dedicatória “A Via-gem do Elefante”.

Pilar é fundadora e presidente da Fundação José Saramago, que para além dos objetivos po-líticos quer divulgar a obra do mestre laureado da língua portuguesa. As comparações com Maria Kodama, esposa de Jorge Luis Borges e presidente da Fundação que leva o nome do escritor argen-tino, tornam-se inevitáveis. Entretanto, Pilar faz questão de assinalar as diferenças: “A Fundação Borges cuida do legado e do trabalho do escritor, mas não tem a função política e cívica que tem a Fundação Saramago”.

inspiraçãO de vidaSe Dostoievski casou-se com a taquígrafa, se

Kafka tinha como primeira leitora Felicia e Ma-chado de Assis encontrava em Carolina uma revi-sora, o jornalista Céu e Silva não tem dúvida de que Pilar é uma musa contemporânea da literatu-ra. “A musa inspira. E embora ela não inspire os romances de Saramago, inspira-lhe a vida. Obri-ga-o a viver com mais intensidade e devoção. Tor-na-se uma musa porque o obriga a viver”.

Quando ouve a expressão “musa”, o sorriso de Pilar esmorece. “A Pilar não é musa, em absolu-to, a musa não existe. Existem sentimentos que inspiram os escritores, que são pontuais, espon-tâneos, um amor turbulento, situações múltiplas. Depois de ler muitos autores, um escritor que su-postamente tem uma musa, no fundo o que tem é um objeto que lhe facilita pensar o que sente por si próprio. As musas são invenções dos autores”.

Pilar, 59 anos, considera Saramago o melhor e maior escritor vivo. Ama o homem José, de 87 anos. Com o autor, compartilha o espaço da obra que cabe à tradução. Com o homem, divide e reúne a vida. São companheiros há 23 anos e já se casaram em Portugal e Espanha. Saramago disse que o encontro com Pilar “é a quarta dimensão do amor, e não me peçam explicação”. No fim do dia, para desabafo e deleite próprio, Pilar escreve no diário íntimo que mantém. “Escrevo sobre as frustrações com as pes-soas, com o trabalho, com as coisas nas quais investi energia e que acabaram por não se concretizar. Es-crevo sobre ideias e sentimentos”. Ela tem um único medo, “que termine a vida do meu marido”. Sobre o amor que partilha, define-o do mesmo modo que José, “contar com os dedos e ver a mão cheia”.

Isadora Ataíde é jornalista.

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a sociedade da informação enfrenta uma for-te contradição, que é naturalizada por mui-tos. Por um lado, com a expansão das re-

des, há possibilidades que nunca existiram, como, por exemplo, o compartilhamento de cultura, co-nhecimento e bens imateriais. Há no mundo apro-ximadamente 1 bilhão de pessoas com acesso re-gular a computadores pessoais. Ou seja, conectadas em uma rede mundial por máquinas de replicação em alta velocidade que reproduzem fielmente, sem custo, qualquer arquivo. Por outro, há o enrijeci-mento das ações e legislações a favor da proprieda-de intelectual. Uma esquizofrenia que provoca um dos maiores embates relacionados à informação, além de representar um desafio para os que defen-dem a democratização da cultura, do conhecimen-to e dos meios de comunicação.

Com o interesse de manter a exclusividade de exploração comercial sobre os produtos, a indús-tria cultural elabora leis que visam conter a cópia e o compartilhamento de conteúdos. Sérgio Ama-deu, sociólogo e professor da Faculdade de Comu-nicação Cásper Líbero, estudioso da questão da ex-clusão digital e do software livre, explica que as práticas de colaboração são intrínsecas à socieda-

de e surgiram muito antes da internet. “As pesso-as não acham que estão fazendo nada errado. Esse costume sempre existiu. Antigamente, por exem-plo, você pegava um vinil, colocava num aparelho de som 3 em 1, escolhia 3 ou 4 músicas, tocava o vinil, montava uma fita, levava pra uma festinha, dava pro seu amigo que copiava”, assinala.

Com o advento das redes, os controladores da indústria cultural desenvolveram diferentes estra-tégias de repressão. A primeira delas foi criar casos exemplares: identificavam uma pessoa que havia desenvolvido algum programa de compartilhamen-to ou que copiava muitos conteúdos e abriam gran-des processos contra ela. Cobravam multas, ame-açavam de prisão e davam grande publicidade ao caso. As pessoas, no entanto, deram-se conta que a chance de ser identificado era irrisória. Coloca-ram em prática, então, processos contra um grande número de pessoas. No entanto, a popularização e o barateamento da banda larga fizeram com que a estratégia tivesse alcance limitado.

Terceira onda repressivaVivemos agora a tentativa de implementação da

terceira onda repressiva no âmbito digital, conheci-

Criado em 2006 na Suécia e com atuação em mais de 30 países, inclusive no Brasil, a organização partidária defende a liberação dos direitos autorais e adoção de software livre na Internet.

Gabriela Moncau

da como “resposta gradual”, ou “three strikes”, que apesar de ainda não ter sido posta em prática, está tramitando em diversos parlamentos. Trata-se de transferir a responsabilidade do judiciário para os provedores de acesso à internet. Cria-se uma regu-lação do provedor na qual ele é obrigado a notificar a pessoa que está baixando conteúdo ilegal uma, duas vezes. Na terceira, corta-se definitivamente o acesso à internet. Estudiosos do tema e defenso-res da democratização do conhecimento recorrem à Constituição e afirmam que tal penalização é ile-gal, já que impedir o acesso à internet significa res-tringir a liberdade de expressão, o acesso à infor-mação, cultura e serviços governamentais.

De acordo com Pablo Ortellado, integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPopai) e um dos criadores do Centro de Mídia Independente (CMI), as em-presas que dominam o monopólio da cultura têm consciência que é impossível impedir a cópia do conteúdo dos produtos. “Eles sabem que será pre-ciso reorganizar completamente a indústria pra adaptarem-se ao novo cenário tecnológico”. Se-gundo o professor, tal cenário já está desenhado. “No campo da música, por exemplo, seria a ven-da de música a preço muito baixo para competir com música barata; regulação de música por meio digital, com streaming, publicidade; ou então des-mercantilizar a música digital e lucrar nas perfor-mances e shows. Obviamente, vão tentar compen-sar essas perdas explorando os artistas nos shows, por exemplo, ou a privacidade dos consumido-res” afirma. Para Ortellado, a razão pela qual as indústrias ainda não transformaram seu modelo de negócio é que isso representaria um complexo reposicionamento do mercado. A posição domi-nante das quatro multinacionais da indústria cul-tural hoje – Sony, Warner, EMI e Universal – se-ria ameaçada por novos atores.

defesa das licenças livres Direitos autorais dão às pessoas a exclusivida-

de de exploração comercial, o que permite contro-lar quem tem acesso ao produto por meio da bar-reira de preço. Só que se a pessoa tem o direito de fazer essa exclusão, ela pode também fazer a auto-rização. O software livre surgiu a partir dessa ideia il

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contra as patentes do capitalismo

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de inverter a lógica da exclusão dos direitos auto-rais por meio das licenças livres. Nos anos 1980, o programador americano Richard Stallman fez essa inversão e criou o conceito de software livre, impe-dindo que fosse usado segundo a lógica tradicional competitiva. Nos anos 1990, várias iniciativas pe-garam esse espírito do software livre e traduziram pra outros âmbitos de expressão da cultura.

Simultaneamente, com o advento da tecnologia de reprodução e a possibilidade de cópias digitais em massa e sem custo, houve a ascensão de práti-cas espalhadas na sociedade de cópia e colabora-ção. Uma delas são as redes “pear-to-pear” (P2P) ou par-a-par, uma arquitetura de rede caracterizada pela descentralização do sistema, onde cada com-putador realiza, no compartilhamento de arquivos, tanto a função de servidor quanto a de cliente. Ou seja, os arquivos são enviados de computador para computador diretamente.

lei dos direiTos auToraisEntre os movimentos que surgiram com a as-

censão do software livre e das práticas de com-partilhamento, organizou-se um partido político internacional, tendo como principais bandeiras a reforma da lei dos direitos autorais, a extinção do sistema de patentes e a defesa dos direitos civis. O Partido Pirata surgiu na Suécia em 2006, como uma reação às alternativas de impor controle so-bre a Internet, por razões de segurança e defesa da propriedade intelectual.

“O sistema de propriedade intelectual é um ar-tifício jurídico criado para gerar uma escassez de algo que, por não ser material, não está sujeito a tal escassez. Isso é uma grande contradição. Nunca vivemos um momento tão propício para compar-tilharmos cultura e conhecimento” aponta Jorge Machado, responsável pelo setor de comunicação do Partido Pirata do Brasil, sociólogo e professor da USP. Internacionalmente, o Partido Pirata defende a substituição do sistema de propriedade intelectu-al por algo que estimule a inovação de fato, como um sistema de premiação.

Composto majoritariamente por jovens, o mo-vimento do Partido Pirata se expandiu com grande velocidade e hoje atua em mais de 30 países pelo mundo, e já está oficialmente registrado como par-tido político nos seguintes países: Áustria, Repúbli-ca Tcheca, Dinamarca, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido, Suécia e Polônia. Ainda tramitan-do pelas burocracias para a legalização oficial do partido, e portanto funcionando temporariamen-te como coletivo, estão Brasil, Argentina, Austrá-lia, Rússia, Nova Zelândia, Itália, Bulgária, Portu-gal, Turquia, México, EUA, Canadá, entre outros. Em 2009, o Partido Pirata participou pela segunda vez das eleições europeias, elegendo dois deputa-dos para o parlamento europeu e ficando em quarto lugar entre os partidos mais votados na Suécia.

A sueca Amelia Andersdotter, de 22 anos, as-sumirá o posto de eurodeputada pelo Partido Pira-ta agora no início de 2010 e relata que os votos que o partido recebeu foram predominantemente de jo-vens entre 18 e 25 anos. “Acho que em parte por-que os problemas que nós levantamos são mais pal-páveis para os jovens, que são acostumados com a

tecnologia” opina. Ao ser questionada sobre como colocará em prática as ambições políticas do movi-mento a partir de 2010, Andersdotter explica que o que ela fará no parlamento europeu ainda estará dis-tante de suas reais ambições, “Não temos força ago-ra para apresentar uma reformulação da legislação de direitos autorais, nem extinguir o sistema de pa-tentes no período de cinco anos”.

aberTo e TransparenTeO Partido Pirata do Brasil surgiu em 2007, quan-

do seus integrantes organizavam-se por meio do Fórum do Partido Pirata Internacional. Em 2008, criaram site e o fórum próprios. Em 2009, fo-ram realizados os primeiros encontros presenciais do Partido Pirata do Brasil. Atualmente, há cerca de 1800 ativistas cadastrados no fórum, e o coletivo está em processo de registro como partido político. “Nas eleições de 2010 a gente vai brincar um pouco, mas em 2012 já estaremos participando” explicou Jorge Machado. Além de suas pautas comuns, exis-tem bandeiras que são levantadas de acordo com a especificidade de cada região. “A gente defende a adoção de software livre na administração pública e de formatos de arquivos abertos, que não obrigam o uso do software de uma única empresa”, expõe.

Visando contrapor-se ao modelo tradicional da representatividade política e da organização hie-rárquica de partidos, o Partido Pirata se considera aberto, transparente e colaborativo. De acordo com o site do Partido Pirata Brasileiro, “a ideia é justa-mente formar um ‘antipartido’. Hoje se questiona a necessidade de intermedários na cultura, como as gravadoras e editoras, e na mídia, com os sites e blogs. Na política não é diferente. A construção de um partido oficial pode servir justamente como um dos instrumentos para a superação da condição de intermediário político”.

ai5 digiTalEntre as campanhas construídas tanto pelo Par-

tido Pirata Brasileiro quanto por outras entidades ligadas à inclusão digital, livre compartilhamento e direitos civis, há o enfrentamento à lei propos-ta pelo deputado Eduardo Azeredo (PSDB), apeli-dada pelos movimentos de “AI5 Digital”. O projeto diz defender o cidadão contra os crimes na inter-net, enrijecendo todas as convenções do direito au-toral. Entre as medidas, bloqueará o uso de redes P2P, acabará com as redes de conexão aberta (Wi-Fi), e mais: exigirá que esse controle seja feito pelos provedores de acesso à internet. Os dados do usuá-rio serão armazenados pelo provedor por três anos. Além de infringir a privacidade dos usuários, o ser-vidor fará o papel de delator. Seria considerado cri-me tanto copiar uma música quanto citar o trecho de uma matéria de um jornal em um blog.

Além de carregar interesses da indústria de direi-tos autorais, o AI-5 digital beneficiaria os bancos, que socializariam seus prejuízos com a sociedade. “Se hoje você tiver uma conta violada por alguém, o banco vai te ressarcir. Com a lei, os bancos vão po-der transferir a responsabilidade de uma conta vio-lada, por exemplo, no provedor de acesso que o seu cliente usa.” explica Amadeu. O projeto, já aprovado no Senado, só precisa passar pela Câmara.

reformas na lei Desde a segunda gestão de Gilberto Gil, o Mi-

nistério da Cultura (MinC) vem promovendo uma série de encontros por meio do Fórum Nacional do Direito Autoral para subsidiar a reformulação da lei de direito autoral (Lei 9.610/1998).

Ao invés de apresentar, como prometido, o pré-projeto da reforma da lei durante o III Con-gresso de Direito de Autor e Interesse Público, re-alizado nos dias 9 e 10 de novembro, o MinC pu-blicizou apenas uma parcela de suas propostas. Entre elas está a autorização da reprodução de obras para exibição de vídeos e músicas com ob-jetivo didático e/ou de formação de público, por museus e bibliotecas com fins de conservação, a criação de uma cobrança para o xerox de cópias integrais e a criação de licenças não voluntárias. “Até onde o cenário atual permite, considero a re-forma positiva, menos no setor universitário. Eles estão criando um ECAD dos livros. Vão autorizar a cópia do livro inteiro, só que vai ter uma socie-dade arrecadadora, um mercado de xerox de li-vros. O problema é que essa sociedade vai depen-der de autorizações das editoras, não é um sistema compulsório” ressalta Ortellado.

As editoras têm imunidade tributária, não pa-gam impostos como IPI, PIS e ICMS. Com a justi-ficativa de incentivar o conhecimento e a leitura, o Estado deixa de arrecadar por ano, R$1 bilhão do mercado de livros. De acordo com pesquisa re-alizada pelo GPopai, 60% dos livros do mercado editorial são didáticos e 40% das compras são go-vernamentais. Considerando que a maior parte de seus autores tem suas pesquisas financiadas por agências públicas como CNPq e Fapesp, o subsí-dio da produção de conteúdo também vem do Es-tado. “As editoras privadas estão se aproprian-do do controle do acesso a esse bem sendo que, de acordo com um levantamento que fizemos, ela contribui em 10% da elaboração daquele produ-to, os outros 90% são de dinheiro público” obser-va Pablo Ortellado.

O MinC não propôs a redução do prazo de pro-teção do direito autoral sobre a obra, que atual-mente é de 70 anos após a morte do autor. Assim, se uma pessoa produz uma obra aos 30 anos e vive até os 80, essa obra estará “protegida” por 160 anos. Ortellado explicita a situação esquizofrêni-ca: “O ciclo de vida dos livros é curtíssimo. Quem tem a exclusividade sobre o produto, o disponi-biliza no mercado por em média até cinco anos e durante mais de um século detém seu monopólio e o mantém parado. Qual o sentido disso?”

O quadro que se desenha em todos os âmbitos de produção cultural, portanto, é de um embate entre o monopólio privado e o livre compartilha-mento. O primeiro, ainda hegemônico, mantém firmes laços tanto com a indústria quanto com os governos. O segundo, vem ganhando força com as possibilidades que a própria rede permite e com as brechas e pressões que os movimentos fazem em cima das legislações. Amadeu define: “Esse é o choque do século 21”.

Gabriela Moncau é estudante de jornalismo.

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Gilberto Felisberto Vasconcellos

Vamp/Vip / Vampiro / CapitalistaTucano / Multinacional Na piscina com Serra/O rei da água privatizadaSerra para o povo / Fartura para a corporationVocê viu o corpo do Abílio Diniz fazendo Cooper no Ibirapuera? São Paulo só tem dez famíliasVampiro chupador de sangue mais-valiaCapital vampiro suga o trabalho e aniquila a na-turezaKarl Marx curtia a metáfora vampiro para designar o roubo cósmico do capitalismoSó se pode prosperar à custa de muita desgraçaBanco Mundial mandou recado para o candidato SerraEleito terá de privatizar a água doce dos trópicosÉ o que exige a nova fase da acumulação do capi-tal globalizadoDireito à água só com granaÁgua dá lucro ninguém vai deixar de comprar águaÉ o fim da lei da oferta e da procuraPovo xucro / Morto de sede Assim não é mais necessário construir cadeiaA água é sagrada o caralho No capitalismo não tem nada de sagrado a não

KARL MARX e o Vampiro da Direita

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

ser o lucro / Hipotecaram as nuvensTucanos leiloaram a Vale do Rio DocePatentearam o cupuaçu / SerraMontsanto / Serra MontoFeitor do gastrocolonialismocancerígeno Do supermercado à drogaria. Da semente ao fruto. Do fruto ao excrementoQual é o totem deles? / O dinheiroE o tabu, qual é? / O amorInadiável tarefa da inteligência de esquerda é expli-car, para todo operário do Brasil, os motivos pelos quais invariavelmente o PSDB ganha as eleições em São Paulo. Por que vence sempre a direita? A origem do burguês paulista está na vela, no fósfo-ro, no defunto A cúpula do PSDB todinha é de novo rico e parvenu Lord Serra não é from Mooca? Psicologia esnobe com cinismo. Eles se acham a vanguarda culta da burguesia, fátua, lum-pen, lacaia do capital estrangeiro. A classe média universitária e o subescalão do comércio embarcam na síndrome bandeirante do nababo. Ressurge o ba-rão do café de CadillacCom a ofensiva neoliberal do capitalismo globalizado na

década de 80, os jornais e segundos cadernos liberaram a ostentação da burguesia sem culpa. Mas por que o pé-de-chinelo vota neles? É o amálgama do voto adquirido com a dialética da trapaça. O Príncipe da MoedaEmbora servindo o imperialismo EUA, eles adoram a perfídia britânica da “terceira via” do casal Tony Blair e Giddens, abençoado pelo bispo francês Alain Touraine, rentistas, sibaritas, cafonas à dona Thatcher, o virago Kitsch da UDR inglesa, mas agora vão querer dar uma de Keynes com capital produti-vo e refratário à especulação fi nanceiraA alma da campanha de dona Dilma dirigida por Celso Mantinez é a vingança póstuma do cozinheiro Oswald de Andrade em São PauloO estilo Daslu de vida fotografado com pernas aber-tas conspícuasSol Oswald / Solcialismo ou barbaridadeSol + socialismo / Socialismo Solar or not socialismoJosé SerraCo2 / Couve transgênica/ Fotossíntese para os gringosSorte do povo / No país da telenovelaJosé Serra é um telecacogênico.

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IDEIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

A segunda década do século traz obras de pensadores brasileiros vivos que já são clássicas, lançadas pela Editora Unesp e Edições Facamp. Em sua 11a edição (a primeira é de 1975), “O capitalismo tardio”, do econo-mista João Manuel Cardoso de Mello, um dos fundadores da Universidade de Campinas e da Faculdade de Campinas, ainda é uma obra rejuvenesce-dora sobre a constituição do capitalismo latino-americano em geral e bra-sileiro em particular, a partir da crise do sistema colonial. Chama a aten-ção particularmente para o “descompasso com as técnicas produtivas das ex-metrópoles”. O livro se caracteriza ao mesmo tempo pelo rigor teórico digno de alguém que estudou Karl Marx por inteiro, e não apenas parcial-mente, como a esmagadora maioria dos ditos marxistas do mundo inteiro, e pela vasta pesquisa empírica que o embasa, digna dos melhores momen-tos da Cepal e das ciências sociais em geral.

Já “Os antecedentes da tormenta: origens da crise global” traz artigos do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, também funda-dor da Unicamp e da Facamp, publicados na imprensa entre 1995 até 2009, em que fi ca claro que a profundidade que iria atingir, a partir de meados de 2008, a atual crise estrutural do capitalismo global, já era previsível há 15 anos atrás, pelo menos para os que não se deixaram iludir pela vitória do neoliberalismo sobre o defunto socialismo real. Belluzzo demonstra como as teses de Marx sobre o capitalismo como uma sucessão de crises são con-fi rmadas pelo dia-a-dia da economia capitalista e sugere como soluções, enquanto não se criam a longuíssimo prazo as condições para o socialismo tal como foi previsto por Marx, os diques de contenção à anarquia capita-lista propostos pelo economista inglês John Maynard Keynes.

Nos atuais momentos de otimismo da economia e da sociedade brasi-leiras, com a resistência à crise demonstrada pela primeira, e o crescen-

te papel da segunda no plano inter-nacional, é bom lermos “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, de João Manuel Cardoso de Mello e Fer-nando Novais, historiador famoso pelo livro “Portugal e o Brasil e a cri-se do sistema colonial”. No livro con-junto, Mello e Novais notam como no passado, por exemplo nos anos 1950 e 1970, otimismos semelhantes, se-gundo os quais o Brasil poderia reu-nir a modernização da economia com a amenidade da convivência social que distingue a sociedade brasileira das sociedades dos países desenvolvi-dos, deram lugar à desilusão, primei-ro com o golpe, depois com o neoli-beralismo.

Quem diz a verdade não merece castigo, mesmo que em outras situações tenha cometi-do pecados. É o caso de “O pro-blema do café no Brasil”, tese de doutorado do economista Antônio Delfi m Netto, que depois se tornaria ministro da Fazenda no regime militar. Obra fundamental para entender as relações da lavoura cafeeira e da exportação do café com o desenvolvimen-to do capitalismo brasileiro, a obra mereceu de Cardoso de Mello a seguin-te apreciação: “o professor Delfi m promove um encontro virtuoso entre his-tória e teoria econômica. Encontro, acrescento, que exige a perícia técnica do economista, a sensibilidade para o concreto do historiador e uma gran-de criatividade do pensador”.

Finalmente, a coleção da Editora da Unesp e Edições Facamp, inclui tam-bém “Os anos de chumbo – Economia e política internacional no entreguer-ras”, de Frederico Mazzucchelli, professor da Unicamp e ex-secretário esta-dual de Economia e Planejamento de São Paulo, no governo Orestes Quércia. São dez ensaios que traçam a evolução desde o século 19, em que prevaleceu a hegemonia britânica, até o pós-Segunda Guerra Mundial. O fulcro da ques-tão são os fenômenos, após a Primeira Guerra Mundial, do “apego obsessivo aos termos punitivos, protecionismo exacerbado e desvalorização competiti-va”, e, após a Segunda, de que “as lideranças ocidentais perceberam que era imprudente retornar às prática políticas e econômicas do entreguerras”.

Em suma, é preciso ler estes livros, não como rela-tos de um passado que já passou, mas prestando bem atenção no que está acontecendo no presente, pois esse passado está bem vivo hoje. Afi nal, na crise dos anos 1930, o Brasil também se recuperou rapidamente, bem an-tes que os países adiantados, mas isso não impediu que a crise mundial se agravasse a ponto de evoluir para a guerra mais assassina de todos os tem-pos. Precisamos ter os olhos bem abertos para que não se repita a velha solução capitalista para as cri-ses do capitalismo: a destruição maciça, pela guer-ra, das riquezas velhas, para que as riquezas novas possam nascer. Esse é o segredo da barbárie do ca-pitalismo, que só pode ser impedida de se concreti-zar ou instaurando o socialismo em escala mundial, hipótese que parece remota, ou instaurando novos diques de contenção ao capitalismo.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do ro-mance-ensaio O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

CLÁSSICOS VIVOS, as dicas do ano que se inicia

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A nova série de fascículos da Editora Casa Amarela conta a trajetória de vida e as descobertas de 24 grandes cientistas brasileiros, homens e mulheres que contribuíram para a ciência e para a construção de um mundo melhor – são cientistas e humanistas, biografados em 12 fas-cículos, dois personagens a cada número quinzenal, formando, ao final da coleção, uma obra de referência de 384 páginas.

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