ed. 159 - revista caros amigos

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ano XIV número 159 junho 2010 R$ 9,90 Novo sítio: www.carosamigos.com.br Explosão de VIOLÊNCIA Polícia militar chacina na baixada santista Crimes de maio, quatro anos de impunidade No Carnaval, tudo está à venda A força do teatro crítico de rua Rodrigo Vianna estreia TACAPE: só bordoada na mídia ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS – GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SALOMON “SAMUCA” CYTRYNOWICZ TATIANA MERLINO Entrevista Walter Lima Jr. “Vivemos num latifúndio televisivo” Reportagem especial DR. SÓCRATES atira na seleção, nos cartolas e na mídia esportiva Entrevista Cultura popular

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Capa Sócrates

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Page 1: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

ano XIV número 159 junho 2010R$ 9,90

ano XIV ano XIV ano número 159 número 159 número junho 2010junho 2010junhoR$ 9,90

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Explosão de

VIOLÊNCIAPolícia militar chacina na baixada santista

Crimes de maio, quatro anos de impunidade

No Carnaval, tudo está à vendaA força do teatro crítico de rua

Rodrigo Vianna estreia TACAPE: só bordoada na mídia

ANA MIRANDA BÁRBARA MENGARDO CESAR CARDOSO CLAUDIUS EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY FERRÉZ FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS – GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCELO SALLES MARCOS BAGNO MC LEONARDO PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SALOMON “SAMUCA” CYTRYNOWICZ TATIANA MERLINO

Entrevista

Walter Lima Jr.“Vivemos num latifúndio televisivo”

Reportagem especial

DR. SÓCRATES atira na seleção, nos

cartolas e na mídia esportiva

EntrevistaCultura popular

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Page 2: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

Transportar crianças de 7 anos e meio a 10 anos com cinto de segurança é lei. Elas precisam da sua proteção no trânsito.A vida de uma criança é o que existe de mais importante. Por isso, use os equipamentos de segurança adequados. Eles diminuem em 71% os riscos de morte nos acidentes. O uso desses equipamentos é lei e haverá fi scalização a partir de junho. Evite multas, perda de pontos na carteira e o principal: proteja a vida da criança da forma certa.

www.eusoulegalnotransito.com.br

DA MATERNIDADEATÉ 1 ANO

Bebê-conforto no banco de trás,no sentido contrário do motorista

DE 1 A 4 ANOSCadeirinha nobanco de trás

DE 4 A 7 ANOS E MEIOAssento de elevação no

banco de trás

DE 7 ANOS E MEIOA 10 ANOS

Cinto de segurança e no banco de trás

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Page 3: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

Transportar crianças de 7 anos e meio a 10 anos com cinto de segurança é lei. Elas precisam da sua proteção no trânsito.A vida de uma criança é o que existe de mais importante. Por isso, use os equipamentos de segurança adequados. Eles diminuem em 71% os riscos de morte nos acidentes. O uso desses equipamentos é lei e haverá fi scalização a partir de junho. Evite multas, perda de pontos na carteira e o principal: proteja a vida da criança da forma certa.

www.eusoulegalnotransito.com.br

DA MATERNIDADEATÉ 1 ANO

Bebê-conforto no banco de trás,no sentido contrário do motorista

DE 1 A 4 ANOSCadeirinha nobanco de trás

DE 4 A 7 ANOS E MEIOAssento de elevação no

banco de trás

DE 7 ANOS E MEIOA 10 ANOS

Cinto de segurança e no banco de trás

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Page 4: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

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Page 5: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

5setembro 2009 caros amigos

CAROS AMIGOS ANO XIV 159 JUNHO 2010

EDITORA CASA AMARELA REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAISFUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008)DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITORES ESPECIAIS: José Arbex Jr e Renato Pompeu EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Luiza Delamare DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon SÍTIO: Lúcia Rodrigues e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.

JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242)DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 159, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf

REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

sumárioFoto de capa JESUS CARLOS

04 Guto Lacaz.

06 Caros Leitores

07 José Arbex Jr. alerta que a crise grega tem alcance maior do que parece.

08 Joel Rufi no dos Santos fala de literatura e do livro de cabeceira de Prestes.

Guilherme Scalzilli torce contra a legião estrangeira do técnico Dunga.

09 Ferréz revela em detalhes o bate-papo cotidiano sobre o mundo da literatura.

10 Marcos Bagno indica a leitura do português brasileiro vivo contemporâneo.

Mc Leonardo defende a aplicação do projeto “fi cha-limpa” imediatamente.

11 Pedro Alexandre Sanches Paçoca: convivência pacífi ca dos gêneros musicais.

12 Entrevista com o Dr. Sócrates: é pau na seleção, nos cartolas e na mídia.

18 Glauco Mattoso em Porca Miséria: a retomada do soneto polystrophico.

Eduardo Matarazzo Suplicy relata a experiência de renda básica na Namíbia.

19 Frei Betto deixa claro que o STF decretou a segunda morte de Vladimir Herzog.

20 Emir Sader analisa as mudanças na política externa do governo brasileiro.

Cesar Cardoso generaliza a confusão política na Copa do Mundo de Futebol.

21 Gilberto Felisberto Vasconcellos defende Trotsky e ataca o tucano José Serra.

22 Rodrigo Vianna em Tacape: o que rola de baixaria na imprensa burguesa.

Fidel Castro lembra o signifi cado histórico da morte de José Marti em combate.

24 Ensaio Fotográfi co de Salomon Cytrynowicz: a decoração urbana do futebol.

26 João Pedro Stedile fala da herança escravocrata e o Congresso Nacional.

Ana Miranda comenta a biografi a de Cícero Romão Batista, o Padre Cícero.

27 Entrevista com o cineasta Walter Lima Jr.: análise do cinema e da televisão.

30 Tatiana Merlino relata a ação dos grupos de extermínio na Baixada Santista.

34 Lúcia Rodrigues reconstitui os crimes de maio: quatro anos de impunidade.

38 Bárbara Mengardo mostra o avanço da comercialização no desfi le de Carnaval.

40 Gabriela Moncau conta a experiência de grupo gaúcho de teatro popular crítico.

42 Gershon Knispel denuncia a corrupção e a destruição urbana de Jerusalém.

44 Renato Pompeu Ideias de Botequim: os lançamentos de Pericás e Mariátegui.

46 Claudius.

Nos anos 60, em plena ditadura civil-militar, atuaram em vários estados brasileiros, notadamente em São Paulo, grupos de policiais empenhados em fazer justiça com as próprias mãos e que pratica-ram inúmeros assassinatos de pessoas supostamente criminosas ou apenas suspeitas de algum delito. Eram chamados de “Esquadrão da Morte”. Muitos de seus integrantes, “especializados” na cruelda-de contra cidadãos aprisionados, foram incorporados ao aparelho repressivo da ditadura e contribuíram para disseminar os métodos da tortura contra adversários políticos do regime.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal deu atestado de imunidade para esses e outros torturadores – ao estender a lei da anistia aos que praticaram crimes de lesa-humanidade. Talvez, por isso mesmo, na capa da impunidade estendida pelos altos es-calões da República, é que tais esquadrões da morte tenham re-sistido muito além do fi m da ditadura. Agora são chamados de “justiceiros”, “milícias”, “vigilantes” ou simplesmente “Grupos de Extermínio”, que atuam nas cidades e no campo.

Há poucos dias, tais bandos criminosos realizaram um ver-dadeiro massacre na Baixada Santista. Como sempre, fuzilaram pessoas independentemente de passagem policial ou judicial. Como sempre, atingiram pessoas pobres e sem os esquemas de proteção dos ricos e poderosos. Como sempre, tais crimes ten-dem a ser arquivados, esquecidos e até abençoados pelo STF.

A reportagem da Caros Amigos fez uma apuração cuidadosa dos crimes da Baixada Santista, onde, já está claro, ocorreu o en-volvimento de integrantes da Polícia Militar nos “grupos de ex-termínio”. Além disso, a reportagem relembra os crimes de maio de 2006, no Estado de São Paulo, quando 493 pessoas foram barbaramente executadas por esses grupos, sem que se tenha até hoje a devida apuração e a punição dos responsáveis.

Os fatos relatados suscitam muitos questionamentos, entre os quais os seguintes: É possível construir uma democracia verda-deira no Brasil se o Estado não punir as ações criminosas de seus próprios agentes e servidores? Por que as instituições silenciam diante das chacinas, massacres e toda sorte de violências prati-cadas contra a população mais pobre? A sociedade conseguirá vencer essa explosão de violência? Como e quando?

A palavra está com os leitores. Boa leitura!

ALTERCOMAssociação Brasileira de Empresas e

Empreendedores da Comunicação

Explosão de violência

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Page 6: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

caros amigos junho 2010 6

OLHAR CRÍTICOMeu nome é Lucas Cordeiro, tenho 17 anos,

sou assinante da Caros Amigos há 4 meses. No en-tanto, faz um ano que venho comprando a revis-ta. Quem me indicou foi um ex-professor de his-tória. Desde então, só tenho a agradecer a vocês, pois a partir da leitura da revista fui aumentando meu olhar crítico, passando a pesquisar mais e te-nho procurado descobrir a verdadeira história por traz daquela contada pelos livros didáticos. Recen-temente criei um blog, onde posto imagens de ar-tistas que me agradam e textos de minha autoria. Cheguei a postar o texto do MC Leonardo que foi publicado na edição de março (156) da revista, e fiz algumas cópias para colar nos murais do colégio. Lucas Cordeiro.

GREVE DOS PROFESSORESSou leitor desta revista há vários anos e acho

a Caros Amigos uma revista sensacional, já que mostra fatos e reportagens que a mídia conserva-dora e neoliberal não quer mostrar. A revista pre-cisa fazer reportagens dos absurdos que o PSDB de Aécio Neves faz em Minas. O governo do PSDB é fascista, autoritário, truculento e intimidador, mas a grande mídia, comprada com enormes anúncios publicitários, mostra um governo “eficiente, de-mocrático e comprometido com o social”, o que é uma mentira deslavada. A coisa está fervendo em Minas com a greve dos professores estaduais, já que a grande mídia não quer divulgar e elite mi-neira sente-se acuada. Mucio Sales Murta.

PARABÉNSSou assinante desde 2001. Meu primeiro con-

tato com a revista foi na faculdade, por intermé-dio do meu professor Emílio. De lá pra cá, nunca deixei de ler... Quem diria? Já estamos fazendo 13 anos! Êta revista porreta!! Gostaria de parabenizar todos aqueles que contribuem para o meu desen-volvimento intelectual, desde os jornalistas, os de-senhistas, o pessoal que trabalha na impressão, até

o motoboy que entrega a revista em minha casa. Desejo sucesso, manutenção na coerência, cora-gem e ,acima de tudo, muita crítica, para sempre termos outras visões além da mídia dos patrões. Francisco Beltrão. São Paulo (SP).

Gosto muito da linha editorial dessa revista. Continuem bons assim....Fátima Carvalho.

Parabéns pelo aniversário. Pena que eu só co-nheço a revista há dois anos.Fabricio Spínola Schitini Barbosa.

SOCIEDADE IGUALITÁRIAFaz algum tempo que comecei a frequentar as

páginas da revista Caros Amigos e acho que já pos-so me comunicar com vocês. A revista tem sido um norte para meu desenvolvimento como cida-dão brasileiro, trabalhando meu senso crítico e me orientando politicamente. Como estudante do en-sino médio, digo com a propriedade de quem vive em meio à juventude atual, que esta perdeu alguns dos principais ideais defendidos pela geração ante-rior. Como indivíduo político, digo que não quero perder nenhum ideal defendido pelas gerações de esquerda (meus pais e avós), que lutaram por uma sociedade mais igualitária. Venho também tocar em um assunto que sempre me despertou. Temos visto a repercussão que assuntos ambientais tem gerado na mídia. Por isso, gostaria de saber se uma possível alteração do material de impressão da re-vista (o papel utilizado) para material ecologica-mente correto (papel reciclado) alteraria de forma muito significativa os preços da revista. Álvaro Cerqueira.

CARNÍVOROSEnfim a esquerda começa a enxergar os efei-

tos do consumo da carne como um dos principais ingredientes corroboradores para a destruição do planeta. Na edição de março (156), a questão da alimentação humana por meio da carne foi cita-

Caros leitores

Nov

o sí

tio:

ww

w.c

aros

amig

os.c

om.b

rfale conosco

da duas vezes, mesmo que tenha ocorrido sem o aprofundamento devido. Concordando com Ste-dile, quero ir além, assim como existe a indústria do automóvel, também existe a indústria da car-ne, que mata diariamente bilhões de animais ao redor de todo o planeta. Também parabenizo Ana Miranda pelas belas estrofes na “Prece antes do almoço”: “(...) perdoai senhor, a morte de um ani-mal, este triste boi, este peixinho, esta ave (...)”. Por meio de colocações de pessoas conceituadas é que a informação acerca desse assunto começa a ganhar espaços antes inimagináveis. Mauri de Castro Azevedo.

AGROCOMBUSTÍVEISÓtima e reveladora matéria sobre o monopó-

lio da terra pela indústria do agrocombustível da edição de abril (157). Além de quantificados in-tensos investimentos públicos em um setor cada vez mais privado e de capital internacional, a reportagem me despertou – enquanto estudante de geografia – a curiosa “aptidão” que o Esta-do de São Paulo tem em atrair imigrantes. Fica a questão: de que vale o desenvolvimento eco-nômico se o Brasil ainda continua trabalhando no século passado?Ricardo Nagliati Toppan. Rio Claro (SP).

ETERNIT ESCLARECEEm referência à matéria “Amianto, o inimigo

fatal do teto ao lado”, publicada na revista Caros Amigos nº 158, o Grupo Eternit e a sua subsidiá-ria S.A. Minerações Associadas esclarecem que a Eternit “é uma empresa genuinamente brasileira, sem vínculos com empresas que detêm o uso da marca no exterior”. Deixa claro, portanto, que “a Eternit do Brasil é uma empresa sem qualquer li-gação com a Eternit da Itália”. Informa que o “uso seguro do amianto crisotila é um tema prioritário para o Grupo Eternit e sua subsidiária Sama, en-volvendo inclusive a participação de trabalhado-res, responsáveis pelo acompanhamento e fiscali-zação da utilização correta do mineral”.

redação

Comentários sobre

o Conteúdo editorial, sugestões

e CrítiCas a matérias.

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Page 7: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

7junho 2010 caros amigos

José Arbex Jr.

Há muito mais em jogo na Grécia do que sugerem a mídia internacional e os indefectíveis “es-pecialistas” de plantão. As eventuais consequências da “crise dos PIIGS” (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), que estourou primeiro na Grécia, amea-çam ultrapassar de longe suas dimensões obviamente econômicas e financeiras, para produzir uma catás-trofe planetária de longo alcance e duração. Exage-ro? Visão apocalíptica da realidade? Pode ser, mas não é o que os fatos sugerem. Mesmo a revista Eco-nomist, conhecida tanto por sua sobriedade analíti-ca quanto por suas convicções liberais, foi obrigada a admitir, em sua edição de 15 de maio, que o recen-te pacote de 1 trilhão de dólares de “ajuda”fornecido pela União Europeia, Banco Mundial e FMI está bem longe de ser suficiente para salvar o Euro.

O Tratado de Maastricht, de 1991, que forneceu as bases econômicas para a formação da União Europeia e da “zona do Euro”, estabeleceu, como condição, que qualquer país membro poderia contrair, no máximo, dívida e déficit orçamentário equivalentes a 60% e 3% do respectivo PIB. Para atingir tal equilí-brio, os países membros teriam que impor programas de “austeridade fiscal”, cortar gastos públicos e apli-car o receituário neoliberal que todos estão carecas de conhecer. Após uma década de euforia, com bilhões de dólares jorrando graças à especulação imobiliária, ao turismo e aos jogos olímpicos (em particular, nos casos da Grécia e da Espanha), a bomba estourou. O seguin-te quadro ilustra a falência de Maastricht:

cujo PIB soma 1,4 trilhão de dólares, equivalente a cinco vezes o da Grécia), recessão persistente desde 2008 (com crescimento marginal em 2010) e o enco-lhimento do mercado imobiliário. Na Irlanda, a reces-são produziu um decréscimo de 7,5% do PIB, em 2009. A Itália, finalmente, está em recessão (embora, tecni-camente, a economia tenha crescido 0,5% no começo de 2010), para um PIB que beira 1,8 trilhão de dólares. E Portugal, que vive do turismo e da especulação dos “europeus ricos”, sente em cheio o impacto da crise.

Qual a “receita” para salvar o Euro? A Gré-cia é o exemplo: • Congelamento de salários e apo-sentadorias públicas por cinco anos • Cortes de be-nefícios no valor médio de aproximadamente três salários/ano para o funcionalismo público • Aumento generalizado de impostos (sobre combustíveis, pro-priedade da terra, transações comerciais) • Aumento da idade mínima para aposentadoria aplicável a ho-mens e mulheres (dos 60 anos atuais para 65 ou 67, em 2013) • Cortes de 1,5 bi de euros em saúde e edu-cação • Privatização de setores estratégicos • Refor-ma trabalhista, com redução dos direitos sindicais.

Além disso, a Grécia se compromete a manter os gastos com armas (equivalentes a 2,8% do PIB con-tra 1,3% da Alemanha) compradas principalmente da Alemanha e da França (cujos bancos, juntos, detêm mais de 80% das dívidas do país). A “ajuda” de 130 bi de euros em três anos custará à Grécia o principal mais juros de 5% ao ano, o que resultará, na melhor das hipóteses, em recessão de 4% em 2010 e 3,5% em 2011. Não é à toa, portanto, que o país está em caos. Um plano desse porte jamais será aplicado, sem antes criar uma situação que beira a guerra civil. E o que acontecerá à Zona do Euro, caso a crise não seja controlada? A hipótese assusta os donos do capital. Basta que a Grécia não cumpra alguns de seus com-promissos com os credores franceses e alemães.

Deveria, também, assustar os brasileiros, es-pecialmente aqueles que acreditam no conto de fadas da “marolinha”. É só pensar nos investimentos diretos fei-

tos no país por empresas europeias e na eventual fuga de capitais especulativos (desde o início da crise grega, já saíram do Brasil mais de 2 bilhões de dólares, repatria-dos por empresas que precisam do dinheiro para resolver seus problemas globais). É por isso que o Banco Central de Meirelles aumenta os juros pagos ao capital, que já são os mais altos do mundo: quer manter os dólares no Brasil, às custas de investimentos necessários ao nosso povo.

A crise grega estimulou mais ainda a xenofobia, o racismo e o neonazismo em toda a Europa. Jornais ale-mães e franceses, por exemplo, dizem não ser justo que seus países paguem por uma crise criada pelos “gregos vagabundos e preguiçosos”. Um ministro alemão che-gou ao cinismo de propor que a Grécia venda a suas ilhas para quitar a dívida. A extrema direita nacionalis-ta grega, há tempos em pé de guerra contra a Turquia, acusa as “aves de rapina do estrangeiro”. Aumenta a xenofobia contra imigrantes ilegais, de maioria islâmi-ca e africana, na Espanha, na Itália (onde o neofascis-ta Berlusconi autorizou a formação de “patrulhas” civis para “caçar ilegais”), na França, na Alemanha.

A contrapartida de tudo isso são as cres-centes convulsões no Oriente Médio e na Ásia Central, onde os Estados Unidos estão metidos até o pescoço numa encalacrada que evoca o fantasma do Vietnã. Barack Obama dialoga com Moscou, convoca a Europa (por meio da Otan) e provoca o Irã, para intervir, num quadro de potencial regionalização dos conflitos (que atingiriam uma boa parte do mundo islâmico, até en-globar a Chechênia, parte da Federação Russa). Talvez seja essa, precisamente, a solução oferecida pelo sor-ridente ganhador do Prêmio Nobel da Paz: uma des-truição monumental, que reduziria o Oriente Médio e a Ásia central a escombros. A posterior “reconstrução”, deixada ao cargo das grandes corporações, que, de res-to, controlariam o gás e o petróleo da região, assegura-riam ao capital a recuperação de sua taxa de lucros.

Quem nunca viu esse filme antes?

José Arbex Jr. é jornalista.

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Tempos de catástrofe

País Metas de Maastricht (1991) PortugalIrlandaItália GréciaEspanha

Déficit orçamentário (% PiB, em 2010)

39,35,312,512,711,2

DíviDa (% PiB, em 2010)

60 8565,8 11511254,3

Alguém poderia imaginar que a situação não é tão grave assim para a Espanha. Mas ela é, graças ao de-semprego de 25% da população ativa (para um país

-Arbex_159.indd 7 08.06.10 17:46:27

Page 8: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

caros amigos junho 20108

Guilherme Scalzilli

Esta semana, ao entrar em casa com o Dr. Jivago, de Bóris Pasternack, minha mulher não perdoou: “O Partido já liberou, né?”.

Esperei exatamente 52 anos para ler esse romance. Caiu a União Soviética, caiu o Muro de Berlim, caiu o Partidão, mas só agora caiu o meu bloqueio contra um livro, um simples livro, que não li e não gostei. Sinto alguma vergonha. Minha atenuante é que Dr. Jiva-go foi mais que um livro. Ibrahim Sued (o “inventor” da coluna social) voltara recen-temente de Moscou dizendo que comunismo era isso: mulheres obrigadas a varrer a cidade gelada de madrugada. Na Guerra Fria valia tudo e Dr. Jivago foi uma arma do outro lado, embora não primitiva como a de Ibrahim.

Eugeni Evtuchenko, um poeta carismáti-co, disse de Pasternak que “havia problemas que ele não chegava a entender. Porém não por má vontade. Simplesmente, não os po-dia compreender”. Imaginemos quais eram esses problemas. Quando Stalin morreu, em 1953, uma multidão infindável foi se des-pedir dele na Praça Vermelha. Quando o jo-vem Evtuchenko avisou a mãe que também iria, ela temeu pelo pior. A massa se espremia numa das ruas que desembocavam na pra-ça. Tinham estacionado uns caminhões com soldados na calçada. A torrente humana, es-premida, se chocava com os caminhões, ha-via mulheres e crianças feridas. Evtuchenko e amigos tentaram protegê-las com uma cor-rente de braços dados. Alguém teve a ideia óbvia. Gritaram para os soldados: “Retirem os caminhões! Retirem os caminhões”. Cho-rando, os soldados responderam: “Não temos ordem!” Angustiado, o jovem poeta voltou para casa. A mãe lhe perguntou: “E então, fi-lho, viu Stalin?”. Entrando para o quarto, ele respondeu: “Vi, mamãe”.

Evtuchenko conta essa história em 1963, quando já começara o degelo, desmonte pro-gressivo do stalinismo. Não fala bem nem mal do livro de Pasternak, embora reclame do seu uso pela propaganda ocidental: Pas-ternak “não entendera” certos problemas. Eu gostava de Evtuchenko, poderia ter lido, en-tão, com seu aval, o Dr. Jivago.

Como tudo tem avesso, quero falar ao lei-tor de uma boa recomendação literária do Partido. Perdíamos por um lado, ganháva-mos por outro.

Lá por 1960, eu não tinha apreço especial por Mário de Andrade. Fora o papa do nos-so modernismo, autor de Macunaíma, uma rapsódia sofisticada, nada mais. Luís Carlos Prestes estava no máximo de seu prestígio. Fui aos seus aniversários na Ilha do Gover-nador, vi filas de militantes e simpatizantes, senhoras, anciãos, garotas, operários, solda-dos tentando lhe beijar a mão, ele recusava. Não parecia que o Cavaleiro da Esperança ti-vesse gosto literário. Sua libido se resumia à política, à destruição da burguesia e, naquele momento histórico, à “luta contra o latifún-dio e o imperialismo”.

Engano. Prestes de vez em quando falava de literatura. Devia preferir diários, biogra-fias, grande romances realistas. Correu que seu livro de cabeceira era O turista aprendiz. Muitos devem ter corrido para o livro de Má-rio, os diários das suas expedições ao Norte e Nordeste. O que teria fascinado o Prestes naquelas páginas? Ele também andara pela Amazônia. Talvez se comoveu com coisas as-sim: “Em Iquitos, conheci uma chinesa cha-mada Glória”.

amigos de papelJoel Rufino dos Santos

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Torcendo contra

Joel Rufino é historiador e escritor.

Vai começar o espetáculo do ufanismo histérico. Mídias de todos os suportes serão toma-das pela publicidade oportunista do verde-amare-lo. Jornalismo e marketing, amalgamados por in-teresses comuns, fornecerão os delírios de união e superioridade que o público precisa para engolir a farsa consumista. Milícias uniformizadas toma-rão ruas e bares, assegurando a adesão das mas-sas ignóbeis à ditadura do hexa.

Pois não contem com este humilde escriba. Torço apaixonadamente para o fracasso da seleção brasileira na África do Sul. Quanto mais humilhante e precoce, melhor. De preferência jo-gando mal, tomando olé, sob apupos das torcidas e o escárnio da crônica internacional. Que os fal-sos craques sejam desmascarados, patrocinadores amarguem prejuízos, apresentadores e comenta-ristas engasguem na desmoralização dos seus fa-voritismos.

A escolha soa impopular e arris-cada, mas deveria constituir uma demonstração de coerência para os apaixonados pelo esporte. O time da CBF personifica os vícios e artimanhas que envenenam o futebol nacional. Ali podemos entender a pauperização dos campeonatos regio-nais, a destruição de clubes interioranos, o êxodo de talentos, o esvaziamento dos estádios, a imo-ralidade dos bastidores.

Uma seleção formada quase ex-clusivamente por jogadores de times estrangei-ros não possui qualquer identidade com o torce-dor brasileiro. Eles nem ao menos são melhores do que dezenas de atletas que jogam no país, e que formariam uma equipe mais entrosada, motivada e empolgante. Mas, claro, Dunga não pode privile-giar a qualidade. Sua caricatura de sargento bru-cutu ameniza as motivações financeiras da convo-cação, que atende aos interesses de empresários, cartolas e especuladores.

O legítimo espírito patriótico deve repudiar esse empreendimento nefasto e sua uti-lização da retórica nacionalista em benefício de corjas obscuras.

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Page 9: Ed. 159 - Revista Caros Amigos

9junho 2010 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Não entendo o que o senhor oficial repre-sentante do Estado está falando.

Desculpe, estou fazendo uma reciclagem de ale-mão, e por isso às vezes me engano no idioma, eu disse para você parar referente a uma averiguação e possível restrição de liberdade.

Ok, para o senhor ser informado estou indo para a rua João Antônio, voltando da sala de leitura Trin-dade, esquina com a Plínio Barreto.

Abra as pernas, por favor, o senhor porta aliena-dores de realidade?

Não, no momento estou somente meio letárgico por causa de Shakespeare.

Tire o boné, por favor, tem alguma pagina de Marx ou algo do gênero?

Não senhor, pode exercer o método de vistoria cerebral.

Ok, cidadão, método de vistoria cerebral não será necessário, vejo pelo seu olhar nunca abaixando as íris e não desviando do contato direto que está fa-lando a verdade, já foi usuário?

Sim, não vou faltar com a verdade, já li muita L.M. e também consumi artigos impróprios nos an-tigos saraus, mas hoje estou limpo.

Nossa que pena, um menino tão novo, já passou por sarau, mas tudo bem, hoje é outro dia.

Eu aconselho jovens como você a irem a peças de teatro, tem uma em cartaz que dá até para ver de perto atores que fazem novela no horário nobre.

É mesmo? Que legal!Espero que você não se torne um desses que de

usar tanto Leminski no banheiro, de injetar Lourenço com nanquim em fundo de praça, que de ficar cha-pado de Colín e Shimamoto, acaba se desvinculan-do da realidade.

Não, isso não senhor!Bom, pode ir.Olá amigo, você que está vendendo o suor hoje?Eu mesmo estou trabalhando, mas da-

qui a duas horas estou livre, o período de 4 horas do sindicato dos traficantes organizados e descompro-missados de facções cadastradas me orientou sobre meus direitos.

Está certo, me vê uma pagina de Gorki, e uma de Dostoievski.

Vai usar aqui ou levar?Vou usar aqui, você tem algum canto de leitura?Tem sim, no terceiro barraco à esquerda, tem op-

ção de café ou chá também, coloque as duas pági-nas na meia e cuidado, tem um policial coleciona-dor novo na área.

Mas colecionador de quê?Dizem que é fanático por Veríssimo, já pegou vá-

rios por aí e tomou tudo, ainda dá páginas de Paulo Coelho no lugar para humilhar o viciado.

Nossa! Sem dó mesmo, hein?Nem me fale, eu que recolho esse lixo que

eles deixam por aí, tenho dezenas de páginas de ma-gos, vampiros, feitiços e tudo isso.

Pior seria se ele obrigasse a ler Sidney Sheldon ou Dan Brown.

Nem me fale, irmão, me vê uma dose de Mon-talbán?

Vou ter só na versão em português, a original em espanhol tá difícil de trazer, tem muito clube de leitura oficial na nossa bota.

Mas eu queria a verdadeira, a pura mesmo, sem tradução.

Então irmão, vai ter que ir a algum ponto oficial.Mas eu não tenho carteirinha de leitor, sempre

consumi assim no desbaratino, você sabe: depois que a gente passa pela literatura mexicana, acaba perdendo o direito de entrar nas oficiais.

Faz o seguinte, não conta pra ninguém, mas na leste tem um foco de resistência organiza-da, chama-se Baluartes Unificados Zelando Oprimi-dos, ou como o povo chama de BUZO, você chega na leste, perto do Itaim literário e pergunta nas vie-las do saber.

Firmeza, tô mesmo a fim de recitar e consumir algo em conjunto. Você sabe onde tá pegando?

Bom, o elo da corrente agora são os poetas, eles tão se unindo agora num novo lugar, depois que a Polícia Federal começou a perseguir o alto tráfico de informação; vários deles foram presos por por-te ilegal de conhecimento e agora eles estão numa nova entidade, diz que o sarau lá é pura brasa, cha-ma-se Donde Miras, como os moleques que trafi-cam Cortázar começaram a chamar; pra você en-trar tem que trocar ideia com o velho líder, um cara muito criterioso e que decide tudo da organização, o nome dele é Binho.

Certo, então vou pra lá, mas antes me vê um aí do Marcelino Freire.

Toma, guarda rápido.Quanto é?Tô te devendo aquela dose de Glauco Mattoso,

então fica elas por elas.Firmeza, onde posso usar?Faz assim, lê rapidinho no banheiro ali, se alguém

encostar você finge que tá lendo essa revista Veja aqui.Puta! Vou ter que pôr isso na mão?Só pra fingir, irmão, só pra fingir.

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traç

ão: g

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Ferréz

Litera-rua

Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e uma filha num país chamado periferia.

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caros amigos junho 2010 10

Mc Leonardo

Pouco tempo atrás, comemorei nesta colu-na a publicação da Gramática do Português Brasileiro, de Mário Perini. Agora é de toda justiça celebrar também o recente lançamen-to da Nova Gramática do Português Brasi-leiro, de Ataliba T. de Castilho, reconhecido internacionalmente como um dos mais im-portantes linguistas brasileiros contemporâ-neos. Além disso, também é preciso dizer que já em 2008 tinha saído a Gramática Houaiss da Língua Portuguesa, de autoria de José Car-los de Azeredo, inovadora sob muitos aspec-tos. O que caracteriza essas obras gramati-cais é sua opção explícita pela descrição do português brasileiro vivo contemporâneo tal como ele realmente é e, sobretudo, a recu-sa de usar a escrita literária “clássica” como único material de estudo. Quase cem anos de-pois do surgimento da ciência linguística mo-derna, que provou que é necessário priori-zar a língua falada para o conhecimento do real funcionamento de qualquer idioma hu-mano, somente agora vêm à luz compêndios gramaticais abrangentes que procuram ex-plicar o que é, de fato, a língua majoritária dos brasileiros, sem contrastar os usos “po-pulares” (haja preconceito!) ou “coloquiais” (odeio essa palavra!) à “escrita literária”, to-mada sempre como “exemplar”. Como é que se faz isso? Vamos ver.

O pronome “ele” é usado como objeto dire-to (“vi ele”) no português há mais de mil anos: basta ler os textos medievais. Em dado mo-mento da história de sua língua, os portugue-ses abandonaram esse uso (nenhuma surpre-sa, já que as línguas mudam sem parar). Ele, porém, continuou vivo e atuante no portu-guês brasileiro e africano. No entanto, só por-que os portugueses não dizem “vi ele”, esse uso sempre foi tido como “errado”, como se o “certo” fosse sempre apenas o que os 10 milhões de lusitanos falam, em detrimento dos outros 200 milhões de falantes da língua mundo afora! Pois bem, na gramática de Pe-rini, sem nenhum rodeio, encontramos o se-guinte: “Alguns pronomes só têm uma for-ma, que vale para todas as funções. É o caso de ele, ela e seus plurais, que não variam for-malmente quando em funções diferentes: Eu chamei ele para ajudar na cozinha; Ela pas-sou no exame da OAB; De repente eu vi eles

chegando de táxi.” Já na obra de Castilho te-mos: “O pronome ele pode funcionar (i) como objeto direto: Maria viu ela; (ii) redobrar uma construção de tópico: A Maria, ela ainda não chegou […]”.

Essas descrições são claras, objetivas, re-alistas, não lançam juízos de valor sobre os usos da língua: dizem como ela é. Muito di-ferente de um famoso dicionário que diz que o uso de “ele” como objeto é coisa de “pes-soas incultas” ou “cultas descuidadas” ou de uma gramática de filólogo renomado que diz que esse uso, embora “tenha raízes antigas no idioma […] deve ser hoje evitado”, isso depois de atribuir o uso à “fala vulgar”.

Não tem mais cabimento continuar a ana-lisar a língua e, pior, a ensiná-la como se ela não fosse o que é: um universo heterogêno, multifacetado, variável e mutante, com vín-culos indissociáveis com a complexidade so-cial e cultural. Temos que abandonar o medo de encarar a língua como um fenômeno com-plexo e, mais ainda, a tentativa de construir um modelo idealizado e inalcançável de uto-pia linguística, jogando todos os outros in-contáveis e importantes usos na lata de lixo do “erro”.

falar brasileiroMarcos Bagno

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Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

EU VI ELE, SIM, E DAÍ?!

Há muito tempo não víamos a socieda-de brasileira envolvida diretamente com um pro-jeto de lei como estamos vendo com a tal da “Fi-cha limpa”.

Fui chamado para assinar um abaixo-assinado em favor da lei, para assistir a palestras e debates sobre o assunto e até para participar de passeata pela aprovação da lei na Câmara dos Deputados.

Não só fui a tudo o que pude ir como le-vei comigo todos que pude levar. Minha opinião, que já era formada sobre o assunto, só se fortaleceu.

Bom, aprovado na Câmara Federal, o projeto chega ao Senado às vésperas da corrida eleitoral. E mesmo que passe, ainda tem de ser decidido no Superior Tribunal Eleitoral (STE).

O ministro Marco Aurélio Mello, atual pre-sidente do STE, deu uma entrevista dizendo: “Re-almente se trata de um projeto ambicioso e que atende aos anseios da sociedade. Agora, existe um problema que diz respeito à sua aplicação no ano das eleições, porque a Constituição Federal prevê que a lei nova só se aplica às eleições subsequen-tes... Queremos atender aos anseios da socieda-de, mas o nosso dever maior é com a Constitui-ção Federal”.

A Constituição Federal, na minha humilde opi-nião, serve pra atender aos anseios da sociedade, fazendo com que o dever maior do STE não fique comprometido caso ele atenda esse anseio já nas próximas eleições.

Ele chamou o projeto de “ambicioso”, e mais uma vez eu não posso ter a mesma opinião que ele, acho o projeto muito básico e óbvio.

Pra ser ambicioso ele teria que não só impe-dir os fichas-sujas de se candidatar, como tam-bém fazer todos os julgados e condenados que es-tão ocupando cargos eletivos nesse país se retirar de seus gabinetes no momento em que a lei fos-se aprovada.

Escrevo essas linhas na tarde de 14/05/10 e torço pra que fique ultrapassada quando for publi-cada. Ainda tenho a ambição de viver em um país onde se respeite as ambições do seu povo.

Temos que ser ambiciosos!

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Era noite de cabelo ao vento, gente jo-vem reunida. Em pleno show de rock’n’roll, o porta-voz da banda anunciou a próxima pau-leira musical: Nós os Filhos, de... Fábio Jr. “Per-cebi reações diferentes. Teve gente que riu e ti-rou barato. Teve gente que disse que eu estava zoando. E umas senhorinhas que gritaram de emoção”, conta Thadeu Meneghini, que fazia naquela noite, na São Paulo natal, o primeiro show de seu Conjunto Vazio.

Um dos motivos para esse nome é que o gru-po não tem integrantes fixos além de Thadeu, egresso da extinta banda Banzé!, e o também paulista Adalberto Rabelo Filho, também inte-grante do grupo Numismata. O palco do Con-junto Vazio é preenchido por um elenco varia-do: jovens da cada vez mais movimentada cena musical paulistana, como Tulipa Ruiz e Tatá Aeroplano, roqueiros rebeldes de uma geração atrás, como o carioca Lobão, e ícones da músi-ca mais popular que o Brasil já produziu, como o forrozeiro paraibano Genival Lacerda.

No repertório, os rocks de autoria pró-pria convivem com pérolas pop de Fábio Jr., Odair José, Dom & Ravel, Wando e outros. Lançado há pouco no formato econômico de EP (em CD e em vinil), o disco de estreia do Conjunto Vazio se chama Prenda o Tadeu e inclui, evidentemente, o impagável forró malicioso de mesmo nome, lan-çado em 1985 pela alagoana Clemilda.

“A gente segue aquela lógica que norteava o programa do Chacrinha, da convivência pací-fica entre os diversos gêneros musicais”, expli-ca Adalberto. “Pô, lá cabiam Titãs e Rosemary no mesmo balaio, e isso não chocava ninguém. É muito mais bacana que a lógica dos nichos e da segregação que rola agora.”

Thadeu oferece outro exemplo do des-conforto que experiências desse tipo podem causar, mesmo em tempos como os atuais, de suposta celebração da diversidade cultural: “Um amigo meu, músico da mesma geração, me convidou pra ouvir faixas do seu novo tra-balho. Comecei a ouvir e curtir, e empolgado

soltei uma destas: ‘Cara, seu som está muito Gui-lherme Arantes, tem umas coisas meio Jessé’. Ele ficou puto, como se eu estivesse xingando, não sacou que era um elogio”.

Adalberto também tem seus exemplos: “Quando falo bem de determinadas músicas des-ses artistas, as pessoas acham que ou estou tiran-do onda ou que gosto pelo lado ‘trash’. Não têm a dimensão correta de que se trata efetivamente de músicas boas, pop, de comunicação imediata com o grande público”.

No disco Brazilians on the Moon (2003), de seu grupo Numismata, ele gravou lado a lado Morfeu, um samba de raiz do respeitado Monsue-to Menezes, e Atômico Platônico, rock iê-iê-iê da bem menos unânime Vanusa. “Não é zoeira. Por não levar a sério os artistas populares, as pesso-as não têm dimensão do alcance que eles têm. Não é nada fácil fazer sucesso, se esses caras se destacam é porque são foda. E, na boa, qual é a real diferença entre o bolero do Pablo Milanés e o bolero nacional?”

Thadeu e Adalberto são alguns dos muitos ar-tistas e/ou amantes de música que se deixaram in-fluenciar pela leitura de Eu Não Sou Cachorro, Não, do historiador Paulo Cesar de Araújo. Edita-do em 2002, o livro agrupa fartas demonstrações de que os gêneros musicais ditos “cafonas”, criados por e para gente “do povo”, sofrem de ampla rejei-ção por parte da MPB elitizada e de consumidores tidos como “intelectuais”, menos por desacordo es-tético de que por preconceitos de classe social.

“A questão central é o preconceito mesmo”, constata na prática Thadeu. “Quando as pessoas reconhecem um autor, sabem que a mú-sica é dele, revelam-se também os preconceitos sociais envolvidos.” Segundo ele relata, é possí-vel palpar no ar a diferença de reação, se anun-ciar a autoria de determinado rock antes ou de-pois de cantá-lo.

Como diz Adalberto, não é zoeira. O Conjun-to Vazio não quer imitar os “bregas” nem abdi-car de suas próprias características. Gostaria, no máximo, de colaborar para a derrubada de mu-

PAÇOCAPedro Alexandre Sanches

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Ainda somos os mesmos e vivemos COmO nOssOs PAis?

Pedro Alexandre Sanches é jornalista.

ralhas de preconceito (e desrespeito), no passa-do, no presente e no futuro. “Fenômenos popu-lares de hoje, como Calcinha Preta ou Parangolé, são muito bem aceitos pela sociedade enquan-to, digamos, ‘inofensivos’, mas também são tra-tados com o mesmo desdém quando são avalia-dos seus méritos musicais”, diz, indicando que o desmonte de dogmas pode começar no culto a Odair José, Diana e Waldick Soriano, mas exige um olhar generoso e desarmado por sobre a cul-tura do presente, mesmo que ela a princípio ten-da a causar repulsa.

Como também reconhece Thadeu, tal olhar generoso não é o novo ovo de Colombo – outros tantos, dos tropicalistas a Raul Seixas, já tentaram esse acasalamento em tempos passa-dos. “Mas algumas barreiras ainda são criadas. E, muitas vezes, por nós mesmos”, afirma. Mas há, sim, novidade no ar, e ela reside na reverência respeitosa que esses e outros artistas devotam ao velho operariado da canção brasileira que, cujo suor construiu a maioria avassaladora dos edifí-cios da indústria musical nacional.

Ultrapassou-se tempo em que a banda Vexa-me cantava Cavalgada como a caçoar de Roberto Carlos, ou em que a festa Trash 80’s caía na gan-daia dando risada dos “bregas” dos anos 1980. O Conjunto Vazio não está só no amor pela música Popular brasileira, com P maiúsculo. A chamada “música de puteiro”, de Roberto Carlos a Lindo-mar Castilho, enobrece o pop compacto de artis-tas do Ceará (Cidadão Instigado, Karine Alexan-drino) e de Pernambuco (Del Rey, Academia da Berlinda, Mula Manca & a Fabulosa Figura). Os paranaenses do Charme Chulo fazem rock sob a alcunha de uma Nova Onda Caipira. O novo rap paulista dialoga com o legado de ícones român-ticos, cafonas e pagodeiros.

Ninguém ali está a fim de zombar de ninguém. E todos andam se divertindo à beça. Não somos mais os mesmos, tentamos não viver como nossos pais.

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Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, o doutor Sócrates, ficou longe de ter sido um jogador de futebol padrão. Mes-

mo jogando profissionalmente, nunca deixava de fumar e tomar uma cervejinha. Afinal, entrou no esporte meio que por acidente, na mesma época em que cursava Medicina na USP de Ribeirão Preto. Para completar o perfil antítese do boleiro, “Ma-grão” era altamente contestador. Fazia política. Não à toa, foi um dos principais líderes da De-mocracia Corinthiana, movimento que abalou as estruturas do futebol e, por que não, da socieda-de brasileira, no início da década de 1980, quan-do a ditadura agonizava. Nesta entrevista, Sócrates fala de política, ideo-logia e, como não poderia deixar de ser, da con-vocação da seleção brasileira pelo técnico Dun-ga. Para ele, o Brasil que vai a Copa não tem nada a ver com o povo brasileiro. “Como eu vou ser pragmático se eu vivo de emoção, se eu vivo de paixão, vivo de amor? É abrir mão da vida. É uma opção pessoal do Dunga, mas não tem nada a ver com o Brasil, com a nação brasileira”.Sim, o craque da seleção nas Copas de 1982 e 1986 gosta mesmo é de futebol-arte. Afinal, “Ga-nhar não vale nada. O importante é ser feliz”.

Hamilton Octavio de Souza – A gente costuma começar o bate-papo falando da vida da pessoa. Fale um pouco de você, onde você nasceu, onde foi criado.Sócrates – Bom, sou filho de um cearense maluco que inventou de mudar para fazer o seu próprio destino e nos ofereceu uma chance de estudar, ler e aprender. Mas eu nasci no Pará, a minha mama é paraense.

Hamilton Octavio de Souza – De Belém?De Belém do Pará. Meus pais moravam em Iga-rapé Açu, mas acabei nascendo na Santa Casa de Belém. Aí, por causa dessa loucura do velho, que virou funcionário público sem ter nenhuma con-dição para tal e entrou num concurso que só ele era candidato, nós viemos para o sul. Eu fui cria-do em Ribeirão Preto. Aliás, o Raí nasceu em Ri-beirão, por isso ele tem o beiço grande. Já é a fase do contra-filé mesmo. Eu sou da fase sem filé. Nasci ainda na fase ruim economicamente da fa-mília. E daí para frente é só invenção.

Hamilton Octavio de Souza – São quantos irmãos?Somos seis, cinco homens e o Raí. Porque o Raí é diferente, todas as mulheres querem o Raí. O res-

entrevista SócrateS

to é homem normal. Tudo quanto é mulher quer o Raí. Nós, para arrumarmos uma, é um sufoco.

Hamilton Octavio de Souza – Você foge do padrão do jogador de futebol.Aí eu inventei de fazer medicina.

Hamilton Octavio de Souza – De onde surgiu essa ideia?Eu não sei de onde veio a medicina, não. A inter-pretação que eu dou, bem posterior, é de que, tal-vez, tenha um lance social. Na época, eu era bem molecão, resolvi fazer medicina, mas não tinha nenhuma influência, não tinha tio, não tinha...

Hamilton Octavio de Souza – Lá em Ribeirão?Acabei fazendo em Ribeirão, por opção. Eu poderia ter entrado na Pinheiros, mas eu quis fazer lá.

Lúcia Rodrigues – USP de Ribeirão?Na época, a Pinheiros era a primeira preferência, a Paulista a segunda, e a terceira era a Ribeirão. Era de excelência, da USP. Como eu escapei das ou-tras duas, entrei em primeiro lugar na Ribeirão.

Gabriela Moncau – Como você conciliava medicina com futebol? Quando você começou a jogar bola?

Eu jogava desde moleque, não era nada sério. Na época em que eu entrei na faculdade, era um ho-bby. Jogava no Botafogo [de Ribeirao Preto], mas no juvenil. Entrei com 17 anos na faculdade.

Lúcia Rodrigues – Você é um dos líderes da Democracia Corinthiana, fez história dentro do futebol brasileiro. Como é que surgiu essa consciência política? Foi na faculdade?Não tem um lugar. Na verdade, a tua sensibilida-de política é estimulada pelos contatos que você tem. Quem me ensinou tudo que eu sei hoje, o que eu penso e o que eu sinto, foi o povo com o qual eu me relacionei. E eu tive o privilégio de estar no meio do futebol, onde o número de pessoas é muito maior do que em outras atividades.

Hamilton Octavio de Souza – Faltou você contar como entrou no futebol. Você pulou essa parte.É, eu estava na faculdade. De alguma forma, eu já era um ator, enganava para caramba. E, aí, os caras insistiam para que eu me tornasse profissional.

Hamilton Octavio de Souza – Que caras?Uns diretores do Botafogo. Eu jogava na preli-minar. Já existia até um certo público para ver o nosso time, que era muito bom. E aí, no fi-

“Nós, brasileiros, somos completamente diferentes do que foi escolhido para a seleção”

Dr. Sócrates, o “Magrão”, bateu pesado na seleção, nos cartolas e na mídia.

Participaram: Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Kyra Piscitelli, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya, Paulo Matavelli, Wagner Nabuco, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos.

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nal do segundo ano da faculdade, eu falei: “va-mos tentar”. Eram minhas últimas férias longas, de dois meses e pouco, e ia começar o curso clí-nico. O curso básico era muito pesado em termos de exigência temporal e o outro eu não conhe-cia. Imaginei que pudesse, de alguma forma, via-bilizar isso, e comecei a treinar. Mas virei jogador de futebol durante dois meses. O acidente ocor-reu quando o titular do time principal machucou e eu entrei. Eu entrei e fiquei. Voltaram as aulas e eu fui levando, fui levando, fui levando. Sei lá como, não dá para responder.

Hamilton Octavio de Souza – O Botafogo estava na primeira divisão?Primeira do Paulista.

Lúcia Rodrigues – E como é que você saiu do Botafogo e foi parar no Corinthians?Depois de formado só.

Lúcia Rodrigues – Mas quem é que fez essa aproximação? Teve alguém, algum empresário?Empresário não tinha naquela época não. Ali era direto. Na verdade, eu passei quatro anos estu-dando e jogando. Nesse período, me convidaram umas quarenta, cinquenta vezes para sair do Bo-tafogo. Eu disse: “não, só vou sair depois de for-mado, se continuar jogando futebol”.

Lúcia Rodrigues – Essa era a sua meta, se formar primeiro para depois partir para o futebol?Claro, claro. Era o que eu tinha na mão. Futebol era algo não palpável ainda, apesar de já ser pro-fissional e de já ter uma independência em rela-ção ao meu pai. O meu negócio era terminar o curso. Era um compromisso que eu tinha comigo e, principalmente, com o meu pai, porque ele era um cara que não pôde estudar na época adequada e eu tinha que responder à carência dele. Termi-nar meu curso era básico, não só para ele, como para mim. Depois, eu decidi, até por ser mais con-veniente, ficar no futebol, pois eu podia fazer as duas coisas o resto da vida. Um pedaço para o fu-tebol e um pedaço para a medicina.

Renato Pompeu – Tem alguma coisa entre ser futebolista e a medicina? Porque o Tostão também era médico, o Ganso quer ser médico. E eu não ouço falar de jogadores advogados...Médico é coisa raríssima, né? Os outros deve-riam ser alguma coisa. Dá para fazer um curso de Educação Física? Dá. Dá para fazer um curso de Direito? Dá. Dá para fazer Economia? Dá. De Administração? Dá. Só não faz quem não quer. Medicina é muito mais complicado. Eu consegui carregar as duas coisas porque estava num centro menor, só por isso. Em São Paulo, seria impossí-

vel, fisicamente impossível, conciliar as duas coi-sas. No meu caso, a técnica que eu tive que de-senvolver foi extremamente apurada para poder sobreviver nesse meio, porque eu não tinha físico. Eu tive que desenvolver uma técnica que eu não tinha no juvenil. Meu jogo mudou totalmente.

Renato Pompeu – Mas muitas das suas jogadas saíram do salão?Não, não. O salão veio junto. Na verdade, o cam-po que me deu elementos para jogar no salão, não o contrário. Porque eu não podia tocar na bola mais do que duas vezes. A minha capacidade fí-sica era extremamente limitada. Eu jogava contra o Luis Pereira. O cara tinha três de largura, se ele encostasse o corpo em mim, me jogava para fora do campo. Eu não podia encostar nele. Então, eu desenvolvi uma técnica para sobreviver.

Lúcia Rodrigues – Como é que você desenvolveu essa técnica?Com elaboração, raciocínio... tem que pensar, né? Quem não pensa, não sobrevive em lugar ne-nhum. Eu treinava. No primeiro jogo que eu fiz contra o Palmeiras, peguei a bola, driblei o Luis Pereira umas dez vezes, mas ele estava sempre na minha frente. “Pô, não tem jeito de driblar esse cara, ele está sempre voltando e voltando. Vamos mudar o jogo, não dá para ficar desse jeito”.

Hamilton Octavio de Souza – E como é que foi a tua passagem do Botafogo para o Corinthians?

Renato Pompeu – Você já era corintiano?Não, eu era anti-corintiano.

Renato Pompeu – Você torcia para qual time?Santos. Torcia para o time que ganhava.

Lúcia Rodrigues – Por causa do Pelé?Claro. Pelé não, o time todo do Santos. Eu era lou-co pelo time do Santos quando moleque. Então, quando terminei a faculdade, resolvi continuar jo-gando bola. E a questão que eu coloquei para o pessoal do Botafogo foi: “o primeiro que apare-cer eu vou embora”. O primeiro que for interes-sante, time maior, de capital, naquela época, era Rio Grande do Sul, Minas, Rio ou São Paulo. E de-moraram pra caramba para voltar. Como eu disse, já tinha tido tantos convites, mas só foi acontecer depois da Copa, em 78. Já estava desistindo. Falei: “Ninguém aparece agora”. E quem apareceu pri-meiro para mim foi o São Paulo, mas o São Paulo queria fazer um negócio x com o Botafogo, que era um tríplice com o Corinthians. Tinha que pedir um prazo para viabilizar. Aí, o Vicente Matheus [então presidente do Corinthians] entrou na parada e fe-chou o negócio com o Botafogo e comigo.

Lúcia Rodrigues – Em que ano você chegou no Corinthians?Em 78. Eu queria conhecer o mundo, nessa fase eu já estava em ebulição.

Lúcia Rodrigues – Foi ali que começou o embrião da Democracia Corinthiana? Ou foi um pouquinho mais para frente, na década de 80?Não. Eu já estava com a cabeça voltada para isso. Na verdade, eu já era um pré-revolucionário. E por isso que eu optei pelo futebol, basicamente. Eu queria conhecer o mundo, queria pôr a cara para bater. E foi ótimo eu ter caído no Corinthians.

Lúcia Rodrigues – Mas como surgiu esse questionamento, as regras na concentração, vocês darem sugestão na escalação, contratações? Onde que deu o start para que o Corinthians se diferenciasse em relação aos demais times? Por que teve essa oportunidade, esse espaço para que esse tipo de democracia de participação direta dos jogadores ocorresse naquele momento? Particularmente, eu sempre achei um absurdo um time viver em regime de casta. Isso vem da origem do meu pai. Meu pai nasceu pobre, fodido, não ti-nha o que comer. Então, essa convivência entre a história antiga com a realidade daquele momen-to era muito clara para mim. A primeira vez que eu fui para o Ceará, na casa dos meus avós, vi que não tinha nem água encanada, nem luz elé-trica. Quer dizer, para quem mora em São Paulo, isso é um absurdo. Como é que o cara vive sem geladeira? Como é que o cara toma banho? É um contraste absurdo. Então, esse sentimento sempre foi muito claro. Por que casta? Por que as pesso-as são tratadas de forma diferente? Esse sentimen-to nasceu comigo. E você vai elaborando isso com o tempo. Como mexer nisso, como tentar brigar contra? Isso depende das oportunidades que você tem na vida. E as oportunidades não dependem de você necessariamente. Mas o instinto, a cons-ciência está interiorizada, tem que saber usar isso na hora certa. Isso aconteceu no Corinthians, por quê? Porque era um momento de crise, e só existe revolução em crise ou, então, em guerra. Aí, tive a oportunidade de elaborar uma ideia. Não exis-tia nada pré-determinado. A ideia era a seguin-te: vamos participar todos das decisões coletivas, vamos tentar fazer com que nada venha de cima para baixo, porque as melhores soluções sempre estão com quem está com a mão na massa, em qualquer ambiente corporativo que seja. Em qual-quer sociedade é assim. Quem põe a mão na mas-sa sabe onde tem problema e sabe qual é a solução. No futebol, não é diferente. Isso foi colocado na mesa e, de alguma forma, acatado. Daí, nós come-çamos a elaborar alguma forma de viabilizar isso. Como? Não tínhamos pré-determinado. E a gran-de sacada foi o voto, num momento em que o país não votava. A grande sacada, por isso que se criou essa dimensão toda do que foi a Democracia Co-rinthiana, por causa daquele momento. O voto era o símbolo democrático daquilo que a gente gosta-ria que ocorresse naquele momento. E nós fazía-mos isso cotidianamente. Quer dizer, isso passou a

“Quem me ensinou tudo que eu sei hoje, o que eu penso e o que eu sinto foi o povo com o qual eu me relacionei. E nisso

eu tive o privilégio de estar no meio do futebol”

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ser uma linguagem de esperança, de expectativa e de exemplo para toda a comunidade que acompa-nhava o futebol. E a linguagem do futebol é mui-to fácil de você politizar. Eu acho que Democracia Corinthiana teve essa dimensão toda porque foi ali naquele momento.

Lúcia Rodrigues – E os outros jogadores, o que eles achavam? A maioria dos jogadores compartilhava dessa ideia? Sei que Casagrande, Vladimir, você, Zenon...Era assustador para a maioria, porque eles nun-ca tiveram voz. Eles eram da senzala, sempre fo-ram da senzala, sempre foram massacrados pelo sistema. Claro que se você tem a oportunidade de colocar a sua opinião, com o tempo você vai ad-quirindo confiança de que aquele processo é real. Assim aconteceu com todo mundo. Se você pe-gar as primeiras ações, ou não-ações, do Biro-Bi-ro, por exemplo, eram de assustar. Ele estava as-sustado, mas vê o que ele fala hoje daquilo, o que ele é hoje, o que ele aprendeu mesmo só ouvin-do. Então, é um processo, você tem que criar co-ragem para colocar a cara para bater.

Lúcia Rodrigues – Você se define como uma pessoa de esquerda politicamente?Não, eu sou gente. Vivo pela gente.

Lúcia Rodrigues – Mas, politicamente, não?Isso é bobagem. Esquerda, direita. Eu sou socia-lista, não sei se isso é ser de esquerda. Não sei, mas por que de esquerda? Aí é que está, são ró-tulos. Sou socialista, no sentido pleno da palavra. Comunista. Eu sou cubano, queria ter nascido em Cuba, sou cubano.

Gabriela Moncau – O nome de um dos seus filhos é Fidel, né?É, o mais novo. Eu queria, porque aquilo lá é o sonho. O meu sonho é aquilo lá.

Lúcia Rodrigues – De sociedade, enfim...Claro, de oportunidade, de processo educativo. Agora, Cuba é massacrada pelo sistema. O siste-ma global massacra quem quer fazer direito.

Bárbara Mengardo – Ainda sobre a questão da democracia dentro do Corinthians... que efeitos teve isso dentro de campo e como foi a recepção dos outros times a essa mudança? A gente não pode esperar que a revolução seja contaminante. A sociedade em que você está in-serido é que determina como que vai se estrutu-rar. Vocês vão falar assim: “por que não acon-teceu em outro lugar?”. É outra sociedade. Por que a Revolução Cubana não aconteceu nos Es-tados Unidos? Porque não era Estados Unidos, era Cuba. Cada sociedade tem a sua história, o seu momento, tem detalhes, tem coisas que a gente não consegue nem perceber exatamente porque ocorrem. Ali, aconteceu uma revolução, porque as pessoas que queriam fazer revolução estavam juntas num momento propício para isso. Se fosse em outro momento, talvez não acontecesse nada. Aquela experiência que nós tivemos no Corin-

thians não existe nem em casa, em nenhuma das nossas casas tem isso. Desde quando uma crian-ça de seis anos tem peso para decidir que hora vai almoçar com o resto da família? Nunca. No Co-rinthians, o subordinado do copeiro tinha o mes-mo peso que o dono da casa. A experiência ab-solutamente democrática.

Lúcia Rodrigues – E que se converteu em títulos em 82 e 83.As consequências disso é que se criou uma bela co-munidade, uma comunidade cúmplice, responsá-vel, não individualista, que chegou ao absurdo de se sentir coerentemente ligada a cada uma das ou-tras pessoas. Aliás, é nossa grande carência enquan-to cultura. Nós só vamos virar gente, nossa nação, quando tivermos cultura comunitarista. Nós somos muito individualistas, a gente só pensa na gente. Nós temos que pensar em comunidade. O dia que a gente pensar em comunidade, a gente derruba o que quiser, ultrapassa qualquer obstáculo, porque nós somos mais fortes do que um indivíduo.

Renato Pompeu – Você falou que isso aconteceu no Corinthians porque o Corinthians estava passando por uma crise. Mas você não acha que tem alguma coisa na própria história do Corinthians que levaria a isso? Porque não foi só “isso aconteceu no time que estava em crise”. A própria torcida... a primeira faixa contra o regime militar depois do AI-5 em 68 foi aberta pela Gaviões da Fiel no Pacaembu. Não sei se você lembra.Quando foi?

Renato Pompeu – Foi ainda antes da Democracia Corinthiana. Você não acha que tem alguma coisa no Corinthians?O Corinthians é a cara do Brasil. Eu falei que a crise foi dentro do Corinthians, por isso que ocorreu aque-la revolução. Se, depois, ela só vem com o seu públi-co... Mas, internamente, ocorreu por causa de uma crise, senão não teria ocorrido nada. Em ambientes estáveis, não existe revolução. Tem que haver uma grande crise para que as pessoas reflitam e busquem solução para aquele problema que ocorreu em de-terminado momento. A torcida corintiana, a Gaviões da Fiel em particular, é tão importante quanto o MST num país como o nosso. O único problema é que ela não conseguiu se politizar ainda, e, talvez, esse seja o grande medo de qualquer sistema.

Renato Pompeu – Mas ela tem algumas práticas sociais.Sim, mas ela não conseguiu se politizar. A dire-ção da Gaviões pode ser politizada, mas a Gaviões da Fiel, enquanto massa, não se politizou ainda.

Porque o dia em que se politizar, imagine você, tem um contingente, são quase 100 mil sócios oficiais. Imagine, com palco toda semana para se manifestar politicamente, ela muda o país, cara, muda um país. Meu sonho é esse. Será muito mais importante, muito mais fascinante do que o MST. Eles vão ter palco e mídia. Isso é um sonho.

Hamilton Octavio de Souza – A mídia fecha o som.Isso é um sonho, cara. Eles têm palco, têm mídia, só não têm elaboração política ainda enquanto massa, mas um dia vão ter. E o grande medo do sistema é exatamente esse. Por isso que é tão re-primida a organização de torcida aqui no Brasil. Basicamente por causa disso.

Hamilton Octavio de Souza – O Galvão Bueno fecha o som.Não precisa de som, para o jogo, cara. Se eu tenho 50 mil caras no campo, eu paro o jogo.

Lúcia Rodrigues – Eu estava conversando com um membro da Gaviões da Fiel que disse que a PM de São Paulo proibia a torcida de entrar com os bonés do MST, com camisetas, com algum tipo de identificação do movimento sem terra. Naquele time, acho que é o Monte Azul, tinha a bandeira do Che...Tem tudo a ver com o que eu estava dizendo. Se você associar movimentos, você cria uma grande corrente revolucionária.

Lúcia Rodrigues – A própria bandeira do Monte Azul, um time que subiu para a primeira divisão do Paulista, tinha o Che com aquele azul e branco. E a polícia também proibia de entrar com a bandeira.Vou atrás disso, é uma informação absolutamen-te linda. Perdi isso.

Gabriela Moncau – Sócrates, quando e por que acabou a Democracia Corinthiana?Bom, acabou porque tinha que acabar. Mudou a sociedade. Eu fui embora para a Itália e contrata-ram dez jogadores.

Hamilton Octavio de Souza – Dispersou todo mundo?O Casão [Casagrande] saiu, eu saí. E aí contrata-ram dez. E esses dez caras tinham outra cabeça.

Hamilton Octavio de Souza – Teve pressão para vocês serem vendidos para a Itália?Não, eu fui por causa das Diretas Já. Fiquei frus-trado com o resultado da votação no Congresso, e falei: “vou embora dessa porra”. Graças a Deus,

“Aquela experiência que nós tivemos lá no Corinthians, não existe nem em casa. No Corinthians, o subordinado

do copeiro tinha o mesmo peso que o dono da casa. Uma experiência absolutamente democrática”

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estava absolutamente enganado. Achei que não ia resolver isso aí tão cedo. Estava frustrado.

Hamilton Octavio de Souza – O jogador de futebol precisa ter um empresário ou ele pode administrar a própria carreira?Deve.

Hamilton Octavio de Souza – Deve? Então, por que a maioria hoje está com empresário?Porque são ignorantes, a maior parte não sabe es-crever o nome. É o símbolo do nosso sistema edu-cacional. Nós temos que mexer no sistema educa-cional brasileiro para criarmos uma nova nação.

Renato Pompeu – Você acha que a mídia esportiva podia ter um repertório educativo? Ela tem que se educar também.

Renato Pompeu – No quê?Ela tem que saber qual o lugar dela. Não só a es-portiva, a mídia em geral tem que reconhecer o seu próprio papel. O que você tem de educativo na televisão, por exemplo? Não tem nada. Que compromisso ela tem com a nação? Nenhum. Ela só explora a capacidade de consumo dessa nação. Está pouco se lixando se o povo passa fome, está pouco se lixando se está se matando, só explora o fato de forma absurdamente espetacular.

Renato Pompeu – E a mídia esportiva?A mídia esportiva é pior ainda. Não tem compro-misso com nada. Falar de futebol é a coisa mais fácil do mundo, não leva a nada. É a mesma coi-sa que falar do papagaio.

Lúcia Rodrigues – Hoje, quem você acha que se destaca no cenário da mídia esportiva por ter um posicionamento político diferente do que está aí?Alguns, mas a minoria.

Lúcia Rodrigues – Quem exatamente?O Juca [Kfouri], por exemplo. Mas é voz única, não dá para você contaminar assim. Na verda-de, a grande questão é o processo ideológico do-minante. Isso é massacrante, cara. Isso é de uma sujeira, é arrepiante. Um cara que ganha salá-rio mínimo sai comprando não sei o que de um lugar só porque foi vendido na televisão. Pelo amor de Deus, isso é massacrante. É manipular a ignorância.

Lúcia Rodrigues – Mas é difícil romper com essa situação, com esse sistema ideológico que é hegemônico.Só com a revolução.

Lúcia Rodrigues – E aí, como fazer?Vamos para Cuba. Faremos Cuba aqui um dia. O que o governo Lula fez até hoje? É mais ou me-nos isso. Não pôde fazer mais. Você vai para o Nordeste, é um outro mundo hoje.

Lúcia Rodrigues – Mas você não acha que tem um caráter assistencialista, por exemplo,

o Bolsa Família e alguns programas do governo Lula que são vistos pelos nordestinos como um avanço?Esse discurso é velho. Todo ser humano tem direi-tos. Tem direito a comer, tem direito a ter saúde, tem direito a ter educação. Isso é assistencialismo? É?

Lúcia Rodrigues – Mas não dá para comparar com a Revolução Cubana.Sim, claro que não. Mas é assistencialismo você oferecer isso? Roupa para vestir, água para beber, você considera isso assistencialismo? Isso é um direito. Num país como o nosso, onde tem tantas pessoas passando fome, é um absurdo [chamar isso de assistencialismo]. Isso não é assistencia-lismo não, isso é obrigação. É bobo esse discurso, eu acho bobo demais, é muito simplista. É obri-gação do Estado cuidar de todo cidadão. Se você não oferece o básico para ele criar condições de sobrevivência pessoal, dê tudo para ele.

Otávio Nagoya – Sócrates, você acha que é possível uma revolução através do Estado, através da figura de um presidente?Não, a revolução no sentido pleno da palavra, não. Mas você pode revolucionar, transformar o seu país. O Brasil, hoje, é muito melhor do que era há dez anos. Hoje o Brasil virou gente, é respei-tado. Nós não éramos nada dez anos atrás. Ago-ra, somos uma nação, uma nação que tem atitu-de, que não compra, que não engole aquilo que vem mastigado, tem uma atitude. Que é o que to-dos nós sonhávamos quando eu nasci.

Bárbara Mengardo – Qual você acha que é o papel do futebol, hoje, no Brasil?Futebol é a cara do Brasil. O futebol chegou no Brasil com a aristocracia. Se tornou popular por quê? Porque tem uma identidade com a cultura brasileira. Futebol tem aquilo que nós somos: li-berdade, criatividade, alegria, arte e até um deter-

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minado grau de irresponsabilidade, de insolência, que o brasileiro tem. Então, é a nossa identidade cultural e a nossa linguagem. Não tenho dúvida de que a linguagem do futebol é aquela que man-tém viva a estrutura de nossa nação com tantas culturas distintas, com particularidades culturais distintas, do Sul, do Nordeste, do Norte. Então, o futebol é a nossa cara. É por isso que teve tanta reação contra a convocação do Dunga, porque ele está abrindo mão de bons nomes. Se ele não levar o Neymar, se ele não levar o Ronaldinho Gaúcho, se ele não levar o Ganso, se ele não levar o Alex, está abrindo mão do que nós somos. Não adian-ta, nós não vamos ser organizados nunca. É por isso que o melhor país do mundo é aqui.

Hamilton Octavio de Souza – Você não concordou com essa convocação? Uma porcaria, é claro. Abriu mão do que você é. Se eu vivo de emoção, vou ser pragmático?

Hamilton Octavio de Souz – Um time burocrático.Eu vou ser pragmático se eu vivo de emoção, se eu vivo de paixão, vivo de amor? É abrir mão da vida. É uma opção pessoal do Dunga, mas não tem nada a ver com o Brasil, com a nação brasileira.

Lúcia Rodrigues – Você concorda com que o Dunga seja técnico da seleção brasileira?Isso é um problema burocrático, ele escolhe quem ele quiser. Nós estamos falando de filosofia. Quem somos nós, brasileiros? Somos completamente di-ferentes do que foi escolhido para a seleção bra-sileira. É isso que é importante.

Gabriela Moncau – O que você acha do Brasil sediar a Copa em 2014 e as Olimpíadas em 2016?Eu acho uma puta oportunidade, mas que va-mos perder.

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Gabriela Moncau – Por quê?Porque somos incompetentes. Vamos dar na mão de malandro o dinheiro público, vamos fazer mal feito. Se a gente fizesse bem feito, esse país se tor-naria a grande referência do milênio.

Hamilton Octavio de Souza – Por que você suspeita disto?Se você colocar o Dom Corleone como chefe do departamento de polícia de Nova York, que você espera?

Hamilton Octavio de Souza – Você acha que caminha por aí mesmo?Não caminha não, vai ser. E nós vamos pagar a conta, e muita conta.

Renato Pompeu – O problema maior vai ser o dinheiro que o país vai perder ou a perda de prestígio?O problema maior vai ser o prestígio. Nós che-gamos num ponto de decolagem, e nós podemos perder isso. Podemos abortar essa decolagem.

Lúcia Rodrigues – Eu queria retomar um pouquinho a questão da escalação da seleção brasileira. Queria que você falasse como é que você viu a não convocação do Ganso. O Ganso é o maior jogador que este país já fez nos últimos 20 anos.

Lúcia Rodrigues – É gênio?Sem dúvida. Não levar o Ganso é de uma igno-rância absurda.

Otávio Nagoya – Você tem uma escalação na cabeça de quem chamaria?Tem um monte de gente que eu chamaria. Alex, Ro-naldinho Gaúcho, Ganso, Adriano também. Porque, se o Luís Fabiano machucar, não tem outro cara. Será que o Grafite vai fazer gol na seleção?

Lúcia Rodrigues – Por que você acha que o Grafite foi convocado?Não sei. Pergunte à Branca de Neve.

Lúcia Rodrigues – Gilberto Silva, você levaria?Gilberto até levaria. Na verdade, não levaria os outros. Vou levar duzentos volantes?

Lúcia Rodrigues – O esquema do Dunga é um esquema ruim? Um esquema muito retranqueiro?Não, não. O time brasileiro até que é bom. O gran-de problema é simples. Nós temos que pensar na aculturação brasileira. A discussão minha é essa.

Lúcia Rodrigues – Como é que você classificaria o que aconteceu na Copa do Mundo de 1982, em que havia um time formado por gênios, apesar de ter ficado registrado...Não vale nada ganhar. Qual a importância de ganhar?

Lúcia Rodrigues – Num país como o Brasil,

isso é importante.Não é, é ideologia isso aí. O importante é ser fe-liz. Ganhar não vale nada. Por que o mesmo país que você diz que defende que ganhar é impor-tante mete pau no Gerson quando ele diz que o importante é levar vantagem em tudo? Por que o mesmo país, o mesmo povo, a mesma ideologia diz que levar vantagem em tudo é ruim e ganhar é bom no futebol?

Lúcia Rodrigues – Sim, mas por que as pessoas vão no estádio de futebol, e, quando o time perde, saem e chegam às raias de uma assassinar a outra? Se não fosse importante a vitória, se a derrota não tivesse aquele peso significativo... Não, você está enganada. Me diga um jogo do Santos neste ano que teve briga?

Lúcia Rodrigues – Não teve.Por quê?

Lúcia Rodrigues – Porque é futebol arte?Espetáculo. O nego vai no campo para ver espe-táculo. Quando não tem espetáculo, aquilo que é mostrado em campo é transferido como cultura, como informação para dentro da sociedade. Se você se agride lá embaixo, você estimula a agres-são lá fora. Quer dizer, é um exemplo para a so-ciedade. Mas, se você mostra a arte, essa socieda-de vive de arte. A diferença é brutal.

Lúcia Rodrigues – Você compararia o time dos

Santos de hoje com o time do Santos do Pelé?Não, compararia com a seleção brasileira de 82.

Renato Pompeu – O importante não é ganhar...Espetáculo, o futebol é arte. Alguém vai no Lou-vre para comprar a Monalisa? O que aqueles mi-lhões de pessoas vão fazer lá? Vão vê-la.

Renato Pompeu – Estou dizendo que eu estou te entendendo. E eu queria, para ficar mais claro, não para você, mas para a Lúcia e outros, explicar que a seleção da Alemanha que foi campeã na Copa de 54 só é lembrada na Alemanha. A seleção da Hungria é lembrada no mundo inteiro. A seleção italiana que ganhou a Copa de 82 só é lembrada na Itália. A seleção brasileira, que não chegou nem às semifinais, é lembrada no mundo inteiro, certo? A Alemanha que ganhou a Copa de 74 só é lembrada na Alemanha. A seleção que é lembrada no mundo inteiro é a da Holanda. Então, isso esclarece o que o Sócrates quis dizer, que o importante não é ganhar.

Otávio Nagoya – E a Copa de 94?É um orgasmo com a mulher que você não gosta.

Hamilton Octavio de Souza – Tem várias perguntas no twitter, pois o pessoal está sabendo que você está aqui.

Olde Fernandes (via TWITTER) – O que você acha dos jogadores fazerem patrocínio e comercial para cerveja?Não tenho nada contra. Eu bebo cerveja. Hoje eu não bebo mais, bebo. Aliás, está faltando vinho nesta mesa aqui.

Felipe Gumpia (via TWITTER) – Você acha que o Ronaldo deve se aposentar?Não sei se deve se aposentar, mas deveria se cui-dar mais para não sofrer. Não tem necessidade de se expor tanto.

Otávio Nagoya – Sócrates, você faria uma propaganda?De cerveja? Claro. Isso é de uma hipocrisia absur-da, todo mundo bebe cerveja, por que não pode? Ninguém vai beber por causa da propaganda, nem fumar. Você vira fumante por causa do convívio social, não por causa da propaganda. Eu sou con-tra, por exemplo, propaganda de remédio, pois você estimula a auto-medicação. Isso eu não fa-ria. Mas a auto-medicação em cerveja é boa. Não tem outra contra-indicação que não seja o álcool.

Otávio Nagoya – Qual a relação dentro dos clubes com essa questão de fumar, tomar cerveja? Tinha esses hábitos quando você jogava?Sim, sim, fumo desde moleque. Ah, todo ex-fu-mante é chato. Na verdade, eu parei de fumar em 82 por opção pessoal, porque eu queria aumen-tar a minha massa muscular. Eu aumentei seis quilos de massa muscular, de janeiro a junho,

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para a Copa. Foi opção pessoal, fiz o cálculo do que eu precisava, queria fazer uma puta Copa.

Otávio Nagoya – Depois voltou a fumar?Não, na verdade eu parei de fumar por 20 dias e depois fiquei segurando devargazinho. Fiquei fu-mando pouco, mas...

Otávio Nagoya – Mas e se você fosse obrigado... se te dissessem que só iria para a Copa se parasse de fumar?Isso é uma agressão. Isso é uma agressão a qual-quer um de nós, ninguém pode fazer isso com a gente. Ninguém é obrigado a nada. Não acei-te nenhum regime assim, por favor. Nunca acei-te nenhuma opressão desse tipo.

Hamilton Octavio de Souza – Você está exercendo a medicina atualmente?Não diretamente. Estou fazendo consultoria em alguns projetos esporádicos. Estou fazendo mais jornalismo, literatura, política.

Bárbara Mengardo – Uma das coisas que se ouve muito das pessoas que conheceram, que se envolveram com o futebol, é: “ah, time era o de não sei quando, porque aquela época é que tinha futebol”. Você é uma dessas pessoas? O que você acha do futebol atualmente?Eu assisto. Jogo do Santos eu paro para assistir. Eu gosto de espetáculo, eu gosto de arte.

Otávio Nagoya – Só o Santos?Só o Santos.

Lúcia Rodrigues – E por que você acha que o Santos conseguiu reunir esse time de futebol arte hoje, no século 21?Acidente. Um monte de moleque bom de bola junto, ninguém atrapalha, só dá nisso. O dia que alguém começar a atrapalhar, ele acaba.

Lúcia Rodrigues – O técnico você acha que não atrapalha? Na final do Paulista, ele....Tentou atrapalhar. Está tentando atrapalhar.

Otávio Nagoya – O que você achou da cena do Ganso não querendo sair do jogo?O Ganso foi genial. Ele foi genial, estava vendo o jogo. O técnico, não.

Otávio Nagoya – E manteve o jogo inteiro no pé dele, né?Foi só ele que jogou o segundo tempo. Como vai tirar um cara desses?

Paulo Reina – Sócrates, você acha que o Santos é capaz de estimular o futebol arte no Brasil inteiro ou isso vai durar até eles serem vendidos?Está estimulando pontualmente. O Santos só está contaminando os times que ele está enfrentando.

Não dá para contaminar, pois a ideologia não é essa. O Santos está fora de esquadro, é como a De-mocracia Corinthiana. Ele não vai contaminar por-ra nenhuma, contamina só no jogo. Até o Palmei-ras jogou bem contra o Santos, todo mundo está jogando bonito pelo Santos. Porque o Santos está contaminando o time contra o qual joga. Mas isso não vai ser estendido ao resto não. Não tem nem filosofia, nem ideologia, nem jogador para isso.

Gabriela Moncau – Aliás, seria legal se você contasse um pouco da sua experiência na seleção da Copa de 82. Tem alguma história? Como eram as concentrações? Bem mais tranquilo do que hoje?Tranquilo? Era uma prisão. Tem várias histórias, vou lembrar algumas que eu cito regularmente. Uma delas é do Juninho (ou Julinho??) Fonseca. Ele era reserva do Oscar, era um brincalhão. E eu passei a chamá-lo de filósofo depois dessa fra-se. Terminado o jogo contra a Itália, por azar, o nosso ônibus ficou atrás do ônibus italiano. Não tinha como sair, tinha que esperar eles saírem. Eles fazendo uma puta festa e nós todos dentro do ônibus. Silêncio sepulcral, e aí o Juninho (ou Julinho??) vira, depois de algum tempo, e fala assim: “Gente, isso foi um sonho, o jogo é ama-nhã”. É genial. É o que todo brasileiro gostaria que fosse verdade. Todo brasileiro gostaria que fosse verdade. “O jogo é amanhã, isso foi um so-nho ruim, um pesadelo”.

Iuri Bauler (via TWITTER) – O que você acha das punições de falta, do manual esportivo, das brigas e das comemorações em campo? Não é muito “bom mocismo”?Isso aí é babaquice. Na verdade, isso só existe para evitar manifestação política, só isso. Eles proibiram porque alguém poderia mostrar lá: “sou a favor do Fidel Castro” ou do Hugo Chávez, ou alguma coi-sa assim. Então, eles proibiram tudo. O objetivo é a proibição de manifestação política de algum jo-gador, porque ele está no centro do palco e o mun-do todo está vendo, principalmente numa Copa do Mundo. Por isso que eu usava aquela tiara lá. Fran Narruda (via TWITTER) – Qual time você acha que tem chance de levar essa Copa?Todos. É uma feira do futebol, qualquer um pode ganhar. Claro que vai ganhar quem tem mais po-der. Você acha que, sei lá, a Coreia, vai ter chan-ce de ganhar a Copa do Mundo?

Lúcia Rodrigues – Poder político ou poder futebolístico?Poder político, claro. Político-econômico. Então, vai sair aquilo de sempre, Alemanha, Brasil, Ar-gentina, Itália...

Hamilton Octavio de Souza – Espanha.Não, Espanha não. Tem o melhor time, mas não ganha não. Tomara que ganhe. Tomara. Mas eu acho que dá Argentina. Se eles montarem um time bom para o Messi, vai ser difícil segurar.

Hamilton Octavio de Souza – O Messi...O Messi está jogando muito, se ele jogar a mes-ma coisa na Copa, vixe...

Kyra Piscitelli – Você acha que o Ganso fica muito tempo ainda aqui no Brasil?Se eu fosse o presidente do Santos, vendia os ou-tros dez.

Lúcia Rodrigues – Ele, você manteria?É lógico, seria melhor fazer um time novo. Vou vender o Michelangelo?

Wagner Nabuco – Você acha o Ganso o melhor jogador do Brasil?Disparado.

Gabriela Moncau – Do mundo?Do mundo. Disparado. Não tem nenhum jogador como ele, hoje.

Wagner Nabuco – É craque mesmo?É, sobra. E é moleque ainda, você imagina da-qui uns quatro anos. É jogador para montar time todo ano. Vende os outros dez, os outros pode vender à vontade.

Wagner Nabuco – É ousado?Ele é o Michelangelo, ele vai fazer duzentas Pietá.

Kyra Piscitelli: – Sócrates, a Tatiana Merlino, que é editora-adjunta da Caros Amigos e não pôde vir hoje, mandou uma pergunta. Quando as pessoas falam que o centenário do Corinthians é mais importante do que a Copa do Mundo, o que você acha?O Corinthians é mais importante que a Copa do Mundo, o centenário não é nada. Ué, é número. Importa quantos anos eu tenho? Importa quem sou eu, caramba. Bom ou ruim, importa quem sou eu, não quantos anos eu tenho.

Kyra Piscitelli – Mas isso dá mídia, ajuda o Corinthians.Mas isso aí é outra história, é para vender produ-to. Estou respondendo à pergunta dela.

Wagner Nabuco – Então, você acha mesmo o Corinthians mais importante do que a Copa do Mundo?Sim, claro. Copa do Mundo não tem cara, é uma feira. É a mesma coisa que você compa-rar a feira de automóveis de Frankfurt com a Ferrari.

“O futebol é arte. Alguém vai no Louvre para comprar a Monalisa?”

“O Corinthians é mais importante que a Copa do Mundo”

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Dez annos depois, estou retomando um typo de soneto polystrophico (mais pro-priamente palistrophico ou palinstrophi-co) que padronizei em 2000, aperfeiçoan-do uma idéa de Paulo Henriques Britto e fixando-lhe um eschema metrico-rimatico. Naquella decada, muitas outras coisas es-tavam indefinidas, alem das formas poeti-cas: a era FHC, que sucateava e loteava o paiz a preço de republica de banana, vivia o apogeu da globalização e do dicto “ne-oliberalismo”, que ja poderia ser chamado de “desenvolvimento insustentavel”. E essa plethora especulativa ja contaminava a mi-dia com a praga da estatistica e sua dicta-dura dos numeros. Desde então, tudo tem que ter graphicos e indices, um sacco para o leitor commum, na visão do qual só ha dois focos de attracção na midia: o mundo-cão real, saturado de calamidade e crimi-nalidade, e o mundo-vão da phantasia, po-

voado de celebridades pseudoglamourosas. Agora o dilemma da midia está em sahir da frigideira estatistica para cahir no fogo das vaidades ou do tiroteio propriamente dic-to. Acho que a occupação desse vacuo de-pende mais do cyberespaço que dos cader-nos impressos ou das grades audiovisuaes. O mundo-zão virtual, para o bem ou para o mal, é mais democratico e immanipula-vel que o mundo-vão ou o mundo-cão. Ou será que não? Emquanto uma nova theo-ria da conspiração não revela que a virtua-lidade não passa de mais uma dictadura do Systema, resta aos poetas o consolo de dis-por dum universo bem mais populoso que o publico das tiragens marginaes. Assim, ao menos, a gente se illude achando que poe-sia pode ter indice de audiencia maior que um traço...

porca miséria!Glauco Mattoso

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

Eduardo Matarazzo Suplicy

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Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

MÁ THEMATICA [SONETO 3162]

“Cahiu a producção industrial...”“E as vendas no commercio...” “E coisa e tal...”

Por cento a mais p’ra la, por cento a menos p’ra ca... Mas essa midia não se toca que a gente quer saber de outros terrenos?

Por numeros somente se interessaquem seja economista ou empresario!Ao publico em geral, noticiario,de facto, são os factos, ora essa!

Eu quero assumptos, grandes ou pequenos, e não essa estatistica! Me choca o escandalo! Amo o crime, os nus obscenos!

Da tela, emfim, do radio, ou do jornal,espero o que é banal: sensacional!

Em maio último, juntamente com o bispo Zephania Kameeta e a dra. Cláudia Haarmann, da Co-alizão da Namíbia por uma Renda Básica, participei do 2º Congresso Cristão Ecumênico, em Munique, Alema-nha. Perante mais de mil pessoas, discorremos sobre o tema “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. O bispo Kameeta fez uma entusiasmada e comovente exposi-ção sobre a experiência pioneira de uma Renda Bási-ca (RB) para todos os mil habitantes de Otjivero, vila rural na Namíbia, a 100 km da capital, Windhoek. A partir da contribuição de Sindicatos de Trabalhadores, de igrejas alemãs e de outras contribuições voluntá-rias doadas por membros da Coalizão, desde janeiro de 2008, paga-se cem dólares da Namíbia – equivalentes a 10 euros ou 12 dólares norte-americanos – a todos os seus habitantes.

Kameeta observou que, antes da introdução da Renda Básica, aquela vila era caracterizada por uma situação de fome aguda. Ali em Otjivero, algo mudou dramaticamente, de forma a lembrar o milagre bíbli-co, quando Jesus possibilitou que todos se alimentas-sem com cinco pães e dois peixes. Com a RB, passamos a ter uma compreensão diferente do milagre: a repar-tição do pão incondicionalmente.

O milagre não está na aritmética de se di-vidir cinco filões de pão entre cinco mil pessoas, mas de você compartilhar o pão, repartir junto. Assim, o povo, ao participar unido, começa a se abrir e compar-tilhar o que tem. As pessoas começam a contribuir e é assim que acontece o milagre da multiplicação.

Após dois anos da instituição da RB, a pobreza em Otjivero diminuiu de 76% para 16%. O grau de nu-trição e da presença das crianças nas escolas melho-rou significativamente. A taxa de desistência da escola caiu de 40% em 2007 para 0%, em novembro de 2008. A taxa de criminalidade diminuiu 42%.

O bispo Kameeta apresentará os resultados completos dessa experiência no XIII Congresso Inter-nacional da Basic Income Earth Network (Rede Mun-dial da Renda Básica) que se realizará na FEA-USP, São Paulo, em 30 de junho, 1º e 2 de julho deste ano. Infor-mações adicionais podem ser obtidas no sítio eletrôni-co: http://www.bien2010brasil.com.

Resultado da expeRiência da Renda Básica de

Cidadania em Otjivero, na Namíbia

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— Então, cara, não vai entregar nomes e en-dereços de seus camaradas no Partido Comunista?

Vladimir Herzog havia sido torturado horas no DOI-CODI de São Paulo. Ao ser intimado a prestar depoimento, a 24 de outubro de 1975, não vivia clandestino, morava em endereço fixo, trabalhava como jornalista, era casado e pai de dois filhos. Ao ser convocado para ir à polícia, imaginou que fica-ria ali tempo suficiente para prestar esclarecimen-tos. Retornaria para dormir em casa. Agora, tinha os pulsos marcados por fios de corrente elétrica e lesões provocadas pelos choques na uretra, no ânus e sob as unhas.

— Já disse que não estou ligado a nenhum partido – insistiu Vlado. — Tenho formação de es-querda, sou contra a ditadura, mas não exerço mi-litância.

— Você não tem escolha, cara! Ou abre o bico ou te suicidamos. Se quer bancar o herói, vai se dar mal.

— Quem vai se dar mal são vocês. Mor-rer sei que vou mesmo, um dia, como todo mun-do. Mas vocês, torturadores, assassinos, morrerão execrados. Nenhuma ditadura é eterna. Quando o Brasil retornar à democracia, terão de prestar con-tas do assassinato de Rubens Paiva, do martírio de Frei Tito, e de tantos desaparecimentos e elimina-ções extrajudiciais.

— Você acredita mesmo nisso? Deixa de ser trouxa, cara. Antes que a democracia volte, os ge-nerais farão uma lei nos eximindo de qualquer res-ponsabilidade. Uma anistia geral e irrestrita. Por-

que, no Brasil, oficiais superiores são inimputáveis. Então, ninguém vai poder apurar nada. Se comba-temos a subversão do nosso jeito, é para defender o Estado. A lei somos nós. Nós decidimos o que é certo ou errado.

— Engano seu. O futuro não esquece. Os crimes dos nazistas foram investigados e penaliza-dos ao findar a Segunda Guerra Mundial. Enquan-to houver um carrasco nazista refugiado mundo afora, ele será procurado e, capturado, sancionado. Tortura e extermínio extrajudicial são crimes de le-sa-humanidade, imprescritíveis.

— Imprescritíveis na sua cabeça, cara. Aqui no Brasil a coisa é diferente. Os militares são intocá-veis. Quem se atreve a desafiar os generais? Eles estão acima da lei. E nós, que sujamos as mãos sob ordens deles, temos costas largas.

— Posso sair morto daqui, suicidado por vocês, a exemplo de tantos que passaram pelos porões da ditadura, como Virgílio Gomes da Silva. Mas uma coisa é certa: apesar da venda nos olhos, a Justica não é cega. Militares não sentam nas pol-tronas togadas do Supremo Tribunal Federal. Um dia esta corte haverá de reconhecer que responsá-veis por crimes da ditadura não podem ser anistia-dos. Só merece anistia quem, primeiro, foi aponta-do como criminoso e devidamente castigado.

— Você, cara, como todo esquerdista, é um so-nhador. Acha que, se um dia, eu fosse passar ver-gonha de fazer o que faço estaria aqui sujando as mãos de sangue? Fique tranquilo, a gente vai fazer uma lei pra passar a borracha em todo esse período

de exceção. Vocês também não serão punidos.— Como não seremos? Nós já es-

tamos sendo severamente punidos por lutar pela volta da democracia. Punidos com prisão, torturas, morte, desaparecimento, exílio, censura. Mas te-nho confiança de que, cedo ou tarde, se fará jus-tiça no Brasil.

— Cara, você é um idealista! Acha que neste país tem juiz com culhão para enfrentar os militares? Se um dia uma dessas instituições babacas que fi-cam por aí defendendo os direitos humanos, como a OAB e a CNBB, exigirem apuração, vão quebrar a cara. No Brasil a lei da força sempre falou mais alto que a força da lei. Não haverá juiz com coragem de nos levar à barra dos tribunais. Aqui, pra quem está por cima da carne seca, tudo termina em pizza. Dá-se um jeitinho. No Brasil, o poder sempre soube fa-zer omelete sem quebrar os ovos.

Vladimir Herzog foi suicidado no dia 25 de outubro de 1975. Tinha 38 anos. Segundo versão do Exército, enforcou-se com o próprio cinto. Re-gras do DOI-CODI determinavam que nenhum pri-sioneiro podia ser recolhido à cela de posse de cin-to, gravata e cadarço de sapatos.

No dia 30 de abril de 2010, o STF decretou a se-gunda morte de Vladimir Herzog ao absolver, por 7 votos a 2, os crimes hediondos cometidos pela di-tadura militar brasileira ao longo de 21 anos.

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Frei Betto

HERZOG, o último diálogo

Frei Betto é escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Roc-co), entre outros livros. http://freibetto.org.br

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caros amigos junho 201020

Cesar Cardoso

A política exterior do governo Lula é uma das políticas que apresenta, de forma mais clara, elementos de ruptura em relação àquelas do governo FHC. Este, depois de desenvolver uma po-lítica de aliança estreita e privilegiada com os EUA, encaminhava o Brasil e toda a América Latina para que fossem transformados numa imensa Área de Livre Comércio. Competia ao Brasil e aos EUA con-cretizar a fase final da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que havia sido proposta pelo go-verno norte-americano na reunião realizada no Canadá em 2001, em que FHC votou a favor, ten-do Hugo Chávez como seu único opositor.

A mudança de governo no Brasil salvou o país e o continente do destino atual do México, por exemplo, que, por concentrar 90% do seu comércio exterior – como uma das conse-quências negativas do Tratado de Livre Comércio que assinou com os EUA, centro da crise atual –, sofre profunda recessão, o que fez sua economia retroceder 7% no ano passado. E fez com que o país voltasse a pedir recursos para o FMI, com a correspondente assinatura de uma nova Carta de Intenções – cujas intenções foram bem conheci-das por nós durante o governo FHC.

Para se ter ideia das mudanças pro-fundas na política exterior e suas consequências no plano interno, imaginem se Alckmin estivesse dirigindo o Brasil, com sua visão – que coincide com a do Serra – segundo a qual o Brasil “perde

Emir Sader

Emir Sader é cientista político.

Se Cesar Cardoso fosse Cesar Cardoso, seria escri-tor e teria um blog chamado PATAVINA’S (www.cesarcar.blogspot.com). Mas...

Galvon Buenos Aires, médium-volante da seleção argentina, revela

QUEM VAI GANHAR A

COPA!

A REINSERÇÃO do Brasil no mundo

Vamos lá, Brasil, todos juntos, mas em fila india-na, senão vira zona!

ABERTURA O destaque da festa é a seleção da Coreia do Sul

explicando como diferenciar seus jogadores dos da Coreia do Norte. E vice-versa.

Surpresa: Neimar e Ganso estão na Copa! Um grupo separatista sérvio sequestrou os dois, levou-os pra lá e, pra libertá-los, exige a devolução de Montenegro, do Kosovo e do imposto de renda do ano passado.

OITAVAS DE FINALNo intervalo do jogo com a Argentina, a seleção

grega invade o vestiário adversário e bate a cartei-ra de Maradona. É que com a crise grega o FMI em-bolsou a grana que era pra pagar o hotel.

A FIFA permite que os atletas atuem de terno e boné, dando mais espaço pras seleções venderem publicidade. É permitido também que os apitos dos juízes toquem jingles ao serem soprados.

QUARTAS DE FINALCamarões, a grande surpresa da Copa, é elimi-

nado. Seus três craques – Mukeka, Bobó e Caruru – não passam no exame antidoping porque estão com o prazo de validade vencido.

SEMIFINALPor fim, Neimar e Ganso são libertados e jogam!

Mas é pela seleção de Honduras. Eles comem a bola e desclassificam o Brasil.

Na outra partida, Eslovênia e Eslováquia se jun-tam, formam a Eslovaquênia e derrotam a Alema-nha. Em represália, o papa invade o campo e exco-munga os eslovaquênios.

FINALA Nike decide que a final será EUA x Irã, pra dar

mais emoção e renda. Mas logo aos dez minutos um zagueiro iraniano acerta uma bolada nas torres gê-meas da mulher do Obama, que assiste ao jogo atrás do gol. Os americanos protestam, o tumulto se ge-neraliza e tem início a Terceira Guerra Mundial.

oportunidades” não tendo os países do centro do capitalismo – em primeiro lugar os EUA – como sócios privilegiados. Estaríamos de novo, como estivemos com FHC, mergulhados numa profun-da e prolongada crise, da última das quais só sa-ímos no governo Lula.

O Brasil passou a privilegiar as alian-ças com os países latinoamericanos e com o Sul do mundo. Com essa reinserção, pudemos resistir muito melhor à crise, a partir das demandas asiá-ticas – em especial da China, que se mantiveram, transformando esse país no primeiro parceiro co-mercial com o Brasil, deslocando os EUA para o segundo lugar – e da intensificação do comércio com os países latino-americanos.

Assumindo a luta por um mundo multipolar, o Brasil se soma às propostas de negociação pa-cífica dos conflitos – seja na Palestina, na Co-lômbia ou no Irã –, de contraposição a um mun-do sob hegemonia imperial de uma única grande potência, ao que se trata de contrapor um mun-do multipolar.

O Brasil mudou seu lugar no mundo, graças a uma visão do mundo como resultado da globalização, que o dividiu entre o Norte globa-lizador e o Sul globalizado. Uma política exte-rior soberana é a condição da soberania na polí-tica interna. Mudar o lugar do Brasil no mundo é mudar a natureza mesma do governo que a im-plementa.

SUGEStõES dE lEItURA

CONTEXTOS DA JUSTIÇARainer FostBoitempo Editorial

TERRA E TERRITÓRIO – A questão camponesa no capitalismoEliane Paulino e Rosemeire de AlmeidaEditora Expressão Popular

FORÇA DE TRABALHO E TECNOLOGIA NO BRASIL Marcio PochmannEditora Revan

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21junho 2010 caros amigos

Gilberto Felisberto Vasconcellos

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

Os tucanos carecem de informação linguís-tica, de sensibilidade estética e usam mal a língua. Prova disso é o péssimo mote publicitário da campa-nha de Serra: “o Brasil pode mais”.

O Brasil pode ou o Brasil podre? Ou senão: o Brasil mais podre com Serra? Com Serra o Brasil mais podre?Esse ato falho do inconsciente linguístico é o furo

do que seria o desastre de um futuro governo tucano.Língua é política. Tanto é que não se co-

nhece na história da humanidade um político mudo. As palavras governam o mundo.

O tucanismo, a linguagem antierótica da política, está menos para potência do que para a putrefação.

O capitalismo do PSDB é contra a democra-cia, pois o lucro é sua essência. Entre o lucro e a de-mocracia, a opção deles é pelos lucros.

A imprensa não noticia nada sobre o Zé Maria do PSTU. Sacanagem. A ditadura acabou na casa de quem?

A imprensa o sabota porque ele é trotskista? É impressionante a desinformação no meio da es-

querda a respeito de Trotsky. Antes de tudo, a pala-vra trotskismo foi inventada pela corriola burocráti-ca de Stalin. Com o intuito de mostrar que havia um abismo entre Trotsky, Lenin, Marx e Engels.

A verdade é que Trotsky nunca reivindicou para si qualquer originalidade teórica, tampouco uma posição que fosse inteiramente distinta em re-lação aos clássicos marxistas, incluindo aí Rosa Lu-xemburgo.

Trotsky continua representando o marxismo de nosso tempo, porque ele pensou o imperialismo, o bu-rocratismo stalinista e a opressão do Terceiro Mundo.

Na década de 30, Trotsky revelou os la-ços entre Roosevelt, Hitler e Stalin. O poder do capital o queria morto, e quem fez esse serviço sujo foi Sta-lin, mandando dar uma machadada na cabeça do lí-der bolchevique exilado no México em 1940.

Stalin tinha pânico da inteligência de Trotsky por-

que este denunciou os burocratas da classe operária na URSS como os opressores dos operários.

Nos países capitalistas os dirigentes das grandes sindicais, originários da classe operária, odeiam Trotsky. É que a “aristocracia sindical” faz o jogo capitalista das multinacionais. A questão colo-cada por ele incomoda hoje mais do que nunca: como é feita a direção dos sindicatos e dos partidos dos as-salariados?

Afinal, quantos assalariados existem no mundo? Por que eles não se juntam? A direção po-lítica é fundamental porque não é inevitável o co-lapso fi nal do capitalismo por motivos puramen-te econômicos.

O capitalismo somente será destruído pela ação política, pelo partido, pela organização dos operários e oprimidos, isto é, pela luta de classes.

O Brasil MAIS PODRE com Serra

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caros amigos junho 201022

Fidel Castro

Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

Fazendo abstração dos problemas que hoje angustiam a espécie humana, nossa Pá-tria teve o privilégio de ser berço de um dos pen-sadores mais extraordinários que nasceu neste he-misfério: José Martí. A 19 de maio, completou-se o 115º aniversário de sua gloriosa morte.

Na véspera de sua morte em combate, escreveu a seu íntimo amigo Manuel Mercado: “... já estou todos os dias em perigo de dar minha vida por meu país e por meu dever de impedir a tempo, com a in-dependência de Cuba, que se estendam pelas An-tilhas os Estados Unidos e caiam, com essa força mais, sobre nossas terras da América.

De alguma forma, por puro azar, dois filhos da Espanha, graças a suas qualidades pes-soais, passaram a ter um papel relevante na Guer-ra Hispano-Norteamericana: o chefe das tropas es-panholas na fortificação de El Viso, que defendia o acesso a Santiago da altura de El Caney, um oficial que combateu até ser mortalmente ferido, causan-do aos famosos Rough Riders – cavaleiros duros, norte-americanos organizados pelo então tenente-coronel Theodore Roosevelt, que por causa do pre-cipitado desembarque desceram sem seus fogosos cavalos – mais de trezentas baixas, e o almirante que, cumprindo a estúpida ordem do governo es-panhol, partiu da baía de Santiago de Cuba com os fuzileiros navais a bordo, uma força seleta, da úni-ca maneira possível, que foi desfilar com cada na-vio, um a um, saindo pelo estreito canal de aces-so, tendo em frente a poderosa frota ianque, que com seus encouraçados em linha disparavam com os potentes canhões contra os navios espanhóis, de muito menor velocidade e blindagem. Logicamen-te, os navios espanhóis, suas dotações de combate e os fuzileiros navais foram afundados nas profun-das águas da fossa de Bartlett. Apenas um desses navios chegou a poucos metros da beira do abismo. Os sobreviventes daquela força foram presos pela esquadra dos Estados Unidos.

No ano de 1906, uma ignomínia adi-cional caiu sobre o comitê norueguês que outor-ga os prêmios Nobel, ao buscar ridículos pretex-tos para conceder essa honra a Theodore Roosevelt, eleito duas vezes presidente dos Estados Unidos, em 1901 e 1905.

A importânciA históricA

da morte de Martí

“O Homem que Nunca Existiu” é um clás-sico do cinema. Rodado nos anos 50, conta as peripécias de militares ingleses que – du-rante a Segunda Guerra - tentam despistar os serviços de inteligência nazistas, crian-do um falso soldado, com falsas informa-ções, sobre um falso desembarque dos alia-dos na Europa.

Filme delicioso, que assisti ao lado de meu pai no começo da década de 80. Naquela época – sem videocassete, DVDs ou downlo-ads na internet – a gente ficava torcendo pra aparecer filme bom na TV aberta.

“A Entrevista que Nunca Existiu” é, tam-bém, um clássico. Não do Cinema, mas do Jornalismo de esgoto que se pratica na cha-mada “grande imprensa” brasileira, nesse iní-cio do século XXI. Uma falsa entrevista, com falsas declarações, para comprovar uma tese (mais fajuta do que nota de três) a respeito dos índios no Brasil “naquela” revista...

Que revista? Advinhem?Mês passado, “Veja” publicou, entre as-

pas, declarações do respeitado antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. A “entrevista” entrou no meio de uma reportagem patéti-ca, intitulada “A farra da antropologia opor-tunista”. O texto era mais uma tentativa de atacar demarcações de terras indígenas. Até aí, tudo bem, é a posição da revista.Não fos-se um detalhe: Viveiros de Castro NÃO deu entrevista pra “Veja”.

Já vi muita gente reclamar por suas decla-rações terem sido “distorcidas” ou “tiradas do contexto”. Nesse caso, foi muito pior.

Algum gênio na “Veja” teve a idéia de ler (?) um artigo do antropólogo e “resumir” numa frase o pensamento dele. Só que a re-vista deu a entender que se tratava de uma declaração de Viveiros de Castro. E o mais grave: a frase entre aspas não tinha nada a ver com o pensamento do antropólogo.

A “Veja” joga fora, assim, a sua história – como já fez em dezenas de outros episódios. Aquela publicação, dirigida por Mino Carta e que (apesar de todas as limitações e cautelas) enfrentou a ditadura e denunciou até tortura nos anos 70, talvez fosse ilusão. Talvez, nun-ca tenha existido. Como o soldado do filme. E como a entrevista do antropólogo.

“A Entrevista que Nunca Existiu” gerou uma reação irada na internet.

Viveiros de Castro explicou que – de fato

– tinha sido procurado pela equipe de “Veja”, mas não quis dar entrevista: “Recusei-me a falar com eles, é meu direito, por não con-fiar na revista, achá-la de péssima qualida-de jornalística, e por abrigar um batalhão de colunistas da direita hidrófoba. Parece que foi em vão, já que isso não os impediu de falarem comigo”.

Essa declaração de Viveiros de Castro existiu! Foi dada ao blog “Escrevinhador”, mantido na internet por esse novo colunis-ta de Caros Amigos.

Dezenas de outros blogueiros e twitteiros também reagiram à arrogância de “Veja” – que agora se dá ao direito de entrevistar, na marra, até quem não foi (e não quer ser) en-trevistado.

Entre os twitteiros que reagiram à “Veja” está o jornalista Felipe Milanez. Ele traba-lhava na revista “National Geographic Bra-sil”, também editada pela Abril. Trabalha-va, eu disse.

Milanez (especializado em reportagens so-bre nações indígenas) escreveu em seu twitter a seguinte nota: Eduardo Viveiros de Castro achou um bom adjetivo pra definir a matéria da Veja, “repugnante”.

Pouco tempo depois, Milanez virou vaga – como a gente diz nas redações. Minha solida-riedade a ele! Sei o que é isso, passei por algo parecido na TV Globo, em 2006...

A Abril usou a guilhotina patronal contra a opinião de um funcionário. Os donos da im-prensa esquecem que, ao pagar o salário dos jornalistas, estão pagando apenas pela for-ça de trabalho. Não são donos de suas opini-ões. Ou são?

Sobre isso, o Luiz Carlos Azenha (vetera-no de muitas redações e blogueiro do ótimo “VioMundo”) costumava dizer, quando éra-mos colegas na Globo: “eles esquecem que compram apenas meus serviços. Se quise-rem comprar meu cérebro, vão ter que pa-gar muito mais”.

Cada vez que essa gente usa a guilhoti-na patronal, e corta a cabeça de um jorna-lista, faz com que dezenas de outros botem o tacape na cintura, e partam para o con-tra-ataque.

Nessa coluna, posso prometer, manterei o meu afiado.

tacapeRodrigo Vianna

Rodrigo Vianna é jornalista.

A entrevistA que nuncA existiu

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VERDEAMARELO é um ensaio fotográfico de uma cenografia urbana popular brasi-leira, periódica e efêmera preparada com cuidadosa antecedência, transforma - du-rante as copas do mundo - espaços públicos em sítios privilegiados de torcida e ce-lebração. Ruas, avenidas, praças e becos viram palcos mágicos e coloridos em verde, amarelo, azul e branco, onde explodem as paixões que devotamos ao futebol. Mani-festações festivas de criação e urbanidade, onde as rivalidades locais e estaduais dão lugar à “ PÁTRIA DE CHUTEIRAS” do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues. Realizo este trabalho desde 1986 na cidade do Rio de Janeiro e Estado de São Paulo.

ensaio SALOMON CYTRYNOWICZ

1. São Caetano do Sul, SP (1994) 2. Sambódromo, São Paulo (2002)3. Catumbi, Rio de Janeiro (2002) 4. Lapa, Rio de Janeiro (2002)

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ensaio SALOMON CYTRYNOWICZ

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5. São Caetano do Sul, SP (1998) 6. Tijuca, Rio de Janeiro (1986) 7. Humaitá, Rio de Janeiro (1998)

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caros amigos junho 2010 26

Ana Miranda

Veio a lume, recentemente, a excelen-te biografia de um dos personagens mais elevados da história religiosa brasileira, Cícero Romão Batis-ta. Escrita com maestria pelo biógrafo cearense Lira Neto, parece obra de ficção, tal a pungência, a irre-alidade e o sustenido nas fímbrias mais agudas dos acontecimentos. A sensação é de que somos trans-portados para um mundo celeste e infernal, como se caminhássemos naqueles penhascos da Divina co-média dantesca e a nossos pés estivessem os abis-mos da iniquidade humana: incompreensões, riva-lidades, ambições, traições, humilhações, opressão, violência, mas também amor e dádiva. Padre Cícero, figura historicamente envolta em profundas diver-gências, surge no livro como um ser humano muito próximo e nítido. Durante a leitura vamos apreen-dendo, nas palavras do texto, nas cartas reproduzi-das e mesmo nas fotos pessoais do guia espiritual – como a foto de sua mãe, da irmã, das beatas, dele mesmo com seu rosto sereno e olhar clarividente –, o seu temperamento cordial e afetuoso, mas combati-vo. Ali está sua origem, digna, humilde, sua educação e o florescer da religiosidade; também a escolha pe-los pobres e abandonados; sua visão ecológica avant la lettre, orientando os lavradores ao plantio de ár-vores, ou modos de sobrevivência durante as peno-sas secas; ali, seu modo de organizar a sociedade, sua sensibilidade política extrema; e sua tocante fragili-dade diante da morte. O amor que lhe devotam os se-guidores, interpretado às vezes como fanatismo, su-gere mais um sentimento alusivo a uma esperança latente. Foi Cícero quem deitou os olhos amorosos e guiou a gente da pequenina aldeia de Juazeiro, levou a região ao progresso e acabou arrastado ao cen-tro de terríveis convulsões sociais. Mas suas palavras mostram um conciliador, sempre tentando amainar os ânimos. Humilhado e incompreendido por supe-riores na hierarquia da Igreja, foi de uma habilidade espantosa, pois, enquanto obedecia as ordens, não se curvava, jamais abandonando seus “amiguinhos” e sua luta. Para conhecermos melhor não apenas o fenômeno do padre Cícero, mas também um peda-ço da história brasileira feito de sangue e ferro, te-mos essa biografia, dotada de uma força imaginati-va que nos faz reviver uma inesquecível história de obstinação e fé.

Ana Miranda é escritora.

Lira Neto, Padre CíCero

Havia um costume de lembrarmos o dia 13 de maio. Este ano, pou-cas vozes se manifestaram. Os movimentos sociais afrodescendentes berra-ram, mais algum pequeno artigo por ai e mais nada.

O “esquecimento deliberado” é também uma forma de esconder as formas mo-dernas de exploração e de humilhação que a burguesia impõe ao nosso povo.

Todos os anos a Policia Federal liberta milhares de trabalhadores subme-tidos a trabalho escravo. E o que mais chama atenção: essa prática acontece entre fazendas do chamado agronegócio moderno, perto do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília... Imaginem o que acontece lá nos grotões.

Usinas de pessoas bem pensantes e financiadores de campanhas eleitorais da cidade de Campos (RJ), também praticam. Em Unaí (MG), bem perto de Brasília, há alguns anos foram assassinados dois fiscais do Ministé-rio do Trabalho e mais o motorista que os acompanhava em diligência para apreender trabalho escravo. O mandante, identificado pela polícia, fazendei-ro “moderno”, em vez de parar na cadeia, virou prefeito. E seu partido “mo-derno” não impediu.

Há no Brasil mais de oito milhões de pessoas que se submetem a serem tra-balhadores domésticos nas casas de família. É a segunda maior categoria de trabalhadores. Está atrás apenas dos trabalhadores rurais, que são 16 milhões. A lei determina que todos tenham carteira assinada e a garantia de férias, 13.o salário, recolhimento de INSS para garantir a aposentadoria. Apenas 26% dos seus patrões, a classe média branquela das cidades cumprem a lei!

Muitos edifícios das nossas cidades persistem com a famosa discri-minação: elevador para os serviçais e elevador social! A maioria dos dormitó-rios planejados para os trabalhadores domésticos nos edifícios de luxo é me-nor do que o espaço da garagem para o automóvel.

São sinais de como a herança escravocrata ainda marca nossa sociedade. Por isso, talvez, a burguesia, e seu partido da imprensa golpista, não quer fa-lar do assunto, nem no dia 13 de maio.

Por essa razão, também seus representantes na Câmara dos Depu-tados escondem há sete anos o projeto de Lei PEC 438, que determina que to-das as fazendas com trabalho escravo devem ser desapropriadas e entregues para a reforma agrária. O projeto já foi aprovado pelo Senado (pasmem!!) em duas votações, mas dorme nas gavetas da Câmara. De fato, o sr. Michel Temer deve ter razão, não deve ser prioridade para os parlamentares um tema tão ir-relevante como a continuidade do trabalho escravo na sociedade brasileira.

Se você acha que isso é uma vergonha, escreva para os deputados, em es-pecial ao presidente da Câmara, perguntando por que ele esqueceu o projeto na gaveta. Para que pelo menos saibamos os nomes dos deputados que, como a senadora Kátia Abreu (Arena-TO), apoiam abertamente o trabalho escravo, já que, segundo ela, essa classificação é uma mera manipulação do Ministé-rio do Trabalho.

João Pedro Stedile

João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

A herança esCravoCratada sociedade brasileira

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27junho 2010 caros amigos

entrevista Walter lima Jr

Caros Amigos- Onde você nasceu e foi criado?Walter Lima Jr - Eu nasci em Niterói, sou de uma família nordestina que havia migrado para o Rio uns 10 ou 15 anos antes do meu nascimen-to. Minha mãe era alagoana, meu pai era baia-no. O pai dela tinha uma gráfica em Maceió, era uma família toda de músicos e o meu avô era um cara que imprimia partituras, ele fazia uns trabalhos muito bonitos. A família do meu pai tem um colégio em Niterói que até hoje existe, chama Maria Thereza, agora virou faculdade. Eu vivi às custas de uma doença crônica da minha mãe, que era asmática. Ela achava que era por causa do bairro, então eu saí da Ponta D’Areia para morar no centro, depois do centro para Ica-raí, depois para não sei onde. Enfim, nós mora-mos em Niterói inteira.

Como o cinema foi parar na sua vida?

Eu acho que começou desde a primeira vez que eu vi um filme. Eu me lembro que no momento que eu tomei conhecimento da ciência do cinema, era o cinema americano, era o cinema predominan-te que é até hoje. Eu estou falando da época da guerra, eu nasci em 1938.

Em pleno Estado Novo.A minha família era uma família que tinha tido problemas com o Estado Novo, tinha tios que ti-nham sido presos. Desde garoto vivi na época da guerra. Me lembro de blackouts, me lembro da ci-dade toda escura em Niterói. Me lembro da mi-nha mãe, de racionamento de trigo, eles faziam o pão em casa.

Mas você via filmes em casa? No cinema? Na rua? Filme em casa é coisa de agora, via filme no ci-nema. Eu ia num cinema chamado Cine Rio Bran-

co, que ficava na Rua da Praia [hoje chamada de Visconde de Rio Branco]. Mas o que eu gostava mesmo era ver filme de aventura. Filme de pira-ta e filme western eram os meus favoritos. Fazia cadernos, tomava nota, escolhia quem era o me-lhor, e no fim do ano eu dava um prêmio. O Rio de Janeiro eu vim a conhecer por causa de filme, indo atrás dos filmes que eu não tinha podido ver lá em Niterói. Eu ia aos cinemas, entrava em fil-me de 14 anos, mesmo com 12, 13 anos.

E o seus pais sabiam que você ia?Deus me livre, se eles soubessem disso eu me fer-rava. E ver duas vezes o mesmo filme podia, né? Hoje isso já não existe mais. Acabou, assim como acabaram os cinemas de rua em Niterói.É uma pena para quem ama o cinema, porque você pode ser arrebatado pelo filme. A pessoa pagou, ela tem o direito de ficar vendo o filme. Eu entro num

“Continuamos vivendo nesselatifúndio televisivo”Por Marcelo Salles Fotos: Fernanda Chaves

não restam dúvidas. Walter Lima Jr. é su-jeito que tem história pra contar. Aos 71 anos, lembra com clareza de fatos ocor-

ridos cinquenta anos atrás, como as gravações de Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme em que trabalhou como assistente de direção de Glau-ber Rocha. Conversar com Walter é como dar um passeio pela história do cinema brasileiro, e tam-bém pela história de duas cidades: Niterói, onde nasceu e viu os primeiros filmes, e o Rio de Ja-neiro, que conheceu indo atrás dos filmes que não estavam em cartaz em Niterói e onde esbar-rou com a turma com quem iria trabalhar: além de Glauber, Miguel Borges, Leon, Fernando Fer-reira, Kaká, entre outros.O passeio pelas ruas dessas cidades é o fio con-dutor para entender a história desse cineasta bra-sileiro, entusiasta da cultura cineclubista, que já realizou duas dezenas de filmes, entre eles o ino-vador A lira do delírio e o premiado A ostra e o vento, e que atualmente é professor da PUC-RJ e da Escola de Cinema Darcy Ribeiro - além de já ter dado aulas na Escola de Cinema de Cuba. A conversa-passeio é apenas entrecortada por críti-cas ao modelo televisivo brasileiro, que está “so-lapando nossas trincheiras culturais”, e pelas du-ras lembranças da ditadura civil-militar de 1964, que o deixou preso por 50 dias. Conversando com o professor Walter se aprende, com gosto, sobre cinema, história e política.

O cineasta Walter Lima Jr. integrou a geração do “cinema novo”.

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museu e vou ver um quadro, tem mais 800 quadros, porra, imagina? Eu tô interessado nesse quadro, e ficava ali vendo aquele quadro. Agora, quem entra no cinema para comer pipoca e tomar refrigeran-te, isso é uma outra raça. Mas quem gosta... Eu já vi filmes de ver três vezes seguidas e fiquei parado, entendeu? Nas três vezes chorava sem parar vendo o filme, pela beleza do filme, ficava impressionado. Eu me lembro que eu fui ver o Milagre em Milão, do Vittorio De Sica, não conseguia sair do cinema. Eu fui ver Ladrões de bicicleta, eu não conseguia sair do cinema. Foi a primeira vez que eu senti isso fortemente, eu fiquei tão emocionado com aquilo, eu me senti tão inteligente com aquilo. Eu percebi tudo aquilo ali, o que era o desemprego, o que era a relação do pai com o filho, tudo aquilo que às ve-zes eu sentia falta dentro da minha casa, na minha própria relação com o meu pai.

Você contou como foi sua vida na frente da tela, agora eu quero saber como foi a passagem para detrás da tela. Descobri no jornal que existia crítica de cinema, tinha uns malucos que também falavam sobre cinema. Em um determinado momento eu passei a freqüentar cineclubes, aí encontrei a minha turma. Essa mesma turma é com quem estou fazendo cinema. Conheci o Leon, conheci o David Neves, conheci o Kaká, no cineclube. Marcos Faria, Miguel Borges, daqui do Rio, né?

Qual cineclube você ia, algum específico?Vários. Tinha um cineclube da UME, União Me-tropolitana de Estudantes, chamava Grupo de Es-tudos Cinematográficos, tinha um outro cineclu-be que chamava Museu de Arte Cinematográfica, que foi onde conheci o Leon. Tinha um outro cha-mado CCC, Centro de Cultura Cinematográfica, onde conheci muita gente ligada à crítica. Tinha um aqui na Ebap, Escola Brasileira de Adminis-tração Pública, na Praia de Botafogo, onde co-nheci o Miguel Borges. Ali pela primeira vez eu vi o filme do David Lean, Desencanto, lindo. Exis-tia o cineclube da Faculdade de Filosofia, aí já era uma coisa mais requintada, passava filme mudo, e tinha um cara que tinha um rolo do Limite. Ele estava sempre prometendo que um dia exibiria, ele era uma pessoa célebre, lá vem ele com o rolo do Limite. Ele tinha conseguido convencer o Má-rio Peixoto [realizador do filme] a tirar de baixo da cama o Limite, porque isso foi uma epopéia; o Mário Peixoto pegou o filme, que era nitrato, ex-plosivo, e botou embaixo da cama. E foi morar lá numa ilha do Morcego, lá não sei onde em Angra dos Reis. E o Saulo Pereira de Melo, junto com o professor de física da escola, Plínio Sussekind Ro-cha, se aproximou do Mário, que era uma pessoa esquiva, e foi tirando um a um os rolos de baixo da cama do homem, até restaurarem o filme.

Há uma retomada disso, não é?Eu acho que quem começou a refazer o cineclube aqui no Rio fomos nós lá na Fundição Progresso. Quando houve a quebra da Embrafilme, os assis-tentes de cinema, as pessoas ligadas a cinema, to-

das passaram para a televisão. Então eu comecei a pensar o seguinte: quando a gente quiser reto-mar o cinema não vai ter equipe, não vai ter gen-te interessada em filme e cinema. Aí eu abri um curso de assistente de direção, e por causa dele eu montei um cineclube para eles. E esse cineclu-be foi se irradiando.

Como foi sua passagem pela Cinemateca do Museu de Arte Moderna?Fui assessor técnico, mas às vezes eu ficava in-ventando coisas. A Cinemateca estava em forma-ção e eu tinha feito crítica de cinema um tempão, então eu entrava nas distribuidoras para conse-guir fotografia de filme para publicar em jornal e acabava conhecendo o programador, não sei quem mais: “pô, que obras são aquelas ali que es-tão paradas?” “Ah, vai tudo queimar, aquilo tudo a gente vai vender para a fábrica de botão”. “Por-ra, vender para a fábrica de botão? Pô, tem Rio Vermelho, tem não sei o que, pô, vamos levar para a cinemateca”. Aí criei essa situação dentro da cinemateca, levei dezenas de filmes pra lá.

Você trabalhou durante festivais?No segundo festival eu já estava trabalhando lá, de cinema italiano. Todo dia tinha um programa, já pensou, cara? Oito meses de cinema italiano! Uma esmagadora programação mandada pela ci-nemateca de Milão, cinemateca de Bolonha. Dois meses de cinema mudo italiano, maravilhoso. De-pois, o cinema da época do Mussolini, as comédias, que eles chamavam de “telefone bianco”, todas as comédias tinham um telefone branco chique. De-pois, o neorrealismo, os filmes de quem era ligado ao Partidão, de cineastas que tinham participação política e que eram resistentes. Foi sensacional, cara, depois teve um do cinema francês que du-rou um ano. Foi graças ao diretor geral da cinema-teca francesa, Henry Langlois, que a cinemateca virou cinemateca. Eu tinha levado inocentemente um filme pra lá chamado Manon - anjo perverso, e esse filme tinha creditado ao realizador uma pe-cha de colaboracionista na época da invasão dos alemães na França, mas não era coisa nenhuma. O fato é que o filme era a única cópia existente no mundo. Quando o Langlois chegou, ele descobriu que existia aquela cópia com legenda e ele disse: “Eu entrego todo o acervo em troca dessa”, e le-vou. Aquela cópia quem levou para a cinemateca foi o papai aqui, eu que levei no braço.

E o pulo do gato para fazer filmes?O Fernando Ferreira era o meu chefe na cinema-teca, depois era um crítico de cinema do Globo. Aí o Fernando se meteu junto com um cara cha-mado não sei quem Bulhões, que era casado com a Glauce Rocha, atriz, e eles combinaram com ou-tras pessoas para fazer um filme. Estamos aí fa-lando nos primórdios do Cinema Novo, eles iam fazer um filme baseado num romance do Marques Medeiros, chamado Maráfago. E aí eu me meti nessa história como assistente do Adolfo Celi. Co-meçamos a fazer e na segunda semana ele teve uma briga horrorosa com o produtor e abando-nou o filme. Foi uma frustração muito grande, já

conhecia algumas pessoas que estavam fazendo, primordialmente Joaquim Pedro, que tinha feito o Couro de Gato, e o Glauber Rocha, que tinha feito um filme na Bahia, mas que não conseguia montar, que era o Barravento. Uma história muito engraçada, ele não conseguia montar o filme por-que não existia som direto, então o assistente bri-gou e levou todas as fitas do gravadorzinho que estava gravando os diálogos. Então ele não sabia como acabar o filme, porque não sabia os diálo-gos do filme, ninguém tinha anotado.

E por que ele tinha levado as fitas?Ah, brigou com ele, o Glauber disse horrores para ele e ele mandou o Glauber se fuder. E aí foi uma coisa muito engraçada, porque trouxeram uma pessoa aqui no Instituto de Surdos e Mudos para ver o filme e a pessoa ficava lendo a labial. Só que o cara não sabia, tiveram que pegar um surdo-mu-do baiano por causa do sotaque. Aí eu fiz uma re-portagem sobre o Barravento e o Glauber ia muito ao Correio da Manhã, onde eu trabalhava. Comecei a estabelecer uma relação de amizade com o Glau-ber, um dia ele ia fazer Deus e o diabo e tinha con-vidado um cara para ser assistente, que era o Vla-dimir Herzog. Aí a gente foi numa sessão de filme lá na ABI, subimos no elevador e o Vladimir fa-lou para ele: “Olha, Glauber, eu recebi um convi-te, uma proposta de trabalhar em Londres. Eu vou para a BBC e não vou poder fazer o filme”. O Glau-ber ficou parado assim: “Porra, tava contando com o cara”. Então eu disse: “Eu quero”. “Tu quer ir?” “Quero” “Você vai largar o jornal?” “Vou” Aí vol-tei para o jornal para falar com o Moniz Vianna, que era naquele momento o redator chefe do jor-nal: “Olha, Moniz, eu tô diante de uma coisa que eu estou querendo há muito tempo, quero traba-lhar num filme”. “Mas não deu certo, você viu que não deu, né?” “Mas vai dar certo”. “Bom, mas você pensa bem”, e apagou a luz do jornal, deu um bla-ckout. Aí eu fiquei vendo, ele escrevia com o cigar-ro aqui na boca e batia na máquina com um dedo só. Aí eu estou vendo aquela brasa acesa e toc, toc, toc, e eu falando naquela escuridão: “Não, Moniz, vai dar certo sim”. “Então o que eu posso te dizer? Porra, tenha cuidado e seja feliz”, e acendeu a luz. Acendeu a luz na hora que ele falou “seja feliz”. Eu saí dando pulos do jornal, literalmente.

Você tinha que idade na época?Tinha 23 anos. Deus e o diabo é um filme que eu acho que tem uma energia criativa que é ex-tremamente resistente até hoje. Vendo à luz dos nossos dias, acho que é um filme que, não tendo uma montagem rigorosa, tem defeitos daquilo que a gente chamou de cinema de autor: problemas de vídeo interno, o filme pesa, o filme te afasta às ve-zes. O público que viu, viu depois do golpe, então o espanto foi maior à custa do trauma que a gen-te tinha acabado de viver dois, três dias antes. Mas ao mesmo tempo tem um entusiasmo, tem uma tal energia que leva para uma sequência final absolu-tamente extraordinária e que é arrebatadora.

Essa capacidade de se inventar seria então a maior contribuição do Cinema Novo?

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Nós não fazíamos parte da chanchada, não fazía-mos parte da Vera Cruz, não fazíamos parte des-sa tradição. Então nós estávamos nos inventando enquanto cineastas, só que o que a gente trazia era um olhar refinado de um cinéfilo, de um ci-neclubista, de uma pessoa que tinha visto filmes. Com um olhar culto, essa era a novidade. Você sentia o progresso de filme para filme, como é que as pessoas se desenvolviam, porque se comunica-vam uns com os outros. Depois, ao longo do gol-pe, e até 67/68, isso não existe. Em 68 houve um isolamento, e as pessoas já não se falavam mais, as pessoas se isolaram e acabou. Ali acabou. Você já estava trabalhando no Globo Repórter quando fez A Lira do Delírio, em 1973?Estava lidando com o som direto, que é a base fundamental da Lira. Se eu vou fazer um cinema espontâneo lidando com o som direto, e fazen-do com que os atores não guardem os seus diá-logos, que se reinventem a cada cena, então eu estou contando com o som direto. Eu não sabia o que era som direto quando eu fiz o Menino de Engenho, nem quando eu fiz o Brasil 2000, nem tampouco quando eu fiz Na boca da noite, que foi a minha primeira experiência de som direto. Na Lira eu mostrava a cena e não deixava os atores decorarem. Eu queria aquilo espontâneo.

Como você vê o cinema dentro da televisão? A iluminação da televisão hoje em dia no Brasil é absolutamente extraordinária. É incrível o que o cinema fez na televisão brasileira. Talvez seja a televisão mais bem ordenada do mundo em termos de linhas de produção industrial. Os re-cursos que ela tem, e a iluminação é de cinema. Antes era panelão, era uma luz geral. Quando começaram a entrar os fotógrafos na televisão é que ela foi criando os volumes, tridimensionali-zando os espaços.

O início é mais caprichado para pegar o telespectador. É, os quinze primeiros capítulos são tratados a rigor, depois tem uma lógica que tem que ser se-guida. Isso é uma influência do cinema na te-levisão, mas a gente não conseguiu estabelecer uma rotina de profissão para fazer isso. É uma pena a televisão não ter se aberto para negociar com o cinema uma possibilidade de produção continuada. Talvez esteja começando a ocorrer com o caso do Fernando Meirelles, o pessoal do O2. Ele já fez coisas assim, mas ele produz lá... Também um pessoal de Porto Alegre, que filma nos estúdios de lá e se livra da fiscalização da Globo. Já há tentativas, vamos dizer assim, mas não há uma rotina, sabe?

Mas para poder permitir esse maior acesso de outros produtos cinematográficos no mercado televisivo, você não acha que teria de ter uma mudança na estrutura do audiovisual no Brasil? Porque você vê, são 192 milhões de habitantes e sete emissoras abertas, não é muito pouco?

Eu acho que no início da gestão Gil, no início do governo Lula, havia um alento de que as coi-sas iam mudar, porque televisão é concessão. E tentar criar uma responsabilidade social da te-levisão em relação à formação da nacionalida-de, de uma consciência civil no Brasil, isso aí é um dos pontos a ser atingido por aquele pro-jeto. Mas aquilo foi de tal maneira torpedeado que voltou para a estaca zero. Nós continuamos vivendo nesse latifúndio televisivo, então se eu pago o meu IPTU e você também, que enorme IPTU deveria ser esse do éter? Então a sociedade tem sido privada dessa discussão, a discussão é monitorada pela grande imprensa e todo tipo de manifestação que tenta colocar limites para a te-levisão é tida sempre como se fosse uma amea-ça de fascismo. E o que a gente está vendo, sem querer fazer proselitismo em cima de moralida-de: eu acho que está havendo uma grande per-da de valores. O Brasil de 50 anos atrás é extre-mamente diferente desse Brasil que a gente está vendo hoje, é um Brasil sem valores.

Você deu aula na escola de cinema de Cuba?Sim, é uma escola superinteressante, são turmas de 40 alunos, de vários locais diferentes, de di-ferentes países, africanos, europeus, mas muitos latinoamericanos também. E cada turma de 40 é dividida em 5 grupos de 8 alunos, que fazem um rodízio permanente, eles vão ser eletricis-tas num projeto, maquinista noutro projeto, di-retor de produção no outro, roteirista no outro, montador no outro, diretor num outro, produ-tor em um outro, continuísta... Se cria uma ideia de uma polivalência, no último ano você esco-lhe o que você quer fazer. É superinteressante, é a mais bem bolada que eu já vi, o resto eu acho que todo mundo quer ser diretor, e acho que só para mandar. E quando é uma coisa totalmen-te diferente porque você diretor, pra fazer filme, você tem que entender que você está na verda-de exercitando uma relação humana.

Quais são suas lembranças da ditadura civil-militar de 1964?Eu era um cara que vivia no cinema, vivia nas nuvens, só pensava em filme. Então, de repente

eu me dei conta de que havia mais coisas acon-tecendo. Eu morei garoto do lado da polícia es-pecial, em frente ao quartel em Niterói. Do lado tinha uma polícia especial, eu ouvia do meu quar-to gente apanhando. Eu ouvia histórias dentro da família de que meu tio nessa Intentona comunis-ta dali da Urca sofreu o diabo. Mas a cabeça liga-da no cinema, com as fantasias, um dia eu vejo o meu irmão ser preso na porta de casa. Aí eu vi-rei um personagem de Hitchcock atrás do meu ir-mão, eu queria saber onde ele estava, então eu fi-quei que nem um maluco atrás dele. Ia em tudo quanto é lugar, quando eu vi, estava envolvido com pessoas que eu nem sabia que eu estava en-volvido, e fazendo parte de todos aqueles cader-ninhos. Um dia minha casa caiu, encontraram o meu nome num caderninho, tava com obrigações que eu comecei a conviver, de ler um diário escri-to a sangue, por exemplo. Quando eu vi aquilo, eu falei assim: “tem que mandar isso aí para a Anis-tia Internacional”. “Olha só esse diário, cuidado porque se você abrir as letras caem”. Eu fui abrir e a letra fez pah!, caiu, ficou só a mancha.

E depois?Acabei pagando um preço, os caras foram na mi-nha casa, me deixaram 50 dias numa cela soli-tária em frente a uma cela de tortura. Não me bateram, mas ao mesmo tempo eu fiquei na ex-pectativa de que eu seria o próximo. E aí dava graças a Deus porque eu não tinha sido o pró-ximo. Duas horas depois estava me maldizendo porque eu não tinha sido o próximo. Uma tortura que você mesmo estabelece com você mesmo.

Qual a sua opinião sobre tecnologia digital e o cinema de periferia, que eles estão chamando, que são esses filmes muito curtos captados com baixíssimo custo?Eu acho que essa possibilidade de um aparelho como esse se transformar numa câmera dá um poder muito grande a pessoas que nunca tive-ram esse poder, nem pensaram que podiam ter. Acho isso uma coisa extraordinária, isso certa-mente mudou a maneira de se pensar o cinema. O cinema tem hoje em dia uma instantaneida-de que ele não tinha, ele era ritualesco, tinha que ter uma celebração extraordinária para poder fa-zer aquilo, hoje em dia não. Hoje um cara que sai do Vidigal, da Rocinha ou da Maré começa a fil-mar o mundo que está em torno dele, coisa que ele não tinha possibilidade. Depois aquele produ-to pode ir a Cannes, como está indo, eu acho isso extraordinário! Eu só espero que as pessoas que usem isso não deixem de ver os filmes e se abas-teçam daquilo que já foi feito, assim como aque-les que escrevem não podem deixar de ler aquilo que já foi escrito. Acho que quem filma com es-ses meios tão democratizados de captação, toda essa tecnologia digital que facilita tanto as pes-soas, eu acho que elas devem apurar o olho, edu-car o olho. Saber o sentido de composição, criar junto, não viver só do instantâneo, não ser ape-nas um X-9 do cinema, sabe?

Marcelo Salles é jornalista.

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impunidadeAs investigações indicam a participação de policiais militares em chacina na Baixada Santista Até agora, foram presos 23 PMs suspeitos de envolvimento nas mortes do litoral. Por Tatiana Merlino. Ilustração Koblitz.

uem vai comprar cigarro com o Chimiro sou eu, diz Marcos Paulo.

– Nem vem... Eu que vou, re-truca o rapaz.

Depois de muita discussão, Marcos Paulo pega o capacete e monta na garupa da moto do amigo de infância: “Eu é que vou”, diz, decidido.

O trajeto do Bar Paradinhas, no bairro de Catia-poã, em São Vicente, até o local onde os rapazes querem comprar cigarro, não é longo. Àquela hora da madrugada, véspera de feriado de Tiradentes, se-ria ainda mais rápido. Logo estariam de volta ao bar, onde outros amigos da turma o esperavam.

Grupos de extermínio matam com a

certeza da

Erich, de 21 anos, conhecido como Chimiro pe-los amigos, dirige a moto, e Marcos Paulo, de 18, vem à garupa. A moto vira na rua Pérsio de Quei-roz Filho e, antes de chegar no meio da primeira quadra, duas motos vêm em direção aos rapazes. Cada uma delas com dois homens. Na esquina, um carro preto, modelo Siena, bloqueia a passagem.

Ao serem abordados por um dos homens da moto, os jovens tiram os capacetes e mostram as identidades. Marcos Paulo é o primeiro a ser atin-gido. Ele tenta se defender. Levanta e cruza os braços para se proteger das balas. Em vão. Ele é atingido por mais de dez disparos no peito, ore-

lha esquerda, cabeça, ombro, costas, braços e per-nas. Na sequência, Erich leva três tiros: mão di-reita, tórax e pescoço.

Horas antes, Marcos Paulo saía de casa de bi-cicleta para encontrar os amigos num bar. Às 23h, falou com a mãe, Flávia, ao telefone. “Não saia hoje, não, meu filho”. “Ah, mãe, hoje é vés-pera de feriado”, respondeu o rapaz. Do bar, Mar-cos Paulo foi a uma festa com amigos e, depois, todos foram ao Paradinhas.

Flávia fazia plantão na enfermagem de um hos-pital de Santos quando recebeu, pouco depois das 4 horas da manhã, um telefonema: “O Marcos Paulo

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levou um tiro”, ouviu da irmã. A enfermeira seguiu até o Centro de Referência em Emergência e Inter-nação (Crei) de São Vicente, para onde o rapaz teria sido levado. “Ninguém deu entrada aqui com esse nome”, ouviu, chegando ao hospital.

– Como ninguém foi buscá-lo? Ele foi baleado! – Acho que não tinha transporte, senhora. A mãe de Marcos Paulo seguiu para o local do

crime. Lá, encontrou o corpo do filho no chão, co-berto por um lençol.

– Pode mexer nele, mãe –, Flávia ouviu de um policial militar

– Como? Eu não posso mexer. Quando é assas-sinato, ninguém pode chegar perto, e vocês ainda não fizeram perícia.

Marcos Paulo Soares Canuto e Erich Santos da Silva estão entre as 22 pessoas que foram mortas na Baixada Santista (SP), no período entre 18 e 26 de abril, após o assassinato do soldado da For-ça Tática Paulo Rafael Ferreira Pires, em Vicente de Carvalho, no Guarujá, no dia 18.

Os principais suspeitos dos assassinatos são po-liciais militares que integrariam um grupo de ex-termínio. O modus operandi das ações são seme-lhantes às ocorridas em maio de 2006. “A relação entre a série de crimes de 2006 e os de 2010 é que ambos foram cometidos na sequência de mortes de policiais por grupos de extermínio com indí-cios de serem formados por policiais, com pessoas encapuzadas ocupando uma moto, acompanhadas de um carro, usando mini metralhadora e com re-colhimento dos projéteis logo depois, desconfigu-rando a cena do crime”, acredita o defensor públi-co do Estado Antonio Mafezzoli.

Até o fechamento da edição, 23 policiais da Bai-xada Santista haviam sido presos administrativa-mente. Eles são suspeitos de fazer parte do grupo de extermínio conhecido como “Ninjas” que matou 22 pessoas no litoral paulista. Caso haja evidências da participação desses policiais nas mortes, a Correge-doria pode pedir a prisão temporária dos acusados. Os nomes dos suspeitos não foram divulgados.

Projéteis recolhidos A reportagem da Caros Amigos teve acesso aos

Boletins de Ocorrência (BOs) de cinco vítimas de São Vicente (quatro óbitos e um sobrevivente) e oito de Vicente de Carvalho, no Guarujá – seis mortes e duas tentativas. Na maioria deles, cons-tava a informação de que “não foram arrecadados cartuchos ou projéteis [para perícia]” e, também, que as vítimas foram abordadas por indivíduos en-capuzados. Embora os representantes das Polícias Civil e Militar tenham considerado a possibilida-de da participação de policiais nos assassinatos de abril, os crimes ainda não foram esclarecidos.

Para Débora Maria da Silva, militante das Mães de Maio e mãe de uma das vitimas dos cri-mes de 2006, “se os assassinatos de quatro anos

atrás tivessem sido resolvidos, isso não estaria acontecendo”. Para ela, a recente onda de assas-sinatos da Baixada pode ser chamada de “crime de Maio continuado”, afirma.

Na opinião de Mafezzoli, é possível que os res-ponsáveis pelos assassinatos de 2006 sejam os mesmos dos crimes recentes. “É provável que se-jam as mesmas pessoas, porque o modo de co-metimento é idêntico. Acho que a não punição dos crimes de maio de 2006 gerou uma sensação de que esse grupo podia continuar atuando des-sa forma porque não ia mudar nada, ninguém ia ser punido, a Polícia Civil e o Ministério Público nem iam chegar perto deles. Assim, sentiram-se à vontade para continuar”.

O defensor explicou que, depois do episódio do “maio sangrento” de 2006, outras mortes aconte-ceram em Santos e na Baixada com o mesmo per-fil e “sempre posteriores à morte de um policial”. Em novembro do ano passado, disse, um policial morreu em Cubatão. “Em seguida, metralharam 16 pessoas”. Segundo Mafezolli, dados da Ouvi-doria de Polícia levantados pela organização não governamental (ONG) Justiça Global, entre maio de 2006 e dezembro 2009, 70 pessoas foram mor-tas em situações semelhantes, “sem contar os 40 de maio de 2006 e os 23 de abril de 2010. Isso mostra que esse grupo continuou em atividade, e sempre vingando a morte de policiais”.

Para o advogado Fernando Delgado, da Justiça Global, é possível estabelecer uma relação entre os grupos de extermínio de hoje e os esquadrões da morte, criados no final dos anos 60 e atuantes durante a década de 70. “A metodologia é bastan-te parecida e há simbologias semelhantes, como a imagem da caveira”, explica.

Até o fim Marcos Paulo era o único filho de Flávia Soa-

res. Separada do pai do menino, ela morava com o adolescente num pequeno apartamento no bair-ro do José Menino, em Santos. “Não tenho mais condições de morar aqui. São muitas lembran-ças”. Logo depois da morte do filho, Flávia ini-ciou uma pequena investigação por conta pró-pria. “Eu não vou sossegar porque o que eu tinha que perder já perdi. Agora, o que eu tenho, a mi-nha vida? Quero que se dane! Eu vou até o final. Nem que para isso um dia vocês escutem: mãe de Marcos Paulo foi assassinada”.

No dia da morte do filho, Flávia ouviu de um po-licial militar que o calibre da arma que usaram para assassiná-lo era o 380, “aquela bala pequenininha que entra, não faz furinho nenhum, mas, quando chega dentro, explode tudo”. Porém, ao prestar de-poimento na delegacia, o escrivão disse à mãe que ainda não se sabia qual era porque não havia sido feito o exame de balística. “Se for mesmo 380, quem usa é polícia da pesada ou bandido”, diz.

Marcos Paulo tinha terminado o ensino mé-dio no final de 2009 e pretendia fazer curso para técnico de contêiner. Tinha uma namorada, gos-tava de jogar futebol na praia, fazia musculação. “Era muito alegre e extrovertido”. Era o conse-lheiro amoroso da turma, e ajudou Erich a arru-mar uma namorada.

Testemunhas e amigos contaram que, na noi-te do assassinato dos rapazes, alguns homens que circulavam pelas redondezas do bar estavam ano-tando placas de moto e carros. Porém, a maioria dos jovens tem medo de testemunhar e sofrer re-presálias posteriormente.

Em recente entrevista concedida ao jornal A Tribuna, dois homens que se identificam como participantes de grupos de extermínio relataram como atuam e afirmaram que, depois de uma cer-ta hora, estar na rua de certos bairros da cidade é pedir para morrer. Flávia protesta: “Quer dizer que quem é de periferia não pode viver, não tem direito de sair na rua à noite?”, questiona. “Meu filho estava na periferia porque tem raízes e ami-gos lá. Foi ali que nós nascemos”, diz.

Na mesma madrugada em que Marcos Paulo e Erich foram mortos, outros dois jovens também foram assassinados e um terceiro ficou ferido. De acordo com o Boletim de Ocorrência da 1ª DP de São Vicente, Anderson Souza Reis e Wandilson de Oliveira Silva “foram abordados por dois indi-víduos encapuzados que desceram de um veícu-lo preto não identificado e, sem nada dizer, pas-saram a efetuar disparos com arma de fogo”. O relato foi feito pelo sobrevivente. No B.O., tam-bém consta que, no local, não foram encontrados projéteis para a realização de perícia. Anderson e Wandilson foram mortos às 4h47 e 5h, respecti-vamente, também no bairro de Catiapoã.

sete tiros Numa manhã de sábado, Jane Aparecida Ma-

tos Madeira, a dona Jane, recebe a reportagem em seu apartamento no bairro de Aparecida, em Santos. Lá, também estão as netas, de dois, sete e dez anos. A pequena mexe no gravador, a do meio, cuida da menor e a mais velha participa da conversa. No dia 23 de abril, Alessandra Apare-cida Matos Madeira, de 29 anos, filha de Jane e mãe das meninas, estava num bar com duas ami-gas quando um carro e uma moto Biz começaram a rondar o bar. “Esse carro já passou aqui, vamos tomar cuidado”, diz uma delas. O carro para, um homem encapuzado sai do seu interior e dispara na direção de Alessandra. As amigas correm, mas ela, de salto alto, cai e não consegue fugir. “Fo-ram sete tiros, todos do mesmo lado, no ouvido, na cabeça. Ela não teve chance de nada”.

A morte da filha de dona Jane teria sido “quei-ma de arquivo”. “Eu ouvi isso no próprio distri-to policial”, afirma a senhora. Alessandra teria

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testemunhado o assassinato de Rafael Souza de Abreu, de 16 anos, na noite de 26 de março. Ela era amiga da namorada do adolescente e estava no local quando ele foi morto.

Há seis anos, Jane perdeu o outro filho, tam-bém assassinado por policiais. “A gente coloca os filhos no mundo e não acha que essas coisas vão acontecer”. A enfermeira de 53 anos diz que teme pelas netas, que dependem dela: “Fico com medo porque tenho três crianças. Tenho que trabalhar muito para mantê-las”.

Mesmo assustada, Jane participou da audiência pública “A violência na Baixada Santista”, realiza-da em 14 de maio, em Santos, para discutir a im-punidade dos crimes de maio de 2006 e a onda de violência que marcou o mês de abril deste ano na Baixada. “Quero saber quem foi que fez isso com a minha filha”, disse dona Jane, emocionada, na pri-meira fileira do auditório, ao lado de outros fami-liares de vítimas da violência do Estado.

Organizada pela Comissão de Direitos Huma-nos da Assembleia Legislativa, Movimento Mães de Maio e Fórum da Cidadania de Santos, com o apoio dos deputados estaduais do PT Fausto Fi-gueira e Maria Lucia Prandi, o encontro reuniu pais e mães de vítimas, comando das Polícias Mi-litar e Civil, Ministério Público, Poderes Judiciá-rio, Legislativo e Executivo, Ordem dos Advoga-dos do Brasil (OAB) e organizações da sociedade civil. Entre os participantes, estava o ouvidor-ge-ral de Cidadania da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Fermino

Uma das testemunhas que estava no local era a namorada de Rafael, que mudou de cidade por medo de também ser morta. “Eles estavam ron-dando a casa dela, então, depois de depor no Mi-nistério Público, ela foi embora”. Outra testemu-nha era Alessandra, que foi assassinada.

Seu José, que trabalhava como portuário, disse que não consegue mais trabalhar: “Estou acaba-do”. Ele também vem sendo ameaçado de morte. “Eu não uso droga, não vendo droga, eu traba-lho... mas qualquer dia podem me forjar. Vão me forjar ou me matar. Não estou saindo. Chego em casa, fecho as portas e vou dormir”, conta o ho-mem, apos tranquilizar um parente por telefone: “está tudo bem, já cheguei aqui”.

Segundo José, um dos meninos que jogava fu-tebol com Rafael foi abordado pelo mesmo poli-cial militar quando ia para a escola. De acordo com ele, o PM jogou o material do menino chão e deu um tapa em sua cara. Na volta da escola, ele foi abordado novamente pelo PM, que teria dito: “Sabe quem matou o Rafael? Fui eu. Vou fazer da mesma forma que fiz com ele com você”.

Essa denúncia foi feita pelo adolescente, de ape-nas 14 anos, no 6º Batalhão da Polícia Militar de Santos, onde está localizada a corregedoria da PM. No dia em que foram depor, o próprio policial que ia ser denunciado estava no local: “Ele ficava dando voltas, olhando de cara feia”, conta José.

Embora o caso do seu filho não entre na contabi-lidade dos 22 assassinatos do período de 18 a 26 de abril, ele possui as mesmas características de assas-sinatos cometidos por grupos de extermínio, “que não deixaram de atuar entre os crimes de maio de 2006 e abril de 2010”, alerta o defensor Mafezolli.

toque de recolherEm Vicente de Carvalho, onde a matança após a

morte do soldado da Polícia Militar Paulo Raphael Ferreira Pires, de 27 anos, começou, o clima era de muita tensão nas semanas seguintes aos crimes. Na sequência do assassinato do PM, outras cinco pes-soas foram mortas, entre elas, o comerciante Fá-bio Luiz Basílio, de 31 anos, baleado por volta das 11 horas do dia 20 na avenida Santos Dumont, em frente ao Banco Bradesco. Segundo testemunhas, dois homens em uma moto efetuaram o disparo. A causa do homicídio ainda não foi esclarecida.

De acordo com uma moradora do distrito de Vicente de Carvalho, que não quis ser identifica-da por medo de represálias, a região viveu dias de muito medo. “Como eu moro mais afastada da avenida, o pessoal vinha dizendo que as lojas iam fechar cedo porque ia ter toque de recolher. Se você esperar para descobrir se é boato ou ver-dade, está pagando para ver”.

A moça relata que mortes por grupos de exter-mínio não são novidade em Vicente de Carvalho: “Sempre que se comenta que alguém foi morto na

Fechio, que afirmou que a situação exige um cho-que de gestão para mudar o modelo de polícia: “O Estado sempre é lerdo para atender às mães”.

Na ocasião, o coronel Sérgio Del Bel, que res-ponde pelo Comando de Policiamento do Interior 6 (CPI-6), unidade responsável pela Baixada e Vale do Ribeira, admitiu que há “fortes indícios” da par-ticipação de policiais militares no crimes, mas “eles não são a maioria”. “Sob meu comando, não permi-to nenhum tipo de violação. São expulsos em mé-dia 280 policiais todos os anos”. Del Bel disse, ain-da, que “deve haver a participação de policiais. Não vejo a hora de colocar esses caras na cadeia”.

O delegado Waldomiro Bueno, do Deinter-6, res-ponsável pelo policiamento do litoral sul de São Paulo, também reconheceu a possibilidade de par-ticipação de policiais nos crimes. “Temos indícios fortes. Mas estamos trabalhando com todas as hi-póteses: vingança, tráfico e, principalmente, crimes praticados por PMs. Mas vamos esclarecer tudo isso o mais rápido possível. Doa a quem doer”.

ceNário do crimeO pai e a avó de Rafael, cujo assassinato Ales-

sandra testemunhou, também estiveram presentes à audiência. O adolescente estava na porta da casa de um amigo no bairro do Estuário quando foi morto. Ele comia uma esfiha de frango com catu-piry quando dois homens numa moto passaram no local e o executaram. O primeiro tiro foi no joelho. Rafael caiu e pediu “pelo amor de Deus”, por duas vezes, para que não o matassem. Os tiros seguintes atingiram seu pescoço, rosto, peito e cabeça.

O pai do rapaz, José de Abreu Nabo Neto, conta que correu para o local assim que recebeu a notícia: “Eles queriam mudar o cenário do crime. A primeira coisa que eles estavam procurando eram os projé-teis, os cartuchos. Eu fui pegando tudo e falei: aqui não, aqui vocês não vão colocar mão. Eu perguntei: por que vocês não vão procurar, correr atrás? Foi a própria Polícia Militar que matou. Aí eu passei mal, a pressão subiu e fui parar no Pronto-Socorro”. O caso foi registrado no 3º DP de Santos.

Rafael era usuário de maconha e, para poder comprá-la, cometia pequenos furtos. Por conta disso, era constantemente ameaçado de morte por um policial militar, que José acredita ser o au-tor do crime. A motivação do assassinato, acre-dita o pai do rapaz, teria sido um assalto ocorri-do numa loja de roupas do bairro. Segundo José, os policiais acreditavam que Rafael fosse um dos assaltantes da loja. “Dois dias antes do meu filho ser executado, dois policiais militares que faziam segurança da loja entraram na minha casa sem mandado de segurança procurando roupas”.

No dia da morte, o tal policial que ameaçava o menino passou de moto na frente da casa da fa-mília. “A gente acha que esse dono da loja deve ter pago a polícia para executar meu filho”.

Jane teve os dois filhos assassinados por grupos de extermínio.

Flávia está investigando a morte do filho por con-ta própria.

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favela, as pessoas associam a morte com os enca-puzados”, diz, deixando claro que, por encapuzado, subentende-se policial de grupo de extermínio.

Em maio de 2006, também houve mortes na cidade. Porém, como a impunidade vigora, “nin-guém quer ser testemunha, ninguém quer falar... você acaba comprando uma briga que não é sua e, às vezes... né?”.

A jovem era amiga de Fábio, e conta que nun-ca viu o rapaz participar de uma briga: “Era uma pessoa boa, legal. Todo mundo gostava dele, nun-ca vi ele brigando. Não sei o que ele pode ter fei-to de errado a ponto de alguém querer matar ele. Tem gente que tem dinheiro e sai por aí zoando... ele não, ele era sossegado”.

A jovem conta que, durante a onda de violên-cia, os comentários em Vicente de Carvalho eram de que estavam matando todo mundo, até quem não tinha nada a ver com a história. “A mãe tinha medo do filho sair na rua, ir na casa da namora-da. O papo era ‘tú tá na rua esse horário, vão te matar. A polícia pega e mata’. Falaram isso nessa época”. A moça afirma, ainda, que o policial que foi morto tinha fama de ser violento e ter “dedo mole”. “Bobeou, ele atirava para matar”.

Até o fechamento desta edição, duas pessoas haviam sido presas. Eduardo Rodrigues do Nasci-mento, conhecido como Eduardinho, que era fo-ragido e condenado a 29 anos de prisão por ho-micídio, foi preso pela polícia como suspeito pela morte do policial da Força Tática. Recentemente, um ex-policial militar também foi preso em São Vicente. Dentro de seu carro, foram encontradas uma pistola 380 e duas toucas ninja.

mAior letAlidAdeAs mortes na Baixada ocorreram no mesmo

período em que dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo apontaram que a Polícia Militar do estado matou 40% mais nos três primeiros meses deste ano em compara-ção com o mesmo período do ano passado. Entre janeiro e março de 2010, foram 146 mortes, con-tra 104 no mesmo período de 2009.

Nos últimos 12 meses, período do início da ges-tão do secretário da Segurança Pública Antonio Fer-reira Pinto, que assumiu o cargo em março do ano passado, o número de mortes por policiais militares em serviço foi 54% maior do que nos 12 meses an-teriores, na gestão de Ronaldo Marzagão. “A maior letalidade coincide com a gestão do novo Secretário de Segurança Pública, que colocou mais Rota na rua mesmo após o anúncio dos números de mortes en-volvendo essa força policial”, comenta o advogado Fernando Delgado, da ONG Justiça Global. Segun-do ele, a organização se reuniu com o secretário no ano passado para pedir especial atenção em relação aos casos envolvendo a Rota.

Para ele, a regra em relação aos crimes come-

tidos pela polícia é a não responsabilização: “E no caso dos crimes da Baixada, há o risco de aconte-cer o mesmo”. Delgado acredita que “o aumento de 70% nos casos de resistência seguida de morte de 2008 para 2009 são a prova dessa falta de puni-ção dos crimes cometidos pela polícia, como ocor-reu com os crimes de maio”, diz.

A lentidão nas investigações dos homicídios na Baixada foi um dos motivos do afastamento do corregedor da PM, Davi Nelson Rosolen, e sua substituição pelo coronel Admir Gervásio Morei-ra. O desgaste do corregedor também se deu por conta das recentes mortes dos motoboys Alexan-dre Santos e Eduardo Luís Santos e, também, do camelô Roberto Marcel Ramiro dos Santos, em São Paulo. Alexandre foi estrangulado por qua-tro PMs da zona sul de SP, Eduardo foi torturado dentro de um quartel da PM na zona norte e Ro-berto foi morto com mais de dez tiros. Dezeno-ve dias antes de Roberto ser morto, ele e sua mãe foram ameaçados de morte pelo PM Valdez Gon-çalves dos Santos, do 21º Batalhão.

Nesse período, quatro pessoas de uma mesma fa-

mília foram mortas em Campinas, no interior pau-lista. Os assassinos, suspeitam os investigadores, se-riam policiais militares, em vingança ao assalto que deixou um colega paraplégico. Segundo morado-res, PMs fardados chegaram ao local logo depois da saída dos assassinos, arrastaram quatro corpos por alguns metros e recolheram todas as cápsulas que encontraram. O procedimento usual é deixar o local do crime intocado até a chegada da perícia.

Ao assumir o cargo, o novo corregedor decla-rou que uma das prioridades da instituição será a Baixada Santista. Admir considera a situação complicada, pois a suspeita de envolvimento de policiais é forte, mas ninguém aponta os culpa-dos. O delegado diretor do Deinter-6, Waldomiro Bueno Filho, responsável pelas investigações, foi insistentemente procurado pela reportagem, para esclarecer o andamento das investigações, mas não foi encontrado.

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

Tatiana Merlino é [email protected] Igor Ojeda.

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Lúcia Rodrigues

maio de 2006. Como um tsunami, uma onda vermelha de sangue inunda o Estado de São Paulo.

Entre os dias 12 e 20, 493 pessoas foram as-sassinadas por armas de fogo, segundo o rela-tório produzido pelo Conselho Regional de Me-dicina com base nos laudos necroscópicos dos 23 institutos médico legal do Estado. Os núme-ros são assustadores e se assemelham aos cená-rios de guerra. O secretário da Segurança Pú-blica do governo demo-tucano da época, Saulo de Castro, informou a população de que se tra-tavam de mortes cometidas pela organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Hoje, sabe-se que o PCC foi responsável por 47 mortes de um total de quase 500. A maioria dos 446 assassinatos restantes é creditada à polícia e aos grupos de extermínios que agem em bair-ros da periferia.

Passados quatro anos, ninguém foi punido pelos assassinatos dos civis, e a quase totalida-

de desses inquéritos foram arquivados. Há ain-da quatro famílias que procuram por seus filhos até hoje. Eles engrossam a lista de desapareci-dos do país. Essa conjunção de fatores pode fa-zer o Brasil sentar novamente no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). No final do mês passado, uma denúncia movida por familiares de ativistas políticos que participaram da Guerrilha do Araguaia, na primeira metade da década de 70, fez as autoridades brasileiras prestarem esclarecimentos ao corpo de juizes in-ternacionais sobre essas mortes.

O jurista Hélio Bicudo, que já presidiu a Co-missão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, considera que o Estado brasileiro poderá ser levado novamente às barras do tribunal in-ternacional em função do massacre praticado em maio de 2006. Ele explica que qualquer pessoa pode apresentar denúncia de violação de direi-tos humanos à Comissão. Se a denúncia for ad-

mitida, o trâmite seguido prevê que o Estado seja notificado para sanar essas violações. Se o país não responder em três meses, a Comissão vai à Corte, que é constituída por sete juizes, para que se manifestem a respeito. A decisão dos magis-trados deve ser obrigatoriamente cumprida pelo país. “Tem valor coercitivo”, frisa.

Se depender das mães dos mortos no maio sangrento, esses crimes não cairão no esqueci-mento. Assim como as Mães da Praça de Maio, da Argentina, as brasileiras também saem às ruas para protestar contra a não punição dos culpados pelas mortes de seus filhos. Além da coincidência do mês de maio na história dessas mulheres (lá em função de se reunirem na praça que carrega no nome a data da independência Argentina e aqui porque perderam os filhos nes-se mês), as mães brasileiras e argentinas têm ou-tra semelhança fundamental: viraram militantes da causa dos direitos humanos depois que seus filhos foram assassinados pela repressão.

Relatório do Conselho Regional de Medicina registra a morte de 493 pessoas por armas de fogo, de 12 a 20 de maio de 2006; segundo entidades 47 são atribuídas ao PCC e outras 446 a policiais e grupos de extermínio. Até hoje esses crimes não foram devidamente apurados e nem os criminosos julgados, apesar do protesto dos familiares das vítimas. Fotos: Joelma Couto e divulgação.

Quatro anos depois da maior chacina,

ninguém foi punido

Da esq. para dir. Wagner dos Santos, Everton Pereira dos Santos, Paulo Alexandre Gomes, Mateus Andrade de Freitas, Marcos Rebello Filho, , Ana Paula dos Santos, Eddie Lavezani, Jardel de Oliveira, Edson Rogério Silva dos Santos, Fábio Andrade, Israel Alves de Souza, Rodrigo Porto Noronha

O cineasta Walter Lima Jr. integrou a geração do “cinema novo”.

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Essas mulheres transformaram a dor e a re-volta da perda em indignação e força para conti-nuar lutando. Débora Maria da Silva, que preside a Associação de Amparo a Mães e Familiares de Vítimas da Violência e exemplifica a garra des-sas guerreiras, virou referência na luta contra a violência estatal. Ela é convidada para participar de debates, inclusive, em universidades. A mu-lher que trabalhava como vendedora autônoma se transformou em ativista dos direitos huma-nos. O microfone não a intimida.

Luta por justiçaNo último dia 13 de maio, quando foram lem-

brados os mortos do maio sangrento, durante um ato no centro de São Paulo, Débora fez um discurso emocionado e contundente. “O meu fi-lho era um gari, o exemplo do trabalhador assa-lariado. Não entregou o atestado médico de uma cirurgia que fez na boca, e que levou 15 pon-tos, com medo de perder o emprego. Um Estado que tinha o dever de nos dar proteção, e que é pago com nossos impostos, abate nossos filhos. A pena de morte foi decretada como se nossos filhos fossem lixo”, protestou.

A federalização das investigações dos cri-mes é a reivindicação dessas mães, que acredi-tam que assim conseguirão elucidar essas mor-tes. Durante o ato, em São Paulo, elas assinaram o pedido que será encaminhado pelo defensor público do Estado, Antonio José Mafezzoli Lei-te ao procurador geral da República. Para que os crimes possam passar para o âmbito das investi-gações da Polícia Federal, será preciso que o pro-curador acate a solicitação da Defensoria e a en-caminhe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa é a única forma para se conseguir a entrada da Polícia Federal no caso. Além da Defensoria Pública e das mães e dos pais, assinam solida-riamente o pedido de federalização das investi-gações, as entidades não governamentais Justiça Global e Associação dos Cristãos para a Aboli-ção da Tortura (Acat – Brasil).

O defensor Mafezzoli conta que também já protocolou oito ações de indenização em benefí-cio das famílias contra o Estado, por dano moral, em que pede ao Judiciário sua responsabiliza-ção pelos crimes. “Há fortes indícios pelo modus operandi, e pelo relato das testemunhas de que houve a participação de policiais militares nas chacinas”, enfatiza.

Ele se baseou em três teses para exigir que o Estado pague a indenização a essas famílias. Não houve resistência seguida de morte, mas execu-ção. Além disso, o Estado não garantiu o direito humano à segurança. O terceiro elemento que o defensor levou em conta para embasar sua fun-damentação é o de que não ocorreu a investi-gação dos casos e nem a punição dos culpados, o que viola o direito à verdade e à justiça, que está previsto em convenções internacionais assi-nadas pelo Brasil, como a interamericana de di-reitos humanos da OEA.

“Todos os casos foram muito mal investiga-dos, ou investigados entre aspas, inúmeras dili-gências que deveriam ter sido feitas não foram

realizadas. A regra básica de investigação apon-taria para reunir todos os casos em uma úni-ca delegacia especializada e investigá-los junto. Mas deixaram espalhados pelas delegacias dos bairros, nem perícia de projétil e confronto ba-lístico teve”, critica o defensor.

Mafezzoli conta que várias mães desenvolve-ram doenças, como depressão e que muitos mor-tos contribuíam com seu salário para as despesas da família. Por isso, a indenização é absoluta-mente fundamental. Ele também solicitou que o Estado de São Paulo faça um pedido formal de desculpas a essas famílias pelo assassinato de seus filhos. “Também queremos a construção de um monumento em homenagem às vítimas da violência estatal na cidade de Santos, para lem-brar à sociedade que aquelas pessoas morreram de forma injusta e absurda e para que isso não venha a se repetir”, ressalta.

“O filho da dona Débora estava empregado e registrado como gari há anos em uma empre-sa concessionária de limpeza de Santos. Ele não era bandido, trabalhava oito horas por dia, de-baixo de sol, varrendo a rua. Se fosse bandido não ia se submeter a ganhar um salário míni-mo”, destaca.

Débora acredita que o filho foi assassinado porque havia cumprido pena. Segundo ela, ele ficou preso dois anos por um crime que não co-meteu. O rapaz teria sido torturado para confes-sar. “Depois de sete meses descobrimos quem era o ladrão”, afirma indignada.

Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos, foi assassinado no dia 15, com quatro tiros: um no coração, um em cada pulmão e outro nas ná-degas. Testemunhas viram ele ser abordado por viaturas da Polícia Militar quando tentava abas-tecer a moto em um posto de gasolina.

O defensor público conta que todos os inqué-ritos de Santos, que ele está acompanhando, co-meçam com a consulta à folha de antecedentes da vítima. “No caso do filho da dona Débora, es-pecificamente, ele foi morto meia noite e pouco. E a ficha dele a partir da meia noite e pouqui-nho até o final da tarde foi consultada 20 vezes.” Mafezzoli explica que essa é a forma que a po-lícia encontra para justificar os assassinatos. “Se tem alguma passagem ótimo, porque aí dizem que era bandido. Ele teve uma condenação, cumpriu e trabalhava de sol a sol como gari. E os outros não tinham nenhum antecedente, eram jovens com carteira assinada e estudantes. É revoltante.”

atuação do Crm

O Conselho Regional de Medicina do Esta-do de São Paulo (CRM) atuou de forma decisiva para garantir que os médicos legistas dos 23 ins-titutos médicos legais do Estado pudessem fazer os laudos necroscópicos das vítimas sem sofrer pressão. “Asseguramos que eles pudessem de-senvolver a atividade sem nenhum tipo de pres-são”, frisa o médico Desiré Carlos Callegari, que à época presidia o CRM paulista.

Ele conta que a partir dos laudos assinados pelos legistas, o Conselho Regional de Medici-na elaborou um relatório quantitativo sobre as

mortes que ocorreram no período. “As informa-ções analisadas são pautadas na descrição mé-dico-legal da natureza das lesões que geraram o óbito (ferimentos por arma de fogo). Assim, não traz quaisquer considerações sobre o cenário, as circunstâncias e a autoria dos crimes, nem in-formações sobre a inserção social das vítimas ou pessoas envolvidas nos conflitos que geraram os óbitos analisados”, afirma trecho do relatório.

Apesar de o texto não tecer considerações qualitativas a respeito das condições em que se deram essas mortes, é um relato precioso e que serve de subsídio para o embasamento de uma análise aprofundada. O resultado do relatório do CRM foi publicado no livro Crimes de Maio edi-tado pelo Conselho Estadual de Defesa dos Di-reitos da Pessoa Humana (Condepe).

O relatório aponta que mais de 88% dos mor-tos eram jovens na faixa entre os 11 e 41 anos de idade, com uma concentração de 45,1% na faixa dos 21 aos 31 anos. O documento ressalta que 96,3% das pessoas que perderam a vida nes-se período eram do sexo masculino.

Com base nos dados necroscópicos é possível verificar que ocorreu o aumento no número de mortos por ferimentos à bala no período 12 a 20 de maio se comparado aos anos de 2000, 2001, 2002, 2003 e 2004. A incidência maior de as-sassinatos por arma de fogo, segundo os laudos dos legistas, aconteceu no dia 15 de maio, mes-ma data de morte do filho de Débora.

Os dados também revelam que 27,51% dos disparos atingiram cabeça e pescoço das vítimas, 30,48%, o tórax, 14,45%, o abdômen, 16,57% os membros superiores (braços) e 9,87% os mem-bros inferiores (pernas). É importante ressaltar que na maioria dos casos o mesmo indivíduo foi atingido em mais de uma região do corpo. Es-ses percentuais externalizam apenas os locais de incidência dos projéteis. As 493 vítimas foram atingidas por 2.359 tiros.

O trabalho dos legistas não foi aproveitado de maneira satisfatória nas demais fases do proces-so de investigação. A maioria dos casos foi ar-quivada. Nem a Secretaria da Segurança Públi-ca, nem o Ministério Público do Estado, nem o Tribunal de Justiça informam os números a esse respeito. As assessorias de imprensa dos respec-tivos órgãos afirmam que não sabem precisar esse número. De acordo com as duas últimas as-sessorias, para se realizar esse tipo de pesqui-sa, seria necessário se ter em mãos os números dos processos de cada caso. No Tribunal de Jus-tiça a consulta também pode se feita pelo nome do réu. Mas como se tratam de vítimas e não de réus, a pesquisa é impossibilitada. A Secretaria de Segurança Pública afirma que os casos já es-tão fora de sua alçada e que, por isso, não tem essas informações.

O número total de mortos reconhecido pelo Estado diverge diametralmente dos números ve-rificados pelos legistas do IML. Os dados do De-partamento de Inteligência da Polícia Civil (Di-pol), repassados pela assessoria da Secretaria da Segurança Pública, apontam apenas 87 mortes no período.

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O secretário da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, foi procurado pela reportagem da Caros Amigos, para comentar os fatos, mas o responsável pela assessoria informou que ele não se manifestaria porque os crimes foram co-metidos quando ele ainda não era secretário.

O doutor Desiré lamenta que o bom trabalho desempenhado pelos legistas dos 23 IMLs não tenha sido levado adiante para fundamentar as investigações que resultassem na responsabili-zação dos culpados. “A boa perícia só pode ser feita com laudos completos. Então foi isso o que o CRM fez: garantiu laudos completos, para que a perícia desenvolvesse o estudo, para se saber de que forma foram mortas essas pessoas, para dizer se ocorreu extermínio. A perícia (do Insti-tuto de Criminalística) tinha todas as condições para saber se houve extermínio ou não, pelo re-latório entregue. Nós fizemos inclusive um mapa onde os corpos foram encontrados”, frisa.

“Não temos como dizer que foi execução, mas há tiros que foram à queima roupa, tem perfu-rações que não são da violência urbana normal, que atira de uma média distância. Há óbitos com tiros na nuca, posições que não falam a fa-vor dessa violência cotidiana. Cabia ao Instituto de Criminalística, que recebeu os laudos necros-cópico bem detalhados, dizer quantos cadáveres apresentavam características de extermínio.”

Desiré se diz frustrado com o arquivamento dos casos. “A gente buscou a transparência dos laudos, não há nada que os macule. Na medida em que não se conclui e arquiva, gera uma frus-tração em todos os que participaram, não só para o Conselho, mas para os próprios médicos legis-tas e as entidades. Fico contente em saber que

pelo menos a Defensoria está tomando partido na defesa da justiça e da ética”, afirma.

Esquadrão da mortE

Para a coordenadora do Observatório das Violências Policiais, Ângela Mendes de Almei-da, as características dos crimes de maio levam a crer que se trata de uma chacina praticada por policiais e grupos de extermínio, também forma-dos por policiais.

Ângela conta que o Observatório contabili-zou a morte de 194 pessoas por ação de agen-tes do Estado (policiais, guardas metropolitanos etc.) e indivíduos encapuzados a partir do notici-ário. “A fonte principal é o CRM”, afirma.

O Observatório analisa a violência policial a partir das notícias veiculadas na imprensa. “Não trabalhamos com boletins de ocorrência, nem com processos judiciais, mas essencialmente com notícias de jornal.”

As características de chacinas cometidas por policiais, segundo Angela, é que acontecem em locais públicos, como praças, padarias, bares. “Depois de matarem, os encapuzados vão em-bora calmamente, não têm pressa. Em seguida chega a polícia, muitas vezes sem ser chamada, carregam os corpos, as cápsulas detonadas, me-xem na cena do crime para impedir a possibili-dade de investigação.”

Ângela conta que os assassinatos são regis-trados pelos policiais nas delegacias, como resis-tências seguidas de morte. “Essa categoria RSM não existe no código penal. Mas como aquele que ‘resistiu’ está morto, o processo é arquivado. O 3º PNDH propõe inclusive que essa nomencla-tura não seja mais utilizada”. O termo resistência

seguida de morte é utilizado nos demais Estados brasileiros como auto de resistência.

“Nos documentos do tempo da ditadura co-locavam um T de terrorista no atestado de óbito do militante político, agora existe essa nomen-clatura de RSM, como se fosse uma categoria ju-rídica”, critica.

Para o defensor Mafezzoli, há semelhança entre as chacinas que são cometidas hoje e as do Esquadrão da Morte, liderado pelo delegado-torturador Sérgio Paranhos Fleury, nas décadas de 60 e 70. “O modus operandi é o mesmo, alte-ração do local, não preservação da cena do cri-me, passa uma viatura olhando o local, chega uma moto ou carro, pratica a chacina, aí vol-ta a viatura, as pessoas já estão mortas, mas le-vam para o hospital para dificultar a apuração do caso”, diz.

O jurista Hélio Bicudo foi a principal referên-cia da área a combater os crimes do Esquadrão da Morte. Ele conseguiu levar para trás das gra-des o próprio Fleury. As autoridades da época tiveram de elaborar uma lei às pressas para ga-rantir a soltura do delegado. A Lei Fleury, como ficou conhecida a legislação, assegura que réus primários possam ser colocados em liberdade.

Bicudo não acredita que a federalização das investigações vá solucionar os crimes de maio. “Esse pedido de federalização é absolutamente inócuo. Para mim ou se decide imediatamen-te ou essa decisão não leva a nada, porque já faz quatro anos que os crimes foram cometi-dos e as provas se diluíram.” Ele considera que a elucidação desses crimes só poderá ocorrer se o caso for levado à Comissão de Direitos Huma-nos da OEA.

O defensor público Antonio José Mafezzoli Leite mostra o local onde Débora Maria da Silva deve assinar para solicitar a federalização das investigações

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Lúcia Rodrigues é jornalista. [email protected]

“Ele estava há 14 dias de férias, trabalhava como balconista em uma papelaria. Pelo que as testemunhas contaram, estava esperando para jo-gar videogame aí começou a passar uma viatura da polícia olhando (para o local), passou várias vezes. Quando o carro da polícia sumiu, parou um carro preto com quatro pessoas e duas motos, com garupa e piloto, chamaram eles para fora e atiraram no menino oito vezes. Deu mais oito ti-ros no outro, que se fingiu de morto e ficou pa-ralítico. O meu filho vendo que já tinham atirado nos outros dois, começou a correr, aí atiraram na perna dele, ele caiu, foi tentar se defender, pôs a mão na frente tomou um tiro na mão, acertou na cabeça, ao todo foram nove tiros que deram nele. Coração, pulmão, pernas, braços, orelha. Depois os policiais voltaram e pegaram todas as cápsulas do chão e sumiram. Foram no pronto-socorro to-mar o meu depoimento e dizer que meu filho era bandido, que era um desocupado, que estava em local suspeito de ponto de tráfico. Mas o meu fi-lho nem fumava e nem bebia (conta aos prantos). Ele morreu no dia das mães, essa dor não passa. Eu queria morrer no lugar dele”, Ednalva Santos, cozinheira, mãe de Marcos Rebello Filho, 26 anos, assassinado no dia das mães em 14 de maio

“Sem cadáver não há crime. Ele morava co-

migo em Itaquera. Trabalhava vendendo água nos estádios, eventos, shows. Estava em liberda-de condicional, praticamente quase livre. Foi pre-so porque roubou uma caixinha de natal em uma padaria. Era um rapaz normal, alegre, brincalhão. Estudava, estava fazendo o primário, porque fi-cou um tempo na Febem. No dia 16 falaram na televisão que as coisas estavam voltando a nor-mal, meu filho disse que ia na casa da namorada. Eu disse, vai, mas vai com cuidado. A Rota esta-va pegando muitos jovens. Mataram muita gen-te naquele dia. E meu filho sumiu. Quem estava junto, disse que tinha muitos policiais da Rota e que abordaram ele. Quem conseguiu escapar, es-

capou, quem não conseguiu eles deram um fim. Meu filho desapareceu, mas ninguém diz nada, nem a polícia civil, nem a militar, nem a correge-doria. Eu fui em quase todos os IMLs de São Pau-lo, no das Clínicas, eu ia quase todo dia. Devem ter enterrado ele como indigente. É muito tris-te não ter uma sepultura. Ainda hoje eu vou ao IML. Queria achar pelo menos a ossada”, Fran-cisco Gomes, aposentado, pai de Paulo Alexandre Gomes, 23 anos, desaparecido em 16 de maio

“O Mateus foi para a escola, mas logo voltou

para casa porque não teve aula. Deixou o mate-rial e foi se encontrar com o amigo Ricardo Por-to de Noronha. Foram para uma pizzaria perto de casa, onde se reúnem famílias, jovens. Escu-tei um barulho de tiros, meu marido se desespe-rou e saiu correndo. Quando ele chegou o amigo dele, Ricardo, já estava alvejado no rosto, agoni-zando, levou mais de cinco tiros. Falaram para o meu marido que o Mateus tinha corrido em dire-ção ao morro. Ele foi atrás e quando virou à es-quina meu filho estava caído no chão morto. Ele colocou o Mateus nas costas e trouxe para a casa. Meu filho ia se formar. A escola fez uma homena-gem para os dois. Uma amiga fez um pronuncia-mento muito bonito falando sobre os sonhos que acabaram. Ele não tinha nenhuma passagem pela polícia. As testemunhas falaram que foram enca-puzados em duas motos. A polícia ronda e depois eles aparecem”, Vera Lúcia Andrade de Freitas, aposentada, mãe de Mateus Andrade de Freitas, 21 anos, assassinado em 17 de maio

“O relatório do delegado diz que o meu filho

morreu por causa de dívida com o tóxico e que o outro menino, Ricardo, morreu como queima de arquivo. Só que quando eu corri ao ouvir os tiros, quem foi alvejado primeiro foi o Ricardo, o meu filho foi assassinado duas quadras depois. Então como podem falar isso no inquérito. Peguei o lau-do toxicológico no IML e nada constava. Quan-

do o crime é cometido por polícia ou autoridades eles são protegidos, até agora não tem uma res-posta da justiça para saber quem são os responsá-veis por essas mortes. Quando morre uma pessoa dos bairros, onde moram os trabalhadores, antes de morrer já é bandido, e dizem se não é, ia ser. Foi essa mentalidade vingativa que gerou o fas-cismo, o nazismo. A mentalidade policial é muito violenta. O próprio promotor disse que havia in-dícios de que fora grupo de extermínio que matou meu filho, mas arquivou o caso. A Justiça serve para a opressão, só funciona em cima do pobre, os outros ela não atinge. O caso do Ricardo, co-lega de sala do meu filho, a avó tinha ele como esteio, jogava muita bola, podia estar no Santos ao lado do Robinho. Ele não tinha nem pai nem mãe, era criado pela avó desde os três anos. Um menino jóia, qualquer mãe queria ter um filho como aquele, como o Mateus. O Mateus queria es-tudar informática, no computador ele era um gê-nio, fazia tudo, lia muito”, João Inocêncio Cor-rea de Freitas, agricultor, pai de Mateus Andrade de Freitas, assassinado em 17 de maio

“Perdi meu filho no dia das mães. A notícia

que chegou era a de que dois caras passaram de moto encapuzados e mataram ele. Mataram meu filho e mais um menino e outro foi baleado. Ele estava em uma lan house e os caras chegaram de repente. É triste perder um filho nessas con-dições. Não tenho nem palavras. A vida dele era normal, não tinha passagem. Mas pelo que eu fi-quei sabendo foi a policia que matou ele. A gente fica sem confiança no poder público. O caso dele está arquivado e ninguém faz nada. Com certeza eles se valeram dos ataques do PCC para jogar na conta deles. Acredito que vai ter justiça”, Marcí-lio Roberto Soares, aposentado, pai de Tiago Ro-berto Soares.

O relato de mães e pais dos jovensassassinados no maio sangrento

João Inocêncio Correa de Freitas, Marcílio Roberto Soares, Ednalva Santos, Francisco Gomes, Vera Lúcia Andrade de Freitas

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este ano, a escola de samba Rosas de Ouro foi a campeã do carnaval paulistano com um samba-enredo que puxava o públi-

co com a frase “O cacau chegou”. A expressão, no entanto, foi fruto de uma mudança de última hora, exigida pela Rede Globo. O original dizia “O cacau é show”, clara alusão ao patrocinador da escola, a fabricantes de chocolates Cacau Show.

Ano que vem, outra escola pretende seguir os passos da Rosas de Ouro, e vender o seu tema. A carioca Mocidade Independente de Padre Miguel já anunciou o enredo de seu samba em 2011: agricul-tura brasileira, e o patrocinador será a CNA (Confe-deração Nacional de Agricultura e Agropecuária), presidida pela senadora do DEM, Kátia Abreu.

A CNA é conhecida como uma das organi-zações mais reacionárias da sociedade brasileira, porta-voz dos interesses dos grandes latifundiá-rios e principal expoente na organização da CPMI do MST. Desde já, fica a dúvida quanto a abran-gência do desfile da Padre Miguel.

SaudadeS doS “velhoS tempoS”A “mercantilização do carnaval” não é de

hoje, mas impressiona como, a cada ano, as es-colas têm se rendido mais à pressão do dinheiro e da Rede Globo, fazendo com que a festa do povo venha se transformando na festa do capital.

Maria Apparecida Urbano, que tem mais de 30

anos de carnaval e é autora, entre outros, do livro Carnaval e samba em evolução na cidade de São Paulo, conta um pouco da história do carnaval. Se-gundo ela, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro as primeiras folias de carnaval eram feitas por ex-escravos, e tinham raízes nas culturas afri-canas, sendo caracterizadas pelos batuques.

Tais manifestações, no entanto, eram constan-temente reprimidas pelo poder público. “Antes a polícia levava em cana qualquer grupo de negros batendo em instrumentos, mas eles conseguiram se fortalecer e entrar no carnaval” conta.

Na primeira década do século XX começaram a surgir os primeiros cordões carnavalescos, que aglutinavam um grande número de pessoas e se-guiam pelas ruas. Os famosos blocos, que eram organizações menores, de bairros ou muitas ve-zes até de famílias surgiram pouco tempo depois, e se caracterizavam pela presença de um tema e integrantes “uniformizados”. Muitas vezes esses blocos tinham a função de levar as pessoas até os bailes, muito comuns na época.

As escolas de samba começaram a surgir entre as décadas de 1910 e 1920, e participavam de pe-quenas competições junto com os blocos. Naque-la época, no entanto, não havia tantos critérios

como hoje em dia, e o período do carnaval ainda era profundamente marcado por uma sensação de brincadeira generalizada, com guerras de confete nas esquinas das cidades, fantasias improvisadas, homens que se vestiam de mulher e vice-versa.

Um dos golpes principais para que o carnaval fosse oficializado e organizado se deu, em São Pau-lo, em 1968, quando o então prefeito da cidade, Bri-gadeiro José Vicente Faria Lima, obriga que todos os cordões virem escolas de samba e institui um desfile oficial na Avenida São João, no centro da ci-dade. O Rio de Janeiro já havia passado por uma si-tuação similar a esta, e também possuía regulamen-tação oficial para as comemorações de carnaval.

Com esta medida, o prefeito consegue “conter” as folias de carnaval, que cresciam a cada ano, e os blocos se veem obrigados a se transformar em es-colas de samba, ou seriam postos na ilegalidade.

plim-plimOutro passo importante para que o carnaval se

tornasse o espetáculo grandioso que vemos hoje, segundo Maria Apparecida, foi a ação da mídia. “Todas as escolas queriam parecer maiores nas coberturas do rádio, e depois nas revistas e tele-visão, então foram crescendo”.

O compositor Famelli Júnior, que também in-tegrou por muitos anos escolas de samba paulis-tas e atualmente participa do projeto SP em reta-

Bárbara Mengardo

Foto

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Escolas de samba vendem seus temas, cobram caro por fantasias

e fazem as vontades da Rede Globo, tudo em nome do dinheiro.

No CaRNaval,tudo está à venda

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lhos, que resgata o samba feito pela velha guarda do carnaval, vai mais fundo, e afirma que a tele-visão enterrou a história do carnaval.

Segundo ele, na época em que o carnaval foi oficializado era a Rede Cultura que realizava a cobertura dos desfiles, “Porque até então carna-val era cultura” afirma. Pouco mais de 20 anos após a oficialização, no entanto, a Rede Globo se tornou responsável pela cobertura, o que marcou a mudança de caráter do carnaval, que deixa de ser cultural e passa a comercial.

A partir daí, foi uma escalada para a comple-ta mercantilização que vemos hoje, com direito a empresas influindo nos temas das escolas, redes de televisão ditando o que vai ou não ser apresen-tado e escolas de samba distantes de suas comu-nidades, vendendo seus postos de destaque para atrizes ou celebridades.

No momento em que os desfiles de carnaval se tornam um produto televisivo, diversas regras de-vem ser seguidas, e muitas destas tiraram das apre-sentações pontos fundamentais de sua existência.

Uma das alterações que vieram junto com a co-bertura televisiva foi a obrigatoriedade de os desfi-les terem 65 minutos, já que é preciso controlar o tempo que o programa ocupará. O limite de tempo virou um dos guias dos desfiles de carnaval, e gerou diversas mudanças no caráter das apresentações.

Primeiramente, há um fator que se tornou tão normal que passa quase despercebido: os partici-pantes dos desfiles não sambam mais. Para con-seguir atravessar a avenida sem sofrer penalida-des, muitas vezes os integrantes das escolas têm que correr, e o samba, considerado um símbolo do carnaval, é deixado para trás por conta de uma imposição das emissoras de televisão.

Por conta da preocupação com o tempo, algu-mas escolas cogitaram até mesmo retirar algumas de suas alas, por gerarem atrasos “Há pouco tem-po atrás queriam acabar com a ala das baianas porque diziam que elas atrapalham o andamento da escola. Já pensaram em acabar com a ala das crianças, porque elas não aguentam, e chega tal hora elas tão quase dormindo” afirma Famelli.

Para o compositor, a necessidade de “compri-mir” a escola em 65 minutos gerou ainda mais efeitos negativos para o carnaval: com a pressa, o andamento do samba tem que ser mais rápido, e as baterias mais aceleradas. O resultado é uma batida homogeneizada e foliões estressados.

Os desfiles sofreram uma grande perda no mo-mento em que as escolas começaram a pensar e fazer o carnaval da maneira que ficaria mais bo-nito na televisão. Para a Globo, é importante que os desfiles sejam um grande tapete colorido no sambódromo, e as escolas tomaram para si a tare-fa de realizar este desejo. “Esse desfile que é feito no sambódromo é feito para televisão. Você não vê falhas, não vê o chão. As fantasias são gigan-tes, ficam batendo umas na outras, mas para a te-levisão aquilo é o essencial” diz Famelli.

Até a cobertura feita pela televisão é passível de críticas por parte dos que conhecem melhor o samba no país. Para Famelli, não há um cuida-do por parte da Globo em valorizar os desfiles e os sambistas. “Quando o carnaval era transmiti-

do pela Cultura o repórter sabia quem era quem, mas a Globo não tem preocupação nem em colo-car os nomes certos, porque pra eles tanto faz, é japonês que vai ver mesmo”.

além do CoNfete

A cada ano vemos desfiles mais grandiosos e deslumbrantes nos sambódromos. Os carros alegó-ricos ficam maiores, os efeitos de luz, movimento e até mesmo cheiro são mais sofisticados, e as rou-pas são mais brilhantes e coloridas. O carnaval tem a função de impressionar, e qualquer escola que não siga este crescendo de luzes, brilhos, cores e tama-nhos terá poucas chances de ganhar a competição.

A mídia impôs um padrão de desfile, que deve ser atraente visualmente, e as escolas devem seguir estes quesitos, ou não terão chances de desfilar no grupo especial. Para tanto, há uma escolha a fazer: ou as escolas aumentam sua visibilidade buscando patrocínios, vendendo seus postos e aumentando os preços aos participantes, ou são esquecidas. “É uma faca de dois gumes, ou você aparece grandio-sa ou desaparece” diz Maria Apparecida.

A professora Mary Lúcia Prado, fundadora do bloco de rua Filhos da Mamães diz que há mui-to tempo não vai mais aos desfiles no Sambódro-mo, pois acha que houve uma padronização das apresentações. “É só a beleza e o visual que im-portam, é para turista ver” afirma.

Para ela, uma das principais perdas do car-naval se deu quando as escolas passaram a pen-sar apenas nos quesitos e em agradar os jurados: “Eles tentaram organizar demais, então até parece vestibular; você só quer passar a acabou” diz.

Além desta padronização, uma das responsá-veis pela perda de criatividade nos desfiles, as escolas também sacrificaram a ligação com suas comunidades em troca do dinheiro.

É caro participar do carnaval hoje. As fantasias têm preços elevados, e Famelli conta que existem ainda escolas que cobram até 30 reais para que seus integrantes possam assistir aos ensaios, o que dis-tancia ainda mais estas instituições das comunida-des da qual fazem parte, muitas vezes pobres.

Desta forma, muitas pessoas que preparam a escola para o sambódromo não podem participar dos desfiles, devido ao alto custo. “Muitas pesso-as ajudam a escola o ano todo, mas quando che-ga o carnaval ou estão na arquibancada ou nas telinhas em casa, porque não têm condição de pa-gar” afirma Maria Aparecida.

Visando o dinheiro que aumentará sua visibili-dade, as escolas há muito tempo optaram por au-mentar o custo para quem pretende desfilar, crian-do uma situação esquizofrênica: as escolas vêm de bairros muitas vezes da periferia, mas os que des-fiam no sambódromo são, em sua maioria, pessoas de classes mais altas, sem nenhuma ligação com a comunidade ou mesmo com a escola.

Apesar de não ver esse fato como negativo para a qualidade dos desfiles de carnaval, Maria Apparecida conta que hoje as escolas de samba estão “inchadas”. Isso porque o número de com-ponentes das escolas não é suficiente para fazer um desfile como é exigido pela mídia, então as escolas têm que chamar pessoas de outros luga-

res para o sambódromo, como universitários, em-presários, etc. ”O núcleo da escola de samba não é o que se vê na avenida, são de 800 a mil pes-soas da comunidade que participam da organiza-ção. Na avenida ela tem que inchar para mostrar sua grandiosidade, então pede ajuda” diz.

Para piorar o quadro, as escolas optam ainda por darem seus destaques a atrizes e celebridades, enquanto podiam valorizar as pessoas que perten-cem à sua comunidade. “Infelizmente, ao invés de mostrarmos nossas rainhas, estamos mostrando as grandes artistas” afirma Maria Apparecida. Famelli concorda com a crítica: “Porque chamar uma atriz se há uma menina que é da sua comunidade, que sabe sambar, que sabe o samba da sua escola?”

O compositor afirma ainda que no panorama atual, escola de samba deveria se chamar micro-empresa de samba. Isso porque hoje, tudo den-tro destas instituições virou mercadoria. Se antes era comum que os integrantes improvisassem na construção das fantasias e carros alegóricos, bus-cando os materiais mais baratos e acessíveis para a construção, hoje essa tradição se perdeu.

“Antes não tinha dinheiro pra fazer os desfiles, então as pessoas tinham que se virar, pegar reta-lho no Bom Retiro, ir ao ferro-velho. Quem não era marceneiro tinha que ser, quem não era ser-ralheiro tinha que ser, hoje não é assim” diz Fa-melli, que afirma ainda que atualmente as esco-las pagam uma empresa, que vai ao barracão e faz as roupas e carros. As pessoas da comunida-de não se envolvem mais na produção, o que fez com que o carnaval tenha perdido seu caráter de informalidade, de improviso.

Cada vez mais a ligação entre as escolas e as co-munidades têm se perdido, o que leva ao extremo de muitas das figuras importantes dentro da estru-tura de uma escola de samba não serem mais seus membros fiéis. Um exemplo são os compositores de samba, que muitas vezes disputam por mais de uma escola, ou optam pelas que pagam mais. Fa-melli explica: “Hoje os compositores disputam em várias escolas de samba, e quando dá um azar eles ganham em várias delas. Aí quando vai pra aveni-da você ouve e fala: ‘nossa, mais a melodia de um é igual a do outro, que é igual a do outro’”.

Nesta sucessão de perdas sobra para os sam-bas-enredos, que ficam comprometidos com quem pagar mais. Um exemplo deste processo aconte-ceu em 2007, quando a escola Nenê de Vila Ma-tilde homenageou o empresário João Jorge Saad, fundador da Rede Bndeirantes. Na época a Nenê recebeu dinheiro da emissora.

Comprometidas financeiramente com o objeto de seus sambas, é pouco provável que as escolas façam críticas ou mostrem todas as nuances de seu tema, e assim, mais um ponto do carnaval é prejudi-cado por conta da sua relação com o dinheiro.

Mary faz um questionamento que resume os aspectos negativos das mudanças pelas quais têm passado o carnaval: “Você lembra o samba da escola que ganhou? Mesmo assim, todo mundo lembra de ‘mamãe eu quero’, ‘me dá um dinheiro aí’, e quantos anos têm essas músicas?”

Bárbara Mengardo é estudante de Jornalismo.

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um indígena, inteiramente nu, apontando uma flecha em direção ao céu. Ao seu re-dor as palavras “utopia, paixão e resis-

tência”. O logo do grupo gaúcho de teatro Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz já evidencia um pouco de seus valores e influências. O anar-quista francês Antonin Artaud (1896-1948), po-eta e diretor teatral ligado a correntes surrealis-tas, grande inspiração do grupo ao lado do teatro épico de Bertold Brecht, afirmava que o teatro deveria recobrar seu sentido religioso e metafísi-co extraviado pela civilização ocidental. Fazendo referência a essa linha teórica, deram o nome de sua sede de Terreira da Tribo.

Paula de Carvalho, atriz e integrante do grupo, explica a escolha das palavras: “O termo tribo co-

Gabriela Moncau

Grupo gaúcho Tribo de Atuadores consolida experiência de teatro popular dedicado ao debate dos temas políticos e sociais. Foto Claudio Etges.

A vivência de umteatro de combate

meçou a ser usado em 1981, três anos após o sur-gimento do grupo, porque sugere o tipo de uma sociedade que emerge baseada na comunidade e na camaradagem, nas relações pessoais diretas e na responsabilidade individual. Remete às comu-nidades indígenas, e a um modo de vida mais co-nectado com as forças do cosmos, em que cul-tura e vida não são vistas como separadas”. Ela explica que “terreira vem de terreiro, lugar onde se celebram os cultos afro-brasileiros, espaço ri-tual, onde o homem entra em contato com o di-vino, incorporando as energias da natureza, es-paço feminino e libertário”.

Esse ano, o Ói Nóis Aqui Traveiz vem apresen-tando em diversas regiões do país o seu mais novo espetáculo de rua, O amargo santo da purificação,

contando a história do guerrilheiro Carlos Mari-ghella, que participou da luta armada contra a dita-dura militar brasileira, sendo assassinado em uma emboscada em 1969. Depois de o Supremo Tribunal Federal ter votado, no último dia 27 de abril, que as torturas e os assassinatos cometidos pelo Estado du-rante o regime civil militar se enquadram no rol de crimes políticos e não comuns, mantendo seus au-tores “anistiados” e impunes, o caráter de denúncia da encenação não parece desatualizado.

Para Carvalho, “além da homenagem ao herói popular que setores dominantes tentaram banir da cena nacional durante décadas, a peça coloca em discussão a democracia brasileira atual”. “A neces-sidade da abertura dos arquivos da ditadura para exercer o direto à verdade, da apuração e julga-

O grupo acredita que o teatro pode e deve ser um elemento transformador.

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mento das violações dos direitos humanos e uma revisão política de segurança pública para efetiva-mente consolidar um Estado democrático de direi-to, que respeite a todos”, enumera a atriz.

O espetáculo já passou por 13 cidades do sul e do sudeste (Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Minas Gerais) dentro do Programa BR de Cultu-ra e participando do Palco Giratório do SESC se apresentou em Fortaleza, Quixeramobim, Iguatu, Juazeiro do Norte, Nova Olinda, São Lourenço da Mata, no Recife e Cuiabá. Em junho a peça percor-rerá os assentamentos rurais do Rio Grande do Sul e no final de julho começará a sua segunda etapa de viagens, passando por Brasília, São Paulo, Pe-trolina, Campo Grande, Salvador, entre outras.

InícIo do grupo

Surgindo ao final de 1977, período da chamada “abertura” da ditadura sob o comando do general Ernesto Geisel, o grupo de jovens artistas militan-tes encontrou em meio à ebulição política e cultu-ral que as forças sociais começavam a reorganizar, espaços de contestação tanto ao regime quanto aos paradigmas da esquerda “convencional”, princi-palmente a que atuava nos setores artísticos.

Paulo Flores, também integrante do grupo e um de seus fundadores, relembra a crítica com a qual o Ói Nóis nasceu: “o teatro que estava sendo feito, principalmente em Porto Alegre, não rom-pia com a lógica de dominação. Desde o seu iní-cio o grupo nasce como uma oposição radical ao teatro convencional, de elenco, formado pelo produtor/diretor, esteticamente bem acomodado à situação. O grupo surge centrando sua pesqui-sa, investigação, na relação ator/espectador, que consideramos a essência do teatro”, narra.

Pouco tempo depois de sua formação, os inte-grantes do grupo passam a se autodenominar atu-adores, “a fusão do artista com o ativista político e ampliando um pouco mais, aquele que se envolve e compartilha de forma coletiva todas as etapas da criação e produção do espetáculo”, define Flores.

Sempre seguindo ideários anarquistas e orga-nizando-se em autogestão, o Ói Nóis Aqui Traveiz iniciou suas apresentações com teatro de choque, no intuito de impactar a burguesia intelectualizada e romper com o tradicional teatro contemplativo. Suas principais influências na época, além do tea-tro da crueldade de Artaud, eram o coletivo Living Theater, grupo de teatro experimental americano que se tornou ícone da contracultura das déca-das de 1960 e 1970 e o Teatro Oficina, que atuava em São Paulo a partir da mesma leitura do teatro como um instrumento de choque, agressivo à pas-sividade da aristocracia cultural e do pensamento pequeno burguês, mesmo que de esquerda.

Alguns críticos, porém, contestam a agressi-vidade dos teatros de contracultura, consideran-do que caem na armadilha de reafirmar o próprio cinismo da cultura burguesa que tentam denun-ciar. Para estes, a própria sistematização e pre-meditação do choque faz com que o público bur-guês apareça, pague, apanhe, se impacte, aplauda e saia aliviado com a sua tolerância democrática e com a alma lavada.

Em seu trabalho de Iniciação Científica, Estu-

do do espetáculo A Missão - Lembrança de uma Revolução: A relação entre o Teatro de Vivência da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz e a obra de Heiner Müller, o estudante de Artes Cê-nicas (USP) Paulo Toledo explica esse ponto de vista a partir do crítico literário Roberto Schwarz, citando trechos de seu ensaio Cultura e Política 1964-1969, que analisa o teatro de choque, prin-cipalmente do Teatro Oficina, à luz da contextu-alização sociopolítica da época. “‘Se alguém, de-pois de agarrado, sai da sala, a satisfação dos que ficam é enorme’, o que é um paradoxo irresolú-vel na estética do choque. A afirmação de Zé Cel-so de que ‘pela porrada o teatro comunica algu-ma coisa’ só se torna válida em relação aos que se alinharam aos agressores. Ou seja, só há ‘comu-nicação’ de fato entre aqueles que não foram re-almente agredidos, pois ficam e aplaudem eufori-camente ao fim da sessão, comemorando o efeito de asco e provocação gerado nos outros: ‘[...] o ci-nismo da cultura burguesa diante de si mesma’”, pondera o trabalho de Toledo.

Para Paulo Flores, porém, o momento era de uma forte ofensiva aos grupos de teatro que mais se sobressaíam no Brasil e tratava-se de, além de fazer uma crítica ao regime e à inativa intelectu-alidade das classes média e alta, de manter viva a pesquisa estética e política que esses grupos ha-viam realizado. “O Arena foi extinto pela repres-são e o exílio do Augusto Boal; o Oficina esta-va exilado, fora do país nesse momento. Assim, resgatamos a pesquisa e a experiência deles, para trazermos de volta a ideia de grupo teatral com uma proposta de intervenção na sociedade, cha-mamos de ‘teatro de combate’”, relata Flores.

teatro popularAo aprofundar suas pesquisas e experimenta-

ções, com a proposta de democratização da arte e a experiência de teatralização carnavalizada que já tinham das manifestações públicas da década de 1980, surge a vertente de teatro de rua do grupo, estreando seu primeiro espetáculo Teon, em 1985, um ano após a fundação da Terreira da Tribo. Em 1988 iniciam o projeto Caminho para um Teatro Popular, garantindo um calendário de apresenta-ção de espetáculos de rua e o Teatro como Instru-mento de Discussão Social, com oficinas gratuitas de teatro nas periferias de Porto Alegre.

Em seguida criam ainda uma nova vertente de ação, com a tentativa de transpor a unilateralida-de do espetáculo contemplativo. Trata-se do Te-atro de Vivência. Diferente do espetáculo de rua que conta com um público grande, o de vivência é mais restrito, com 20, 30, no máximo 50 especta-dores: “envolvemos o público o máximo possível, por meio do que chamamos de ‘cenas dos senti-dos’, o espectador não apenas vai trabalhar com o seu racional, mas vai ter uma experiência senso-rial. Costumamos dizer que buscamos trazer sen-sações reflexivas, que a sua experiência não fique só no plano do intelecto”, expõe Flores. A partir dos anos 1990, o grupo passa a ter o dramatur-go alemão Heiner Müller como grande referên-cia, que em sua leitura sintetizaria aspectos de Artaud e Brecht. Toledo define: “de um lado esta-

ria um teatro de refinada pesquisa estética e ritu-al, onde a razão fica à mercê da vivência, dando espaço para a subjetividade; de outro, a ação ar-tística intimamente ligada ao materialismo polí-tico, à dialética histórica, à luta social”. Em 2000, o Ói Nóis consegue constituir dentro da Terreira a Escola de Teatro Popular. De lá pra cá o grupo tem conseguido levar alguns de seus espetáculos pra zona rural, principalmente para assentamen-tos, por terem fortes vínculos com o MST do Rio Grande do Sul.

espaço de resIstêncIa

Se um dia a resistência se fazia aos militares no poder e à repressão que o Brasil enfrentava, hoje se trata de combater a silenciosa ditadura da so-ciedade de controle contemporânea, como define o Prof. Dr. Silvio Ferraz no prefácio do livro Uma tri-bo nômade – A ação do Ói Nóis Aqui Traveiz como espaço de resistência, de Beatriz Britto. Para ele, o grupo resiste hoje como “estratégia de vida em contraponto à forma muda de truculência do mer-cado e das políticas governamentais de fomento à cultura – forma pautada em outra interpretação dos fatos e outra sobrecodificação dos atos. Não se bate mais, mas mata-se por sufocamento”.

“Fazendo um teatro a serviço da arte e da po-lítica, que não se enquadra nos padrões da ética e da estética de mercado. O teatro como um modo de vida e veículo de ideias: um teatro que não comen-ta a vida, mas participa dela!”. A frase consta na apresentação da Tribo, no site do Ói Nóis, elencan-do a concepção de teatro que o grupo defende. As ideias libertárias que os balizam, além de aparece-rem na criação coletiva, na autonomia e na orga-nização não hierárquica do grupo, evidenciam-se também nos posicionamentos políticos que diver-gem da esquerda que chamam de ortodoxa.

“As disputas eleitorais, por exemplo, o grupo não acredita que vá haver uma transformação so-cial no país via institucionalidade da maneira como hoje estão postas as disputas, do jeito que o po-der econômico influencia as eleições”, aponta Paulo Flores, que traça um paralelo com a atualidade con-creta, “na realidade é o que estamos vivendo: chega um partido supostamente de esquerda ao poder, e ele precisa criar tantas alianças que acaba não con-seguindo nenhuma mudança substancial no país. A gente vivenciou isso muito em Porto Alegre, cidade dirigida pelo PT por 16 anos”.

O Ói Nóis Aqui Traveiz acredita que o teatro pode (e deve) ser um elemento transformador, um instrumento de mobilização. A leitura, porém, que fazem da prática cultural do país não é das mais animadoras. A briga pela qualidade do conteúdo artístico e o seu potencial crítico quase que deixa de aparecer, quando a disputa hoje ainda está na própria sobrevivência da produção cultural fora do mainstream. Flores se indigna, “o orçamento para cultura ainda é ridículo. Esse ano finalmente po-derá ser votado os 2% pra cultura, o que mudaria radicalmente o panorama geral da arte do país. A verba pública hoje está nas leis de isenção fiscal, nas mãos das grandes empresas”.

Gabriela Moncau é estudante de Jornalismo.

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duas cicatrizes profundas tornaram cada vez mais feio ultimamente o rosto de Is-rael, a ponto de deixá-lo irreconhecível.

Como se a humilhação promovida contra outro povo não bastasse, os dois mais recentes escânda-los estrondosos, que atingiram a população isra-elense como um terremoto, confirmaram nossas suspeitas de que o resultado da trágica ocupação dos territórios palestinos vai se tornar também um desastre para nós, os israelenses, e nosso so-frimento não será menor do que o dos palestinos. O pior ocorrerá com os judeus da Diáspora, que serão muito mais prejudicados.

A corrupção da cúpula já está arranhando o céu, de um lado, e de outro lado há o assassínio moral de uma ex-soldada, que está sendo acusa-da de espionagem.

O mOnstrO de JerusalémSob a ocupação dos cruzados, sob os otoma-

nos, e até sob o mandato britânico, as autoridades tinham muito cuidado com as construções altas e as fachadas de pedras trabalhadas a mão, em si-

nal de tolerância diante da diversidade e de em-penho em preservar Jerusalém como Terra San-ta. Isso para não deixar a Cidade Velha ficar uma anã diante de prédios altos, e para manter a vi-são dos tempos bíblicos.

Apesar da profecia de Isaías – “em cima das muralhas vou pôr guardas” – se teve de esperar a tomada por Israel de Jerusalém Ocidental em 1948 e da Cidade Velha em 1967 para se assistir à destruição da paisagem bíblica. Logo a Cidade Velha foi cercada por arranha-céus, praticamen-te desaparecendo da visão ao longe.

Em 1995 o então prefeito de Jerusalém, Ehud Olmert, nomeou o arquiteto Uri Ben Or como ur-banista da cidade, cargo em que este ficou até 2000. Seus esforços conjuntos fizeram surgir em 1999 o Livro de Diretrizes Urbanas, que aprovava a construção em vários pontos da cidade de pré-dios entre 24 e 30 andares. Só agora ficou claro que, por trás dessa política urbana, havia interes-ses de gigantescas empresas imobiliárias, cujos lucros se tornaram mais importantes do que res-guardar o patrimônio histórico da cidade.

O projeto se chamava Conjunto Habitacional da Terra Santa, mas seu anúncio provocou uma revolta pública. Um conjunto de arranha-céus com 10 mil unidades de moradias que só pesso-as muito ricas podiam comprar, por causa do alto preço (na maioria, os compradores são judeus dos Estados Unidos que só passam um mês por ano em Israel), era apresentado mentirosamente como solução para o problema habitacional.

Como ladrões na noite, se reuniam desde en-tão sigilosamente as comissões de urbanismo da Prefeitura e regionais, para não ouvirem em audi-ências públicas as queixas dos cidadãos indigna-dos. Quando explodiu esse escândalo trágico, ago-ra, isso chocou a população e inundou os meios de comunicação (veja a ilustração do jornal Ha’aretz). Ficou claro que milhões e milhões de dólares se transformaram em propinas nos bolsos dos “pais da cidade”, dos eleitos, do próprio Olmert, cujo vi-ce-prefeito era Uri Lupiansky, um dos líderes do Partido Religioso, que se tornou prefeito quando Olmert foi nomeado chefe do governo.

Também os chefes administrativos da Prefei-

Gershon Knispel

“No ano que vem,

em Jerusalém”Reprodução do jornal Ha’aretz.

Arranha-céus irregulares arruínam a paisagem bíblica da Terra Santa.

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Gershon Knispel é artista plástico.

tura receberam propinas enormes que aceleraram os processos burocráticos de aprovação, até a coi-sa toda se tornar um monstro sem limites. Os altos burocratas que se opuseram ao projeto foram vi-timados por pressões violentas, houve até ameaça de demissão, e alguns foram realmente demitidos.

O promotor do processo, que já está em anda-mento sobre as propinas de Olmert, pediu para ser interrompida a ação judicial, no mês passado, por-que surgiram evidências de um novo delito – Ol-mert, que estava em férias em Madri, foi chamado às pressas para enfrentar o tribunal, e teve de sair no meio de um jogo do Real Madrid a que estava assistindo. Ainda não há provas defi nitivas, mas os indícios são de que, já quando primeiro-ministro, Olmert continuava interferindo para fazer avançar o Conjunto Habitacional da Terra Santa.

As gigantescas imobiliárias que deram nome ao projeto tornaram uma piada o termo Terra Santa. Não só os arranha-céus arruinaram a pai-sagem bíblica, como havia ao alto deles uma pon-te que unia todos, como um cinturão colossal que torna o conjunto de prédios um bloco monolíti-co enorme aplastrado sobre o chão que assombra como um pesadelo todo o ambiente. Foi a primei-ra vez que a população mostrou tanto interesse num assunto urbano, pois ela se sente chocada e impotente diante de um tão vasto enredamento de propinas que redundou numa cicatriz inextir-pável na face de Jerusalém.

É difícil avaliar o profundo desastre da humilha-ção sentida pelos israelenses, mas já se pode enten-der a profunda desilusão que vai afetar os judeus da Diáspora, que há dois mil anos entoam diariamente nas suas preces a frase: “No ano que vem, em Jeru-salém”. Essa metáfora está despedaçada.

Quem podia acreditar que, quando Jerusalém fosse devolvida aos que se julgam seus donos, eles mesmos transformariam em ruínas o rosto milenar de Jerusalém? Voltamos a nosso profeta Isaías, que no capítulo 69, versículo 17, diz: “Os desencadeadores de ruínas e demolições vão, en-tre os seus, se levantar”. Os maiores inimigos de Israel não estão fora, estão dentro.

O delItO da esPIÃAnat Kam, que no passado era a chefe do gabi-

nete do Quartel-General do Centro do Exército de Israel, esteve dois anos e meio nesse cargo preen-chido por recrutamento obrigatório. Querendo ou não querendo, estava numa função em que tinha acesso a milhares de documentos secretos, ordens do dia, planejamentos de ataques bem anteriores à Operação Chumbo Fundido em Gaza.

Esses documentos mostram claramente que o ataque em Gaza foi planejado muito tempo antes. Num apertar de botão do computador, saíam mi-lhares de documentos secretos. Anat Kam entre-gou parte deles ao repórter de assuntos militares do Ha’aretz, Uri Blau. Alguns deles Blau já publi-cou no seu jornal, o mais importante de Israel, em setembro de 2009. A censura não se opôs, mas si-multaneamente o comandante-chefe do Exército deu ordem para a Shin Bet, o serviço secreto, in-vestigar onde ocorrera o vazamento.

Apesar das grandes pressões, o repórter não

quis identifi car a sua fonte e acabou saindo do país por ordem dos advogados do jornal. Mas os investigadores do serviço secreto conseguiram identifi car Anat Kam, que depois do serviço mili-tar também se tornou repórter. O serviço secreto exigiu do Tribunal Central de Tel Aviv que emitis-se uma ordem de prisão judicial para Anat Kam, que cumpre até hoje essa prisão domiciliar.

Em paralelo, o juiz deu ordem de não publi-car mais nada desses acontecimentos, mas como sua jurisdição não é internacional meios de difu-são de outros países divulgaram com alarde tudo que puderam. Embora a população e os meios de comunicação apresentassem críticas crescentes, o serviço secreto não permitiu a abertura de uma discussão aberta sobre o assunto tão delicado.

Com “timing” trágico, na véspera dos feste-jos da independência de Israel, os juízes libera-ram para divulgação os fatos referentes tanto ao escândalo urbano quanto aos documentos secre-tos. Os jornais e a televisão publicaram tudo com estardalhaço. O público fi cou chocado, começan-do a acompanhar com sentimentos opostos todas as informações sobre esses dois delitos, que lan-çaram uma sombra pesada em cima da abertura das festas do Dia da Independência.

A divulgação do Terra Santa pôs a nu o tama-nho e a extensão de uma rede de propinas como jamais havia sido vista em Israel e que alcançava os mais altos níveis de governo, para espanto e decepção do povo. O anúncio do processo por es-pionagem contra a jovem Anat Kam visava o lin-chamento moral da ex-soldada, usada como bode expiatório pelos bastidores do governo.

Assim as acusações deixariam de afetar os verdadeiros culpados para convergirem na moça, como escreve o Yedioth Achronot, o mais impor-tante vespertino de Israel. Constatou-se o caos no Exército: é assim que se guardam documen-tos secretos? Qualquer menina pode revelá-los ao mundo? É como o caso de Mordechai Vanunu, que revelou os segredos das armas nucleares de Israel em Dimona. Para Vanunu, o bem do mundo foi mais importante do que o segredo de Israel.

Mas a reação foi contrária ao que esperavam as autoridades. Desde o momento que Anat Kam apareceu na televisão e sua trajetória pessoal foi

conhecida de todo mundo, a conclusão geral foi de que ela era uma jovem que ilumina a aber-tura do país, criada no movimento juvenil de vanguarda, com patrimônios morais de igualda-de, tolerância mútua. Sua presença foi mais for-te, no sentido positivo, do que dezenas de arti-gos de jornais.

Afi nal, os documentos não haviam sido entre-gues ao inimigo e a motivação de sua entrega não havia sido o dinheiro. A prova é que todos os do-cumentos foram dados para o repórter de assun-tos militares do jornal, e isso para tornar pública a política que continua sendo seguida pelo coman-dante-chefe do Exército, ignorando e humilhan-do as claras ordens da Suprema Corte, que lançou a chamada Bandeira Negra, proibindo as autori-dades militares de darem ordens para cometer cri-mes de guerra e exigindo que os subalternos não cumprissem essas ordens. (Veja o livro Os refuse-niks, de Peretz Kidron, Editora Casa Amarela).

Os resultados já sabemos: ultimamente, mui-tos atos de Israel foram identifi cados como crimes de guerra pela ONU, enquanto os envolvidos, seja de nível estatal, seja da chefi a do Exército, estão proibidos de deixar Israel, por causa da ameaça de serem levados ao banco dos réus no Tribunal Penal Internacional.

A questão desses ofi ciais e soldados do Exér-cito que se negam a prestar serviço militar nos territórios ocupados e do vazamento dos docu-mentos por Anat Kam começou a subir nas prio-ridades públicas, como também a prisão domici-liar dela e o processo contra ela por espionagem se tornaram assuntos quentes. E a questão que não deixa de ser discutida: se agentes de segu-rança têm o direito de obrigar os jornalistas a re-velar as fontes de suas notícias.

Até os generais reformados, pela primeira vez, estão dizendo claramente, em entrevistas nos jor-nais e na televisão, que o dedo da acusação deve ser dirigido primeiramente contra os comandan-tes do Exército, por deixarem que documentos se-cretos sejam divulgados publicamente, chegando até os inimigos, com uma facilidade tão grande.

Se está repetindo a pergunta sobre se não foi a ocupação que nos deixou loucos. Como podemos ignorar um fenômeno que precisava ser discuti-do? A juventude que foi criada e assimilou os va-lores de só usar armas quando necessário, de ser-vir realmente num Exército de defesa, está jogada assim sempre para a ação obrigatória no Exérci-to, logo depois de terminar o secundário, fi cando desse modo envolvida em coisas terríveis, como chacinas e massacres. Dia a dia, hora a hora, co-mandantes e soldados se negam a continuar.

Uma soldada que quer gritar, protestar con-tra essas brutalidades proibidas pela Suprema Corte, quer apenas partilhar as informações com toda a população. Que Dia da Indepen-dência! Toda a retórica rotineira, os superlati-vos habituais, que se repetem todo ano, foram rasgados e jogados fora. Os limpadores de rua precisaram impor a ordem.

O serviço secreto de Israel acusou Anat Kam de es-pionagem, por ter passado informações para o jornal Ha’aretz sobre os ataques à Gaza.

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IDEIAS DE BOTEQUIMRenato Pompeu

Com maciças 300 pági-nas e citação de centenas de fontes, em grande parte inéditas, o livro Canga-ceiros, do historiador Luiz Bernardo Peri-cás – bastante conhecido por seus traba-lhos sobre Che Guevara e sobre o teórico indigenista marxista peruano José Car-los Mariátegui – , lançado pela Boitempo Editorial, já nasce destinado a se tornar um clássico sobre o cangaço no Nordes-te brasileiro, abarcado em toda a sua vi-gência, de 1890 a 1940. Os simples no-mes dos capítulos já dão ideia do caráter abrangente e exaustivo da obra: Teoria do banditismo social; Origens de classe e motivações para a entrada no cangaço; Mulheres e crianças dentro do cangaço; Relações sociais e estrutura dos bandos; Aspectos militares de volantes e canga-ceiros; Punições, torturas e a questão “racial” no cangaço; Secas e crises eco-nômicas; Prestes, Lampião, o movimento operário e os comunistas; O cangaço en-tre o arcaico e o moderno; Conclusões.

Na introdução, Pericás faz um apanhado das obras anteriores sobre o tema: “O fenômeno do cangaço ‘independente’, que começou na segunda metade do século XIX e durou até cerca de 1940, foi extensamente estu-dado por uma grande quantidade de autores. A maior parte das obras so-bre o tema, contudo, é de qualidade duvidosa. Escritas no calor do momen-to, em linguagem quase literária e muitas vezes preconceituosa, ou então para justifi car determinados posicionamentos políticos, difi cilmente pode-riam ser consideradas ‘estudos’ sérios. Em geral mal escritos, esses textos – muitos deles biografi as ou esboços biográfi cos – contêm excesso de erros, equívocos, informações contraditórias e falta de citação de fontes”.

Depois de citar trabalhos mais jornalísticos, Pericás critica obras consagradas sobre o tema: “Mais tarde, começaram a surgir interpreta-ções de estudiosos politicamente à esquerda, enfocando principalmente o contexto de injustiça social do sertão para, de certa forma, entender e até mesmo justifi car o desenvolvimento do cangaceirismo. Autores como Rui Faço e Christina Matta Machado9, fossem de origem partidária, jornalísti-ca ou acadêmica, em alguns casos também se mostravam, em grande me-dida, favoráveis aos bandoleiros, mesmo que de forma dissimulada, vendo neles quase que ‘embriões’ de possíveis guerrilhas sociais no interior da re-gião. Essas análises pioneiras (ainda que tentativas mais sofi sticadas que a de seus antecessores), ainda assim, estavam excessivamente infl uencia-das pelo pensamento dissidente e ‘socialista’ em voga na época. Esses li-vros, portanto, acabavam também repletos de problemas teóricos, de mar-xismo ‘vulgar’ e de simplifi cações grosseiras das motivações e atuação da maioria daqueles bandoleiros.

“É claro que há exce-ções. Diversos scholars, nacionais e estrangeiros, trabalharam o tema de forma séria e competente. Cabe aqui destacar, entre outros, Frederico Per-nambucano de Mello e seu Guerreiros do sol, certamente uma das mais sofi s-ticadas interpretações do cangaceiris-mo. Também vale mencionar o trabalho de Oleone Coelho Fontes, que, apesar de produzir uma narrativa mais convencio-nal e biográfi ca, é calcada em vasto le-vantamento documental e amplo ma-terial bibliográfi co11. Jorge Villela, com o seu O povo em armas, por outro lado, dá uma importante contribuição para o estudo do banditismo rural nordestino no período da República Velha, espe-cialmente por meio da análise de vas-ta documentação”.

Como se vê, a ambição de Pericás não é pequena, já que pretende ao mesmo tempo incorporar e superar os trabalhos anteriores sobre o cangaço.

Entre outros lançamentos importantes de não fi cção, des-taca-se, pela Garimpo, o livro O cristianismo é bom para o mundo? – Um debate, em que o ateu e ex-mar-xista Christopher Hitchens, ana-lista político inglês radicado nos Estados Unidos, e o cristão Dou-glas Wilson, pastor e professor americano, dão respostas opos-tas à pergunta do título. Diz a contracapa: “As principais polê-micas, desde a simples existên-cia de Deus até a explicação para o mal no mundo, estão registra-das e sintetizadas nesta autênti-ca colisão de ideias e conceitos entre dois pensadores brilhan-tes”. A última palavra, como não poderia deixar de ser numa obra originalmente publicada nos EUA, cabe ao cristão Wilson.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O Mun-do como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista, rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP. www.renatopompeu.blogspot.com

OBRA SOBRE O CANGAÇO JÁ NASCE CLÁSSICA; ateu e cristão discutem Deus

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