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E.T.A.HOFFMANN

DOMJUAN

TraduçãodeAntônioMarquesRodrigues

FREEBOOKSEDITORAVIRTUAL–CLÁSSICOSESTRANGEIROS

TERROR-HORROR-FANTASIA

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Título:DOMJUAN.

Autor:E.T.A.Hoffmann(1776–1822).

Tradução:AntônioMarquesRodrigues(1826–1873).Traduçãooriginalmentepublicadanoperiódico“OCidadão”(PE)em1854.AdaptaçãotextualdePauloSoriano.

Imagemdacapa:Alexandre-ÉvaristeFragonard(1780–1850).

Leiautedacapa:Canva.

Série:ClássicosEstrangeiros–vol.32.

Editor:FreeBooksEditoraVirtual.

Site:www.freebookseditora.com

Direitos:Originaletraduçãodedomíniopúblico(art.41,caputdaLeinº9.610,de 19 de fevereiro de 1998). Adaptação textual: © Paulo Soriano. Proibida areproduçãosemautorizaçãopréviaeexpressadoeditor.

Ano:2017

Sitesrecomendados:

www.triumviratus.net,www.contosdeterror.com.br

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SumárioDOMJUANSOBREOAUTOR

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DOMJUAN

Avozsonoraquedizia“vaicomeçaroespetáculo!”acordou-medobrando

sonoemqueeuestava.Asviolasmurmuram...ouçoprelúdiosdeviolinos...umaconsonância de trompa... uma nota de oboé... esfrego os olhos... o demôniozombará demim?Não.Estou no quarto da hospedaria, onde cheguei ontemànoitemoídodecansaço.Juntoamimestáocordãodacampainha,puxo-oeumcriadoaparece.

—Emnomedocéu,oque significa estamúsicadesordenadaqueouço?!Haveráumconcertonahospedaria?”

— Talvez Vossa Excelência (durante o jantar eu havia bebido vinho dechampanhe, daí a honraria) ignoreque a hospedaria é contígua ao teatro.Estaportaalcatifadaabreparaumpequenocorredor,quevaiternonº23,ocamarotedeestrangeiros.

—Oquê?Umteatro!Ocamarotedosestrangeiros!

—Sim,senhor,umpequenocamaroteparaduasoutrêspessoassomente,oqueédamaiordistinção.Égradeado,atapetadodeverdeeestápertodopalcocena.AgradaaV.Exa.?Hoje,representa-seoDomJuan,docélebreMozart:olugarcustaescudoemeio:lançaremosnaconta.

Disseestasúltimaspalavrasabrindoaportadocamaroteporque, tendoeuouvido eu pronunciar o nome de Dom Juan, tinha-me precipitado para ocorredor.

A sala era vasta, bem ornada, bem iluminada: os camarotes, a plateiaestavam cheios de espectadores. Os primeiros sons da sinfonia deram-meexcelenteideiadaorquestrae,seoscantoresajudassemumpouco,porcertoqueiriaa desfrutar dignamente a obra-prima do grande mestre. No movimentoandante, o terror sombrio e terrível regno all pianto lançou em minha almaprofundaapreensão.Amúsicafestivadosétimocompassoalegroressooucomogrito ruidosodocrime,epareceu-mever sairdas trevasespíritosde fogocomgarrasluminosas,edepoisadançadoidejantedehomensàbeiradoabismo.Aomeuespírito,apresentou-sealutadanaturezacomasforçasdesconhecidasqueacercamparadestruí-la.Enfim,atempestadeaplaca-se:opanoergue-se.

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Embrulhadonocapote, tremendode frio,Leporellodirige-seàmeia-noiteparaopavilhão,murmurando:

Notteegiornofaticar...

Assim, eu digo em italiano: Ah! che piacere! Vou, pois, ouvir todos osrecitativoscomoomestreoscompreendeuenosdeixou.

Dom Juan precipita-se na cena acompanhado deDonaAna, que retém oculpadopelocapote.Queolhar!Poderásermaior,emaismajestosa,noandar;porém,quefronte!Comofogodeartifício,quenãosepodeextinguir,osolhosexpulsam a cólera, o amor, o ódio, o desespero. Negras tranças de cabeloondeam-lhe o pescoço: o vestido branco esconde e descobre graças que nãopodemservistassemperigo.Ocoração,agitadopormotivodesumano,palpitacomviolência...Equevoz!Nonsperarsenonm’uccidi.

No tumulto dos instrumentos, a voz de Dona Ana sobressai comorelâmpago.Emvão,DomJuanseesforçaemseparar-sedela.Desajaráeleisto?Por que não repele energicamente essamulher? Por que não foge? Seu crimetirou-lheaforça,oualutadoódioedoamorlhecortamaresolução?

Ovelhopaipagoucomavidaa loucuraque teveemcombatereste ferozadversárionaescuridão.DomJuaneLeporelloadiantam-seeconversamjuntosnafrentedopalco.DomJuantiraocapoteeaparececomavestemagníficadeveludobordadoaprata:aestaturaénobreemajestosa;orosto,varonil;osolhos,penetrantes; os lábios, voluptuosamente desenhados. O movimento dassobrancelhas empresta à fisionomia uma certa expressão diabólica, expressãoquefaznascerterrorinvoluntário,semalterarabelezadasfeições.Poderíamosdizerqueeledeveexercermágicopoderdefascinação,equearrastaasmulheresquevê,equeassubjugacomessaforçamisteriosa,queconduzaoabismo.

Altoemagro, trazendocoletede listrasvermelhasebrancas,umpequenocapote vermelho e chapéu branco na cabeça com pluma rubra, Leporelloacompanha o amo. O rosto mostra a singular mistura de sinceridade, astúcia,ironiaeaudácia.Percebe-sequeessevelhomarotoédignodeseromelindrosocriado deDom Juan. Felizmente, eles fugiram escalando omuro...Archotes...Aparecem Dona Ana de Dom Otávio, homem pequenino, enfeitado, afetado,delicado, e que não temmais de vinte anos. Como desposado de Dona Ana,devera sem dúvida morar em casa dela, visto que o chamaram depressa. Aoprimeirorumorqueouviu,poderiatervindoetalvezsalvadoopaideDonaAna.

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Porém,antesdetudo,julgounecessáriovestir-secuidadosamente,e,alémdisso,elenãogostadearriscar-senastrevas:

Maqualmais’offre,oDei,spettacolofunestoagliocchimei!

Nosacentosdolorososemedonhosdesteduoedesterecitativohámaisqueodesespero.NãoésóoatentadodeDomJuaneamortedovelhoquepodemproduzirsonscomoesses:éumaguerrainterna,umalutahorrível.

AmagraecompridaDonaElvira,conservandoaindaossinaisdeperegrinaformosura,malgradojádesbotada,queixa-sedopérfidoDomJuaneomaliciosoLeporellojudiciosamenteobservaqueelafalacomolivro:

Parlacomeumlibrostampato.

Nestemomento, senti que havia alguématrás demim.Pudera alguém teraberto a porta do camarote e sentado no lugar do fundo. Para mim, foi umapenosadescoberta.Julgava-metãofelizpormeacharsozinhonocamarote,pordesfrutar sossegadamente aquela obra-prima, por dar largas a todas asminhassensações, que uma só palavra, uma palavra comum, teria-me dolorosamenteroubadooentusiasmopoéticoemusicalquedesfrutava.Resolvinãodaratençãoao meu vizinho, nem falar-lhe, nem olhá-lo, e abismar-me no êxtase daquelarepresentação.Encostandoacabeçasobreamão,voltandoascostasaorecém-chegado,continueiaolhar.Apeçaapresentava-sedomelhormodo.ApequenaZerlina, brincalhona, amável, distraía com as suas canções o pobre e ingênuoMazetto.DomJuanexprimiaaprecipitaçãodesuaalma,oprazerquesentiaemdesprezar os seus semelhantes, e com vigor cantava esta ária acelerada einterrompida:

Finch’handalvino.

Aexpressãodosseusmúsculostornara-semaisviva.

Apareceramosmascarados:otrioeraumapreceharmoniosa,quesubiaaocéu.Depois,abre-seofundodoteatro:aalegriamanifesta-se;oscopostinem;oscamponeses, osmascarados, atraídos pela festa de Dom Juan, alegremente seconfundem.Ostrêsmascaradosconjuradosparaavingançaaproximam-see,atécomeçaradança,tudoserevestedecarátersolene.ZerlinaésalvaeDomJuan,comaespadaempunho,marchadenodadocontraosinimigos,desarmaorivaleabrecaminhoporentreamultidãoperturbada.

Muitasvezesjulgueiouviratrásdemimumarespiraçãopura,ardente,eo

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rugirdassedasdeumvestido.Julgueiqueseriaumamulherquemestriaali.E,mergulhado de todo no mundo poético, não quis distrair-me. Quando o panodesceu, voltei o rosto para a minha vizinha... Não há palavras que possamdescreveraminhasurpresa:viDonaAnacomoacabaradeveracena,fitando-me com os olhos vivos, expressivos. Emudeci ao vê-la e os seus lábiosdesataramumaespéciedesorrisoimperceptível,noqualeuvirefletir-seminhapárvoafigura.Conhecianecessidadedefalar-lhe,eaadmiração—ouantesoterror—paralisava-mealíngua.Enfim,dosmeuslábiossaíram,contraaminhavontade,estaspalavras:

—Vósaqui?Comoépossível?

Respondeu-me nomais puro toscano que, se eu não falava italiano, seriaimpossível terogostodeconversarcomigo,porquenãoentendiaoutra língua.Como cântico harmonioso vibrava a sua voz, os olhos tornavam-se maisexpressivos, e o lume que desprendiam infamava-me o coração, fazia-mepalpitarasartériascommaisforça.

EraaprópriaDonaAna,semdúvida.Nãomevinhaaideiadecomoestavaela na cena e no meu camarote. Como o sonho feliz, que vence as maioresdificuldades,comoaféardentequesobeàsregiõessobrenaturais,quedominaasfasesordináriasdavida, assimumaespéciede sonambulismoprostrava-menapresençadessamulheratalpontoque,seeuaviraaomesmotemponoteatro,por certo que não me espantara. Como poderei contar o diálogo que tive?Tentandotraduzi-la,cadapalavraépálida,éfria,easfrasestornam-segrosseirasparaexprimiragraça,adelicadezadoidiomatoscano.

Enquanto ela me entretinha acerca do papel que representava, e deDonJuan, pareceu-me que o gênio deste primor de arte pela primeira vez semanifestava aomeu pensamento, e que pela primeira vezme confundia umasregiõesmaravilhosasdeummundoestranho.Disse-mequeavidadesuavidaera a música, e que muitas vezes, quando cantava, sentia comoçõesdesconhecidas,equenãopodiamserdescritas.

—Sim—exclamavacomvozentusiasmada,comolharcintilante—,entãoentendo tudo, porém tudo que me cerca é frio, inanimado, e enquanto meaplaudem os garganteios difíceis, parece que mão de ferro esmagam-me ocoração ardente. Porém, vós entendeis a minha alma, porque não vos édesconhecidoesse impériomaravilhoso,essemundoromanesco,onde ressoammágicasharmonias.

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—Mulheradorável,comopodeisconhecer-me?

Falouemumadasminhasóperasepronunciouomeunome.

Ouviu-seoapitodoteatroearápidapalidezcobriuorostodeDonaAna.Pôsamãonocoração,comoseomagoasseumadorrepentina,emurmuroucomvozdébil:

—InfelizAna,eisosteusmaisterríveismomentos...

Dizendoisto,desapareceu.

Oprimeiroatohavia-meextasiado.Porém,depoisdestaapariçãoestranha,amúsica produziu-me efeitos inexprimíveis. Era como a realização, há muitoesperada, dos mais belos sonhos de minha vida. Era como se todos ospressentimentosdeminhaalmareproduzissemtimbresharmoniosos.NacenadeDona Ana, senti-me como se arrebatado em cálida de voluptuosa atmosfera.Meusolhoscerraram-se involuntariamentee julguei sentir emmeus lábiosumbeijoardente,beijorápidoeimperceptívelcomoumsommelodioso.

Ouçoretumbaralegrementeoconfusofinal:

Giálamensaèpreparata!

DomJuan,sentadoentreduasmoças,mexiaoracomuma,oracomoutra,efazia saltar rolhas das garrafas para dar livre saída aos espíritos gasososencerrados no cristal. Isto acontecia num quarto estreito, no fundo do qual seavistavam, por uma janela gótica, as sombras da noite. Enquanto Elviralembrava ao infiel todos os seus juramentos, via-se o fuzilar dos relâmpagos,ouviam-se rugidos abafados, que anunciavam a tempestade prestes a desabar.Enfim, batem à porta com violência. Elvira e as moças fogem. Por entre ashorrendas consonâncias dos espíritos subterrâneos, o colosso de mármorecaminha e põe-se em frente aDomJuan, que a seu ladopareceminúsculo.Ochão tremesobospésdogigante.Nomeioda tempestadeque ruge,dos raiosqueestalam,dosdemôniosqueurram,DomJuanpronunciaoseunometerrível.A hora fatal chegou, a estátua desaparece, um vapor espesso inunda a sala, edessevaporsurgemfantasmashorrendos.Detempoemtempo,vê-seDomJuanlutando com demônios. De repente, ouve-se o estrondo de uma explosão: osespíritosinfernaiseDomJuandesaparecem.Nãosesabecomo,Leporelloestádesmaiadonofundodoquarto.QueprazernãosesenteaotornaraverosoutrospersonagensqueprocuramDomJuan!Parecequeacabamdeescaparàmedonha

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coortedosdemônios.DonaAnatornouaaparecer.Comoestámudada!Emseurosto, estampa-se a palidez da morte, os olhos estão amortecidos, a voz étrêmula, desigual e, contudo, produz mavioso efeito no pequeno duo com onoivoafável,quedesejacelebrarjáasnúpcias,felizdeselivrarassimdopesadoencargodavingança.

Ocororematouperfeitamenteaóperaeeu,entregueàminhaexaltação,fuiencerrar-me no quarto. O criado veio chamar-me para a ceia: acompanhei-omaquinalmente. A sociedade era numerosa e a representação de Dom Juanocupava os ânimos. Todos concordavam em louvar o canto dos italianos, e omodo de representar. Porém, algumas reflexões destacadas e maliciosasprovaram-mequeninguémcompreendeuoususpeitoudoprofundosentidodesteprimor das óperas.DomOtávio agradoumuito,DonaAna pareceu um poucoapaixonada.

—Devia—disseumdosconvivas—moderar-senacena,enãomanifestarcomoçõesexaltadas.

Fazendoestareflexão,ocríticosaboreouumapitadaderapé,olhoudeummodointeligenteesatisfeitoparaoseuvizinho,quediziaseraitalianamulherformosa,masumpoucodesleixadanosenfeites,porquenaáriaprincipalumdosanéisdocabelo lheaçoitavaorosto.Outropôs-seacantarolaremvozbaixaaária:Finch’handalvino,eumasenhoraobservouquenãoestavacontentecomo Dom Juan, que era sombrio demais e que não sabia mostrar-se leviano oufrívolo.Contudo,louvarammuitoaexplosãofinal.

Aborrecidodetantosdesagradáveisditos,retirei-meparaoquarto.

CamarotedosEstrangeirosnº23

Sentia-me incomodado:o calodomeuquarto era extremo.Pareceu-me, àmeia-noite, ouvir pronunciar omeu nome junto à porta alcatifada. “Quemmeproíbe—dissecomigo—,quemmeproíbevermaisumavezolugarondemeocorreuessaaventurasingular?Podeserqueeuvejanovamenteaquelaqueviveemmeupensamento.Nãoédifícillevaraliumapequenamesa,duasvelaseumtinteiro”.

Ocriadovemservir-meoponchequeeulhepedira:achaoquartovazio,aporta alcatifada aberta, segue-meno corredor, lança-meumolhar equívoco.Aumsinalque lhefaço,põeobulenamesaeretira-se,olhando-mecomoquemdesejava questionar. Encostando-me na borda do camarote, contemplo a sala

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deserta e a arquitetura que, ao frouxo clarão das velas, desenha reflexosestranhos,sombrasfantásticas.Oventoagitaopanodopalco.“Seoerguessem,seDonaAnaaparecesseaindanasuaterrívelagitação..DonaAna!”

Meu grito perde-se nos espaços da sala, vibra nos instrumentos daorquestra, um sonido confuso despende-se, julgo que murmuram esse nomequerido e não posso vencer uma espécie de terror oculto, embora me causecomoçãoagradável.

Acalmo-me, enfim. E eis-me disposto, querido Teodoro, a dizer-te comoentendoessaobraprimadograndemestreeasuaprofundaconcepção.Aalmaidealéquempodeencarnar-senanaturezaideal:oespíritodapoesia,querecebeaconsagraçãonotemplo,équempodecompreenderalinguagemdoentusiasmo.Se considerarmos o poema de Dom Juan sem procurar nele significaçãoprofunda,seconsiderarmossomenteoromancequelheformaoassunto,apenasse concebe como pôde Mozart meditar e compor, à vista de tal motivo,semelhantemúsica.

Ohomemardiloso,quemorrepelademasiadovinhoedasmulheres,quedepropósitoconvidaparaasuamesaaestátuadepedradovelhoquematouequemorreu defendendo a própria vida, em verdade não revela muita poesia e,falando com franqueza, esse homemnãomerece que as potências infernais seconjuremparaprocurá-lo,equeaestátuadepedraanime-se,emova-se,edesçadocavaloparaoconvidaràpenitência,equeodemôniomandearrebata-loaooutromundopelosseusmelhoressatélites.

Podes-me crer, Teodoro, a natureza sorriu a Dom Juan como a seu filhoquerido. Deu-lhe tudo o que o distingue do homem vulgo, dos trabalhos, doscálculosinsípidos.Aproximou-odaessênciadivina.Fezcomquevencesse,comque dominasse. Deu-lhe estatura grande e majestosa, rosto resplandecente defogo celeste, alma profunda, inteligência rápida e viva. Mas a terrívelconsequência do pecado original é o poder que tem o demônio de fascinar ohomem,quandoseesforçaporatingiroinfinito.Éopoderquetemdelhearmarciladas no próprio sentimento da sua natureza divina. Esta luta do princípiocelestecontraoprincípiodiabólicoproduzapaixãoterrena,eavitóriaquedaínasceproduzavidasobrenatural.AorganizaçãofísicadeDomJuaninflamou-lhe a ambição e o desejo insaciável, que lhe nasceu do ardor do sangue,precipitou-oàprocuradetodososprazerespassageiros,nosquaisprocuravaemvãoogozocompleto.

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Nãohácoisanomundoqueexaltemaisohomemqueoamor.Oamo,porsuainfluênciamisteriosaeforte,esclareceeperturbaoselementosdanatureza.Devemos, pois, estranhar que Dom Juan tivesse a esperança de que o amorhaveria de saciar-lheos desejos queo agitavam, e queodemônio empregasseestemeioparainduzi-loàperdição?FoielequepersuadiuDomJuan,quepeloamor, pelo gozo da mulher, haveria de encontrar na terra a realização daspromessas celestes que temos gravadas na alma, assim como o fim dessaaspiraçãoinfinitaquenoslevaaocontatodasregiõessuperiores.Correndo,semdescansar, de beleza em beleza; embriagando-se, fartando-se nos encantos dabeleza;semprejulgando-seenganadonasescolhasquefazia;esperandosempreatingir o ideal da felicidade, por fimDom Juan haveria de aborrecer-se destavidapositivae,comodesprezavaoshomens, irritou-secontraasapariçõesquehavia invocado, e que dele fizeram inútil ludibrio. Já não lhe trazia prazeresterrenosamulherquesubjugasse,e,paramelhordizer,eraoobjetodeinsultosdesmedidosànaturezahumanaeaoseucriador.Odesprezoirônicopelascoisasdavida,acimadasquaissupunhaestar, fezcomquezombassecruelmentedasbrandas e queixosas criaturas.Cadavez que roubavaumanoiva querida, cadavezque rompiaviolentamenteaventuradedoisamantes, alcançavamagníficotriunfo sobre a natureza, sobre o criador e sobre essa força inimiga que oarrastavaparaforadoslimitesdavidaordinária.Queriaultrapassaresteslimitese, desta vez, devia despenhar-se no abismo. O rapto de Dona Ana, com ascircunstânciasqueoacompanharam,foiaempresamaisaudaciosaquetentou.

A formosura peregrina de Dona Ana é como o contraste de Dom Juan.ComoDomJuanéohomemdabelezadeumaforçamaravilhosa,assiméDonaAna a mulher divina, cuja alma celeste furtava-se ao poder de Satanás. Osdemôniossópodiamtocaremsuavidaterrenae,consumadaumavezsuaperda,ajustiçadoCéudeviacumprir-se.

Paraoseualegrefestim,DomJuanconvida,gracejando,ovelhoquematou,e o velho não se importa de voltar do outro mundo para o chamar aoarrependimento.Porém,ocoraçãodeDonJuanestádetalmodoperdidoqueadivina glória não lhe pode sequer emprestar um raio de esperança, nem osentimentodeumavidamelhor.

Comojátedisse,DonaAnnaéocontrastedeDomJuan.Eradestinadaparalhe fazer valer os quilates de uma natureza divina e salvá-lo do desespero deinúteisesforços.Elaaviutarde,viunahoradocrime,eopensamentodiabólicodeperdê-laéoquesente.Elanãoésalva:quandoaparece,ocrimeestá feito.

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Sente arder no coração o fogo dos sentidos, o ardor do inferno, e não poderesistir.SóDomJuanpodiainflamar-lheessedelíriovoluptuoso,queafazlançaremseusbraçosesucumbiraoardildosdemônios.Quandoeleseafasta,elasenteasagoniastodasdasuaqueda.Amortedeseupai,assassinadoporDomJuan;asuaaliançacomofrio,ovulgarDomOtávio;oardordapaixãoqueadevora;oarrojoimpetuosodoódioreúnem-separaatormentá-la.SabequeaperdiçãodeDomJuanpodesossegá-laumpouco;porém,seráasuamorteessesossego.Semdescansar,instigaráàvingançaonoivoindolente:elamesmapersegueoinfiel,equandoovê,arrebatadopelaspotestadesinfernais,descansaumpouco.Masnãopode ceder ao desejo ardente do esposo e diz-lhe: Lascia, o caro, un annoancora allo sfogo delmio cor! Ela não sobreviverá a esse ano eDomOtáviojamaishádeestreitarnosbraçosaquelaaquemumpensamentopiedososalvoudasgarrasdeSatanás.

Ah,quecomoçõesnãosentiaaminhaalmaaoouviramúsicapungentedoprimeirorecitativoeaqueledasurpresanoturna!AprópriacenadeDonaAnanosegundo ato, que, superficialmente considerada, julga-se ter relação comDomOtávio,revelaemmelodiasocultas,emarrojosmaravilhosos,todaaagitaçãodesua alma.Que pensamentos enérgicos naquelas palavras que o poeta escreveutalvezsementendê-las:

Torseungiornoilcieloancorasentirapietadime!

Ouçosoarasduashoras.Umaaragemelétricabanha-meocorpo.Sintooaroma dos suaves perfumes italianos, que me deram a conhecer ontem apresençademinhavizinha.Sonsharmoniososéquepodemexprimirafelicidadeque sinto: as cordasdopianodaorquestramurmuram.MeuDeus!Parecequeouço a voz deDonaAna levada nas asas de umamúsica aérea. Parece que aouçocantar:

Nonmidirbell'idolmio...

Abre-te a meus olhos região longínqua e desconhecida, reino das almas,paraíso esplêndido, onde, com a alegria imensa, a dor celeste realiza noscoraçõesabsortosaspromessastodasdestemundo.Deixa-meentrarnocírculodasapariçõessublimes.Oxaláqueossonhoquederramasnohomem,oucomoobjeto de terror, ou comomensageiros da paz, oxalá que possam eles levar omeuespíritoàsregiõesetéreas,quandoosonoprenderomeucorpoemlaçosdechumbo!

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Conversaçãonamesaredonda.

Umhomemdiscretobatendonatampadesuacaixaderapé:

—É pena que não possamos ouvir tão cedo uma ópera. Essa fatalexageraçãoéacausadisto.

Umhomemtrigueiro:

— Sim, sim. Muitas vezes eu disse isto. Ontem o papel de Dona Anaarrebatava-amuito: estava como louca.Em todo o entreato ficou desmaiada eteveataquesnervososnacenadosegundoato.

Umhomeminsignificante:

—Oh,conta-meisso!

Ohomemtrigueiro:

—Sim,ataquesnervosos.Enãoapuderamlevarforadoteatro.

Eu:

—Emnomedocéu!Tenhoféqueosataquesnãoserãoperigosos.Veremosasenhoranovamenteembreve?

Ohomemdiscreto,tomandoumapitada:

—Serádifícil.Asenhoramorreuestanoiteàsduashorasemponto.

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SOBREOAUTOR

Ernst TheodorAmadeusHoffmann (1776— 1822), nascido Ernst TheodorWilhelm Hoffmann, é um dos pais da literatura gótica. Além de escritor, eramúsico,compositoredesenhista.AutordeclássicoscomoOHomemdaAreiaeOElixirdoDiabo,exerceu imensa influênciana literatura fantásticadoséculoXIX, atraindo a admiração de escritores estrangeiros como Charles Nodier,Gérard Nerval, Alexandre Dumas, Allan Pöe, Charles Baudelaire, Puchkin,Gogol,GustavoBécquer,dentremuitosoutros.DomJuanéumahomenagemàóperaDonGiovanni,deWolfgangAmadeusMozart.Hoffmann,compositordegrande talento, admirava o mestre austríaco a ponto alterar o próprio nome,substituindo “Wilhelm” por “Amadeus”. Para uma boa compreensão deDomJuan,sugerimosaleituradeumresumodolibreto(roteiro)daópera,deautoriado italiano Lorenzo Da Ponte, disponível em diversos sítios da internet (porexemplo,https://pt.wikipedia.org/wiki/Don_Giovanni).