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FLÁVIO DE CARVALHO: EXPERIÊNCIA Nº2, PRÓLOGO NA ATRIBUIÇÃO DE SIGNIFICADO ÀS VESTES. FLÁVIO DE CARVALHO: EXPERIÊNCIA Nº2, PROLOGUE TO THE ATTRIBUTION OF MEANING TO GARMENTS. Luisa Mendes Arruda (Universidade Federal do Espirito Santo) Resumo: O presente trabalho elabora um estudo crítico e histórico da obra Experiência nº 2, de Flávio de Carvalho, como lugar de prólogo na atribuição de significado às vestes em suas criações artísticas. Ao mesmo tempo em que permitiu ao longo da trajetória do artista o desenvolvimento de um sistema de sentido da Moda por meio de seus trabalhos de arte contemporânea. Palavras-chave: Flávio de Carvalho. Memória. Vestes. Abstract: This article is a critical and historical study of Flávio de Carvalho’s piece Experiência nº 2. It is a prologue to the attribution of meaning to the garments in his artistic creations. At the same time, it has allowed, in the course of the artist’s trajectory, the development of a Fashion signifying system through his contemporary art works. Keywords: Flávio de Carvalho. Memories. Garments. Flávio de Carvalho, ao longo de sua trajetória, apresentou valores eminentemente revolucionários para o período em que viveu, propôs um diálogo com questões que ainda hoje se afirmam contemporâneas e arraigadas na sociedade, como sexualidade e religião. Sua representatividade na história da arte brasileira e na História da Moda caminha a passos lentos, e quando se perde a memória, sua obra fica em iminente perigo de se desintegrar: fato comprovado por uma recente pesquisa feita pela equipe do Museu da Cidade – responsável pelo acervo municipal da cidade de São Paulo – em depósitos do Theatro Municipal, salas da Biblioteca Mário de Andrade e em fundos de gaveta do Arquivo Histórico, revelando obras que até então tinham sido dadas como perdidas, entre elas doze figurinos do balé O Cangaceiro e as primeiras plantas das obras arquitetônicas na Alameda Lorena. Esta lacuna na história da arte instiga minha atenção, principalmente sua dialética com a moda no que tange ao imbricamento do comportamento do homem e suas relações sociais, políticas e culturais. Desta forma, minha finalidade como designer de moda e mestranda em História da Arte é 203

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FLÁVIO DE CARVALHO: EXPERIÊNCIA Nº2, PRÓLOGO NA ATRIBUIÇÃO DE SIGNIFICADO ÀS VESTES.

FLÁVIO DE CARVALHO: EXPERIÊNCIA Nº2, PROLOGUE TO THE ATTRIBUTION OF MEANING TO GARMENTS.

Luisa Mendes Arruda (Universidade Federal do Espirito Santo)

Resumo: O presente trabalho elabora um estudo crítico e histórico da obra Experiência nº 2, de Flávio de Carvalho, como lugar de prólogo na atribuição de significado às vestes em suas criações artísticas. Ao mesmo tempo em que permitiu ao longo da trajetória do artista o desenvolvimento de um sistema de sentido da Moda por meio de seus trabalhos de arte contemporânea. Palavras-chave: Flávio de Carvalho. Memória. Vestes. Abstract: This article is a critical and historical study of Flávio de Carvalho’s piece Experiência nº 2. It is a prologue to the attribution of meaning to the garments in his artistic creations. At the same time, it has allowed, in the course of the artist’s trajectory, the development of a Fashion signifying system through his contemporary art works. Keywords: Flávio de Carvalho. Memories. Garments.

Flávio de Carvalho, ao longo de sua trajetória, apresentou valores eminentemente revolucionários para o período em que viveu, propôs um diálogo com questões que ainda hoje se afirmam contemporâneas e arraigadas na sociedade, como sexualidade e religião.

Sua representatividade na história da arte brasileira e na História da Moda caminha a passos lentos, e quando se perde a memória, sua obra fica em iminente perigo de se desintegrar: fato comprovado por uma recente pesquisa feita pela equipe do Museu da Cidade – responsável pelo acervo municipal da cidade de São Paulo – em depósitos do Theatro Municipal, salas da Biblioteca Mário de Andrade e em fundos de gaveta do Arquivo Histórico, revelando obras que até então tinham sido dadas como perdidas, entre elas doze figurinos do balé O Cangaceiro e as primeiras plantas das obras arquitetônicas na Alameda Lorena.

Esta lacuna na história da arte instiga minha atenção, principalmente sua dialética com a moda no que tange ao imbricamento do comportamento do homem e suas relações sociais, políticas e culturais. Desta forma, minha finalidade como designer de moda e mestranda em História da Arte é

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realizar no presente trabalho um estudo crítico e histórico da obra Experiência nº 2, de Flávio de Carvalho, como lugar de prólogo na atribuição de significado às vestes1 em suas criações artísticas. Ao mesmo tempo em que permitiu ao longo da trajetória do artista o desenvolvimento de um sistema de sentido da Moda por meio de seus trabalhos de arte contemporânea.

Para compreensão deste estudo, evidencio o significado do termo Moda, abordado por Carol Garcia em sua dissertação de Mestrado. Segundo Garcia (2002, p. 17),

Moda é um conjunto atualizável dos modos de visibilidade que os seres humanos assumem em seu vestir com o intuito de gerenciar a aparência, mantendo-a ou alterando-a a partir de seus próprios corpos, dos adornos adicionados a eles e da atitude que integra ambos pela gestualidade, de forma a produzir sentido e assim interagir com o outro.

O procedimento metodológico utilizado nesta pesquisa apresenta como fundamento uma análise estrutural do sistema real do vestuário pertencente à obra Experiência nº 2, metodologia esta que Roland Barthes define como um horizonte natural que a moda estabelece para constituir as suas significações. Outro operador de análise será a identificação do shifter2 em questão, ou seja, elemento intermediário entre o código e a mensagem.

Flávio de Carvalho nasceu em Amparo, distrito de Barra Mansa/RJ, mas com onze anos de idade viaja para a Europa e, a partir de então, sua formação educacional se dá na Europa, mais precisamente na França e na Inglaterra, respectivamente. Em 1922, retorna ao Brasil com uma inquieta personalidade de hábitos britânicos.

Ao chegar a São Paulo, Flávio encontra uma cidade conservadora e desorganizada artisticamente, apesar do abalo da Semana de Arte Moderna. No entanto, integra-se ao propósito modernista dos anos 20, e consequentemente à ideologia antropofágica, conceito que fundamentou suas pesquisas posteriores.

A Ideologia antropofágica se dava por uma exaltação do homem biólogo de Nietzsche, isto é, a ressurreição do homem primitivo, livre dos tabus ocidentais, apresentado sem a cultura feroz da nefasta filosofia escolástica. O homem que totemiza o seu tabu, tirando dele o rendimento máximo. O homem que procura transformar o mundo não métrico no mundo métrico, criando novos tabus para

1 “Veste é um símbolo exterior da atividade espiritual, a forma visível do homem interior. O traje expressa uma relação de natureza simbólica com a personalidade de quem a veste” (CHEVALIER, 1982, p. 947). 2 Jakobson reserva o nome de shifter para os elementos intermédios entre o código e a mensagem (Essais de linguistique générable, Paris, Ed. Minuit, 1963, cap. 9). Em seu livro Sistema da Moda, Roland Barthes (1967) alarga o sentido do termo e o utiliza em sua análise do sistema da moda como meio de passagem de uma estrutura para outra, de um código para outro. Por exemplo: do real à imagem, do real à linguagem e da linguagem à linguagem.

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novos rendimentos, incentivando o raciocínio em novas esferas. Esta ideia iniciada em São Paulo por Raul Bopp, Oswald Costa, Clóvis Gusmão, Oswald de Andrade e outros, com ramificações no Rio e outros estados, foi entusiasticamente recebida pelo filósofo Keyserling e o urbanista Le Corbusier, que viram nela um meio de progredir: uma possível felicidade longínqua. O homem antropofágico, quando despido de seus tabus, assemelha-se ao homem nu. (GUERRERO, 2010, p. 7).

Sempre com um livre trânsito entre as áreas, fosse um urbanismo pensado para uma humanidade despojada (despida) de seus padrões escolásticos como pela desconstrução cultural do corpo, por meio de um New Look para o “Novo Homem”, a premissa em sua concepção estética partia de um trabalho para um homem sem tabus na relação entre fé e razão, livre para raciocinar e pensar, para começar um contínuo e irrefreável processo de curiosidade, mudança e transformação pessoal. Dentro de seu ânimo superiormente analítico, devido à sua formação em ciências exatas, era um pesquisador e investigador, sem deixar de ser um esteta.

Experiências eram intervenções artísticas no espaço urbano, as quais hoje em dia são entendidas na historiografia da arte no Brasil como precursoras da performance. Valendo-se do conceito narrado por Paul Zumthor no livro Performance, Recepção e Leitura (2000, p. 37): “A performance modifica o conhecimento, ela não é simplesmente um meio de comunicação, ela o marca”. Neste sentido, Flávio afirmou a natureza corporal da experiência estética e a fez notável já no modernismo Brasileiro.

Em 1931, realizou sua primeira Experiência no espaço urbano para analisar a psicologia de massas, intitulada Experiência nº 2. Consistiu na infiltração do artista numa procissão de Corpus Christi em São Paulo. Fazendo uso de um boné verde, Flávio caminhava entre os católicos em direção contrária ao fluxo religioso. Esta ação instigou de forma imediata a raiva coletiva dos fiéis, que imediatamente começaram a persegui-lo, exigindo seu linchamento. O ato individual de Flávio de Carvalho entre a massa revelou, naquela época, a falta de individualidade das pessoas, que reagiram violentamente sob a influência das doutrinas ideológicas da Igreja.

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Figura 1 - Panfleto de lançamento do livro que descreve a Experiência nº 2. Autor: Flávio de Carvalho

Fonte: http://www3.iel.unicamp.br/cedae/Exposicoes/Expo_FlavioCarvalho/index1.html

Corpus Christi é uma festa católica em solenidade ao corpo e sangue de Cristo, realizada na quinta-feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade. Ocorre uma procissão pelas vias públicas com o objetivo de testemunhar e proclamar, publicamente, a adoração e a veneração para com a Santíssima Eucaristia. A procissão faz uma menção à caminhada do povo de Deus, peregrino, em busca da terra prometida. De acordo com o antigo testamento, o povo peregrino foi alimentado com maná, no deserto. Com a instituição da eucaristia, o povo é alimentado com o próprio corpo de Cristo.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (1982), em seu livro Economia das trocas simbólicas, define a religião como um conjunto de práticas e representações que se revestem de caráter sagrado, abordando a religião como linguagem, isto é, um sistema simbólico de comunicação e de pensamento. Desta forma, ela se torna uma força estruturante da sociedade, pois opera a sua ordenação ao assumir a produção de sentido e construir experiências.

É neste contexto que a procissão de Corpus Christi configura-se como uma experiência religiosa que se objetiva socialmente em práticas e discursos na medida em que reponde a uma demanda social, ou seja, é capaz de coletivamente dar sentido à existência dos que integram um dado grupo. Assim, pelo processo de transfiguração das relações sociais, as práticas e representações religiosas não são simples camuflagem ideológica de instituições ou de interesses de classes. São produções internas do campo religioso que pelo efeito da consagração tornam-nas irreconhecíveis enquanto produção humana e arbitrária, assegurando sua reprodução enquanto “sobrenaturais” ou divinas.

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O que Flávio de Carvalho destaca com sua ação performática é essencialmente uma instigação de despojamento dos padrões escolásticos dos fiéis – neste caso leia-se sociedade paulistana da década de 30 – e ele o faz propondo uma ruptura na eficácia simbólica da religião.

Tal eficácia se demonstra na “alquimia” de revestir o que é produto humano com caráter sagrado, conferindo à ordem social um caráter transcendente e inquestionável.

A veste concede sentido ao poder simbólico da religião, uma vez que ele expressa uma relação de natureza icônica com a personalidade profunda, sacerdotal, que o difere da banalidade comum. O traje manifesta o pertencer a uma sociedade caracterizada, e tirá-lo é renegar essa relação. É um fenômeno de dessacralização e, portanto, de perda de sentido.

Ao adentrar na procissão de Corpus Christ e segui-la ao contrário do fluxo de peregrinos, posso afirmar que o artista faz uso do já citado boné verde, demonstrando claramente que vai de encontro com as ideias da igreja e não em concordância, como todos os fiéis que participavam do cortejo. Reafirmando, assim, sua intenção e provocando mais repúdio dos católicos que ali estavam.

No sentido de confirmar a evidência e importância das vestes no campo religioso, destaco o trecho em Apocalipse 22,14: “Felizes os que lavam suas vestes para entrar na Cidade pelas portas”.

Flávio faz uso do traje, mais precisamente um boné, como material simbólico que confere sentido ao ato artístico, que exterioriza a função ou o estado da sua consciência composta por um corpo desvelado da veste sagrada. É como se ele afirmasse com esta ação que não se faz necessário “larvar suas vestes para entrar na Cidade pelas portas”.

A roupa, própria do homem, é um dos primeiros indícios de uma consciência da nudez, de uma consciência de si mesmo, da consciência moral. É também reveladora de certos aspectos da personalidade, em especial do seu caráter influenciável e do seu desejo de influenciar. O uniforme, ou uma peça determinada do vestuário (capacete, boné, gravata) indica a associação a um grupo, a atribuição de uma missão, um mérito. (CHEVALIER, 1982, p. 947).

A sua atribuição nesta performance, Experiência nº 2, já se manifestava como a identidade do homem antropofágico, despido de seus tabus, do cidadão que procura transformar o mundo não métrico no mundo métrico, criando novos tabus para novos rendimentos, incentivando o raciocínio em novas esferas sempre calcado na ruptura filosófica religiosa.

O chapéu, em sua qualidade de peça que cobre a cabeça do chefe, simboliza a cabeça e o pensamento. Mudar de chapéu é mudar de ideia, ter outra visão do mundo, como nos relata Jean Chevalier no livro Dicionário de Símbolos, se valendo do relato de Carl Gustav Jung (1982, p.232).

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Usar o chapéu significa assumir uma responsabilidade, e ele o fez, caminhando de encontro ao cortejo e atribuindo significado à veste em seu trabalho artístico. Por isso afirmo que a Experiência nº 2 marca sua série de trabalhos sobre o comportamento do homem e assume papel de prólogo na atribuição de significado às vestes nas criações artísticas de Flávio de Carvalho.

A cor verde, presente no boné, é um elemento intermédio entre o código e a mensagem, na então performance. Utilizo-a em uma análise como passagem de um código para outro, fundamentada na simbologia da cor verde, referida pelos Bambarras, Dognos e Mossis3 para sugerir que ela faz uma evocação às questões culturais da identidade de gênero.

Esta cor conserva um caráter complexo, o desencadear da vida parte do vermelho e desabrocha no verde. Considerada uma cor secundária, oriunda do vermelho. Nessa representação muitas vezes se vê a da complementação dos sexos: o home fecunda a mulher, a mulher alimenta o homem; o vermelho é uma cor masculina, o verde uma cor feminina. (CHEVALIER, 1982, p. 941).

A questão da identidade de gênero foi algo extremante recorrente em suas obras futuras. Flávio discorre sobre o centro “Erótica” em artigo publicado no jornal Diário da Noite, cujo título era Uma tese curiosa: A cidade do Homem nu:

Nenhuma restrição exigirá dele este ou aquele sacrifício, onde encontrar sua alma é projetar sua energia em qualquer sentido, sem repressão, onde ele realiza desejos, descobre novos desejos, impõe a si mesmo uma seleção rigorosa e eficiente, forma o seu novo ego, orienta a sua libido e destrói o ilógico, sublime angústia do desconhecido da mutação do não métrico. (CARVALHO, 1930, apud GUERRERO, 2010, p. 28).

Não por acaso, o figurino desenvolvido por Flávio para a peça teatral “O Cangaceiro”, apresenta trajes femininos com elementos do vestuário masculino. Já em sua obra Experiência nº 3, o artista propõe um New Look como mudança radical na arquitetura do corpo, por meio da moda e do design, igualmente moderno, efetivo e funcional, desenvolve uma peça de roupa concebida especificamente para o novo homem moderno dos trópicos, mais especificamente, uma saia em pregas e uma meia-calça arrastão: referências femininas para o vestuário masculino.

3 ZAHAN Dominique, Sociétés dínitiation Bambara, Le N´Domo, Le Kore, Paris-Haia, 1960.

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Figura 2 - Figurinos do balé “O Cangaceiro”. Autor: Flávio de Carvalho, 1954.

Fonte: http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/20959-flavio-de-carvalho

Figura 3 - Croqui de Flávio de Carvalho, New Look, 2 peças, 1956. Fonte: Cortesia da família de Flávio de Carvalho, registro no Catálogo A cidade do Homem Nu, de Inti Guerrero, Imagem da Orelha.

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Em 2010, o curador Inti Guerrero apresentou a exposição A cidade do Homem Nu, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A mostra reafirma o propósito de incentivar as atitudes de vanguarda e de contribuir para a produção e a difusão da arte contemporânea no Brasil, permitindo ao público compreender a influência das propostas arrojadas de Flávio de Carvalho nesta arte. A mostra reúne obras de outros artistas que trabalham com questões já levantadas por Flávio, e seu único trabalho incluído na mostra foi o desenho New Look (1956). Nas palavras do próprio curador:

A mostra reúne obras e artefatos culturais que, ao invés de ilustrar o pensamento de Flávio de Carvalho em conjunto através do percurso museográfico, construirá o significado radical e contracultural do seu urbanismo, abrindo as possibilidades de imaginar como poderia ser aquele lugar sem tabus escolásticos, livre para raciocinar e pensar, onde a corporalidade e a energia sexual do indivíduo poderiam dirigir-se em qualquer direção, sem repressão. (GUERRERO, 2010, p. 8).

Algumas obras na mostra abordam diretamente as construções culturais da identidade de gênero e sua possível desconstrução. Destaco a obra Burlesque:

Em Burlesque, 2007, Santiago Monge apropria-se de um anúncio de roupa íntima masculina dos anos 1970, em que fotografias dos modelos têm recortes que deixam ver o interior de cada indivíduo. Esse olhar “endoscópio” sobre a roupa revela sutilmente as camadas culturais que constroem os códigos sociais de significado masculino. (GUERRERO, 2010, p.13).

Figura 4 - Obra de Santiago Monde, Burlesque: Fotografia de Arquivo, 2007. Exibida na mostra A Cidade do Homem Nu, curadoria de Inti Guerrero. Fonte: Catálogo da Mostra, p. 50.

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À exposição A cidade do Homem Nu, foram reunidos outros tipos de materiais visuais que não pertencem estritamente ao campo da arte. Por exemplo, a série de fotografias em preto e branco do artigo A verdade andava nua, publicada na revista O Cruzeiro em dezembro de 1949. As imagens documentavam um grupo de jovens burgueses do Rio de Janeiro, que decide um dia ir à praia em roupas de gala e de inverno, para protestar contra a lei que proibia usar as roupas de banho em outras partes da cidade que não fossem a praia. Sua ação subvertia a norma, ao exagerar o absurdo da regra.

Figura 5 - Revista o Cruzeiro, A Verdade Andava Nua, 1949. Fonte: Catálogo da Mostra A Cidade do Homem Nu, p. 52.

Assim como a ação subversiva narrada acima, Flávio propunha despir a cidade do seu presente, liberando de seus tabus todas as pessoas que o seguiam, abrindo caminho para essa nova civilização nua.

Já em 1985, a artista brasileira Márcia X., como em um ato de herança da Experiência nº 2 do artista Flávio de Carvalho, desnudou-se da veste sagrada escolástica e vestiu-se com um traje de

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material plástico preto, denominado por ela como sendo uma não-roupa. Na ação de desnudar-se, ela cortava esta não-roupa, deixando aparente outra não-roupa de plástico, mas agora transparente, permitindo que seu corpo nu fosse visto. Esta performance denominada de Cellofane Motel Suíte, ocorreu durante a Bienal do livro no Rio de Janeiro em parceria com Alex Hamburger.

Figura 6 – Performance Cellofane Motel Suíte, Alex Hamburger e Márcia X. 1985. Fonte: http://performatus.net/flavio-de-carvalho-marcia-x/

Vê-se, portanto, que com sua Experiência nº 2, Flávio de Carvalho, transgride o valor relativo das comodidades e abre caminho no modernismo Brasileiro para a natureza corporal da experiência estética. Fato que reverbera até os dias atuais. Sua revolução estética propôs uma nova cidade para um novo homem, e ele o fez pelo uso do traje, caracterizando o vestir como determinante no processo de individualização, sugerindo mudanças tanto individuais quanto culturais. O que Flávio, a sua maneira, afirmava, a meu ver, parte da hipótese apresentada por Argan:

A obra de arte determina um espaço urbano: o que a produz é a necessidade, para quem vive e opera no espaço, de representar para si de uma forma autêntica ou distorcida a situação espacial em que se opera. (ARGAN, 2005, p. 3).

Neste sentido, a obra do artista, propondo por meio do vestir ou despir, recita a individualidade de cada qual na dimensão cênica da cidade, agindo, portanto, em espaços urbanos; tem um papel relevante no fluxo da história da arte, envolvendo a produção de saberes e gerando modelos que trazem novas significações às obras de arte.

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Referências ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BARTHES, Roland. Sistema da Moda. Lisboa: Edições 70, 1967. BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1982. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1982. GARCIA, C. Moda e identidade no cenário contemporâneo brasileiro: uma análise semiótica das coleções de Ronaldo Fraga. Tese de mestrado não publicada. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2002. GUERRERO, Inti. A Cidade do Homem Nu. São Paulo: MAM, 2010. ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Educ, 2000.

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APÊNDICE A – Lista de Figuras Figura 1 - Panfleto de lançamento do livro que descreve a Experiência nº 2. ......................................... 4 Figura 2 - Figurinos do balé “O Cangaceiro”. ........................................................................................... 7 Figura 3 - Croqui de Flávio de Carvalho, New Look, 2 peças, 1956. ....................................................... 7 Figura 4 - Obra de Santiago Monde, Burlesque: Fotografia de Arquivo, 2007. Exibida na mostra A Cidade do Homem Nu, curadoria de Inti Guerrero. .................................................................................. 8 Figura 5 - Revista o Cruzeiro, A Verdade Andava Nua, 1949. ................................................................. 9

Figura 6 - Performance Cellofane Motel Suíte, Alex Hamburger e Márcia X. 1985. ...............................14

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