artigos reunidos - segesta editora · de um pensamento que também se fazia sentir em sala de aula....

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Artigos reunidos

Dados internacionais de catalogao na publicao Bibliotecria responsvel: Mara Rejane Vicente Teixeira

Ttulo original: Artigos reunidos

Marzia Terenzi Vicentini

Capa: Daniela Vicentini

Diagramao: Gisele Maria Skroch

Reviso: Letizia Zini Antunes e Glucia Simes Rodrigues

Reviso do texto em italiano: Letizia Zini Antunes

Reviso do texto em grego e latim: Alessandro Rolim de Moura

Vicentini, Marzia Terenzi (1943-2007). Artigos reunidos sobre : Ferdinando Galiani, Italo Svevo, Ugo Foscolo, Dante, Tchekhov, Tolstoi, Vasco Pratolini, Eisenstein, Roberto Roversi, Antonio Gramsci, Giorgio Bassani, Brberi Squarotti, Ignazio Silone / Marzia TerenziVicentini. - Curitiba, PR : Segesta, 2012. 320 p. ; 21 cm.

Inclui bibliografia.

1. Literatura Histria e crtica. I. Ttulo.

CDD ( 22 ed.) 809

ISBN 978-85-89075-11-4

Marzia Terenzi Vicentini

Artigos reunidos

Curitiba2012

sobre

Ferdinando GalianiItalo Svevo

Ugo FoscoloDante

TchekhovTolstoi

Vasco PratoliniEisenstein

Roberto RoversiAntonio Gramsci

Giorgio BassaniBarberi Squarotti

Ignazio Silone

Rua Desembargador Westphalen, 15 - Conj. 1.705Curitiba / PR80010-903Tel.: (41) 3233 8783www.segestaeditora.com.br

E-mail: [email protected]

APRESENTAO

Este livro que o leitor agora tem em mos apresenta uma srie de artigos publicados em revistas universitrias pela professora Marzia Terenzi Vicentini, artigos que a Se-gesta Editora quis ver reunidos num s volume, como uma homenagem, a meu ver muito justa, sua autora, falecida em janeiro de 2009. Rel-los e, no caso de alguns, l-los pela primeira vez, assim reunidos foi para mim motivo de saudade e de admirao. Saudade, por ter tido a sorte de t-la como professora de literatura italiana no comeo dos anos oitenta, no Curso de Letras da Universidade Federal do Paran, e, alguns anos mais tarde, como amiga e colega no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da mesma universidade. Admirao, por ter tido a oportunidade de rememorar mais uma vez, na leitura destes artigos, o rigor de um pensamento que tambm se fazia sentir em sala de aula. Em Marzia, a figura da professora se confundia plenamente com a da intelectual, numa combinao, no to frequente quanto possa parecer, de seriedade e respon-sabilidade intelectual com capacidade de comunicao e iniciao de jovens universitrios nas complexidades da literatura e da cultura.

Como j deixava pressentir como professora, a forma-o acadmica e cultural de Marzia era slida e erudita, e este livro uma demonstrao disso. Os artigos tratam de Dante, de Foscolo, de autores do Novecentos, de Tolstoi e Tchekhov, entre outros, e servem apenas de amostra dos seus interesses e da sua grande versatilidade. Mas preciso dizer

que a sua erudio nunca era exibicionista; ao contrrio, estava a servio da compreenso profunda da literatura como uma fora viva da cultura e da histria, e no como um simples ornamento que tem o dom de nos entreter ou tornar a vida mais ou menos grata. Basta ler qualquer um destes artigos para comprovar que nenhuma citao pretensiosa ou deslocada, intil ou desnecessria. Marzia, no esforo de compreender a obra de um escritor, fosse ele poeta, romancista ou dramaturgo, ia diretamente s fontes, o que tantas vezes significava ultrapassar o campo literrio e colher na filosofia, na historiografia ou em outros cam-pos do saber, os elementos com base nos quais o escritor formou a sua cultura, a sua moral, a sua ideologia, com a incluso de todas as contradies e embates prprios seus e da poca em que viveu.

Penso que este livro consiga mostrar claramente o vetor no digo o mtodo, o que seria por demais restritivo que unifica o modo como Marzia se movia. Distante de qualquer moda ou jargo acadmico, numa prosa analtica cristalina, direta e despretensiosa, se nunca se valia de extravagncias retricas e argumentativas, tambm no fazia concesses facilitao ou demagogia didtica. O seu alvo era mais alto: cada autor estudado devia ser compreendido luz daquela dialtica complexa, por vezes sutilssima, entre representaes possveis da realidade e o que se supe ser a realidade ela mesma. Para isso, evi-dentemente no abandonava as especificidades do texto literrio e da literatura como uma manifestao cultural singular e autnoma, mas singularidade e autonomia no querem dizer descolamento do cho comum da cultura e da histria, nem da sociedade que viu nascer uma dada obra. Sempre que preciso, ento, descia aos pormenores lingusti-cos, estruturais e estilsticos do texto, para depois arranc--los do seu campo prprio e, para melhor compreend-los, lan-los no caldo efervescente dos debates e embates entre as foras culturais, polticas e ideolgicas, foras sociais, enfim, s quais o escritor no podia ser indiferente. Dito de

outro modo, o esforo de Marzia foi sempre o de compre-ender a personalidade literria de um autor e a obra que este foi capaz de produzir na sua historicidade, da forma mais abrangente possvel e em toda a sua complexidade.

Mas este livro tambm revela outra faceta de Marzia, a de tradutora, e no vejo por que poupar o elogio, uma excelente tradutora. Leitora de vrias lnguas, foi capaz de produzir tradues de altssimo nvel de obras ou de trechos de obras do italiano, antigo e moderno, do francs, antigo e moderno, do latim e do grego, para o portugus, que, afinal, no era a sua lngua materna. Tive tambm a oportunidade de v-la trabalhar nesse campo quando atuei como revisor do tratado Da moeda, do pensador napolitano do sculo XVIII Ferdinando Galiani, tratado que Marzia traduziu e que a Segesta publicou na sua coleo Razes do Pensamento Econmico. O artigo que abre este Artigos reunidos trata daquela obra de Galiani e dos desafios e difi-culdades que a traduo impunha. Permanecem impressas na minha memria as tardes que passvamos no seu escri-trio discutindo cada linha, cada pargrafo daquele texto magnfico, mas dificlimo sob tantos aspectos e intrincado lingustica e estilisticamente. Trabalhadora incansvel, via na tradutora aquele mesmo esforo da pensadora e da professora: restituir, na traduo, a historicidade do pen-samento do autor e do texto em toda a sua extenso, sem consider-lo sagrado e intocvel, mas evitando ao mximo o risco do anacronismo. Nunca pude aprender tanto sobre traduo e o que ela pode significar como prtica concreta quanto naquelas tardes de trabalho duro, mas sempre muito agradveis. Marzia, ainda que rigorosa e exigente na argumentao, era ao mesmo tempo generosa na escuta e ia ouvindo as minhas observaes de revisor com grande ateno e respeito. Era um trao, creio, que caracterizava a sua personalidade intelectual, a de um esprito essen-cialmente democrtico. A mestra faz falta.

Gerson Carvalho

SUMRIO

La grata fatica di una traduzione .................................... 15o caminho tortuoso de A conscinciA de Zeno ............... 29foscoLo, crtico de manzoni ................................... 47gLi scritti deL foscoLo suLLa Lingua itaLiana ............... 67Lettura e traduzione neLLe considerazioni di ugo foscoLo su La traduzione deL cenno di giove ............ 85

ugo foscoLo - antoLogia biLngue 101Esperimento di traduzione dell Iliade di Omero ......... 102Experimento de traduo da Ilada de Homero ........ 103Su la traduzione del Cenno di GioveConsiderazioni di Ugo Foscolo..................... 110Sobre a traduo do Aceno de JpiterConsideraes de Ugo Foscolo.................................. 111Lettera a Francesco Saverio Fabre (1814) .............. 128Carta a Francesco Saverio Fabre (1814) ................... 129Articolo critico intorno alla traduzione de due primi canti dell Odissea Ec. (1809)................................... 136Artigo crtico sobre a traduo dos dois primeiros cantos da Odisseia (1809)..................................... 137Sulla traduzione dello SterneLettera a Camillo Ugoni (28 Ottobre 1813) .............. 150Sobre a traduo de SterneCarta a Camillo Ugoni (28 de outubro de 1813) ....... 151Note ........................................................ 156Notas ................................................................ 157

o conceito de nobreza em dante ................................. 165

occorre tornare ancora suLL episodio dantescodi uLisse? ................................................................ 181UmA histriA enfAdonhA diante de A morte de ivAn ilitch ........ 195a dimenso popuLista na obra de vasco pratoLini ............. 217a natureza participante de eisenstein ........................... 233roberto roversi ...................................................... 255Quaderni deL carcere gramsci, antonio ..................... 265o diLema ideoLgico em bassani .................................. 275

giorgio brberi sQuarotti La narrativa itaLiana deL dopoguerra ............................................................ 299siLone suLLe tracce di ceLestino .................................. 307

LA GRATA FATICADI UNA TRADUZIONE

revista insiemeapiesp, n. 8, 2001

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La grata fatica di una traduzione

Color di perle ha quasi, in forma qualeconvene a donna aver, non for misura

Dante, Vita Nuova, XIX

La storia del tradurre carica di aporie e di fortissime tensioni interne, ci dice Gianfranco Folena nel suo conciso e densissimo Volgarizzare e tradurre,13specificando poi che laporia principale, gi perfettamente formulata da San Giro-lamo come contrasto tra il rispetto del testo e nel suo caso era proprio sacro in cui tutto mysterium, anche lordine delle parole e la necessit di interpretarlo, di comunicarne il senso e non le parole, continua ad essere presente, con di-verso peso, in tutta la storia della concezione del tradurre, dai romantici agli ermeneutici dei nostri giorni. E Folena ricorda che la preferenza per traduzioni estranianti (che inducono a violentare la lingua in cui si traduce per lasciar trasparire la presenza delloriginale eteroglosso) o per traduzioni na-turalizzanti (che con maggiore disinvoltura cercano di far aderire il testo tradotto alla tradizione linguistica della lingua darrivo) si verifica fondamentalmente in corrispondenza con le diverse aspettative e necessit createsi in differenti momenti storici, denunciando lo stato di crisi o di sicurezza linguistica che tali momenti attraversano.

1 FOLENA, Gianfranco. Volgarizzare e tradurre. Torino: Einaudi, 1994.

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Marzia Terenzi Vicentini

Il riferimento a questa questione teorica, in note che vo-gliono essere appena una riflessione a partire dalla semplice pratica sia del tradurre sia della lettura, si deve al fatto che tale questione, tanto rilevante nella teoria e nella storia della traduzione, emerge con diversa forza, anche, in questi casi co-muni. E se il fitto dibattito attuale sulla traduzione, in tempi di contestazione della sostanzialit oggettiva del testo, ci ha resi accorti a non voler definire come giusto e vero un determina-to modo di traduzione e ad accettare, almeno teoricamente, propositi e risultati diversi, a seconda della specificit dei testi, dei destinatari, delle finalit; anche considerando tutto questo, resta pur vero che il tradurre implica sempre un rap-porto ineliminabile di tensione tra alterit, di testi, di lingue, di istanze culturali e storiche. In tale rapporto di tensione, anche quando, dopo tante avvertenze teoriche, in consonanza con il testo da tradurre, si opta per una determinata traduzione, latto pratico, il momento della scelta linguistica ci si presenta sempre come dilemma, sfida potrei dire, che sollecita, di volta in volta, per la sua risoluzione, un senso di misura, con tutti i rischi e le incertezze che tale virt pratica, non innata ma di faticosa acquisizione, comporta.

Dopo questa introduzione, a mo di presupposto teorico, eccomi allo svolgimento, che vuol essere una breve comunicazione dellesperienza di traduzione di un testo classico del 700, il Della moneta di Ferdinando Galiani.24 Data la natura trattatistica del testo, la prospettiva principale della traduzione stata quella della chiarezza e, data lepoca in cui stato scritto, la preoccupazione principale stata quella di rispettarne la storicit, senza cercare inutilmente di riprodurne larcaicit, ma anche avendo la preoccupazione di non sostituire termini esatti, coniati dalla scienza economica in epoche successive, a termini ed espressioni che nella loro plasticit riflettono lo stadio germinale in cui tale scienza si trovava allepoca di Galiani. Problema di misura, non sempre facile da dirimere.

2 GALIANI, Ferdinando. Da moeda. Traduo de Marzia Terenzi Vicentini. Reviso de Gerson Carvalho. So Paulo: Musa Editora; Curitiba: Segesta Editora, 2000.

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La grata fatica di una traduzione

Cos la lettura previa di preparazione alla traduzione stata particolarmente delicata e laboriosa. Oltre allopera di Galiani e alla principale bibliografia critica su tale autore, per capire meglio i temi discussi e i termini propri del di-battito dellepoca, stata importante anche la conoscenza di autori coevi cui Galiani fa riferimento diretto, o che, in qualche modo, rappresentano i suoi interlocutori presenti.

Per dare solo un esempio di come questo lavoro si svolto, scelgo due termini-chiave del trattato, che sono alzamento e abbassamento, del valore della moneta ovvia-mente, e che sono stati tradotti come aumento e reduo do valor da moeda. In nota, cos si giustifica la traduzione:

Em italiano, alzamenti e abbassamenti, termos corren-tes na linguagem econmica do sc. XVIII, que desi-gnavam, respectivamente, o aumento e a diminuio do valor nominal da moeda. Ao traduzi-los, mesmo que no texto italiano sejam usados como termos absolutos, optamos por expresses analticas que, a nosso ver, melhor se ajustam ao significado original. Descar-tamos a hiptese de utilizar termos modernos, tais como desvalorizao e valorizao, por exemplo, ou inflao e deflao, a que alguns comentaristas modernos reportam o fenmeno do alzamento e do abbassamento da moeda descrito por Galiani, pois consideramos que eles trazem tona significaes estranhas realidade econmica da poca e eliminam a dificuldade inerente aos termos setecentistas, vrias vezes comentada por Galiani, que, na traduo, pre-ciso conservar. Trata-se da dificuldade, j relevada por economistas daquela poca, como Carlantonio Broggia e Pompeo Neri, de o aumento nominal resultar, de fato, numa diminuio real do valor das moedas e a reduo, num restabelecimento do valor delas. Ver a esse respeito Franco Venturi, Settecento riformatore: da Muratori a Beccaria, v. I. Torino: Einaudi, 1969, p. 443-522. [N.d.T.]

Se a prima vista pu sembrare semplice o addirittu-ra un po pedissequa la soluzione, non sar inutile che si

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Marzia Terenzi Vicentini

sappia che tale risultato frutto di varie ricerche. In primo luogo, in testi di portoghese antico, come, per esempio, nellInformao que por ordem do Conselho Ultramarino deu sobre as causas do Maranho ao mesmo Conselho, V. 5, di P. Antnio Vieira, in cui si legge:

Sobre a introduo da moeda, que tambm se prope na mesma carta, com o avano de cento por cento, no me atrevo a dar juzo. Representa-se-me que por este modo subir muito o preo das drogas de fora e abater igualmente o das drogas de dentro, com que antes diminuir do que crescer um estado cujo aumento se procura....

E se da questo testo poteva venire qualche ispirazio-ne, si dovuto poi concludere che avano e abatimento, in termini assoluti, non potevano suggerire a un lettore portoghese moderno il fenomeno definito da Galiani.

Continuando le ricerche nel portoghese moderno, consultando tra laltro la Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, alla voce moeda, si trovato questo esempio:

Entrou logo o novo governador em cuidados molestos de aquietar o povo alterado pela mudana da moeda, que os ministros reais haviam subido com dano dos vassalos, e escndalo do gentio vizinho, Jacinto Freire de Andrade, Vida de D. Joo de Castro, I, 41.

Ma oggi, normalmente, salgono i prezzi e non la moneta, e tale associazione automatica a cui, purtroppo, siamo tanto abituati, ci distoglierebbe dal cogliere immediatamente il fe-nomeno pi specifico riguardante la moneta in tempi in cui questa aveva un valore proprio e non solo rappresentativo.

Delle letture di opere di Economia Politica in por-toghese, si pu ricordare almeno un esempio tolto dalla traduzione del Capitale di Marx: [...] da deriva Barbon o direito de o governo valorizar o dinheiro, dando a uma moeda de ouro de menos peso o nome de outra de maior peso. Come gi detto nella nota del traduttore riportata,

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La grata fatica di una traduzione

valorizzare movimento finanziario del mondo moderno, che non corrisponde esattamente allalzare la moneta dei tempi passati. Nella traduzione italiana del Capitale, cos come in quella francese, troviamo infatti tale espressione in inglese, to raise money, pi corrispondente al significato originario, con poi nota in calce.

Si fatta una ricerca anche dei termini affermatisi nella terra di origine della letteratura economica e si constatato che sono prossimi a quelli italiani dello stesso periodo: rehausser les monnais, augmenter, lever, haus-ser, rendre plus fort contro surhausser, affaiblir, diminuer, baisser, abaisser. Ma anche in francese, oggi, allantico uso assoluto del sostantivo derivato dal verbo subentrato quello analitico che esplicita il complemento.

Contra luso di svalorizzazione o inflazione, che si in-contra in gran parte della bibliografia moderna in riferimento a Galiani, prevalsa la resistenza a modernizzare il testo.

Ma oltre alla difficolt di trovare termini giusti, che in portoghese fossero intelligibili, senza per che ne fosse sminuita la particolarit dei significati originari e di tale difficolt gli esempi dati costituiscono appena un campione si presentata quella di un giusto intendimento dell italiano antico, soprattutto quando i termini, di uso corrente nellitaliano odierno, avevano unaltra connotazione nel secolo XVIII. Come tradurre industria, operaio, se il loro uso oggi denota inequivocabilmente una realt tanto diversa da quella che ha presente Galiani? Per mantenere lequivalenza si sono dovute trovare soluzioni diverse, ricorrendo, di volta in volta, a attivit, lavoro, diligenza o ad altre parole ancora. Daltra parte, molte parole, anche meno in evidenza e che potevano indurre a facili sviste, a una lettura pi attenta facevano intuire il diverso valore semantico con cui giravano nel passato, come, per citarne appena alcune, dichiarazione, usato nel significato di esplicazione, concetto, come stima o opinione, o sentimento come concetto o opinione, convinzione, mentre opinione era piuttosto convinzione o teoria che altro, come poi si potuto

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verificare consultando dizionari e in special modo il Grande Dizionario della Lingua Italiana di Salvatore Battaglia.

Una nota a parte merita la traduzione di fatica con trabalho, con una rinuncia, senza dubbio dolorosa, alla connotazione che accompagna il termine italiano e che, come si sa, ha provocato il commento scherzoso di Marx, per cui, e si sta riferendo allopera del nostro economista napoletano, sarebbe tipicamente meridionale chiamare fatica il lavoro. Ma se tale connotazione era propria dello spirito della lingua, Galiani, che sta enunciando uno dei pi importanti principi della costituzione del valore, non poteva non avere in mente il significato di lavoro come ap-plicazione delle facolt fisiche e intellettuali degli uomini per la produzione sociale della ricchezza. Che poi anche la nozione di fatica non fosse del tutto assente, pazienza!

E se rispetto alle scelte lessicali molto ci sarebbe da ra-gionare insieme e non mi riferisco neppure a quelle legate alla specificit settoriale del testo, ai nomi delle moneta, delle unit di pesi e di misure, o ai toponomi e antroponimi, per i quali ben verrebbe un accordo decisivo tra i traduttori di professione , ancora di pi si dovrebbero commentare le scelte sintattiche, dal momento che si tratta di un italiano del 700, con dei giri sintattici che fan perdere il respiro, ma che sempre sorprendono importanza degli argomenti a parte per la vivacit stilistica di quelleccezionale scrittore che era Galiani, il quale gi a 21 anni, quando componeva questo capolavoro della letteratura economica italiana, transforma lesile e rigido italiano accademico della tradi-zione umanistico-erudita in una lingua pieghevole, ricca, profonda e leggera allo stesso tempo.

La difficolt della traduzione nasce proprio da queste caratteristiche della prosa galianea, per la necessit di sbro-gliare e suddividere, per amore di chiarezza, il fitto periodo e, allo stesso tempo, per la preoccupazione di non perdere la vivacit e variet del tono discorsivo, che va dallandante del resoconto storico, al sostenuto del ragionamento, allallegro e vivacissimo in tanti momenti di maggior pole-

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mica o convinzione delle nuove idee da difendere. Se si sia riusciti anche solo in parte a trovar la misura giusta, lo si spera. O almeno valga, per consolarci delle manchevolezze della traduzione, il riconoscimento di certa loro inevitabili-t, come ammetteva quel critico sensibilissimo che stato Mario Fubini e che sui problemi della traduzione ebbe a scrivere tra laltro:

N estranea del tutto sentiamo la loro lingua [la lingua degli scrittori del passato e di altri popoli], la quale per quanto diversa in tanti suoi caratteri dalla nostra non ne divisa da un confine invalicabile, e al di l dei singoli aspetti distintivi lascia riconoscere la medesi-ma forza che ha formato e forma il linguaggio nostro: e perci anche se, come tante altre volte si ripetuto e sopra si ricordato, nessuna voce di un lessico pu trovare la sua esatta corrispondente in unaltra, e cos le singole forme stilistiche, per non dire dei suoni e della loro varia composizione, pur lecito rifarsi a quellintima forza creatrice e rinnovare in certo qual modo il suo lavoro, ricostituendo fin che possibile entro il nostro sistema linguistico quelle relazioni di immagini, suoni, di ritmi che ci son parse proprie ed essenziali dellopera originale. Questo appunto il compito del traduttore, a cui sarebbe assurdo chie-dere unopera che tenga il luogo delloriginale, bens unaltra che entro un diverso ambito storico venga in qualche modo a farcene sentire lo spirito, col darne non una copia ma alcunch di analogo.35

Per terminare questa breve riflessione o, meglio, per far s che ogni lettore che ne sia interessato abbia il piacere di continuarla per conto proprio, aggiungo alcuni esempi di traduzione che possono illustrare concretamente, anche se in minima parte, quellaporia di cui si diceva allinizio. Si tratta della diversa traduzione di un brano del Della

3 FUBINI, Mario. Sulla traduzione. In:___. Critica e poesia. Roma: Bonacci 1973, p. 287.

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moneta, in portoghese e in francese,46 per mostrare come un diverso atteggiamento nei confronti delloriginale, di ricerca di aderenza o di attualizzazione del testo, possa influire nel tipo di traduzione. Poi un esempio, data la vicinanza storica e geografica delle opere, di una traduzione della Scienza Nuova del Vico,57 in cui emerge, forse per la propria natura del testo o per vocazione del traduttore, la scelta di quella tendenza estraniante di cui pure si diceva allinizio.

Da Della moneta:

Passione delle donne per la bellezza e quanto questa sia ragionevole

Ma, se negli uomini il desiderio di comparire genera affetto a queste pi rare e belle produzioni della natura [si tratta di oro, argento e gemme], nelle donne e ne bambini la passione ardentissima di parer belli rende al sommo prezzabili questi corpi. Le donne, le quali costituiscono la met dellumana specie, e che o intie-ramente o in grandissima parte solo alla propagazione ed educazione nostra paiono destinate, non hanno altro prezzo e merito che lamore che destano ne maschi; e, derivando questo quasi tutto dalla bellezza, non hanno elleno altra cura maggiore che dapparir belle agli occhi delluomo. Quanto a questo conferiscano gli ornamenti dal comune consenso confessato: dunque, se la valuta nelle femmine nasce dallamabilit, e questa dalla bellezza, la quale dagli ornamenti si accresce, troppo a ragione bisogna che altissimo sia il valore di questo nel loro concetto. [Il corsivo non delloriginale!]

4 GALIANI, Ferdinando. De la monnaie. Traduit par G.H Bousquet e J. Crisafulli. Paris: Librairie Marcel Rivire et Cie, 1955.

5 VICO, Giambattista. A Cincia Nova. Traduo de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro-So Paulo: Record, 1999.

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Traduzione in portoghese:

Paixo das mulheres pela beleza e como isso razovel

Se j nos homens o desejo de aparecer os faz amar estas raras e belas produes da natureza, nas mu-lheres e nas crianas, a vividssima paixo de parecer belas as faz apreciar tais objetos no mais alto grau. As mulheres, que constituem a metade da espcie huma-na e parecem destinadas, todas ou em grandssima parte, exclusivamente procriao e educao, no tm outro valor ou mrito a no ser em virtude do amor que despertam nos homens; e como esse nasce quase totalmente da beleza, elas dispensam o maior cuidado em parecer belas aos olhos dos homens. E que para isso os adornos muito contribuam, no h como no admiti-lo. Ora, se o valor das mulheres ad-vm do fato de serem amadas, e portanto da beleza, que aumenta com os adornos, h razes mais que su-ficientes para que elas os tenham em altssima conta.

Traduzione in francese:

Si le dsir de paratre dtermine, chez les hommes, une passion pour les plus rares et les plus belles production de la nature, chez les femmes et chez les enfants, une passion trs ardent de paratre beaux, rend ces objets trs estimables. Les femmes, qui constituent la moiti de lespce humaine, et qui me semblent destines, en totalit ou en partie, la multiplication et lducation de lhumanit, attachent un grand prix laffection quelles font natre chez les hommes; celle-ci tant surtout dtermine para la beaut, les femmes emploient les plus grands soins paratre belles aux jeux des hommes. Il est communment admis que la parure aide beaucoup atteindre ce but; en consquence, si la valeur, chez les femmes, nat de lamabilit, et celle-ci de la beaut, laquelle se trouve accrue para la parure, cest avec raison que celle-ci a une trs grand valeur.

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Lattenuazione, nella traduzione francese, del giudi-zio che Galiani si faceva delle donne, si pu giustificare forse pensando al movimento femminista in Francia, gi forte allepoca in cui stata pubblicata! O forse, giacch per esplicita dichiarazione dei traduttori il loro intento era quello di mettere in luce la modernit del pensiero galianeo, pu essere frutto spontaneo di tale punto di vista interpretativo.

Da La Scienza Nuova:

Annotazioni alla tavola cronologica nelle quali si fa lapparecchio delle materie

I

[Tavola cronologica, descritta sopra le tre epoche de tem-pi degli egizi, che dicevano tutto il mondo innanzi essere scorso per tre et: degli dei, degli eroi e degli uomini]

Questa tavola cronologica spone in comparsa il mondo delle nazioni antiche, il quale dal diluvio universale girasi dagli ebrei per gli caldei, sciti, fenici, egizi, greci e romani fino alla loro guerra seconda cartaginese. E vi compariscono uomini o fatti romorosissimi, determinati in certi tempi o in certi luoghi dalla comune dedotti, i quali uomini o fatti o non furono ne tempi o ne luoghi ne quali sono stati comunemente determinati, o non furono affatto nel mondo; e da lunghe densissime tene-bre, ove giaciuti erano seppelliti, vescon uomini insigni e fatti rilevantissimi, da quali e co quali son avvenuti grandissimi momenti di cose umane. Lo che tutto si dimostra in queste Annotazioni, per dar ad intendere quanto lumanit delle nazioni abbia incerti o sconci o difettuosi o vani i princpi.

Traduzione in portoghese:

Anotaes tbua cronolgica das quais se faz o aparato das matrias

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La grata fatica di una traduzione

I

[Tbua cronolgica, descrita sobre as trs pocas dos tempos dos egpcios, que diziam todo o mundo antes deles ter decorrido por trs idades: dos deuses, dos heris e dos homens]

Esta Tbua cronolgica expe em comparsa o mundo das naes antigas, o qual pelo dilvio universal gira dos hebreus aos caldeus, citas, fencios, egpcios, gre-gos e romanos at a segunda guerra cartaginesa. E a ela compareceram homens tornados famosssimos, determinados em certos tempos ou em certos lugares pela sociedade dos doutos, os quais homens foram feitos ou no nos tempos ou nos lugares nos quais comumente foram determinados, ou no existiram, com efeito, no mundo; e de longas densssimas trevas, onde os que jazem eram sepultados, saem homens insignes e feitos importantssimos, pelos quais e com os quais ocorreram grandssimos momentos de coisas humanas. O que tudo se demonstra nessas Anotaes, para dar a entender quanto a humanidade das naes tenha incertos ou inconvenientes ou defeituosos ou vos os princpios.

Senza voler entrare in dettagli quanto agli esiti di tale importante traduzione, magari facendo appena notare che gli uomini o fatti romorosissimi del testo riportato sono stati tradotti, certamente per svista, homens tornados famosssimos, con strascichi nella successiva concatenazione del periodo, e per restare nel campo della riflessione proposta, vorrei solo osservare che il mantenimento di uno stretto vincolo con l originale, che si pu rilevare anche a partire dalla lettura di questo breve brano, denuncia chiaramente l orientamento della traduzione a privilegiare aspetti formali che, ci dice Folena, puntano alla trasposizione analogica del significante pi che a una attualizzazione del significato.

O CAMINHO TORTUOSODE A CONSCINCIA DE ZENO

revista fragmentos voL. 4 n.1ufsc, 1993

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O caminho tortuoso de A conscincia de Zeno

E por que pensar em curar a nossa doena? Devemos realmente subtrair humanidade o que ela tem de melhor?

Italo Svevo a Valerio Jahier27 de dezembro de 1927

diferena dos romances anteriores, que se constituam com uma pretenso de totalidade dramtica, abarcando o arco de uma vida o primeiro, que leva justamente o ttulo Uma vida (1892), e o momento crucial de um abalo existencial o segundo, Senilidade (1898), em seu ltimo romance, A Conscincia de Zeno (1923), Svevo parece abandonar as formas tradicionais da narrao. O objeto da narrao no mais uma fase da vida contnua e organicamente representada, mas so ncleos narrativos descontnuos, que correspondem necessidade de anlise da personagem, no possuindo, portanto, a rgida coerncia espao-temporal das formas narrativas anteriores. Os vrios captulos que compem o romance (O fumo, A morte de meu pai, A histria de meu casamento, A mulher e a amante, Histria de uma sociedade comerciale Psicanlise), embora cheguem a dar consistncia psicolgica e histrica personagem em todas as suas relaes, no respeitam rigidamente uma ordem temporal, mas se desenrolam como momentos da anlise dos vrios aspectos que caracterizam a vida de Zeno.

O tempo que transcorre entre um e outro ncleo no um tempo linear, porque em cada captulo os tempos se entrecruzam, segundo a necessidade de recognio de sua prpria vida que o protagonista pretende realizar. Essa nova organizao temporal do romance reflete uma

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Marzia Terenzi Vicentini

diferente constituio da personagem, que no cresce nem muda substancialmente ao longo de sua vida, de forma que a recognio mais a reconfirmao de uma identidade perseguida sob vrios aspectos do que propriamente a per-cepo de eventuais mudanas ocorridas. O descompasso temporal relevante que se quer instituir no reside mais nas alteraes produzidas pelos acontecimentos, como ainda ocorria nos romances anteriores, mas est completamente reduzido diferena de grau de conscincia entre Zeno velho que relata, e Zeno jovem, que objeto da anlise.

Sendo A conscincia de Zeno o relato da personagem que se analisa para um tratamento psicanaltico, ao ato de escre-ver confiada a tarefa de reconhecer a doena como condio para recuperar a sade: Escreva! Escreva! O que acontecer, ento, que voc vai se ver por inteiro, lhe aconselhou o m-dico (SVEVO, 1980, p.11).

A doena a substncia dessa personagem, que toma forma exatamente na tenso por ela vivida entre doena e sade, nos eternos e sempre renovveis propsitos de encontrar a sade. Mas de que doena se trata? No primeiro captulo, dedicado ao vcio de fumar, encontramos seus primeiros sintomas: a escolha das datas, que anunciam, pela combinao de seus nmeros, a possibilidade de exercer influncias cabalsticas sobre a vontade de Zeno, j revela a fraqueza desta ltima. Com efeito, Svevo trata no do vcio de fumar, mas do vcio do eterno propsito. E vejamos como isso se organiza na narrao:

Na folha de rosto de um dicionrio encontro um registro meu feito com bela caligrafia e alguns ornatos: "Hoje, 2 de fevereiro de 1886, deixo de estudar leis para me dedicar qumica. ltimo cigarro!"

Tratava-se de um ltimo cigarro muito importante. Recordo todas as esperanas que o acompanharam. Havia perdido o gosto pelo direito cannico, que me parecia distanciado da vida, e corri para a cincia, a prpria vida, se bem que reduzida a uma retorta.

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O caminhO tOrtuOsO de A conscinciA de Zeno

Aquele ltimo cigarro representava o prprio anseio de atividade (tambm manual) e de meditao sbria, serena e slida.Para fugir das cadeias de combinaes do carbono, em que no acreditava, resolvi voltar ao direito. Muito pior! Foi um erro igualmente registrado com um ltimo cigarro, cuja data encontro inscrita numa pgina de livro. Tambm este foi importante. Eu me resignava a voltar s intrincncias do direito com os melhores propsitos, abandonando para sempre as cadeias de carbono. Convenci-me de falta de pendor para a qu-mica at mesmo pela minha inabilidade manual. Como poderia t-la, se continuava a fumar como um turco?19

Objeto declarado da narrao o ltimo cigarro; clama-se pela importncia deste mais do que pela importncia da deciso de mudar de estudos. E assim dois contedos que, numa escala normal de valores210, seriam hierarquizados, so colocados numa relao de coordenao. O narrador proce-de sereno e seguro nesse seu relato at quando, pela forma interrogativa, introduz uma explicao dos fatos que parece situar-se num plano de avaliao imediatamente subsequente ao e que poderia, portamto, ser formulada por Zeno jovem.

Em seguida, essa explicao como que posta em xeque por uma nova interpretao que Zeno avana no ato da narrao:

Agora que estou a analisar-me, assalta-me uma dvida: no me teria apegado tanto ao cigarro para poder atribuir--lhe a culpa de minha incapacidade? Ser que, deixando de fumar, eu conseguiria de fato chegar ao homem forte e ideal que eu me supunha? Talvez tenha sido essa mes-ma dvida que me escravizou ao vcio, j que bastante

1 I. Svevo, A Conscincia de Zeno, traduo de Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 15.

2 Quanto importncia de um contedo axiologicizado para que o enunciado possa criar, em sua inverso, o efeito irnico, veja-se Lironie comme trope de Catherine Kerbrat-Orecchioni, in Potique, n41, fev. 1980, p. 121.

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cmodo podermos acreditar em nossa grandeza latente. Avento esta hiptese para explicar minha fraqueza juvenil, embora sem convico definida. Agora que sou velho e que ningum exige nada de mim, passo com frequncia dos cigarros aos bons propsitos e destes novamente aos cigarros. Que significam hoje tais propsitos? Como aquele velho hipocondraco, descrito por Goldoni, ser que desejo morrer so depois de ter passado toda a vida doente?311

A inverso que ocorre nessa nova interpretao no o cigarro o responsvel pela incapacidade, mas a esta que se deve o vcio na realidade no modifica qualitativamente o plano de valores que se estabeleceu na narrao ante-rior e que consiste no engrandecimento desproporcionado do detalhe. Zeno velho que continua fumando e fazendo propsitos de abandonar o vcio, reclama pela identidade.

A importncia do jogo dos planos narrativos na obra sveviana foi amplamente debatida entre os crticos. Marziano Guglielminetti, reconhecendo que para Svevo a exigncia de um plano de juzo, de avaliao dos fatos o elemento fundamental da organizao de sua narrativa, examina sua manifestao peculiar neste ltimo romance: diferena das obras anteriores, A conscincia de Zeno, que narrado na primeira pessoa, teria precisado de uma reviso sinttica do prprio monlogo, para garantir-lhe, na nova situao, a capacidade de se abrir ao dilogo in interiore homine entre ator e autor.412

E o crtico observa que, na experimentao sinttica feita anteriormente, Svevo teria encontrado estilemas su-ficientes para permitir-lhe, tambm por meio desse novo monlogo recitado na primeira pessoa, a criao do plano de juzo: o uso do condicional, as frequentes exclamaes, as repeties, a sbita introduo do presente marcariam o esforo antiobjetivo da narrao sveviana, ao lado da preservao da possibilidade de diagnosticar os fatos.

3 I. Svevo, A Conscincia de Zeno, cit., p. 16.4 M. Guglielminetti, Struttura e sintasse del romanzo italiano del primo Novecento,

Milano, Silva, 1964, p. 144.

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Em contraposio a essa anlise, Giuditta Rosowsky interpreta a presena dos elementos anti-objetivantes da narrao sveviana como a manifestao da necessidade que o autor teria de dramatizar a narrativa e, no caso especfico de A conscincia de Zeno, eliminar o filtro do julgamento:

Parece-me com efeito que aqui o emprego da primeira pessoa no se limita a repropor, de modo diferente, a distino entre o nvel do enunciado e o da enun-ciao, cujos respectivos sujeitos se encontram na pessoa de Zeno. No se trata ento simplesmente da exigncia, muito viva em Svevo, de um "plano de juzo" que lhe permita comentar "os momentos de deviao do comportamento normal", e expressar a sua men-sagem, que a mesma de Freud, de que a doena fenmeno geral, de que no existe a normalidade e sim o cultural-normativo.

O eu que fala est envolvido em uma relao anal-tica que atualiza o passado de Zeno de forma dra-mtica. Tudo reconduzido a este ato de locuo de Zeno que pressupe a presena de um interlocutor. Poder-se-ia dizer que a inovao deste romance de Svevo no reside tanto no emprego da primeira pessoa, quanto na introduo do prprio ato de comunicao.513

O n da controvrsia entre Guglielminetti e Rosowsky, que exemplifica o campo das discusses crticas sobre o as-sunto, resolve-se, a nosso ver, se considerarmos a presena da exigncia de julgamento postulada pelos dois crticos, no no plano descobertamente subjetivo da narrao, mas no plano de sua organizao objetiva. nessa transferncia que se atua uma modificao essencial e no indiferente dessa exigncia axiolgica.

O trabalho de autoanlise de Zeno velho, como teste-munha o exemplo citado e como ocorre constantemente em toda a narrao, no marca uma distino real de pontos

5 G. Rosowsky, Theorie et pratique psycanalitique dans l'ouvre d'Italo Svevo, in Revue des tudes italiennes, I, 1970, p. 70.

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de vista entre a conscincia das coisas que Zeno possua no momento da ao e a que possui no momento em que conta a sua vida. O ponto de vista superior perso-nagem no se concretiza mais, como ocorria nos outros romances de cunho mais tradicionalista, por meio da subjetividade de um narrador, mas completamente interiorizado prpria narrao, ao seu tecido e sua constituio. Ele age na disposio da matria, naquela sua disposio particular que provoca, a cada instante, o efeito irnico-humorstico, determinando, por isso mes-mo, o efetivo comentrio inerente aos fatos narrados e qualidade da personagem.

Tratemos de explicitar essas afirmaes. Sabemos que o princpio geral da ironia, seja ela sarcstica ou concilia-dora, a inverso: inverso verbal, da situao, das partes, da situao moral, que se pode apresentar segundo uma intensidade varivel que vai desde a oposio at as formas mais variadas de desvios fictcios614. J vimos como, neste primeiro captulo, ao tratar de sua doena, Zeno privilegia um falso contedo, ou pelo menos um contedo irrelevante (o vcio de fumar), realizando uma espcie de litotes que atenua o contedo real (a incapacidade de tomar decises diante dos contedos mais srios da vida). Com base nessa inverso desenha-se toda a trama da histria, pontilhada por outras tantas inverses:

O mdico, um dos muitos que encontramos neste relato, ao prognosticar a doena, parte de um princpio a eficcia teraputica da eletricidade ao qual toda doena deveria se ajustar. A doena deveria se adaptar ao trata-mento e no este a ela.

Na ocasio de seu primeiro exame universitrio im-portante, Zeno se adianta no estudo da matria, obtendo como resultado o insucesso naquele momento.

A idade eliminaria, segundo o mdico, os impulsos amorosos; em Zeno, ficam fortalecidos.

6 H. Morier, Dictionnaire de potique et de rhtorique, Paris, Presses Univer-sitaires de France, 1975, p. 571.

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O amigo, que permanece firme no propsito de ema-grecer, suscitando a inveja de Zeno, incapaz de qualquer firmeza, ganha com isso... um monte de pele.

Na primeira aposta para deixar de fumar, feita com seu administrador, Olivi, Zeno, vendo-se escravo de quem deveria ser seu subordinado, acaba fumando muito mais.

Tudo o que Zeno comea parece ter como desfecho o contrrio da inteno com qual a ao iniciada. As-sim, a deciso de se autoaprisionar numa clnica para se libertar do vcio de fumar quase tem como resultado a sua expulso do lugar: Estava acabando por ser posto para fora de minha priso.

Relao invertida de causa e efeito, exagerao de um dos polos a causa desproporcionada ao efeito e vice-versa e inverso dos papis: so esses fundamentalmente os princ-pios aos quais se remetem as formas concretas de inverso que constituem o texto.

No resta dvida de que nessas inverses esteja presente o efetivo ponto de vista segundo o qual se organiza a matria narrada. O juzo sobre a personagem no advm diretamente de um comentrio explcito, mas faz-se por si prprio, por aquela mesma instncia que realiza as inverses.

A inverso, como princpio formal da organizao da matria narrada, confirma-se em todas as situaes vividas pelo protagonista. Sem pretender ento exemplific-la em todos os nveis em que aparece e que incluem os simples ges-tos, os mnimos atos cotidianos, as palavras pronunciadas ou apenas pensadas, ser suficiente relev-la ao nvel ma-croscpico dos ncleos narrativos em que se divide o relato.

Veja-se no quarto captulo, em que Zeno relata seu comportamento com o pai, o desfecho de um relaciona-mento que nunca brilhou pelo amor recproco: no exato momento em que Zeno resolve seguir as instrues do mdico, na extrema tentativa de dar ajuda a seu pai, este morre, dando no filho aquela bofetada memorvel, que Zeno interpreta como uma punio e que foi provocada justamente por sua nica ao desinteressada.

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Na histria inesquecvel do seu casamento, a deciso de casar precede a escolha da noiva e, sobretudo, como todos sabemos, Zeno acaba se casando exatamente com quem no queria.

A amante lhe faz aumentar o amor pela esposa. Na histria da sociedade comercial, em que a socie-

dade nasce antes do comrcio, a nica atividade econmica bem-sucedida ocorre quando a sociedade no existe mais, devido morte de um de seus membros.

E, finalmente, no captulo sobre a cura psicanaltica, Zeno sara ao deixar o tratamento.

um pouco ingrato esquematizar to secamente as inverses macroscpicas que ocorrem nos vrios captulos, quando elas, na narrao, se apresentam revestidas de todos aqueles sentimentos, observaes, confisses e mil outras situaes invertidas que constituem o organismo vivo que o romance. Mas, nesses esquemas, repousam as leis desse organismo. Com efeito, a imagem geral que se cria de nossa personagem a de um ser excntrico, deslocado, que se move sempre desajeitadamente. E essa imagem cuidadosa e obstinadamente confeccionada no processo de autoanlise que constitui a narrao.

J vimos a importncia dada ao vcio de fumar como vcio capital, que ocupa inteiramente nossa personagem na luta para se libertar dele. E, para definir mais claramente a natureza da doena, valham as contraposies que o prprio Zeno estabelece entre si e as outras personagens: com o pai, por exemplo, grande fumante e no entanto completamente sadio; ou com o sogro, homem de neg-cios bem-sucedido, ativo e completamente sereno em sua perfeita ignorncia. Mas na contraposio com Augusta, sua mulher, que Zeno chega a formular uma verdadeira teoria sobre o assunto:

[...] Compreendi definitivamente o que era a perfeita sade humana quando percebi que o presente para ela era uma verdade tangvel na qual ela podia segredar-se e encontrar conforto. []

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O caminhO tOrtuOsO de A conscinciA de Zeno

Ela conhecia tudo o que era capaz de aborrecer-me; em se tratando dela, porm, essas coisas mudavam de aspecto. Se at a Terra girava, no era cabvel que tivssemos tonteiras! Pelo contrrio! A Terra girava, e tudo o mais permanecia nos respectivos lugares. Essas coisas imveis tinham importncia imensa: o anel de casamento, todas as jias e vestidos, o verde, o preto, o de passeio []Estou analisando a sua sade, mas no consigo faz--lo, pois me acode que, ao analis-la, converto-a em doena. E ao escrever sobre ela, comeo a duvidar sobre se aquela sade no careceria de cura ou tra-tamento. Vivendo ao seu lado durante tantos anos, jamais me ocorreu essa dvida715.

A dvida que Zeno expressa to cautelosamente , na realidade, o pressuposto de toda a narrao. O tom de complacncia consigo mesmo, que se produz pelo hu-morismo das situaes, retira qualquer possibilidade de julgar seriamente a doena de Zeno. Ela contm, alis, a possibilidade de entender o mundo so; a excentricidade de Zeno que revela a excentricidade do mundo.

As personagens com sade, ou melhor, a sade, submetida s mesmas leis excntricas que Zeno reclama para si: o slido mundo do trabalho que o administrador Olivi representa to so que se torna irrelevante diante dos grandes jogos especulativos que a guerra s agua, mas que os jogos da Bolsa j revelam como a nova forma excntrica de lucro. Ada, imagem da sade e da serieda-de, acometida por uma doena que a transfigura; Gui-do, o cunhado brilhante que tudo possui para se tornar bem-sucedido, acaba no desfrutando nada do que tem, morrendo ainda por cima por um autoengano...

A diversidade que Zeno ciosamente cuida de preservar mais aparente do que real: ele e o mundo subjazem s mesmas leis excntricas que fazem das pessoas joguetes incapazes de defesa, inermes. A diversidade entre Zeno e as outras perso-nagens reside no fato de estas se moverem como se fossem ss num mundo so, enquanto Zeno proclama a doena.

7 I. Svevo, A conscincia de Zeno, cit., p. 148.

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Do reconhecimento da doena toma forma toda a narrao, que se apresenta, ao nvel da histria, como busca perene de sade, como histria da vida e das curas de Zeno.816

Mas, sendo a sade inalcanvel, os propsitos de ao que levariam a ela se repetem invariavelmente. H uma fratu-ra entre propsito e ao, que nunca se conciliam, e o prop-sito se cristaliza, assim, numa frmula vazia e irrisria. Zeno comporta-se como se essa conciliao pudesse se verificar sempre, e suas resolues, formuladas com obstinao, so ridicularizadas nas aes, que acabam tento o xito oposto inteno. Devido a essa irresoluo entre ao e inteno e s tentativas contnuas de concili-las, o romance se torna, como j observou Palumbo, uma mquina de paradoxos em sucesso vertiginosa, em cujo funcionamento o que segue inverte sistematicamente o que vem antes.917

A repetida renovao dos propsitos revela tambm a incapacidade de Zeno de crescer com os acontecimentos, de modificar substancialmente sua atitude frente realidade. Como diz Palumbo, os muitos fatos que se acumulam na vida de Zeno so mantidos em sua heterogeneidade e inco-mensurabilidade em relao a qualquer projeto teleolgico. A relao entre a parte e o todo foge a qualquer sutura.1018

Remete-se a essa nova viso da realidade a nova disposi-o temporal do romance que, como j observamos, prescinde da descrio homognea de uma fase da vida; o tempo no pode mais ser representado como direo unvoca, linear, porque ele j no pode conferir unidade segmentao dos acontecimentos. Como o prprio Zeno deixa entender, sua possvel visualizao no se obteria pela linha reta e sim por um crculo: [...] o tempo para mim no essa coisa insensata que nunca pra. Para mim, s para mim, ele retorna.1119

8 I. Svevo, Profilo autobiografico, in Racconti, Saggi, Pagine sparse, Milano, DallOglio, 1968.

9 M. Palumbo, in F. P. Botti, G. Mazzacurati, M. Palumbo, Il secondo Svevo, Napoli, Liguori, 1982.

10 Idem, p. 108.11 I. Svevo, A conscincia de Zeno, cit., p. 17.

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O tempo que volta, que se repete, o desmentido de qual-quer possibilidade real de transformao da personagem; em outras palavras, o tempo de Zeno velho, que escreve, no , nem deixa entrever, um tempo novo, que lhe permita, como Zeno humoristicamente comenta: [...] morrer so depois de ter passado toda a vida doente.

impossibilidade do advento desse tempo novo liga-se ironizao que Zeno efetua exatamente com relao ao objeto que originou seu relato: o tratamento psicanaltico. A crtica psicanlise num texto que parece moldado sobre seus procedimentos mais um paradoxo de que se reveste a indagao crtica de Svevo nesse romance.

A irriso explcita do mtodo psicanaltico dirige-se contra a pretenso que ele manifesta de diagnosticar na pessoa de seu representante que o Doutor S., a doena nos limites estreitos de alguns princpios: primeira infncia como tempo privilegiado da criao dos traumas, complexo de dipo, etc.

A ironia de Svevo diante da reduo que a psicanlise efetuaria no reconhecimento da doena advm fundamen-talmente da aceitao de uma mais espessa determinao social da doena. Assim como em Senilidade e Uma vida, tambm nessa obra aparece explicitamente a referncia razo social dos distrbios do protagonista. Nesse lti-mo romance, a explicitao d-se atravs dos caminhos tortuosos que a conscincia de Zeno percorre seguindo as regras invertidas de seu procedimento.

Com efeito, as razes deixadas em segundo plano revelam a presena de um mecanismo de classe que age in-defectivelmente nas escolhas dessa personagem, em todas as suas situaes. Considere-se, por exemplo, o comentrio de Zeno aos efeitos que a morte do pai lhe causaram:

J a morte de meu pai foi uma grande e verdadeira catstrofe. O paraso deixou de existir e eu, aos trinta anos, era um homem desiludido. Morto tambm! Ocor-reu-me pela primeira vez que a parte mais importante e decisiva de minha vida ficava irremediavelmente

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para trs. Minha dor no era exclusivamente egos-ta, como se poderia apreender destas palavras. Ao contrrio! Chorava por ele e por mim, apenas porque ele havia morrido.1220

A verdade que os sofismas de Zeno encerram e mas-caram aparece por acaso quando lembra:

At sua morte, nunca vivi para meu pai. Nunca fiz nenhum esforo para aproximar-me dele e, quando podia fazer isso sem ofend-lo, at me afastava dele. Na universidade todos o conheciam pelo apelido que eu lhe dava: O Velho Silva Mo-Aberta.1321

No o caso de continuar dando exemplos, uma vez que a determinao social dos atos de Zeno faz-se presente sempre, ao ponto de se explicitar, no final, na interveno apocalptica do narrador, que aproxima decididamente parasitas e doentes:

Talvez por meio de uma catstrofe inaudita, provo-cada pelos artefatos, havemos de retornar sade. Quando os gases venenosos j no bastarem, um homem feito como todos os outros, no segredo de uma cmara qualquer neste mundo, inventar um explosivo incomparvel, diante do qual os explosivos de hoje sero considerados brincadeiras incuas. E um outro homem, tambm feito da mesma forma que os outros, mas um pouco mais insano que os demais, roubar esse explosivo e penetrar at o centro da Terra para p-lo no ponto em que seu efeito possa ser o mximo. Haver uma exploso enorme que ningum ouvir, e a Terra, retornando sua forma original de nebulosa, errar pelos cus, livre dos parasitos e das enfermidades.1422

12 Idem, p. 33.13 Idem, p. 34.14 Idem, p. 403.

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Como ocorre nos outros romances svevianos, encon-tra-se no final a mensagem direta do autor, que pretende sugerir o sentido da obra e que interpreta o prprio cami-nho percorrido no ato da escritura. E como em Senilidade, o final se apresenta com uma mudana repentina de tom narrativo, como incluso do percurso narrativo na dimen-so presentificada do ato de escrever.

Dessa vez, contudo, a concluso do romance constitui um enigma, no com relao ao seu contedo, mas quanto sua capacidade para significar a totalidade das dimenses contidas nesse texto. Tratemos de explicitar isso.

Zeno, que se declara curado no momento em que, devido ao sucesso comercial se insere ativamente no mundo do comrcio e no tem mais tempo de se autoanalisar, realiza sua extrema inverso irnica. Sobre a sanidade deste mundo, o leitor, at o mais desprevenido, j pode nutrir suas dvidas, assim como sobre a capacidade de Zeno para inserir-se nele ativamente. O otimismo de Zeno, nesse final e tambm em outros momentos do romance, em que faz questo de sublinhar que suas vicissitudes tiveram sempre bons xitos inesperados (o casamento feliz, apesar da escolha involuntria; ele, doente imaginrio, v morrer muitos amigos cheios de sade, etc.), no deixa de ser, como em todas as suas autoanlises, sofstico. G. Debenedetti que usa esse termo e assim o justifica:

E no entanto o otimismo de Zeno resulta sempre so-fstico. Exatamente quando parece concluir que afinal de contas ele, o doente imaginrio, mais so do que tantos sos; ele, o anormal imaginrio, mais normal do que todos os supostos homens normais exatamen-te nesse momento, atrs da concluso aparente, se insinua a verdadeira []: isto , que a vida sempre foi pousar onde ele no tinha previsto, onde seus clculos e seus planos no esperavam. O tom de Zeno decorre exatamente deste otimismo que, embora se reconhea sofstico, se mantm contudo benvolo.1523

15 G. Debenedetti, Saggi critici, 2 Serie, Milano, Il Saggiatore, 1971, p. 241.

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Nessas observaes de Debenedetti reside, a nosso ver, o problema central da interpretao dessa obra. Se a constatao do caos no final de cada aventura a nica coisa realmente regular da histria de Zeno1624, de onde lhe advm a capacidade de rir de si mesmo, como se justifica o desdobramento humorstico da ironia nesse romance?

A perspectiva final do romance, que parece eliminar qualquer possibilidade, at mesmo utpica, de um mundo so, em que os atos no sejam mais decorrentes de um mecanismo social que produza parasitas e a conscincia no seja mais sofstica, como se pode identificar com um ponto de vista superior do qual compreender o texto, toda a espessura contraditria de suas significaes? Por que, em outras palavras, o autor, apesar de negar explicita-mente qualquer perspectiva utpica, consegue rir de sua personagem, fazer com que ela ria de si mesma e ns dela, realizando aquele distanciamento objetivante com relao sua personagem que acabou sendo a caracterstica curiosa desse romance escrito na primeira pessoa?

A instncia tica que organiza a matria da narrao e que, alm da crtica mais consequente ao mundo burgus a que Svevo chegou em seu percurso potico, se manifesta como atitude brincalhona diante da vida se encontra explicitada numa definio casual, devida aparentemente a uma associa-o de palavras que Zeno formula sobre a vida. Em resposta a Guido, que num momento de grande desalento definiu a vida como injusta e dura, Zeno retruca que a vida no nem boa nem m, original. E assim comenta sua descoberta:

Original, a vida? disse Guido, a rir-se. Onde leu isto?No me dei ao trabalho de assegurar-lhe que no o havia lido em parte alguma porque as minhas palavras have-riam de ter menos importncia para ele. Contudo, quanto mais pensava nela, mais achava a vida original. E no era necessrio que viessem os de fora para consider-la

16 Idem, p. 241.

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construda de uma forma to bizarra. Bastava recordar tudo aquilo que ns, homens, esperamos da vida para a acharmos to estranha, a ponto de concluirmos que talvez o homem tenha sido posto nela por engano e que de fato no pertena a ela.1725

Nessa descoberta de Zeno e na nova perspectiva que ela oferece ao entendimento da vida, parece resumir-se o ponto de vista real que preside formao desse romance. A ausncia de um ponto de vista superior do qual compreender ou julgar os fatos e, ao mesmo tempo, o interesse sempre renovado em represent-los revelam uma nova aceitao da existncia e de seus males, que nenhum futuro poder resgatar. o prprio presente o campo em que a pena de viver se impregna de suas obscuras, mas necessrias, significaes.

A vida destituda de qualquer sentido, reafirmada em seu valor intrnseco por meio de uma operao que, como por um ato de extrema deciso1826, pe um sinal de igualda-de entre a casualidade da existncia e sua necessidade. como se Zeno tivesse abandonado a ideia de uma sade passvel de ser alcanada num futuro cuja dimenso, como ele afirmar mais explicitamente num escrito posterior1927, est-se subtraindo a suas consideraes.

Aps a experincia trgica da Primeira Guerra Mundial e a observao do aprofundamento doloroso das contradies

17 I. Svevo, A conscincia de Zeno, cit., p. 306.18 M. Palumbo reconhece que, para a impostao terica de A conscincia

de Zeno, o encontro com Nietzsche foi decisivo e cita estas afirmaes do filsofo: A confiana na vida extinguiu-se: a prpria vida que se tornou problema. No se deve pensar que por isso seja necessrio que ns nos transformemos em pessoas ttricas! O amor vida ainda possvel, s que se ama de maneira diferente. (In La gaia coscienza e Frammenti postumi, 1881-82, Milano, Adelphi, 1965, v. IV, p. 18).

19 Continuo a agitar-me entre o presente e o passado, mas pelo menos entre os dois no chega a intrometer-se a esperana, a ansiosa esperana no futuro, so as confisses de Zeno, que reaparece mais velho no ltimo romance de Svevo, inacabado. (Il Vecchione, in Il buon vecchio e la bella fanciulla e altri racconti, Milano, DallOglio, 1975, p. 192).

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da existncia numa sociedade capitalisticamente mais aguerrida, as utopias que forneciam apoio e apontavam caminhos parecem no ter resistido. O Socialismo do sculo XX, como j observou L. De Castris2028, para Svevo, como para muitos intelectuais que viveram utopicamente as expectativas de transformao social, no mximo um remorso, um senso de culpa, tendo perdido totalmente a sua capacidade de dar um sentido devastao que o tempo criou.

Assim a aceitao desta devastao no decorre de uma perspectiva racional que, investigando as leis des-ta vida, sua espessura contraditria e suas opacidades, vislumbre uma superao. Em Svevo, o reconhecimento de objetividade necessria da vida, que possvel em momentos privilegiados, fugazes, a condio para sua aceitao. Como naquele dia de primavera assinalado no dirio com a data de 15 de maio de 1915, em que Zeno, na vspera do seu encontro inesperado com a guerra, escreve:

Fazia um tempo esquisito. Certamente no alto soprava um vento forte, pois as nuvens mudavam continuamen-te de forma, mas embaixo o ar no se movia. Ocorria, de tempos em tempos, atravs das nuvens em movimento, o sol j tpido encontrar uma fresta por onde assestava seus raios sobre este ou aquele trecho da colina, ou so-bre o cimo da montanha, fazendo ressaltar o doce verde de maio em meio sombra que cobria toda a paisagem. A temperatura era agradvel, e at aquela fuga das nuvens no cu tinha qualquer coisa de primaveril. No havia dvida: o tempo estava convalescendo!

Foi um verdadeiro recolhimento o meu, um dos raros instantes que a vida avara nos concede, de grande e verdadeira objetividade em que finalmente cessamos de nos crer e de nos sentir vtimas. Em meio quele verde, ressaltado to deliciosamente pelos reflexos do sol, eu soube sorrir vida e at minha doena.2129

20 Essa questo tratada por A. L. De Castris em Il Decadentismo Italiano: Pirandello, Svevo, DAnnunzio. Bari, De Donato, 1974.

21 I. Svevo, A conscincia de Zeno, cit., p. 386.

FOSCOLO, CRTICO DE MANZONI

revista insiemeapiesp, n. 6, 1995

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Foscolo, crtico de Manzoni

Os estudiosos da literatura italiana conhecem a im-portncia do debate crtico que se seguiu publicao do primeiro drama histrico de Manzoni, Il Conte di Carmag-nola, em 1820, e que revela a reao da velha escola clas-sicista diante da afirmao dos novos princpios estticos da assim chamada Nova Escola Dramtica, que tem nas Vorlesungen ber dramatische Kunst und Literatur, de A. W. Schlegel, sua primeira teorizao. Lendo to somente a famosa Lettre M. Chauvet sur lunit de temps et de lieu dans la tragdie de Manzoni, os artigos de Goethe reunidos sob o ttulo Theilnahme Goethes an Manzoni e a reconstituio vivssima desse debate na Storia della letteratura italiana nel secolo XIX Manzoni, de Francesco De Sanctis, torna-se claro que, independentemente do xito literrio do drama, com a condenao ou exaltao da obra, esto se definindo concepes divergentes quanto ao modo de entender o movimento histrico e os homens como protagonistas dele.

Assim, s para dar um exemplo, enquanto no drama manzoniano o conflito entre o Conde de Carmagnola, o aventuroso capito mercenrio a servio dos venezianos no sculo XV, e o Senado veneziano, que suspeitando traio o condena morte, configura-se numa progresso graduada de fatos que envolvem acontecimentos de vrios anos e implicaes psicolgicas das personagens, para o velho crtico francs Chauvet tal conflito careceria de verdadei-ro interesse trgico, uma vez que lhe falta uma oposio heroica imediata. Esta s seria possvel se houvesse uma oposio ntida entre o capito, apoiado pelo povo, pelo exrcito e pela famlia, de um lado, e o Senado e toda a oligarquia suspeitosa, de outro.

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No h dvida de que na reconstituio do drama por parte do crtico classicista est presente, sob a veste da defe-sa das unidades dramticas, o iderio de um velho jacobino, do qual, como disse De Sanctis, [...] nem o 1815 conseguiu mudar a cabea! (2, p. 24)1 Manzoni refuta as consideraes de Chauvet, apelando para o respeito verdade histrica, que se torna o princpio fundamental de sua potica.

O interesse de Manzoni pela histria italiana, que passa a constituir diretamente a matria de suas criaes literrias, tem como pano de fundo natural o decnio 1815-1825, isto , aquele importante e decisivo momento histrico que v muitas conscincias italianas passarem das persuases iluministas assuno das grandes idias democrticas europias (1, p. 16): com efeito, o grande neto de Beccaria, formado inicialmente na escola dos ide-logos parisienses, diante do desdobramento reacionrio dos eventos polticos na Itlia e mantendo contatos com os criadores da nova historiografia na Frana Guizot, Fauriel, Cousin e sobretudo Thierry , participa do grande movimento de idias que d origem viso moderna da histria, a qual contempla a histria do povo e de suas lutas, e no somente s aes das grandes personagens. a viso que, depois das experincias incertas dos dramas histricos ao Carmagnola segue o Adelchi, o prncipe longobardo vencido por Carlos Magno , dar seu grande fruto no romance, tambm histrico, I promessi sposi, no qual se realiza plenamente a revoluo formal inerente s novas instncias expressivas.

Ao querer, agora, propor a reconsiderao de um escrito de Ugo Foscolo, que, em polmica com a drama-turgia romntica, foi julgado unanimemente pelos crticos como expresso da incompreenso por parte do grande poeta classicista, j isolado no exlio londrino das novas necessidades ideolgicas que a situao italiana impunha a seus intelectuais e escritores, no visamos to somente

1 Traduzimos todas as citaes que no original no esto em portugus.

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reconstituio do debate por intermdio de um interlo-cutor genial, mas pensamos reconhecer nos crticos desse debate uma complexidade que extrapola a linearidade de uma concepo que v na afirmao do novo simplesmente um avano, um progresso.

O escrito Della Nuova Scuola Drammatica in Italia, publicado pela primeira vez em ingls, em 1825, no primeiro nmero da Foreign Quarterly Review, faz par-te daquela intensa atividade crtica qual o poeta se dedica quando, afastado por exlio voluntrio da Itlia, quer refletir sobre as questes, os fatos, os estudos que animaram sua vida.

No o caso, no mbito restrito deste artigo, de re-constituir a fisionomia dessa figura singular da histria da literatura italiana, que, vivendo como protagonista o perodo conturbado da invaso napolenica na Itlia, soube conjugar, como nenhum escritor de seu tempo, atividade potica com efetiva participao poltica e militar, gestos polticos clamorosos com a constante e sofrida busca de uma coerncia ntima entre os ideais defendidos e sua obra; aos fins a que nos propomos, suficiente lembrar que o autor da famosa obra I sepolcri, mesmo glorificando a po-esia como expresso vvida das paixes humanas contra a degenerao retrica do classicismo passadista, manteve-se substancialmente ligado a uma viso aristocrtica, seja no campo esttico, concebendo a poesia como busca de uma beleza ideal irrevogavelmente perdida, seja no campo pol-tico, remetendo o destino da ptria ao ntegra e heroica das grandes almas. No escrito em questo, essa concepo aristocrtica ressalta-se com toda a clareza: em oposio ao cnone da nova dramaturgia, que eleva a verdade his-trica a fundamento da poesia, Foscolo reivindica o valor da iluso, que s a imaginao pode criar:

O segredo em qualquer trabalho da imaginao consis-te todo em incorporar e identificar realidade e fico, de forma que uma no predomine sobre a outra, e que no possam nunca ser divididas, nem analisadas,

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nem facilmente distintas uma da outra. [] A nossa f no poeta, cativada pela experincia que temos da existncia real daqueles objetos, e a nossa maravilha, excitada por sua novidade, se unem num nico senti-mento a constituir a iluso (FOSCOLO, 1850, p. 297).

Mas nessa unio de realidade e fico o peso de valor vai todo para o prato da imaginao:

O historiador nos guia por meio da experincia dos fatos, e dos raciocnios a respeito deles; o poeta por meio da imaginao e dos sentimentos fortssimos que esta faculdade, quase todo-poderosa no homem, tem o poder de excitar quando sabiamente manejada. A poesia visa a nos fazer sentir fortemente e plenamente a nossa existncia, e a alivi-la dos aborrecimentos que a acompanham; a histria, pelo contrrio, visa a dirigir a nossa vida de forma que saibamos valer-nos do mundo tal como ele (FOSCOLO, 1850, p. 298).

Vejamos a esse mesmo respeito, da relao entre his-tria e poesia, as opinies de Manzoni que patenteiam a diversa orientao esttica do escritor e dos novos tempos:

Mas, algum poderia objetar, se se tira ao poeta o que o distingue do historiador, o direito de inventar os fatos, o que lhe resta? O que lhe resta? A poesia; sim, a poesia. Por que o que nos d a histria, afinal? Uns eventos que, por assim dizer, conhecemos de fora; o que os homens tm feito; mas o que eles pensaram, os sentimentos que acompanharam suas deliberaes e seus projetos, seus sucessos e suas desventuras; os discursos pelos quais eles fizeram ou procuraram fazer prevalecer suas paixes e seus desejos sobre as paixes e os desejos de outros, pelos quais expres-saram sua clera, derramaram suas tristezas, pelos quais, numa palavra, revelaram sua individualidade: sobre isso tudo, ou quase, a histria guardou silncio; e tudo isso domnio da poesia. Ah! Como no devemos temer que lhe falte ocasio de criar, no sentido mais srio e talvez o nico srio desta palavra! Todo segredo

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da alma humana se desvenda, tudo o que produz os grandes eventos, tudo o que caracteriza os grandes destinos, se revela s imaginaes dotadas de uma fora suficiente de simpatia. Tudo o que a vontade humana tem de forte ou de misterioso, de sofrido, de religioso e de profundo, o poeta pode adivinh-lo; ou, melhor dizendo, perceb-lo, discerni-lo e express-lo. (MANZONI, Lettre M.C, 1973, p. 884-885).

No difcil perceber que, sob a aparente igualdade na defesa dos direitos criadores da imaginao, existe, nas duas argumentaes, uma profunda diferena de pers-pectiva: enquanto para o poeta das paixes, a poesia deve transfigurar o real, em si prosaico, para o poeta defensor da verdade na arte, a poesia recria o que a histria neces-sariamente contm. Relegada subjetividade ideal, que chega a ser a prpria e exaltada essncia humana, a poesia desce ao campo concreto da histria, no qual subjetividade e objetividade se reintegram.

Coerentemente sua concepo potica, que exalta as paixes humanas, Foscolo no pode renunciar heroi-cidade como qualidade do sujeito trgico:

Que as paixes das personagens devam ser gene-rosas, e suas motivaes ter grandeza, regra ver-dadeira, porque prescrita pela natureza do corao humano, sempre pronto a ter piedade das desventuras e das culpas que advm de paixes elevadas, e que tm portanto justificao; e a desprez-las quando nascem de sentimentos abjetos, de interesses venais e plebeus. (FOSCOLO, 1850, p. 310).

Assim, com base nesses pressupostos, o poeta, que se formou nos ideais libertrios dos heris alfierianos, no pode aceitar a crtica da escola romntica permanncia dos temas clssicos nas criaes modernas e nega o carter de tragicidade s novas produes dramticas:

Um heri na cena que, para enriquecer, manipula um testamento, ou uma herona que se apaixona pelo

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palafreneiro de seu marido, e depois sentem remorso, e acabam sofrendo as penas, ainda que falem nobre, pattica e filosoficamente, produzem excelentes dra-mas sentimentais, mas tornam ridcula qualquer tra-gdia. Timoleo sacrifica um irmo pela ptria, Bruto, seus filhos; Orestes, a me, para vingar o homicdio de seu pai; e Antgona, para poder sepultar o cadver de seu irmo e para no casar com o filho, que amava ardentemente, do perseguidor feroz de sua famlia, sacrifica sua paixo mais querida e se resigna a uma morte cruel. (FOSCOLO, 1850, p. 310).

No h como duvidar de que o tom polmico na descri-o dos dramas romnticos alm do mais Foscolo chega a criticar Goethe, que defendeu em dois artigos o drama man-zoniano (GOETHE, 1962, p. 1028-1047), pela pretenso de se julgar rbitro das questes pueris a que se reduziram as brigas das escolas literrias deva-se a um substancial alheamento de nosso poeta ao processo de democratizao em ato, que transformava tambm os modos e as funes da literatura.

ainda talvez por causa disso que, alm de no levar a srio as polmicas entre classicistas e romnticos, Foscolo chegue a considerar as argumentaes de W. A. Schlegel quanto necessidade de que o drama histrico se inspire na histria ptria como uma nova tentativa de estabelecer regras exteriores individualidade da produo artstica.

Foscolo, em polmica com o professor to prezado pe-los romnticos, objeta que exatamente esse tipo de preceito impediria os poetas de encontrar assuntos convenientes a seus dramas, como no caso de Manzoni, que recorreu a um heri to mesquinho como o mercenrio Carmagnola. E no deixa de lembrar que Shakespeare, citado como exemplo pela nova escola, sempre se serviu da histria com extrema liberdade, configurando indiferentemente os reis da Ingla-terra quanto um Jlio Csar ou um Coriolano ou um Otelo e conseguindo maior efeito exatamente naquelas obras onde ele no se ligava histria seno o suficiente para as suas intenes (FOSCOLO, 1850, p. 319). Chega a lembrar, no

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caso de Otelo, que nunca, nem pela conquista do Universo, os venezianos teriam confiado suas frotas no Mediterrneo a algum que no fosse um dos seus patrcios; e Shakes-peare, inventando um capito mouro, e negro, respondia necessidade de ter um heri meio brbaro, porque as virtudes neste estado da sociedade so realmente genu-nas, arrojadas e generosssimas, e as paixes profundas, impacientssimas e veementes. (FOSCOLO, 1850, p. 320).

A crtica de Foscolo a Schlegel peca sem dvida alguma, pela unilateralidade com que se apropria do discurso do crtico alemo, e talvez no seja suprfluo, por isso, lembrar o contexto no qual se insere o apelo schlegeliano valori-zao da histria nacional. De certa forma, a sugesto de Schlegel tambm respondia necessidade de combater a onda do teatro nacional alemo que privilegiava o quadro de famlia ou o drama sentimental, ridicularizados por Foscolo. Lemos nas Vorlesungen do autor alemo:

O quadro de famlia quer representar a vida de todos os dias dos homens comuns. [...] Os espectadores com-preendem at demais tais descries, porque cada um sabe onde est a espinha de sua vida. Pode ser-nos muito saudvel fazer no teatro, uma vez por semana, o balano das entradas e sadas das dores e dos prazeres; mas certamente no havemos de esperar nem recreao nem renovao de idias, quando en-contramos na cena o que deixamos nas nossas casas.

O poeta sentimental, por outro lado, alivia maravilho-samente nosso corao. A lio geral que nos d esta, que a sensibilidade faz perdoar todas as culpas e transvios, e que no convm julgar a virtude com base em princpios rgidos. (SCHLEGEL, 1977, p. 489-490).

S ento, depois de ter contemplado essas formas pre-ponderantes do repertrio teatral alemo e outras tambm em voga, que incluam anacrnicos dramas cavaleirescos e conflitos abstratamente filosficos, e com o objetivo de reivindicar a peculiaridade de um verdadeiro teatro romn-tico, que Schlegel irrompe no apelo em questo:

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O ttulo de dramas romnticos foi to profanado, to desperdiado sob tantos anncios falsos em produ-es informes e vulgares, que me deve ser concedido restituir-lhe seu significado primitivo, voltando teoria e histria. Ultimamente tem-se procurado fazer revi-ver de mil formas a nossa antiga poesia nacional e as nossas velhas tradies; e, realmente, aqui os poetas poderiam encontrar germes de novas invenes para as maravilhas deslumbrantes de dramas espetacu-lares; mas os temas nobres da tragdia romntica querem ser derivados diretamente da prpria histria.

A histria, de fato, o terreno verdadeiramente frtil, aquele onde os dignos mulos de Goethe e Schiller ainda colheriam as palmas da glria; mas necessrio que a nossa tragdia histrica seja nacional, e nacional para a Alemanha toda, e que no se prenda vida privada daqueles cavalheiros ou daqueles pequenos prncipes que exerceram sua influncia num espao estreitssimo. (...) E que quadros magnficos no oferece a histria alem! (SCHLEGEL, 1977, p. 492-93).

A injustiade Foscolo para com Schlegel, que resul-taria de ter isolado de seu contexto os supostos preceitos, evidentemente, mais que um ato voluntrio de distoro do discurso alheio, deve ser entendida como oposio mais profunda ao desdobramento nacionalista e democrtico que as argumentaes do terico alemo continham. Nada mais alheio ao defensor da beleza ideal na poesia e da ao virtuosa de almas fortes como condio do resgate nacional do que as seguintes argumentaes schlegelianas:

A tragdia dos gregos, bem imitada, mais anloga ao nosso modo de sentir; mas a multido no compreende seu sentido; e tais deleites nas belas artes, que podem ser comparados aos que se experimentam ao admirar as esttuas gregas, s podem destinar-se a pouqussimos inteligentes. (SCHLEGEL, 1977, p. 492)2.

2 Os grifos so nossos.

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Na viso poltica de Foscolo, que lutou pela unifica-o nacional da ltlia e que nessa luta sempre sustentou a necessidade de voltar histria para entender as causas da decadncia ou da grandeza, o conceito de nao no se identificava com aquele de povo, que era plebe para ele, como vai ocorrer na ideologia romntica, em consequ-ncia da sucessiva participao popular nas lutas contra o velho regime.

E fundamentalmente nessa identificao que Fos-colo entrev a invaso de um subjetivismo sentimental que substituiria a correta considerao dos fatos por sua falsificao adocicada. A crtica foscoliana, que sem dvida alguma nasce de posies ideolgicas retrgradas, ligadas, como dissemos, sua viso de mundo aristocrtica, a nosso ver no deixa de revelar aquelas vertentes idealizantes da concepo histrica romntica, que continuaro agindo nas concepes sucessivas, sob as vrias formas teleolgicas que assumiram.

No escrito em questo, Foscolo procura demonstrar como Carmagnola apresenta vrias infidelidades histricas; e isso para ele se torna grave, no certamente pela infi-delidade ao princpio ostentado na introduo obra, de respeito verdade histrica princpio que ele, defensor da iluso na arte, no poderia levar em grande considerao , mas pelo fato de que tais infidelidades servem a um erro de perspectiva histrica: fatos e situaes seriam distorcidos em funo dos prprios fins dramticos de exaltao de um heri que, at na conscincia de Manzoni, no podia ser considerado como tal:

Mas, mesmo em conformidade com as teorias da nova escola trgico-italiana, o Carmagnola, seja pela sua profisso de capito mercenrio como pela sua posi-o e pelas suas faculdades intelectuais, bem distante de ser heri; e o senhor Manzoni no tinha iluses a respeito disso. Porm caiu na iluso de acreditar que o carter de per si mesquinho do Car-magnola se engrandeceria atravs da operao de tirar todas as qualidades de nobreza aos patrcios

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venezianos, conseguindo que estes perecessem de uma perfdia atroz, e inquos por sistema e cruis por covardia. (FOSCOLO, 1850, p. 320).

Valendo-se da Histoire de la rpublique de Venise (1819) do antigo ministro de Napoleo, Pierre Daru his-toriador liberal que B. Rezov, em seu estudo sobre a histo-riografia romntica francesa, classifica como representante da escola clssica, por considerar ainda a constituio poltica do Estado, a organizao dos poderes e repartio das funes, etc., como o nico meio de garantir o bem-estar social (RIZOV,s.d., p. 32) , Foscolo tenta demonstrar que tudo aquilo que na tragdia manzoniana parece perfdia injustificada dos venezianos no outra coisa seno a forma necessria de poder daquela repblica e que aquilo que exaltado como magnanimidade do capito na realidade um embelezamento inoportuno do autor.

Dos vrios exemplos de que se serve Foscolo em sua argumentao, lembramos o episdio da liberao dos prisioneiros de guerra. Esse costume, que nascia exatamente do interesse das milcias mercenrias em perpetuar a guerra e que, portanto, devia ser censurado por perpetuar uma das causas da corroso poltica da Itlia, na tragdia manzoniana, observa Foscolo, no se apresenta como uma prtica repreensvel, mas se transforma no ato de misericrdia que enobrece Carmagnola. Este, com efeito, diante da queixa dos comissrios venezianos, ao ver a maior parte dos prisioneiros soltos pelos prprios soldados, ordena que sejam liberados os 400 restantes para cumprir totalmente a lei. Nosso crtico comenta que, se Manzoni, ao relatar o costume, agiu como historiador, no discurso que faz pronunciar ao capito se deixa levar por um sentimentalismo inoportuno. E refere-se seguinte resposta de Carmagnola aos comissrios:

este um usode guerra, vocs sabem. To doce perdoar quando se vence! e a ira

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logo muda em amizade nos coraesque palpitam sob o ferro. Ah! No quereisnegar prmio to nobre quelesque por vocs arriscaram a vida, e hojeso generosos, porque ontem foram valorosos.(MANZONI, Il conte di Carmagnola, 1973, p. 813).

Tudo o que no drama de Manzoni serviria para confi-gurar traos ideais no personagem considerado no sim-plesmente como infidelidade histrica, mas principalmente como falsidade moral:

Tal o uso da histria feito pelo poeta afim de enaltecer o carter de seu heri, no acrescentando traos ideais, mas atenuando suas feies vulgares e odiosas, e tirando aquele tanto de grandeza real e de dignidade que a histria atribui aos venezianos daquela poca. Por isso a verdade e a fico, no lugar de fundir-se uma na outra, prejudicam-se reciprocamente, e ao mesmo tempo no se encontra elemento algum daquele ideal que d luz, fogo e vida e aparncias concretas iluso. (FOSCOLO, 1850, p. 328).

Se evidente, para ns, que Foscolo no podia re-conhecer seus ideais heroicos nos traos com os quais Manzoni configura sua personagem, exaltada mais por sua capacidade de perdoar que por seu valor militar, esta divergncia, contudo, manifesta-se como discusso a res-peito da veracidade histrica. So vrios os pontos de dis-cordncia por meio dos quais Foscolo procura demonstrar a distoro histrica dos fatos presentes no drama, e mais particularmente a distoro da imagem do Senado, que seria reconstituda com base em parmetros anacrnicos, como, por exemplo, quando se faz do Conselho dos Dez uma espcie de Tribunal da Inquisio.

No h dvida de que na admirao de Foscolo pelo Senado veneziano age o respeito razo de Estado, que informa as teorias polticas de cunho aristocrtico e que passa a ser o alvo das lutas na poca da Restaurao; mas

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no h como no convir que as crticas de Foscolo sobre a distoro de perspectiva histrica em decorrncia da sobreposio de interesses estranhos poca examinada sejam pertinentes.

Isso ainda mais evidente quando, de acordo com os anseios unitrios de sua poca, Manzoni forja a interpreta-o da aliana entre Veneza e Florena contra Milo como uma aliana dos Estados livres contra a tirania. O prprio Foscolo cita o discurso que o doge manzoniano profere no momento da deciso da aliana:

[...] Estendamos a moao irmo que implora; um n sagradoune os Estados livres: tm em comumentre si riscos e esperana; e tremem todosdos fundamentos diante da runa de um s.(MANZONI, Il conte di Carmagnola, 1973, p. 786).

fcil para nosso crtico ter vantagem sobre a inter-pretao manzoniana, demonstrando como, nessa poca de diviso poltica, em que prevaleciam aquelas animosidades provinciais que Maquiavel descreveu em seu Prncipe, as alianas respondiam to somente a clculos estratgicos, e os venezianos em particular, em sua poltica externa, tinham fama de serem, como j dizia Boccaccio, os mais desleais entre os mortais.

Sem entrar em outros detalhes que excitavam a po-lmica argcia de Foscolo e pensando ter reconstitudo os motivos principais de sua crtica, voltemos nossa reflexo.

A hesitao esttica de Carmagnola foi reconhecida posteriormente pelo prprio Manzoni sempre muito ri-goroso consigo mesmo , o qual apontou, na mistura de personagens reais e de fico, a causa do insucesso da obra. E, mais que suas razes crticas, foi sua obra sucessiva que realizou o mais vlido desmentido de sua produo dramtica, superando, nas possibilidades expressivas de um novo gnero literrio, as dificuldades, advindas da as-suno de uma forma comprometida com a arte do passado.

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E s observar o que o escritor, no tempo de sua defesa ao teatro romntico, pretendia do novo teatro para entender que, na realidade, estava reinvidicando no uma liberdade das antigas unidades de tempo e espao, mas o direito a uma nova representao artstica:

da histria que o poeta trgico pode fazer surgir, sem violncia, sentimentos humanos; so estes os mais nobres, e como precisamos deles! mostrando as paixes que tm tormentado os homens, que ele nos pode fazer sentir esse fundo comum de misria e fraqueza que predispe indulgncia, no de lassido ou de desprezo, mas de razo e de amor. E fazendo-nos assistir a acontecimentos que no nos interessam como agentes, de que somos apenas testemunhas, ele nos ajuda a adquirir o hbito de fixar o nosso pensamento sobre essas idias calmas e grandes que aparecem e se esvaem pelo choque das realidades corriqueiras da vida, e que, cultivadas com mais cuidado e mais pre-sentes, sem dvida garantem melhor nossa sabedoria e nossa dignidade. Que ele pretenda, e deve faz-lo se lhe for possvel, comover fortemente as almas; mas que isso se d vivificando, desenvolvendo o ideal de justia e de bondade que cada um tem dentro de si, e no lanando-as na estreiteza de um ideal de paixes fictcias; que isso se d potenciando nossa razo e no ofuscando-a. (MANZONI, Lettre M.C, 1973, p. 908).

Ressoam nesse apelo de Manzoni razo as mesmas mo-tivaes que A. Thierry, em suas Lettres sur lhistoire de France, de 1827, vai expor para renovar a historiografia, a qual, livre da admirao exclusiva pelos que se costumavam chamar de heris, deveria demonstrar:

[...] uma maneira mais ampla de sentir e de julgar; o amor aos homens enquanto tais, abstrao feita de sua fama e de sua situao social; uma sensibilidade muito viva para se apegar ao destino de uma nao inteira e para segui-la atravs dos sculos, como se seguem os passos de um amigo durante um percurso perigoso. (RIZOV, s/d, p. 131).

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Historiografia que, com base nesses pressupostos, criar um mtodo narrativo novo, anlogo revoluo for-mal que Manzoni realiza na passagem do drama histrico ao romance, no se limitando a substituir o heri tradicional por um heri do terceiro estado, mas suprimindo todo o heri individual em prol do heri coletivo, mltiplo, que no pode morrer, como diz Thierry.

Quo fecunda tenha sido essa mudana de perspec-tiva, que levou a se considerar a histria no mais como um acmulo de belas histrias exemplares levadas a cabo pela ao de grandes personagens, mas como o caminho difcil da prpria humanidade num processo de progressi-va humanizao, a produo das novas e grandes teorias histricas sucessivas o demonstrou suficientemente. Mas, luz do xito dessas mesmas teorias, del senno di poi (da sabedoria que vem depois), como j dizia Manzoni, no podemos deixar de considerar que exatamente na assuno dessa nova personagem coletiva se insinuava aquele perigo de uma nova idealizao, que Foscolo, nos limites de uma crtica literria, instintivamente percebia como distoro dos fatos em funo de uma nova orientao ideolgica.

Em outras palavras, se essa mudana de perspectiva da concepo de histria respondia, sem dvida alguma, exigncia de alargar as bases da transformao social e de enraizar a necessidade dessa transformao no amplo movi-mento histrico, ela no estava isenta do perigo, j analisado de modo to agudo por Tocqueville no vigsimo captulo de sua Democracia na Amrica, de teologizar a histria.

De toda a argumentao desse grande pensador, que mereceria uma ateno particular pela fecundidade de seu mtodo, capaz no s de individuar as diferenas entre as tendncias dos historiadores das pocas democrticas e aristocrticas, como de explic-las pela diversa forma social, sem hierarquiz-las numa abstrata progresso de valor, lembramos o seguinte trecho:

Os historiadores que vivem nos tempos democrticos no recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidados

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o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos prprios povos a faculdade de modificar a sua prpria sorte e os submetem ora a uma providncia inflexvel ora a uma espcie de cega fatalidade. Segundo eles, cada nao invencivelmente ligada, pela sua posio, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem todos os esforos poderiam modificar. Tornam as geraes solidrias umas s outras e, remon-tando assim, de poca em poca e de acontecimentos necessrios em acontecimentos necessrios, origem do mundo, compem uma cadeia cerrada e imensa, que envolve todo o gnero humano e o prende. No lhes basta mostrar como se deram os fatos; comprazem-se ainda em mostrar que no podiam dar-se de outra forma. Consideram uma nao que chegou a certo ponto da sua histria e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu at ali. Isto muito mais fcil que mostrar como teria podido fazer para seguir um melhor caminho. (TOCQUEVILLE, 1977, p. 377).

No difcil advertir a presena da tendncia descrita por Tocqueville nessas argumentaes de Manzoni ainda na poca de sua defesa do drama histrico, quando, transferin-do a unidade dramtica da exterioridade das unidades de tempo e