e-book-foucault o governo dos vivos

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  • 8/2/2019 E-book-Foucault O Governo Dos Vivos

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    Michel Foucault

    Do governo dos vivosCurso no Collge de France, 1979-1980(aulas de 09 e 30 de janeiro de 1980)

    Traduo, transcrio e notas de Nildo Avelino

    e-Book

    2009

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    Copyleft 2009 by Centro de Cultura Social.Reproduo autorizada para fins no comerciais.

    Ttulo original:

    Du gouvernement des vivants. Cours au Collge de France, 1979-1980.

    Traduo, transcrio e notas:

    Nildo Avelino

    Reviso:

    Edson Lopes

    Diagramao:

    Francisco Rip, Nildo Avelino, Nilton Csar

    CENTRO DE CULTURA SOCIALRua General Jardim n. 253 sala 22 Vila BuarqueSo Paulo/SP CEP 01223-011E-mail: [email protected]://www.ccssp.org

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Foucault, Michel, 1926-1984.Do governo dos vivos: Curso no Collge de France, 1979-1980: aulas de09 e 30 de janeiro de 1980 / Michel Foucault; traduo, transcrio enotas Nildo Avelino. So Paulo: Centro de Cultura Social, 2009.

    Ttulo original: Du gouvernement des vivants. Cours au Collge deFrance, 1979-1980.

    ISBN: 978-85-60945-64-1 (e-Book)1. Formas de Veridio. 2. Subjetividade. 3. Governo. 4. Poder. 5.Obedincia.

    03-2557. CDD 194

    ndices para catlogo sistemtico:1. Filosofia Francesa: Michel Foucault 194 2. Filsofos Franceses 44

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    Advertncia:

    A presente transcrio e traduo foi realizada a partir dos arquivos sonoros

    depositados na Bibliothque gnrale du Collge de France (52, rue du Cardinal-

    Lemoine, 75005 Paris, Frana), entre 17 de abril e 06 de junho de 2007. Agradeo a

    Sr. Marie-Rene Cazabon e sua equipe pelo acesso aos arquivos e pela amvel

    cordialidade. Este trabalho, realizado sem recurso ao manuscrito, est sujeito a um

    maior nmero de incorrees interpretativas. Falta-lhe uma certa medida de rigor e

    exatido, j que esto ausentes os procedimentos de autenticao prprios das

    publicaes realizadas dos cursos de Michel Foucault. Porm, o que se busca um

    efeito e uma utilizao particulares.

    Uma primeira verso desta traduo foi publicada em 2007 (FOUCAULT, M.

    Do governo dos vivos. Verve, So Paulo, n 12, outubro, p. 270-298). Aquilo que ora

    apresentamos somente uma verso revista e acrescida de novas referncias.

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    I.

    Aula de 9 de janeiro de 1980.

    A propsito do Imperador Romano chamado Stimo Severo que reinou,

    como sabido, em torno dos sculos II e III, creio que entre 193 e 211 [d.C.],

    mas pouco importa. A propsito desse Imperador Romano, o historiador Dion

    Cssio1 conta a seguinte histria: Stimo Severo ordenou a construo de um

    palcio com uma grande sala onde se davam as audincias, as sentenas e onde

    se distribua a justia. E na cpula [plafond] da sala de seu palcio, Stimo

    Severo mandou pintar uma representao do cu estrelado. No importa qual

    cu, no importa qual estrela, no importa qual posio dos astros que ele

    ordenou representar: ele mandou representar exatamente seu cu de

    nascimento, a conjuno das estrelas que tinham presidido esse nascimento e,

    por consequncia, tambm o seu destino. Com isso, Stimo Severo tinha,

    evidentemente, um certo nmero de intenes muito claras, explcitas e que

    so bem fceis de restituir. Tratava-se, seguramente, de inscrever as sentenas

    particulares e conjunturais que ele rendia; tratava-se de inscrev-las no

    interior do sistema mesmo do mundo e de mostrar como o logos que presidia

    essa ordem do mundo e que tinha presidido o seu nascimento, esse mesmo

    logos era o que organizava, fundava e justificava as sentenas ali pronunciadas.

    Aquilo que ele dizia numa circunstncia particular do mundo, o que ele dizia

    num [quadro] particular, como diriam os historiadores, bem, isto era

    1 Dion Cssio (155-235 d.C.) homem poltico e historiador, nomeado duas vezes cnsul, escreveu em 80 livrosumaHistria Romana.

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    precisamente a ordem mesma das coisas tal como elas tinham sido fixadas l

    de cima definitivamente. Tratava-se igualmente de mostrar como seu reino

    tinha sido fundado nos astros e ele, o soldado de Leptis Magna que se apossou

    do poder pela fora e violncia, bem, no tinha sido por erro, no era por

    acaso, no era por um compl qualquer dos homens que ele se apossou do

    poder, mas que a necessidade mesma do mundo o havia chamado para o lugar

    onde ele estava. E aquilo que o direito no pde fundar seu reino, o ato da

    sua tomada do poder os astros lhe tinham, de uma vez por todas,

    justificado.

    Terceira coisa, tratava-se de mostrar, com antecedncia, qual tinha sido

    a fortuna do imperador e o quanto ela era fatal, inevitvel, inacessvel; mostrar

    at que ponto era impossvel para algum, qualquer conspirador, qualquer

    rival, qualquer inimigo, se apossar de seu trono, uma vez que os astros

    mostravam que a ele estava destinado e que ningum podia, finalmente, dele

    valer-se. Sua fortuna foi boa, sua fortuna foi segura, o passado indicou e as

    coisas foram definitivamente seladas. Portanto, os atos incertos e particulares,

    um passado que tinha sido feito de acaso e de sorte, um futuro que ningum,

    seguramente, podia conhecer, mas que algum poderia servir-se para ameaar

    o imperador, tudo isso foi convertido em necessidade que deveria ser lida

    como verdade na cpula da sala onde ele pronunciava suas sentenas. Aquilo

    que se manifestou aqui na terra como poder, poderia e deveria ser decifrado

    como verdade na noite dos sculos2.

    2

    Cf. Denise Grodzynski. Par la bouche de lempereur. Rome IVe

    sicle in Jean-Pierre Vernant (org.).Divination et Rationalit. Paris, Seuil, 1974, pp. 283-284: Stimo Severo, nos ensina Dion Cssio, conhecia odestino que o esperava graas s estrelas sob as quais ele tinha nascido; ele as fez pintar sobre as cpulas dos

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    Entretanto, Severo era um homem prudente, porque se ele fez

    representar seu cu astral na cpula dessa sala onde ele pronunciava as

    sentenas, existia tambm um pequeno pedao desse cu que ele no mandou

    representar, que ele ocultava com cuidado e que estava representado num

    outro cmodo, no prprio quarto do imperador onde ele, e apenas alguns de

    seus familiares, tinha acesso. E esse pequeno pedao de cu astral, que

    ningum tinha o direito de ver e que apenas o imperador conhecia, era o que se

    chama em sentido estrito o horscopo que permite ver as horas e que , bem

    entendido, o cu da morte. O cu da morte, aquilo que fixava o fim do destino

    do imperador e o fim da sua fortuna, seguramente, ningum tinha acesso.

    O cu estrelado de Stimo Severo acima da sua justia evidentemente a

    inverso da historia de dipo, porque, depois de tudo, dipo aquele que

    tinha seu destino inscrito no num cu estrelado representado em uma cpula

    sob sua cabea, mas ele o tinha fixado aos seus ps, preso a seus passos, preso

    a esse solo e a esse caminho que ia de Tebas a Corinto, e de Corinto a Tebas.

    Era nos seus ps, era sob os seus ps que ele tinha seu destino, um destino que

    seguramente ningum conhecia, nem ele, nem nenhum de seus sditos; um

    destino que o conduziu ao seu declnio. No esqueamos que no incio da pea

    de Sfocles v-se dipo, chamado pela populao sob a qual recaa a peste,

    pronunciar, ele tambm, uma sentena; ele igualmente diz o que preciso

    fazer, pronunciando: aquele que o responsvel pela peste na vila de Tebas

    cmodos do palcio onde ele rendia a justia, de maneira que fossem visveis a todos, exceto uma parte do cuquecomo se diz observa a hora [quer dizer, o horscopo]; porque essa parte ele no a fez pintar do mesmomodo nos dois cmodos. Inscrever-se sob o curso dos astros uma soluo que comporta vantagens e riscos.Com isso, o imperador ganha a cauo dos deuses e uma garantia contra a usurpao, porque se torna difcil

    destronar aquele cujo destino corre paralelamente com a ordem do mundo; mas, porque o determinismo astralno um monoplio imperial, cada um pode se crer destinado ao Imprio caso a predicao de um adivinho oanunciasse. (...) para remediar esse perigo de usurpao, a pena de morte foi estimulada contra os astrlogos.

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    deve ser caado. Ele tambm, portanto, pronunciou uma sentena inscrita

    igualmente na fatalidade de um destino, na fatalidade de um destino que

    retomar e dar sentido a essa sentena de dipo, e que precisamente a

    armadilha na qual ele ir cair. E ento, quando Stimo Severo rendia sua

    justia e pronunciava suas sentenas de maneira a inscrev-las numa ordem do

    mundo absolutamente visvel fundada em direito, fundada em necessidade,

    fundada em verdade; o infeliz dipo pronunciou uma sentena fatal que se

    inscrevia num destino inteiramente envolvido de ignorncia e que constitua,

    por conseqncia, sua prpria armadilha.

    Pode-se encontrar uma outra sofisticada analogia no fato de que se

    faltava um fragmento do cu na cpula da sala de audincia de Stimo Severo,

    existia um fragmento do mistrio de dipo e de seu destino que, entretanto,

    no era desconhecido: havia um pastor que tinha visto o que se passou no

    momento do nascimento de dipo e viu como fora morto Laios. esse pastor

    de campos longnquos quem ser procurado e quem dar seu testemunho; e

    ele quem dir: dipo o culpado. Nos distantes campos de Tebas existia,

    portanto, um pequeno pedao conhecido e visvel do destino de dipo, pelo

    menos por uma pessoa; existia o equivalente do quarto do imperador: a cabana

    do pastor. Nessa cabana de pastor o destino de dipo veio se cumprir ou, em

    todo caso, se manifestar. O imperador ocultava o cu de sua morte, o pastor

    conhecia o segredo do nascimento de dipo. Vocs vem, portanto, que o anti-

    dipo seguramente existe: Dion Cssio j o tinha encontrado.

    Vocs me diro que tudo isso um jogo um pouco cultural e sofisticado e

    que, em todo caso, se Stimo Severo mandou representar acima de sua cabea

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    o cu estrelado que presidia sua justia, seu destino, sua fortuna; se ele quis

    que os homens lessem como verdade aquilo que ele fazia como poltica, aquilo

    que ele fazia em termos de poder, tudo isso no passava de um jogo de um

    imperador tomado pela vertigem de sua prpria fortuna; depois de tudo, era

    certamente normal que esse soldado africano que ascendeu ao Imprio

    procurasse fundar em um cu de necessidades mgico-religiosas uma

    soberania que o direito, ele tambm mgico e religioso de certo modo, era

    incapaz de reconhecer. Ou ainda, nesse homem fascinado pelo culto oriental,

    era totalmente normal que ele deixasse, de sua parte, substituir pela ordem

    mgica dos astros a ordem racional do mundo, essas ordens racionais do

    mundo que seu penltimo predecessor, Marco Aurlio, colocou em

    funcionamento num governo estico do Imprio. Era ainda como nas cortes

    mgicas, orientais, religiosas isso que, afinal, os grandes imperadores esticos

    do segundo sculo quiseram fazer, ou seja, no governar o Imprio a no ser

    no interior de uma ordem manifesta do mundo e fazer de modo que o governo

    do Imprio fosse a manifestao em termos de verdade da ordem do mundo.

    Com efeito, se verdade que a conjuntura, por sua vez poltica e

    individual, de Stimo Severo, tambm o clima no qual estava refletido a noo

    de governo imperial no curso do segundo sculo, enfim, se tudo isso pode

    justificar o cuidado com que Stimo Severo havia inscrito o exerccio do seu

    poder nessa manifestao de verdade e de justificar tambm essa ordem do

    poder em termos mesmo de ordem do mundo. Se, portanto, todo esse clima,

    contexto e conjuntura particular pode justificar, eu creio que, no obstante,

    seria muito difcil encontrar um exemplo de poder que no se exera sem se

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    acompanhar, de um modo ou de outro, de uma manifestao de verdade.

    Ento, vocs me diro que, de um lado, isso bem sabido e que no seria

    preciso dizer, retomar, repetir e que comea a ser um pouco montono: com

    efeito, como poder-se-ia governar os homens sem saber, sem conhecer, sem se

    informar, sem ter um conhecimento da ordem das coisas e da conduta dos

    indivduos? Numa palavra, como poder-se-ia governar sem conhecer isso que

    se governa, sem conhecer esses a quem se governa e sem conhecer o meio de

    governar esses homens e essas coisas? Porm, e por isso que eu me detive um

    pouco nesse exemplo de Stimo Severo, eu creio que no simplesmente a

    necessidade, eu iria dizer econmica, de conhecer esses a quem se governa e

    como se governa; no apenas essa necessidade utilitria que permite tomar a

    dimenso desse fenmeno que tentei indicar, a saber, a relao entre o

    exerccio do poder e a manifestao da verdade. Parece-me que esse

    verdadeiro, do qual a manifestao acompanha o exerccio do poder,

    ultrapassa largamente os conhecimentos que so teis para o governo; afinal,

    todas essas estrelas que Stimo Severo mandou representar acima da sua

    cabea e da cabea daqueles que ele rendia a justia, qual era a necessidade

    imediata, racional, que elas poderiam ter? No esqueamos que o reinado de

    Stimo Severo foi tambm o reino e a poca de um certo nmero de grandes e

    valorosos juristas, como Ulpiano3, e que o conhecimento jurdico e a reflexo

    jurdica estavam longe de serem ausentes da poltica mesma de Stimo Severo.

    Mas, para alm mesmo do conhecimento e do saber de juristas como Ulpiano,

    3

    Domcio Ulpiano (142-212), homem poltico e jurista romano do incio do sculo III, foi assessor de EmlioPapiniano sob o imprio de Stimo Severo e Caracalla. Considerado o maior jurisconsulto da cultura romana,escreveu Quaestionum libri XXXVIIeResponsorum libri XIX.

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    ele tinha necessidade dessa manifestao suplementar, excessiva, eu iria dizer,

    no econmica, de verdade. Em seguida, segundo ponto, o que me parece

    necessrio sublinhar a prpria maneira pela qual esse verdadeiro um pouco

    luxuoso, um pouco suplementar, um pouco excessivo; a maneira pela qual ele

    se manifesta no totalmente da ordem do conhecimento, de um

    conhecimento formado, acumulado, centralizado, utilizado. Nesse exemplo do

    cu estrelado v-se uma espcie de manifestao pura do verdadeiro,

    manifestao pura da ordem do mundo em sua verdade, manifestao pura do

    destino do imperador e da necessidade que lhe preside, manifestao pura da

    verdade sobre a qual, em ltima instncia, se fundam as sentenas do Prncipe.

    Manifestao pura, manifestao fascinante que estava essencialmente

    destinada no para demonstrar, para provar qualquer coisa ou para refutar o

    falso, mas para mostrar simplesmente a verdade. Em outras palavras, no se

    tratava para ele de estabelecer por um certo nmero de procedimentos a

    verdade de tal ou tal texto, digamos, a legitimidade de seu poder, ou a justia

    de tal ou tal sentena; no se tratava, portanto, de estabelecer as atitudes do

    verdadeiro por oposio a um falso que seria refutado; tratava-se,

    essencialmente, de fazer surgir no fundo o verdadeiro, fazer surgir o

    verdadeiro ele mesmo sobre o fundo do desconhecido, sobre o fundo do oculto,

    do invisvel, do imprevisvel. No se tratava, igualmente, de organizar um

    conhecimento; no se tratava da organizao de um sistema utilitrio de

    conhecimento necessrio ou suficiente para exercer o governo, mas tratava-se

    de um ritual de manifestao da verdade sustentada por um exerccio de

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    poder; de um certo nmero de relaes que certamente no podem ser

    reduzidas ao nvel da utilidade pura e simples.

    E aquilo que eu gostaria de retomar a natureza da relao entre o ritual

    da manifestao da verdade e o exerccio do poder. Eu disse ritual de

    manifestao da verdade, porm no se trata, puramente e simplesmente,

    disso que se chamaria uma atividade mais ou menos racional de

    conhecimento. Parece-me que o exerccio do poder, tal como se pode encontrar

    um exemplo na histria de Stimo Severo, se acompanha de um conjunto de

    procedimentos verbais ou no verbais que podem ser, por conseqncia, da

    ordem da informao recolhida, da ordem do conhecimento, da ordem de

    tabelas, fichas, notas etc., que podem ser um certo nmero de conselhos; mas

    que podem ser igualmente rituais, cerimnias; podem ser operaes diversas

    como magias, consultas aos orculos, aos deuses etc. Trata-se, portanto, de um

    conjunto de procedimentos verbais ou no, atravs dos quais atualizada a

    conscincia individual do soberano e o saber de seus conselheiros; um

    conjunto de procedimentos verbais ou no atravs dos quais atualiza-se

    qualquer coisa que afirmada, ou melhor, colocada como verdadeiro, seja por

    oposio a um falso que foi eliminado, discutido, refutado etc., mas que

    tambm colocado como verdadeiro por revelao ou ocultao, por dissipao

    disso que esquecido, por conjurao do imprevisvel.

    Eu no diria mais simplesmente que o exerccio do poder supe naquele

    que o exerce qualquer coisa como um conhecimento, um conhecimento til e

    utilizvel para exercer o poder. Eu diria que o exerccio do poder se acompanha

    bem constantemente de uma manifestao de verdade entendida no sentido

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    amplo. E tentando encontrar uma palavra que corresponda no, portanto, ao

    conhecimento til para esse que governa, mas para essa manifestao da

    verdade correlativa ao exerccio do poder; enfim, procurando uma palavra eu

    encontrei uma que bem velha porque grega e que no to honrada porque

    na guerra foi empregada de um modo e depois surge de uma outra forma por

    um gramtico grego do terceiro ou quarto sculo, algum que se chamava

    Hraclide4 e que empregou a expresso, o adjetivo althourgus para designar

    algum que diz a verdade: althourgus o verdico. E por conseqncia,

    forjando a partir de althourgus uma palavra fictcia de althourgia,

    aleturgia5, poder-se-ia chamar a manifestao da verdade como, portanto, um

    conjunto de procedimentos possveis, verbais ou no, pelos quais se atualiza

    isso que colocado como verdadeiro por oposio ao falso, ao oculto, ao

    invisvel, ao imprevisvel etc. Poder-se-ia chamar aleturgia esse conjunto de

    procedimentos e dizer que no existe exerccio de poder sem qualquer coisa

    como uma aleturgia. Ou ainda, e vocs sabem que eu adoro as palavras

    gregas porque o exerccio do poder chama-se em grego hegemonia, no no

    sentido que damos hoje a essa palavra, mas hegemonia simplesmente o fato

    4

    Heraclides Pntico (388322 a.C.) filsofo grego discpulo de Plato.5 Retomando a aleturgia como descoberta, produo e processo de desenvolvimento da verdade, Foucault lheconfere uma dimenso metodolgica no seu curso de 1984: (...) interessante e importante analisar, naquilo que

    podem ter de especfico, as estruturas prprias aos diferentes discursos emitidos e recebidos como discursosverdadeiros. A anlise dessas estruturas , grosso modo, o que se poderia chamar uma anlise epistemolgica.Mas, de outro lado, parece-me que seria igualmente interessante analisar, nas suas condies e nas suas formas,o tipo de ato pelo qual o sujeito, dizendo a verdade, manifesta-se, e com isso eu quero dizer: representa a simesmo e reconhecido pelos outros como dizendo a verdade. Trata-se de analisar no as formas do discurso taiscomo ele reconhecido como verdadeiro, mas: sob qual forma se apresenta, a seus prprios olhos e aos olhosdos outros, aquele que diz a verdade, [qual ] a forma do sujeito ao dizer a verdade. A anlise desse domnio

    poderia ser chamada, em oposio aquela das estruturas epistemolgicas, o estudo das formas aleturgicas.Emprego aqui uma palavra que comentei ano passado ou h dois anos. A aleturgia seria, etimologicamente, a

    produo da verdade, o ato pelo qual a verdade se manifesta. Portanto, deixemos de lado as anlises de tipo

    estrutura epistemolgica e analisemos um pouco as formas aleturgicas. Cf. Michel Foucault. Le courage dela vrit. Le gouvernement de soi et des autres II. Cours au Collge de France, 1984 . Paris: Gallimard/Seuil,2009, pp. 4-5.

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    de se encontrar, face aos outros, na possibilidade de conduz-los e de conduzir,

    de algum modo, suas condutas; ento eu diria que bem provvel que no

    exista nenhuma hegemonia que possa se exercer sem qualquer coisa como

    uma aleturgia. E tudo isso para dizer simplesmente, de uma maneira brbara e

    hertica, que tudo aquilo que se chama conhecimento, quer dizer, a produo

    da verdade na conscincia dos indivduos pelos procedimentos lgicos e

    experimentais, no , depois de tudo, mais que uma das formas possveis de

    aleturgia. A cincia, o conhecimento objetivo, somente um momento possvel

    de todas essas formas pelas quais pode-se manifestar o verdadeiro.

    Bom, vocs me diro que tudo isso uma discusso intelectual

    apaixonante e um pouco paralela, e que se verdade que em termos

    totalmente gerais pode-se dizer que no existe exerccio do poder, que no

    existe hegemonia sem qualquer coisa como rituais ou formas de manifestao

    de verdade; nenhuma hegemonia sem aleturgia, tudo isso, desde um certo

    nmero de sculos, foi felizmente substitudo por problemas, tcnicas e

    procedimentos mais eficazes e mais racionais do que, por exemplo, a

    representao do cu estrelado acima da cabea do imperador. Dir-me-o que

    hoje tem-se um exerccio de poder que foi racionalizado como arte de governar

    e que essa arte de governar deu lugar a um certo nmero de conhecimentos

    objetivos que so os conhecimentos da economia-poltica, da sociedade, da

    demografia, toda uma srie de processos etc. E, de fato, estou totalmente de

    acordo; na verdade, eu estou parcialmente de acordo. Vejo bem que essa

    espcie, que essa srie de fenmenos aos quais eu fiz aluso atravs da histria

    de Stimo Severo, que tudo isso um pouco residual, testemunho de um certo

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    arcasmo do exerccio do poder e que hoje quase desapareceu. Hoje, chegou-se

    a uma arte racional de governar da qual precisamente eu vos falei no curso

    anterior. Porm, eu gostaria simplesmente de ressaltar duas coisas.

    Inicialmente, nesse domnio, como em todos os outros, aquilo que

    marginal e residual, ao se examinar de perto, tem sempre seu valor heurstico e

    que o prfido, ou qualquer coisa desta ordem, tem frequentemente um

    princpio de inteligibilidade. Segundo, porque tambm, sem dvida, as coisas

    duraram muito mais do que se acredita. E se Stimo Severo muito

    representativo de um contexto, mais uma vez, bem situado em torno dos

    sculos II e III, seja como for, essa histria da manifestao da verdade

    entendida no sentido largo de uma aleturgia em torno do exerccio do poder,

    tudo isso no se dissipou como por encanto, seja pelo efeito da desconfiana

    com a qual o cristianismo combateu todo esse gnero de prticas mgicas ou

    seja sob os efeitos do progresso da racionalidade ocidental a partir dos sculos

    XV e XVI. Eu poderia citar, atravs de um artigo muito interessante de algum

    que se chama Denise Grodzynski, publicado emDivination et rationalit sob a

    direo de Jean-Pierre Vernant6, sobre a luta que os imperadores romanos do

    sculo III e IV conduziram precisamente contra essa prtica mgica e a

    maneira com que se tentou, at certo ponto, depurar de qualquer modo o

    exerccio do poder desse crculo. Mas ela mostra bem todas as dificuldades que

    houve e todos os riscos polticos que existiram por trs disso.

    6

    Denise Grodzynski, op. cit., 1974, p. 287: Os imperadores do fim do sculo IV reduziram toda consulta busca odiosa da data da morte alheia. Para eles no existia consulta que pudesse concernir a assuntos inofensivosda vida cotidiana ou aportar ajuda aos homens em dificuldade.

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    Pode-se dizer igualmente que, muito mais tarde, por exemplo no sculo

    XV e incio do sculo XVI, nesse fenmeno que foi culturalmente e

    politicamente importante que se chamou a corte: as cortes, as cortes

    principescas, as cortes reais do final da Idade Mdia, do Renascimento e ainda

    do sculo XVII. Foram certamente uma srie de instrumentos polticos muito

    importantes; mas preciso perceber igualmente em qual ambiente cultural

    elas se deram7. Mas o que significa dizer ambiente cultural, qual sentido eles

    tinham? Talvez seria melhor dizer meio de manifestao da verdade no lugar

    de simplesmente ambiente cultural.

    Bom, totalmente certo que nesse cuidado que o Prncipe da poca da

    renascena teve em reagrupar em torno dele um certo nmero de atividades,

    um certo nmero de saberes, de conhecimentos, de prticas, um certo nmero

    de indivduos que eram veculos culturais, porque certamente ele tinha

    enorme razo, digamos, imediatamente utilitria; que tratava-se, verdade, de

    criar em torno do Prncipe um ncleo de competncias permitindo-lhe

    justamente afirmar seu poder poltico sobre as antigas estruturas feudais ou,

    em todo caso, sobre as estruturas anteriores. Tratava-se tambm de assegurar

    uma centralizao de conhecimentos em uma poca onde alguns

    agrupamentos religiosos e ideolgicos arriscavam constiturem-se, em face ao

    7 Cf. Michel Foucault.Em defesa da sociedade. Curso no Collge de France (1975-1976). Traduo de Maria E.Galvo. So Paulo, Martins Fontes, 1999, pp. 209-210: Mas que a corte, seno precisamente e isto de umaforma incontestvel em Lus XIV , tambm a, uma espcie de aula de direito pblico? A corte temessencialmente como funo constituir, organizar um lugar de manifestao cotidiana e permanente do podermonrquico em seu esplendor. No fundo, a corte essa espcie de operao ritual permanente, recomeada diaaps dia, que requalifica um indivduo, um homem particular, como sendo rei, como sendo o monarca, comosendo o soberano. A corte, em seu ritual montono, a operao incessantemente renovada pela qual um homemque se levanta, que passeia, que come, que tem seus amores e suas paixes, ao mesmo tempo, atravs disso, e

    sem que nada disso seja de algum modo eliminado, um soberano. Tornar seu amor soberano, tornar suaalimentao soberana, tornar soberanos seu despertar e seu deitar: nisso que consiste a operao especfica doritual e do cerimonial da corte.

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    Prncipe, como um contra-poder bem importante. Tratava-se, na poca da

    reforma e da contra-reforma, de poder controlar at um certo ponto a violncia

    e a intensidade desse movimento ideolgico e religioso constitudo pela fora e

    imposto mais ou menos ao Prncipe. Bom, mas alm disso eu penso que o

    fenmeno das cortes representa tambm outra coisa e que havia nas cortes, e

    nessa extraordinria concentrao de atividades culturais, uma forma de

    dispndio puro de verdade, uma forma de manifestao pura da verdade: l

    onde existe poder, l onde preciso que exista poder, l onde se quer mostrar

    que efetivamente ali que reside o poder, e bem, preciso que exista o

    verdadeiro; e l onde no existe o verdadeiro, l onde no existe manifestao

    do verdadeiro, ento porque ali o poder no est, ou muito fraco ou

    incapaz de ser poder. A fora do poder no independente de qualquer coisa

    como a manifestao do verdadeiro entendido para alm disso que

    simplesmente til e necessrio para bem governar.

    O fortalecimento do poder principesco que se constata no curso dos

    sculos XVI e XVII reclamou seguramente a constituio de toda uma srie de

    conhecimentos, poder-se-ia dizer, teis arte de governar, mas constituiu

    tambm toda uma srie de rituais de manifestao do saber que vo desde o

    desenvolvimento de um certo humanismo at a bem curiosa e bem constante

    presena de bruxas, astrlogos, adivinhos etc., em torno do Prncipe, at o

    incio do sculo XVII. O exerccio do poder principesco ele tambm, no sculo

    XVII, tanto quanto Stimo Severo, no pde passar sem um certo nmero

    desses rituais; e muito interessante estudar a personagem do adivinho, da

    bruxa, do astrlogo etc., nas cortes dos sculos XVI e XVII. Depois de tudo,

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    essa razo de Estado da qual tentamos reconstituir um pouco alguns

    momentos; a constituio da razo de Estado, bem, ela essencialmente todo

    um remanejamento, digamos, utilitrio e calculista de todas as aleturgias que

    so prprias ao exerccio do poder. Tratou-se, certamente, de constituir um

    tipo de saber que ser de qualquer modo interno ao exerccio do poder e til

    para ele. Mas a constituio da razo de Estado foi acompanhada de todo um

    movimento que foi evidentemente a sua contra-partida negativa e que foi:

    preciso caar o adivinho da corte do rei, preciso substituir o astrlogo por

    essa espcie de conselheiro que foi ao mesmo tempo o detentor e o invocador

    da verdade e substitu-lo por um verdadeiro ministro que seja capaz de

    fornecer ao Prncipe um conhecimento til. A constituio da razo de Estado

    o remanejamento de todas essas manifestaes de verdade que estavam

    ligadas ao exerccio do poder e organizao da corte. Por conseqncia,

    poder-se-ia dizer tambm que o fenmeno da caa s bruxas no fim do sculo

    XVI no foi puramente e simplesmente um fenmeno, eu diria, de reconquista

    pela Igreja, e por conseqncia at um certo ponto para o Estado, de toda uma

    srie, toda uma camada de populao que no fundo tinha sido apenas

    superficialmente cristianizada no curso da Idade Mdia. Bom, esse fenmeno

    ele seguramente fundamental: a caa s bruxas foi certamente o resultado da

    reforma e da contra-reforma, quer dizer, de uma vitalidade superior para qual

    passou a cristianizao que tinha sido superficial durante o sculo precedente8.

    8 Cf. Michel Foucault. Sorcellerie et folie in Dits et crits II, 1976-1988. Paris, Gallimard, 2001, p. 90: No

    foi somente a bruxa com suas pobres quimeras e suas potncias de sombra que foi, enfim, por uma cincia tardiamas salutar, reconhecida como alienada. (...) um certo tipo de poder se exercia atravs das vigilncias, dosinterrogatrios, dos decretos da Inquisio; e ele ainda, por transformaes sucessivas, que nos interroga hoje,

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    Mas houve tambm uma caa ao adivinho, bruxa e ao astrlogo realizada nos

    estratos superiores, realizada tambm no crculo real.

    A excluso do adivinho e o remanejamento da corte cronologicamente

    contemporneo da ltima e da mais intensa onda de caa s bruxas nas

    camadas populares. preciso, portanto, perceber um fenmeno de qualquer

    modo bifurcado indo em duas direes: tanto na direo do Prncipe, como na

    direo popular. Era preciso eliminar aquele tipo de saber, aquele tipo de

    manifestao do verdadeiro, aquele tipo de produo da verdade, aquele tipo

    de aleturgia, tanto das camadas populares quanto, e com mais razo, do

    entorno do Prncipe e da corte. E pode-se encontrar um personagem que foi

    importante: Bodin9 que no fim do sculo XVI para Repblica um dos tericos

    da nova racionalidade que deveria presidir a arte de governar e tambm

    quem escreveu um livro sobre a bruxaria. Ento, eu sei que existem pessoas,

    pouco importa seus nomes e suas nacionalidades, que dizem: Bodin, sim,

    seguramente se ele fez essas duas coisas, se ele foi ao mesmo tempo terico da

    razo de Estado e o grande opositor da demonomania; se ele demonlogo e

    terico do Estado, simplesmente porque o capitalismo nascente tinha

    necessidade de fora de trabalho e assim como as bruxas eram ao mesmo

    tempo praticantes do aborto, tratava-se de dar um fim a esse impedimento da

    demografia para poder fornecer ao capital a mo-de-obra da qual ele tinha

    necessidade para as usinas do sculo XIX. O raciocnio, vocs vem, no

    absolutamente convincente e eu diria que caricatural. Parece-me mais

    questiona nossos desejos e sonhos, inquieta-se com nossas noites, persegue os segredos e traa fronteiras,

    designa os anormais, promove purificaes e assegura as funes da ordem.9 Jean Bodin (1530-1596) jurista considerado precursor do Mercantilismo, entre suas obras constam Les sixlivres de la Rpublique (1577) eDe la dmonomanie des sorciers (1580).

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    interessante procurar os dois registros do pensamento de Bodin nessa relao

    que deve existir entre a constituio de uma racionalidade prpria arte de

    governar sob a forma de uma razo de Estado em geral e, de outra parte,

    conjurao dessas aleturgias sob a forma da demonomania, adivinhao etc.,

    que ocupava um lugar no saber do Prncipe, um lugar que a razo de Estado

    deveria tomar.

    Bom, o curso deste ano se ocupar em elaborar a noo de governo dos

    homens pela verdade. Essa noo de governo dos homens pela verdade eu j

    falei dela um pouco nos anos precedentes. O que significa elaborar essa noo?

    Trata-se de deslocar um pouco as coisas em relao ao tema atualmente

    utilizado e repetido do saber-poder, tema que foi ele mesmo apenas uma

    maneira de deslocar as coisas em relao a um tipo de anlise no domnio,

    digamos, da historia do pensamento; domnio de anlise que foi mais ou

    menos organizado ou que girou em torno da noo de ideologia dominante.

    Grosso modo, se vocs quiserem, dois deslocamentos sucessivos: um da noo

    de ideologia dominante para essa noo de poder-saber e agora um segundo

    deslocamento da noo saber-poder para a noo do governo pela verdade.

    Seguramente, entre esses dois deslocamentos existe uma diferena. Se

    noo de ideologia dominante eu tentei opor a noo de saber-poder foi

    porque a essa noo de ideologia dominante, eu creio, pode-se fazer trs

    objees. Primeiramente, ela postula uma teoria incompleta ou uma teoria

    imperfeita da representao. Segundo, essa noo de ideologia dominante est

    indexada, pelo menos implicitamente e sem poder desembaraar-se de modo

    claro, oposio do verdadeiro e do falso, da realidade e da iluso, do

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    cientfico e do no cientfico, do racional e do irracional. Terceiro, enfim, sob a

    palavra dominante, depois de tudo, a noo de ideologia fica num impasse em

    relao a todos os mecanismos reais de assujeitamento, distanciando-se, de

    qualquer modo, do empreendimento e repassando-o a um terceiro, recorrendo

    aos historiadores do saber para perceber como e porque em uma certa

    sociedade alguns dominam os outros.

    Por oposio a isso eu, portanto, tentei colocar em funcionamento a

    noo de saber-poder. A noo de saber tinha por funo colocar fora de

    terreno a oposio do cientifico e do no cientfico, a questo da iluso e da

    realidade, a questo do verdadeiro e do falso, no para dizer que essas

    oposies no tinham um estado de causa, de sentido, de valor; eu quis dizer,

    simplesmente, que se tratava, com o saber, de colocar o problema em termos

    de prticas constitutivas de domnios de objetos e de conceitos no interior das

    quais as oposies do cientifico e do no cientifico, da iluso e da realidade, do

    verdadeiro e do falso, poderiam assumir seus efeitos. J a noo de poder

    tinha, essencialmente, por funo substituir a noo de sistemas de

    representao: aqui a questo, o campo de anlise, so os procedimentos, os

    instrumentos e as tcnicas pelas quais se realizam efetivamente as relaes de

    poder.

    Agora, o segundo deslocamento em relao a essa noo de saber-poder

    trata de se desembaraar disso para tentar elaborar a noo de governo pela

    verdade. Desembaraar-se da noo saber-poder como se desembaraar da

    noo de ideologia dominante. Dir-se-ia que sou perfeitamente hipcrita

    porque evidente que no se desembaraa de seu prprio pensamento como se

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    desembaraa do pensamento dos outros. Por conseqncia, eu serei

    certamente mais indulgente com a noo saber-poder do que com a noo de

    ideologia dominante, mas cabe a vocs me reprovarem. Na incapacidade,

    portanto, de tratar a mim mesmo como eu trataria os outros, eu diria que

    trata-se essencialmente, passando da noo saber-poder para a noo do

    governo pela verdade, de dar um contedo positivo e diferenciado a esses dois

    termos saber e poder.

    Nos cursos dos ltimos anos eu, portanto, tentei esboar um pouco essa

    noo de governo que me pareceu ser muito mais operatrio que a noo de

    poder; governo entendido seguramente no no sentido estreito e atual de

    instncia suprema de decises executivas e administrativas em um sistema

    estatal, mas no sentido largo e antigo de mecanismos e procedimentos

    destinados a conduzir os homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a

    conduta dos homens. E foi no quadro geral dessa noo de governo que eu

    tentei estudar duas coisas a ttulo de exemplo: de um lado, o nascimento da

    razo de Estado no sculo XVII entendida no como teoria ou representao

    do Estado, mas como arte de governar, como racionalidade elaborando a

    prtica mesma do governo10; e, de outro lado, no ltimo ano, o liberalismo

    contemporneo americano e alemo entendido no como teoria econmica e

    como doutrina poltica, mas entendido como uma certa maneira de governar,

    como uma certa arte racional de governar11. A partir deste ano eu gostaria de

    elaborar agora a noo do saber na direo do problema da verdade. (...) Em

    10 Michel Foucault. Scurit, territoire, population. Cours au Collge de France (1977-1978). Paris:

    Gallimard/Seuil, 2004.11 Michel Foucault. Naissance de la biopolitique. Cours au Collge de France (1978-1979). Paris,Gallimard/Seuil, 2004.

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    todo caso, hoje eu gostaria de ainda ficar no nvel das generalidades para

    tentar situar o problema um pouco melhor (...).

    um lugar comum dizer que as artes de governar e os jogos de verdade

    no so independentes um do outro, e que no possvel governar sem entrar,

    de uma maneira ou de outra, nos jogos de verdade. Tudo isso so lugares

    comuns e creio que em relao a isso pode-se encontrar quatro ou cinco

    formas principais, digamos, no pensamento poltico moderno, no sentido largo

    do termo, quer dizer, a partir do sculo XVII. Bom, essa funo de ligar, de

    conceber a existncia de relao entre o exerccio do poder e a manifestao da

    verdade so as seguintes.

    A primeira forma, a mais antiga, muito geral e muito banal, mas que

    seguramente h trs sculos teve sua fora de inovao e seus efeitos de

    ruptura, simplesmente a idia de que no pode haver governo possvel sem

    que aquele que governa no indexe sua ao, sua escolha, sua deciso, a um

    conjunto de conhecimentos verdadeiros, de princpios racionalmente fundados

    ou de conhecimentos exatos, os quais no so atribudos simplesmente a

    sabedoria geral do Prncipe nem a razo da corte tout court, mas a uma

    estrutura racional que prpria a um domnio de objetos possveis e que o

    Estado. Dito de outro modo, a idia de uma razo de Estado me parece ter sido

    na Europa moderna a primeira maneira de refletir e de tentar dar um estatuto

    preciso e utilizvel s relaes entre o exerccio do poder e a manifestao da

    verdade. Em suma, essa foi a idia segundo a qual a racionalidade da ao

    governamental a razo de Estado, e que a verdade que dever ser

    manifestada a verdade do Estado como objeto de ao governamental. Esse

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    governo no ser mais que a superfcie da reflexo da verdade, da sociedade e

    da economia em um certo nmero de expresses que no faro outra coisa que

    repercutir essas verdades naqueles que so governados. Governante e

    governado sero, de qualquer modo, atores e co-atores, atores simultneos de

    uma pea que eles jogam em comum e que aquela da natureza na sua

    verdade. Bem, essa idia inteiramente de Quesnay, a idia dos fisiocratas:

    idia que se os homens governarem sob as regras da evidncia, no sero mais

    os homens que governaro, sero as coisas por elas mesmas. Esse era o

    princpio de Quesnay13 e que, malgrado, ainda uma vez, seu carter abstrato e

    quase utpico, teve uma evoluo e uma importncia considervel na histria

    do pensamento poltico na Europa.

    Depois de tudo, pode-se dizer que aquilo que se passa em seguida, aquilo

    que se v desenvolver no sculo XIX na ordem dessa reflexo sobre a maneira

    de ligar verdade e governo, no foi outra coisa que o desenvolvimento ou a

    dissociao dessa idia fisiocrata. Vocs encontram, com efeito, no sculo XIX,

    essa idia, ela tambm muito banal mas de grande importncia: a idia que se

    a arte de governar est fundamentalmente ligada descoberta de uma verdade

    e ao conhecimento objetivo dessa verdade, bem, isso implica a constituio de

    um saber especializado, a formao de uma categoria de indivduos tambm

    especializados no conhecimento dessa verdade. E essa especializao constitui

    um domnio que no exatamente prprio da poltica, e que define muito mais

    13 Franois Quesnay. Quadro econmico: anlise das variaes do rendimento de uma nao. 3 ed., traduo deTeodora Cardoso. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985.

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    um conjunto de coisas e de relaes que devero se impor poltica. Grosso

    modo, vocs vem bem que esse o princpio de Saint-Simon14.

    Em face disso e um pouco mais tarde, encontra-se, de qualquer modo, o

    inverso: que o fato de um certo nmero de indivduos apresentarem-se como

    especialistas da verdade a ser imposta poltica porque, no fundo, eles

    encobriram qualquer coisa. Quer dizer que se fosse possvel encontrar o meio

    atravs do qual cada um na sociedade, todos os indivduos que nela vivem; se

    fosse possvel fazer com que eles conhecessem a verdade e que soubessem

    efetivamente isso que se passa com realidade, profundamente, e que a

    aparente competncia dos outros serve apenas para ocultar; se todo mundo

    soubesse tudo na sociedade na qual vive, bem, muito simplesmente o governo

    no poder mais governar. Isso seria imediatamente a revoluo: faamos cair

    a mascar, descubramos as coisas tal como elas se passam, tomemos cada um

    de ns conscincia disso que realmente a sociedade na qual vivemos e do

    processo econmico no qual ns somos inconscientemente os agentes e as

    vtimas; tomemos conscincia dos mecanismos de explorao e de dominao

    etc., e, imediatamente, o governo cai! Incompatibilidade, por conseqncia,

    entre a evidncia, enfim, adquirida disso que se passa realmente, evidncia

    adquirida por todos, e o exerccio do governo por alguns. Princpio, portanto,

    da tomada de conscincia universal como princpio de perturbao de

    governos, dos regimes e dos sistemas. isso que Rosa Luxemburgo, vocs

    14 Cf. Conde de Saint-Simon. Catchisme politique des industriels. Paris: Naquet, 1832, pp. 49-50: Asconcepes diretoras da fora social devem ser produzidas pelos homens mais capazes em administrao. Ora,

    os industriais mais importantes so aqueles que deram prova da maior capacidade em administrao, visto que da capacidade neste assunto que advm a importncia que adquiriram, sero eles quem, definitivamente, estaronecessariamente encarregados da direo dos interesses sociais.

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    sabem bem, formulou numa frase clebre: se todo mundo soubesse o regime

    capitalista no teria vencido.

    A isso poder-se-ia dizer que se acrescentou, mais recentemente, uma

    outra funo de conceber, de definir as relaes entre a manifestao de

    verdade e o exerccio do poder. Maneira exatamente inversa de Rosa

    Luxemburgo foi essa que pode-se chamar o princpio de Soljenitsin15 que

    consiste em dizer: pode ser que se todo mundo soubesse o regime capitalista

    no teria vencido, mas, diz Soljenitsin, se os regimes socialistas triunfam

    precisamente porque todo mundo sabe. Quer dizer, no porque os

    governados ignoram aquilo que se passa ou que alguns entre eles sabem

    enquanto outros no sabem, mas o contrrio: porque eles sabem e na

    medida em que sabem, na medida que a evidencia disso que se passa

    efetivamente consciente a todo mundo, nessa medida que as coisas no se

    modificam. precisamente esse o princpio do terror: o terror no uma arte

    de governar que se oculta nos seus fins, nos seus motivos e nos seus

    mecanismos, o terror precisamente a governamentalidade no seu estado nu,

    em estado cnico, em estado obsceno. No terror a verdade e no a mentira

    que imobiliza: a verdade que ele deixa, a verdade que se rende ela mesma,

    pela sua evidncia manifesta por toda parte, que se rende intangvel e

    inevitvel.

    Ento, digamos, razo de Estado ou princpio de racionalidade Botero;

    racionalidade econmica e princpio de evidncia Quesnay; especificao

    cientfica da evidncia e princpio da competncia Saint-Simon; inverso da

    15 Alexandre Soljentsin (1918-2008) condenado ao campo de trabalhos forados (gulag) pelo stalinismo, tornouconhecido seu funcionamento atravs do livroArquiplago Gulag, 1918-1956.

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    competncia particular em evento universal ou princpio da conscincia geral

    Rosa Luxemburgo; e, enfim, conscincia comum, fascinada e inevitvel prpria

    ao terror, o princpio de Soljenitsin. Eis quatro maneiras de refletir, de

    analisar, ou em todo caso, de localizar as relaes entre o exerccio do poder e a

    manifestao da verdade.

    Se eu dispus de todos esses mtodos no foi evidentemente com a

    inteno de exaustividade e nem mesmo para estabelecer um fio diretor que

    permitiria tomar o essencial e a coerncia do conjunto. No fiz mais que

    indicar alguns movimentos, ou melhor trazer de modo mais ou menos

    indicativo algumas maneiras segundo as quais na poca moderna se tentou

    pensar a relao entre arte de governar e o saber da verdade, ou ainda, entre

    exerccio do poder e a manifestao da verdade. Se eu os enumerei assim de

    funo esquemtica, uns seguidos dos outros, no foi para dizer que cada um

    deles caracteriza de maneira particular num momento dado, digamos, uma

    idade da racionalidade, uma idade da evidncia, uma idade da competncia

    etc., no isso. Eu no quis mostrar, igualmente, que de um ao outro existe um

    encadeamento fatal; e, sobretudo, eu no quis afirmar que o princpio de

    terror, por exemplo, j estava contido, fatalmente, necessariamente, em germe,

    em ncleo, na idia de uma racionalidade governamental tal como encontrada

    no sculo XVII com a razo de Estado, no foi absolutamente isso que eu quis

    dizer. Pelo contrrio, indiquei alguns modos de pensar essas relaes entre a

    manifestao de verdade e o exerccio do poder para tentar mostrar as trs

    teses de cada um e que podem ser expressas assim.

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    Vocs vem que nessas maneiras modernas de refletir as relaes

    governo-verdade, todas elas definem essas relaes em funo de um certo real

    que seria o Estado ou que seria a sociedade: a sociedade que seria objeto de

    saber, a sociedade que seria o lugar de processos espontneos, sujeito de

    revolta, objeto e sujeito de fascinao pelo terror. De outra parte, outra

    limitao dessas anlises que elas se fundam em funo de um saber que

    seria sempre da forma do conhecimento mais ou menos objetivo dos

    fenmenos. Agora, eu gostaria de tentar me colocar para alm desses

    esquemas e mostrar como no foi no dia em que a sociedade ou o Estado

    apareceram como objetos possveis e necessrios para uma

    governamentalidade racional que nasceram, enfim, relaes entre governo e

    verdade. No foi preciso esperar a constituio dessas relaes novas,

    modernas, entre arte de governar e racionalidade, digamos, poltica,

    econmica e social, para que a ligao entre manifestao da verdade e

    exerccio do poder se fizesse. A ligao entre exerccio do poder e manifestao

    da verdade so muito mais antigas e a um nvel muito mais profundo, isso

    que gostaria de observar tomando o exemplo bem particular, bem preciso e

    que no diz nem mesmo respeito poltica. Gostaria de tentar mostrar como

    no possvel dirigir os homens sem fazer operaes da ordem da verdade,

    mas com o cuidado que essas operaes da ordem da verdade sejam sempre

    excedentes em relao a isso que til e necessrio para governar de uma

    maneira eficaz. para alm da finalidade eficaz, da finalidade em governar de

    modo eficaz, sempre para alm disso que a manifestao da verdade

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    requerida ou implicada ou ligada a uma atividade de governar e de exercer o

    poder.

    Diz-se frequentemente que por detrs de todas as relaes de poder

    existe, em ltima instncia, qualquer coisa como um ncleo de violncia e que,

    ao se despir o poder de seus adornos, o jogo nu da vida e da morte que se

    encontrar. Pode ser. Mas, pode haver poder sem adorno? Dito de outro modo,

    pode haver efetivamente um poder que se passaria sem jogos de sombras e de

    luzes, de verdade e de erro, do verdadeiro e do falso, do oculto e do manifesto,

    do visvel e do invisvel? Ou ainda, pode haver exerccio de poder sem um

    [claro] de verdade, sem um crculo aleturgico que gira em torno dele e que o

    acompanha?

    O cu estrelado acima da cabea de Stimo Severo, o cu estrelado acima

    das cabeas daqueles que ele julgava, o cu estrelado como verdade que se

    estendia implacavelmente sobre aquele que governa e sobre aqueles que so

    governados, esse cu estrelado como manifestao de verdade, esse cu

    estrelado, portanto, est acima das cabeas de todos, mas a lei poltica est

    apenas entre suas mos. em torno desses temas que vou continuar.

    Obrigado.

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    II.

    Excerto da aula de 30 de janeiro de 1980

    Eis, portanto, os trs temas que eu gostaria de sublinhar. Inicialmente a

    relao entre a manifestao da verdade e o exerccio do poder; segundo, a

    importncia e necessidade para o exerccio do poder de uma manifestao da

    verdade que toma a forma, pelo menos em alguns de seus pontos, mas de uma

    maneira absolutamente indispensvel, a forma da subjetividade; enfim, essa

    manifestao de verdade na forma da subjetividade tem efeitos que vo muito

    alm das relaes, digamos, imediatamente utilitrias do conhecimento: a

    aleturgia, a manifestao da verdade faz muito mais que permitir conhecer.

    Bom, esses so os trs temas que nesse curso eu gostaria de retomar nas aulas

    seguintes.

    A questo que eu gostaria de colocar, ainda uma vez, essa: como se fez,

    numa sociedade como a nossa, que o poder no possa se exercer sem que a

    verdade se manifeste, e se manifeste na forma da subjetividade? E, de outra

    parte, espera-se nessa manifestao da verdade sob a forma da subjetividade

    efeitos que esto para alm da ordem do conhecimento, mas que so da ordem

    da salvao e da libertao para cada um e para todos. De modo geral, o tema

    que eu gostaria de abordar este ano : como, em nossa civilizao,

    funcionaram as relaes entre o governo dos homens, a manifestao da

    verdade sob a forma da subjetividade e a salvao para todos e cada um?

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    Eu sei bem que esses problemas ou esses temas so conhecidos e

    repetidos e que, aps tudo, existem anlises honorveis em termos de ideologia

    que possuem sobre esses problemas uma resposta j pronta e que nos explicam

    que, com efeito, se no exerccio do poder a manifestao da verdade sob a

    forma da subjetividade e a salvao por todos e cada um esto ligados

    simplesmente pelos efeitos prprios disso que se chama ideologia. Grosso

    modo, consiste-se em dizer: na medida em que os homens esto mais

    preocupados com sua salvao no outro mundo do que com isso que se passa

    aqui embaixo; na medida em que querem verdadeiramente serem salvos, eles

    permanecem tranquilos e mais fcil govern-los. O governo dos homens por

    essa verdade que efetuam neles mesmos e que lhes salutar no senso forte do

    termo, precisamente o efeito prprio disso que se chama ideologia: mais os

    homens esto preocupados com a sua salvao no alm, mais fcil aqui

    embaixo govern-los.

    Isso, eu devo dizer, no me parece consoante com um certo nmero de

    pequenas coisas que ns sabemos, na histria antiga ou recente, das relaes

    entre revoluo e religio. Consequentemente o problema no pode ser assim

    to simples, no do lado dessas anlises em termos de ideologia que seria

    preciso conduzir a investigao. Ainda uma vez eu retomo sempre isso que eu

    no cessei de repetir e praticar, a saber, a recusa da anlise em termos de

    ideologia, a recusa em analisar nesses termos o pensamento, o comportamento

    e o saber dos homens. Essa recusa da anlise ideolgica que eu insisti por

    diversas vezes e que retomei praticamente, creio, em cada um dos cursos e a

    cada ano, eu gostaria mesmo de retomar ainda uma vez por uma razo bem

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    simples: que sempre retomando-a, eu creio, ou em todo caso, eu gostaria, eu

    espero, operar a cada vez um leve e pequeno deslocamento. E isso, se vocs

    quiserem, me conduz a qualquer coisa como um tipo de confidncia e que seria

    essa: que para mim, aps tudo, o trabalho terico no consiste, e eu no digo

    isso por orgulho ou vaidade, mas por sentimento profundo de uma

    incapacidade; para mim o trabalho terico no consiste em estabelecer e fixar

    um conjunto de posies sobre as quais eu me manteria e cuja ligao entre

    essas diferentes posies, na sua suposta ligao coerente, formaria um

    sistema. Meu problema, ou a nica possibilidade terica que sinto, seria a de

    deixar somente o desenho o mais inteligvel possvel, o trao do movimento

    pelo qual eu no estou mais no lugar onde eu estava agora pouco. Da, se vocs

    quiserem, essa perptua necessidade de realar, de algum modo, o ponto de

    passagem que cada deslocamento arrisca modificar se no o conjunto, pelo

    menos a maneira pela qual se l ou pela qual se apreende o que pode ter de

    inteligvel. Essa necessidade, portanto, no aparece jamais como plano de um

    edifcio permanente; no preciso lhe reclamar e impor as mesmas exigncias

    como se tratasse de um plano: trata-se, ainda uma vez, de traar um

    deslocamento, quer dizer, traar no edifcios tericos, mas deslocamentos

    pelos quais as posies tericas no cessam de se transformar. Aps tudo,

    existem teologias negativas: digamos que eu sou um terico negativo16. Ento,

    uma nova curva, um novo trao, e uma vez mais um retorno sobre ela mesma,

    sobre o mesmo tema.

    16

    Cf. Pierre Hadot.Exercices spirituels et philosophie antique. Paris: Albin Michel, 2002, p. 239: chama-setradicionalmente teologia negativa um mtodo de pensamento que se prope conceber Deus aplicando-lheproposies que negam todo predicado concebvel.

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    Esperando um outro deslocamento e uma nova forma de inteligibilidade,

    portanto, o que significa essa recusa da anlise em termos de ideologia? Eu

    poderia dizer nesse ano o seguinte: existe uma maneira, eu creio, tradicional,

    antiga, perfeitamente nobre, de colocar a questo filosfica ou poltica dizendo

    que no momento em que o sujeito se submete voluntariamente a uma ligao

    de verdade numa relao de conhecimento; quer dizer, no momento em que

    ele pretende, aps lhe serem dados os fundamentos, os instrumentos, as

    justificaes com as quais ele pretende sustentar um discurso de verdade, a

    partir da, o que que ele pode dizer sobre, ou para, ou contra o poder que o

    assujeita? Dito de outro modo, a ligao voluntria com a verdade, o que ela

    pode dizer sobre a ligao involuntria que nos prende e nos dobra ao poder?

    Essa, eu creio, a maneira tradicional, maior, de colocar a questo filosfico-

    poltica.

    Eu creio que possvel retomar esse mesmo problema inversamente:

    no mais supondo, inicialmente, o direito de acesso verdade; no mais

    estabelecendo de incio essa ligao voluntria e, de qualquer modo, contratual

    com a verdade, mas colocando inicialmente a questo do poder da seguinte

    maneira, perguntando-se: o que esse gesto sistemtico, voluntrio, terico e

    prtico de colocar em questo o poder tem a dizer sobre o sujeito de

    conhecimento e sobre a ligao com a verdade na qual involuntariamente ele

    se encontra preso? Dito de outro modo, no se trata mais de dizer:

    considerando o vnculo que me liga voluntariamente a verdade, o que que eu

    posso dizer do poder? Mas, considerando minha vontade, deciso e esforo de

    desfazer a ligao que me liga ao poder, o que [feito] ento do sujeito de

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    conhecimento e da verdade? De outro modo, no mais a crtica da

    representao em termos de verdade e de erro, em termos de verdade ou de

    falsidade, em termos de ideologia ou de cincia, de racionalidade ou

    irracionalidade; no mais a crtica da representao nesses termos que

    dever servir de indicador para definir a legitimidade do poder ou para

    denunciar sua ilegitimidade: o movimento para separar-se do poder que deve

    servir de revelador da transformao do sujeito e das relaes que ele mantm

    com a verdade.

    Vocs vem bem que uma tal forma de anlise repousa, como de outro

    modo todas as outras anlises inversas, mais sobre uma atitude do que sobre

    uma tese. Mas essa atitude no exatamente, digamos, a atitude da poca: do

    ceticismo, de colocar em suspenso todas as certezas, as posies tticas da

    verdade. uma atitude que consiste, primeiramente, em dizer: nenhum poder

    existe por si! [quelque pouvoir ne va pas de soi!] Nenhum poder, qualquer que

    seja, evidente ou inevitvel! Qualquer poder, consequentemente, no merece

    ser aceito no jogo! No existe legitimidade intrnseca do poder! E a partir dessa

    posio, a dmarche consiste em perguntar-se o que, a partir disso, feito do

    sujeito e das relaes de conhecimento no momento em que nenhum poder

    fundado no direito nem na necessidade; no momento em que qualquer poder

    jamais repousa a no ser sobre a contingncia e a fragilidade de uma histria;

    no momento em que o contrato social um blefe e a sociedade civil um conto

    para crianas; no momento em que no existe nenhum direito universal,

    imediato e evidente que possa, em todo lugar e sempre, sustentar uma relao

    de poder qualquer que ela seja.

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    Digamos se vocs quiserem que a grande dmarche filosfica consiste

    em colocar em funcionamento uma dvida metdica que coloca em suspenso

    todas as certezas; a pequeno dmarche lateral e a contra-corrente [contre voir]

    que eu vos proponho consiste em tentar fazer jogar sistematicamente no

    mais, portanto, a suspenso de todas essas certezas, mas a no necessidade de

    todo poder, qualquer que ele seja. Ento ensaiar se a anarquia, se o

    anarquismo..., no vejo porque a palavra anarquia ou anarquismo seria de tal

    modo pejorativa que impediria empreg-la para fazer funcionar e triunfar um

    discurso crtico; mas, de outro lado, implicando, eu creio, algumas diferenas.

    Ao defin-lo de um modo bem grosseiro e que eu estaria totalmente disposto a

    discutir ou a retornar sobre essa definio bastante aproximativa; em todo

    caso, ao se definir o anarquismo por duas coisas: primeiramente a tese de que

    o poder, na sua essncia, de qualquer modo ruim; e, segundo, ao defin-lo

    como um projeto de sociedade onde seriam abolidas, anuladas, todas as

    relaes de poder. Ento, vocs vem que isso que eu vos proponho e de onde

    eu vos falo claramente diferente. Primeiramente, no se trata de ter um

    ponto [palavra inaudvel] em termos de projeto de uma sociedade sem relaes

    de poder; trata-se, ao contrrio, de colocar o no poder ou a no aceitabilidade

    do poder no em termos de empreendimento, mas ao contrrio, no incio do

    trabalho sob a forma do questionamento de todos os modos segundo os quais

    efetivamente se aceita o poder. Segundo, no se trata de dizer que todo poder

    ruim, mas de dizer, ou de partir desse ponto: qualquer poder, qualquer que ele

    seja, no de pleno direito aceitvel ou no absolutamente e definitivamente

    inevitvel.

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    Vocs vem, portanto, que entre isso que se chama, grosso modo, a

    anarquia, o anarquismo e o mtodo que eu emprego certo que existe

    qualquer coisa como uma relao; mas, vocs vem que as diferenas so

    igualmente claras. Em outras palavras, a posio que eu assumo no exclu

    absolutamente a anarquia. E, depois de tudo, ainda uma vez, porque a

    anarquia seria to condenvel? Ela s , talvez, automaticamente, por essa

    noo segundo a qual existe sempre, forosamente, essencialmente, qualquer

    coisa como um poder inaceitvel. A posio, portanto, que proponho no

    exclui a anarquia, mas vocs vem que ela no a implica, no a recobre e no se

    identifica com ela. Trata-se, se vocs quiserem, de uma atitude terico-prtica

    concernindo com a no necessidade de todo poder; e para distinguir essa

    posio terico-prtica sobre a no necessidade do poder como princpio de

    inteligibilidade de um saber ele mesmo, melhor que empregar a palavra

    anarquia, anarquismo, que no conviria, eu gostaria de jogar com as palavras,

    porque o jogo de palavras no est muito em voga atualmente e porque ele

    provoca bastante problema. Sejamos ainda um pouco contra-corrente e

    faamos um jogo de palavras: ento eu diria que isso que vos proponho um

    tipo de anarqueologia. Dito isso, fazendo um parnteses, se vocs quiserem ler

    um livro interessante de filosofia que acabou de aparecer, eu recomendo mais

    do que qualquer outro, ler o livro de Feyerabend17 sobreningum o diz! o

    problema anarquismo e saber: h nele qualquer coisa de interessante.

    FIM

    17 Paul Feyerabend.Adeus Razo. Traduo de Maria G. Segurado. Lisboa: edies 70, 1991; _____. Contra oMtodo. Traduo de Miguel S. Pereira. Lisboa: Relgio Dgua, 1993.

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    Nenhum poder existe por si! Nenhum poder,

    qualquer que seja, evidente ou inevitvel! Qualquer

    poder, consequentemente, no merece ser aceito no

    jogo! No existe legitimidade intrnseca do poder! E a

    partir dessa posio, a dmarche consiste em

    perguntar-se o que feito do sujeito e das relaes

    de conhecimento no momento em que nenhum poder

    fundado no direito nem na necessidade; no

    momento em que qualquer poder jamais repousa a

    no ser sobre a contingncia e a fragilidade de umahistria; no momento em que o contrato social um

    blefe e a sociedade civil um conto para crianas; no

    momento em que no existe nenhum direito

    universal, imediato e evidente que possa, em todo

    lugar e sempre, sustentar uma relao de poder

    qualquer que ela seja.

    Vocs vem, portanto, que entre isso que se chama,

    grosso modo, a anarquia, o anarquismo e o mtodo

    que eu emprego certo que existe qualquer coisa

    como uma relao.

    Michel Foucault