e-book: 'dos delitos e das penas' de cesare beccaria

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Apresenta DOS DELITOS E DAS PENAS Cesare Beccaria APRESENTAÇÃO Nélson Jahr Garcia (in memorian!) "Dos delitos e das penas" é uma obra que se insere no movimento filosófico e humanitário da segunda metade do século XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros. Na época havia grassado a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva; essa concepção havia induzido à aplicação de punições de conseqüências muito superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos delitos. Prodigalizara-se a prática de torturas, penas de morte, prisões desumanas, banimentos, acusações secretas. Foi contra essa situação que se insurgiu Beccaria. Sua obra foi elogiada por intelectuais, religiosos e nobres (inclusive Catarina da Rússia). As críticas foram poucas, geralmente resultantes de interesses egoísticos de magistrados e clérigos. A humanidade encontrava novos caminhos para garantir a igualdade e a justiça. Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido de novo, especialmente no Brasil. A prática de torturas, entre nós, tem sido cada vez mais freqüente. A pena de morte, que vai sendo abolida em países mais avançados, aqui tem sido proposta por inúmeros políticos raivosos. Crianças ficam encarceradas sob condições cruéis, às vezes bárbaras. Juizes corruptos vivem no conforto de suas mansões. Assassinos frios, por serem influentes, desfrutam de todas as mordomias. Que o espírito de Beccaria nos ilumine.

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  • 1. ApresentaDOS DELITOS E DAS PENASCesare BeccariaAPRESENTAONlson Jahr Garcia (in memorian!)"Dos delitos e das penas" uma obra que se insere no movimento filosfico e humanitrio da segunda metade do sculo XVIII, ao qual pertencem os trabalhos dos Enciclopedistas, como Voltaire, Rousseau, Montesquieu e tantos outros. Na poca havia grassado a tese de que as penas constituam uma espcie de vingana coletiva; essa concepo havia induzido aplicao de punies de conseqncias muito superiores e mais terrveis que os males produzidos pelos delitos. Prodigalizara-se a prtica de torturas, penas de morte, prises desumanas, banimentos, acusaes secretas. Foi contra essa situao que se insurgiu Beccaria. Sua obra foi elogiada por intelectuais, religiosos e nobres (inclusive Catarina da Rssia). As crticas foram poucas, geralmente resultantes de interesses egosticos de magistrados e clrigos. A humanidade encontrava novos caminhos para garantir a igualdade e a justia. Estamos divulgando o texto por acreditarmos que deva ser lido de novo, especialmente no Brasil. A prtica de torturas, entre ns, tem sido cada vez mais freqente. A pena de morte, que vai sendo abolida em pases mais avanados, aqui tem sido proposta por inmeros polticos raivosos. Crianas ficam encarceradas sob condies cruis, s vezes brbaras. Juizes corruptos vivem no conforto de suas manses. Assassinos frios, por serem influentes, desfrutam de todas as mordomias. Que o esprito de Beccaria nos ilumine.

2. BIOGRAFIA DO AUTORCESARE BONESANA, marqus de Beccaria, nasceu em Milo no ano de 1738. Educado em Paris pelos jesutas, entregou-se com entusiasmo ao estudo da literatura e das matemticas. Muita influncia exerceu na formao do seu esprito a leitura das Lettres Persanes de Mostesquieu e de L'Esprit de Helvtius. Desde ento, todas as suas preocupaes se voltaram para o estudo da filosofia. Foi ele um dos fundadores da sociedade literria que se formou em Milo e que, inspirando-se no exemplo da de Helvtius, divulgou os novos princpios da filosofia francesa. Alm disso, a fim de divulgar na Itlia as idias novas, Beccaria fez parte da redao do jornal II Caff, que apareceu de 1764 a 1765. Foi mais ou menos por essa poca que, insurgindo-se contra as injustias dos processos criminais em voga, Beccaria principiou a agitar com os seus amigos, entre os quais se destacavam os irmos Pietro e Alessandro Verri, os complexos problemas relacionados com a matria. Assim teve origem o seu livro Dei Delitti e delle Pene. Receoso de perseguies, o autor mandou imprimir sua obra secretamente, em Livorno, e ainda assim velando muitos pensamentos com expresses vagas e indecisas. O tratado Dos Delitos e das Penas a filosofia francesa aplicada legislao penal: contra a tradio jurdica, invoca a razo e o sentimento; faz-se porta-voz dos protestos da conscincia pblica contra os julgamentos secretos, o juramento imposto aos acusados, a tortura, a confiscao, as penas infamantes, a desigualdade ante o castigo, a atrocidade dos suplcios; estabelece limites entre a justia divina e a justia humana, entre os pecados e os delitos; condena o direito de vingana e toma por base do direito de punir a utilidade social; declara a pena de morte intil e reclama a proporcionalidade das penas aos delitos, assim como a separao do poder judicirio e do poder legislativo. Nenhum livro fora to oportuno e o seu sucesso foi verdadeiramente extraordinrio, sobretudo entre os 3. filsofos franceses. O abade Morellet traduziu-o, Diderot anotou- o, Voltaire comentou-o. d'Alembert, Buffon, Hume, Helvtius, o baro d'Holbach, em suma, todos os grandes homens da Frana manifestaram desde logo a sua admirao e seu entusiasmo. Em 1766, indo a Paris, Beccaria foi alvo das mais vivas demonstraes de simpatia. No entanto, tendo regressado a Milo, cidade que ele no mais abandonou, teve de sofrer uma campanha infamante por parte dos seus adversrios, que ainda se apegavam aos preconceitos e rotina para acus-lo de heresia. A denncia no teve conseqncias, mas Beccaria ressentiu-se de tal forma que o receio de novas perseguies levou-o a renunciar s dissertaes filosficas. Em 1768, o governo austraco, sabedor de que ele recusara as ofertas de Catarina II, que procurara atra-lo para So Petersburgo, criou em seu favor uma ctedra de economia poltica. Beccaria morreu em Milo, em 1794.PREFCIO DO AUTORALGUNS fragmentos da legislao de um antigo povo conquistador, compilados por ordem de um prncipe que reinou h doze sculos em Constantinopla, combinados em seguida com os costumes dos lombardos e amortalhados num volumoso calhamao de comentrios obscuros, constituem o velho acervo de opinies que uma grande parte da Europa honrou com o nome de leis; e, mesmo hoje, o preconceito da rotina, to funesto quanto generalizado, faz que uma opinio de Carpozow (1), uma velha prtica indicada por Claro (2), um suplcio imaginado com brbara complacncia por Francisco (3), sejam as regras que friamente seguem esses homens, que deveriam tremer quando decidem da vida e fortuna dos seus concidados esse cdigo informe, que no passa de produo monstruosa dos sculos mais brbaros, que eu quero examinar nesta obra. Limitar-me-ei, porm, ao sistema criminal, cujos abusos ousarei assinalar aos que esto encarregados de proteger a felicidade pblica, sem preocupao de dar ao meu estilo o 4. encanto que seduz a impacincia dos leitores vulgares. Se pude investigar livremente a verdade, se me elevei acima das opinies comuns, devo tal independncia indulgncia e s luzes do governo sob o qual tenho a felicidade de viver. Os grandes reis e prncipes que querem a felicidade dos homens que governam so amigos da verdade, quando esta lhes revelada por um filsofo que, do fundo do seu retiro, mostra uma coragem isenta de fanatismo e se contenta em combater com as armas da razo as empresas da violncia e da intriga. De resto, examinando-se os abusos de que vamos falar, verificar-se- que os mesmos constituem a stira e a vergonha dos sculos passados, mas no do nosso sculo e dos seus legisladores. Se algum quiser dar-me a honra de criticar meu livro, trate antes de apreender bem o fim que me propus. Longe de pensar em diminuir a autoridade legtima, ver-se- que todos os meus esforos s visam a engrandec-la e esta se engrandecer, de fato, quando a opinio pblica for mais poderosa do que a fora, quando a indulgncia e a humanidade fizerem que se perdoe aos prncipes o seu poder. Crticos houve, cujas intenes no podiam ser honestas, que atacaram esta obra alterando-a (4). Devo interromper-me um instante, para impor silncio mentira azoinada, aos furores do fanatismo, s calnias covardes do dio. Os princpios de moral e de poltica, aceitos entre os homens, derivam em geral de trs fontes: a revelao, a lei natural e as convenes sociais. No se pode estabelecer comparao entre a primeira e as duas ltimas, do ponto-de-vista dos seus fins principais; completam-se, porm, ao tenderem igualmente para tornar os homens felizes na terra. Discutir as relaes das convenes sociais no significa atacar as relaes que podem encontrar-se entre a revelao e a lei natural. Uma vez que esses princpios divinos, embora imutveis, foram de mil modos desnaturados nos espritos corruptos, ou 5. pela maldade humana, ou pelas falsas religies, ou pelas idias arbitrrias da virtude e do vcio, deve parecer necessrio examinar (pondo de lado quaisquer consideraes estranhas) os resultados das simples convenes humanas, quer essas convenes tenham sido feitas realmente, quer se suponham vantajosas para todos. Todas as opinies, todos os sistemas de moral devem reunir-se necessariamente nesse ponto, e nunca se louvariam bastante os louvveis esforos tendentes a reconduzir os mais obstinados e os mais incrdulos aos princpios que levam os homens a viver em sociedade. Podem, pois, distinguir-se trs espcies de virtudes e de vcios, cuja fonte est igualmente na religio, na lei natural e nas convenes polticas. Jamais devem essas trs espcies estar em contradio entre si; no alcanam, contudo, os mesmos resultados e no obrigam aos mesmos deveres. A lei natural exige menos que a revelao, e as convenes sociais menos que a lei natural. Assim, muito importante distinguir bem os efeitos dessas convenes, isto , dos pactos expressos ou tcitos que os homens se impuseram, porque nisso deve residir o exerccio legtimo da fora, nessas relaes de homem a homem, que no exigem a misso especial do Ser supremo. Pode dizer-se, portanto, com razo, que as idias da virtude poltica so variveis. As da virtude natural seriam sempre claras e precisas se as fraquezas e as paixes humanas no empanassem a sua pureza. As idias da virtude religiosa so imutveis e constantes, porque foram imediatamente reveladas pelo prprio Deus, que as conserva inalterveis. Pode, pois, aquele que fala das convenes sociais e dos seus resultados ser acusado de mostrar princpios contrrios, lei natural ou revelao, por nada dizer a respeito?... Se diz que o estado de guerra precedeu a reunio dos homens em sociedade, o caso de compar-lo a Hobbes (5), que no supe para o homem isolado nenhum dever, nenhuma obrigao natural?... No se pode ao - contrrio, considerar o que ele diz como um fato, que foi to somente a conseqncia da corrupo humana e da ausncia das leis? Enfim, no um erro censurar um escritor, que examina os efeitos das convenes sociais, por no admitir 6. antes de tudo a existncia mesma dessas convenes?. A justia divina e a justia natural so, por sua essncia, constantes e invariveis, porque as relaes existentes entre dois objetos da mesma natureza no podem mudar nunca. Mas, a justia humana, ou, se se quiser, a justia poltica, no sendo mais do que uma relao estabelecida entre uma ao e o estado varivel da sociedade, tambm pode variar, medida que essa ao se torne vantajosa ou necessria ao estado social. S se pode determinar bem a natureza dessa justia examinando com ateno as relaes complicadas das inconstantes combinaes que governam os homens. Se todos esses princpios, essencialmente distintos, chegam a confundir-se, j no possvel raciocinar com clareza sobre os assuntos polticos. Cabe aos telogos estabelecer os limites do justo e do injusto, segundo a maldade ou a bondade interiores da ao. Ao publicista cabe determinar tais limites em poltica, isto , sob as relaes do bem e do mal que a ao possa fazer sociedade. Esse ltimo objeto no pode acarretar nenhum prejuzo ao outro, porque todos sabem quanto a virtude poltica est abaixo das virtudes inalterveis que emanam da Divindade. Repito, pois, que, se quiserem dar ao meu livro a honra de uma crtica, no comecem por me atribuir princpios contrrios virtude ou religio, pois tais princpios no so os meus; em lugar de me assinalar como um mpio ou um sedicioso, contentem-se em mostrar que sou mau lgico ou ignorante poltico; no tremam a cada proposio em que defendo os interesses da humanidade; verifiquem a inutilidade de minhas mximas e os perigos que podem ter minhas opinies; faam-me ver as vantagens das prticas recebidas. Dei um testemunho pblico dos meus princpios religiosos e da minha submisso ao soberano, ao responder s Notas e Observaes que se publicaram contra minha obra. Devo guardar silncio em relao aos escritores que doravante s me 7. opuserem as mesmas objees. Mas, aquele que puser em sua crtica a decncia e o respeito que os homens honestos se devem entre si, e quem tiver bastantes luzes para no me obrigar a demonstrar-lhe os princpios mais simples, de qualquer natureza que sejam, encontrar em mim um homem menos apressado a defender suas opinies particulares do que um tranqilo amigo da verdade, pronto a confessar os seus erros.I. INTRODUOAs vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus membros. No entanto, entre os homens reunidos, nota-se a tendncia contnua de acumular no menor nmero os privilgios, o poder e a felicidade, para s deixar maioria misria e fraqueza. S com boas leis podem impedir-se tais abusos. Mas, de ordinrio, os homens abandonam a leis provisrias e prudncia do momento o cuidado de regular os negcios mais importantes, quando no os confiam discrio daqueles mesmos cujo interesse oporem-se s melhores instituies e s leis mais sbias. Alm disso, no seno depois de terem vagado por muito tempo no meio dos erros mais funestos, depois de terem exposto mil vezes a prpria liberdade e a prpria existncia, que, cansados de sofrer, reduzidos aos ltimos extremos, os homens se determinam a remediar os males que os afligem. Ento, finalmente, abrem os olhos a essas verdades palpveis que, por sua simplicidade mesma, escapam aos espritos vulgares, incapazes de analisar os objetos e acostumados a receber sem exame e sobre palavra todas as impresses que se lhes queiram dar. Abramos a histria, veremos que as leis, que deveriam ser convenes feitas livremente entre homens livres, no foram, o mais das vezes, seno o instrumento das paixes da minoria, ou o produto do acaso e do momento, e nunca a obra de um 8. prudente observador da natureza humana, que tenha sabido dirigir todas as aes da sociedade com este nico fim: todo o bem-estar possvel para a maioria. Felizes as naes (se h algumas) que no esperaram que revolues lentas e vicissitudes incertas fizessem do excesso do mal uma orientao para o bem, e que, mediante leis sbias. apressaram a passagem de um para o outro. Como digno de todo o reconhecimento do gnero humano o filsofo (6) que, do fundo do seu retiro obscuro e desprezado, teve a coragem de lanar na sociedade as primeiras sementes por tanto tempo infrutferas das verdades teis! As verdades filosficas, por toda parte divulgadas atravs da imprensa, revelaram enfim as verdadeiras relaes que unem os soberanos aos sditos e os povos entre si. O comrcio animou- se e entre as naes elevou-se uma guerra industrial, a nica digna dos homens sbios e dos povos policiados. Mas, se as luzes do nosso sculo j produziram alguns resultados, longe esto de ter dissipado todos os preconceitos que tnhamos. Ningum se levantou, seno frouxamente, contra a barbrie das penas em uso nos nossos tribunais. Ningum se ocupou com reformar a irregularidade dos processos criminais, essa parte da legislao to importante quanto descurada em toda a Europa. Raramente se procurou destruir, em seus fundamentos, as sries de erros acumulados desde vrios sculos; e muito poucas pessoas tentaram reprimir, pela fora das verdades imutveis, os abusos de um poder sem limites, e fazer cessar os exemplos bem freqentes dessa fria atrocidade que os homens poderosos encaram como um dos seus direitos. Entretanto, os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado ignorncia cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbrie inflige por crimes sem provas, ou por delitos quimricos; o aspecto abominvel dos xadrezes e das masmorras, cujo horror ainda aumentado pelo suplcio mais insuportvel para os infelizes, a incerteza; tantos mtodos odiosos, espalhados por toda parte, deveriam ter despertado a ateno dos filsofos, essa espcie de magistrados que dirigem as opinies humanas. 9. O imortal Montesquieu (7) s ocasionalmente pode abordar essas importantes matrias. Se eu segui as pegadas luminosas desse grande homem, que a verdade uma e a mesma em toda parte. Mas, os que sabem pensar (e somente para estes que escrevo) sabero distinguir meus passos dos seus. Sentir-me-ei feliz se, como ele, puder ser objeto do vosso secreto reconhecimento, oh vs, discpulos obscuros e pacficos da razo! Sentir-me-ei feliz se puder excitar alguma vez esse frmito pelo qual as almas sensveis respondem . voz dos defensores da humanidade! Seria este, talvez, o momento de examinar e distinguir as diferentes espcies de delitos e a maneira de puni-los; mas, o nmero e a variedade dos crimes, segundo as diversas circunstncias de tempo e de lugar, nos lanariam num atalho imenso e fatigante. Contentar-me-ei, pois, com indicar os princpios mais gerais, as faltas mais comuns e os erros mais funestos, evitando igualmente os excessos dos que, por um amor mal entendido da liberdade, procuram introduzir a desordem, e dos que desejariam submeter os homens regularidade. dos claustros. Mas, qual a origem das penas, e qual o fundamento do direito de punir? Quais sero as punies aplicveis aos diferentes crimes? Ser a pena de morte verdadeiramente til, necessria, indispensvel para a segurana e a boa ordem da sociedade? Sero justos os tormentos e as torturas? Conduziro ao fim que as leis se propem? Quais os melhores meios de prevenir os delitos? Sero as mesmas penas igualmente teis em todos os tempos? Que influncia exercem sobre os costumes? Todos esses problemas merecem que se procure resolv-los com essa preciso geomtrica que triunfa da destreza dos sofismas, das dvidas tmidas e das sedues da eloqncia. Sentir-me-ia feliz se no tivesse outro mrito alm do de ter sido o primeiro que apresentou na Itlia, com maior clareza, o que outras naes ousaram escrever e comeam a praticar. 10. Mas, se, ao sustentar os direitos do gnero humano e da verdade invencvel, contribu para salvar da morte atroz algumas das trmulas vtimas da tirania ou da ignorncia igualmente funesta, as bnos e as lgrimas de um nico inocente reconduzido aos sentimentos da alegria e da felicidade consolar- me-iam do desprezo do resto dos homens.II. ORIGEM DAS PENAS E DIREITO DE PUNIRA MORAL poltica no pode proporcionar sociedade nenhuma vantagem durvel, se no for fundada sobre sentimentos indelveis do corao do homem. Toda lei que no for estabelecida sobre essa base encontrar sempre uma resistncia qual ser constrangida a ceder. Assim, a menor fora, continuamente aplicada, destri por fim um corpo que parea slido, porque lhe comunicou um movimento violento. Consultemos, pois, o corao humano; acharemos nele os princpios fundamentais do direito de punir. Ningum fez gratuitamente o sacrifcio de uma poro de sua liberdade visando unicamente ao bem pblico. Tais quimeras s se encontram nos romances. Cada homem s por seus interesses est ligado s diferentes combinaes polticas deste globo; e cada qual desejaria, se fosse possvel, no estar ligado pelas convenes que obrigam os outros homens. Sendo a multiplicao do gnero humano, embora lenta e pouco considervel, muito superior aos meios que apresentava a natureza estril e abandonada, para satisfazer necessidades que se tornavam cada dia mais numerosas e se cruzavam de mil maneiras, os primeiros homens, at ento selvagens, se viram forados a reunir-se. Formadas algumas sociedades, logo se estabeleceram novas, na necessidade em que se ficou de resistir s primeiras, e assim viveram essas hordas, como tinham feito os indivduos, num contnuo estado de guerra entre si. As leis foram as condies que reuniram os homens, a princpio independentes e isolados sobre a superfcie da terra. Cansados de s viver no meio de temores e de encontrar 11. inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a incerteza de conserv-la tornava intil, sacrificaram uma parte dela para gozar do resto com mais segurana. A soma de todas essas pores de liberdade, sacrificadas assim ao bem geral, formou a soberania da nao; e aquele que foi encarregado pelas leis do depsito das liberdades e dos cuidados da administrao foi proclamado o soberano do povo. No bastava, porm, ter formado esse depsito; era preciso proteg-lo contra as usurpaes de cada particular, pois tal a tendncia do homem para o despotismo, que ele procura sem cessar, no s retirar da massa comum sua poro de liberdade, mas ainda usurpar a dos outros. Eram necessrios meios sensveis e bastante poderosos para comprimir esse esprito desptico, que logo tornou a mergulhar a sociedade no seu antigo caos. Esses meios foram as penas estabelecidas contra os infratores das leis. Disse eu que esses meios tiveram de ser sensveis, porque a experincia fez ver quanto a maioria est longe de adotar princpios estveis de conduta. Nota-se, em todas as partes do mundo fsico e moral, um princpio universal de dissoluo, cuja ao s pode ser obstada nos seus efeitos sobre a sociedade por meios que impressionam imediatamente os sentidos e que se fixam nos espritos, para contrabalanar por impresses vivas a fora das paixes particulares, quase sempre opostas ao bem geral. Qualquer outro meio seria insuficiente. Quando as paixes so vivamente abaladas pelos objetos presentes, os mais sbios discursos, a eloqncia mais arrebatadora, as verdades mais sublimes, no passam, para elas, de um freio impotente que logo despedaam. Por conseguinte, s a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; da resulta que cada um s consente em pr no depsito comum a menor poro possvel dela, isto , precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mant-lo na posse do resto. O conjunto de todas essas pequenas pores de liberdade o 12. fundamento do direito de punir. Todo exerccio do poder que se afastar dessa base abuso e no justia; um poder de fato e no de direito (8); uma usurpao e no mais um poder legtimo. As penas que ultrapassam a necessidade de conservar o depsito da salvao pblica so injustas por sua natureza; e tanto mais justas sero quanto mais sagrada e inviolvel for a segurana e maior a liberdade que o soberano conservar aos sditos.III. CONSEQUNCIAS DESSES PRINCPIOSA PRIMEIRA conseqncia desses princpios que s as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais no pode residir seno na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Ora, o magistrado, que tambm faz parte da sociedade, no pode com justia infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que no seja estatuda pela lei; e, do momento em que o juiz mais severo do que a lei, ele injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que j est determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem pblico, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidado. A segunda conseqncia que o soberano, que representa a prpria sociedade, s pode fazer leis gerais, s quais todos devem submeter-se; no lhe compete, porm, julgar se algum violou essas leis. Com efeito, no caso de um delito, h duas partes: o soberano, que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que nega essa violao. preciso, pois, que haja entre ambos um terceiro que decida a contestao. Esse terceiro o magistrado, cujas sentenas devem ser sem apelo e que deve simplesmente pronunciar se h um delito ou se no h. Em terceiro lugar, mesmo que a atrocidade das mesmas no fosse reprovada pela filosofia, me das virtudes benficas e, por essa razo, esclarecida, que prefere governar homens felizes e 13. livres a dominar covardemente um rebanho de tmidos escravos; mesmo que os castigos cruis no se opusessem diretamente ao bem pblico e ao fim que se lhes atribui, o de impedir os crimes, bastar provar que essa crueldade intil, para que se deva consider-la como odiosa, revoltante, contrria a toda justia e prpria natureza do contrato social.IV. DA INTERPRETAO DAS LEISRESULTA ainda, dos princpios estabelecidos precedentemente, que os juizes dos crimes no podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela razo mesma de que no so legisladores. Os juizes no receberam as leis como uma tradio domstica, ou como um testamento dos nossos antepassados, que aos seus descendentes deixaria apenas a misso de obedecer. Recebem- nas da sociedade viva, ou do soberano, que representante dessa sociedade, como depositrio legtimo do resultado atual da vontade de todos. No se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigao de executar antigas convenes (9); essas velhas convenes so nulas, pois no puderam ligar vontades que no existiam. No se pode sem injustia exigir sua execuo; seria reduzir os homens a no passar de um vil rebanho sem vontade e sem direitos. As leis emprestam sua fora da necessidade de orientar os interesses particulares para o bem geral e do juramento formal ou tcito que os cidados vivos voluntariamente fizeram ao rei. Qual ser, pois o legtimo intrprete das leis? O soberano, isto , o depositrio das vontades atuais de todos; e no o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou no um ato contrrio s leis. O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a menor, a ao conforme ou no lei; a conseqncia, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um raciocnio a mais, ou se o fizer por conta prpria, tudo se torna incerto e obscuro. 14. Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que preciso consultar o esprito da lei. Adotar tal axioma romper todos os diques e abandonar as leis torrente das opinies. Essa verdade me parece demonstrada, embora parea um. paradoxo aos espritos vulgares que se impressionam mais fortemente com uma pequena desordem atual do que com conseqncias distantes, mas mil vezes mais funestas, de um s princpio falso estabelecido numa nao. Todos os nossos conhecimentos, todas as nossas idias se mantm. Quanto mais complicadas, tanto maiores so as suas relaes e resultados. Cada homem tem sua maneira prpria de ver; e o mesmo homem, em diferentes pocas, v diversamente os mesmos objetos. O esprito de uma lei seria, pois, o resultado da boa ou m lgica de um juiz, de uma digesto fcil ou penosa, da fraqueza do acusado, da violncia das paixes do magistrado, de suas relaes com o ofendido, enfim, de todas as pequenas causas que mudam as aparncias e desnaturam os objetos no esprito inconstante do homem. Veramos, assim, a sorte de um cidado mudar de face ao passar para outro tribunal, e a vida dos infelizes estaria merc de um falso raciocnio, ou do mau humor do juiz. Veramos o magistrado interpretar apressadamente as leis, segundo as idias vagas e confusas que se apresentassem ao seu esprito. Veramos os mesmos delitos punidos diferentemente, em diferentes tempos, pelo mesmo tribunal, porque, em lugar de escutar a voz constante e invarivel das leis, ele se entregaria instabilidade enganosa das interpretaes arbitrrias. Podem essas irregularidades funestas ser postas em paralelo com os inconvenientes momentneos que s vezes produz a observao literal das leis? Talvez esses inconvenientes passageiros obriguem o legislador a fazer, no texto equvoco de uma lei, correes necessrias e fceis. Mas, seguindo a letra da lei, no se ter ao menos que temer esses raciocnios perniciosos, nem essa 15. licena envenenada de tudo explicar de maneira arbitrria e muitas vezes com inteno venal. Quando as leis forem fixas e literais, quando s confiarem ao magistrado a misso de examinar os atos dos cidados, para decidir se tais atos so conformes ou contrrios lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instrudo, no for um motivo de controvrsia, mas simples questo de fato, ento no mais se vero os cidados submetidos ao jugo de uma multido de pequenos tiranos, tanto mais insuportveis quanto menor a distncia entre o opressor e o oprimido; tanto mais cruis quanto maior resistncia encontram, porque a crueldade dos tiranos proporcional, no s suas foras, mas aos obstculos que se lhes opem; tanto mais funestos quanto ningum pode livrar-se do seu jugo seno submetendo-se ao despotismo de um s. Com leis penais executadas letra, cada cidado pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ao reprovvel; e isso til, porque tal conhecimento poder desvi-lo do crime. Gozar com segurana de sua liberdade e dos seus bens; e isso justo, porque esse o fim da reunio dos homens em sociedade. verdade, tambm, que os cidados adquiriro assim um certo esprito de independncia e sero menos escravos dos que ousaram dar o nome sagrado de virtude covardia, s fraquezas e s complacncias cegas; estaro, porm, menos submetidos s leis e autoridade dos magistrados. Tais princpios desagradaro sem dvida aos dspotas subalternos que se arrogaram o direito de esmagar seus inferiores com o peso da tirania que sustentam. Tudo eu poderia recear, se esses pequenos tiranos se lembrassem um dia de ler o meu livro e entend-lo; mas, os tiranos no lem.V. DA OBSCURIDADE DAS LEISSE a interpretao arbitrria das leis um mal, tambm o a sua obscuridade, pois precisam ser interpretadas. Esse inconveniente bem maior ainda quando as leis no so escritas em lngua vulgar (10). 16. Enquanto o texto das leis no for um livro familiar, uma espcie de catecismo, enquanto forem escritas numa lngua morta e ignorada do povo, e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos orculos, o cidado, que no puder julgar por si mesmo as conseqncias que devem ter os seus prprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens, ficar na dependncia de um pequeno nmero de homens depositrios e intrpretes das leis. Colocai o texto sagrado das leis nas mos do povo, e, quanto mais homens houver que o lerem, tanto menos delitos haver; pois no se pode duvidar que no espirito daquele que medita um crime, o conhecimento e a certeza das penas ponham freio eloqncia das paixes. Que pensar dos homens,, quando se reflete que as leis da maior parte das naes esto escritas em lnguas mortas e que esse costume brbaro ainda subsiste nos pases mais esclarecidos da Europa? Dessas ltimas reflexes resulta que, sem um corpo de leis escritas, jamais uma sociedade poder tomar uma forma de governo fixo, em que a fora resida no corpo poltico e no nos membros desse corpo; em que as leis no possam alterar-se e destruir-se pelo choque dos interesses particulares, nem reformar-se seno pela vontade geral. A razo e a experincia fizeram ver quantas tradies humanas se tornam mais duvidosas e mais contestadas, medida que a gente se afasta de sua fonte. Ora, se no existe um momento estvel do pacto social, como resistiro as leis ao movimento sempre vitorioso do tempo e das paixes? V-se por a, igualmente, a utilidade da imprensa, que pode, s ela, tornar todo o pblico, e no alguns particulares, depositrio do cdigo sagrado das leis. Foi a imprensa que dissipou esse tenebroso esprito de cabala e de intriga, que, no pode suportar a luz e que finge desprezar as 17. cincias somente porque secretamente as teme. Se agora, na Europa, diminuem esses crimes atrozes que assombravam nossos pais, se samos enfim desse estado de barbrie que tornava nossos antepassados ora escravos ora tiranos, imprensa que o devemos. Os que conhecem a histria de dois ou trs sculos e do nosso podem ver a humanidade, a generosidade, a tolerncia mtua e as mais doces virtudes nasceram no seio do luxo e da indolncia. Quais foram, ao contrrio, as virtudes dessas pocas que, to sem propsitos, se chamam sculos da boa f e da simplicidade antiga? A humanidade gemia sob o jugo da implacvel superstio; a avareza e a ambio de um pequeno nmero de homens poderosos inundavam de sangue humano os palcios dos grandes e os tronos dos reis. Eram traies secretas e morticnios pblicos. O povo s encontrava na nobreza opressores e tiranos; e os ministros do Evangelho, manchados na carnificina e as mos ainda sangrentas, ousavam oferecer aos olhos do povo um Deus de misericrdia e de paz. Os que se levantam contra a pretensa corrupo do grande sculo em que vivemos no acharo ao menos que esse quadro abominvel possa convir-lhe.VI. DA PRISOOUTORGA-SE, em geral, aos magistrados encarregados de fazer as leis, um direito contrrio ao fim da sociedade, que a segurana pessoal; refiro-me ao direito de prender discricionariamente os cidados, de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frvolos, e, por conseguinte de deixar livres os que eles protegem, mau grado todos os indcios do delito. Como se tornou to comum um erro to funesto? Embora a priso difira das outras penas, por dever necessariamente preceder a declarao jurdica do delito, nem por isto deixa de ter, como todos os outros gneros de castigos, o carter essencial de 18. que s a lei deve determinar o caso em que preciso empreg-la. Assim, a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que indcios de delito um acusado pode ser preso e submetido a interrogatrio. O clamor pblico, a fuga, as confisses particulares, o depoimento de um cmplice do crime, as ameaas que o acusado pode fazer, seu dio inveterado ao ofendido, um corpo de delito existente, e outras presunes semelhantes, bastam para permitir a priso de um cidado. Tais indcios devem, porm, ser especificados de maneira estvel pela lei, e no pelo juiz, cujas sentenas se tornam um atentado liberdade pblica, quando no so simplesmente a aplicao particular de uma mxima geral emanada do cdigo das leis. medida que as penas forem mais brandas, quando as prises j no forem a horrvel manso do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade penetrarem nas masmorras, quando enfim os executores impiedosos dos rigores da justia abrirem os coraes compaixo, as leis podero contentar-se com indcios mais fracos para ordenar a priso. A priso no deveria deixar nenhuma nota de infmia sobre o acusado cuja inocncia foi juridicamente reconhecida. Entre os romanos, quantos cidados no vemos, acusados anteriormente de crimes hediondos, mas em seguida reconhecidos inocentes, receberem da venerao do povo os primeiros cargos do Estado? Porque to diferente, em nossos dias, a sorte de um inocente preso? porque o sistema atual da jurisprudncia criminal apresenta aos nossos espritos a idia da fora e do poder, em lugar da justia; porque se lanam, indistintamente, na mesma masmorra, o inocente suspeito e o criminoso convicto; porque a priso, entre ns, antes um suplcio que um meio de deter um acusado; porque, finalmente, as foras que defendem externamente o trono e os direitos da nao esto separadas das que mantm as leis no interior, quando deveriam estar estreitamente unidas. 19. Na opinio pblica, as prises militares desonram bem menos do que as prises civis. Se as tropas do Estado, reunidas sob a autoridade das leis comuns, sem contudo dependerem imediatamente dos magistrados, fossem encarregadas da guarda das prises, a mancha de infmia desapareceria ante o aparato e o fausto que acompanham os corpos militares; porque, em geral, a infmia, como tudo o que depende das opinies populares, se liga mais forma do que ao fundo. Mas, como as leis e os costumes de um povo esto sempre atrasados de vrios sculos em relao s luzes atuais, conservamos ainda a barbrie e as idias ferozes dos caadores do norte, nossos selvagens antepassados. Os nossos costumes e as nossas leis retardatrias esto bem longe das luzes dos povos. Ainda estamos dominados pelos preconceitos brbaros que nos legaram os nossos avs, os brbaros caadores do norte.VII. DOS INDCIOS DO DELITO E DA FORMA DOS JULGAMENTOSEIS um teorema geral, que pode ser muito til para calcular a certeza de um fato e, principalmente, o valor dos indcios de um delito: Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si, isto , quando os indcios do delito no se sustentam seno uns pelos outros, quando a fora de vrias provas depende da verdade de uma s, o nmero dessas provas nada acrescenta nem subtrai probabilidade do fato: merecem pouca considerao, porque, destruindo a nica prova que parece certa, derrubais todas as outras. Mas, quando as provas so independentes, isto quando cada indcio se prova parte, quanto mais numerosos forem esses indcios, tanto mais provvel ser o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes. No se admirem de ver-me empregar a palavra probabilidade 20. ao tratar de crimes que, para merecerem um castigo, devem ser certos; porque, a rigor, toda certeza moral apenas uma probabilidade, que merece, contudo, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de bom senso forado a dar-lhe o seu assentimento, por uma espcie de hbito natural que resulta da necessidade de agir que anterior a toda especulao. A certeza que se exige para convencer um culpado , pois, a mesma que determina todos os homens nos seus mais importantes negcios. As provas de um delito podem distinguir-se em provas perfeitas e provas imperfeitas. As provas perfeitas so as que demonstram positivamente que impossvel que o acusado seja inocente. As provas so imperfeitas quando no excluem a possibilidade da inocncia do acusado. Uma nica prova perfeita suficiente para autorizar a condenao; se se quiser, porm, condenar sobre provas imperfeitas, como cada uma dessas provas no estabelece a impossibilidade da inocncia do acusado, preciso que sejam em nmero muito grande para valerem uma prova perfeita, isto , para provarem todas juntas que impossvel que o acusado no seja culpado. Acrescentarei ainda que as provas imperfeitas, s quais o acusado nada responde de satisfatrio, embora deva, se inocente, ter meios de justificar-se, se tornam por isso mesmo provas perfeitas. , todavia, mais fcil sentir essa certeza moral de um delito do que defini-la exatamente. Eis o que me faz encarar como sbia a lei que, em algumas naes, d ao juiz principal assessores que o magistrado no escolheu, mas que a sorte designou livremente; porque ento a ignorncia, que julga por sentimento, est menos sujeita ao erro do que homem instrudo que decide segundo a incerta opinio. Quando as leis so claras e precisas, o dever do juiz limita-se constatao do fato. Se so necessrias destreza e habilidade 21. na investigao das provas de um delito, se se requerem clareza e preciso na maneira de apresentar o seu resultado, para julgar segundo esse mesmo resultado, basta o simples bom-senso: guia menos enganador do que todo o saber de um juiz acostumado a s procurar culpados por toda parte e levar tudo ao sistema que adotou segundo os seus estudos. Felizes as naes entre as quais o conhecimento das leis no uma cincia. Lei sbia e cujos efeitos so sempre felizes a que prescreve que cada um seja julgado por seus iguais; porque, quando se trata da fortuna e da liberdade de um cidado, todos os sentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar. Ora, o desprezo com o qual o homem poderoso olha para a vitima do infortnio, e a indignao que experimenta o homem de condio medocre ao ver o culpado que est acima dele por sua condio, so sentimentos perigosos que no existem nos julgamentos de que falo. Quando o culpado e o ofendido esto em condies desiguais, os juizes devem ser escolhidos, metade entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido, para contrabalanar assim os interesses pessoais, que modificam, mau grado nosso, as aparncias dos objetos, e para s deixar falar a verdade e as leis. Igualmente justo que o culpado possa recusar um certo nmero dos juizes que lhe forem suspeitos, e, se o acusado gozar constantemente desse direito, exerc-lo- com reserva; porque de outro modo pareceria condenar-se a si mesmo. Sejam pblicos os julgamentos; sejam-no tambm as provas do crime: e a opinio, que talvez o nico lao das sociedades, por freio violncia e s paixes. O povo dir: No somos escravos, mas protegidos pelas leis. Esse sentimento de segurana, que inspira a coragem, eqivale a um tributo para o soberano que compreende os seus verdadeiros interesses. No entrarei em outros pormenores sobre as precaues que 22. exige o estabelecimento dessas espcies de instituies. Para aqueles aos quais necessrio tudo dizer, tudo eu diria inutilmente.VIII. DAS TESTEMUNHAS IMPORTANTE, em toda boa legislao, determinar de maneira exata o grau de confiana que se deve dar s testemunhas e a natureza das provas necessrias para constatar o delito. Todo homem razovel, isto , todo homem que puser ligao em suas idias e que experimentar as mesmas sensaes que os outros homens, poder ser recebido em testemunho. Mas, a confiana que se lhe der deve medir-se pelo interesse que ele tem de dizer ou no dizer a verdade. , pois, por motivos frvolos e absurdos que as leis no admitem em testemunho nem as mulheres, por causa de sua franqueza, nem os condenados, porque estes morreram civilmente, nem as pessoas com nota de infmia, porque, em todos esses casos, uma testemunha pode dizer a verdade, quando no tem nenhum interesse em mentir. Entre os abusos de palavras que tiveram certa influncia sobre os negcios deste mundo, um dos mais notveis o que faz considerar como nulo o depoimento de um culpado j condenado. Graves jurisconsultos fazem este raciocnio Este homem foi atingido por morte civil; ora, um morto j no capaz de nada... Muitas vtimas se sacrificaram a essa v metfora: e muitas vezes se tem contestado seriamente verdade santa o direito de preferncia sobre as formas judicirias. Sem dvida, preciso que os depoimentos de um culpado j condenado no possam retardar o curso da justia; mas porque, aps a sentena, no conceder aos interesses da verdade e terrvel situao do culpado alguns instantes ainda, para justificar, se possvel, ou aos seus cmplices ou a si prprio, com depoimentos novos que mudam a natureza do fato? As formalidades e criteriosas procrastinaes so necessrias 23. nos processos criminais, ou porque no deixam nada arbitrariedade do juiz, ou porque fazem compreender ao povo que os julgamentos so feitos com solenidade e segundo as regras, e no precipitadamente ditados polo interesse; ou, finalmente, porque a maior parte dos homens, escravos do hbito, e mais inclinados a sentir do que raciocinar, fazem assim uma idia mais augusta das funes do magistrado. A verdade, muitas vezes demasiado simples ou demasiado complicada, tem necessidade de certa pompa exterior para merecer o respeito do povo. As formalidades, porm, devem ser fixadas, por leis, nos limites em que no possam prejudicar a verdade. De outro modo, seria uma nova fonte de inconvenientes funestos. Disse eu que se podia admitir em testemunho toda pessoa que no tem nenhum interesse em mentir. Deve, pois, conceder-se testemunha mais ou menos confiana, propores do dio ou da amizade que ela tem ao acusado e de outras relaes mais ou menos estreitas que ambos mantenham. Uma s testemunha no basta porque, negando o acusado o que a testemunha afirma, no h nada de certo e a justia deve ento respeitar o direito que cada um tem de ser julgado inocente (11). Deve dar-se s testemunhas um crdito tanto mais circunspecto quanto mais atrozes so os crimes e mais inverosmeis as circunstncias. Tais so, por exemplo, as acusaes de magia e as aes gratuitamente cruis. No primeiro caso, melhor acreditar que as testemunhas mentem, porque mais comum ver vrios homens caluniarem de concerto, por dio ou por ignorncia, do que ver um s homem exercer um poder que Deus recusou a todo ser criado. Da mesma forma, no se deve admitir com precipitao a acusao de uma crueldade sem motivos, porque o homem s cruel por interesse, por dio ou por temor. O corao humano incapaz de um sentimento intil; todos os seus sentimentos so o 24. resultado das impresses que os objetos causaram sobre os sentidos. Deve, igualmente, dar-se menos crdito a um homem que membro de uma ordem, ou de uma casta, ou de uma sociedade particular, cujos costumes e mximas so em geral desconhecidos, ou diferem dos usos comuns, porque, alm de suas prprias paixes, esse homem tem ainda as paixes da sociedade da qual faz parte. Enfim, os depoimentos das testemunhas devem ser quase nulos, quando se trata de algumas palavras das quais se quer fazer um crime; porque o tom, os gestos e tudo o que precede ou segue as diferentes idias que os homens ligam a suas palavras, alteram e modificam de tal modo os discursos que quase impossvel repeti-los com exatido. As aes violentas, que constituem os verdadeiros delitos, deixam traos notveis na maioria das circunstncias que as acompanham e efeitos que das mesmas derivam; mas, as palavras no deixam vestgio e s subsistem na memria, quase sempre infiel e muitas vezes influenciadas, dos que as ouviram. , pois, infinitamente mais fcil fundar uma calnia sobre discursos do que sobre aes, pois o nmero das circunstncias que se alegam para provar as aes fornece ao acusado mais recursos para justificar-se; ao passo que um delito de palavras no apresenta, de ordinrio, nenhum meio de justificao.IX. DAS ACUSAES SECRETASAS acusaes secretas so um abuso manifesto, mas consagrado e tornado necessrio em vrios governos, pela fraqueza de sua constituio. Tal uso torna os homens falsos e prfidos. Aquele que suspeita um delator no seu concidado v nele logo um inimigo. Costumam, ento, mascarar-se os prprios sentimentos; e o hbito de ocult-los a outrem faz que cedo sejam dissimulados a si mesmo. Como os homens que chegaram a esse ponto funesto so 25. dignos de piedade! Desorientados, sem guia e sem princpios estveis, vagam ao acaso no vasto mar da incerteza, preocupados exclusivamente em escapar aos monstros que os ameaam. Um futuro cheio de mil perigos envenena para eles os momentos presentes. Os prazeres durveis da tranqilidade e da segurana lhes so desconhecidos. Se gozaram., apressadamente e na confuso, de alguns instantes de felicidade espalhados aqui e ali sobre o triste curso de sua desgraada vida, bastaro para consol-los de ter vivido? Ser entre tais homens que encontraremos soldados intrpidos, defensores da ptria e do trono? Acharemos entre eles magistrados incorruptveis, que saibam sustentar e desenvolver os verdadeiros interesses do soberano, com uma eloqncia livre e patritica, que deponham ao mesmo tempo aos ps do monarca os tributos e as bnos de todos os cidados, que levem ao palcio dos grandes e ao humilde teto do pobre a segurana, a paz, a confiana, e que dem ao trabalho e indstria a esperana de uma sorte cada vez mais doce?... sobretudo este ltimo sentimento que reanima os Estados e lhes d uma vida nova. Quem poder defender-se da calnia, quando esta se arma com o escudo mais slido da tirania: o sigilo?... Miservel governo aquele em que o soberano suspeita um inimigo em cada sdito e se v forado, para garantir a tranqilidade pblica, a perturbar a de cada cidado! Quais so, pois, os motivos sobre os quais se apoiam os que justificam as acusaes e as penas secretas? A tranqilidade pblica? A segurana e a manuteno da forma de governo? mister confessar que estranha constituio aquela em que o governo, que tem por si a fora e a opinio, ainda mais poderosa do que a fora, parece todavia temer cada cidado! Receia-se que o acusador no esteja em segurana? As leis so, ento, insuficientes para defend-lo, e os sditos so mais poderosos do que o soberano e as leis. 26. Desejar-se-ia salvar o delator da infmia a que se expe? Seria, ento, confessar que se autorizam as calnias secretas, mas que se punem as calnias pblicas. Apoiar-se-o na natureza do delito? Se o governo for bastante infeliz para considerar como crimes certos atos indiferentes ou mesmo teis ao pblico, ter razo: as acusaes e os julgamentos, nesse caso, jamais seriam bastante secretos. Pode haver, porm, um delito, isto , uma ofensa sociedade, que no seja do interesse de todos punir publicamente? Respeito todos os governos; no falo de nenhum em particular e sei que h circunstncias em que os abusos parecem de tal modo inerentes constituio de um Estado, que no parece possvel desarraig- los sem destruir o corpo poltico. Mas, se eu tivesse de ditar novas leis em algum canto isolado do universo, minha mo trmula se recusaria a autorizar as acusaes secretas: julgaria ver toda a posteridade responsabilizar-me pelos males atrozes que elas acarretam. J o disse Montesquieu: as acusaes pblicas so conformes ao esprito do governo republicano, no qual o zelo do bem geral deve ser a primeira paixo dos cidados. Nas monarquias, em que o amor da ptria muito fraco, pela prpria natureza do governo, sbia a instituio de magistrados encarregados de acusar, em nome do pblico, os infratores das leis. Mas, todo governo, republicano ou monrquico, deve infligir ao caluniador a pena que o acusado sofreu, se ele for culpado.X. DOS INTERROGATRIOS SUGESTIVOSNOSSAS leis probem os interrogatrios sugestivos, isto , os que se fazem sobre o fato mesmo do delito; porque, segundo os nossos jurisconsultos, s se deve interrogar sobre a maneira pela qual o crime foi cometido e sobre as circunstncias que o acompanham. Um juiz no pode, contudo, permitir as questes diretas, que sugiram ao acusado uma resposta imediata. O juiz que interroga, dizem os criminalistas, s deve ir ao fato indiretamente, e nunca 27. em linha reta. Se se estabeleceu esse mtodo para evitar sugerir ao acusado uma resposta que o salve, ou por que foi considerada coisa monstruosa e contra a natureza um homem acusar-se a si mesmo, qualquer que tenha sido o fim visado com a proibio dos interrogatrios sugestivos, fez-se cair as leis numa contradio bem notria, pois que ao mesmo tempo se autorizou a tortura. Haver, com efeito, interrogatrio mais sugestivo do que a dor? O celerado robusto, que pode evitar uma pena longa e rigorosa, sofrendo com fora tormentos de um instante, guarda um silncio obstinado e se v absolvido. Mas, a questo arranca ao homem fraco uma confisso pela qual ele se livra da dor presente, que o afeta mais fortemente do que todos os males futuros. E, se um interrogatrio especial contrrio natureza, obrigando o acusado a acusar-se a si mesmo, no ser ele constrangido a isso mais violentamente pelos tormentos e as convulses da dor? Os homens, porm, se ocupam muito mais, em sua norma de conduta, com a diferena das palavras do que com a das coisas. Observemos, finalmente, que aquele que se obstina a no responder ao interrogatrio a que submetido merece sofrer uma pena que deve ser fixada pelas leis. mister que essa pena seja muito pesada; porque o silncio de um criminoso, perante o juiz que o interroga, para a sociedade um escndalo e a justia uma ofensa que cumpre prevenir tanto quanto possvel. Mas, essa pena particular j no necessria quando o crime j foi constatado e o criminoso convencido, pois nesse caso o interrogatrio se torna intil. Semelhantemente, as confisses do acusado no so necessrias quando provas suficientes demonstraram que ele evidentemente culpado do crime de que se trata. Este ltimo caso o mais ordinrio; e a experincia 28. mostra que, na maior parte dos processos criminais, os culpados negam tudo.XI. DOS JURAMENTOSOUTRA contradio entre as leis e os sentimentos naturais exigir de um acusado o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em cal-la. Como se o homem pudesse jurar de boa f que vai contribuir para sua prpria destruio! Como se, o mais das vezes, a voz do interesse no abafasse no corao humano a da religio! A histria de todos os sculos prova que esse dom sagrado do cu a coisa de que mais se abusa. E como a respeitaro os celerados, se ela diariamente ultrajada pelos homens considerados mais sbios e mais virtuosos? Os motivos que a religio ope ao temor dos tormentos e ao amor vida so quase sempre fracos demais, porque no impressionam os sentidos. As coisas do cu esto submetidas a leis inteiramente diversas das da terra. Porque comprometer essas leis umas com as outras? Porque colocar o homem na atroz alternativa de ofender a Deus, ou perder-se? E no deixar ao acusado seno a escolha de ser mau cristo ou mrtir do juramento. Destri-se dessa forma toda a fora dos sentimentos religiosos, nico apoio da honestidade no corao da maior parte dos homens; e pouco a pouco os juramentos no so mais do que uma simples formalidade sem conseqncias. Consulte-se a experincia e se reconhecer que os juramentos so inteis, pois no h juiz que no convenha que jamais o juramento faz o acusado dizer a verdade. A razo faz ver que assim deve ser, porque todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem so vs e conseguintemente funestas. Tais leis podem ser comparadas a um dique que se elevasse diretamente no meio das guas de um rio para interromper-lhe o curso: ou o dique imediatamente derrubado pela torrente que o 29. leva, ou se forma debaixo dele um abismo que o mina e o destri insensivelmente.XII. DA QUESTO OU TORTURA uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele a confisso do crime, quer para esclarecer as contradies em que caiu, quer para descobrir os cmplices ou outros crimes de que no acusado, mas do qual poderia ser culpado, quer enfim porque sofistas incompreensveis pretenderam que a tortura purgava a infmia. Um homem no pode ser considerado culpado antes da sentena do juiz; e a sociedade s lhe pode retirar a proteo pblica depois que ele se convenceu de ter violado as condies com as quais estivera de acordo. O direito da fora s pode, pois, autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidado quando ainda se duvida se ele inocente ou culpado. Eis uma proposio bem simples: ou o delito certo, ou incerto. Se certo, s deve ser punido com a pena fixada pela lei, e a tortura intil, pois j no se tem necessidade das confisses do acusado. Se o delito incerto, no hediondo atormentar um inocente? Com efeito, perante as leis, inocente aquele cujo delito no se provou. Qual o fim poltico dos castigos? o terror que imprimem nos coraes inclinados ao crime. Mas, que se deve pensar das torturas, esses suplcios secretos que a tirania emprega na obscuridade das prises e que se reservam tanto ao inocente como ao culpado? Importa que nenhum delito conhecido fique impune; mas, nem sempre til descobrir o autor de um delito encoberto nas trevas da incerteza. Um crime j cometido, para o qual j no h remdio, s pode ser punido pela sociedade poltica para impedir que os outros 30. homens cometam outros semelhantes pela esperana da impunidade. Se verdade que a maioria dos homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude, se provvel que um cidado prefira segui-las a viol-las, o juiz que ordena a tortura expe-se constantemente a atormentar inocentes. Direi ainda que monstruoso e absurdo exigir que um homem seja acusador de si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade pelos tormentos, como se essa verdade residisse nos msculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura uma lei que diz: "Homens, resisti dor. A natureza vos deu um amor invencvel ao vosso ser, e o direito inalienvel de vos defenderdes; mas, eu quero criar em vs um sentimento inteiramente contrrio; quero inspirar-vos um dio de vs mesmos; ordeno-vos que vos tomeis vossos prprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que vos quebraro os ossos e vos dilacerao os msculos... " Esse meio infame de descobrir a verdade um monumento da brbara legislao dos nossos antepassados, que honravam com o nome de julgamentos de Deus as provas de fogo, as da gua fervendo e a sorte incerta dos combates. Como se os elos dessa corrente eterna, cuja origem est no seio da Divindade, pudessem desunir-se ou romper-se a cada instante, ao sabor dos caprichos e das frvolas instituies dos homens! A nica diferena existente entre a tortura e as provas de fogo que a tortura s prova o crime quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas queimantes deixavam uma marca exterior, considerada como prova do crime. Todavia, essa diferena mais aparente do que real. O acusado to capaz de no confessar o que se exige dele quanto o era outrora de impedir, sem fraude, os efeitos do fogo e da gua fervendo. Todos os atos da nossa vontade so proporcionais fora das impresses sensveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem limitada. Ora, se a impresso da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder da alma, ela no deixa a quem a sofre 31. nenhuma outra atividade que exercer seno tomar, no momento, a via mais curta para evitar os tormentos atuais. Dessa forma, o acusado j no pode deixar de responder, pois no poderia escapar s impresses do fogo e da gua. O inocente exclamar, ento, que culpado, para fazer cessar torturas que j no pode suportar; e o mesmo meio empregado para distinguir o inocente do criminoso far desaparecer toda diferena entre ambos. A tortura muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto. esse, de ordinrio, o resultado terrvel dessa barbrie que se julga capaz de produzir a verdade, desse uso digno dos canibais, e que os romanos, mau grado a dureza dos seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vtimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado. De dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, aquele que for mais corajoso e mais robusto ser absolvido; o mais fraco, porm, ser condenado em virtude deste raciocnio: "Eu, juiz, preciso encontrar um culpado. Tu, que s vigoroso, soubeste resistir dor, e por isso eu te absolvo. Tu, que s fraco, cedeste fora dos tormentos; portanto, eu te condeno. Bem sei que uma confisso arrancada pela violncia da tortura no tem valor algum; mais, se no confirmares agora o que confessaste, far-te-ei atormentar de novo". O resultado da questo depende, pois, de temperamento e de clculo, que varia em cada homem na proporo de sua fora e sensibilidade; de maneira que, para prever o resultado da tortura, bastaria resolver o problema seguinte, mais digno de um matemtico do que de um juiz: "Conhecidas a fora dos msculos e a sensibilidade das fibras de um acusado, achar o grau de dor que o obrigar a confessar-se culpado de determinado crime". Interrogam um acusado para conhecer a verdade; mas, se to dificilmente a distinguem no ar, nos gestos e na fisionomia de um 32. homem tranqilo, como a descobriro nos traos descompostos pelas convulses da dor, quando todos os sinais, que traem s vezes a verdade na fronte dos culpados, estiverem alterados e confundidos? Toda ao violenta faz desaparecer as pequenas diferenas dos movimentos pelos quais se distingue, s vezes, a verdade da mentira. Resulta ainda do uso das torturas uma conseqncia bastante notvel: que o inocente se acha numa posio pior que a do culpado. Com efeito, o inocente submetido questo tem tudo contra si: ou ser condenado, se confessar o crime que no cometeu, ou ser absolvido, mas depois de sofrer tormentos que no mereceu. O culpado, ao contrrio, tem por si um conjunto favorvel: ser absolvido se suportar a tortura com firmeza, e evitar os suplcios de que foi ameaado, sofrendo uma pena muito mais leve. Assim, o inocente tem tudo que perder, o culpado s pode ganhar. Essas verdades so sentidas, afinal, embora confusamente, pelos prprios legisladores; mas, nem por isso suprimiram a tortura. Limitam-se a achar que as confisses do acusado pelos tormentos so nulas se no forem em seguida confirmadas pelo juramento. Se, porm, recusar-se a confirm-las, ser torturado de novo. Em alguns pases e segundo certos jurisconsultos, essas odiosas violncias no so permitidas mais do que trs vezes; em outros, porm, e segundo outros doutores, o direito de torturar fica inteiramente discrio do juiz. E intil fundamentar essas reflexes com os inumerveis exemplos de inocentes que se confessaram culpados no meio de torturas. No h povo, no h sculo que no possa citar os seus. Os homens so sempre os mesmos: vem as coisas presentes sem preocupar-se com as conseqncias. No h homem que, elevando suas idias alm das primeiras necessidades da vida, 33. no tenha ouvido a voz interior da natureza cham-lo a si e no tenha sido tentado a se lanar de novo nos braos dela. Mas, o uso, esse tirano das almas vulgares, o comprime e o retm no erro. O segundo motivo, pelo qual se submete questo um homem que se supe culpado, a esperana de esclarecer as contradies em que ele caiu nos interrogatrios que o fizeram sofrer. Mas, o medo do suplcio, a incerteza do julgamento que vai ser pronunciado, a solenidade dos processos, a majestade do juiz, a prpria ignorncia, igualmente comum maior parte dos acusados inocentes ou culpados, so outras tantas razes para fazer cair em contradio, no s a inocncia que treme como o crime que procura ocultar-se. Poder-se-ia crer que as contradies, to ordinrias no homem, ainda mesmo quando este tem o esprito tranqilo, no se multiplicaro nesses momentos de perturbao, nos quais a idia de escapar a um perigo iminente absorve toda a alma? Em terceiro lugar, submeter um acusado tortura, para descobrir se ele culpado de outros crimes alm daquele de que acusado, fazer este odioso raciocnio: "Tu s culpado de um delito; , pois, possvel que tenhas cometido cem outros. Essa suspeita me preocupa; quero certificar-me; vou empregar minha prova de verdade. As leis te faro sofrer pelos crimes que cometeste, pelos que poderias cometer e por aqueles dos quais eu quero considerar-te culpado". Aplica-se igualmente a questo a um acusado para descobrir os seus cmplices. Mas, se est provado que a tortura no nada menos do que um meio certo de descobrir a verdade, como far ela conhecer os cmplices, quando esse conhecimento uma das verdades que se procuram? E certo que aquele que se acusa a si mesmo mais facilmente acusar a outrem. Alm disso, ser justo atormentar um homem pelos crimes de outro homem? No podem descobrir-se os cmplices pelos 34. interrogatrios do acusado e das testemunhas, pelo exame das provas e do corpo de delito, em suma, por todos os meios empregados para constatar o delito? Os cmplices fogem quase sempre, logo que o companheiro preso. S a incerteza da sorte que os espera condena-os ao exlio e livra a sociedade dos novos atentados que poderia recear deles; ao passo que o suplcio do culpado que ela tem nas mos amedronta os outros homens e os desvia do crime, sendo esse o nico fim dos castigos. A pretensa necessidade de purgar a infmia ainda um dos absurdos motivos do uso das torturas. Um homem declarado infame pelas leis se torna puro porque confessa o crime enquanto lhe quebram os ossos? Poder a dor, que uma sensao, destruir a infmia, que uma combinao moral? Ser a tortura um cadinho e a infmia um corpo misto que deponha nele tudo o que tem de impuro? Em verdade, abusos to ridculos no deveriam ser tolerados no sculo XVIII. A infmia no um sentimento sujeito s leis ou regulado pela razo. obra exclusiva da opinio. Ora, como a tortura torna infame aquele que a sofre, absurdo que se queira lavar desse modo a infmia com a prpria infmia. No difcil remontar a origem dessa lei estranha, porque os absurdos adotados por uma nao inteira se apoiam sempre em outras idias estabelecidas e respeitadas nessa mesma nao. O uso de purgar a infmia pela tortura parece ter sua fonte nas prticas da religio, que tanta influncia exerce sobre o esprito dos homens de todos os pases e de todos os tempos. A f nos ensina que as ndoas contradas pela fraqueza humana, quando no mereceram a clera eterna do Ser supremo, so purificadas em outro mundo por um fogo incompreensvel. Ora, a infmia uma ndoa civil; e, uma vez que a dor e o fogo do purgatrio apagam as manchas espirituais, porque os tormentos da questo no tirariam a ndoa civil da infmia? 35. Creio que se pode dar uma origem mais ou menos semelhante ao uso que observam certos tribunais de exigir as confisses do culpado como essenciais para sua condenao. Tal uso parece tirado do misterioso tribunal da penitncia, no qual a confisso dos pecados parte necessria dos sacramentos. E dessa forma que os homens abusam das luzes da revelao; e, como essas luzes so as nicas que iluminam os sculos da ignorncia, a elas que a dcil humanidade recorreu em todas as ocasies, mas para fazer as aplicaes mais falsas e mais infelizes. A solidez dos princpios que expusemos neste captulo era conhecida dos legisladores romanos, que s submetiam tortura os escravos, espcie de homens sem direito algum e sem nenhuma parte nas vantagens da sociedade civil. Esses princpios foram adotados na Inglaterra, nao que prova a excelncia de suas leis pelos seus progressos nas cincias, pela superioridade do seu comrcio, pela extenso de suas riquezas, por seu poder e por freqentes exemplos de coragem e de virtude poltica. A Sucia, igualmente convencida da injustia da tortura, j no permite o seu uso. Esse infame costume foi abolido por um dos mais sbios monarcas da Europa (12), que elevou a filosofia ao trono e que, legislador benvolo, amigo dos sditos, os tornou iguais e livres sob a dependncia das leis; nica liberdade que homens razoveis podem esperar da sociedade; nica igualdade que esta pode admitir. Enfim, as leis militares no admitiram a tortura; e, se esta pudesse existir em alguma parte, seria sem dvida nos exrcitos, compostos em grande parte da escria das naes. Coisa espantosa para quem no refletiu sobre a tirania do uso! So homens endurecidos nos morticnios e familiarizados com o sangue que do aos legisladores de um povo em paz o exemplo de julgar os homens com mais humanidade! 36. XIII. DA DURAO DO PROCESSO E DA PRESCRIOQUANDO o delito constatado e as provas so certas, justo conceder ao acusado o tempo e os meios de justificar-se, se lhe for possvel; preciso, porm, que esse tempo seja bastante curto para no retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime, se se quiser que o mesmo seja um freio til contra os celerados. Um mal entendido amor da humanidade poder condenar logo essa presteza, a qual, porm, ser aprovada pelos que tiverem refletido sobre os perigos mltiplos que as extremas procrastinaes da legislao fazem correr inocncia. Cabe exclusivamente s leis fixar o espao de tempo que se deve empregar para a investigao das provas do delito, e o que se deve conceder ao acusado para sua defesa. Se o juiz tivesse esse direito, estaria exercendo as funes do legislador. Quando se trata desses crimes atrozes cuja memria subsiste por muito tempo entre os homens, se os mesmos forem provados, no deve haver nenhuma prescrio em favor do criminoso que se subtrai ao castigo pela fuga. No esse, todavia, o caso dos delitos ignorados e pouco considerveis: mister fixar um tempo aps o qual o acusado, bastante punido pelo exlio voluntrio, possa reaparecer sem recear novos castigos. Com efeito, a obscuridade que envolveu por muito tempo o delito diminui muito a necessidade do exemplo, e permite devolver ao cidado sua condio e seus direitos com o poder de torn-lo melhor. S posso indicar aqui princpios gerais. Para fazer sua aplicao precisa, mister considerar a legislao existente, os usos do pas, as circunstncias. Limito-me a acrescentar que, para um povo que reconhecesse as vantagens das penas moderadas, se as leis abreviassem ou prolongassem a durao dos processos e o tempo da prescrio segundo a gravidade do delito, se a priso provisria e o exlio voluntrio fossem contados como uma parte da pena merecida pelo culpado, 37. chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progresso de castigos suaves para um grande nmero de delitos. Mas, o tempo que se emprega na investigao das provas e o que fixa a prescrio no devem ser prolongados em razo da gravidade do crime que se persegue, porque, enquanto um crime no est provado, quanto mais atroz, menos verossmil ele. Ser preciso, pois, s vezes, reduzir o tempo dos processos e aumentar o que se exige para a prescrio. Esse princpio parece, primeira vista, contraditrio em relao ao que estabeleci mais acima, e segundo o qual podem aplicar-se penas iguais para crimes diferentes, considerando como partes do castigo o exlio voluntrio ou a priso que precedeu a sentena. Procurarei explicar-me com mais clareza. Podem distinguir-se duas espcies de delitos. A primeira a dos crimes atrozes, que comea pelo homicdio e que compreende toda a progresso dos mais horrveis assassnios. Incluiremos na segunda espcie os delitos menos hediondos do que o homicdio. Essa distino tirada da natureza. A segurana das pessoas um direito natural; a segurana dos bens um direito da sociedade. H bem poucos motivos capazes de levar o homem a abafar no corao o sentimento natural da compaixo que o desvia do assassnio. Mas, como cada um vido de buscar o seu bem-estar, como o direito de propriedade no est gravado nos coraes, sendo simples obra das convenes sociais, h uma poro de motivos que induzem os homens a violar tais convenes. Se se quiser estabelecer regras de probabilidade para essas duas espcies de delitos, preciso coloc-las sobre bases diferentes. Nos grandes crimes, pela razo mesma de que so mais raros, deve diminuir-se a durao da instruo e do processo, porque a inocncia do acusado mais provvel do que o crime. Deve-se, porm, prolongar o tempo da prescrio. Por esse meio, que acelera a sentena definitiva, tira-se aos 38. maus a esperana de uma impunidade tanto mais perigosa quanto maiores so os crimes. Ao contrrio, nos delitos menos considerveis e mais comuns, preciso prolongar o tempo dos processos, porque a inocncia do acusado menos provvel, e diminuir o tempo fixado para a prescrio, porque a impunidade menos perigosa. mister, igualmente, notar que, se no se atender a isso, essa diferena de processo entre as duas espcies de delitos pode dar ao criminoso a esperana da impunidade, esperana tanto mais fundada quanto o crime for mais hediondo e, portanto, mais verossmil. Observemos, porm, que um acusado solto por falta de provas no nem absolvido nem condenado; que pode ser preso de novo pelo mesmo crime e submetido a novo exame, se se descobrirem novos indcios do seu delito antes de terminar o tempo fixado para a prescrio, segundo o crime cometido. Tal , pelo menos ao meu ver, o critrio que se poderia seguir para preservar ao mesmo tempo a segurana dos cidados e a sua liberdade, sem favorecer uma em detrimento da outra. Esses dois bens so igualmente patrimnio inalienvel de todos os cidados; e ambos esto cercados de perigos quando a segurana individual abandonada ao capricho de um dspota e quando a liberdade protegida pela desordem tumultuosa. Cometem-se na sociedade certos crimes que so ao mesmo tempo comuns e difceis de constatar. Desde ento, pois quase impossvel provar tais crimes, a inocncia provvel perante a lei. E, como a esperana da impunidade contribui pouco para multiplicar essas espcies de delitos, que tm todos causas diferentes, a impunidade raramente perigosa. Nesse caso, podem, pois, diminuir-se igualmente o tempo dos processos e o da prescrio. Mas, segundo os princpios aceitos, principalmente para os crimes difceis de provar, como o adultrio, a pederastia, que se admitem arbitrariamente as presunes, as conjecturas, as semiprovas, como se um homem pudesse ser semi-inocente ou semi-culpado, e merecer ser semi-absolvido ou semi-punido! 39. sobretudo nesse gnero de delitos que se exercem as crueldades da tortura sobre o acusado, sobre as testemunhas, sobre a famlia inteira do infeliz de quem se suspeita, segundo as odiosas lies de alguns criminalistas, que escreveram, com fria barbrie, compilaes de iniqidades que ousam apresentar como regras aos magistrados e como leis s naes. Quando se reflete sobre todas essas coisas, -se forado a reconhecer com amargura que a razo quase nunca tem sido consultada nas leis que se deram aos povos. Os crimes mais hediondos, os delitos mais obscuros e mais quimricos, e portanto os mais inverossmeis, so precisamente os que se consideram constatados sobre simples conjecturas e indcios menos slidos e mais equvocos. Dizer-se-ia que as leis e o magistrado s tm interesse em descobrir um crime, e no em procurar a verdade; e que o legislador no v que se expe constantemente ao risco de condenar um inocente, pronunciando-se sobre crimes inverossmeis ou mal provados. maioria dos homens falta essa energia que produz igualmente as grandes aes e os grandes crimes, e que traz quase sempre juntas as virtudes magnnimas e os crimes monstruosos, nos Estados que s se mantm pela atividade do governo, pelo orgulho nacional e pelo concurso das paixes pelo bem pblico. Quanto s naes cujo poderio consolidado e constantemente sustentado por boas leis, as paixes enfraquecidas parecem mais capazes de manter a forma de governo estabelecida do que de melhor-la. Da resulta uma conseqncia importante: que os grandes crimes nem sempre so a prova da decadncia de um povo.XIV. DOS CRIMES COMEADOS; DOS CMPLICES; DA IMPUNIDADESE BEM que as leis no possam punir a inteno, no menos verdadeira que uma ao que seja o comeo de um delito e que prova a vontade de comet-lo, merece um castigo, mas menos 40. grande do que o que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido. Esse castigo necessrio, porque importante prevenir mesmo as primeiras tentativas dos crimes. Mas, como pode haver um intervalo entre a tentativa de um delito e a sua execuo, justo reservar uma pena maior ao crime consumado, para deixar quele que apenas comeou o crime alguns motivos que o impeam de acab-lo. Deve seguir-se a mesma gradao nas penas, em relao aos cmplices, se estes no foram todos executantes imediatos. Quando vrios homens se unem para enfrentar um perigo comum, quanto maior o perigo, tanto mais procuraro torn-lo igual para todos. Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cmplices, seria mais difcil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse execut-lo, porque o risco seria maior, em virtude da diferena das penas. H, contudo, um caso em que a gente deve afastar-se da regra que formulamos, e quando o executante do crime recebeu dos cmplices uma recompensa particular; como a diferena do risco foi compensada pela diferena das vantagens, o castigo deve ser igual. Se tais reflexes parecerem um tanto rebuscadas, reflita-se que importantssimo que as leis deixem aos cmplices da m ao o mnimo de meios possvel para que se ponham de acordo. Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cmplice de um grande crime que trair os seus companheiros. Esse expediente apresenta certas vantagens; mas, no est isento de perigos, de vez que a sociedade autoriza desse modo a traio, que repugna aos prprios celerados. Ela introduz os crimes de covardia, bem mais funestos do que os crimes de energia e de coragem, porque a coragem pouco comum e espera apenas uma fora benfazeja que a dirija para o bem pblico, ao passo que a covardia, muito mais geral, um contgio que infecta rapidamente todas as almas. 41. O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime, pois que ele no o conhece; e as leis descobrem-lhe a fraqueza, implorando o socorro do prprio celerado que as violou. Por outro lado, a esperana da impunidade, para o cmplice que trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando v crimes cometidos sem conhecer os culpados. Esse uso mostra ainda aos cidados que aquele que infringe as leis, isto , as convenes pblicas, j no fiel s convenes particulares. Parece-me que uma lei geral, que prometesse a impunidade a todo cmplice que revela um crime, seria prefervel a uma declarao especial num caso particular: preveniria a unio dos maus, pelo temor recproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos; e os tribunais j no veriam os celerados encorajados pela idia de que h casos em que se pode ter necessidade deles. De resto, seria preciso acrescentar aos dispositivos dessa lei que a impunidade traria consigo o banimento do delator. , porm, em vo que procuro abafar os remorsos que me afligem, quando autorizo as santas leis, fiadoras sagradas da confiana pblica, base respeitvel dos costumes, a proteger a perfdia, a legitimar a traio. E que oprbrio para uma nao, se os seus magistrados, tornados infiis, faltassem promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente em vs sutilezas, para levar ao suplcio aquele que respondeu ao convite das leis!... Esses monstruosos exemplos no so raros; eis porque tanta gente s v na sociedade poltica uma mquina complicada, na qual os mais hbeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho. Eis tambm o que multiplica esses homens frios, insensveis a tudo o que encanta as almas ternas, que s experimentam sensaes calculadas e que, todavia, sabem excitar nos outros 42. os sentimentos mais caros e as paixes mais fortes, quando estas so teis aos seus projetos; semelhantes ao msico hbil que, sem nada sentir ele prprio, tira do instrumento que domina sons tocantes. ou terrveis.XV. DA MODERAO DAS PENASAS VERDADES at aqui expostas demonstram evidncia que o fim das penas no pode ser atormentar um ser sensvel, nem fazer que um crime no cometido seja cometido. Como pode um corpo poltico, que, longe de se entregar s paixes, deve ocupar-se exclusivamente com pr um freio nos particulares, exercer crueldades inteis e empregar o instrumento do furor, do fanatismo e da covardia dos tiranos? Podero os gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do passado, que no volta mais, uma ao j cometida? No. Os castigos tm por fim nico impedir o culpado de ser nocivo futuramente sociedade e desviar seus concidados da senda do crime. Entre as penas, e na maneira de aplic-las proporcionalmente aos delitos, mister, pois, escolher os meios que devem causar no esprito pblico a impresso mais eficaz e mais durvel, e, ao mesmo tempo, menos cruel no corpo do culpado. Quem no estremece de horror ao ver na histria tantos tormentos atrozes e inteis, inventados e empregados friamente por monstros que se davam o nome de sbios? Quem poderia deixar de tremer at ao fundo da alma, ao ver os milhares de infelizes que o desespero fora a retomar a vida selvagem, para escapar a males insuportveis causados ou tolerados por essas leis injustas que sempre acorrentaram e ultrajaram a multido, para favorecer unicamente um pequeno nmero de homens privilegiados? Mas, a superstio e a tirania os perseguem; acusam-nos de crimes impossveis ou imaginrios; ou ento so culpados, mas somente de terem sido fiis s leis da natureza. No importa! Homens dotados dos mesmos sentidos e sujeitos s mesmas paixes se comprazem em julg-los criminosos, tm prazer em 43. seus tormentos, dilaceram-nos com solenidade, aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetculo de uma multido fantica que goza lentamente com suas dores. Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso ser o culpado para evit-los. Acumular os crimes, para subtrair- se pena merecida pelo primeiro. Os pases e os sculos em que os suplcios mais atrozes foram postos em prtica, so tambm aqueles em que se viram os crimes mais horrveis. O mesmo esprito de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador, punha o punhal nas mos do assassino e do parricida. Do alto do trono, o soberano dominava com uma verga de ferro; e os escravos s imolavam os tiranos para possurem novos. medida que os suplcios se tornam mais cruis, a alma, semelhante aos fluidos que se pem sempre ao nvel dos objetos que os cercam, endurece-se pelo espetculo renovado da barbrie. A gente se habitua aos suplcios horrveis; e, depois de cem anos de crueldades multiplicadas, as paixes, sempre ativas, so menos refreadas pela roda e pela fora do que antes o eram pela priso. Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime. Devem contar-se ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execuo e a perda das vantagens que o crime devia produzir. Toda severidade que ultrapasse os limites se torna suprflua e, por conseguinte, tirnica. Os males que os homens conhecem por funesta experincia regularo melhor a sua conduta do que aqueles que eles ignoram. Suponde duas naes entre aquelas em que as penas so proporcionais aos delitos. Sendo a escravido perptua o maior castigo em uma, e o suplcio o maior em outra, certo que essas duas penas inspiraro em cada uma igual terror. E, se houvesse uma razo para transportar para o primeiro povo os castigos mais rigorosos estabelecidos no segundo, a 44. mesma razo conduziria a aumentar para este a crueldade dos suplcios, passando insensivelmente do uso da roda para tormentos mais lentos e mais requintados, em suma, para o ltimo refinamento da cincia dos tiranos. A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos, contrrios ao fim do seu estabelecimento, que prevenir o crime. Em primeiro lugar, muito difcil estabelecer uma justa proporo entre os delitos e as penas; porque, embora uma crueldade industriosa tenha. multiplicado as espcies de tormentos, nenhum suplcio pode ultrapassar o ltimo grau da fora humana, limitada pela sensibilidade e a organizao do corpo do homem. Alm desses limites, se surgirem crimes mais hediondos, onde se encontraro penas bastante cruis? Em segundo lugar, os suplcios mais horrveis podem acarretar s vezes a impunidade. A energia da natureza humana circunscrita no mal como no bem. Espetculos demasiado brbaros s podem ser o resultado dos furores passageiros de um tirano, e no ser sustentados por um sistema constante de legislao. Se as leis so cruis, ou logo sero modificadas, ou no mais podero vigorar e deixaro o crime impune. Termino por esta reflexo: que o rigor das penas deve ser relativo ao estado atual da nao. So necessrias impresses fortes e sensveis para impressionar o esprito grosseiro de um povo que sai do estado selvagem. Para abater o leo furioso, necessrio o raio, cujo rudo s faz irrit-lo. Mas, medida que as almas se abrandam no estado de sociedade, o homem se torna mais sensvel; e, se se quiser conservar as mesmas relaes entre o objeto e a sensao, as penas devem ser menos rigorosas.XVI. DA PENA DE MORTEANTE o espetculo dessa profuso de suplcios que jamais tornaram os homens melhores, eu quero examinar se a pena de morte verdadeiramente til e se justa num governo sbio. 45. Quem poderia ter dado a homens o direito de degolar seus semelhantes? Esse direito no tem certamente a mesma origem que as leis que protegem. A soberania e as leis no so mais do que a soma das pequenas pores de liberdade que cada um cedeu sociedade. Representam a vontade geral, resultado da unio das vontades particulares. Mas, quem j pensou em dar a outros homens o direito de tirar-lhe a vida? Ser o caso de supor que, no sacrifcio que faz de uma pequena parte de sua liberdade, tenha cada indivduo querido arriscar a prpria existncia, o mais precioso de todos os bens? Se assim fosse, como conciliar esse princpio com a mxima que probe o suicdio? Ou o homem tem o direito de se matar, ou no pode ceder esse direito a outrem nem sociedade inteira. A pena de morte no se apoia, assim, em nenhum direito. uma guerra declarada a um cidado pela nao, que julga a destruio desse cidado necessria ou til. Se eu provar, porm, que a morte no til nem necessria, terei ganho a causa da humanidade. A morte de um cidado s pode ser encarada como necessria por dois motivos: nos momentos de confuso em que uma nao fica na alternativa de recuperar ou de perder sua liberdade, nas pocas de confuso, em que as leis so substitudas pela desordem, e quando um cidado, embora privado de sua liberdade, pode ainda, por suas relaes e seu crdito, atentar contra a segurana pblica, podendo sua existncia produzir uma revoluo perigosa no governo estabelecido. Mas, sob o reino tranqilo das leis, sob uma forma de governo aprovada pela nao inteira, num Estado bem defendido no exterior e sustentado no interior pela fora e pela opinio talvez mais poderosa do que a prpria fora, num pas em que a autoridade exercida pelo prprio soberano, em que as riquezas s podem, proporcionar prazeres e no poder, no pode haver nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidado, a menos que a morte seja o nico freio capaz de impedir novos crimes. 46. A experincia de todos os sculos prova que a pena de morte nunca deteve celerados determinados a fazer mal. Essa verdade se apoia no exemplo dos romanos e nos vinte anos do reinado da imperatriz da Rssia, a benfeitora Izabel (13), que deu aos chefes dos povos uma lio mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a ptria s alcana ao preo do sangue dos seus filhos. Se os homens, a quem a linguagem da razo sempre suspeita e que s se rendem autoridade dos antigos usos, se recusam evidncia dessas verdades, bastar-lhes- interrogar a natureza e consultar o prprio corao para testemunhar os princpios que acabam de ser estabelecidos. O rigor do castigo causa menos efeito sobre o esprito humano do que a durao da pena, porque a nossa sensibilidade mais fcil e mais constantemente afetada por uma impresso ligeira, mas freqente, do que por um abalo violento, mas passageiro. Todo ser sensvel est submetido ao imprio do hbito; e, como este que ensina o homem a falar, a andar, a satisfazer suas necessidades, tambm ele que grava no corao do homem as idias de moral por impresses repetidas. O espetculo atroz, mas momentneo, da morte de um celerado para o crime um freio menos poderoso do que o longo e contnuo exemplo de um homem privado de sua liberdade, tornado at certo ponto uma besta de carga e que repara com trabalhos penosos o dano que causou sociedade. Essa volta freqente do espectador a si mesmo: "Se eu cometesse um crime, estaria reduzido toda a minha vida a essa miservel condio", - essa idia terrvel assombraria mais fortemente os espritos do que o medo da morte, que se v apenas um instante numa obscura distncia que lhe enfraquece o horror. A impresso produzida pela viso dos suplcios no pode resistir ao do tempo e das paixes, que logo apagam da memria dos homens as coisas mais essenciais. Por via de regra, as paixes violentas surpreendem vivamente, mas o seu efeito no dura. Produziro uma dessas revolues 47. sbitas que fazem de repente de um homem comum um romano ou um espartano. Mas, num governo tranqilo e livre, so necessrias menos paixes violentas do que impresses durveis. Para a maioria dos que assistem execuo de um criminoso, o suplcio deste apenas um espetculo; para a minoria, um objeto de piedade mesclado de indignao. Esses dois sentimentos ocupam a alma do espectador, bem mais do que o terror salutar que o fim da pena de morte. Mas, as penas moderadas e contnuas s produzem nos espectadores o sentimento do medo. No primeiro caso, sucede ao espectador do suplcio o mesmo que ao espectador do drama; e, assim como o avaro retorna ao seu cofre, o homem violento e injusto retorna s suas injustias. O legislador deve, por conseguinte, pr limites ao rigor das penas, quando o suplcio no se torna mais do que um espetculo e parece ordenado mais para ocupar a fora do que para punir o crime. Para que uma pena seja justa, deve ter apenas o grau de rigor bastante para desviar os homens do crime. Ora, no h homem que possa vacilar entre o crime, mau grado a vantagem que este prometa, e o risco de perder para sempre a liberdade. Assim, pois, a escravido perptua, substituindo a pena de morte, tem todo o rigor necessrio para afastar do crime o esprito mais determinado. Digo mais: encara-se muitas vezes a morte de modo tranqilo e firme, uns por fanatismo, outros por essa vaidade que nos acompanha mesmo alm do tmulo. Alguns, desesperados, fatigados da vida, vem na morte um meio de se livrar da misria. Mas, o fanatismo e a vaidade desaparecem nas cadeias, sob os golpes, em meio s barras de ferro. O desespero no lhes pe fim aos males, mas os comea. Nossa alma resiste mais violncia das dores extremas, apenas passageiras, do que ao tempo e continuidade do desgosto. Todas as foras da alma, reunindo-se contra males 48. passageiros, podem enfraquecer-lhes a ao; mas, todas as suas molas acabam por ceder a penas longas e constantes. Numa nao em que a pena de morte empregada, foroso, para cada exemplo que se d, um novo crime; ao passo que a escravido perptua de um nico culpado pe sob os olhos do povo um exemplo que subsiste sempre, e se repete. Se mister que os homens tenham sempre sob os olhos os efeitos do poder das leis, preciso que os suplcios sejam freqentes, e desde ento preciso tambm que os crimes se multipliquem; o que provar que a pena de morte no causa toda a impresso que deveria produzir, e que intil quando julgada necessria. Dir-se- que a escravido perptua tambm uma pena rigorosa e, por conseguinte, to cruel quanto a morte. Responderei que, reunindo num ponto todos os momentos infelizes da vida de um escravo, sua vida seria talvez mais horrvel do que os suplcios mais atrozes; mas, esses momentos ficam espalhados por todo o curso da vida, ao passo que a pena de morte exerce todas as suas foras num s instante. A vantagem da pena da escravido para a sociedade que amedronta mais aquele que a testemunha do que quem a sofre, porque o primeiro considera a soma de todos os momentos infelizes, ao passo que o segundo se alheia de suas penas futuras, pelo sentimento da infelicidade presente. A imaginao aumenta todos os males. Aquele que sofre encontra em sua alma, endurecida pelo hbito da desgraa, consolaes e recursos que as testemunhas dos seus males no conhecem, porque julgam segundo sua sensibilidade do momento. somente por uma boa educao que se aprende a desenvolver e a dirigir os sentimentos do prprio corao. Mas, embora os celerados no possam perceber os seus princpios, nem por isso deixam de agir segundo um certo raciocnio. Ora, eis mais ou menos, como raciocina um assassino ou um ladro, 49. que s se afasta do crime pelo medo do poder ou da roda: "Quais so, afinal, as leis que devo respeitar e que deixam to grande intervalo entre mim e o rico? O homem opulento recusa- me com dureza a pequena esmola que lhe peo e me manda para o trabalho, que eu jamais conheci. Quem fez essas leis? Homens ricos e poderosos, que jamais se dignaram de visitar a miservel choupana do pobre, que no viram repartir um po grosseiro aos seus pobres filhos famintos e sua me desolada. Rompamos as convenes, vantajosas somente para alguns tiranos covardes, mas funestas para a maioria. Ataquemos a injustia em sua fonte. Sim retornarei ao meu estado de independncia natural, viverei livre, provarei por algum tempo os frutos felizes da minha astcia e da minha coragem. frente de alguns homens determinados como eu, corrigirei os enganos da fortuna e verei meus tiranos tremer e empalidecer quando virem aquele que o seu fausto insolente punha abaixo dos cavalos e dos ces. Talvez venha uma poca de dor e de arrependimento, mas essa poca ser curta; e por um dia de sofrimento, terei gozado vrios anos de liberdade e de prazeres". Se a religio se apresentar ento ao esprito desse infeliz, no o intimidar; diminuir mesmo aos seus olhos o horror do ltimo suplcio, oferecendo-lhe a esperana de um arrependimento fcil e da felicidade eterna que seu fruto. Mas aquele que tem diante dos olhos um grande nmero de anos, ou mesmo a vida inteira que passar na escravido e na dor, exposto ao desprezo dos seus concidados, dos quais fora um igual, escravo dessas leis pelas quais era protegido,