cesare beccaria - dos delitos e das penas - 3º edição - ano 2006

125
CESARE BECCARIA 3.a edição revista da tradução de J. CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA DOS DELITOS E DAS PENAS EDITORA I VI T REVISTA DOS TRIBUNAIS

Upload: vinicius-santana

Post on 22-Nov-2015

123 views

Category:

Documents


53 download

TRANSCRIPT

  • CESARE BECCARIA3.a edio revista da traduo de

    J. CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA

    DOSDELITOS

    E DASPENAS

    EDITORA I VI T REVISTA DOS TRIBUNAIS

  • iscido em 1738 e falecido em 1793, aos 55 anos, Cesre Bonesana, conhecido como o Marqus de Beccaria, o famoso autor do livro Dos Delitos e das Penas, escrito aos 26 anos de idade, livr que revolucionou o Direito Penal e o Direito Processual Penal.Natural de Milo, cursou Direito na Universidade de Padova. Tendo tido um conflito com o pai, que se opusera a seu casamento com Teresa de Blasco, foi preso e atirado de repente ao crcere, por influncia do genitor, contrrio unio dos jovens.Pode ento observar e sentir, na prpria carne, as agruras de uma priso de masmorra do sculo XVIII, assistindo de perto ao horror das torturas infligidas.A educao recebida dos jesutas, na infncia, foi contrabalanada, na juventude, pela leitura de Maquiavel, de Galileu, dos enciclopedistas e dos iluministas franceses.Voltaire, que Beccaria visitou em Genebra, Diderot, DAlembert, Montesquieu, que conheceu em Paris, modificaram-lhe o modo de pensar e, quando regressou Itlia, s no foi retaliado pelos inimigos e pela Inquisio por causa da proteo que lhe deu o Conde Firmiani, a quem prestara servios, quando este governou a Lombardia.Resistindo a todos os ataques, sobrevivendo a todas as perseguies, o pequeno grande livro de Beccaria foi consagrado pelas geraes posteriores, registrando, na cincia do direito penal,o teorema da proporcionalidade entre o delito cometido e a pena aplicada, como uma das grandes conquistas do moderno direito criminal.

    EDITORA nr?REVISTA DOS TRIBUNAIS

    ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR Tel.: 0800-702-2433

    www.rt.com.br

  • RT Textos Fundamentais 1

    Dos delitos e das penas

  • RT Textos Fundamentais 1

    1. D os delitos e das penas. C esare B eccaria . Traduo de J. C retella jr. e Agnes C retella. 3 . ed. rev. da traduo. So Paulo: RT, 2 0 0 6 .

    Obras publicadas nesta Srie2. O prncipe: com as notas de Napoleo Bonaparte. Niccol Machiavelli. Traduo de J.

    Cretella Jr. e Agnes Cretella. 4. ed. rev. da traduo. So Paulo: RT, 2006.3. A luta pelo direito. Rudolf von lhering. Traduo de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 3.

    ed. rev. da traduo. So Raulo: RT, 2003.4. Insttutas do Imperador justiniano. Traduo de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. So

    Paulo: RT, 2000.5. Teoria pura do direito: introduo problemtica cientfica do direito. Hans Kelsen.

    Traduo de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 3. ed. rev. da traduo. So Paulo: RT, 2003.

    6. Do contrato social. J. J. Rousseau. Traduo de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. So Paulo: RT, 2002.

    7. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituies da Grcia e de Roma.Fustel de Coulanges. Traduo de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. So Paulo: RT, 2003.

    8. Discurso sobre a servido voluntria. tienne de Ia Botie. Traduo de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. So Paulo: RT, 2003.

    9. Institutas do Jurisconsulto Caio. Caius. Traduo de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. SoPaulo: RT, 2004.

    10. Curso de direito administrativo comparado. Jean Rivero. Traduo de J. Cretella Jr. 2. ed. rev. da traduo. So Paulo: RT, 2004.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Beccaria, Cesare Bonesana, Marchesi di, 1 738-1 794.Dos delitos e das penas t Cesare Beccaria ; traduo de J- Cretella Jr. e Agnes

    Cretella. - 3. ed. rev. - So Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006. - (RT Textos fundamentais; 1).

    Ttulo original: Dei delitti e delle pene ISBN 85-203-2914-4

    1. Crimes e criminosos 2. Direito Penal 3. Pena de morte 4. Penas (Direito penal) 5. Tortura I. Ttulo.

    06-5004 CDU-343

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Direito penal 343

  • 3 . a e d i o re v is ta

    d a t r a d u o d e

    J. C retella Jr . e

    A gnes C retella

    EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS

  • RT Textos Fundamentais 1

    Dos Delitos e das Penas

    "Csare ^ tra

    3 . a edio revista da traduo de J. C r e t e l l a Jr. e A g n e s C r e t e l l a

    Texto original bsico: Dei Deiitti e delle Pene, de Cesare Beccaria, UTET, Unione Tipogrfico Editrice Torinese (Milo - Roma - Npoles), nuova ristampa, 1911, em XLVII.

    7.a edio - 1996 ; 2.a edio - 1997 .

    desta edio {2006]

    E d it o r a R e v is t a d o s T r ib u n a is L t d a .Diretor responsvelC a r l o s H e n r iq u e d e C a r v a l h o F il h o

    Visite nosso site www.rt.com.br

    S e r v i o d e A t e n d im e n t o a o C o n s u m id o r(ligao gratuita, de segunda a sexta-feira, das 8 s 1 7 horas)Tel. 0 8 0 0 -7 0 2 -2 4 3 3

    e-m ail de atendimento ao consumidor [email protected] .br

    Rua do Bosque, 8 20 - Barra Funda Tei. 11 3 6 1 3 -8 4 0 0 - F a x 11 3 6 1 3 -8 4 5 0 CEP 0 1 1 3 6 -0 0 0 - So Paulo So Paulo - Brasil

    t o d o s o s d ir e it o s r e s e r v a d o s . Proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialm ente por sistemas grficos, microflmicos, fotogrficos, reprogrficos, fonogr- ficos, videogrficos. Vedada a m emorizao elou a recuperao total ou parcial, bem com o a incluso de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibies aplicam-se tambm s caractersticas grficas da obra e sua editorao. A violao dos direitos autorais punvel com o crim e (art. 184 e pargrafos, do Cdigo Penal), com pena de priso e multa, conjuntamente com busca e apreenso e indenizaes diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9 .6 1 0 , de 1 9 .0 2 .1 9 9 8 , Lei dos Direitos Autorais).

    Impresso no Brasil [07-2006]

    Universitrio (complementar)

    Revisado em 0 2 4 4 9[06-2006]

    ISBN 8 5 -2 0 3 -2 9 1 4 -4 - Volume ISBN 8 5 -2 0 3 -2 8 6 9 -5 - Srie

  • S u m r i o

    Cesare Beccaria................................................................................................................... 9

    Nota dos tradutores............................................................................................................ 11

    Dos Delitos e das PenasA quem ler............................................................................................................................. 13Introduo............................................................................................................................. 19

    I Origem das penas.......................................................................................... 21

    II Direito de punir............................................................................................ 22

    III Conseqncias............................................................................................... 24

    IV Interpretaes das leis................................................................................ 26

    V Obscuridade das leis................................................................................... 29

    VI Proporo entre os delitos e as penas................................................... 31

    VII Erros na medida das penas........................................................................ 34

    VIII Diviso dos delitos........................................................................................ 36

    IX Da honra.......................................................................................................... 38

    X Dos duelos...................................................................................................... 40

    XI Da tranqilidade pblica.......................................................................... 41

    XII Finalidades da pena..................................................................................... 43

    XIII Das testemunhas........................................................................................... 44

    XIV Indcios e formas de julgamento............................................................. 46

    XV Acusaes secretas...................................................................................... 48

    XVI Da tortura......................................................................................................... 50

    XVII Do fisco............................................................................................................ 56

    XVIII Dos juramentos............................................................................................... 58

    XIX Rapidez da pena.............................................................................................. 59

    XX Violncias................................................... ...................................................... .61

    XXI Penas aplicadas aos nobres......................................................................... 62

    XXII Furtos................................................................................................................. 64

  • 8 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    XXIII Infmia............................................................................................................... 65

    XXIV Os ociosos........................................................................................................ 67

    XXV Banimento e confisco.................................................................................... 68

    XXVI Do esprito de famlia.................................................................................... 69

    XXVII Brandura das penas........................................................................................ 72

    XXVIII Da pena de morte........................................................................................... 74

    XXIX Da priso........................................................................................................... 81

    XXX Processos e prescries................................................................................ 84

    XXXI Delitos de prova difcil.................................................................................. 86

    XXXII Suicdio.............................................................................................................. 90

    XXXIII Contrabando.................................................................................................... 94

    XXXIV Dos devedores.................................................................................................. 96

    XXXV Asilos................................................................................................................. 98

    XXXVI Da recompensa................................................................................................ 99

    XXXVII Tentativas, cmplices e impunidade........................................................ 101

    XXXVIII Interrogatrios sugestivos e depoimentos............................................. 103

    XXXIX De um gnero particular de delitos.......................................................... 105

    XL Falsas idias de utilidade............................................................................ 107

    XLI Como prevenir os delitos............................................................................. 109

    XLII Das cincias..................................................................................................... 111

    XLIII Dos magistrados............................................................................................. 114

    XLIV Prmios.............................................................................................................. 115

    XLV Educao........................................................................................................... 116

    XLVI Das graas......................................................................................................... 117

    XLVII Concluso......................................................................................................... 119

    Respostas s Notas e Observaes de um frade dominicano sobre o livro Dos delitos e das penas

    I Acusaes de impiedade.............................................................................. 121

    II Acusaes de sedio.................................................................................... 125

  • C E S A R E B e G C A R I A

    | Cesare Bonesana, Marqus de Beccaria, nasceu na cidade de Milo | no ano de 1738. Tendo freqentado, em Parma, o Colgio dos Jesu- | tas, estudou, depois, na Frana, Literatura, Filosofia e Matemtica.| As leituras das Lettres Persanes de Montesquieu e De LEsprit | de Helvetius muita influncia exerceram em sua formao. Suas | preocupaes, orientadas para o estudo da Filosofia, levaram- | no a fundar a sociedade literria que se formou em Milo e que | divulgou os princpios fundamentais da nova Filosofia francesa. | Para divulgar, na Itlia, as novas idias, hauridas na Frana, Bec- I caria fez parte da redao do jornal O Caf, publicado em 1764. | Tendo conhecido as agruras do crcere, para onde foi envia- | do por injusta interferncia paterna, logo ao sair se insurgiu | Beccaria contra as injustias dos processos penais em voga, dis- | cutindo com os amigos, entre os quais se destacavam os irmos | Pietro e Alessandro Verri, os diversos problemas relacionados | com a priso, as torturas e a desproporo entre o delito e a 1 pena. Nasceu, assim, o livro Dei Delitti e delle Pene, escrito aos | 26 anos de idade. Receoso de possveis perseguies, imprimiu | a obra, secretamente, em Livorno, e, mesmo assim, abrandando | sua colocao crtica com expresses vagas e genricas.| O livro Dos Delitos e das Penas , de certo modo, a Filosofia | francesa aplicada legislao penal da poca. Contra a tradio | clssica, invoca a razo. Torna-se o arauto do protesto pblico | contra os julgamentos secretos, o juramento imposto ao acusa- | do, a tortura, o confisco, a pena infamante, a delao, a desigual- | dade diante da sano e a atrocidade do suplcio. Ao sustentar I que as mesmas penas devem ser aplicadas aos poderosos e aos | mais humildes cidados, desde que hajam cometido os mesmos | crimes, Beccaria proclamou com desassombro, pela primeira | vez, o princpio da igualdade perante a lei. Estabeleceu limites | entre a justia divina e a justia humana, entre o pecado e o cri- 1 me. Condenou o pseudodireito de vingana, tomando por basejN t1 o ius puniendi e a utilidade social. Considerou sem sentido a

  • 10 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    pena de morte e verberou com veemncia a desproporcionalida.de entre a pena e o delito, assim como a separao do Poder Judicirio do Poder Legislativo. O sucesso da obra foi imediato, principalmente entre os filsofos franceses. O abade Morellet traduziu para o francs o livro Dos Delitos e das Penas.

    Diderot anotou-o, Voltaire colocou-o nas nuvens e comen- tou-o. DAlembert, Buffon e Helvetius manifestaram desde logo admirao e entusiasmo pelo novo e audacioso autor. Em 1766, tendo ido a Paris, foi alvo das maiores demonstraes de apoio. Regressando, porm, a Milo, teve de suportar infamante campanha por parte dos inimigos, que se apegavam aos preconceitos para acus-lo de heresia e de desobedincia contra a Igreja e contra o Governo. A denncia no teve maiores conseqncias, mas Beccaria, da por diante, foi mais reservado, com medo de que novas perseguies o levassem priso.

    Em 1768, o Governo da ustria, sabendo que ele recusara as ofertas de Catarina II, da Rssia, que o convidara para lecionar em So Petersburgo, criou, especialmente para Beccaria, a Ctedra de Economia Poltica.

    Cesare Beccaria morreu em Milo, em 1793, legando ao mundo o seu pequeno grande livro Dos Delitos e das Penas, obra notvel, cujo remate, apresentado no teorema final, serve, ainda hoje, de assunto de meditao e anlise por parte dos crimina- listas.

    O livro de Beccaria foi traduzido em todas as lnguas cultas do mundo. No Brasil, h uma dezena de tradues, como, entre outras, a de Aristides Lobo, com prefcio de Evaristo de Morais, publicada pela Atena Editora, em So Paulo, h cerca de meio sculo, num total de XLVII captulos.

    O texto que tomamos por base para esta traduo foi o da UTET, Unione Tipogrfico Editrice Torinese (Milo Roma Npoles), nuova ristampa, 1911, em XLVII captulos, p. 19-94. Em portugus, 13 a 119 (traduo).

    O estilo de Beccaria barroco, prolixo, com inmeras metforas. O pensamento nem sempre preciso, longe, por exemplo, do lmpido e claro estilo de um Descartes, no Discurso do Mtodo, , entretanto, em geral, claro.

  • N o t a d o s T r a d u t o r l : s

    Inestimvel a contribuio de C e s a r e B e c c a r i a (1738-1793) para a elaborao da moderna cincia do direito penal.

    De famlia nobre, estudou, primeiro, na Escola da Companhia de Jesus, em Parma, freqentando mais tarde a Universidade de Pdua (Padova), aprofundando-se em Filosofia e Direito em Paris.

    Aos 26 anos de idade publicou Dei Delitti e delle Pene, resultado da triste experincia porque passou em priso italiana, onde, denunciado pelo pai, teve a vivncia do arbitrrio sistema carcerrio, ento vigente, o que lhe forneceu matria-prima e inspirao para a elaborao de sua obra-prima.

    Antes, a desproporcionalidade entre o delito praticado e a pena aplicada levava a flagrantes injustias, mas o Marqus de Beccaria, conforme se l no ltimo pargrafo de seu livro, no famoso teorema conclusivo, para que toda pena no seja a violncia de um ou de muitos contra o cidado particular, devendo, porm, ser essencialmente pblica, rpida, necessria, a mnima dentre as possveis nas dadas circunstncias, proporcional ao delito e ditada pelas leis.

  • zsare nesaua Cesare (Beccana

    Dos Dl: 1.11 OSr das P en a s

    A Quem l.er1

    Alguns textos remanescentes das Leis de antigo povo conquistador,2 compiladas por ordem do prncipe3 que reinou, h doze sculos, em Constantinopla, combinados depois com ritos dos longo- bardos, inseridos em confusos calhamaos de intrpretes particulares e obscuros, formam a tradio de opinies que, no entanto, em grande parte da Europa, recebe o nome de leis.4 Fato to prejudicial, quanto comum, que uma opinio de Carpzow,5 ou um antigo uso

    1 Este Prefcio, sob o nome de Ao Leitor, ou A quem ler, apresentado em forma de Aviso, no existia na primeira edio de 1764, tendo sido includo, porm, nas edies posteriores, quando Cesare Beccaria, preocupado com as crticas veementes e injustas de Frei Angelo Fachinei e de outros da poca, no quis responder sem se defender, antes, das acusaes de revolta contra o prncipe e contra a religio, dirigidas ao livro recm-publicado.

    2 O antigo povo conquistador o povo romano, que estendeu seu domnio a grande parte do mundo antigo.

    3 O Prncipe, ou melhor, o Imperador, que reinou em Constantinopla, de 527 a 565, foi o grande Justiniano (482 a 565 ), casado com Teodora, o responsvel pela elaborao do Corpus Juris Civilis.

    4 Cesare Beccaria faz referncias ao direito da poca, que no se encontrava disciplinado nos cdigos, mas que se baseava no Corpus Juris Civilis, mandado organizar pelo Imperador Justiniano, no edito de Rotrio e nas leis dos longobardos, cuja interpretao era mais difcil do que a doutrina. Essa legislao era incompreensvel, mesmo para o jurista experiente da poca.

    5 Benedikt Carpzow, ou, em portugus, Benedito Carpsvio, de Wittemberg (1 5 9 5 -1 6 6 6 ), Julio Emilio Claro, de Alexandria (152 5 -1 5 7 5 ) e Prspero

  • 14 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    assinalado por Claro, ou uma tortura sugerida por Farinaccio6 com irada complacncia, sejam leis obedecidas com segurana por aqueles que deveriam tremer, quando decidem sobre a vida e o destino dos homens. Essas leis, resduos de sculos, os mais brbaros, so examinadas, neste livro, sob ngulo que interessa ao sistema penal, e ousamos expor aqui suas desordens aos responsveis pela felicidade pblica, em estilo que afastar a plebe no esclarecida e impaciente. A ingnua busca da verdade, a independncia com respeito s opinies vulgares com que este livro foi escrito so conseqncias do brando e esclarecido governo sob o qual vive o autor. Os grandes monarcas, benfeitores da humanidade que nos dirigem,7 amam as verdades expostas pelo obscuro filsofo com um no-fantico vigor, s despertado por quem, afastado da razo, apela para a fora ou para o engenho. E as desordens presentes por quem lhes examina bem todas as circunstncias so a stira e a censura dos tempos passados, e no as deste sculo e as de seus legisladores.

    Quem quiser honrar-me com suas crticas comece, pois, por bem entender o fim a que esta obra se destina, escopo que, longe de diminuir a legtima autoridade, serviria mais para engrandec-la, caso a opinio tenha mais poder do que fora sobre os homens e caso a suavidade e a humanidade a justifiquem aos olhos de todos. As

    Farinaccio, de Roma (15 5 4 -1 6 1 8 ) dedicaram grande ateno s questes da tortura no campo do direito, considerando-a, entretanto, normal meio de obteno da prova. Foram autores de Tratados, clebres na poca, especialmente no que diz respeito prtica criminal. Beccaria no tinha conhecimento profundo do texto desses jurisconsultos, nem a idia de renovao que a doutrina do direito comum operara em todo o sistema jurdico da poca, e sobre cuja influncia histrica o jurista italiano Manzoni foi intrprete muito mais criterioso, quando, na obra, Storia delia colonna infame, observava surpreso que a pequena monografia Dos Delitos e das Penas, que proporcionara no apenas a abolio da tortura, mas tambm a reforma de toda a legislao criminal, no tivesse sido ainda descoberta e considerada pela cincia do direito.

    6 Alguns tradutores brasileiros, por lapso, escreveram Francisco, ao invs de Farinaccio.

    7 Quanto aos prncipes iluminados sobre os quais Beccaria faz referncia, cfr. o final dos Cap. XII e XIV, e a monografia de Voitaire, loge historique de la raison.

  • A quem ter 15

    mal-intencionadas crticas, publicadas contra este Livro,8 baseiam- se em confusas noes e me obrigam a interromper, por vezes, o raciocnio com os leitores esclarecidos, para encerrar, de uma vez para sempre, com qualquer possibilidade de erro de um tmido zelo ou com as calnias da maldosa inveja.

    Trs so as fontes das quais derivam os princpios morais e polticos reguladores dos homens: a Revelao,9 a Lei Natural e as Convenes artificiais da sociedade. No h comparao entre a primeira e as outras duas, quanto finalidade principal, mas nisto as trs se assemelham por conduzirem felicidade, nesta vida mortal. Considerar as relaes da ltima no excluir as relaes entre as duas primeiras. Na verdade, assim como aquelas, embora divinas e imutveis, foram, por culpa dos homens, alteradas de mil modos, em suas mentes, distorcidas pelas falsas religies e pelas arbitrrias noes de vcio e de virtude, assim tambm me parece necessrio examinar, independente de qualquer outra considerao, aquilo que nasce das puras e expressas convenes humanas, ou propostas para a necessidade e utilidade comum, idia essa a que toda seita e todo sistema de moral deve necessariamente reportar-se. E ser sempre louvvel a iniciativa que obrigue mesmo os mais distantes e incrdulos em conformar-se com os princpios que levam os homens a viver em sociedade. H, pois, trs classes diversas de virtude e vcio: religiosa, natural e poltica. Estas trs classes nunca devem estar em contradio, entre si, mas nem todas as conseqncias e os deveres, resultantes de uma, resultam das outras. Nem tudo o que a Revelao exige cobrado pela Lei Natural, nem tudo o que esta requer exigido pela pura Lei Social, mas importantssimo separar o que resulta desta conveno, ou seja, dos pactos expressos ou tcitos entre os homens, porque tal o limite daquela fora que pode legitimamente exercer-se entre homens e homens, sem ordem especial do Ser supremo. Assim, a idia da virtude poltica pode, pois, sem des-

    8 O autor alude ao virulento artigo, publicado em 1764, por Frei Angelo Facchinei sob o ttulo Notas e Observaes sobre o livro Dos Delitos e das Penas, por ordem do governo da Repblica de Veneza. Ver p. 121 deste livro.

    9 Refere-se Revelao divina.

  • 1 6 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    douro, ser denominada de varivel; a da virtude natural seria sempre lmpida e manifesta, se a imbecilidade ou as paixes dos homens no a obscurecessem; a da virtude religiosa sempre una e constante, porque revelada imediatamente por Deus e por ele conservada.

    Seria, pois, erro, o atribuir, a quem fala de convenes sociais e de suas conseqncias, princpios contrrios Lei Natural ou Revelao, porque no delas que aqui se fala. Seria erro tambm acreditar que, aquele que, falando de estado de guerra antes do estado de sociedade, o tomasse no sentido hobbesiano,10 ou seja, o de nenhum dever e de nenhuma obrigao anterior, ao invs de tom- lo como fato nascido da corrupo da natureza e da falta de uma sano expressa. Seria erro imputar um delito ao escritor que considerasse as emanaes do pacto social, e de no coloc-lo antes do prprio pacto.

    A Justia divina e a Justia natural so, por essncia, imutveis e constantes, porque a relao entre dois objetos iguais sempre a mesma; mas a Justia humana, ou seja, poltica, no sendo seno a relao entre a ao e o estado varivel da sociedade, pode variar medida que se torne necessria ou til sociedade tal ao, e s ser bem discernida por quem analisar as relaes complicadas e mutabilssimas das combinaes civis. To logo esses princpios, profundamente distintos, se tornem confusos, deixar de existir a esperana de bem raciocinar sobre as matrias pblicas. Cabe aos telogos estabelecer as fronteiras entre o justo e o injusto, quanto

    10 Hobbesiano relativo ao filsofo ingls Thomas Hobbes (1 588 -1679), segundo o qual, antes do contrato social, os homens viviam, conforme j observara o romano Plauto, em contnua e mortfera luta entre si ( homo homini lupus), fazendo, portanto, preceder o estado poltico, isto , a vida em sociedade, por um estado natural, que considerava cada homem em luta contnua com os semelhantes, negando, assim, o direito natural, anterior s leis. Hobbes, prestigiado filsofo ingls, concebeu, assim, o contrato social como a evoluo da sociedade do estado da natureza, do homo homini lupus (o homem um lobo para o homem) para o estado poltico, do homo homini deus (o homem deus para o homem). Neste ponto, Beccaria procura conciliar a hiptese do estado de guerra pr-socal com o princpio da Revelao divina e da lei natural. Em certo aspecto, nesta passagem, tambm visvel a influncia de Montesquieu, nos dois primeiros captulos do Esprito das Leis.

  • A quem ter 17

    intrnseca malcia ou a bondade do ato. Estabelecer as relaes do justo e do injusto poltico, ou seja, do que til ou danoso para a sociedade, cabe ao publicista. Nenhum objeto poder prejudicar o outro, pois cada um v quanto a virtude, puramente poltica, deva ceder imutvel virtude emanada de Deus.

    Quem, repito, desejar honrar-me com crticas, no comece, portanto, supondo em mim a existncia de princpios destruidores da virtude ou da religio, pois tenho demonstrado no serem esses os meus princpios; e, ao invs de achar-me incrdulo ou sedicioso, procure ver, em mim, um mau lgico ou um poltico despreparado; no trema a cada proposta que apoie os interesses da humanidade; convena-me da inutilidade ou do dano poltico que poderia resultar dos meus princpios; mostre-me a vantagem das prticas recebidas. Dei pblico testemunho da minha religio e da submisso ao meu Soberano, na resposta s Notas e Observaes,n Responder a ulte- riores escritos semelhantes queles seria suprfluo; mas quem quer que escreva com a decncia que convm a homens honestos e com tais luzes, que me dispense de provar os primeiros princpios, seja qual for a natureza deles, pois encontrar em mim no s o homem que procura responder, como o pacfico amante da verdade.

    II A resposta, redigida por Pietro Verri, com a colaborao do irmo, foi publicada seis dias aps o recebimento, em Milo, da crtica acerba, parcial e injusta de Frei Fachinei, escrita esta, por determinao do prepotente e suscetvel Conselho dos Dez, de Veneza, supostamente criticado pela obra de Beccaria, conforme pensavam seus membros. A rplica dos irmos Verri recebeu o nome de Apologia.

  • Introduo

    Regra geral, os homens abandonam os mais relevantes regulamentos prudncia diria ou discrio daqueles cujo interesse o de contestar as leis mais sbias, que, por natureza, tornam universais as vantagens e resistem ao esforo, que tendem a concen- trar-se em poucos, separando, de um lado, o mximo de poder e de felicidade e, de outro, toda a fraqueza e a misria. Por isso, s aps haver passado entre si mil erros, nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade, e depois de um cansao de sofrer os males at o extremo, dispem-se eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpveis verdades, as quais, por sua prpria simplicidade, escapam s mentes vulgares, no habituadas a analisar os objetos, mas a receber-lhes todas as impresses, de uma s vez, mais por tradio que por exame.

    Olhemos a histria e veremos que as leis, que so, ou deveriam ser, pactos entre homens livres, no passaram, geralmente, de instrumentos das paixes de uns poucos, ou nasceram de fortuita e passageira necessidade, no j ditadas por frio analista da natureza humana, capaz de concentrar num s ponto as aes de muitos homens e de consider-las de um s ponto de vista: a mxima fe l i cidade dividida pelo maior nmero.1 Felizes as pouqussimas naes que no esperaram que o lento movimento das combinaes e vicis- situdes humanas, aps haverem atingido o mal extremo, conduzissem ao bem, mas que aceleraram as passagens intermedirias com boas leis. E merece a gratido dos homens o filsofo que, de seu humilde e obscuro gabinete, teve a coragem de lanar multido

    1 Beccaria foi o primeiro a formular este principio, nestes exatos termos. Tanto nesta, como em outras passagens deste livro Dos Delitos e das Penas (cfr. Cap. II e XV), as origens das leis tm como fundamento a fuso das teorias contratualistas de Locke e de Rousseau com as teorias utilitaristas que Beccaria assimilou do pensador Helvtius (1 7 1 5 -1 7 7 1 ), de quem foi grande admirador. Beccaria, crebro essencialmente receptivo, torna seu o pensamento de Locke e de Rousseau.

  • 20 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    as primeiras sementes, por longo tempo infrutferas, das teis verdades. Conheceram-se verdadeiras relaes entre o soberano e seus sditos e entre as diversas naes. Prosperou o comrcio luz das verdades filosficas, postas pela imprensa ao alcance de todos, acen- deu-se entre as naes tcita guerra de atividades, a mais humana e a mais digna entre homens razoveis. Estes so os frutos que devemos s luzes deste sculo. Pouqussimos, porm, examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos processos criminais, parte to importante quo descurada da legislao em quase toda a Europa. Pouqussimos os que, remontando aos princpios gerais, eliminaram os erros acumulados durante sculos, refreando, ao menos, com a fora que s possuem as verdades conhecidas, o demasiado livre curso do mal dirigido poder, que deu at hoje longo e autorizado exemplo de cruel atrocidade. Entretanto, o gemido dos fracos, vtimas da cruel ignorncia e da rica indolncia, os brbaros tormentos, com prdiga e intil severidade multiplicados por delitos no provados ou quimricos, a esqualidez e horrores da priso, aumentados pelo mais cruel algoz dos desgraados, a incerteza, que deveriam comover aquela espcie de magistrados que guiam as opinies das mentes humanas.

    O imortal Presidente Montesquieu2 discorreu rapidamente sobre este tema.3 A indivisvel verdade forou-me a seguir os traos luminosos desse grande homem, mas os pensadores, para os quais escrevo, sabero distinguir os meus passos dos dele. Afortunado serei eu se puder, como ele, obter os secretos agradecimentos dos obscuros e pacficos adeptos da razo e se puder inspirar aquele doce frmito com o qual as almas sensveis respondem a quem luta pelos interesses da humanidade.

    2 Montesquieu (1689 -1755) foi eleito Presidente do Parlamento (rgo jurisdicional do reino da Frana) de Bordeaux, jurista e pensador ilumi- nista, autor de inmeras obras, entre as quais a fundamental o Esprit des lois.

    3 Beccaria declarou ao tradutor Morellet que sua converso filosofia ocorreu, quando da leitura da obra Lettres persanes de Montesquieu; porm, neste seu trabalho, bem visvel a influncia do Esprit des lois em inmeros pontos.

  • Leis so condies sob as quais homens independentes e isolados se uniram em sociedade, cansados de viver em contnuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade intil pela incerteza de con- serv-la. Parte dessa liberdade foi por eles sacrificada para poderem gozar o restante com segurana e tranqilidade. A soma de todas essas pores de liberdades, sacrificadas ao bem de cada um, forma a soberania de uma nao e o Soberano seu legtimo depositrio e administrador. No bastava, porm, formar esse repositrio. Era mister defend-lo das usurpaes privadas de cada homem, em particular, o qual sempre tenta no apenas retirar do escrnio a prpria poro, mas tambm usurpar a poro dos outros. Faziam-se necessrios motivos sensveis suficientes para dissuadir o desptico esprito de cada homem de submergir as leis da sociedade no antigo caos. Essas so as penas estabelecidas contra os infratores das leis. Digo motivos sensveis, porque a experincia mostrou que a multido no adota princpios estveis de conduta, nem se afasta do princpio universal de dissoluo no universo fsico e moral, seno por motivos que imediatamente afetam os sentidos e que sobem mente para contrabalanar as fortes impresses das paixes parciais que se opem ao bem universal. Nem a eloqncia, nem as declamaes, nem mesmo as mais sublimes verdades bastaram para refrear por longo tempo as paixes despertadas pelos vivos impactos dos objetos presentes-

    IO r ig e m das penas

  • II

    D ir e it o d e p u n ir

    Toda pena, que no derive da absoluta necessidade, diz o grande Montesquieu, tirnica, proposio esta que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que no derive da absoluta necessidade tirnico. Eis, ento, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depsito da salvao pblica das usurpaes particulares. Tanto mais justas so as penas quanto mais sagrada e inviolvel a segurana e maior a liberdade que o soberano d aos sditos. Consultemos o corao humano e nele encontraremos os princpios fundamentais do verdadeiro direito do soberano de punir os delitos, pois no se pode esperar nenhuma vantagem durvel da poltica moral, se ela no se fundamentar nos sentimentos indelveis do homem. Toda lei que se afaste deles encontrar sempre resistncia contrria, que acabar vencendo, da mesma forma que uma fora, embora mnima, aplicada, porm, continuamente, vencer qualquer movimento aplicado com violncia a um corpo.

    Homem algum entregou gratuitamente parte da prpria liberdade, visando ao bem pblico, quimera esta que s existe nos romances. Se isso fosse possvel, cada um de ns desejaria que os pactos que ligam os outros no nos ligassem. Cada homem faz de si o centro de todas as combinaes do globo. A multiplicao do gnero humano, pequena por si s, mas muito superior aos meios que a estril e abandonada natureza oferecia para satisfazer as necessidades que cada vez mais se entrecruzavam, que reuniu os primeiros selvagens. As primeiras unies formaram necessariamente outras para resistir quelas e, assim, o estado de guerra transportou-se do indivduo para as naes.

  • Direito de punir 23

    Foi, portanto, a necessidade, que impeliu os homens a ceder parte da prpria liberdade. certo que cada um s quer colocar no repositrio pblico a mnima poro possvel, apenas a suficiente para induzir os outros a defend-lo. O agregado dessas mnimas pores possveis que forma o direito de punir. O resto abuso e no justia fa to , mas no direito.1 Observemos que a palavra direito no se ope palavra fora, mas a primeira antes uma modificao da segunda, isto , a modificao mais til para a maioria. Por ju stia entendo o vnculo necessrio para manter unidos os interesses particulares, que, do contrrio, se dissolveriam no antigo estado de insociabilidade. Todas as penas que ultrapassarem a necessidade de conservar esse vnculo so injustas pela prpria natureza.

    necessrio evitar associar palavra fustia idia de algo real, como fora fsica ou ser vivo. Ela mero modo de conceber dos homens, o que influencia infinitamente a felicidade de cada um. Tambm no me refiro quele tipo de justia, que emana de Deus e que tem relaes imediatas com as penas e recompensas da vida futura.

    I Observe-se que a palavra direito no contradiz a palavra fora . Direito a fora subm etida lei para vantagem da maioria. Entendo por Ju stia os laos que renem de m aneira estvel os interesses particulares. Se esses laos se quebrassem, no haveria sociedade. m ister que se evite ligar a palavra justia idia de fora fsica ou de um ser existente. Ju s tia pura e sim plesm ente o ponto de vista a partir do qual os hom ens encaram as coisas m orais para o bem -estar de cada um . No pretendo falar aqui da justia de Deus, que de outra natureza, tendo relaes imediatas com as penas e as recom pensas de um a vida futura. N ota de Beccaria.

  • IIIC o n s e q n c ia s

    A primeira conseqncia destes princpios que s as leis podem determinar as penas fixadas para os crimes, e esta autoridade somente pode residir no legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Nenhum magistrado (que parte da sociedade) pode, com justia, aplicar pena a outro membro dessa mesma sociedade, pena essa superior ao limite fixado pelas leis, que a pena justa acrescida de outra pena. Portanto, o magistrado no pode, sob qualquer pretexto de zelo ou de bem comum, aumentar a pena estabelecida para um delinqente cidado.

    A segunda conseqncia que, se cada membro em particular est ligado sociedade, essa sociedade est igualmente ligada a todos os seus membros por um contrato que, por natureza, obriga as duas partes. Essa obrigao,1 que desce do trono at a choupana e liga igualmente o mais poderoso ao mais desgraado dos homens, nada mais do que o interesse de todos, em observar pactos teis maioria. A violao, de um s pacto, gera a autorizao da anarquia. O soberano, que representa a prpria sociedade, s pode promulgar leis gerais que obriguem a todos os membros, mas no pode julgar se um deles violou o contrato social, pois, ento, a nao se dividiria em duas partes, uma, representada pelo soberano, que apontaria a violao do contrato, outra, pelo acusado, que a negaria. , pois, necessrio que um terceiro julgue a verdade do fato. Da, a necessidade do magistrado, cujas sentenas sejam inapelveis e consistam, to s, em afirmaes ou negaes de fatos particulares.

    A terceira conseqncia que, mesmo provada que a atrocidade da pena, no sendo imediatamente oposta ao bem comum e ao pr

    1 V a nota 1, p. 26 deste livro.

  • C onseq n cias 25

    prio fim de impedir os delitos, fosse apenas intil, ela seria, ainda assim, contrria no s s virtudes benficas, efeito de uma razo esclarecida, que prefere o comando de homens felizes ao de um rebanho de escravos, em meio aos quais circulasse, perpetuamente, uma tmida crueldade, contrria tambm justia e natureza do prprio contrato social.

  • IVInterpreta es das leis

    Quarta conseqncia. A autoridade de interpretar leis penais no pode ser atribuda nem mesmo aos juizes criminais, pela simples razo de que eles no so legisladores. Os juizes no receberam as leis de nossos antepassados como tradio de famlia, nem como testamento, que s deixasse aos psteros a misso de obedecer, mas recebem-nas da sociedade vivente ou do soberano que a representa, como legtimo depositrio do atual resultado da vontade de todos. No nas recebem como obrigaes1 de antigo juramento, nulo, por ligar vontades no existentes, inquo, por reduzir os homens do estado de sociedade ao estado de rebanho, mas como efeito de um juramento tcito ou expresso, que as vontades reunidas dos sditos vivos fizeram ao soberano, como vnculos necessrios para frear e reger o fermento intestino dos interesses particulares. Esta a fsica e real autoridade das leis. Quem ser ento o legtimo intrprete da lei? O soberano, isto , o depositrio das atuais vontades de todos,

    1 Se cada cidado tem obrigaes a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigaes a cumprir para com cada cidado, pois a natureza do contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes. Esse liame de obrigaes mtuas que desce do trono at a cabana e que liga igualmente o maior e o menor dos membros da sociedade, tem como fim nico o interesse pblico, que consiste na observao das convenes teis maioria. Violada uma dessas convenes, abre-se a porta desordem. A palavra obrigao uma das que se empregam mais freqentemente em moral do que em qualquer outra cincia. Existem obrigaes a cumprir no comrcio e na sociedade. Uma obrigao supe um raciocnio moral, convenes raciocinadas. No se pode, porm, emprestar palavra obrigao uma idia fsica ou real. palavra abstrata que precisa ser explicada. Ningum pode obrigar-vos a cumprir obrigaes sem saberdes quais so tais obrigaes. Nota de Beccaria.

  • In terpretaes das leis 11

    ou o juiz, cujo ofcio apenas o de examinar se determinado homem cometeu ou no ao contrria s leis?

    Em cada crime, o juiz dever estruturar um silogismo perfeito: a premissa maior deve ser a lei geral; a premissa menor, a ao, conforme ou no lei: a concluso a liberdade ou a pena. Quando o juiz for coagido, ou quiser formular somente dois silogismos, a porta incerteza estar aberta.

    Nada mais perigoso do que o axioma comum de que necessrio consultar o esprito da lei. Este um dique aberto torrente das opinies. Esta verdade, que parece paradoxal s mentes vulgares, mais abaladas por pequenas desordens presentes do que pelas funestas, mas remotas, conseqncias que nascem de um falso princpio radicado numa nao, parece-me demonstrada. Nossos conhecimentos e todas as nossas idias tm uma recproca conexo. Quanto mais so complicados, mais numerosas so as estradas que a eles levam e deles partem. Cada homem tem seu ponto de vista, e o mesmo homem, em pocas diferentes, pensa de modo diferente. O esprito da lei seria, ento, o resultado da boa ou da m lgica de um juiz; de uma fcil ou difcil digesto; dependeria da violncia de suas paixes, da fraqueza de quem sofre, das relaes do juiz com a vtima e de todas as mnimas foras que alteram as aparncias de cada objeto no esprito indeciso do homem.

    Assim, vemos a sorte de um cidado mudar vrias vezes, ao passar por diversos tribunais e vemos a vida dos miserveis ser vtima de falsos raciocnios ou do atual fermento dos humores de um juiz, o qual tomou como legtima interpretao o vago resultado de toda uma srie confusa de noes, que lhe agitam a mente. Vemos, pois, os mesmos delitos punidos diferentemente em pocas diferentes, pelo mesmo tribunal, por ter este consultado no a voz imutvel e constante da lei, mas a errante instabilidade das interpretaes.

    A desordem, que nasce da rigorosa observncia da letra de uma lei penal, no se compara com as desordens que nascem da interpretao. Tal momentneo inconveniente leva correo fcil e necessria das palavras da lei, causa da incerteza, mas impede a fatal licena da razo, da qual nascem as arbitrrias e venais controvrsias. Quando um cdigo fixo de leis, que devem ser observadas ad litteram , s deixa ao juiz a incumbncia de examinar as aes dos

  • 28 Dos D e l it o s e das P e n a s

    cidados e de julg-las de acordo ou no com a lei escrita; quando a norma do justo e do injusto, que deve guiar tanto os atos do cidado ignorante como os do filsofo, no questo controvertida, mas de fato, ento os sditos no esto sujeitos s pequenas tiranias de muitos, tanto mais cruis quanto menor a distncia entre quem sofre e quem faz sofrer; mais fatais do que as de um s, porque o despotismo de muitos somente corrigvel pelo despotismo de um s e a crueldade de um dspota proporcional no fora, mas aos obstculos. Dessa forma, adquirem os cidados a prpria segurana, que justa por ser o escopo pelo qual os homens vivem em sociedade e til porque os levam exatamente a calcular os inconvenientes de um crime. verdade, ainda, que adquiriro um esprito de independncia, mas que no ir abalar as leis, nem ser recalcitrante aos supremos magistrados, resistindo, porm, aos que ousarem chamar, com o sagrado nome de virtude, a fraqueza de ceder s suas interessadas ou caprichosas opinies. Esses princpios desagradaro a todos os que se impuserem o direito de transmitir aos inferiores os golpes da tirania que receberam dos superiores. Estarei preparado para tudo temer, se o esprito da tirania for consonante com o esprito da leitura.

  • O b s c u r id a d e das leis

    Se a interpretao das leis um mal, claro que a obscuridade, que a interpretao necessariamente acarreta, tambm um mal, e este mal ser grandssimo se as leis forem escritas em lngua estranha ao povo,1 que o ponha na dependncia de uns poucos, sem que possa julgar por si mesmo qual seria o xito de sua liberdade, ou de seus membros, em lngua que transformasse um livro, solene e pblico, em outro como que privado de casa. Que deveremos pensar dos homens, quando refletimos que este o inveterado costume de boa parte da culta e esclarecida Europa! Quanto maior for o nmero dos que entenderem e tiverem nas mos o sagrado cdigo das leis, tanto menos freqentes sero os delitos, pois no h dvida de que a ignorncia e a incerteza das penas contribuem para a eloqncia das paixes.

    Conseqncia destas ltimas reflexes que, sem escrita, a sociedade jamais teria forma fixa de governo, onde a fora fosse conseqncia do todo e no das partes e onde as leis alterveis, apenas pelo consenso geral, no se corrompam, passando pela grande quantidade dos interesses privados. A experincia e a razo demons- traram-nos que a probabilidade e a certeza das tradies humanas diminuem medida que estas se distanciam da fonte. Se no houver monumento estvel do pacto social, como resistiro as leis fora inevitvel do tempo e das paixes?

    Vemos, assim, quanto til a imprensa, que faz do pblico, e no apenas de alguns, o depositrio das leis sagradas e quanto sumiu o esprito tenebroso da cabala e da intriga, que desaparece diante das

    l Latim era a lngua estranha ao povo, usada pela elite, pelos doutos, sendo o sermo vulgaris a lngua popular, da plebe.

  • 30 Dos D e l it o s e d a s P e n a s

    luzes e das cincias, aparentemente desprezadas por seus sequazes, mas na verdade temidas por eles. Esta a razo pela qual vemos diminudas na Europa a atrocidade dos crimes, que faziam gemer nossos antepassados, os quais se tornavam, alternadamente, tiranos e escravos. Quem conhece a histria dos ltimos dois ou trs sculos e a nossa, poder ver, como, no seio do luxo e da apatia, nasceram as mais doces virtudes, a saber, a filantropia, a benevolncia e a tolerncia para com os erros humanos. Vero quais foram os efeitos daquilo que sem razo denominamos de antiga simplicidade e boa- f; a humanidade, gemendo sob a implacvel superstio; a avareza, a ambio de alguns, tingindo com o sangue humano os escrnios de ouro e os tronos dos reis, as ocultas traies e os massacres pblicos, todos os nobres, tiranos da plebe. Os ministros da verdade evanglica, sujando de sangue as mos que todos os dias tocavam o Deus da mansuetude, no so obra deste sculo esclarecido, que alguns denominam corrupto.

  • P r o p o r o e n tr e o s d e l it o s e a s p e n a s

    VI

    mm

    No somente interesse de todos que no se cometam delitos, como tambm que estes sejam mais raros proporcionalmente ao mal que causam sociedade. Portanto, mais fortes devem ser os obstculos que afastam os homens dos crimes, quando so contrrios ao bem pblico e na medida dos impulsos que os levam a delinqir. Deve haver, pois, proporo entre os delitos e as penas.

    Impossvel evitar todas as desordens, no universal combate das paixes humanas. Crescem elas na proporo geomtrica da populao e do entrelaamento dos interesses particulares, que no possvel dirigirem geometricamente para a utilidade pblica. A exatido matemtica deve ser substituda, na aritmtica poltica, pelo clculo das probabilidades. Se lanarmos um olhar para a histria, veremos crescerem as desordens com os limites dos imprios, diminuindo o sentimento nacional na mesma proporo e, assim, a tendncia para o crime cresce na razo do interesse que cada um tem nas prprias desordens. Por esse motivo, a necessidade de ampliar as penas vai sempre aumentando.

    Essa fora, semelhante da gravidade, que nos impele ao bem- estar, s se refreia, na medida dos obstculos que lhe so levantados. Os efeitos desta fora so a confusa srie das aes humanas. Se estas se chocam e se ferem, umas com as outras, as penas, a que eu chamaria de obstculos polticos, impedem-lhe o efeito nocivo sem destruir a fora motriz, que a prpria sensibilidade inseparvel d homem. E o legislador faz como hbil arquiteto, cujo ofcio opor- se s diretrizes ruinosas da gravidade e pedir a colaborao das que contribuem para a firmeza do edifcio.

    Dada necessidade da reunio dos homens, por causa dos pactos que, necessariamente, resultam da prpria oposio dos interesses

  • privados, forma-se uma escala de desordens, das quais o primeiro grau consiste naquelas que destroem imediatamente a sociedade, e, o ltimo, na mnima injustia possvel, feita a seus membros privados. Entre esses dois extremos encontram-se todas as aes opostas ao bem comum, chamadas delitos, que vo decrescendo, por graus insensveis, do mais grave ao mais leve. Se a geometria fosse adaptvel s infinitas e obscuras combinaes das aes humanas, deveria existir uma escala paralela de penas, descendo da mais forte para a mais fraca, mas bastar ao sbio legislador assinalar os pontos principais, sem alterar-lhes a ordem, no cominando, para os delitos de primeiro grau, as penas do ltimo. Se existisse escala precisa e universal de penas e delitos, teramos medida provvel e comum dos graus de tirania e de liberdade, do fundo de humanidade ou de malcia das diversas naes.

    Toda ao, no compreendida entre os dois limites, supramen- cionados, no pode ser chamada de delito, nem punida como tal, seno por aqueles que tm interesse em assim cham-la. A incerteza desses limites produziu, nas naes, moral que contradiz as leis, leis mais atuais que se excluem reciprocamente e uma quantidade de leis que submetem o mais sbio a penas mais rigorosas. Assim vagos e flutuantes ficaram os sentidos das palavras vcio e virtude. Nasceu, assim, a incerteza da prpria existncia, o que produz a letargia e o sono fatal dos corpos polticos. Quem ler sob o ngulo filosfico os cdigos das naes e os respectivos anais, observar, quase sempre, as palavras vcio e virtude, bom cidado ou ru, que se alteram com as revolues dos sculos, no em razo das mutaes ocorridas nas circunstncias das naes, e, por isso, sempre de acordo com o interesse geral, mas em razo das paixes e dos erros que agitaram sucessivamente os diversos legisladores. Ver freqentemente que as paixes de um dado sculo so a base da moral dos sculos seguintes. As paixes desenfreadas, filhas do fanatismo e do entusiasmo, enfraquecidas e corrodas, diria eu, pelo tempo, que reduz ao equilbrio todos os fenmenos fsicos e morais, tornam-se pouco a pouco a prudncia do sculo e til instrumento nas mos dos fortes e perspicazes. Desse modo, nasceram as obscuras noes de honra e de virtude, e isso ocorre, porque mudam com as revolues do tempo, que antepem os nomes s coisas, mudam como o curso

  • P roporo en tre os delitos e as p en as 33

    dos rios e como as montanhas, que marcam freqentemente os limites no s da geografia fsica, como tambm da geografia moral.

    Se o prazer e a dor so a fora motriz dos seres sensveis, se entre os motivos que impelem os homens para aes mais sublimes foram colocados, pelo invisvel legislador, o prmio e o castigo, a distribuio inexata destes produzir a contradio, tanto menos observada, quanto mais comum, de que as penas castigam os delitos a que deram origem. Se pena igual for cominada a dois delitos que desigualmente ofendem a sociedade, os homens no encontraro nenhum obstculo mais forte para cometer o delito maior, se disso resultar maior vantagem.

  • VIIE r r o s n a m e d id a d a s p e n a s

    As precedentes reflexes do-me o direito de afirmar que a nica e verdadeira medida do delito o dano causado nao, errando, assim, os que pensavam que a verdadeira medida do delito era a inteno de quem o comete. Esta depende da impresso atual dos objetos e da precedente disposio do esprito. Elas variam de homem para homem, e, em cada homem, com a velocssima sucesso das idias, das paixes e das circunstncias. Seria, ento, necessrio elaborar um Cdigo especial para cada cidado e uma nova lei para cada delito. s vezes, os homens, com a melhor das intenes, causam o maior mal sociedade. Outras vezes, com a maior m vontade, causam o maior bem.

    Outros medem o delito mais pela dignidade da pessoa ofendida do que por sua importncia em relao ao bem-estar geral. Se esta fosse verdadeira medida do delito, uma irreverncia para com o Ser dos seres deveria ser punida mais atrozmente do que o assassinato de um monarca, porque a superioridade da natureza compensaria infinitamente a diferena da ofensa.

    Finalmente, alguns chegaram a pensar que a gravidade do pecado seria levada em considerao na medida do delito. A falsidade dessa opinio saltar aos olhos do objetivo examinador das verdadeiras relaes entre os homens, e entre estes e Deus. As primeiras so relaes de igualdade. S a necessidade fez nascer do choque das paixes e das oposies dos interesses a idia de utilidade comum, base da justia humana. As segundas so relaes de dependncia de um Ser perfeito e criador, que reservou para si apenas o direito de legislar e julgar ao mesmo tempo, pois s ele pode faz-lo sem inconveniente. Se Deus cominasse penas eternas para quem lhe desobedecesse a onipotncia, qual seria o inseto que ousaria suprir

  • Erros na medida das penas 35

    a divina justia, querendo vingar o Ser que bastasse a si mesmo e que no pudesse receber dos objetos nenhuma impresso de prazer ou dor, e que, nico entre os seres, agisse sem reao? A gravidade do pecado depende da insondvel malcia do corao, a qual no pode ser conhecida por seres finitos, sem a Revelao. Como poderia, pois, tal malcia fixar-se em norma para a punio dos delitos? Nesse caso, poderiam os homens castigar, quando Deus perdoa, e perdoar quando Deus castiga. Se os homens pudessem estar em oposio ao Onipotente ao ofend-lo, poderiam tambm, ao punir, contradiz-lo.

  • /( 0. -4 ^ " . . . j - r J

    V I I I

    D iv is o d o s d e l it o s

    Vimos que a verdadeira medida do delito o dano sociedade. Esta uma daquelas palpveis verdades, que, embora no precisem de quadrantes nem de telescpios para serem reveladas, pois esto ao alcance de toda inteligncia medocre; todavia, por maravilhosa combinao de circunstncias, so conhecidas com firme segurana somente por alguns poucos pensadores, homens de todas as naes e de todos os sculos. Mas as opinies ostensivas e as paixes revestidas de autoridade e poder, a maioria das vezes por meio de insensveis impulsos, outras poucas por impresses violentas sobre a tmida credulidade dos homens, dissiparam as noes simples que formavam, talvez, a primeira filosofia das sociedades nascentes. A luz deste sculo parece que reconduz a essas noes, com maior firmeza, no entanto, que pode ser proporcionada por um exame geomtrico, por mil experincias funestas e pelos prprios obstculos. Nossa ordem de expor levar-nos-ia a examinar e a distinguir os diversos tipos de delitos ou a maneira de puni-los, se a varivel natureza desses delitos, pela diversa circunstncia ligada aos sculos e aos lugares, no nos levasse a imenso e tedioso pormenor. Bastar- me- indicar os princpios mais gerais e os erros mais danosos e comuns para desmentir tanto os que, por um mal compreendido amor de liberdade, gostariam de introduzir a anarquia, quanto os que desejariam reduzir os homens a uma regularidade claustral.

    Alguns delitos destroem imediatamente a sociedade ou quem a representa, outros defendem a segurana do cidado na vida privada, nos bens, na honra; outros so aes contrrias quilo que, por lei, cada um obrigado a fazer ou no fazer, em vista do bem geral. Os primeiros, isto , os delitos mximos, porque mais danosos, so os chamados de lesa-majestade. S a tirania e a ignorncia, que con-

  • Diviso dos delitos 37

    fundem os vocbulos e as idias mais claras, podem dar esse nome e, por conseguinte, cominar pena mxima a delitos de naturezas diferentes, de modo a fazer os homens, como em outras mil ocasies, vtimas de um s vocbulo. Cada delito, embora privado, ofende a sociedade, mas nem todo delito procura a destruio imediata dessa mesma sociedade. As aes morais, assim como as fsicas, tm esfera limitada de atividade e, como todos os movimentos da natureza, so diversamente circunscritas ao tempo e ao espao. S a interpretao cavilosa, que comumente a filosofia da escravido, pode confundir aquilo que a verdade eterna com imutveis relaes distinguiu.

    Seguem-se os crimes contra a segurana de cada particular. Sendo este o fim primeiro de toda legtima associao, no possvel deixar de cominar violao do direito de segurana, adquirido pelo cidado, penas das mais severas, fixadas pelas leis.

    A opinio que cada cidado deve ter de poder fazer tudo o que no contrrio lei, sem temer outro inconveniente, alm do que pode resultar da prpria ao eis o dogma poltico em que os povos deveriam acreditar e que os supremos magistrados deveriam apregoar com a incorruptvel proteo das leis, dogma sagrado, sem o qual no pode haver sociedade legtima, certa recompensa pelo sacrifcio, por parte dos homens, daquela ao universal sobre todas as coisas, que comum a cada ser sensvel e limitada apenas pela prpria fora. Eis o que torna as almas livres e vigorosas e as mentes esclarecidas, que faz os homens virtuosos, mas virtude que sabe resistir ao temor, e no da prudncia submissa, digna apenas de quem pode tolerar precria e incerta existncia. Atentados contra a segurana e a liberdade dos cidados constituem, pois, um dos maiores crimes e, nessa classe, incluem-se no apenas os assassinatos e os furtos dos plebeus, mas tambm os dos grandes e dos magistrados, cuja influncia age a maior distncia e com maior vigor, destruindo, nos sditos, as idias de justia e de dever, substituindo-as pela do direito do mais forte, perigoso no s para quem o exerce como tambm para quem o suporta.

  • IXD a h o n r a

    H marcante contradio entre as leis civis, zelosas guardis, acima de tudo, do corpo e dos bens de cada cidado, e as leis relativas ao que se chama de honra, a qual coloca, em primeiro plano, a opinio. A palavra honra uma das que serviram de base para longos e brilhantes raciocnios, sem que estivesse associada a nenhuma idia fixa ou estvel. Msera condio da mente humana a de que as idias menos importantes e mais remotas sobre as revolues dos corpos celestes sejam conhecidas melhor do que as prximas e importantssimas noes morais, sempre flutuantes e confusas, merc do vendaval das paixes que as impelem e da ignorncia dirigida que as recebe e as transmite! O aparente paradoxo desaparecer, porm, se se ponderar que, assim como os objetos bem prximos da vista se confundem, assim tambm a excessiva proximidade das idias morais faz com que facilmente se misturem as mltiplas idias simples que as compem, confundindo as linhas de separao, necessrias ao esprito geomtrico que quer medir os fenmenos da sensibilidade humana, acabando por esvair-se de toda a maravilha do indiferente pesquisador das coisas humanas, que suspeitar que tanto aparato moral e tantos liames no sejam necessrios para tornar os homens felizes e seguros.

    Essa honra , pois, uma daquelas idias complexas que constituem um bloco no apenas de idias simples, mas tambm de idias igualmente complexas que, assomando reiteradamente mente, ora admitem, ora excluem alguns dos diversos elementos que as compem, conservando apenas algumas idias comuns, assim como, na lgebra, vrias quantidades complexas admitem um divisor comum. Para achar o mximo divisor comum, nas vrias idias que os homens fazem da honra, preciso lanar uma vista rpida de olhos

  • D a h on ra 39

    sobre a formao das sociedades. As primeiras leis e os primeiros magistrados nasceram da necessidade de corrigir as desordens geradas pelo despotismo fsico de cada homem, finalidade esta instituidora da sociedade e esta finalidade primeira sempre foi mantida, na realidade ou na aparncia, no incio de todos os cdigos, mesmo quando danosos, mas a aproximao dos homens e o progresso de seus conhecimentos originaram infinita srie de aes e necessidades, impelindo uns contra outros, sempre superiores providncia das leis e inferiores ao atual poder de cada um. Foi nessa poca que comeou o despotismo da opinio, nico meio de obter de outrem aqueles bens e de afastar os males contra os quais as leis eram insuficientes. a opinio que atormentou o sbio e o vulgo, que valorizou a aparncia da virtude acima da prpria virtude, que converteu em missionrio at o criminoso, para que ali encontrasse seu interesse. Portanto, as aprovaes dos homens se tornaram no s teis, mas necessrias, para no descer abaixo do nvel comum. Portanto, se o ambicioso conquista a virtude, porque ela til, se o vaidoso a mendiga, como prova do prprio mrito, v-se o homem honrado exigi-la como necessria. Essa honra a condio que muitssimos homens consideram indispensvel sua existncia. Nascida aps a formao da sociedade, ela no pde ser colocada na vala comum. Assim, um instantneo retorno ao estado natural e uma subtrao momentnea da prpria pessoa s leis que, nesse caso, no servem para defender suficientemente o cidado.

    Portanto, quer na radical liberdade poltica, quer na radical dependncia, desaparecem as idias de honra ou se confundem perfeitamente com outras, porque no primeiro caso o despotismo das leis torna intil a busca da aprovao alheia, no segundo caso, porque o despotismo dos homens, anulando a existncia civil, os reduz a uma precria e momentnea personalidade. A honra , pois, um dos princpios fundamentais daquelas monarquias que so um despotismo atenuado e, nelas, correspondem s revolues nos estados despticos, momentnea volta ao estado da natureza e uma recordao do padro da antiga igualdade.

  • D O S DUELOS, ' . i r t - 1 . , ' 1

    Da necessidade da aprovao dos outros nasceram os duelos privados, originados da anarquia das leis. Pretende-se que fossem desconhecidos na Antigidade, talvez porque os antigos se reuniam, sem armas e sem desconfiana, nos templos, nos teatros, ou com os amigos. Ou talvez porque o duelo fosse espetculo ordinrio e comum que os gladiadores escravos e aviltados ofereciam ao povo, e que os homens livres, recusando os combates privados, afastavam a aparncia e o nome de gladiadores. Em vo, os editos, contra quem aceitasse o duelo, procuraram extirpar tal costume, cujo fundamento se encontra naquilo que alguns homens temem mais do que a prpria morte, pois, sem a aprovao alheia, o homem honrado se v exposto a tornar-se um ser meramente solitrio, estado insuportvel para o homem socivel, ou tornar-se alvo de insultos e da infmia, que com a ao repetida acabam prevalecendo sobre o perigo da pena.

    Por que motivo o populacho se bateria, em duelo, menos do que os grandes? No s por no possuir armas, como tambm porque a necessidade da aprovao alheia menos comum entre a plebe do que entre aqueles que, estando em nvel mais alto, se entreolham com maior suspeita e com maior inveja.

    No intil repetir o que outros j escreveram, a saber, que o melhor mtodo de prevenir o delito punir o agressor, ou seja, quem deu motivo para o duelo, declarando inocente aquele que, sem culpa, foi obrigado a defender o que as leis atuais no asseguram, isto , a opinio, e teve que mostrar aos concidados que teme somente as leis e no os homens.

  • XID A TRANQILIDADE PBLICA

    Por fim, entre os delitos da terceira espcie esto particularmente includos os que perturbam a tranqilidade pblica e o sossego do cidado, como algazarras e espalhafatos, nas vias pblicas destinadas ao comrcio e passagem dos cidados, como os fanticos discursos que inflamam as fceis paixes da curiosa multido, as quais ganham fora pela freqncia dos ouvintes, mais pelo obscuro e misterioso entusiasmo, do que pela clara e tranqila razo, que nunca influi sobre a grande massa humana.

    A noite iluminada s expensas pblicas, os guardas distribudos pelos diferentes bairros da cidade, os simples e morais discursos da religio, reservados ao silncio e sacra tranqilidade dos templos protegidos pela autoridade pblica, os aranzis destinados a apoiar os interesses privados e pblicos nas assemblias da nao, nos parlamentos ou onde reside a majestade do soberano, so, em conjunto, meios eficazes para prevenir a perigosa intensidade das paixes populares. Estas formam os principais ramos da vigilncia do magistrado, que os franceses denominam polcia, mas se esse magistrado agisse, aplicando leis arbitrrias e no estabelecidas por um cdigo que circulasse pelas mos de todos os cidados, estaria aberta uma porta tirania que cerca todas as fronteiras da liberdade poltica. No encontro exceo alguma ao axioma geral de que todo d d ad o deve saber se ru ou inocente. Se os censores e, de um modo geral, os magistrados arbitrrios so necessrios em qualquer governo, isso decorre da fraqueza de sua constituio e no da natureza de governo bem organizado. A incerteza da prpria sorte sacrificou mais vtimas obscura tirania, do que a pblica e solene crueldade. Ela revolta os nimos mais do que os avilta. O verdadeiro tirano comea sempre por dominar a opinio, que previne a coragem, a

  • 42 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    qual s pode resplandecer ou sob a clara luz da verdade, no fogo das paixes, ou ainda na ignorncia do perigo.

    Quais sero, entretanto, as penas adequadas a esses delitos? Ser a morte uma pena realmente til e necessria para a segurana e para a boa ordem da sociedade? Sero a tortura e os suplcios justos, e alcanaro eles o fim a que as leis se propem? Qual ser a melhor maneira de prevenir os delitos? Sero as mesmas penas igualmente teis em todos os tempos? Que influncia tero as penas sobre os costumes? Estes problemas merecem ser resolvidos com a preciso geomtrica a que a nebulosidade dos sofismas, a sedutora eloqncia e a tmida dvida no podem resistir. Se eu s tivesse tido o mrito de ter sido o primeiro a apresentar na Itlia, com algum realce maior, aquilo que as outras naes ousaram escrever e comeam a praticar, julgar-me-ia feliz, mas se, apoiando os direitos dos homens e da invencvel verdade, eu tivesse contribudo para arrancar dos espasmos e das vascas da morte algumas vtimas infelizes da tirania e da ignorncia, no menos fatal, as bnos e as lgrimas, mesmo as de um s inocente, nos transportes da alegria, me consolariam do desprezo dos homens.

  • XIIF in a l id a d e s d a p e n a

    Da simples considerao das verdades, at aqui expostas, fica evidente que o fim das penas no atormentar e afligir um ser sensvel, nem desfazer o delito j cometido. concebvel que um corpo poltico que, bem longe de agir por paixes, o tranqilo moderador das paixes particulares, possa albergar essa intil crueldade, instrumento do furor e do fanatismo, ou dos fracos tiranos? Poderiam talvez os gritos de um infeliz trazer de volta, do tempo, que no retorna, as aes j consumadas? O fim da pena, pois, apenas o de impedir que o ru cause novos danos aos seus concidados e demover os outros de agir desse modo.

    , pois, necessrio selecionar quais penas e quais os modos de aplic-las, de tal modo que, conservadas as propores, causem impresso mais eficaz e mais duradoura no esprito dos homens, e a menos tormentosa no corpo do ru.

  • XIIID AS TESTEMUNHAS

    Ponto considervel, em toda boa legislao, o de determinar exatamente a credibilidade das testemunhas e das provas do crime. Todo homem razovel, isto , que tenha idias conexas e cujas sensaes sejam conformes s dos outros homens, pode ser arrolado como testemunha. A verdadeira medida de sua credibilidade to- somente o interesse que tenha em dizer ou no a verdade, razo por que frvolo o argumento da fraqueza das mulheres, pueril a aplicao dos efeitos da morte real morte civil nos condenados, e incoerente a nota de infmia nos infames, quando as testemunhas no tenham interesse algum em mentir. A credibilidade, pois, deve diminuir na proporo do dio ou da amizade, ou das estreitas relaes existentes entre a testemunha e o ru. necessria mais de uma testemunha, porque enquanto uma afirma e a outra nega, nada haver de certo, e prevalecer o direito que cada um tem de ser considerado inocente. A credibilidade de uma testemunha torna-se to sensivelmente menor quanto mais cresce a atrocidade do delito1 ou

    1 Entre os penalistas, ao contrrio, a credibilidade que o testemunho merece aumenta em proporo da atrocidade do crime. Apoiam-se eles neste axioma de ferro, ditado pela mais cruel imbecilidade: In atrocissimis levio- res conjecturae sufficiunt, et licet judiei jura transgredi. Traduzamos essa mxima hedionda, para que a Europa conhea ao menos um dos revoltantes princpios e to numerosos aos quais est submetida quase sem o saber: Nos delitos mais atrozes, isto , menos provveis, as mais ligeiras circunstncias bastam, e o juiz pode colocar-se acima das leis. Os absurdos, em uso na legislao, so muitas vezes o resultado do meio, fonte inesgotvel das inconseqncias e dos erros humanos. Os legisladores, ou antes, os jurisconsultos, cujas opinies so consideradas aps sua morte como espcie de orculos, e que, como escritores vendidos ao interesse, se tornaram rbitros soberanos da sorte dos homens, os legisladores, repito,

  • D as testem unhas 45

    a inverossimilhana das circunstncias, como, por exemplo, a magia e as aes gratuitamente cruis. mais provvel que vrios homens mintam na primeira acusao, porque mais fcil combinar-se, em muitos, a iluso da ignorncia ou o dio perseguidor, do que se exercer, por um s, um poder que Deus no deu ou suprimiu de toda criatura. O mesmo acontece na segunda acusao, pois o homem s cruel na proporo do seu prprio interesse, do dio, ou do temor que concebeu. No h propriamente, no homem, nenhum sentimento suprfluo, pois este sempre proporcional ao resultado das impresses exercidas sobre os sentidos. Igualmente, a credibilidade de uma testemunha pode ser s vezes diminuda, quando ela seja membro de sociedade privada, cujos costumes e normas no so bem conhecidos ou divirjam das normas pblicas. Tal homem une as prprias paixes as paixes alheias.

    Finalmente, quase nula a credibilidade da testemunha quando se faz das palavras, um delito, pois o tom, o gesto, o que precede e o que segue s diversas idias que os homens associam s mesmas palavras altera e modifica de tal modo seus dizeres que quase impossvel repeti-las exatamente como foram pronunciadas. As aes violentas e fora do comum, como os verdadeiros delitos, deixam traos na quantidade das circunstncias e nos efeitos decorrentes, mas as palavras s permanecem na memria, quase sempre infiel e geralmente sedutora dos ouvintes. , pois, muito mais fcil a calnia relativa s palavras do que a referente s aes de um homem, porque quanto maior for o nmero de circunstncias apresentadas como prova, tanto maiores sero os meios fornecidos ao ru para justificar-se.

    receosos de ver condenar inocentes, sobrecarregaram a jurisprudncia de formalidades e exaes inteis, cuja exata observao colocaria a desordem e a impunidade no trono da Justia. Outras vezes, assombrados com certos crimes atrozes e difceis de provar, acharam que deviam desprezar as formalidades que eles prprios estabeleceram. Foi assim que, dominados ora por um despotismo impertinente, ora por temores pueris, fizeram dos julgamentos mais graves uma espcie de jogo abandonado ao acaso e aos caprichos do arbtrio. Nota de Beccaria.

  • I n d c io s e f o r m a s d e j u l g a m e n t oa@BH*86B*6S5SS&fc3S$8KHS5*a8!^2K^^

    XIV

    H um teorema geral muito til para calcular a certeza de um fato, isto , a fora dos indcios de um crime. Quando as provas do fato dependem de outra prova, isto , quando os indcios s se provam entre si, quanto maiores forem as provas aduzidas, menor ser a probabilidade da existncia do fato, porque os casos que enfraquecessem as provas precedentes enfraqueceriam as subseqentes. Quando todas as provas do fato dependem de uma s prova, esse nmero no aumenta nem diminui a probabilidade do fato, porque todo seu valor se reduz ao valor da nica prova de que dependem. Quando as provas independem umas das outras, ou seja, quando os indcios se provam por si mesmos, quanto maiores forem as provas aduzidas, mais aumentar a probabilidade do fato, pois a falsidade de uma das provas no influi sobre a outra. Falo da probabilidade em matria de delitos que, para merecerem uma pena, devem ser tidos como certos. O paradoxo, entretanto, esvair-se- para quem considere que, rigorosamente, a certeza moral no seno uma probabilidade, mas probabilidade tal que denominada certeza, pois todo homem de bom senso nela consente necessariamente por um hbito nascido da necessidade de agir e anterior a toda especulao. A certeza que se exige para determinar que um homem ru, pois, a que caracteriza cada homem nas operaes mais importantes de sua vida. Pode-se dividir as provas de um crime em perfeitas e imperfeitas. Denomino perfeitas as provas que excluem a possibilidade de algum no ser culpado e chamo imperfeitas as que no a excluem. Das primeiras basta uma s prova para a condenao. Das outras bastam tantas quantas sejam necessrias para constituir a prova perfeita, ou seja, que, se com cada uma destas, em particular, possvel que algum no seja ru, diante de sua soma, no mesmo

  • Indcios e fo rm a s d e ju lg am en to 47

    caso, impossvel que no o seja. Note-se que as provas imperfeitas pelas quais o ru pode justificar-se e no o faa suficientemente se tornem perfeitas, mas esta certeza moral de provas mais fcil de ser sentida do que exatamente definida. Por isso, julgo tima a lei que indica assessores para o juiz principal por sorteio e no por escolha, pois, neste caso, mais segura a ignorncia que julga pelo sentimento do que a cincia que julga pela opinio. Onde as leis so claras e precisas, o ofcio do juiz no seno o de averiguar o fato. Se, na busca das provas do delito, se exigir habilidade e destreza, se, na apresentao do resultado, forem necessrias clareza e preciso, para julgar essa concluso, nada mais se exigir do que mero e comum bom senso, menos enganoso do que o saber de um juiz habituado a pretender encontrar rus e que reduz tudo a mero sistema terico, extrado de seus estudos. Feliz a nao cujas leis no so cincia! muito Util a lei que faz cada homem ser julgado por seus iguais, pois, quando se trata da liberdade e do destino do cidado, devem silenciar os sentimentos inspirados pela desigualdade. A superioridade com que o homem de sorte olha para o infeliz, o pouco caso com que o inferior olha para o superior, no podem influir nesse juzo. Quando, porm, o delito constituir ofensa a terceiro, ento, os juizes devero ser a metade pares do ru, e a outra metade pares do ofendido. Estando assim equilibrado todo interesse particular que modifica tambm, involuntariamente, as aparncias dos objetos, s prevalecem as leis e a verdade. , ento, conforme a justia que o ru possa excluir at certo ponto os que lhe so suspeitos, e, se isso lhe for concedido sem problema, por algum tempo, parecer que o ru se condenar a si prprio. Pblicos sejam os julgamentos e pblicas sejam as provas do crime, para que a opinio, que talvez o nico cimento da sociedade, imponha freio fora e s paixes, para que o povo diga no somos escravos e somos defendidos, sentimento que inspira coragem e que eqivale a um tributo ao soberano que conhece seus verdadeiros interesses. No acenarei a outros pormenores e cautelas, exigidos por instituies semelhantes. Nada teria dito se tivesse sido necessrio dizer tudo.

  • X VA c u s a e s secretas

    Em muitas naes, pela fraqueza da organizao, acusaes secretas, mas consagradas e necessrias, provocam desordens, costume esse que torna os homens falsos e dissimulados. Quem achar que outrem delator, nele ter um inimigo. Os homens costumam, ento, mascarar os sentimentos e, tendo o hbito de ocult-los dos outros, acabam finalmente por ocult-los de si mesmos. Infelizes os homens que chegaram a tal extremo! Sem princpios claros e estveis que os orientem, vagam, aqui e ali, desgarrados e flutuantes no vasto oceano das opinies, sempre preocupados em salvar- se dos monstros que os ameaam, passando o momento presente amargurados sempre pela incerteza do futuro. Privados dos prazeres duradouros da tranqilidade e da segurana, s alguns deles, espalhados aqui e ali, ao longo de sua melanclica existncia, devorados pela pressa e pela desordem, consolam-nos de haver vivido. desses homens que faremos os corajosos soldados defensores da ptria ou do trono? Encontraremos, entre eles, incorruptos magistrados que, com livre e patritica eloqncia, sustentem e desenvolvam os verdadeiros interesses do soberano, que levam ao trono, com os tributos, o amor e as bnos de homens de todos os nveis e do trono, trazendo de volta aos palcios e s cabanas, a paz, a segurana e a industriosa esperana de melhorar a sorte, til fermento e vida dos Estados?

    Quem poder defender-se da calnia, quando esta se protege com o mais forte escudo da tirania, o segredo? Que espcie de governo esse, em que o regente pretende ver em cada sdito um inimigo e, para assegurar o sossego pblico, obrigado a tirar o sossego de cada um?

  • A cu saes secreta s 49

    Que motivos justificariam as acusaes e as penas secretas? A salvao pblica, a segurana e a manuteno da forma de governo? Que estranha organizao essa, onde quem detm a fora e a opinio, ainda mais eficaz que a fora, teme cada cidado! A incolumidade do acusador? As leis, assim, so insuficientes para defend-lo. E haver sditos mais fortes que o soberano! A infmia do delator? Autoriza-se, pois, a calnia secreta e pune-se a calnia pblica! A natureza do delito? Se as aes indiferentes, ainda que teis ao pblico, forem chamadas delitos, as acusaes e os julgamentos nunca sero suficientemente secretos. Pode haver delitos, isto , ofensas pblicas, mas, ao mesmo tempo, pode no ser do interesse de todos tornar pblico o exemplo, isto , o julgamento? Respeito todos os governos, e no falo de nenhum em particular. A natureza das circunstncias tal, s vezes, que se pode julgar como a pior das runas erradicar um mal que, na verdade, inerente ao sistema de uma nao, mas, se eu tivesse que publicar novas leis em algum recanto abandonado do universo, antes de autorizar esse costume, minha mo tremeria e eu veria toda a posteridade diante dos meus olhos.

    J o disse o senhor de Montesquieu que as acusaes pblicas so mais conformes repblica, onde o bem pblico deveria constituir a primeira paixo dos cidados, antes mesmo da monarquia, onde esse sentimento fraqussimo pela prpria natureza do governo e onde timo o procedimento de nomear comissrios que, em nome de todos, acusem os infratores das leis. Entretanto, todo governo, no s republicano como monrquico, deve aplicar ao caluniador a pena que tocaria ao acusado.

  • XVID A TORTURA

    Crueldade, consagrada pelo uso, na maioria das naes, a tortura do ru durante a instruo do processo, ou para for-lo a confessar o delito, ou por haver cado em contradio, ou para descobrir os cmplices, ou por qual metafsica e incompreensvel purgao da infmia, ou, finalmente, por outros delitos de que poderia ser ru, mas dos quais no acusado.

    Um homem no pode ser chamado culpado antes da sentena do juiz, e a sociedade s lhe pode retirar a proteo pblica aps ter decidido que ele violou os pactos por meio dos quais ela lhe foi outorgada. Qual , pois, o direito, seno o da fora, que d ao juiz o poder de aplicar pena ao cidado, enquanto existe dvida sobre sua culpabilidade ou inocncia? No novo este dilema: ou o delito certo ou incerto. Se for certo, no lhe convm outra pena seno a estabelecida pelas leis, e inteis so os tormentos, pois intil a confisso do ru. Se for incerto, no se deveria atormentar o inocente, pois inocente, segundo a lei, o homem cujos delitos no so provados. E acrescento mais: querer subverter a ordem das coisas exigir que um homem seja ao mesmo tempo acusador e acusado, que a dor se torne o cadinho da verdade, como se o critrio dessa verdade residisse nos msculos ou nas fibras de um infeliz. Este o meio seguro de absolver os robustos criminosos e de condenar os fracos inocentes. Eis os fatais inconvenientes desse pretenso critrio da verdade, mas critrio digno de um canibal, que os romanos, brbaros por mais de um ttulo, reservaram apenas aos escravos, vtimas de to feroz quanto muito louvada virtude.

    Qual a finalidade poltica da pena? O medo dos outros homens. Que juzo deveremos fazer, ento, das carnificinas secretas e privadas que o uso tirnico outorga tanto ao culpado quanto ao inocente?

  • D a tortura 51

    importante que nenhum crime comprovado permanea impune, mas intil investigar a autoria do crime sepulto nas trevas. Mal j consumado, e para o qual no h remdio, s pode ser punido pela sociedade poltica para influir nos outros com a iluso da impunidade. Se for verdade que o nmero dos homens que, por medo ou virtude, respeitam as leis, superior ao nmero dos que a infringem, o risco de atormentar um inocente deve ser tanto mais bem avaliado quanto maior a probabilidade de que um homem, em condies iguais, as tenha mais respeitado que desprezado.

    Outro motivo ridculo da tortura o da purgao da infmia, isto , que um homem julgado infame pelas leis deva confirmar seu depoimento com a tritura de seus ossos. Esse abuso no deveria ser tolerado no sculo XVIII. Acredita-se que a dor, que sensao, purgue a infmia, que mera relao moral. Ser a dor realmente um cadinho? Ser a infmia um corpo misto impuro? No difcil remontar s origens dessas leis ridculas, pois os prprios absurdos adotados por uma nao inteira sempre tm alguma relao com outras idias comuns e respeitadas pela prpria nao. Parece esse uso derivar das idias religiosas e espirituais que tanta influncia exercem sobre os pensamentos dos homens, sobre as naes e sobre os sculos. Dogma infalvel assegura-nos que as ndoas contradas pela fraqueza humana e que no merecem a ira eterna do Ser Supremo sero purgadas por um incompreensvel fogo. Se a infmia ndoa civil, e se a dor e o fogo apagam as ndoas espirituais e incor- preas, por que os espasmos da tortura no apagariam a mcula civil da infmia? Creio que a confisso do ru, que alguns tribunais exigem, como algo essencial condenao, tenha origem semelhante, pois, no misterioso tribunal da penitncia, a confisso do pecado parte essencial do sacramento. Eis de que forma os homens abusam das luzes mais seguras da Revelao, e como estes so os nicos que subsistem em tempos de ignorncia, a eles recorre a dcil humanidade em todas as ocasies, servindo-se das aplicaes as mais absurdas e remotas. A infmia, entretanto, sentimento que no est sujeito nem s leis, nem razo, mas opinio comum. A prpria tortura ocasiona real infmia em suas vtimas. Assim sendo, com esse mtodo se substituir a infmia pela infmia.

  • 52 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    O terceiro motivo a tortura aplicada aos supostos rus, quando caem em contradio durante o interrogatrio, como se o temor da pena, a incerteza do julgamento, o aparato e a majestade do juiz, a ignorncia, comum a quase todos, criminosos e inocentes, no fizessem provavelmente cair em contradio tanto o inocente temeroso como o culpado que procura acobertar-se, como se as contradies, comuns aos homens, quando esto tranqilos, no se multiplicassem na perturbao do esprito, todo absorvido na preocupao de salvar-se do perigo iminente.

    Esse infame cadinho da verdade monumento da legislao antiga e selvagem, que ainda hoje subsiste quando as provas do fogo e da gua fervente, e o incerto destino das armas, eram chamados juzos de Deus, ou ordlios, como se elos da eterna corrente que est no mago da Causa Primeira devessem a todo instante ser desordenados e desconectados ao sabor da frvola determinao humana. A nica diferena entre tortura e provas do fogo e da gua fervente que o xito da primeira depende, em parte, da vontade do ru e, o das ltimas, de fato meramente fsico e extrnseco. Todavia, essa diferena s aparente, no real. To pouca a liberdade de dizer a verdade entre os espasmos e as dilaceraes, quanto o era ento impedir sem fraude os efeitos do fogo e da gua fervente. Todo ato da nossa vontade sempre proporcional fora da impresso sensvel de onde se origina. E a sensibilidade do homem limitada. Assim, a impresso da dor pode crescer a tal ponto que, ocupando a sensibilidade inteira do torturado, no lhe deixa outra liberdade seno a de escolher o caminho mais curto, momentaneamente, para se subtrair pena. Ento, a resposta do ru to necessria quanto o seriam as impresses do fogo e da gua. O inocente sensvel decla- rar-se- culpado, quando achar que assim far cessar o tormento. A diferena entre eles anulada pelo prprio meio que se pretende utilizar para encontr-lo. E suprfluo, para melhor esclarecer, citar inmeros exemplos de inocentes que confessaram a culpa diante dos espasmos da tortura. No h nao nem poca que no os enumere, mas nem os homens mudam, nem tiram proveito disso. No h homem que tenha levado idias alm das necessidades da vida e que, s vezes, no corra para a natureza que o atrai com vozes secretas e confusas, mas o hbito, esse tirano da mente, o repele e o

  • Da tortura 53

    assusta. O resultado, pois, da tortura, questo de temperamento e de clculo, que varia em cada homem, de acordo com sua robustez e sua sensibilidade, de tal forma que, com esse mtodo, um matemtico resolveria esse problema mais facilmente do que o faria um juiz, j que a fora dos msculos e a sensibilidade das fibras de um inocente mediro o grau de dor que o far confessar a culpa de um delito.

    O interrogatrio do ru feito para conhecer a verdade, mas se esta verdade dificilmente se revela pela atitude, pelo gesto, pela fisionomia de um homem tranqilo, muito menos apareceria no homem em que as convulses da dor alteram todos os sinais mediante os quais a maioria dos homens deixa, algumas vezes, contra a vontade, transparecer a verdade. Toda ao violenta confunde e suprime as mnimas diferenas dos objetos por meio dos quais se distingue o verdadeiro do falso.

    Essas verdades j eram conhecidas pelos legisladores romanos, entre os quais no era tolerado nenhum tipo de tortura a no ser para os escravos, aos quais era negada toda personalidade. A tortura foi adotada pela Inglaterra, nao onde a glria das letras, a superioridade do comrcio e das riquezas e, portanto, do poderio, e os exemplos de virtude e de coragem, no nos deixam duvidar da bondade das leis. A tortura desapareceu da Sucia, abolida por um dos monarcas mais sbios da Europa,1 o qual, tendo levado a filosofia ao trono, e sendo legislador amigo dos sditos, os tornou iguais e livres na dependncia das leis, nica igualdade e nica liberdade que possam homens razoveis exigir das coisas. A tortura no julgada necessria pelas leis dos exrcitos, formados na maior parte, pela ral das naes que, por isso, pareceriam dela precisar mais do que qualquer outra classe. Estranha coisa para aquele que no considere quo grande a tirania do uso, que as pacficas leis devem aprender dos coraes endurecidos pelas carnificinas e pelo sangue, o mais humano mtodo de julgar.

    Essa verdade , certo, sentida, por fim, embora confusamente, por aqueles mesmos que dela se afastam. No tem validade a confisso feita sob tortura, se no for confirmada por julgamento, aps

    1 Frederico II, o Grande (1 7 1 2 -1 7 8 6 ), foi rei da Prssia de 1740 a 1786.

  • 54 Dos D e l i t o s e d a s P e n a s

    a cessao do suplcio, mas, se o ru no confirma o delito, de novo torturado. Alguns doutores e algumas naes no permitem essa infame petio de princpio seno por trs vezes. Outras naes e outros estudiosos entregam-na ao arbtrio do juiz, de modo que, de dois homens, igualmente inocentes ou igualmente rus, o forte e o corajoso ser absolvido, o fraco e o tmido ser condenado, em virtude deste exato raciocnio: Eu ju iz deveria julgar-vos culpados de tal delito; tu, que s forte, soubeste resis