e book colchaderetalhos

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    Finalista do Prmio SESC de Literatura (2008)

    Vencedor do Prmio Utopia de Literatura (2010)

    Terceiro colocado do Concurso Internacional daUnio Brasileira de Escritores (2012)

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    Copyleft Rodrigo Domit

    Projeto GrficoLas Brevilheri

    http://cargocollective.com/laisbrevilheri

    Utopia Editorahttp://www.utopiaeditora.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao - CIPBIBLIOTECA MUNICIPAL MARIETTA TELLES MACHADO

    ALGUNS DIREITOS RESERVADOS

    Qualquer pessoa pode copiar, distribuir, adaptar (audiovisual eteatro) e transmitir os textos contidos nesta obra, contanto queatribua, expressa e formalmente, a autoria destes a RodrigoDomit (http://rodrigodomit.blogspot.com). proibido o uso comercial de qualquer dos textos sem a prvia eexpressa autorizao do autor.

    As silhuetas de Dom Quixote e Sancho Pana e a imagem do solutilizadas nas pginas 4 e 5 so de autoria de Pablo Picasso.

    Publicado no BrasilPublished in Brazil

    D721 Domit, Rodrigo, 1984 -Colcha de Retalhos / Rodrigo Domit, Braslia : Utopia,

    2011

    ISBN: 978-85-400-0184-8

    1. Literatura brasileira - contos. 1. Ttulo

    CDU: 821.134.3(81)-34

    256-2011

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    Nascido em Curitiba em 1984, Rodrigo Domit foicriado em Londrina e reside atualmente no Rio de

    Janeiro. autor dos livros Vem c que eu te conto (2010) eColcha de Retalhos (2011).

    Entre outros certames literrios, j foi selecionado

    nos concursos Luiz Vilela (Contos - 2007), Helena Kolody(Poesias - 2008 e 2009), Prmio SESC (Livro de Contos -2008), Poemas no nibus (Poesia - 2010, 2011e 2012) ePrmio ler&Cia (Contos - 2011); Alm destasclassificaes, foi 1 colocado do Prmio Utopia (Livro deContos - 2010), do Prmio Cidado (Poesia - 2011), doConcurso SESC-DF Machado de Assis (Contos - 2011) etambm do Concurso Literrio de Suzano (Poesia - 2012).

    Criou e administra o blog Concursos Literrios, oprojeto Textos & Livros Premiados e o projeto e-Literatura. Alm disso, publica exerccios literrios noTiro Curto e colabora na produo e seleo de contedopara peridicos da rea de cultura e literatura,destacando-se entre estes o jornal Algo a Dizer, o jornalSobrecapa Literal e a revista Samizdat.

    Mais informaes:http://rodrigodomit.blogspot.com.br

    Rodrigo Domit

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    Em seus microcontos, Domit expressa o universodenso da sociedade contempornea. Com palavrasdosadas, ele constri textos milimetricamenteestruturados. Ao longo de seu livro pode-se deparar comuma variedade de estruturas textuais e de linguagens que

    nos fazem refletir abismados sobre os mais variadostemas

    KAREN DEBRTOLIS, escritora e jornalista de Londrina (PR)

    O livro me fez lembrar a velha mxima as melhoresessncias esto nos menores frascos. Domit levou isto

    to a srio que acabou criando um pequeno clssico, sim,pois abastado de aforismos, inverses, fantasia e,acredite, surrealismo.

    ANGELO PESSOA, escritor e professor de Cordeiro (RJ)

    Muitas vezes, pretensiosamente, pensamos que j

    lemos tudo. Outras vezes, levianamente, imaginamos quej escreveram tudo. A, atropelados por uma dose fatal deinovadora simplicidade como a dessa Colcha de Retalhos,percebemos que ainda h muito o que ler, e que existemnovos e jovens autores nos surpreendendo a cada pgina,a cada frase. Felizes de ns.

    VIVINA DE ASSIS, escritora de So Paulo (SP)

    Outros possveis prefcioshttp://bit.ly/opiniao-dos-leitores

    Possveis Prefcios

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    Agradeo esta publicao Larissa,responsvel pela Utopia, Lali,responsvel pelo projeto grfico, Aninha, irresponsvel que esteve aomeu lado e, especialmente, a toda aminha famlia e aos meus amigos.

    Dedico esta publicao digital a todosque no puderam, pelos mais variadosmotivos, ter em mos este livro.

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    Alegrou-se com a notcia de que o livroseria dedicado a ela. Caminhou at a livraria compassos e um sorriso dignos de uma musainesquecvel, imortal.

    Ao abrir na primeira pgina, leu: Emmemria de...

    O livreiro recolheu o corpo.

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    Ouvia, via e sentia a tristeza alheia. Aangstia lhe estufava o peito, o ar ficava pesado eos ombros recolhiam-se enquanto as mospassavam pelo rosto suado.

    E foi assim em todas as vezes que sedeparou com as tulipas negras, desdentadas, bocasdo desespero

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    Desceu daquele nibus lambendo cadadegrau com os ps. Sentiu o gosto quente doasfalto em sol a pino. Percorreu a praa dedilhandoo aroma das flores enquanto o canto dos pssaros

    massageava suas pernas cansadas. Viu o toque dosino vindo em sua direo, por todos os lados,ecoando pela catedral. Ouviu cada detalhe do quequeria dizer cada escultura do museu. Deu voltaspela cidade em um cavalo branco e uma charretetinta, amadeirada, com toques frutais e final suave.

    Ao final do dia, ouviu o sol tombar no

    horizonte e, apesar do cheiro de chuva, no sentiuo gosto das nuvens. Durante a noite, todas as luzeseram artificiais, mas as sombras, caridosas,acolheram-no em suas camas e o cobriram com osangue quente do jornal popular. Apesar dobarulho dos tiros, zunindo a cada pgina ealojando-se em seu tmpano, dormiu.

    No dia seguinte, acordou sendo lambidopelo sol spero e continuou sua saga.

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    Eram feitos um para o outro.

    Ela muda. Ele cego.

    Ela muda. Ele surdo.

    Cansada de mudar sem ser vista ououvida, ela fez um enorme discurso de despedida.

    Ele mudo.

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    O mercado de trabalho continuaexecutando crimes perfeitos. Sequestra as almas epede em troca, como forma de resgate, as foras docorpo.

    E as vtimas s percebem tarde que denada vale uma alma torturada, repleta de medos,somada a um corpo calejado, exausto.

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    Contrariado, Francisco matou Jos detiro; E antes do sangue secar, Severino matouFrancisco na faca. Por vingana, Chiquinho matouSeverino a golpe de enxada. Traioeiro, Zico

    colocou uma cobra na cama de Chiquinho.Traioeira, a cobra mordeu Zico tambm.S sobraram as comadres, que sentaram

    varanda, agulhas mo, e comentaram comdesdm:

    Esses homens...

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    Quando Ele apareceu, perguntando quem que havia comido do fruto proibido, todosficaram desesperados. Ado, que no havia sequerse aproximado da rvore, no pensou duas vezes,

    apontou o dedo acusador para Eva e disse quehavia sido ela.Os pssaros at hoje assobiam, fazendo-se

    de desentendidos.

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    Seria uma ofensa chamar o cu de azulnaquele momento. Era uma mistura de rosa,laranja, amarelo e azul.

    Sem aviso, veio o vento gelado que varre

    todo final de tarde, garantindo que esteja tudolimpo quando a noite chegar.O sol, com frio, foi embora; E levou com

    ele todas as nuvens, para cobrir-se at a aurora.

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    Ela chegou chorando, nervosa. Oferecimeu ombro, ela aceitou. Ofereceu-me a boca, euaceitei.

    No sei se por consolo ou por vingana

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    Ele d gritos agudos ao meu ouvido. Logodepois, me empurra com toda fora; E, em seguida,atira gros de areia em meus olhos. Tudo para queeu volte para casa.

    O vento fica muito nervoso quando, pormais que ele avise, as pessoas insistem emenfrentar as tempestades.

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    Nasceu para serViveu para terE morreu, sem nem ver

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    Todas as coisas e ideias tendiam para aesquerda. Depois, inclinaram-se um bom tantopara a direita. Ento, rolaram para o centro e porali ficaram, no equilbrio frgil de uma mesa de

    boteco. O lcool e a poltica tm efeitossemelhantes.

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    Regou o tmulo por dias, at secarem osolhos, vermelhos e speros.

    Uns dizem que foi por compaixo.

    Outros sussurram que foi por culpa

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    Passei na casa dos meus avs para umavisita rpida. Inocncia minha achar queconseguiria sair de l antes do jantar; Comosempre, minha av convenceu-me a ficar. Segundo

    ela, estava preparando uma comidinha especial e,alm disso, eu andava muito magro, muito branco,precisando comer bem. Decidi ficar.

    Enquanto ela terminava os preparativos,sentei sala com meu av para ver o jornal. Ele,esparramado na velha poltrona de couro, apsduas ou trs notcias, comentou:

    Bons os tempos em que s se roubavamcoraes.

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    H um casal problemtico que passeiaentre minhas ideias. No conseguem viver juntospor muito tempo.

    Se o lcool entra, a poesia logo sai

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    Desde o casamento, acostumou-se a sertratada como uma rainha - indo para ondequisesse, quando quisesse. Quase todos os desejoslhe eram atendidos, com exceo dos que revelava

    apenas entre quatro paredes. No entanto, devidos regalias, as dificuldades do marido pouco lheincomodavam at aquela tarde chuvosa.

    Ao arrumar as gavetas, para evitar que osvelhos pijamas embolorassem, encontrou as cartase bilhetes. Descobriu, naquele momento, que ele sse interessava pelas outras rainhas.

    Tomada por ira, desgovernada, deixou-selevar pelo primeiro peo que cruzou pela casa.

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    na minha vida!

    Est me chamando de coisa?

    Voc a melhor coisa que j aconteceu

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    Durante a noite, na praia, viu as luzes dosbarcos em alto mar, isolados. Pensou em quotriste seria viver dessa maneira, passar o dia nomar, trabalhando, e noite virar um pontinho em

    meio a outros pontinhos perdidos na escurido.No caminho de volta para a cidade,reparou nos pontinhos, todos empilhados, mas,ainda assim, isolados.

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    Sem ter uma casa para levar desaforo,armou o barraco

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    Sente o vazio no fundo do travesseiro.Revira-se e estica os braos em busca daquelapresena; Uma esperana, nada alm disso. Pormais que se deparasse com outro corpo, no seria

    aquele. Nunca mais foi.Depois daquela noite, a cama semprepareceu vazia.

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    Ao final do vero, as cigarras invadem acidade. Chegam queimadas pelo sol, trocando depele.

    As formigas, trabalhadoras, da cidade

    nunca saem. Para elas, o inverno uma ameaaconstante.

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    Bebo para dormirE, quem sabe, um dia no acordar

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    Engana-se quem pensa que, algum dia, elearrependeu-se.

    Morreu sorrindo aquele cnico; Sabia quea mdia, a seu servio, na terra ou no inferno, o

    transformaria em heri.

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    O sorriso de hiena desfez-se. Embrenhou-se pelos cantos da parede, como se andasse pelorodap. Curvou-se para olhar pela quina da porta,confirmou que a outra se afastava e, ento, disse:

    Eu no falei? Essa vagabunda, falsa,nunca me enganou.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    A lua, deitada no cu, sorri um sorrisominguado.

    Ela sabe que, por estas ruas enevoadas,durante a madrugada, encontrar apenas os

    bbados e os loucos.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Na desforra, at ouso blasfemar; Mas, nodesespero, rezo fervorosamente.

    Quando estou para baixo, ter um santo

    ajuda

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    Por dentro, explodia um no. Mas o nicosom que se ouviu foi o daquela voz, suave e sofrida:

    Aceito.E prosseguiram com a cerimnia.

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    Costumava dizer que estava apenasexperimentando, abrindo portas.

    Algum tempo depois, entre tantas portas,j no sabia mais por qual sair.

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    Como todo dia, na pia, o ritual ps-sacrifcio acontecia: limpar as peles, cortar emfils, tiras ou cubos, temperar e cozinhar. Naqueledia em especial, na tbua de madeira, jazia uma

    galinha caipira, com o pescoo torcido e aindamantendo algumas penas.O garoto, curioso, aproximou-se da

    cozinha e observou, com um pouco de nojo, a memanuseando aquele bicho. Ela arrancando penas,cortando a cabea e tirando as peles. Quandoreparou que o garoto estava ali, ele aproveitou

    para perguntar: Me, o que isso? Franguinho, filho! Ento... isso que franguinho?

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    No pas da impunidade, faz-se exceo lei do silncio, a nica respeitada e temida.

    Quem cala contente; E os que ousamdesafiar a lei, arruaceiros, sofrem as punies

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Depois de um dia cansativo, dando suor esangue no trabalho, ele sentou-se sua poltrona,no meio da sala. O filho surgiu correndo pelocorredor, saltou sobre ele e lhe deu um abrao

    apertado. J sem foras, retribuiu com um beijo norosto e disse para o garoto que se sentasse no chopara que pudesse prestar ateno no jornal.

    Aps uma notcia, o garoto ficou curioso eperguntou:

    Como que as vacas ficaram loucas? Elas foram alimentadas com rao que

    continha carne de vaca e um monte de produtosqumicos, da elas ficaram doentes eenlouqueceram.

    Ento as vacas que se alimentaram devacas so chamadas de vacas loucas?

    Sim. Isso mesmo. E como que so chamadas as pessoas

    que se alimentam de pessoas?Aps pensar um pouco, no seu dia e noestado em que se encontrava, ele respondeu:

    Chefe, meu filho. Ns chamamos dechefe.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Fez um casulo e virou lagarta... Ah! Que pena. ... Acontece.

    Mas no se preocupe, tem muitaborboleta no ar

    E a borboleta?

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Ela foi at o quartinho dos fundos; Em umcanto escuro e empoeirado, encontrou o velhoba. Levou-o at a sala e comeou a redescobrirtudo que estava guardado h anos.

    Tinha ali um sorriso sincero, que j estavaum pouco amarelado pela falta de uso. Haviatambm uma poro de otimismos infantis, que -apesar de serem infantis - eram pelo menos dezvezes maiores do que os adultos. Tambm brincouum pouco com os sonhos, fantasias e iluses.Encontrou at alguns medos, mas algumas peas

    tinham sumido com o tempo.O velho ba rendeu bons momentos, mas,ao final da tarde, ela recolheu tudo do cho, fechouo ba e colocou-o de volta naquele canto escuro. Osorriso, amarelado, acabou esquecido - debaixo dotapete.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Depois de muito tempo, descobriu-se que,na verdade, os responsveis pelas pinturas nascavernas no foram os homens, mas sim osantlopes, mamutes, tigres e gnus. Cada espcie

    havia feito suas pinturas em homenagem a seusmortos durante as batalhas do dia a dia. Somenteaps terem encontrado estes registros que oshomens comearam a fazer os seus tambm.

    Atualmente, os homens so os nicos amanter registros alm das marcas no corpo e naalma. Os outros animais no tm dvida de que

    ainda demoraremos a perceber que melhor viverdo que recordar.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Vaga vagarosamente divagando,revirando o vcuo, vivendo o vazio, envelhecendodevagar e levando a vida em vo

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Nenhum dos dois conseguia se envolver,desenvolver confiana, intimidade, cumplicidade,esses detalhes que sustentam um relacionamento.Sabiam que era coisa de uma noite, uma semana,

    com sorte, um ms.No entanto, estavam decididos a tentar,vestir as mscaras e ver at onde a mentira oslevaria; E levou longe, at que a morte os separou.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    O advogado alegou legtima defesa; E ojuiz absolveu o comandante e mais 11 rus de todasas acusaes: homicdio, agresso e uso abusivo defora.

    Mais um caso de legtima defesa, emdefesa da ordem social.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Cabisbaixos, ambos, ele e o canrio. Elesentou-se na varanda, abaixo da gaiola, e comeoua assobiar, lenta e tristemente.

    O canrio, que at ento nunca havia

    sequer piado, respondeu com um canto rpido ealegre. Ele ento sorriu, como nunca havia sorrido.No se sabe at hoje quem ensinou quem.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    O amor chega de fininhoMas, por mais que chegue em silncio,

    desperta curiosidadesE acorda tambm os medos, que tm o

    sono ainda mais leve, paranicos

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    A sala era divida em quatro blocos, que,por sua vez, eram divididos em quatro cubculos.Apenas a sala do chefe, separada da outra, tinhajanelas - que de nada adiantavam, uma vez que no

    se abriam e que eram cobertas por uma pelculaescura. Aqueles tantos cbiculos estavam todosocupados, com exceo de um: discutiu com ochefe e pediu demisso, no aguentava mais.

    Dizem que foi porque um dia teve quesair um pouco mais cedo, para levar o filho aodentista, e, s ento, depois de anos, reparou que o

    mundo no era cinza como na hora em que saia decasa ou na hora em que voltava.No dia seguinte, com um sorriso

    reluzente, comentou com os colegas: O mundo amarelo!

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Sempre se deu bem com nmeros:somando investimentos, fazia as cifras semultiplicarem.

    Em relao aos outros, subtraa; Nunca

    aprendeu a dividir.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Vestiu o terno da indiferena, os culosescuros do desprezo e subiu o vidro daintolerncia.

    Aps realizar o ritual dirio, rumou pelo

    meio daquela gente, que ele sempre desdenhou,para onde aquela mesma gente, que pagava seusalrio, o colocou.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    s vezes tenho l meus desentendi-mentos com o mundo. Ficamos brigados, ambosemburrados e em silncio. Ontem mesmo tivemosuma briga feia; O mundo pode ser bem cruel de vez

    em quando.Mas ao final da tarde, uma borboletapousou ao meu lado na rede. Chegou, observou-mee ali ficou, batendo asas como se danasse. Aceiteias desculpas imediatamente, sem pensar duasvezes.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Desde aquele dia, virei um fantasma, umasombra - um vulto

    Aquele reflexo no espelho, no qual vocno se reconheceu, aquele era eu

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Acendia fogueiras, despretensiosa,apenas para v-las arderem, estalarem econsumirem-se.

    Quando sentiu frio, desamparada, j no

    tinha mais ningum para servir de lenha.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Mal sabia que seu trabalho fazia dignosapenas aqueles que colhiam os frutos de seuesforo.

    Sdico e bem treinado, agradecia de bom

    grado todo resto que lhe era dado

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    aparecer.

    Que triste isso... No triste no. Triste quando ela no

    vem.

    Eu passo o dia todo esperando ela

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Puxou o ar, para espairar, e soltoulentamente. Sentiu como se h muito tempo notivesse respirado, inspirado.

    Dissipou a neblina que lhe cobriu o

    mundo e deu um passo atrs. Dali, aliviado, olhoupara a prpria vida e esboou um sorriso no cantoda boca.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Em alguns momentos, a sorte sorri paramim.

    Mas, no momento seguinte, emburrada,franze o cenho, faz bico e me d as costas.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Haviam comeado o namoro h poucotempo. Sorrisos, bicos, charmes e birras; Apelidosfofos e juras de amor.

    Foi quando ele escreveu a carta de

    despedida, com a certeza de que a entregaria embreve. Sabia at os motivos da separao, tinhatudo anotado, explicado, em palavras friamenteselecionadas.

    Nunca teve a chance de entreg-la.

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    Vivem vidas de condenados os quedormem o sono dos inocentes

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Ao pararem em um semforo, ao lado deuma carroa puxada por um burro, o garoto ficouobservando o animal, questionou-se por algunsmomentos e decidiu perguntar:

    Vov, qual o nome desse negcio quetapa a viso dos burros?Sem nem ter visto o burro, o av

    respondeu, com preciso: Preconceito, meu querido. Preconceito.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    A vida por aqui anda meio conto, nada depoesia.

    Mas, pelo menos, no est crnica.

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    Os opostos se atraem; E se enganamMas suas aes, sinceras, os traem

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Quando chegava ao quarto cambaleando,sentia-se como um voluntrio do atirador de facas;Enquanto a cama girava, ele ficava inerte, incapazde desviar das acusaes.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Deito em minha cama e milhares depequenos demnios infestam-me as ideias, otravesseiro e o canto escuro do quarto.

    Ando cautelosamente at o som, ligo-o e

    volto para a cama; Com a msica, ao menos, elesdanam.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Os donos do mundo sabem que o petrleoderivou-se de animais e vegetao soterrados

    Pensando no futuro, matam, desmatam eencobrem

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    Cantarolando, colheu do cho uma florcheia de ptalas. Delicadamente, retirando ptalapor ptala, comeou a falar, entre sorrisos esuspiros:

    Bem me quer... Bem me quer! Bem mequer... Bem me quer!Um amigo um tanto sem sal, e

    totalmente sem acar, interrompeu: No! No assim!Ao que ele respondeu: Voc s diz isso porque voc no

    conhece ela!E continuou sorrindo.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Em uma metrpole qualquer. Debaixo deuma chuva fina, mas to fina que se tornava quaseinvisvel, caminhavam lado a lado, de mos dadas,o garotinho e a me. A me ia andando com pressa,

    sem dar ateno ao filho, arrastando-o pela mo.Quando eles pararam em um cruza-mento, esperando o sinal abrir, o garotinho girou opescoo e reparou no mundo sua volta: nascentenas de pessoas apressadas, nas plantas,pssaros, prdios e tudo o mais. Aps uma breveanlise, por sinal muito precisa, ele virou-se para a

    me e perguntou: Mame, se os passarinhos so coloridos,as plantas so coloridas, os prdios so coloridos eat mesmo a comida colorida... Por que que aspessoas so assim, cinza?

    E ele ficou olhando, esperando por umaresposta. Enquanto o rosto da me, por vergonha,

    passou de cinza para rosa.

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    Dinheiro faz o mundo girarAt ficar tonto e cair

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    Explicou ao filho as coisas da vida e dotempo. Para facilitar, usou o relgio de exemplo:

    Aquele o tempo, passando. Ele fica dando voltas?

    Nem sempre, s vezes passa correndo enunca mais volta, por isso precisamos correr atrsdo tempo.

    No dia seguinte, aps observar o relgiopor horas, enquanto o pai corria de um lado para ooutro, o garoto retrucou:

    Voc disse que a gente tem que correr

    atrs do tempo; Mas ele tem uma perna bem maiorque a outra, nem consegue correr. A gente quetem que andar com mais calma, para no deixar elepara trs.

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    E quando ela vai embora voc fica com

    um buraco, vazio. No que eu fique vazio, eu guardo

    espao para quando ela voltar.

    Eu preencho meus dias com ela.

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    Naquela noite que se fez outro dia, a luaestava to cheia, de si prpria, que mesmo depoisde o sol ter se aprumado, ostentoso, ela aindadesviava a ateno de muitos desavisados.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    O povo das sombras aparece sempre nomesmo horrio, junto com as sombras, assim que osol nasce. Sempre muito cedo, ainda na madru-gada, mas, aparentemente, sem nenhuma ajuda de

    qualquer deus.Preparam seu caf antes de voc acordar,limpam o escritrio antes de voc chegar, colocamo nibus para rodar antes de voc se aglomerar aocongestionamento... Ligam os motores e preparama cidade para voc s chegar e sentar na janelinha,exigindo servio de bordo.

    E voc nem ao menos os enxerga, fazquesto de desviar o olhar.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    O golpe ditatorial teve, no exrcito, seubrao armado

    E na imprensa, o desalmado

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    A noite de estreia um espetculo,mgico, incomparvel.

    As noites seguintes j no tm o mesmoencanto. Os sorrisos j no so mais os mesmos.

    Algum tempo depois, ela junta as tralhase toma outros rumos, paixo itinerante.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Desde que o tempo tempo, as pessoasdesejam ter a capacidade de enxergar atravs dasoutras. Sensaes, sentimentos e os maisprofundos pensamentos. E a essa capacidade, deu-

    se o nome de compreenso.Nos tempos atuais, caminhando pela rua,percebe-se que as pessoas tm a capacidade deenxergar atravs das outras; A essa capacidade, d-se o nome de indiferena.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Antes de espatifar-se no cho, j eranovamente um milionrio.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Era viciada em reunies de annimosNa esperana de ser notada, ia a todas.

    Dos narcticos aos workaholics, passando poralcoolistas, comedores compulsivos e mulheres

    que amam demais.Tudo que ela queria era deixar de serannima

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Ia sempre em direo contrria ao fluxo.Sabia que nunca ia ter carona; Mas sabia,

    tambm, que sempre haveria algum para andarao lado

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Rendo-me a esta situao deplorvel,entrego-me a este sujeito desprezvel, deixo-melevar como cadela afvel

    E vendo-me, no espelho, ajeito batom e

    rmel.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Acordou no nibus; No sabia para ondeestava indo, no fazia ideia.

    Olhou em volta, apenas indiferena.Comeou a ficar incomodado com a situao.

    Queria perguntar para algum sobre o destino,mas tinha vergonha. Tentou olhar pela janela, masestava no corredor e a senhora ao seu lado dormia,com as cortinas fechadas.

    Depois de certo transtorno, resignou-secom a situao. Nunca achou que fosse chegar alugar algum. Algum lugar - qualquer que fosse - j

    seria longe.

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Os papis, cheios de suas palavras vazias,saltavam da escrivaninha e fugiam para o corredor

    A caneta escapava dos dedos, caia ao choe rolava para baixo da cama

    A cada cochilo, uma revolta

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    http://bit.ly/e-book_ColchadeRetalhos

  • 7/28/2019 e Book ColchadeRetalhos

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    Estes retalhos foram reunidos pela primeira vez em 2008, paraparticipar do Prmio SESC; E ficaram entre os finalistas.

    Em 2010, aps um ou outro remendo - e contando com o desgasteque tende a tornar melhores tanto as colchas quanto as toalhas

    de banho, enviei esta obra para o Prmio Utopia; Desta vez, aoconquistar a primeira colocao, estes retalhos garantiram osmeios para estarem aqui reunidos e costurados.

    Em 2012 o livro foi novamente reconhecido, desta vez pela UnioBrasileira de Escritores, com a terceira colocao no ConcursoInternacional promovido pela instituio.

    Quando menina, meus sonhos eram aquecidos por uma velhacolcha de retalhos coloridos. Hoje, mulher feita, essa depalavras costurados pelo Rodrigo que me emociona HENRIETTEEFFENBERGER, escritora

    Narrativas que lembram em um instante do que feita a boaliteratura DANIEL RUSSELL RIBAS, editor e jornalista