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Dulce Maria Cardoso Campo de sangue 1

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Dulce Maria Cardoso

Campo de sangue

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Edições Asa

Dulce Maria Cardoso nasceu em Trás-os-Montes, em 1964, na mesma cama onde haviam nascido a mãe e a avó. Tem pena de não se lembrar da viagem no Vera Cruz para Angola. Da infância guarda a sombra generosa de uma mangueira que existia no quintal, o mar e o espaço que lhe moldou a alma. Regressou a Portugal na ponte aérea de 1975. Licenciou-se em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, escreveu argumentos para cinema, gastou tempo em inutilidades. Também escreveu contos. Tem fé, uma família, um punhado de amigos, o Blui e o Gude. Continua a escrever e a prezar inutilidades. Vive em Lisboa.

Campo de Sangue obteve, por decisão unânime do júri, o Grande Prémio «Acontece» de Romance.

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Europa é uma crítica à mediocridade cultural, à corrupção, à conivência entre a comunicação social e o poder político, à ditadura da televisão. Europa é uma espécie de utopia, uma solução para o caos. para o ódio, para a imersão de valores, para o fim do sonho e do amor. para a imoralidade - a massa de que hoje são feitos os europeus.

O homem não sabe como gastar os dias. Alguém avisa de que o tempo é um material perigoso nas mãos de quem o não sabe usar.

A mulher propõe-se comprar o amor do marido que abandonou. Afirma que tudo tem um preço, apesar de nunca ter pensado que o preço pode ser o da traição. A mãe garante que não tem culpa de ter gerado um assassino, ninguém tem mão no futuro. Tem o coração tão adormecido que nem a dor e a vergonha são capazes de o acordar.

A dona da pensão quer salvar o negócio a todo o custo pelo que não se importa de perder a alma. Só a televisão lhe valerá e por ela dará graças.

Uma grávida com cabelos louros de menina e sandálias de cabedal não quis o filho que, alheio à sua vontade se completa, segundo a segundo, na sua barriga. Dela se diz que não tem capacidade para distinguir o bem do mal.

As crianças procuram tesouros nas paredes dum prédio que se esboroa. Os velhos roubam flores para as venderem no passeio ao fim da tarde.

A cidade, uma teia de olhos e passos, apanha quem nela cai.E o mar sempre tão perto.A beleza pode ser um pretexto para se enlouquecer.A beleza e a solidão.Mas é o desespero que faz acreditar que se pode roubar o amor

de quem se ama.

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ASA LITERATURA

2002, Dulce Maria Cardoso

Este romance foi escrito com o apoio de uma Bolsa de Criação Literária do Ministério da Cultura, 1999.

Primeira edição: Abril de 2002

ASA Editores II S.A.

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À memória do meu pai,José Pinto Cardoso, o meu único herói.À minha mãe, a nossa fada.Ao Luís, porque a história se repete.

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"Ainda Ele falava, quando apareceu Judas, um dos doze, e com ele uma grande multidão, com espadas e varapaus, enviada pelos príncipes dos sacerdotes e pelos anciãos do povo. O traidor tinha-lhes dado este sinal: «Aquele que eu beijar, é Esse mesmo. Prendei-O".

Mt. 26, 47-50.

Então Judas, que O entregara, vendo que Ele tinha sido condenado, foi tocado pelo remorso e devolveu as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos (...) Depois de terem deliberado compraram com elas o «campo do oleiro» para servir de cemitério aos estrangeiros. Por tal razão, aquele campo é chamado até ao dia de hoje - Campo de Sangue.

Mt. 27, 2-9.

Esse homem, depois de ter adquirido um terreno com o salário do seu crime, precipitou-se de cabeça para baixo e todas as suas entranhas se espalharam. O facto chegou ao conhecimento de todos os habitantes de Jerusalém, a tal ponto que esse terreno foi, na língua deles, chamado HAKELDAMÁ, que quer dizer Campo de Sangue.

Act. 1, 18-20.

Os pensamentos dos mortais são tímidose incertas as nossas concepções,porque o corpo corruptível torna pesada a alma.Sab. 9, 14-15.

Estão quatro mulheres na sala. Destas mulheres é preciso saber antes de tudo que estão aqui por causa de um homem que cometeu um crime e que se por acaso se encontrassem na rua não se cumprimentariam.

Esperam. Em silêncio, sem saber o que fazer com as mãos e com os olhos. Ainda que prendam as mãos como às vezes fazem entrelaçando-as sobre o regaço, ou as libertem abandonando-as sobre o banco de madeira, ainda que encontrem um sítio certo para as mãos, sobram os olhos que se desviam uns dos outros, os olhos que, elas sabem, só repousarão se fechados.

Mas as quatro mulheres têm de se vigiar, e por isso soltam os olhos na sala, deixam-nos percorrer as paredes, retêm pormenores das paredes, tropeçam no reboco mais rugoso, uma pincelada de tinta mais carregada, uma dedada imperceptível, um insecto

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esmagado, os olhos ávidos esmiuçam tudo, fios de estuque estalado, uma saliência naquele canto, uma depressão mais ao fundo, os olhos cansam-se, fecham-se, abrem-se ainda cegos, recomeçam, a mancha amarelada junto do rodapé...

Na verdade nenhuma das quatro mulheres quer ou sabe estar nesta sala tão acanhada. Sentem que qualquer voz será despropositada nesta sala desconfortável de luz turva, as quatro mulheres mantêm-se caladas apesar da angústia de ali estarem, decifram barulhos que vêm de fora, o silêncio na sala permite-lhes ouvir um carro que trava, um pássaro a piar, vozes, o som seco de uma porta que bate, as quatro mulheres inquietam-se com o que não são capazes de identificar, será uma criança a chorar, gatas com cio, mexem-se desconfortáveis nos bancos corridos de madeira, continuam atentas, inclinam mais a cabeça na direcção dos ruídos, fogem da sala entretidas neste jogo, gastam tempo, há um homem que tosse, sim, é claramente um homem que tosse, retornam aliviadas às mãos, as mãos têm tantas linhas onde se podem perder, a linha da vida, do coração e da saúde, uma cicatriz, linhas paralelas, perpendiculares, uma encruzilhada, a queimadura no forno, as unhas esgarçadas, as quatro mulheres que, se por acaso se encontrassem na rua nem sequer se cumprimentariam, esperam presas na luz turva da sala.

A primeira mulher do lado da porta, a mãe dele, prende as mãos ao terço que tira da carteira preta muito lustrosa com um cheiro intenso a cabedal. Fecha os olhos e encosta a cabeça à parede, as mechas de cabelo cinzento confundem-se com a cor suja da parede, começa a rezar, encontra, pelo menos assim parece, a paz necessária para permanecer na sala.

A segunda mulher, a ex-mulher dele, olha por uma janela aberta que não dá para lado algum, ou melhor, dá para um saguão preenchido por outras janelas que também não dão para lado algum. É um paralelepípedo de ar, com faces cheias de bolor, um sítio feio para se olhar mas o único para onde os olhos fogem com segurança. É desta janela sem vista que entra o feixe de luz turva que ensombra a sala, mas a ex-mulher sabe que lá fora está uma bonita manhã de primavera e que no jardim a árvore-de-Judas está carregadinha de flores.

Com o cigarro apertado entre os dedos segue as espirais do fumo que se misturam na luz coada. Apaga o cigarro esborrachando-o num pequeno cinzeiro portátil que guarda na carteira e recomeça a brincar com o isqueiro acendendo-o várias vezes, provocando estalidos monótonos até que a pele do polegar da mão direita fica marcada por um vermelho-clarinho, a roda metálica do isqueiro arranha-lhe a pele, as outras mulheres olham-na e nesse instante, quando os olhos lhe cercam as mãos, desiste do isqueiro, abre a cigarreira, espalha os cigarros para os ordenar de seguida, acende mais um cigarro que deixa a queimar, distraída, na mão magra de

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pele muito branca. Umas mãos de cera quase falsas como ele sempre lhe dissera.

A terceira mulher, a senhoria dele, reconheceu a segunda mulher e repara que a cigarreira e o isqueiro parecem de ouro, podia jurar que eram de ouro, os dois objectos têm letras gravadas, entrelaçadas, decifra um esse, uma das letras é um esse, qual será a outra, a senhoria não consegue saber. Quando a ex-mulher acende um cigarro a senhoria olha desafiadora para o aviso que está pendurado na parede, um círculo vermelho com um cigarro aceso cortado com um traço, é um sinal de leitura fácil que proíbe o fumo. A ex-mulher segue-lhe o olhar e puxa o fumo com indiferença. De manhã, o tabaco enjoa-a, mas não sabe o que fazer na sala, está cansada de gestos, de fugir com os olhos, queima a espera nas pontas dos cigarros, o tempo incendiado paira sobre ela, suspenso. Acaba de fumar, deixa cair os braços, as inúmeras pulseiras douradas e finas tocam umas nas outras, por instantes um som de festa na sala. Levanta o braço direito, as pulseiras tornam a tilintar, limpa com cuidado as gotas de suor da cara, não quer estragar a maquilhagem, cruza as pernas com irritação, tira um livro do saco que tem pendurado no ombro, abre-o com vagar na página dobrada no canto superior direito, deixa os olhos pousados nas letras, as palavras não a levam para fora da sala, ali fica, está cada vez mais enjoada, dobra a pequena marca no canto superior direito da página e guarda novamente o livro.

A ex-mulher olha para as mãos da mãe. Os dedos deformados avançam mecânicos pelas contas do rosário, dedos encurvados, garras, um animal a sibilar rezas, fecha os olhos, com força, mais força, com os olhos bem fechados rebentam-lhe nas pálpebras pequeninas luzes, a ex-mulher conclui que nunca gostou da sogra e espanta-se de como, presa no escuro guiada por pequeninas luzes que lhe rebentam nas pálpebras, percebe de forma tão irreversível esse não gosto.

A senhoria tira da carteira de verniz branco um espelhinho de mão, dourado, com dálias amarelas pintadas nas costas de porcelana, e limpa cuidadosamente os restos de encarnado que se acumulam nas gretas dos lábios descaídos que lhe dão um ar muito triste. Os dedos gordos pegam no bâton, retiram-lhe a tampa que faz um barulho de ventosa e rodam ligeiramente a base até aparecer um cilindro cremoso da cor de sangue desmaiado. A senhoria, que se esforça por não tremer, segura o bâton com o polegar e o indicador da mão direita, desenha os novos lábios em frente ao espelhinho, amassa-os um contra o outro, testa o sorriso pintado de fresco, o creme untuoso ultrapassou os lábios, a senhoria retira pacientemente o excesso com o indicador, o creme untuoso também lhe sujou os dentes, limpa-os com o mesmo indicador, os dentes chiam ao serem ligeiramente friccionados, guarda o bâton e o espelhinho na carteira de verniz branco. Sente-se melhor e sorri. Está satisfeita com os

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lábios novos, mas as outras mulheres não correspondem ao sorriso, a senhoria torce o pescoço em direcção à janela, uma planta à procura de luz, de ar, mas no saguão o ar está parado e a luz turva, a senhoria endireita o pescoço, uma planta murcha, abre novamente a carteira de verniz branco, os dedos gordos vasculham-na até que encontram um toalhete de uma companhia aérea. Enquanto abre o pacote a senhoria assume um ar extraordinariamente sério e rasga o invólucro plastificado no sítio indicado pelo tracejado. Retira o toalhete e estende-o na mão, é um quadrado de papel branco encharcado num cheiro de rosas, a senhoria descontrai-se, passa lentamente o papel na papada que quase lhe esconde o queixo, atrás do pescoço, nos pulsos, nas mãos, besunta-se com o cheiro das rosas, mais confortada amachuca o quadrado de papel tornando-o uma pequena bola, levanta o corpo gordo do banco de madeira, caminha sobre os sapatos de verniz branco, uns sapatos muito apertados que lhe incham os pés, passos dolorosos, aproxima-se da janela do saguão para deitar fora a bola de papel. Espreita para baixo, há mais cinco janelas iguais até ao chão, muitas caixas de ar condicionado, distrai-se com o emaranhado de fios eléctricos, segue-os até ao fim, no rés-do-chão estão os exaustores, franze o nariz, reconhece carne e couves cozinhadas, regressa ao seu lugar com a mesma dificuldade nos passos, os pés arroxeados pelos tornos de verniz branco, mas quando se senta não sabe o que fazer na sala, onde prender as mãos, onde pousar os olhos, compraz-se com o cheiro a rosas.

A quarta mulher, a mais jovem, está grávida dele. Foi a última a chegar e não consegue ficar muito tempo sentada, levanta-se, senta-se, o banco de madeira é demasiado duro, tem calor, demasiado calor. Quando se levanta apoia as mãos no banco e soergue-se de uma só vez. Tem cabelos louros de criança que não penteou, é uma criança selvagem que morde os próprios lábios. Está vestida com uma blusa às florinhas e umas calças largas, nos pés tem umas sandálias gastas de tiras de cabedal. As outras mulheres vêem a dificuldade com que se move mas não sentem pena ou qualquer outra coisa, limitam-se a ver a dificuldade com que se move. A rapariga eleva a cabeça, sai altiva da sala, procura o corredor onde poderá andar de um lado para o outro. Na sua ausência as três mulheres não cedem à tentação de se falarem, olham para o saco plástico que ela deixou pousado no banco, um sítio seguro onde podem descansar os olhos, a única garantia de que ela voltará, todas gostariam de saber o que o saco guarda. A rapariga regressa, desta vez demorou-se um pouco mais, as outras olham-na, a rapariga caminha empinando a barriga volumosa que parece exagerada num corpo tão miúdo. Há um estado de graça na maternidade que nela não se cumpre. Talvez seja a altivez com que se move, a irritante blusa às florinhas, o cabelo louro de criança por pentear.

Continuam à espera. Em silêncio, sentadas nos bancos corridos de madeira. Daqui a pouco, a mãe recomeçará outro mistério, a ex-

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mulher acenderá outro cigarro, a senhoria pegará novamente no bâton e no espelhinho com dálias amarelas nas costas de porcelana e a rapariga tornará a sair da sala para andar no corredor. Até lá esperam e cada uma só conhece realmente das outras este acto de esperar.

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Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa,mas então veremos face a face.Hoje conheço de maneira imperfeita:então, conhecerei exactamente, como também sou conhecido.I Cor. 13, 12.

Portavam-se como amantes. Tomavam as precauções dos amantes. Chegavam separados com algum tempo de diferença e fingiam surpresa quando se viam para que aos olhos dos outros o encontro parecesse casual. Escolhiam os locais segundo as regras dos amantes, qualquer um desde que afastado de tudo que os pudesse denunciar. Gostavam de esplanadas perto do mar, encontravam-se muitas vezes em esplanadas. Estavam sentados numa mesa recuada e falavam em voz baixa. Pediram vinho branco gelado e acenderam cigarros que deixaram arder no ar quente da tarde. Pareciam felizes. Encheram os copos de vinho.

- Vamos brindar?- A quê?- À tua viagem pelas ilhas gregas.Eva pousou o copo. - Não são as ilhas gregas - mas logo depois -,

mas são na mesma ilhas, se queres brindar.- Pensei que estavas contente.- Achas que nos tornámos bêbados - disse Eva levando o copo à

boca - ou que me vou tornar?- Não. Claro que não. Fala-me das ilhas.Eva não lhe respondeu. Acendeu outro cigarro e espreitou o mar

inclinando-se para a frente.- Não gosto deste mar tão cheio de gente. Fala tu. Não me

apetece ouvir-me - riu-se -, nestes dias digo coisas de que me arrependo, o calor desespera-me. Quem me dera estar na água, nadar até que...

Eva continuou a falar mas ele já não a ouvia. Quando Eva se calou reprovadora ele pediu-lhe desculpa. Pedia-lhe frequentemente desculpa, o que desagradava Eva que sabia que era uma forma de ele fazer sempre o que queria, bastando-lhe no fim dizer desculpa. Eva continuou calada, e ele procurou rapidamente qualquer coisa para dizer, não suportava o silêncio entre eles que os fazia fugir um do outro, ou pior ainda, um para o outro.

- Como é que será viver numa ilha?- Deve ser como noutro sítio qualquer - respondeu Eva rodando a

aliança -, como noutro sítio qualquer.Eva parecia uma gata feliz com as pernas estendidas ao sol.- Uma ilha deve ter qualquer coisa diferente.

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Eva bocejou e esticou-se mais para o sol. Inclinou a cara e fechou os olhos. A luz do sol dourava-lhe a pele.

- Tenho muita dificuldade em pensar no mundo redondo. Continuou apesar do riso de Eva. - Sei que te dá vontade de rir mas deve ser por causa dos postais, da televisão, mas penso mais facilmente no mundo em forma de rectângulo...

Eva regressou do sol, apoiou os cotovelos na mesa, olhou-o enternecida e parou de se rir. Mais bonita, falou-lhe do medo dos marinheiros antigos, arrastou as palavras até ao silêncio que ele temia. Nesse instante chamou com um gesto o empregado, pediu mais vinho e uma salada de polvo igual à da mesa ao lado.

As conversas deles eram quase sempre inconsequentes e podiam ser interrompidas ou terminadas a qualquer momento. Eva achava que a possibilidade de mudarem de assunto sempre que quisessem era um privilégio de quem se conhece verdadeiramente. Mais tarde, quando o empregado se aproximou com o vinho e a salada, calaram-se, respeitando outra das regras dos amantes.

A esplanada tinha-se enchido com banhistas da praia. Chegavam em pequenos grupos, sentavam-se arrastando ruidosamente as cadeiras, ajeitavam o chapéu-de-sol, protegidos sob o pequeno círculo de sombra pediam cervejas, petiscos e gelados para as crianças.

- Como vês - disse Eva - basta um pouco de sol para que todos pareçam felizes, para que a vida seja um sítio agradável.

Ele não lhe respondeu.Eva pediu-lhe para olhar para uma mulher que estava do lado

esquerdo dele, mais atrás. Ele virou a cabeça e viu uma mulher gorda, que tinha os cabelos molhados escorridos nas costas. Tinha-se untado com um creme branco que lhe acentuava a carne em harmónio.

- Tenho medo de ficar assim - confessou Eva -, aquela mulher se calhar já foi de outra maneira e agora, tenho medo, achas que um dia vou ficar assim, consegues imaginar-me assim?

- Claro que não - respondeu-lhe sem desviar os olhos da mulher que bebia uma cerveja -, mas não te parece que ela não se importa?

- Isso é que é estranho - disse Eva incapaz de compreender.A mulher levantou a mão para chamar o empregado, imitando o

gesto que Eva fizera ainda há pouco.- Nunca se sabe quando é que começamos a ficar iguais aos

que... aos que nos desagradam. - Eva desviou rapidamente os olhos.Comeram sem o prazer que viam nas outras mesas. Beberam

vinho. Muito vinho. Pousaram os talheres exasperados e culparam o calor.

Dentro do café, um rádio anunciava que aquele podia ser o dia mais quente do ano. Mas eles não ouviram.

Acendeu-lhe um cigarro e encheu novamente os copos. Olhou para a mulher que tanto incomodara Eva.

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- És muito bonita e serás sempre muito diferente de qualquer mulher.

Eva expeliu o fumo do cigarro para a cara dele, ficou calada, e ele pressentiu novamente o silêncio que o assustava, o silêncio que modificava os olhos de Eva.

Um rapaz abeirou-se da mesa e pediu-lhes um cigarro. Ele deu-lho agradecido. O rapaz afastou-se sem saber que o salvou do silêncio de Eva e do seu medo. Eva abriu a carteira e começou à procura de qualquer coisa. O cigarro que ele lhe tinha acabado de acender incomodava-a na busca. Esmagou-o no cinzeiro, contrariada. Levantou os olhos e tornou a baixá-los.

Movimentos rápidos que ele conhecia bem, daqui a pouco ajeita o cabelo, suspira, daqui a pouco finge que desiste, ele tentava adivinhar-lhe os gestos.

- Nunca te percas na carteira duma mulher. Começam a fumar cada vez mais cedo, nunca sei se devo dar cigarros a estas crianças, mas nada podemos contra os vícios do mundo. Se um dia quiseres desaparecer basta-te a carteira duma mulher. De certeza que nunca mais te encontram. Cabe tudo numa carteira de mulher - repetiu -, cabe mesmo tudo na carteira de uma mulher por mais pequena que seja. - Riu-se. - Aqui está o cartão.

Estendeu-lhe o rectângulo de plástico dourado que ficou a brilhar ao sol. Depois, olhou para o relógio e ficou sobressaltada quando viu as horas.

Ele sabia que horas eram, há muitos anos que o tédio o fazia olhar constantemente para o relógio, por isso ele sabia que eram 16.18, vigiar o tempo ajudava-o a gastá-lo. Se Eva soubesse desse hábito diria apenas que era mais uma mania.

- Ultimamente o tempo voa, tenho que ir. - Eva afastou o cinzeiro cheio de beatas, esfregou as mãos - Ainda tenho as malas por fazer e um jantar de despedida, já te disse como estes jantares são aborrecidos?

Já lho tinha dito muitas vezes. Não gostava de jantar com os filhos do marido, com os irmãos dele, com ninguém dele, quando falava neles Eva não os nomeava, identificava-os por parentesco para deixar bem claro que para ela só existiam assim. Continuam a detestar-me, concluiu Eva, pronunciando novamente a palavra, de-tes-tam-me, se soubesses, também não me importo, nunca gostei deles, acho melhor assim, é tão desagradável ter de fingir, bom tenho mesmo que ir, repetiu.

Ele não ligou, sabia que quando Eva tivesse realmente que ir levantar-se-ia e cumpriria a sua obrigação de partir, antes diria várias vezes que tinha pressa mas deixar-se-ia ficar, era sempre assim, tenho mesmo que ir, diria ainda umas quantas vezes sem se levantar, sem fazer um gesto sequer.

Fez que levava a sério a pressa de Eva e pediu a conta ao empregado. Eva repreendeu-o, nunca deixava que ele pagasse. Ele

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deveria ficar incomodado por Eva o sustentar, mas em vez disso ficava satisfeito, era a única forma que sabia de depender dela. Outra qualquer seria impossível.

Além do cartão de crédito dourado, Eva entregou-lhe um livro de cheques assinados em branco que ele devia utilizar durante as férias dela no estrangeiro e fez-lhe as recomendações habituais. Ele leu-lhe os lábios sem a ouvir, a voz emudeceu na cor das bagas de romã, inesperadamente desejou beijá-la, beijar aquela cor, saboreá-la, não estava apaixonado por Eva mas apetecia-lhe saborear a beleza dos seus lábios. Guardou o cartão e os cheques e espreitou primeiro para o mar que se estendia para longe e depois para o céu. E Pensou qual dos dois seria maior e mais azul e qual dos dois seria o espelho do outro. Eva nunca tinha pensado nestas coisas tal como ele nunca pensava que o dinheiro com que Eva o sustentava era roubado ao marido.

- Nunca fomos de férias - disse.- Fomos de lua-de-mel - corrigiu Eva -, já te esqueceste? - Fez-lhe

uma festa na cabeça e repetiu fingindo-se indignada -Já te esqueceste?

Não se tinha esquecido, mas não considerava férias os três dias que passaram numa pensão ao pé da estrada.

- Claro que não me esqueci, só que como agora gostas tanto de viajar...

Eva zangou-se e tirou repentinamente a mão. Ele arrependeu-se de ter falado. Sabia que Eva não gostava sequer que ele insinuasse que ela mudara e que começaria uma discussão sem que ele pudesse evitar e que o repreenderia mais uma vez. Mas era tarde de mais, tinha-lhe saído da boca, as palavras tinham esse problema, não tinham corpo e por isso não podiam ser destruídas, uma vez ditas nada as apagava.

- Não percebes nada. Sempre fui assim. Nunca mudei. Sabes o que acho? - Eva abriu os olhos habitualmente semi-cerrados e os lábios crisparam-se, perderam a cor de romã. Ficou quase feia.

- Faz-te falta uma ocupação. Tens muito tempo e o tempo por gastar é perigoso. O tempo é uma coisa que só existe para se gastar, para se gastar rapidamente.

- Sinceramente não percebo porque te irritas tanto com a ideia de teres mudado. - estava aflito, sem poder remediar.

- Porque é injusto. Ninguém muda. Não sou só eu que não mudei. Nin-guém-mu-da, ouviste? Nin-guém. Eu não sabia que gostava de viajar porque nunca tinha viajado como agora ainda não sei se gosto de outras coisas que nunca fiz. Mas isso não quer dizer que tenha mudado. Somos os mesmos, somos sempre os mesmos.

Calou-se abruptamente. Espalmou as mãos de cera sobre a mesa, e com os olhos postos nas tábuas de madeira do chão sujo da esplanada, abanou a cabeça, em sinal de desistência:

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- És um caso perdido. - Não levantou os olhos e juntou-o a ele e à sujidade do chão no mesmo desespero.

Eva acusava-o, ele conhecia os motivos, a mágoa que mostrava sempre nestas ocasiões, mas fingiu não perceber, não se lembrar e quando Eva se esforçou por rir, ao repetir-lhe, és mesmo um caso perdido, ele riu-se também. Enganavam-se porque ambos tinham consciência de que não lhes restava outra alternativa senão a destes enganos consentidos.

- Confessa, não gostavas de fazer, nem que fosse uma só vez, uma grande viagem? - perguntou com os olhos outra vez semicerrados, os lábios generosos de romã.

- Não.- Como é que podes dizer isso com tanta certeza?- As pessoas viajam para sentirem a falta das coisas. Viajam para

voltarem ansiosas para as suas casas. Não dizes que quando estás fora só pensas em voltar e que... O verdadeiro prazer das viagens está no regresso. Se não fosse assim ninguém voltava. Nunca te apeteceu não voltares?

- Talvez - disse Eva -, nunca pensei nisso, mas nesta viagem vou pensar, prometo. Vamos mudar de assunto?

- Se partisse possivelmente não voltava, percebes?- Não - disse Eva ofendida -, mas também não me interessa.

Ninguém te obriga a viajar, perguntei por perguntar.Eva ergueu os olhos, leu em voz alta e vagarosa a tabuleta presa

por detrás do balcão da esplanada, «Não são admitidos animais. Obrigado. A Gerência».

- Sabes quantas vezes já li esta tabuleta desde que aqui estou? Umas cem vezes. Deviam proibir estas malditas tabuletas.

Desviou os olhos para os sacos pousados na cadeira.- Não queres ver o que te comprei, espero que gostes, passei a

manhã em lojas, não tenho paciência nenhuma para as empregadas, no início entrava nas lojas a medo, tinha medo daquelas empregadas, do silêncio, das perguntas que me faziam, de não saber dizer o que queria. Sonhava com o dia em que me conhecessem e me dessem o tratamento que via dar às outras clientes, as antigas, de berço. - Eva riu-se amarga. - Agora já não as suporto. Lojas e empregadas. Já não as su-por-to. Já viste como somos absurdos, como valem pouco os nossos sonhos? Já viste como somos absurdos?

Ele espreitou para os sacos e viu roupas frescas de verão, calças, camisas, meias, um pijama. Não disse nada. Nunca soube agradecer coisas concretas. Olhou novamente para o relógio e depois parou os olhos na tabuleta. Leu para si, Não são admitidos animais que não saibam agradecer. Obrigado. A vida. E disse em volta alta:

- Tens razão, deviam proibir as tabuletas.Uma rapariga entrou na esplanada. Pareceu-lhe muito bonita

apesar de não a poder ver bem porque surgiu em contraluz. Demorou os olhos nessa cegueira momentânea.

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- Agrada-te? - perguntou Eva atenta.- Como é que posso saber? - respondeu atrapalhado. - Não a

conheço.- É muito novinha. Fingiu que não ouviu.- Às vezes és surpreendente. Não te sabia com essas tendências.- Nem eu - respondeu desconcertado.- Não suporto que me faças isso - Eva sorriu, mas a boca ficou

torcida num esgar feio. - Quando te pões a olhar assim para as mulheres, sinto-me tão mal. Não penses que é por mim, tenho é pena de ti, se visses como ficas ridículo. Oh, deixa lá - disse, ajeitando o cabelo, um gesto que só fazia quando estava enervada. Calou-se abruptamente.

Ficaram calados. Ele baixou a cabeça submisso.- Desculpa, não sabia que era assim tão... tão ridículo. Desculpa.Eva não lhe respondeu imediatamente. Manteve-se calada e

depois falou muito alto.- Desculpa, desculpa, pensas que não percebo que pedes

desculpa como poderias dizer outra coisa qualquer. Passas a vida a pedir desculpa. É o mais fácil.

A rapariga acenou para o dono da esplanada e foi ao seu encontro ficando de costas para eles. Beijou-o demoradamente na boca. O homem era mais velho do que ela, tinha a pele bronzeada e um corpo alto e magro. Logo quando se sentaram na esplanada, Eva tinha comentado que o homem devia ter sido marinheiro, deve ter andado no mar, vê como ele se balança, ainda não se habituou a andar em terra firme. Ele tinha olhado para o homem e não tinha visto nada de especial na maneira de andar, poderia ter sido marinheiro ou outra coisa qualquer, mas concordou que deveria ser o dono. Agora olhavam sérios para o casal que se beijava. Eva apontou para uma mota encostada ao muro da esplanada.

- Aposto que a mota é dele e que se vão embora nela. Estas raparigas gostam de andar de mota.

A rapariga e o homem passaram por eles e dirigiram-se para a mota como Eva tinha previsto. O dono da esplanada pôs a mota a trabalhar e passados segundos apenas se via no fim de um carreiro feito de ripas de madeira o corpo da rapariga abraçado ao homem e os cabelos louros estendidos ao vento.

Quando a mota desapareceu, Eva falou de uma rapariga que em tempos tinham conhecido e depois falou de outra coisa qualquer. Repetiu muitas vezeS que tinha pressa e que não gostava de jantares familiares.

Acendeu um cigarro, bebeu o resto do vinho, já estava esquecida da rapariga bonita e do dono da esplanada, para Eva eles deixaram de existir no preciso momento em que desapareceram no carreiro de tábuas, nunca mais pensaria neles.

Eva voltou a ser a outra pessoa que ele costumava conhecer, ou desconhecer, nunca tinha conhecido verdadeiramente alguém, Eva

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continuava a ser uma estranha, foi essa estranha que guardou o maço de cigarros na carteira e lhe perguntou à queima-roupa sem olhar para ele, há quanto tempo não tens ninguém, e se levantou debruçando-se sobre ele.

Ele não lhe conseguiu responder, olhou para o relógio, o ponteiro mais pequeno afastava-se definitivamente do número cinco e o maior estava pousado no número nove, o ponteiro dos segundos prosseguia rigoroso tracinho por tracinho no mostrador branco e plano, Eva continuava debruçada sobre ele, não lhe podia dizer que até o cheiro dela tinha mudado, dantes cheirava a uma coisa parecida com relva acabada de aparar tão diferente dos perfumes doces que agora usava, todos mudamos, qualquer dia poderás estar como a mulher que tanto te assustou, todos mudamos, pensava nisso quando Eva se despediu beijando-o nos lábios, violando a regra principal dos amantes.

Tinha na mesa uma garrafa de vinho branco quase vazia e um cinzeiro cheio de cigarros que Eva tinha desperdiçado. Na cadeira estavam os sacos com a roupa nova de verão. Tinha a mão esquerda pousada na mesa e tornou a ver as horas, 18.17. O relógio era um objecto tão inútil no pulso dele, tinha o tempo que quisesse, a única coisa que fazia era decidir onde gastar o tempo.

Eva tinha partido para férias. Voltaria passado um mês e telefonar-lhe-ia logo que chegasse dizendo que precisava urgentemente de o ver. Só por isso ele saberia que estava tudo bem. Enquanto estivesse no estrangeiro mandar-lhe-ia cartas que teriam no remetente um é e um esse e por baixo o nome de uma terra. As cartas que Eva lhe mandava vinham de um mundo paralelo que não se organizava em moradas. Pensou que devia aproveitar estas férias para se afastar de Eva. Sempre que Eva partia pensava nisso, deviam afastar-se, o marido de Eva podia descobri-los. Mas ambos gostavam de se portarem como amantes, não tendo a obrigação de fingir que se amavam, de se mostrarem felizes. Não se conseguiam afastar porque a única obrigação que tinham era a de se portarem como amantes.

Os banhistas recolheram os guarda-sóis. Chegaram pessoas da cidade que se sentaram na esplanada a olharem gulosas para o mar. Ele bebeu o resto do vinho branco, olhou para o relógio, podia pedir outra garrafa de vinho e embebedar-se, podia regressar à cidade, sempre que possível partia a horas certas, era outra mania, outra forma de enganar o tempo, 18.25, levantar-se-ia às 18.30, se perdesse essa oportunidade partiria às 19.00.

Sempre fizera estes jogos, se passar uma mulher de saia castanha hoje arranjo emprego, aquela saia será castanha ou será cor de tijolo, se aquele homem tropeçar no pedregulho é que é, na verdade deu um passo em falso, será que se pode considerar apenas cambalear, oh, este sim, tropeçou de verdade, desequilibrou-se e tudo, mas era o outro que interessava. À noite regressava a casa,

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hoje também não consegui nada, Eva respondia-lhe com voz cansada e o corpo ainda mais cansado, cá nos havemos de arranjar, amanhã é outro dia, Eva duvidava que realmente fosse. No dia seguinte também não se esforçava na entrevista, mas não se sentia culpado, outra vez a voz cansada de Eva, deixa lá, vamos jantar, ele apesar de tudo tinha fome, tinha vergonha de ter tanta fome perto de Eva que brincava com a comida, juntava-a em montinhos na borda do prato para os desfazer depois com a mesma minúcia, enrolava a comida na boca sem apetite mas mesmo assim ele servia-se novamente, Eva desistia, não tenho fome, levantava-se apressada para ir trabalhar, ele acompanhava-a à porta e ficava a vê-la afastar-se no corredor, ela gritava-lhe fora dos olhos dele, deixa estar a cozinha que eu depois arrumo, ele fechava a porta e deixava-se cair no sofá, as molas chiavam e a pequena coberta esticada por Eva enrodilhava-se-lhe nas costas, quando se deitava no sofá dava razão a Eva, amanhã seria outro dia e com sorte um dia diferente.

Bebeu mais vinho, a cidade estava desesperadamente longe, o calor erguia uma parede de ar trémulo que o paralisava, no verão a cidade esvaziava-se, sobravam as moscas, muitas moscas zonzas que voavam sobre o alcatrão amolecido, esvaziou o copo, as gotinhas frescas presas ao vidro eram bonitas, deixou que lhe escorressem para as mãos, fez rodar o gelo que embateu no vidro de gotas, um vidro de água, acendeu um cigarro, olhou para o relógio, partiria às sete, o calor que se elevava no céu também distorcia o horizonte, a cidade estava tão longe, dois cães procuraram o fresco da esplanada para repousarem as línguas rosa-bebé, as línguas dos cães esticadas no chão eram lisinhas, pasta de morango, doce de crianças, demoraria muito a chegar à cidade, o céu estava tão azul, o céu da cidade estaria tão azul? se estivesse, os velhos aproveitariam para escancarar as janelas, repousariam os braços mirrados nos peitoris, os vagabundos deitar-se-iam ao sol, se estivesse assim um céu tão azul a cidade tornava-se mais perigosa, a beleza é um bom pretexto para se enlouquecer, o pecado da beleza, no verão a cidade está vazia, a solidão é um bom pretexto para se enlouquecer, o pecado da solidão, no verão a cidade pertence aos vagabundos e velhos, aos que são obrigados a ficar, aos que não podem partir, todos irmanados no ventre infindo de tamanho e segredo, com o calor há sempre quem mate por razões alheias à vontade, o calor ferve o sangue que uma vez derramado é rapidamente pó, um pó que se entranha facilmente na calçada, a beleza e a solidão são bons pretextos para se enlouquecer, sempre foram, pensava nisso e continuava sentado à espera de se ir embora, quando não se tem para onde ir o tempo gasta-se à espera da vontade de partir, gasta-se apenas.

Pegou numa beata que tinha os restos de bâton de Eva e acendeu-a. Concentrou-se para descobrir o sabor de Eva no cigarro mas o cigarro ardia sem que soubesse ou cheirasse a nada mais que tabaco. A roupa humedecida pelo suor colava-se ao corpo. Levantou

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ligeiramente um braço e aproximou o nariz da axila, a mancha de suor que alastrava cheirava mal, muito mal, todo o seu corpo cheirava igualmente mal, sentia o suor na barriga, nas costas, nas pernas, a pele tinha deixado de o vedar, nele existiam poucas coisas mais verdadeiras e essenciais do que aquele cheiro que lhe fugia, a pele rota expunha-o, denunciava-o, o ar quente e seco arranhava-lhe as narinas, secava-lhe a boca e inchava-lhe a língua como às vezes lhe acontecia durante o sono, ao acordar raspava com as unhas a saliva grossa, mas estava na rua e as unhas estavam tão sujas, esfregou as mãos com a ponta dos dedos até formar rolos pretos de surro que sacudiu, distraidamente, para o chão.

Um banhista da mesa ao lado tossiu para demonstrar a sua reprovação. Pensou se o corpo daquele banhista, se todos os corpos que estavam ali na esplanada seriam iguais ao seu ou se por algum motivo o dele era excessivamente imperfeito e sujo. Não lhe pareceu que as mãos do banhista também cheirassem a sebo nem que a língua estivesse coberta de saliva grossa e amarga. Desviou os olhos do banhista e virou os braços para si à procura do que de mais perfeito havia no seu corpo, as veias, finos traços azulados ou arroxeados que se cruzavam limpos e definidos sob a pele, fios às vezes celestes outras crepusculares, o princípio e o fim de tudo. Mas as veias estavam intumescidas e palpitantes, e ele desistiu recolhendo o braço, apanhou mais uma ponta de cigarro de Eva e colocou-a nos lábios, acendeu um fósforo que deixou apagar, olhou para o relógio, riscou outro fósforo, deixou que o cigarro se queimasse no canto do lábio, assobiou baixinho para imitar os pássaros, era um actor a filmar uma cena de um filme, semicerrou o olho esquerdo, assim uma varejeira podia ser uma borboleta verde, os sentidos são tão insensatos que deve ser por isso que os homens aprenderam a fé, deixou o cigarro no canto do lábio, era um filme policial a preto e branco e ele era detective, a ilusão teve o tempo do cigarro chegar ao filtro, a suspeita do homicídio continuou a beber café na mesa ao lado e ele pensou noutra coisa.

Entre ele e a cidade havia a distância do rio, um chão de limos e barro, não tinha nada para fazer quando chegasse à cidade mas tinha tempo, 18.47, talvez entrasse num café e comesse qualquer coisa ao balcão, talvez se sentasse num restaurante, talvez descesse as escadas do metro, sentia-se bem debaixo do chão, crescera numa cave, quem o visse diria que era um homem com pressa, um homem que tinha que ir a um sítio qualquer, se alguém o visse a correr apressado para as escadas do metro não podia dizer que ele não tinha sítio para aonde ir, que se escondia no lugar que naturalmente pertence aos mortos, se pudesse esconder-se-ia no céu ou no mar. Debaixo do chão fazia o percurso completo, uma linha, outra linha, ninguém desconfiava que gastava muitos serões a andar de metro de um lado para o outro, umas vezes olhava para os passageiros, outras eram apenas silhuetas que entravam e se apeavam nas estações.

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Quando chegasse à cidade teria tempo para decidir o que fazer, podia acompanhar a recolha do lixo da cidade em procissão, juntava-se aos fatos azuis, às capas de plástico amarelo, sacerdotes do essencial, de nós não sobrará nada mais do que lixo, dizia a Eva com um sorriso aparvalhado na cara que lhe assentava tão bem, era a sua maneira mais autêntica de se rir, Eva respondia-lhe que não gostava de o ver rir-se assim, Eva nunca soube o que ele fazia de tanto tempo, nunca soube como gastava os dias, as noites, as estações, os anos, como esbanjava o tempo, o tal material perigoso nas mãos de quem não o sabe utilizar, nas mãos dele.

Levantou-se. Foi até à vedação da esplanada e as ondas do fim de tarde espraiavam-se mansas na areia. Viu quase ao pé da água uma rapariga que lhe pareceu ser a que tinha saído com o dono da esplanada. Olhou para dentro da esplanada à procura do dono mas não o encontrou. Não tinha a certeza se era a mesma rapariga, só mais perto poderia confirmar, tinha o cabelo louro, donde ele estava parecia ser ela mas o dono da esplanada ainda não tinha voltado, talvez não fosse a rapariga, o dono da esplanada poderia ter ido a outro sítio, seriam os mesmos cabelos louros que se estenderam ao vento no atalho de ripas de madeira, o meu cabelo é de estopa e arde, costumava dizer a mãe, cabelo cor de estopa passou ele a dizer apesar de não saber o que era estopa, o meu cabelo é de estopa e arde, há frases que só fazem sentido na memória, que se perdem quando ditas em voz alta, frases que se passeiam na cabeça, frases de andar por casa. De pé, 18.59, decidia se regressava à cidade ou se corria para o mar, para a rapariga que estava perto do mar. Sem ainda se ter decidido pegou nos sacos com as compras de Eva, descalçou-se, arregaçou as calças e caminhou apressadamente até às ondas. Ainda a arfar molhou os pés na água fria e contemplou a beleza da praia quase deserta. Deixou-se ficar assim a medir a lonjura do azul e concluiu que este contentamento seria próximo do sentido pelos homens que se dizem em paz.

Recuou até fugir da água do mar, sentou-se na areia pousando os sacos e sapatos. Apetecia-lhe deitar-se mas se o fizesse ficaria incomodado com a areia que se enfiaria na roupa. Tirou um cigarro e fumou-o rapidamente com a consciência de que não se pode ficar para sempre no paraíso, nada se mantém paraíso, o sol daqui a pouco estaria do outro lado do mundo e a lua que já tinha aparecido no mesmo céu faria a noite, se andasse com o sol... mas homem algum poderá acompanhar o sol, homem algum poderá permanecer no paraíso.

Um grupo de adolescentes passou por ele dando toques numa bola de futebol. Uma família tardia abandonava a praia carregada de tralha, as crianças corriam à frente, os pais no meio cansados das cadeiras e sacos, o velho mais atrás a enterrar-se na areia, a fila familiar reproduzia a ordem natural da vida, o futuro corria à frente, o passado pesava atrás, o presente limitava-se a carregar sacos e

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cadeiras dividido entre o futuro e o passado, os pais carregados de cadeiras vigiavam a corrida dos filhos e a dificuldade do velho, esforçavam-se por não perderem nada, daqui a pouco serão eles que caminharão mais atrás enterrando-se na areia, as crianças carregar-se-ão de cadeiras e sacos e ficarão cansadas, os que hão-de vir correrão à frente, a família desapareceu, os namorados de verão enroscavam-se na areia julgando-se escondidos, beijavam-se enquanto o mar recuava e a areia se apoderava da praia existindo cada vez mais, no seu recuo o mar deixava um deserto, os namorados eram pequenas conchinhas que se descobriam incompletas, bivalves que se fechavam para os outros.

Foi nesse deserto de areia que reparou, surpreendido, que há muito tempo não cortava as unhas, os pés assim nus mostravam as unhas enegrecidas e curvas, umas unhas de cão, tenho de cortar as unhas, repetiu duas ou três vezes para não se esquecer, logo à noite tenho de cortar as unhas. Levantou-se e começou a andar, sentiu prazer quando os pés frios se enterraram na areia morna e por isso retardou os passos, concentrou-se no simples acto de caminhar, enterrava um pé na areia e deixava-o ficar mais à frente desprotegido, seguia-se-lhe o outro, e assim fez um rasto das suas pegadas, os seus pés ainda eram pequenos quando criaram este hábito, foi quando conheceram o mar da colónia balnear. No dia em que chegou à colónia balnear deram-lhe sopas de leite e deitaram-no no primeiro andar de uma cama, um beliche, a excitação de estar deitado numa cama com escadas não o deixava adormecer, na manhã seguinte iria conhecer o mar, parecia que ia conhecer uma pessoa. Gostou mais do beliche que do mar, mas não se atreveu a dizê-lo, na semana em que dormiu no beliche habituou-se a vigiar as marcas dos pés na areia, procurava-as no dia seguinte, seria mais fácil se tivesse querido esvaziar o mar, no último dia de férias os colegas deixaram na areia uma fila ordeira de pés tristes, que será feito do rapaz que dormiu na cama de baixo, como é que se chamava, avançava sobre a areia atento ao seu rasto, o que será feito dele, os pés cresceram e têm unhas de cão mas às vezes a felicidade também ataca pés destes, às 19-05 deixava na areia passos felizes.

Aproximou-se do corta-vento onde a rapariga dos cabelos louros se tinha resguardado. Verificou que era a mesma rapariga e evitou que os seus olhos, decerto ridículos como Eva disse, fossem apanhados pelos da rapariga que jogava às cartas com um miúdo. Do outro lado do corta-vento ouviu a voz da rapariga, trunfo, depois uma gargalhada, a voz de um miúdo, batoteira estúpida, uma voz adulta de mulher, não fales assim com a tua irmã, não se chama estúpida a ninguém, outra vez a voz do miúdo, então chamo o quê, a voz de um homem adulto, vamos lá ver, e nada mais foi dito.

Quase parado podia olhar para a rapariga sem parecer ridículo porque não era visto. Reparou no pé direito dela, um pé perfeito com

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uma corrente prateada no tornozelo donde pendia um coração também prateado. O pé esquerdo remexia indolente a areia. As nádegas eram muito redondas e pequenas, as costas desenhadas, os ombros estreitos de criança. Fixou os olhos e susteve a respiração para que ninguém desse conta que roubava tão facilmente beleza daquele corpo. É realmente bonita, muito bonita, pensou, disposto a continuar o seu caminho. Mas a rapariga riu-se e pôs-se de pé para sacudir a areia, o corpo ao alto era ainda mais belo. A rapariga franziu os olhos por causa do sol e ele aproveitou-se desse encandeamento para se demorar nos dois peitozinhos tesos com os mamilos espetados por baixo de um paninho cor de mel. Abriu muito a boca para acalmar o coração com o ar salgado, é muito raro estar-se assim tão perto da beleza e no entanto aqui está ao meu alcance, se esticasse a mão podia tocar-lhe, será veludo, se estendesse a língua podia saboreá-la, será sal, fechou os olhos para a tornar memória, quis decorar o corpo mas a beleza não se deixa recordar, precisa de ser vista, a rapariga bonita desafiou o miúdo para jogarem novamente, não dês as cartas que eu perco neste jogo, aposta a corrente de prata que eu aposto o coração, a rapariga continuava de pé, dispunha de mais alguns segundos para lhe roubar toda a beleza que pudesse, a rapariga baralhou as cartas, o miúdo cortou o baralho em dois, e ela deu, mais atrás estava uma mulher sem nada de especial, seria a mãe, encostada a um homem forte que lia um jornal, seria o pai, a rapariga sentou-se e pôs a mão direita sobre a testa a servir de pala, ajudada pela sombra que criou apanhou-o a roubar a sua beleza. Podia ter gritado mas não o fez, deixou-se roubar em silêncio, estava demasiado vaidosa para o denunciar, aquele homem é um ladrão, podia ter gritado, mas estava demasiado vaidosa, sentou-se, recomeçou a jogar, ele continuou parado, Eva tinha razão, não podia ser mais ridículo do que ali especado no areal com as calças da cidade arregaçadas e os pés nus, as mãos cheias de sacos e sapatos, os pais olharam-no desconfiados, o homem forte parou de ler o jornal, a mãe chamou pelos filhos, teve a pressa dos ladrões, já não era nada mau voltar para a cidade com os olhos tão cheios de beleza, estava feliz, deu quatro passos apressados, olhou para trás mais uma vez, uma última vez que durasse para sempre, a beleza não se deixa recordar, pede que se olhe constantemente, um vício, continuou a caminhar enquanto olhava para trás, sentiu qualquer coisa a espetar-se a meio do pé direito, tropeçou, largou os sacos, quando levantou o pé viu um pedaço de vidro cravado na carne branca e sangue que começava a correr.

As quatro mulheres continuam na sala. Neste momento, por coincidência, olham todas para o chão que é de mosaicos cinzentos com pintas pretas. Já não são olhos atentos, são olhos cansados de deambular pelo desconforto da sala quadrada que além delas, das duas manchas castanhas de humidade, do fio eléctrico que passa colado ao rodapé e que sobe ao umbral da porta para depois se

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estender até ao interruptor redondo e preto, tem quatro bancos corridos de madeira, um candeeiro no tecto, uma mesinha com jornais antigos e dois avisos na parede, Proibido Fumar e Aguarde a Sua Vez com Educação.

Mas a ex-mulher fuma muito. A senhoria para demonstrar o seu desagrado tosse, tapa a boca com os dedos gordos, torna a tossir, agita a papada, procura o cheiro das rosas do toalhete. A ex-mulher sussurra indiferente um pedido de desculpa e tenta espalhar o fumo com a mão. Quando improvisa este leque feito de dedos deixa cair o saco que derrama a cigarreira, isqueiro, porta-moedas, livro de cheques, o livro guardado, o porta-chaves e outros objectos. Por causa do barulho a mãe levanta os olhos, mas fica espantada no mesmo torpor. A rapariga levanta-se como quem vai ajudar, mas abeira-se da janela. A senhoria agarra-se instintivamente à sua carteira de verniz branco e verifica se o fecho está corrido. A ex-mulher recolhe as coisas e atira-as apressadamente para o saco que depois dobra sobre a barriga. Poderiam ter começado a falar, o barulho dos objectos que caíram no chão poderia ter sido o pretexto para que falassem, as vozes já não seriam despropositadas porque a queda do saco tinha afastado o silêncio da sala, poderiam ter começado a falar mas a mãe retoma as suas orações, Deus te fez, Deus te criou, Deus perdoa a quem mal te olhou, a rapariga regressa ao seu lugar, rói as unhas, arranca cutículas até que se fere e quando isso acontece chupa o sangue deixando o dedo na boca. A outra mão está pousada sobre a barriga. A ex-mulher observa os cabelos louros de criança despenteados e a pele lisa, uma pomba pousa no beiral da janela desviando os olhos da ex-mulher mas levanta voo de seguida e pousa noutra janela mais acima. A senhoria boceja, abre a boca, saem-lhe dois fios de água dos olhos e estremece num arrepio que a desperta.

Continuam sentadas, ocupando ordeiramente cada um dos lados da sala quadrada, quando um funcionário entra na sala, olha-as por instantes escolhendo. Abeira-se da senhoria e pede-lhe a senha. A senhoria entrega-lhe o bocado de papel azul que lhe deram à entrada. Percebe-se que há qualquer coisa que inquieta o funcionário. Temos aqui um problema, esta senha não pertence a este serviço, aqui só recebemos senhas verdes e esta é azul, diz monocórdico, temos de a identificar outra vez, as outras mulheres olham para as suas senhas que também são azuis. Tenho aqui o meu bilhete de identidade, diz a senhoria nervosa, pode ver, está aqui, a senhoria retira o cartão plastificado da carteira de verniz branco. Agradeço mas não serve de nada, a identificação tem de ser feita pelo colega lá de baixo no guichet próprio. Mas não vê que sou eu? Claro que vejo mas não é assim que se faz, se não se importa acompanhe-me lá a baixo, diz compondo o cabelo preto, muito liso, que lhe cai sobre a testa.

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A senhoria levanta-se, segue o funcionário nos tornos de verniz branco que já lhe incham as pernas. À frente, o homem caminha mas não se ouvem os seus passos, tem solas de silêncio próprias para andarem naquele local. Quando saem da sala fecham a porta, a rapariga levanta-se, abre a porta, não podem atender outra enquanto não resolvem esse problema, pergunta para o corredor, o funcionário pára, lamento mas tenho de tratar primeiro deste assunto, há uma ordem que não posso trocar. É que já aqui estou há mais de duas horas, reclama a ex-mulher mantendo-se sentada no banco. O funcionário regressa do corredor iluminado pela clarabóia, não posso fazer nada, não depende de mim. A ex-mulher acende outro cigarro e fica com o isqueiro aceso na mão a contemplar a chama trémula. O funcionário diz, desculpe, a senhora não pode fumar, são ordens que tenho. A ex-mulher responde com displicência que as ordens são feitas porque há sempre alguém disposto a desobedecer e continua a fumar. O funcionário vai-se embora descansado porque cumpriu o seu dever, o resto já não é com ele.

Merda, merda, foi castigo, olhou para o vidro castanho cravado na carne, o pedaço de uma garrafa de cerveja espetado na carne mole do meio do pé, quem terá sido o estupor que, rodou o pé com cuidado e tentou puxar o vidro mas não conseguiu, o vidro estava cravado na carne, que merda de azar, foi castigo, se não tivesse olhado para trás isto não acontecia, passou por aqui tanta gente hoje e logo eu, disse mais uma vez enquanto se sentava, atirando os sacos para longe, 19.20.

O sangue corria mais abundante, o coração batia apressado, começou a transpirar, tinha medo do sangue que lhe saía do corpo, do vidro cravado no pé, que raio de azar, acalma-te que isto resolve-se, as gotas de sangue eram cada vez mais grossas, o pé tornava-se lentamente num pedaço de carne ensanguentado, e se lhe doesse, a dor da carne quando se fere, a dor aguda que se propaga pelo corpo, um veneno lento, o coração batia aflito, respirou para se concentrar, não fiques em pânico, estava enjoado, os intestinos revolviam-se, o corpo fora de controlo, os lábios dormentes, as mãos geladas, respirou devagar, o mar, se olhar para o mar, fechou os olhos com muita força para que tudo voltasse ao normal, para que o vidro desaparecesse da sua carne, de olhos fechados sentia as têmporas a latejar, o pescoço rígido, ia desmaiar, se abrir os olhos desmaio, vergou o pescoço até ficar com a cabeça para baixo, abriu a medo os olhos, fixou-os nos grãos de areia que brilhavam, a luz reflectida na areia era brilhante demais, não posso desmaiar, não posso desmaiar, 19.23.

As ondas ressoavam ameaçadoras, um búzio gigante nos ouvidos, levantou a cabeça e o movimento irregular da água nauseou-o, não posso olhar para nada, o medo cega, tornou a fechar os olhos, contou até dez para se acalmar, quando estiveres nervoso deves contar até dez, seguiu o conselho de Eva, contou até dez, era a

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sua última oportunidade, pegou cuidadosamente no pé ferido e pousou-o sobre a coxa da perna esquerda que se manchou de sangue. Com o pé mais perto veio o cheiro do sangue, quer dizer um cheiro que ele julgou ser de sangue, o coração batia descontrolado, as mãos tremiam-lhe, o pássaro moribundo estrebuchava no passeio, ele contornou o pássaro para não o ver de perto, não olhou para trás, não viu as asas pararem de bater, tenho de ir a um hospital, o areal era intransponível, quantos passos são daqui à esplanada, não vou conseguir, como é que eu saio daqui, tenho que pedir ajuda, tinha medo, o pé continuava a sangrar, a areia não se manchava de sangue como que a desmentir-lhe o pânico, 19.25, os olhos no relógio, a cabeça baixa apoiada nas mãos, não conseguia pensar em nada, se tivesse coragem para arrancar o pedaço de vidro do pé, se tivesse coragem.

Podia levantar-se e tentar apoiar-se no pé esquerdo deixando no ar o direito. Se não conseguisse fazer o caminho todo a pé-coxinho, podia utilizar a parte dianteira do pé ferido apoiando apenas os dedos, talvez fosse capaz, tinha de se acalmar, tinha de se pôr de pé e andar até à esplanada, lá alguém chamaria um táxi, na esplanada haveria um telefone, é uma emergência, o homem que caiu na passadeira também era uma emergência e ninguém lhe valeu, a cabeça do homem aberta a jorrar sangue sobre os traços brancos e as pessoas continuavam a passar apressadas, a culpa era dos horários de trabalho que têm que ser cumpridos, todos queriam ajudar o homem desmaiado mas não podiam, um polícia chamou uma ambulância para o remover da passadeira e descongestionar o trânsito, mas as pessoas da esplanada estavam de férias e podiam ajudá-lo, alguém faria o favor de chamar um táxi, tinha era de conseguir andar, estava mais calmo mas olhou para as unhas enegrecidas e curvas, unhas de cão, e disse, outra vez, merda.

Ninguém lhe podia ver as unhas, sentiu uma vergonha tão grande que o fez corar, pedaços de vermelho que lhe queimavam a cara, não queria que ninguém soubesse que tinha unhas de cão, tinha que esconder as unhas antes de mais, mas de qualquer forma teria que as mostrar no hospital, podia calçar as meias, seria uma maneira de proteger a carne ferida da areia, trémulo puxou o saco que tinha as meias para junto de si e vestiu depressa o pé esquerdo para o tapar, pegou com cautela no pé ferido vestindo-o apenas o suficiente para esconder as unhas, ninguém lhe veria as unhas, agora tinha de chegar à esplanada, 19.27.

Com as unhas tapadas e o medo cronometrado, 19.28, tinha de se levantar, o taxista podia não querer levar um homem que lhe sujasse o carro de sangue, se lhe calhasse um antigo que trabalhasse por conta própria talvez tivesse sorte, os taxistas antigos ainda cobrem os estofos com resguardos de napa lavável, se fosse um dos novos inscritos na companhia de certeza que não o transportaria nos estofos de tecido, não o podia censurar, ninguém gosta do visco do

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sangue, o taxista no dia de folga tem que passear a família no carro, uma ambulância seria o transporte certo, uma ambulância pode ser suja de sangue, iria deitado na maca, o interior das ambulâncias é tão branco, o branco é a cor das mortes incompletas, adiadas, pelo menos é o que dizem os mortos adiados, falam de um túnel e uma luz muito branca ao fundo, apesar de tanto branco as ambulâncias entretém a morte com luzes azuis rodopiantes, sirenes agudas, ele via-as quase todos os dias na cidade, tinha tempo para reparar nelas, quando se tem tempo vê-se passar muitas ambulâncias nas ruas da cidade, são carros prioritários que afastam os outros, não param nos semáforos vermelhos nem em cruzamentos, a urgência da morte abre sempre rasto, a morte também tem o seu transporte próprio, quando se tem tempo vê-se passar nas ruas muitos carros escuros e vagarosos, carros quase sempre com cortinas roxas e flores esborrachadas contra os vidros, a morte deixa-se olhar pousada no centro do carro, assume a forma de rectângulo e tapa-se com panos com galões dourados, assim paramentada os que se cruzam com ela até a ignoram, ninguém a teme, ninguém grita vai ali um morto, os carros da morte não têm urgência nem prioridade, transportam o definitivo e o infinito, mas se chamasse uma ambulância quando os bombeiros vissem o vidro cravado no pé rir-se-iam, diriam entre dentes, o que nos havia de calhar, um cortezinho no pé, olhá-lo-iam com desprezo e de certeza que nem se despediam dele no hospital, 19.29.

E se pedisse boleia, havia o dono da esplanada, se o dono da esplanada o levasse na mota ficariam apenas umas gotas de sangue no asfalto, nem isso ficaria porque o vento atiraria tudo para longe, mas o dono da esplanada não abandonaria o seu negócio para levar um ferido ao hospital, e durante a viagem podia desequilibrar-se, podia ter medo de cair e agarrar-se às costas do dono da esplanada como a rapariga fez, podia ter de encostar a cabeça para não desmaiar, se tal acontecesse o dono da esplanada sentiria asco, os homens não querem conhecer o medo dos outros homens, 19.30, quando anoitecesse seria mais difícil sair dali.

Se fosse corajoso arrancava o vidro da carne e calcava a areia com o pé ferido, punha-se a andar como se nada tivesse acontecido, se fosse corajoso não estava todo a tremer, pensou em pequenos truques, conto até três e puxo o vidro, um, dois, três e nada, continuava a tremer, outro truque, tenho um minuto para arrancar o vidro senão morro e ficava a ver o ponteiro mais fino do relógio a percorrer o mostrador branco, sessenta segundos gastos no medo de arrancar o vidro, 19-32, tenho de ir de gatas, se for de gatas toda a gente se ri de mim, não haverá nada mais patético do que um homem de gatas pela praia, de gatas não, mas já te tinhas lembrado de andar ao pé-coxi-nho, controla-te, não fiques em pânico, o coração batia com mais dificuldade, se tivesse um ataque cardíaco, se o coração não resistisse, o coração é o músculo mais forte do corpo, o

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pássaro moribundo ficou tanto tempo no passeio, a água crescia-lhe abundantemente na boca, não tardariam os vómitos, quanto mais tempo demoro pior, começou a falar em voz alta, não podes ficar à espera que o sangue fuja pelo pé, tens de ir até à esplanada, chamas um táxi e pagas o que for preciso, há um preço para tudo até para se sujar um carro de sangue, ou então arrancas o vidro, decide-te, és um homem, já tens cabelos brancos, mas a voz recuou e o pensamento foi mais sincero, tenho um vidro espetado no pé e os cabelos brancos nada podem contra o medo, aliás nunca me gabei de ser corajoso, sempre fugi das doenças, apressei o passo quando vi o pássaro moribundo e nem sequer olhei para trás, nunca fui buscar Eva ao hospital apesar de, todos os maridos das minhas colegas as vão buscar, só tu é que nunca foste, vai ao menos uma vez para te conhecerem, qualquer dia pensam que tu não existes, não gosto de hospitais, mas aquilo é um hospital de ossos e nem tem serviço de urgência, mas cheira na mesma a hospital e é do cheiro que não gosto, não sei como fizeste a tropa, fiquei sempre na secretaria por causa do sopro, nunca percebi isso do sopro, tens um coração óptimo, as palavras deslizavam pela cabeça baixa, estava quase a chorar, sê um homenzinho e arranca o vidro, levanta-te e anda, faz um milagre, nunca tive fé, e continuou parado, as palavras afluíam conflituosas, tens que ser prudente, se o vidro está a servir de tampão a uma veia muito importante posso esvair-me em sangue, nunca sabemos a importância que as coisas têm no corpo, não é só uma questão de coragem, a prudência salvava-o da cobardia, o sol cada vez mais baixo mas ainda excessivamente brilhante para os olhos amedrontados, o frio da água, o mar mais prateado do que o aço de um punhal, as ondas mansas que durante a tarde lambiam a areia, precisava da doçura das ondas do mar, precisava de qualquer coisa que lhe afugentasse o pânico do corpo mas o que viu foi espuma, conchas e limos, enormes limos verdes pegajosos que secavam ao sol, 19.34, o sol e a lua no mesmo céu, se calhar era isso que estava errado, o sol e a lua no mesmo céu, os dentes cerravam-se, vou gritar, não entres em pânico, controla-te, tu és capaz, e se virem as minhas unhas, não entres em pânico, acalma-te que já chamámos a tua mãe, estava deitado no chão a sangrar do nariz, os colegas rodeavam-no num círculo, quem começou a briga, perguntava a professora da instrução primária, o sangue saía quente do nariz mas não o conseguia cheirar, era só um líquido tépido a sair do nariz, põe a cabeça para trás, alguém o segurou, não lhe doía nada, os colegas vistos com os olhos revirados pareciam-lhe enormes, foi ele que me bateu, disse fechando rapidamente a boca para não engolir sangue, mentiroso, respondeu o miúdo que o tinha socado, não entres em pânico, controla-te, a tua mãe está a chegar, 19-35, estava paralisado, às vezes acontecia-lhe estar assim ao sonhar, queria gritar mas era tarde demais, o pé sangrava, já não conseguia ver o

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vidro, se estivesse a sonhar estaria quase a acordar, e foi então que o homem forte se aproximou dele.

Ia sentado no lugar do morto com as unhas de cão à mostra. O homem forte carregava no cláxon e gritava pela janela aberta, levo aqui um homem para o hospital, os outros carros afastavam-se e ele lá manobrava o seu de forma a passar por entre os outros carros que olhavam curiosos para a mancha de sangue pousada no tablier, para o seu pé pousado numa toalha de praia.

Quando o homem forte se chegou ao pé dele e lhe perguntou, oh amigo, precisa de ajuda?, acenou imediatamente que sim, a mãe abeirou-se dele, foi ele, a mãe disse-lhe, falamos em casa e sacudiu-o violentamente para ele se pôr direito, porta-te como um homem, os colegas desfizeram o círculo que formavam, entregou-se ao desconhecido, afastou-se com a mãe, o homem forte olhou para o pé e disse, então amigo como foi isso?, e com um assobio chamou o miúdo que veio a correr.

O homem forte estendeu-lhe a mão que ele agarrou para se içar. De pé, apoiou-se no ombro do homem, tinha consciência de que o agarrava com demasiada força mas não conseguia evitar, deu o primeiro passo e a meia saltou do pé ferido, e as unhas de cão, unhas muito negras e curvas, ficaram irremediavelmente descobertas. Ainda pensou em escondê-las novamente, mas não teve coragem de dizer ao homem forte que tinha que parar para esconder as unhas e caminhou envergonhado das unhas de cão até ao carro. A rapariga bonita mantinha-se uns passos mais atrás, acompanhava os passos lentos da mãe, não as via, mas ouvia-lhes o riso, de que se riam, as mulheres riem-se de tudo, as mulheres só se riem de coisas sérias, dizia-lhe Eva, mãe e filha riam-se atrás dele, o cheiro a coco do bronzeador da rapariga bonita era agradável, a sombra dela alongada a passar-lhe à frente, a estender-se na areia, se estivesse bem disposto atropelava-lhe a sombra, se não tivesse tanta vergonha, mas de que se riam as mulheres?

Sentaram-no no lugar do morto, 19.48, e colocaram-lhe o pé em cima do tablier que resguardaram com uma toalha de praia com patos amarelos a perderem a cor. Mãe e filhos guardaram no porta-bagagens as esteiras e o guarda-sol e entraram todos para o banco de trás apertando-se uns contra os outros. Se olhasse para o espelho lateral do carro podia vê-los mas não o fez. Se olhasse teria visto duas caras novas divertidas e outra mais velha ligeiramente contrariada. O homem forte foi o último a sentar-se porque se demorou mais a sacudir a areia dos chinelos e ainda retirou o folheto publicitário que tinham deixado preso no limpa-pára-brisas. Amarrotou o papel e atirou-o para o chão, o dinheiro que se gastam nestas porcarias, disse quando se sentou, tenho de passar pelo parque de campismo para os deixar, também não é caso de vida ou de morte, e se não for assim o jantar atrasa-se, no parque os banhos são um problema, demoram que se fartam, o amigo não se importa,

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pois não? Claro que não, não quero causar mais incómodo, na verdade posso, e virou-se para a rapariga, talvez o seu amigo, o dono da esplanada, conheça alguém, ou possa, talvez o seu amigo, deixe lá isso, o parque fica em caminho e depois enquanto fazem o jantar levo-o ao hospital, não me custa nada, o homem forte rodou a chave na ignição, o carro não pegou logo, está a confundir-me com outra pessoa, não conheço ninguém aqui, muito menos o dono da esplanada, o carro pegou e o pai ajeitou o retrovisor.

A mãe pôs o braço por detrás do miúdo para o abraçar, o pai fez marcha-atrás, o carro derrapou para se soltar do monte de areia onde estava estacionado. O miúdo libertou-se da mãe e abriu o vidro, pediu para ir com o pai ao hospital, deixe-me ir consigo, o homem forte disse, pergunta à tua mãe, mãe posso ir, se quiseres, o homem forte sorriu, assim com o pé ao alto essa sangria pára já. A mulher e a rapariga continuaram caladas, o carro passou por um atalho levantando muito pó e desembocou numa estrada mais larga de terra batida. Ao longe já se avistava a vedação do parque de campismo e nessa mesma estrada larga e amarela caminhavam campistas com as mochilas às costas, o pai apoiou o braço na porta do carro, conduzia com uma só mão, a mãe fechou o vidro por causa do pó, o pai disse, assim abafamos cá dentro, a mãe tornou a abrir o vidro e o pai conduziu o carro devagar para não comerem o pó amarelo que vinha de todo o lado e que manchava o céu.

Então como é que isso lhe aconteceu? Um vidro no meio da praia, nós por acaso reparámos que estava ali sentado mas pensámos que estava a descansar, foi o miúdo que viu o pé, imagine se tivesse sido uma criança a cair com a cabeça em cima do vidro, se lhe deixou o pé assim imagine espetado na fonte de uma criança, ficava logo ali, é por isso que detesto a praia, é por isso...

Não sabia o que responder, podia apresentar-se, dizer o nome, ao menos o nome que é o que se diz sempre apesar de dizer tão pouco de cada um, o nome é muito importante, já lho perguntaram tantas vezes, o seu nome por favor e ele diz o nome que lhe puseram aquando da fotografia em que se conhece mais pequeno, a fotografia que só foi feita porque se baptizou outra criança no mesmo dia, os pais da outra criança contrataram o fotógrafo para eternizar a entrada do filho no reino dos céus, os seus ainda não se tinham desgraçado, mas nunca se lembrariam de contratar o fotógrafo, diz ao menos o nome, se disseres o nome pensam que te conhecem, na fotografia os pais, que ainda não tinham estragado a vida, ladeavam-no, diz o nome, não conseguia falar, a língua tinha-se colado ao céu-da-boca, acontecia-lhe quando se enervava, perdeste a língua, perguntava-lhe Eva, olha o que eu achei aqui, uma língua atrás da cómoda e riam-se, faziam as pazes, se calhar até foram felizes, o passado quando se recorda é sempre outro, mais feliz, agora que já não tinha medo nem vergonha sentia apenas a dor no pé, o seu corpo agitava-se, descontrolava-se, o pulsar apressado do coração, o enjoo,

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o pé pousado no tablier sobre os patos amarelos adoecia o corpo, o homem forte avançava lentamente na estrada de terra, chegaram ao portão do parque de campismo e a mulher e a rapariga saíram sem dizer uma palavra, foram buscar os sacos ao porta-bagagens, a rapariga veio pelo lado dele, ficou muito perto dele, viu-lhe perfeitamente as unhas de cão, ele baixou os olhos envergonhado e a rapariga riu-se, de que se riem as mulheres, a mãe disse que ia grelhar peixe, não te demores que a comida fria não tem graça nenhuma e os miúdos querem ir à feira andar nos carrinhos de choque, o pai acenou e fez inversão de marcha, os outros campistas que entravam e saíam do parque ficaram cobertos de pó, criaturas espantadas, 20.02, o homem forte chegou à estrada principal, mais depressa pai, disse o miúdo, se a tua mãe sabe disto é um caso sério, não sabe, prometeu o miúdo, o pai sem a família completa ficou só um homem preocupado com o engarrafamento, olhe para ali, já estão todos parados.

Ajeitou o pé no tablier, já não tinha vergonha das unhas de cão, a única coisa que queria era fechar os olhos, mas o homem forte queria conversar, só faço este sacrifício da praia pela família, não suporto a areia a enfiar-se-me no corpo nem o sol a furar-me a cabeça, não sei nadar e a água está sempre gelada, nunca sei onde me hei-de pôr, ao sol tenho calor e na água, frio, há sempre tão pouco espaço para as sombras, faço este sacrifício pela família, se fosse sozinho nunca me apanhavam aqui, ficava sossegado na minha terra, há quem lá vá só para ver a planície, é uma medida de terra que consola o coração, os da cidade têm comprado tudo, como aquilo é perto escapam-se para lá, metem-se no ferry e depois é um bocadito de estrada boa, eu nunca fui capaz de me meter com o carro no ferry, tenho medo que aquilo se afunde com tanto peso, andei uma vez num de passageiros e até gostei de atravessar o rio, tive medo porque se aquilo fosse ao fundo eu ia também, quando fui à tropa foram treze dias sobre água, de tudo foi do que tive mais medo, treze dias e só via água, o que gosto é de estar na minha terra, se um dia for para aqueles lados, disse o nome da terra e ele respondeu, com dificuldade, não conheço, mas o homem forte continuou como se ele tivesse dito que conhecia, que costumava ir para aqueles lados, depois de passar a igrejinha na beira da estrada avista dali uma lonjura de terra que não lhe cabe nos olhos, se for no tempo das searas e se estiver um pouco de vento garanto que nunca viu nada tão lindo, e tem os campos de alfazema, e de girassóis, gritou o miúdo do banco de trás, o pai continuou, também gosto da terra à espera da sementeira, gosto mais da terra do que do mar, o mar é para os peixes, quando me reformar vou plantar oliveiras, são as árvores mais bonitas que conheço, ainda me faltam muitos anos para a reforma mas quando me reformar vou plantar oliveiras num bocado de terra que para lá tenho, ou então, nunca se sabe daqui a dez anos

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como estaremos, se calhar já não tenho força para pegar no sacho, mas quando me reformar vou...

O homem forte calou-se abruptamente e ficou a inventar os seus dias de reformado. Ele fechou os olhos, sabia-lhe bem o silêncio, desejou que mais ninguém falasse no carro, o homem forte continuou calado a antecipar a nova vida que teria, o miúdo tinha adormecido no banco de trás, mas ele sabia que dali a pouco, a propósito do engarrafamento ou do calor, o homem forte recomeçaria a falar, poucos suportam o silêncio, quando está com Eva também ele foge dos olhos calados, temos aqui para um bom bocado, disse o homem forte, veja como isto está, nem se mexem. Abriu os olhos com dificuldade e viu três faixas de carros parados. O homem forte pôs o carro em ponto morto e cuspiu ruidosamente pela janela a secura da tarde que se alojava na garganta. O pior é a vida do campo, continuou, é uma miséria, quando me empreguei queria fugir da vida dos meus pais, vi-os sempre de enxada na mão e sempre com fome, quem é que não quer fugir da miséria, o homem forte abanou a cabeça e perguntou-lhe, você não está de férias, pois não?

Se bebesse qualquer coisa conseguiria falar melhor, os carros continuavam parados com o sol a incidir nos tejadilhos, às vezes metal e sol combinavam-se no alcatrão amolecido num feixe de luz muito brilhante que o estonteava mais, o carro cheirava a limão do fruto plástico pendurado no retrovisor, o pé doía-lhe mas o homem forte continuava à espera, queria ouvi-lo falar na família, nas férias, no trabalho, tinham tempo para conversar, olhou para o relógio, os minutos arrastavam-se, 20.10, os carros estavam parados na estrada no dia mais quente do ano, não corria uma brisa, começou, vim visitar o meu mais novo à colónia de férias, ah! tem filhos?, o homem forte ficou satisfeito por o reconhecer igual, três, tenho três, duas meninas e um rapaz, já está bem servido, o homem forte deixou o sorriso na cara e carregou mais uma vez no cláxon, gritou, dêem um jeitinho, levo um homem para o hospital, uns carros afastaram-se com esforço, ficaram oblíquos em relação à estrada, desordenaram a fila compacta, eles conseguiram avançar mas ficaram presos pouco mais à frente, houve um homem que disse, passa por cima, o carro do homem forte resfolegou, o miúdo no banco de trás abriu os olhos, tenho fome, o pai ralhou-lhe, quiseste vir aguentas, tivesses ficado no parque com a tua mãe, isto da família é um caso sério, então três, eu tenho estes dois e já me chegam, dois ou três vai dar ao mesmo, o homem forte olhou-o espantado e concordou de seguida, dois ou três é de facto a mesma coisa, basta um e já temos a vida lixada, vivemos para os filhos e eles mortinhos por fazerem a vida deles, fizemos o mesmo aos nossos pais, não os podemos criticar, é a roda da vida, não os podemos criticar, repetiu o homem forte para se conformar.

A dor do pé, o cheiro do limão de plástico pendurado no retrovisor, o calor, o homem forte, tudo lhe provocava vómitos. O homem forte perguntou-lhe pela mulher que possivelmente o

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esperava em casa para jantar mas ele não lhe conseguiu responder. O homem forte riu-se, oh amigo, também não é caso para ficar assim, ele concordou abanando a cabeça, as moscas entravam e saíam do carro, zumbiam à volta da cabeça dele, o vinho branco, os bocados de polvo e os cigarros da tarde revolviam-se no estômago e vinham-lhe à boca, uma varejeira voou ruidosamente até que encontrou a carne ferida onde pousar, arrepiou-se repugnado, devia enxotá-la mas não conseguia executar este movimento tão simples de mexer o braço, fechou os olhos, deviam estar quase a chegar ao hospital, os carros avançavam lentamente, o homem forte de vez em quando carregava no cláxon mas não havia sítio por onde passar, os patos amarelos da toalha de praia tingiam-se de sangue, tinha as unhas de cão destapadas, parecia-lhe que também tinha sujado o tablier do carro, as fotografias da mulher e dos dois filhos que lá estavam imanadas, três quadrados, a mulher ao centro a menina de um lado e o bebé do outro, na parede da sala havia de estar emoldurada a ampliação que o fotógrafo ofereceu de brinde, podia perguntar em que circunstâncias é que foram tiradas aquelas fotografias, um assunto rentável, o passado demora sempre algum tempo a ser reinventado, o homem forte achou estranha a pergunta, não se lembrava, tinha passado muito tempo, o bebé era o miúdo gordo amolecido no banco de trás, a menina desdentada era a rapariga bonita que beijara o dono da esplanada e que depois lhe mentira ao garantir que não conhecia ninguém naquela praia, a mulher já não tinha aquele sorriso amável nem o cabelo tão escuro, eram outras pessoas mas o homem forte estava convencido que eram as mesmas, todas as pessoas se prestam a esta confusão, lembrou-se da fotografia que Eva lhe ofereceu quando começaram a namorar e da cara de Eva à tarde na esplanada, tão diferente, da cara dele nos muitos cartões que foi tendo ao longo dos anos, de estudante, de utente de transportes públicos, de sócio de inúmeras associações, gostava de se associar a tudo quanto pudesse, quando se tem tempo faz-se parte de qualquer coisa, gostava de preencher formulários, de entregar os impressos às funcionárias, se era preciso fotografia prendia-a no canto superior esquerdo com um clip, dantes deixava que as caras se repetissem, a fotografia do bilhete de identidade era a mesma que estava na mesinha da sala da mãe numa moldura de vidro baço ao lado da fotografia do pai, tinham os dois o mesmo sorriso aparvalhado, já não se lembrava como se tinha obrigado a mudar de cara, quando se tem tempo, já tinha ido tantas vezes ao fotógrafo, também gostava de ir às máquinas, a menina puxava o cortinado e ficava à espera do clarão, dos cinco minutos que demorava a sair a tira das quatro caras, a menina dizia-lhe sempre que ele ficou muito bem e isso bastava-lhe, pedia que cortassem a tira de imagens, deixava que lhe dividissem as caras com cuidado, repetia a que ficou de olhos fechados, mais quatro, tinha guardadas

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dúzias de caras em formato passe na gaveta do guarda-fatos, um dia destes tenho que deitar tudo fora, um dia destes...

Apesar de se sentir tão mal lamentou que a rapariga bonita tivesse ficado no parque de campismo, afastou a toalha e o pé para longe das fotografias, não podia manchar a família de sangue, nunca andava em carros de estranhos, não podia fumar e receava ter as solas sujas, nunca aceitava boleia de ninguém, nem mesmo de Eva, gostava de transportes públicos que não cheiravam a limão nem tinham fotografias no tablier, mas agora ia sentado no lugar do morto de um carro estranho e tão próximo de um estranho que não suspeitava que ele estava prestes a vomitar.

Não posso desviar os olhos da estrada, se mantiver os olhos presos na estrada não vomito, o homem forte desistira por minutos de apressar os carros, o miúdo continuava amolecido no banco de trás, o homem forte deixou as mãos caídas no volante, ele fixou os olhos na estrada, o homem forte não tirava as mãos do volante, a cabeça dele rebentava, queria sair do carro, se tivesse chamado um táxi, o alcatrão derretia nas bermas apesar da hora tardia, esta seria a noite mais quente do ano, ele devia ter chamado um táxi, não gostava de andar em carros de estranhos, se tivesse chamado um táxi não estava aflito com a ideia de ensanguentar a toalha de praia da família que o olhava nos quadrados do tablier, pagava o que fosse preciso, tudo tem um preço dizia Eva, o carro virou com uma guinada e depois acelerou, entraram finalmente na estrada do hospital, seguiram os sinais, o miúdo acordou e agarrou-se ao banco, urgência é ali, ficaram setas para trás, ortopedia e cirurgia, o homem forte contornava os obstáculos, um polícia mandou-o avançar, o homem forte travou em frente às portas de vidro, as letras vermelhas da urgência já longe, o miúdo saiu imediatamente batendo com força a porta do carro, chegara a altura de se despedir mas a garganta doía-lhe de tão seca, começou a frase mas o homem forte meneou a cabeça num gesto de simpatia, isto é assim mesmo, amanhã posso ser eu, temos de ser uns para os outros, o miúdo abriu a porta para o ajudar a sair, as caras do pai e do filho muito perto, demasiado perto, o pé pousado no tablier, as portas de vidro muito próximas, uma varejeira zumbiu e ficou tudo escuro.

O taxista parou à porta da pensão, 00.47, e ele saiu do carro com dificuldade porque tinha as mãos ocupadas e o pé envolto numa ligadura branca, quase bonita. Não tinha dores. A médica que tinha tratado a ferida disse-lhe que não era nada de especial, precisava de repousar o pé durante uns dias evitando esforços especialmente o de andar. Vou ficar sem andar, perguntou aflito, talvez três dias sejam suficientes mas consulte o seu médico de família, tem de lá ir por causa da baixa, pegou na ficha dele e guardou-a com o mesmo desprendimento com que tinha atirado para o cesto do lixo o pedaço de vidro. Ao cair o pedaço de vidro produziu um barulho abafado, teve um cair quase mudo que se parecia com o de não existir, se o

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cesto fosse metálico talvez fizesse um barulho mais adequado mas era de plástico e estava forrado a papel, o pedaço de vidro fez apenas plof sem indiciar a sua perigosidade, ninguém teme uma coisa que faz apenas plof quando cai num cesto de lixo, aquele pedaço de vidro devia... estava irritado com a calma da médica e com o barulho inofensivo que o vidro fez ao cair, foi por isso que gritou, não tenho família nem médico de família, não posso faltar ao trabalho, a médica chamou pelo microfone da secretária outro doente, a voz da médica ouvir-se-ia na sala de espera das urgências, há qualquer coisa de errado, pensou, sala de espera das urgências, ele, felizmente, tinha desmaiado e não teve que ficar na sala de espera a mostrar as unhas de cão, a médica chegou para trás o microfone, não o posso ajudar em mais nada, se não tem família nem médico de família é um problema que só a si lhe diz respeito, se quer andar, ande. A médica olhara de relance para as unhas de cão quando disse isto, os olhos cumpriram a tarefa das palavras, disseram-lhe, seu miserável, tratei-te apesar dessas unhas de cão. O doente que entrou disse o nome que tinha sido dito pelo microfone e queixou-se de uma dor aguda um pouco abaixo do coração, uma dor que o mordia há umas semanas mas que agora não o deixava respirar, a médica levantou-se e rodeou a secretária para se abeirar das costelas do doente e ele, mesmo ao lado da dor que mordia o doente um pouco abaixo do coração, pediu desculpa à médica e por pouco não chorou, estava agradecido por o ter tratado apesar das unhas de cão, a enfermeira tinha-lhe colocado no pé uma ligadura branca, curaram-lhe a ferida mas não lhe cortaram as unhas, não lhes tocaram como doença incurável que era, a médica sorriu novamente e ele teve pena de realmente ser o que as unhas denunciavam, o doente deitou-se na marquesa para mostrar a dor que o mordia e ele afastou-se quase a chorar, foi por pouco que não chorou, foi por tão pouco.

Quando o taxista se foi embora, tocou no botão do intercomunicador da pensão para que lhe abrissem a porta. Tinha chave mas apeteceu-lhe tocar apesar de saber que a senhoria não gostava que os seus hóspedes permanentes (era assim que chamava aos que arrendavam o quarto ao mês) tocassem em vez de usarem chave.

00.50, lido como uma menos dez, considerou que a senhoria poderia estar a dormir mas se assim fosse tanto lhe fazia e carregou mais uma vez no botão do intercomunicador.

Enquanto esperava, indiferente ao incómodo que causava à senhoria, olhou para a avenida onde morava há quantos anos, cinco, seis, não lhe apetecia contar o tempo, lembrar-se de todos os sítios onde tinha morado, veio para a cidade quando se separou de Eva, tinha medo que lhe acontecesse o mesmo que à mãe, a mãe há-de morar a vida toda no mesmo bairro e na mesma cave, uma sepultura, a avenida estava deserta, já a devia ter visto assim, noutros verões, sobravam lugares de estacionamento, noutra noite não se teria

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incomodado com a avenida vazia, não teria reparado nos carros estacionados numa desordem rigorosa, no verão os carros ficam-se pela desordem de uns em espinha outros não, não existem as segunda e terceira filas, os contentores do lixo estavam quase vazios, não havia quem os enchesse, quem deixasse sacos ao lado, os cães não tinham o que remexer, não se viam pelo chão pacotes de leite espalmados e cascas de fruta, o lixo do verão é monótono, as famílias em férias deixam os seus restos noutros lados, o lixo do verão entedia, no princípio de outono aparecem as bonecas desmembradas e as roupas velhas das arrumações, no inverno sobras e mais sobras, no natal os contentores ficam cheios de papel de embrulho e de fitas coloridas, muitos pais-natal pelo chão, mas no verão só o tédio que toma conta de tudo.

Noutras noites, diferentes desta, as grades nos vidros das lojas não o assustavam, não o faziam pensar em crimes, os néones apagados não eram sinais de pobreza, noutras noites ignorava os vagabundos que de tão encostados às paredes confundiam-se nelas, os vagabundos em repouso são uma espécie de camaleões, noutras noites os velhos ou os bêbados que dormiam profundamente nas enxergas de cartão não pareciam mortos, se não tivesse espetado o vidro no pé esta noite seria igual às outras, se não lhe tivesse acontecido nada agradeceria a generosidade da noite que inocenta o que o dia culpa, continuaria à espera que lhe abrissem a porta, queria deitar-se, noutras noites sentir-se-ia muito bem na imensa massa negra que se estendia à sua frente, a luz sempre o confundiu, desconfortado continuava à porta da pensão à espera que lhe abrissem a porta.

Estranhou a demora da senhoria, se calhar pensa que é um hóspede novo que tocou à campainha, um viajante para uma só noite, já estava de robe e tem que se vestir para o receber, é por causa disso que se demora mas daqui a nada abre a porta, não pousou os sacos no chão, não procurou a chave, num prédio como aquele seria natural que a porta estivesse sempre aberta mas a senhoria considerava um perigo e fazia cópias de chaves, zelava pela segurança do seu prédio apesar de o terem declarado irrecuperável e de terem dado a ordem de demolição, a senhoria continuava a fazer chaves para a porta de entrada do prédio em risco de ruir.

A lâmpada do candeeiro mais próximo estava fundida. Um pouco mais à frente outro candeeiro apagado. Se todas as luzes se apagassem não veria nada e talvez descansasse os olhos, talvez descansasse o corpo, durante a sua vida só tinha vivido uma noite sem luz, a noite do corte geral de electricidade, e não era provável que essa noite se repetisse, não era provável que nada se repetisse, as vidas podem ser muito parecidas mas nunca repetidas.

O ar muito quente de verão levantou papéis da rua, pedaços de branco que se elevaram delicados, rodopiaram rasteiros, dançaram graciosos no passeio, se o vento fosse mais forte voariam com o

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barulho de pássaros aflitos, noutras noites teria pensado assim, mas nesta noite os papéis eram apenas lixo no ar, a avenida estava cheia de lixo e de silêncio, os prédios tinham todos o mesmo tom de sujidade, um creme doentio, as árvores do passeio morreram na rodela de terra em que haviam sido plantadas, campas geometricamente ordenadas no passeio, a madeira há-de ser serrada e enfiada em contentores por homenzinhos fardados de verde, já os conhecia, quando se tem tempo vêem-se os homenzinhos fardados de verde por toda a cidade, os prédios também hão-de ruir, deixando algumas paredes suspensas a desafiar a lei e o estado de gravidade, lei e estado numa estranha coincidência, pelo chão bocados de cozinhas, de quartos e salas, cadeiras misturadas com lava-lou-ças de inox, pedras de muitas cores, amarelo-pintainho do quarto do bebé e verde-garrafa da sala de estar, livros por estrear, uma torneira ainda aproveitável, um bidé intacto, panelas amolgadas, as molas de um sofá, uma vassoura, uma colcha com um leão bordado, um pinóquio com as pernas partidas, pedras, muitas pedras, cacos, muitos cacos, uma boneca espanhola sem cabeça, os prédios precipitar-se-ão no ar, um estrondo, as paredes suspensas, os bombeiros vedarão a zona com plásticos de cores fortes, quando a televisão filmar tudo isto terá acontecido, mas por enquanto as árvores e os prédios da avenida ali permanecem, as madeiras apodrecidas já não são janelas porque já não se abrem para a rua, as folhas das árvores são papel vegetal, a lua em quarto minguante é ainda um sorriso bonito no céu, uma mulher passa vestida de azul-celestial, a saia esvoaça destapando-lhe as pernas, afasta-se dele, caminha para longe, se calhar deveria ir atrás dela, a senhoria estará a dormir, quando ia tocar novamente no botão da campainha ouviu alguém dentro do prédio e a porta abriu-se.

Reconheceu o velho que estava à sua frente com muitos sacos de plástico vazios nas mãos, era o vizinho do terceiro andar, cumprimentou-o, o velho saía àquela hora para roubar flores e fruta que a mulher vendia mais tarde no passeio da avenida, uma voz sonsa que comovia os que passavam, a pele leite-creme ressequido e as rugas carreirinhos de canela, a senhoria não sabia quem detestava mais, se os velhos do terceiro ou a família do quarto andar, culpava e detestava os que tinham afixado na entrada do prédio o edital que dava a ordem de demolição, se não tivessem colocado o edital aqueles parasitas nunca teriam ocupado as casas, não lhe roubariam água todos os dias, a senhoria sabia que os parasitas enchiam bacias de plástico na torneira da varanda e subiam-nas pela escada de incêndio, ainda se matam e depois quero ver, dizia, deviam roubar à do segundo andar que não dá conta de nada, continuava, aborreço-me pelo abuso, se um dia algum cair lá em baixo quero ver, a porta estava finalmente aberta e o velho continuava à sua frente, ouvia os gritos da criatura do segundo andar, a senhoria pedia sempre a Deus que levasse depressa a criatura, que lhe fizesse uma esmola, a

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senhoria tinha medo da loucura que ecoava na caixa de escada e a aproximava do purgatório, faz-lhe uma esmola Senhor, dizia quando ouvia um grito mais lancinante e benzia-se rapidamente.

Houve azar? - perguntou o velho, olhando para a ligadura branca enquanto abanava as mãos com os sacos plásticos vazios.

- Não, foi só um cortezito, mas não encontro a chave - respondeu -, toquei à campainha.

- Ah! - Riu-se escancarando a boca de forma a mostrar os dentes de roedor. - Não sabe que isto não toca? Nem sei se algum dia tocou, mas desde que cá estamos nunca tocou - libertou uma mão dos sacos para coçar a cabeça e a outra apertou com mais força o molho de sacos de plástico. - Se quiser alguma ajuda posso...

- Não, não.Estava envergonhado do medo que tinha sentido na praia, se

aquele homem soubesse rir-se-ia até sufocar e depois com a mesma mão que passava na cabeça limparia as lágrimas de riso enquanto dava os últimos soluços. Conhecia bem a maldade e o cheiro da pele podre, era só isso que conhecia dos anos, o velho continuava parado diante dele com as mãos caídas, mãos demasiado grandes para o corpo enfezado, cheias de feridas e arranhões das flores roubadas à pressa,

- Obrigado. Agora, com a porta aberta já consigo...- Comigo? Comigo é que não é nada - replicou o velho afastando-

se com os sacos plásticos pendurados das mãos e o cheiro a podre na pele.

Dentro do prédio a lâmpada fluorescente presa no medalhão central do tecto realçou o branco da ligadura do pé, olhou agradecido para a lâmpada, os suportes de alumínio tinham esmagado as flores de estuque, as bolhas de salitre inchavam as paredes e abriam-lhes fendas, diagonais profundas por todo o lado, as paredes esboroavam-se com um simples toque, os miúdos do quarto andar escavavam-nas para brincar aos tesouros, abriam grutas e achavam barrotes carunchosos de madeira, barro e areia, saíam para a rua à procura de outras brincadeiras mas acabavam sempre por voltar para as paredes do prédio, queixavam-se da brincadeira mas continuavam a escavar, as paredes cediam às mãos pequenas das crianças. Agarrou-se ao corrimão, quando chegasse lá acima teria a mão enferrujada, o corrimão soltava-se aos poucos das escadas, subiu os degraus de madeira protegendo o pé ferido, evitando que a ligadura tocasse na passadeira de linóleo que atravessava a escada a meio, os degraus chiavam por baixo da passadeira a imitar mármore, as baratas atravessavam-se-lhe à frente e desapareciam nas frinchas das paredes, o pé entrapado galgava os degraus com dificuldade, a barata diz que tem sete saias de veludo, na borda do linóleo o pó do caruncho erguia-se em miniaturas de pirâmides, alcançou o patamar, descansou a olhar para o pedaço de gesso do arranque do corrimão, para o que tinha sido um menino com um globo na mão. Não preciso

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de viver aqui, disse enquanto descansava no patamar a olhar para o resto de um menino a segurar o mundo ainda intacto, uma bola perfeita, 1.02, entrou no quarto independente e chamou pela senhoria.

Estava deitado na cama. O quarto cheirava a insecticida e por isso estava mais calmo. Tinha pavor de insectos. Bastava imaginar uma melga a chupar-lhe o sangue, uma aranha a percorrer o seu corpo marcando-o com picadas envenenadas de um vermelho-escuro, a carne a ferver intumescida, para começar logo a coçar-se, não precisava de ser mordido, não precisava de achar o sítio exacto da picada, o pequeno furo donde lhe tinham sugado sangue, coçava-se violentamente até se magoar, espremia e chupava a carne dorida, os dedos apertavam a carne com muita força, lambuzava a picada de cuspo, desesperava-se ao sentir a carne tão quente, deixava de respirar para ouvir o zumbido, os olhos deviam ser preciosas lupas capazes de descobrir pulgas ou aranhas, não estes olhos cegos para insectos, não via nada mas de repente a carne pulsava e a mancha branca alastrava apesar da raiva, coçava-se ainda mais violentamente, aleijava-se, amaldiçoava os insectos, enchia a pele de cuspo, de azeite, de pomada, rendia-se, fugia, os insectos ganhavam-lhe sempre e isso ainda o revoltava mais, ele nada podia contra eles a não ser odiá-los.

Quando procurava quartos para alugar perguntava logo aos senhorios se estavam dispostos a pôr diariamente insecticida no seu quarto, os senhorios estranhavam, diziam que nunca tinham tido queixas enquanto franziam o nariz desconfiados, ele insistia, invocava uma alergia gravíssima que o fazia pagar o que fosse preciso, tudo tem um preço, os senhorios tornavam-se mais compreensivos, quase se condoíam, avisavam que não podiam garantir nada, iam fazer o melhor que podiam mas nada de responsabilidades, às vezes basta um descuido, com o calor há mosquitos por todo o lado, mas para si deve ser um inferno, sinceramente nunca tinha conhecido nenhum caso igual ao seu, é quase como se fosse alérgico ao ar, e olhe que há quem seja, noutro dia mostraram na televisão um rapazinho...

Desde que se divorciou de Eva passou por muitos quartos, mas os senhorios nunca cumpriam o acordado, começavam muito bem mas depois esqueciam-se, olhe que pus, diziam, não sei como é que o foram picar dessa maneira, olhavam espantados para as manchas vermelhas, se calhar deixou a porta do quarto aberta e a luz acesa, ou então abriu a janela, já gastei não sei quantas latas de produto, nunca me esqueço mas não mando nos bichos, desafiadores e já maçados com a grave alergia do hóspede, o que devia era tomar comprimidos, o meu cunhado é alérgico ao pó e tem de tomar comprimidos na primavera. Ele ouvia-os e no dia seguinte mudava-se para outra pensão, não lhe interessava se o colchão era de molas ou se o quarto apanhava sol, expunha o seu pedido, agravava a alergia e os senhorios esticavam novamente os lábios de pena e surpresa mas

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tornavam a esquecer-se, punham o insecticida quando o sentiam chegar, lá iam eles a correr, vou só pôr mais um bocadinho para não ter problemas, e pulverizavam-no a ele e ao quarto por desconhecerem que ele era quase tão vulnerável ao insecticida quanto os seus inimigos, tossia aflito enquanto as melgas se debatiam no chão ou as pulgas saltavam dos lençóis, quando morriam à sua frente os insectos deixavam-no quase moribundo, os olhos ardiam-lhe, tossia enquanto explicava aos senhorios desconfiados que também era alérgico ao insecticida.

Quando respondeu ao anúncio da senhoria já tinha perdido a esperança de encontrar alguém verdadeiramente consciencioso, mas a senhoria surpreendeu-o por ter recebido o pedido sem sequer o estranhar. Limitou-se a informá-lo que teria de pagar um extra pelo serviço, foi assim que disse, um extra, claro que pagaria o que fosse necessário, a senhoria enlaçou os dedos gordos e fê-los estalar, tinham de falar de assuntos sérios, ele manteve-se sentado na cadeira Queen Anne, a senhoria avisou-o que tinha de lhe fazer umas perguntas, hoje em dia todo o cuidado é pouco, primeiro tinha de saber se trabalhava, os seus hóspedes tinham que ter um emprego fixo, não aceitava desempregados, foi a senhoria que o obrigou a mentir, trabalhava há muitos anos na secção de contabilidade numa empresa de dimensão razoável, gostou de se ouvir apesar de considerar que de todos os empregos este seria o mais improvável que podia ter, óptimo, a senhoria estalou novamente os dedos, cruzou os pés gordos, a papada subia e descia satisfeita, repetia, contabilista, mas olhe que também não aceito homens com vícios, e abriu muito os olhos num gesto que devia ser esclarecedor, bebo um copo de vinho de vez em quando e fumo, isso não são vícios, concluiu a senhoria depois de um silêncio, falo de vícios, e abriu novamente os olhos, ele deixou os dele pousados nos dela numa prova de sinceridade, a senhoria sorriu convencida, passou à família, desculpe mas tenho que saber, hoje em dia, a minha mãe vive na província e tenho uma namorada, ah, uma namorada, a senhoria ouvia-o satisfeita, problemas de saúde, perguntou a medo, nenhuns, a senhoria respirou aliviada, a papada ficou por instantes parada, sabe que já me morreu aqui um pobre coitado, devia ter tido coragem para o pôr na rua mas, a senhoria levantou-se para lhe apresentar os outros dois hóspedes permanentes, o gordo e o reformado. Mudou-se nesse mesmo dia e desde então a senhoria tinha cumprido com brio o seu dever de exterminar insectos, porque também ela os detestava, só que agora era paga generosamente para os matar.

Naquela pensão os hóspedes permanentes podiam tomar diariamente banho mediante um pequeno acréscimo já que a renda mensal apenas contemplava dois banhos completos por semana. Também podiam marcar ou prescindir de todas as refeições, incluindo o pequeno-almoço, sem que a senhoria mostrasse má cara. De resto eram as regras habituais, a sala de televisão das 13.00 às 24.00,

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excepcionalmente até às 2.00, o telefone estava no corredor ao dispor de quem o quisesse usar, o contador metálico marcava os períodos que pagavam de acordo com a tabela afixada ao lado, ao princípio nunca telefonava e raramente recebia telefonemas mas a senhoria deu-lhe a entender que considerava anormal e até perigoso um homem que não telefonasse nem recebesse telefonemas, para evitar suspeitas telefonava a Eva ou à mãe, eram telefonemas breves de duas ou três palavras que ele prolongava inventando conversas, escusa de se preocupar que me alimento bem, também gosto muito de si, a mãe já não o ouvia porque pousara de imediato o auscultador, o que queres, nada, apeteceu-me telefonar, ficavam sem nada para dizer, a mãe despedia-se e deixava-o sozinho na linha, continuava até o apito da linha denunciar que não havia ninguém do outro lado. Quando telefonava a Eva para marcar ou desmarcar um encontro fazia a mesma coisa, falava sozinho, estou um bocado cansado, o chefe anda a exigir muito de mim, qualquer dia arranjo outra coisa qualquer, a senhoria deixou de desconfiar dele e considerava-o um homem bom, uma jóia de filho, comentava com os outros hóspedes, está claro que qualquer dia casa-se, a namorada não deve querer outra coisa, também já não deve ser nova.

Ao domingo, das 14.00 às 19.00, podiam receber visitas na sala, os quartos eram para uso exclusivo dos hóspedes, a senhoria evitava tentações, falava muito nos vícios dos homens, ele nunca recebera visitas mas a senhoria considerava normal porque mais ninguém as recebia, os familiares estavam longe e os outros casos, por pudor, não frequentavam a pensão, há por aí muitos jardins, e também não faltam bordeis por essa avenida fora, pensões que eram sérias mas que agora alugam quartos à hora, não na minha pensão, não admito porcarias, os hóspedes concordavam que podia faltar tudo à pensão menos decência.

Mas o que o fez ficar, além da eficácia com que a senhoria exterminava os insectos, foi o que tinha inventado ser. Tinha construído uma vida que lhe agradava, cumpria um horário de trabalho, levantava-se sempre à mesma hora, quando regressava contava histórias da empresa, a secretária que se amantizara com o mecânico responsável, um acidente que feriu um colega, indignava-se com o pequeno aumento do ordenado, não queria perder esta vida, sentia-se bem apesar dos avisos de perigo de derrocada afixados pelos fiscais da câmara ou pelos bombeiros na entrada do prédio. Sempre que colocavam um novo aviso subia as escadas apreensivo, as paredes desmoronavam-se, o corrimão solto, os degraus inclinados, decidia que se mudava no dia seguinte, amanhã mudo-me, prometia assustado ao ouvir o barulho da derrocada, mas quando entrava na pensão, a senhoria, o gordo e o reformado devolviam-no à vida que tinha criado, o cheiro do insecticida confortava-o e quando se deitava sentia-se mais seguro e mais feliz naquele quarto do que noutro sítio onde já tivesse estado. Não sabia

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donde vinha aquela felicidade mas suspeitava que além do extermínio dos insectos precisava do horário de trabalho, da mãe carinhosa e da namorada que lhe escrevia de todas as partes do mundo, da vida normal que tinha na pensão.

A senhoria bateu à porta e entrou com uma torrada e um copo de leite. Já se tinha recomposto do susto de o ver ferido e o reformado já tinha regressado à sala de televisão depois de ter lamentado o que lhe tinha acontecido. A senhoria estava em robe, o sono fazia-a piscar as pálpebras verde-esmeralda, sentou-se aos pés da cama e começou a enrolar distraidamente uma madeixa de cabelo, pedia-lhe pormenores do que lhe tinha acontecido. Ele tinha fome e a torrada besuntada de manteiga e mel soube-lhe bem. Aos poucos levou o leite à boca evitando as pálpebras verde-esmeralda que esperavam por uma explicação coerente, bebia o leite a pensar que não queria a senhoria sentada aos pés da cama, mas não podia mandá-la embora, a senhoria fingia-se muito preocupada mas ele sabia que estava apenas curiosa, desconfiada, como é que foi cortar o pé assim no emprego, parece que trouxe areia da praia, deixe cá ver o sapato para ver como o malvado do vidro conseguiu cortar a sola, os dedos continuavam a enrolar a mesma madeixa de cabelo e ele tinha sono, muito sono, noutra noite inventaria o que fosse necessário para convencer a senhoria mas estava cansado, os dedos da senhoria a enrolar a madeixa de cabelo ainda o adormeciam mais, eram uma história de embalar, a senhoria levantou-se pegando no copo e no pires com restos de manteiga e mel e já rodando a maçaneta da porta, e quando é que vai trabalhar, daqui a uns dias, ah então dou ordens na cozinha para acrescentar uma refeição, tem de se alimentar. Ele acenou que sim, era a senhoria que se encarregava de todo o trabalho, mas ele acreditava na cozinha com que ela sonhava, uma cozinha cheia de empregadas, uma pensão com muitos hóspedes, acreditava na avenida ainda rica, na pensão próspera antes de ser trespassada, uma, duas, três, dez vezes, a avenida das senhoras de chapéu e sombrinha, dos cavalheiros de relógio de corrente em ouro, acreditava em tudo o que a senhoria acreditasse apesar das rachas e da humidade das paredes, apesar de tudo. A senhoria fechou suavemente a porta, ele agradeceu mas a senhoria já não o ouviu e ele achou melhor assim.

Levantou-se para trancar a porta. A senhoria não gostava de portas trancadas mas aceitava-as como um direito natural dos hóspedes. Ouviu-a a conversar com o reformado, daqui a pouco chegaria o gordo de vender cervejas, durante o dia angariava seguros e vendia férias, o gordo chegaria daqui a pouco e falaria mais uma vez da sua margem de lucro na venda das cervejas, o reformado lamentaria a falta do trabalho, e a criatura gritaria no segundo andar. O dia estranho que tinha tido parecia-lhe igual a outro qualquer, quando se deitava na cama os dias ficavam todos iguais, as vozes na sala da televisão, devagarinho puxou um cigarro e acendeu-o, 1.38, a

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noite estava muito quente, foi a noite mais quente do ano, a ligadura fazia-lhe mais calor, tenho de comprar uma ventoinha, pensou, ouviu vozes na avenida, um riso semelhante ao da rapariga bonita, se não tivesse medo dos insectos e se não estivesse tão cansado abria a janela para ver se era a rapariga bonita que passeava na avenida, fumou o último cigarro da noite expelindo o fumo devagar, 1.47, mastigou dois calmantes para ter a certeza de dormir bem, apagou a luz e ficou de olhos abertos no escuro até distinguir os contornos das coisas, os calmantes fariam o efeito desejado, dar-lhe-iam um sono pesado sem sonhos, os dias dele eram todos iguais, a única novidade eram os sonhos, hoje não queria saber de mais nada.

A mão esquerda pegou carinhosamente no pénis e a outra acariciou-o com os olhos fechados, muito perto do sono profundo reviu a rapariga bonita, a penugem loura que lhe cobria as pernas, os mamilos tesos nos peitozinhos cobertos com o paninho cor de mel, saboreou a maresia, deixou que o prazer o sujasse, abriu os braços pronto a expiar o pecado de se sentir tão bem.

Na sala as três mulheres continuam à espera mas já se cansaram de se evitarem umas às outras. O funcionário, o que só está ali para cumprir ordens, entra com a senhoria. As três mulheres olham-nos curiosas. A senhoria está apreensiva porque veio de fora e basta isso para se sentir a mais naquela sala. As três mulheres continuam caladas. A senhoria senta-se no lugar que ocupava antes de abandonar a sala e formam de novo um quadrado. O funcionário, o executor de ordens, diz que houve um erro e que por isso terão todas de ser identificadas novamente. Justifica-se com uma frase que diz sem qualquer entoação, temos muito trabalho e acontecem enganos destes, as senhoras têm de aguardar para serem novamente identificadas.

Quando o funcionário diz isto, já está preparado para sair da sala e olha à volta só para confirmar que as quatro mulheres perceberam o que ele lhes disse. A mãe está isolada pelo seu véu de cataratas e os lábios sibilam. A ex-mulher destraça a perna e torna a traçá-la, levanta o pescoço, mexe-se muito até que diz que não pode ser. O funcionário abana os ombros em sinal de impotência. A ex-mulher quer dizer mais qualquer coisa mas a rapariga pergunta ao funcionário se pode ir comer qualquer coisa. O funcionário diz que não pode sair do edifício porque a qualquer momento os doutores podem chamá-la, nunca se sabe quando é que os doutores chamam, os doutores têm ainda mais trabalho do que ele simples funcionário. A ex-mulher está cada vez mais irritada e apaga o cigarro no chão com o pé. No mosaico fica uma mancha cinzenta e o cilindro espalmado e bege da beata. Exige falar com o superior hierárquico. Para?, responde o funcionário que finge que não vê o lixo que ficou no chão. Para lhe dizer que não pode ser, que não nos podem, demarca-se das outras que despreza, que não me podem tratar assim, quero reclamar. O funcionário diz que não podem receber reclamações mas

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que de qualquer maneira vai perguntar ao superior hierárquico se a pode atender. A ex-mulher afirma que se pode reclamar em todo o lado e que se o superior hierárquico não a receber se vai embora sem prestar declarações. O funcionário abana pacientemente a cabeça e fala numa infracção punida por lei. Acrescenta que o serviço não tem um só responsável, por isso não sabe com quem ela deseja falar. A ex-mulher torce a alça do saco e as outras percebem que desistiu. Vencida. O funcionário informa que o colega responsável pelas identificações se ausentou temporariamente do edifício e que não sabe quando poderão ser novamente identificadas.

A rapariga insiste que tem fome e que precisa de comer. O funcionário lamenta, a mãe solta as garras do rosário e estica o indicador para pedir a palavra mas arrepende-se e fica a olhá-los através da névoa que lhe franze a testa. Antes de falar a senhoria limpa os cantos da boca com a ponta dos dedos gordos, livra-se do bâton acumulado nos cantos dos lábios, os tornos de verniz branco chiam um contra o outro, tem de telefonar para a pensão, os hóspedes esperam-na. O funcionário solícito informa que há uma cabina de moedas no andar de baixo. A senhoria abre a carteira, retira um porta-moedas que tem buracos na malha de prata e como todos vêem não tem trocos, nem uma moeda, por isso terá de usar outro telefone. O funcionário lamenta mas tem ordens para informar os depoentes que só podem utilizar o telefone público porque o outro telefone é para uso exclusivo dos funcionários. A senhoria olha para as outras mas elas não se mexem, não fazem qualquer esforço para verificarem se têm moedas. A senhoria está zangada mas não desmancha o sorriso que se lhe colou à cara, um animal inofensivo pronto a atacar, não somos nós as criminosas, não fomos nós, diz rancorosa, conservando a beatitude de animal sorridente, estamos a ser tratadas como criminosas mas não fomos nós que, que fizemos aquilo.

As outras mulheres não lhe ligam e o funcionário abana os ombros, está impaciente. A senhoria refreia-se e acrescenta que sabe que estas coisas são precisas mas não tem nada com isto, não o conheço de lado nenhum, era meu hóspede como já foram tantos, se a gente fosse culpada do que os hóspedes fazem, quando se aluga um quarto. A senhoria muda de tom, lamenta-se, maldita a hora em que tudo aconteceu, o que eu tenho passado, só jornalistas já lá foram uns poucos, fica à espera que reparem no que disse, insiste, foram lá uns poucos de jornalistas, mas ninguém se surpreende com o interesse dos jornalistas, ninguém se surpreende. A senhoria mesmo assim não desiste, compreende os jornalistas, quem é que não se choca com uma coisa destas, um crime desta natureza, quem não se choca com um crime sem explicação, há crimes que se percebem mas este não tem explicação, mesmo que ela, a senhoria cala-se porque sempre temeu o poder dos mortos.

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A rapariga sai da sala sem dizer nada. O funcionário dirige-se para a porta. As outras entreolham-se. A senhoria espreita para o corredor para verificar se a rapariga já desapareceu. Cá para mim, a culpa é só daquela, foi ela que o endoidou. Nenhuma das outras mulheres responde mas a ex-mulher está visivelmente incomodada, o ciúme ainda a perturba. Ela também devia ser presa, conclui a senhoria estendendo os pés, devia ser presa. A mãe fecha os olhos e agarra-se com mais força às contas do rosário. A ex-mulher vai até à janela do saguão e começa a contar baixinho as janelas que estão viradas para si. A senhoria ajeita o vestido, passa os dedos gordos no canto dos lábios, repõe o sorriso que ainda há pouco tinha na cara e que é só um esgar maldoso. Eu que vi tudo, que assisti a tudo desde o princípio, acho que aquela desgraçada é tão culpada como ele, tem tanta culpa como ele. A ex-mulher continua de costas a contar as janelas e, sem se virar, diz que ninguém pode ter visto tudo sem ser igualmente culpado.

18.48, eram quase sete horas quando entrou no parque de campismo à procura da rapariga bonita. Fechado no quarto independente enquanto o pé sarava pensou nela todos os dias, um jogo, uma distracção, o que lhe diria quando a tornasse a ver, tenho pensado em ti todos os dias, chegou a sentir-se mal quando a recordava a beijar o dono da esplanada e a desaparecer na mota no fim do carreiro com os cabelos louros estendidos ao vento. Desceu do autocarro e dirigiu-se para o parque, o pé ainda lhe doía ligeiramente, queria agradecer à família que o tinha ajudado, foi o motivo que arranjou para rever a rapariga bonita, não podia chegar lá e dizer simplesmente que não tinha pensado noutra coisa. Aproximou-se da vedação, as pequenas casas de pano estavam do lado de lá do arame, o parque não era nada parecido com o que se imagina ser um sítio de férias, era um amontoado de construções de pano presas com estacas ao chão de terra seca, roulottes, caravanas, uma tenda maior ao longe, será que a da família é igual àquela, será que tem uns vasos com flores à entrada, um cão de guarda e o carro estacionado ao lado, avançava para as casas de pano, casas que se podiam rasgar com facilidade, que desapareceriam com a mesma leveza com que existiam. Caminhava do lado de fora da vedação, o parque estava todo vedado com aquele arame grosso, nunca tinha acampado, o campo parecia-lhe uma prisão, de vez em quando surgiam blocos de cimento, as casas de banho, o restaurante, os blocos de cimento destoavam das casas de pano com portas de fechos de correr, os campistas nunca têm chaves, caminhava, a aragem levantava pó amarelo que o sujava, os sapatos cobriam-se de pó muito fino, o mesmo pó que cobria os campistas que regressavam da praia e sentiu-se mais próximo deles.

Sentiu vergonha perante a pele bronzeada dos campistas que se cruzavam com ele e que se riam sem protegerem os olhos e as bocas do pó, caminhavam naturalmente sobre a terra amarela, os pés

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enfiados em chinelos plásticos com passos seguros, os panos enrolados à volta do corpo, pertenciam ao parque, tinham-se libertado das casas de cimento e tijolo do resto do ano, fora do parque seriam pessoas iguais às outras com as mensalidades do condomínio para pagar, aquela mulher, por exemplo, todos os meses compraria o passe combinado que lhe daria acesso a três tipos de transporte, à noite poria remédio dos calos nos pés e ficaria a cheirar a enxofre, fora do parque os campistas são iguais aos outros, proteger-se-ão do pó amarelo, descalçarão os chinelos, despirão os panos e caminharão como ele, a única coisa verdadeiramente efémera é a vida, as casas de pano com portas de fechos de correr nada podem contra os dias do resto do ano.

Na fila para o banho os campistas não pensam em nada. Descansam. Uns sentam-se no chão, outros desistem da fila e servem-se dos duches exteriores, esfregam-se mostrando o corpo coberto de espuma, quando se passam por água fria gritam ou cantam e os que assistem riem-se. Uns e outros deixarão de existir logo que desmontem as tendas e dobrem os panos, guardar-se-ão nas arrecadações dos prédios juntamente com as tendas, guarda-sóis e geleiras, regressarão nas férias seguintes, sentar-se-ão outra vez nas filas do banho, outra vez a cantar nos duches ensaboados, voltar-se-ão a rir, nas férias seguintes voltar-se-ão a rir das mesmas coisas, existirão outra vez assim.

Passou as bandeiras com muitas cores dos vários países, as cores erguiam-se contra o céu azul-clarinho, as cores continuaram a esvoaçar e ele entrou no parque. Apagou o cigarro. Antes da recepção uma família tinha estendido uma toalha aos quadrados debaixo de um pinheiro manso, sentada num pequeno banco uma mulher preparava mexilhões, retirando-os, pretos e luzidios, duma bacia plástica, a mão ágil batia-lhes com o dedo e se a concha se fechasse a outra mão começava a raspá-los com uma faca que tinha um cabo forte de madeira e depois a primeira mão atirava-os para outra bacia, as mãos estavam muito habituadas àqueles gestos porque nunca se enganavam e os mexilhões eram rapidamente transferidos de uma bacia para a outra. Atirou os olhos para longe e viu uma rapariga loura que caminhava entre as tendas. O estômago contraiu-se, apressou o passo em direcção a ela, durante os últimos dias tinha pensado em tantas maneiras de a cumprimentar, mas não se tinha decidido por nenhuma. À medida que se aproximava ia ficando sem palavras, sobravam-lhe os olhos ridículos, os olhos ridículos de que Eva o acusara, não tinha nada para dizer à família, estava agradecido mas o estado de agradecimento para ele requeria silêncio, a partir do momento em que dissesse agradeço muito ficaria menos agradecido, quando cumprisse a obrigação de agradecer deixaria de estar agradecido, as palavras espantavam quase tudo, Eva dir-lhe-ia, agradece em dinheiro, só há uma coisa no mundo que ninguém tem em excesso, dinheiro, mesmo os que têm muito querem

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sempre mais, quanto mais estes pobres coitados, ouvia a voz de Eva, pega numas notas e dá-lhas, com umas notas livras-te deles para sempre, pensava voltar para trás quando viu que a rapariga loura se afastava.

Ele teve receio de nunca mais a ver e avançou, a rapariga andava devagar e ele com pressa, seguia-a, a rapariga percebeu e abrandou ainda mais os passos, aproximaram-se, ele baixou os olhos, a rapariga estava tão perto dele, tinha de pensar rapidamente no que lhe ia dizer, e se fosse sincero, tenho pensado muito em ti, e se fosse sincero, a rapariga olhava para ele sem o reconhecer, não tinha posto essa hipótese e no entanto era tão provável, a rapariga já lhe tinha mentido, não conhecia o dono da esplanada e agora também não o conhecia, a rapariga continuava intrigada, ele disse a custo, lembra-se de mim, fui eu que cortei o pé na praia, e levantou o pé, ficou tão patético com aquele sorriso aparvalhado a equilibrar-se num único pé, a rapariga riu-se, estava admirada, não o conheço, o seu pai levou-me ao hospital há uns dez dias atrás, é impossível só chegámos há três dias, ficou calado, olhando bem a rapariga era diferente da outra, anda à procura de alguém, a rapariga perguntou entre a dúvida e o riso, como é que se confundiu assim, aquela rapariga não era a rapariga bonita, ainda procurou os pais e o miúdo para confirmar o engano mas não os viu, claro que não era a rapariga bonita, desculpe, confundi-a com outra pessoa, ainda não sabia como mas tinha-a confundido, os últimos dias preenchidos por ela e nem sequer a certeza de a reconhecer, estou à procura de umas pessoas e por momentos pareceu-me que, a rapariga olhou para ele, o parque está tão cheio que o mais fácil é ir à recepção, lá podem chamar pelo altifalante, doutra maneira não me parece, só por um acaso, concordou, agradeceu, claro, mas não sei o nome, lembrou-se, a rapariga franziu a testa, ele justificou-se, foi uma família que me ajudou mas não os conheço, quero agradecer-lhes, a rapariga recuou desconfiada, ele estava aliviado por ela não ser a rapariga que procurava, a dos últimos dias era muito mais bonita, 1902, como é que me confundi assim, continuou a andar por entre as tendas, a rapariga ainda o olhava, as famílias preparavam o jantar e ouviam rádio, o parque cheirava a grelhados e ouvia-se por todo o lado canções alegres de verão.

Mais à frente, um casal desmontava uma tenda familiar com gestos bruscos, acabavam as férias, a mulher guardava as estacas e os esticadores no saco e o marido dobrava metodicamente os panos, os sacos-camas estavam estendidos numa corda atada de um candeeiro a outro, os dois rapazes do casal eram pequenos e brincavam com os objectos que estavam pelo chão, quando o viram pegaram num pau, luta ou rende-te, o pau tornou-se espada, os pais repreenderam os filhos, o mais velho deitou-lhe a língua de fora e a mãe pousou aborrecida o saco das estacas e dos esticadores e deu-lhe uma bofetada, quem te mandou seres mal-educado para o

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senhor, precisa de alguma coisa, não, muito obrigado, já não se atreveu a dizer que andava à procura de uma pessoa de quem não sabia o nome nem se a reconheceria, disse, vim visitar os meus pais que estão cá de férias, oh, quem nos dera continuar, mas estamos de partida, se os seus pais quiserem aproveitar este lugar é óptimo, o sol só bate de tarde e o chão é liso, não sabia por que é que o sol a bater de tarde e o chão liso tornavam o lugar tão bom, nunca tinha acampado, o muro dos tanques protegem-nos, apontava a mulher, se os seus pais quiserem já sabe, muito obrigado mas penso que estão bem, estão para ali, depois daquele poste de electricidade, e apontou para longe, a mulher voltou ao saco dos esticadores e os filhos deitaram-lhe mais uma vez a língua de fora.

Afastou-se. O dia estava menos quente que os anteriores. Vestiu o casaco de malha fresca que Eva lhe comprara, sentiu o perfume dela e pôde imaginar as mãos de cera a escolherem cuidadosamente o casaco, a examinarem a malha à procura de qualquer ponto incerto, um defeito, nada nesta vida existe sem defeito, era o que Eva costumava dizer, nada, ouviste bem, abria os olhos e os lábios cor de romã, vagarosos, nada nesta vida existe sem defeito, o tempo tinha arrefecido mas os campistas não sentiam frio porque se deixavam estar em fato de banho e calções, têm a pele quente do sol, pensou, continuou a andar, protegia o pé magoado com medo que lhe começasse a doer mais, ficava com um andar esquisito, cómico, há muito riso na simples ideia de alguém com um andar esquisito, começou a pensar que a rapariga tinha razão, o parque era demasiado grande e dali a pouco anoitecia, só por acaso é que descobriria a família, acatou o seu conselho e encaminhou-se para a recepção que era logo à entrada, foi até ao casinhoto de madeira que também tinha várias bandeiras espetadas no beiral do telhado, mais cores contra o céu azul-clarinho e uma placa Recepção e em vários idiomas Bem-vindo.

No caminho manteve-se atento a todos os campistas que se cruzaram com ele, espreitou para dentro das tendas, tentou abranger com os olhos o maior número de atalhos, não viu ninguém que se parecesse com a rapariga, mas à medida que ia procurando sentia que se confundia mais, já não a conseguia ver na memória, é normal, se a vir reconheço-a, quando a vir reconheço-a logo, foi dizendo para si para se acalmar, chegou à recepção e explicou o que queria. O recepcionista pediu-lhe para aguardar, tinha de preencher a ficha daquele casal acabado de chegar do estrangeiro, ele esperou pacientemente que o recepcionista acabasse de lhes falar, que o casal bocejasse inúmeras vezes, que as letras lentas do recepcionista lhes atribuísse um número de tenda e um cartão para entrar e sair do parque, esperou até que o recepcionista lhe pediu, diga-me então o nome, se faz favor, aí é que está o problema, não sei o nome, o recepcionista olhou-o incrédulo e fez-lhe sinal com a mão, tinha que atender um grupo de miúdas que se riam, seriam as primeiras férias

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sem pais, ele esperou mantendo-se de pé, de que se riem as mulheres, 19-20, as raparigas preenchiam as fichas, mãos gordas de crianças cheias de anéis e pulseiras, o recepcionista informou-as sobre os preços e começou a verificar as fichas, resolveu dizer desesperado que tinha pressa, ainda ia trabalhar, fazia o turno da noite, faço o que posso, respondeu indiferente o recepcionista que desembrulhou uma pastilha elástica e a meteu na boca, diga lá então o que quer. Percebeu que o que sabia era realmente pouco para encontrar alguém, o recepcionista começou a mexer nas teclas do computador enquanto ia abanando a cabeça e ele não sabia se aquele movimento de cabeça acompanhava a música ou se queria dizer que não estava a encontrar nada, quatro pessoas, não me parece que seja possível encontrá-las assim, ele lembrou-se da terra do homem, do caminho dos arrozais, a igreja, tem a certeza, claro, mas só com isso o computador não consegue, tem que ter mais dados, não sabe mesmo mais nada, não, o homem falou-me nesse lugar, disse-me que, o recepcionista ouviu-o atento, isso não é o nome da terra percebe, nós aqui pedimos o concelho, por exemplo, o recepcionista mexia nas teclas do computador, tenho aqui uns que são desses lados, meteu mais uma pastilha na boca, estava entusiasmado de poder mostrar a destreza dos dedos no teclado, mas se chamar por estes pode aparecer a pessoa errada, podemos estar a incomodar as pessoas erradas, é um risco, o recepcionista falava com gravidade mas começou a passar os nomes para uma folha de papel, ainda por cima é hora de jantar, muito obrigado, o recepcionista carregou num botão e com voz de rádio disse para o parque de campismo vários nomes que se ouviram chamar estupefactos. Pediu um minuto e desapareceu atrás da porta.

Tinha no bolso da camisa uma carta que recebera de Eva. Além do destinatário tinha apenas um selo carimbado, a senhoria entregou-lha maliciosa, cartinha da namorada, disse com os olhinhos a piscar e os lábios descaídos a espantarem a alegria, ele agradeceu e guardou-a rapidamente no bolso com receio que a senhoria descobrisse qualquer coisa estranha. Eu bem digo que não há homens românticos, brincou a senhoria, uma carta de amor guardada no bolso, se fosse eu abria-a já, ele sorriu e a senhoria acrescentou, quando ele já estava de costas para se ir embora, que guia turística era uma boa profissão mas nada adequada a quem queria criar família. Só passado uns instantes é que se lembrou da profissão que inventara para justificar as cartas de Eva que ao longo dos anos chegavam de muitos sítios do mundo.

Demorava-se sempre a abrir as cartas de Eva. Recebia-as e guardava-as no bolso do casaco durante dias, sabia que as cartas de Eva nunca lhe diriam nada de especial mas ele precisava de gastar tempo, de ficar à espera de qualquer coisa, de ficar à espera de ler uma carta que não diria nada de especial. Acendeu um cigarro, a rapariga apareceria bonita como ele se lembrava, deixou-se cair no

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sofá estampado com arco-íris e gaivotas, o corpo afundava-se-lhe desconfortável na esponja mole, rasgou o envelope enviado por Eva com cuidado e retirou um postal, a cinza do seu cigarro caiu sobre o postal, sujou duas das oito fotografias em que o postal se repartia, soprou a cinza, olhou fixamente para o areal, a vista aérea de cabanas de colmo, a cascata rodeada por árvores enormes, um mergulhador a passar sobre um coral, virou as imagens e leu nas costas do postal sem ouvir a voz de Eva como acontece nos filmes:

Meu querido: Tens razão, numa viagem perde-se tudo menos a saudade que se tem de voltar. Só numa ilha é que se consegue perceber a vida. Pensamos que podemos fugir mas resta-nos andar às voltas e por mais voltas que se dê só temos o mar e a morte como saída. Uma ausência de água rodeada de água. O J. está bem e parece divertir-se. Tenho muitas saudades tuas. A comida é intragável e o cheiro e o comportamento dos nativos insuportáveis. Um beijo cheio de amor. Como vês estou igual a mim o que quer dizer que estou bem.

Não assinava e insistia em tratar o marido apenas por uma inicial. Tornou a virar o postal e surgiram as imagens, um nativo com um peixe enorme na mão, seriam homens como aquele que tinham cheiros e comportamentos detestáveis. Guardou o postal no bolso do casaco quando entrou na recepção um homem que se dirigiu ao recepcionista entretanto regressado ao outro lado do balcão. O recepcionista perguntou se era aquele senhor e ele abanou a cabeça indeciso, o homem respondeu, nunca o vi na vida não deve ser a mim que procura e ele confirmou que não era. Chegaram mais homens que se olharam uns aos outros e o recepcionista explicou divertido a situação, é que este senhor anda à procura de uma pessoa de que não sabe o nome, eu avisei-o que ia ser difícil e que íamos incomodar pessoas que, os homens olhavam para ele, nunca o vi mas se é para dar alguma coisa posso ser eu, os outros riram-se, foram-se embora e ele ficou novamente entregue ao recepcionista, fiz o que pude, disseram as mãos abertas do recepcionista. Não pode procurar em mais lado nenhum, é que sabe eles levaram-me ao hospital por causa deste pé, o recepcionista espreitou para o pé e ele continuou a falar, de certeza que se lembra, uma rapariga muito bonita, loura, um miúdo gordo, o homem tinha uma tatuagem no braço, o recepcionista pegou em papéis que estavam sobre o balcão, se tivesse cem escudos por cada loura bonita que passa por aqui estava rico, então miúdos gordos, já foi há algum tempo, já cá não devem estar, há gente que fica cá um mês mas há gente que não se demora, se eram quatro, fez um gesto com a cabeça como se o facto de serem quatro tivesse alguma importância, fez um balão com a pastilha elástica e tornou ao computador, olhe só se for este, olhou pensativo para o ecrã, só se forem estes, mas já cá não estão, foram-se embora há, fez contas, cinco dias precisamente, devem ser estes, o recepcionista batia com os dedos no balcão, não me pode dar a morada, não, isso

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não, disse o recepcionista cada vez mais orgulhoso porque tinha solucionado um problema e arranjado outro de seguida, moradas, nem pensar, o senhor podia querer, o senhor podia ser um, é muito perigoso dar as moradas dos nossos clientes, e se eu falar com o seu chefe, bem o chefe neste momento sou eu, o recepcionista deitou fora a pastilha elástica e virou as costas, fim de conversa, disseram as costas franzinas.

Ele olhou para o relógio, acendeu um cigarro, os dias já eram mais pequenos, sem sol não se veria nada no parque, deixou-se cair no sofá, estava cansado, o recepcionista fora-se embora, pegou novamente no postal, tens razão numa viagem perde-se tudo menos a saudade que se tem de voltar, sentia que também tinha perdido uma coisa muito importante apesar de não saber o que era, abandonou a recepção, o escuro descia sobre as tendas, um casal comia iluminado por velas, não gostava da luz feita por velas, a luz amarelada e trémula do velório do pai, dos olhos da mãe na noite do corte geral de electricidade, a mãe levou-o à porta na primeira noite que dormiu em casa de Eva, a vela muda que os acompanhou acentuava a névoa dos olhos da mãe, não gostava dos olhos tão baços perto dele, o brilho da chama ressaltava-lhes o desprezo para que ele mais tarde não se pudesse desculpar, uma mulher que aceita um homem em casa só pode ser uma, nunca disse a palavra, certamente medo de se contaminar, de conspurcar a língua, não contes comigo, a porta fechou-se impiedosa, caminhou às escuras até alcançar a porta do prédio, as lanternas dos vizinhos desencontravam os círculos de luz no passeio, os vizinhos discutiam animados o corte geral de electricidade sem saberem que Eva esperava em casa por um futuro que nunca teve, que ele não lhe deu, ninguém pode dar o que não tem, sem conheceram o desprezo da mãe, uma mulher que recebe em casa um homem sem ser casada, tornou-o a lembrar quando se divorciou, ninguém peca sem consequências, e outra vez, não contes comigo, foi ter com Eva apesar dos olhos agourentos da mãe, os vizinhos aumentavam o temporal que a televisão anunciara, os círculos de luz das lanternas sobrepunham-se, interrompiam-se, afastavam-se, os cães uivavam às lanternas e ao temporal, as sarjetas regurgitavam com violência, foi a primeira noite em que dormiu com Eva, dormiu na noite seguinte e nas outras que se seguiram, ainda hoje dormiria se Eva não tivesse encontrado um homem prático, o homem mais prático que tinha conhecido, a mãe mudou a fechadura da porta para o informar, não és bem-vindo a esta casa, apesar do azulejo que continuava na parede e que tinha escrito a azul, sê bem-vindo a esta casa se és deveras meu amigo, entra, senta-te e descansa, come à mesa comigo, a mãe discordava do azulejo mas nunca o retirou da parede, quando se casaram Eva não foi de noiva, um vestido amarelinho e uma capeline, não levou bouquet, não tiveram o bolo de andares terminado com noivos de plástico, casaram-se num balcão de conservatória em frente a um

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homem que tinha um fato de três peças e uma caneta cinza e prata, a ele faltava-lhe o colete e a caneta, assinaram com a do homem do fato de três peças, passaram três dias fora, a lua-de-mel de que Eva não se esqueceu, uma semana em casa e de novo o hospital, à noite ainda consertava os ossos das vizinhas precisadas, dois empregos e ele quase sempre sem nenhum, nunca compraram casa, nem o conjunto de sofás, a máquina de café, ele pedia desculpa mas Eva garantia-lhe que mais tarde, durante muito tempo Eva acreditou que mais tarde, saía do parque do campismo, ouvia o eco dos seus passos e não se atrevia a desafiá-lo mudando a orientação, a aragem trazia-lhe o perfume de Eva no casaco, as mãos de cera à procura dos defeitos, nada nesta vida existe sem defeitos, passou a entrada do parque de campismo, é sempre triste ver um casamento desfeito, era o que a mãe costumava dizer dos outros casamentos que acabavam, do deles nunca falou, o casamento deles tinha muitos defeitos e não era triste vê-lo desfeito, podia ter-se sentado na esplanada do parque para comer qualquer coisa mas inquietava-o o charco que tinha visto do outro lado da vedação, uma elipse de água podre, um exército de mosquitos à espera da sua carne, olhou outra vez para o relógio, era inútil contar o tempo mas o rigor dos ponteiros situava-o na vida, o tempo contado dava-lhe um lugar na vida, fugiu da água podre, passou por muitas tendas que estavam presas do lado de lá do arame, um homem atiçava o fogareiro com um abano de palha, ao lado peixes que se prateavam à luz do candeeiro a gás, mais à frente juntou-se-lhe um cãozito, olhou-o de perto e viu pulgas no dorso magro, tinha a certeza que as pulgas saltariam para as suas pernas, ameaçou o cão com um pontapé, o cão ladrou-lhe, o homem do fogareiro ficou entregue aos peixes prateados, o pó da estrada secava-lhe a garganta, o cão acompanhava-o a uma distância ainda perigosa, não sabia que distância uma pulga saltava, os olhos do cão tão castanhos, andou mais depressa, o cão desistiu dele, alcançou a paragem do autocarro que o levaria de volta à cidade, pensamos que podemos fugir mas resta-nos andar às voltas, ando às voltas mesmo se caminho em linha recta, ando às voltas quando não te digo que não tenho saudades tuas, uma ausência de amor rodeada de amor, não me fazes falta, ainda bem que nunca me perguntaste se sinto a tua falta, há muitas coisas que nunca te consegui dizer e nem sequer é por medo de te perder, antes fosse, não tenho saudades tuas, sabes que sou um caso perdido, não sei por que não me levas a sério, se algum dia me perguntares se me fazes falta, minto, mas ainda bem que não me perguntas, que não queres ouvir que não tenho saudades tuas, ainda bem que precisas tanto como eu de te enganar.

O funcionário, que está ali para as identificar, termina a tarefa e retira-se da sala rabiscando letras, assinalando cruzes em impressos verde-clarinho. Por causa do erro, o funcionário foi ter com elas à sala e agora tem nas mãos os impressos, bonitos papeis fininhos e engelhados com químicos negros arroxeados escondidos, espacinhos

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para dividir os nomes em letras maiúsculas, o funcionário leva os impressos pelo corredor, as folhas agitam-se nas copas das árvores.

As quatro mulheres estão novamente sós depois de terem dito o nome, a morada, a data de nascimento, a filiação, o estado civil, o número, a data e o arquivo do bilhete de identidade, o telefone, tudo o que o funcionário quis saber para as identificar.

A ex-mulher olha para a rapariga de forma diferente agora que sabe o nome dos pais, uma morada e o signo. A rapariga é Escorpião. Faz contas para apurar rapidamente a idade, mas olha-a de forma diferente porque sabe que ela é Escorpião. A senhoria reconhece o apelido da ex-mulher das capas de revista e espanta-se. Olha-a de forma diferente porque ela é realmente rica e vive num sítio luxuoso.

A senhoria lamenta não ter sabido isso quando a teve sentada no sofá da sua pensão. A rapariga intriga-se com o facto de a mãe só ter dois nomes e dos pais da mãe também só terem dois nomes. Olha-a de forma diferente porque nunca conheceu ninguém que tivesse apenas dois nomes. A mãe percebeu que a senhoria é viúva. Olha-a de forma diferente porque é uma mulher só e a solidão merece-lhe respeito. A mãe nunca ouviu falar do sítio luxuoso onde a ex-mulher vive, a senhoria não sabe de cor os signos e não liga ao facto da rapariga ser Escorpião, a ex-mulher conheceu muitas pessoas apenas com dois nomes, a rapariga não sabe nada, não ouviu nada, pensa que o filho tem que ter um nome que não o envergonhe quando tiver de o dizer em voz alta como lhe aconteceu agora.

A ex-mulher não consegue parar de olhar para a barriga onde cresce o filho dele. Acende mais um cigarro. A rapariga levanta-se. A ex-mulher tem vontade de colocar um pé à frente da rapariga para a fazer tropeçar. Se a rapariga caísse talvez a criança não chegasse a nascer. A ex-mulher não quer que aquela criança viva. A rapariga abeira-se da janela. Podia empurrá-la, o pensamento tão veloz ultrapassando a ideia de bem e de mal, podia empurrá-la, a ex-mulher assusta-se, tem que deixar de pensar nisso, não pode ser assim tão má, ninguém saberá o que pensou, acalma-se, ninguém saberá que desejei empurrar a rapariga, a maldade é um sentimento que não precisa dos outros para existir, que pode morrer em nós.

A mãe continua com os olhos fechados mas sem a expressão apaziguada dos que acreditam em Deus ou noutra coisa qualquer, tanto faz, desde que o sofrimento desapareça. A ex-mulher não compreende o sofrimento da mãe mas sempre o conheceu e tem medo de um dia sofrer assim tão profunda e inexplicavelmente.

O coração da mãe não bate descontrolado como o da ex-mulher porque há muito que adormeceu o coração. A mãe não sente nada pela criança que cresce naquela sala, ao pé dela, pela criança que se completa segundo a segundo. Mexe-se à procura de outra posição, os ossos estalam contra o banco de madeira, a mãe leva as mãos deformadas a cada um dos rins. As outras mulheres percebem a dor mas viram a cara sem complacência. Os ossos secam e desfazem-se

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com a mesma fatalidade com que a criança se completa mergulhada no ventre da rapariga. Se a mãe não tivesse adormecido o coração talvez ainda se pudesse salvar através da criança que se completa ao lado dela. Mas a mãe quer que o corpo onde dorme o coração desista, é uma questão de tempo, quando reza a mãe pede que venha depressa e doce, espera que o corpo desista, de nada servirá amar a criança, tu és ferro e eu sou aço, foge diabo que te embaço.

Procurou-a na cidade durante muitos dias. Se tudo acontecesse como ele achava que tinha que acontecer a rapariga bonita também andava à procura dele na cidade. Acreditava tanto que assim seria que nos primeiros dias ficou desesperado por não a conseguir encontrar por mais que andasse. Com o tempo habituou-se a procurá-la apenas pelo prazer da busca e quando quis desistir já se tinha viciado, o tempo por gastar é tão perigoso, o tempo só existe para se gastar rapidamente, o tempo sobejava-lhe de uns dias para os outros, mesmo se apanhasse uma bebedeira, se entrasse numa igreja, se roubasse alguma coisa. Fazia qualquer coisa para curar o enjoo de tantas sobras, o tempo por gastar é muito perigoso.

Sempre que via alguém que se parecesse, ainda que vagamente, com a rapariga bonita o coração batia mais depressa, as pernas tremiam-lhe, custava-lhe a respirar, sentia a cara a enrubescer, mas apesar disso corria esperançado, aproximava-se, falava-lhe e verificava que não era a rapariga. Aconteceu-lhe tantas vezes que com o tempo restou da rapariga bonita apenas uma ideia, uma ideia de beleza que ele continuava diariamente a perseguir, certo que ideia e objecto coincidiriam quando a visse.

Acordava cedo, muito antes do despertador tocar, e corria para a rua, tinha que vasculhar urgentemente a cidade, sentia que ela estava perto, muito perto, procurou-a em todas as ruas, os pés cheios de bolhas de tanto andarem e mesmo assim continuou, inventou jogos, viro esta esquina e ela há-de estar ali, marcou locais, um parque, uma sala de cinema, uma igreja, marcou datas, dia vinte e dois, capicuas, dia justos como sete, traidores como trinta, marcou horas, dia oito às oito horas para sermos donos do infinito, passou muitos dias à procura, doíam-lhe as pernas e mesmo assim continuava, dias inteiros em que não fez mais nada, também quase não comia, estava demasiado excitado com a tarefa que tinha para cumprir, uma missão, a cidade encheu-se de gente para lhe dificultar o trabalho, já não havia ninguém em férias, passaram muitos dias até começar a procurá-la sem urgência, encarou aquela busca como uma obrigação que lhe podia tomar a vida toda, os regressados de férias retomaram as suas vidas no ponto exacto onde as deixaram, era mais um outono, a cidade engarrafada de olhos e de passos, para ele era um outono completamente diferente, tinha um dever que lhe podia ocupar a vida toda, chegava à noite muito cansado mas sentia-se bem, enfiava-se no quarto, quando a senhoria lhe fazia perguntas mentia, muito trabalho, a senhoria suspirava, ele adormecia e no dia

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seguinte recomeçava tudo, mais um jogo, dou dez passos e encontro-a, viro aquela esquina, tinha no pé a cicatriz que ela lhe tinha deixado, um coração partido, a marca dela, a certeza que a encontraria.

Eva também tinha voltado, a pele queimada pelas férias já tinha embranquecido, portavam-se como amantes, andas tão esquisito, dizia, e ele sem lhe contar o segredo, sempre calado apesar da insistência de Eva, sei que me andas a esconder alguma coisa, negava, nunca te escondi nada, não tenho segredos, só os idiotas é que não têm segredos, respondia Eva e mudava de assunto, as folhas das árvores caíram e os passeios atulhavam-se de folhas que ele pisava com satisfação, folhas de todas as cores e formatos, nunca se interessou por árvores, podia ter escolhido essa tarefa, saber o nome de todas as árvores, ele e Eva na esplanada apesar do mar tão agitado contra as escarpas, Eva punha-se a olhar em silêncio para a massa de água espumosa e dizia, não consigo viver longe da água, sou Peixes, ele ouvia-a sem lhe prestar atenção, os olhos sempre atentos, procurava a rapariga bonita durante os encontros com Eva, a toda a hora, estás mais magro, Eva era paciente, pediam vinho tinto que Eva bebia com prazer, os lábios cor de romã ainda mais generosos, tens a certeza que não me queres contar o que se passa, desculpava-se, acho que nunca gostei do outono, é um tempo cheio de morte, que disparate, ria-se Eva, os olhos parados nos dele à procura do segredo, portavam-se como amantes, na esplanada quase todas as cadeiras viradas ao contrário, o vento a abanar os toldos, preciso tanto de água, repetia Eva, se soubesses como me faz bem ver o mar, os dois sozinhos na esplanada sentados perto do mar, o tempo cada vez mais impiedoso para os encontros furtivos de quem se portava como amantes, o céu muito escuro, a água a infiltrar-se no chão de madeira da esplanada, seixos e algas e conchas partidas na areia, a cidade de novo tão habitada, os velhos de janelas fechadas contra o frio, os cães escondidos nos vãos de escadas, nos saguões, os passos dele às vezes desesperados, outras esperançados, entre o frio das pessoas, as gaivotas inquietas, as mãos de Eva a baterem palmas para o chamarem, de certeza que não tens nada para me dizer, nada, nunca faço nada de especial, Eva acendia mais um cigarro, ele outro, Eva rodava desconfortável a aliança, compunha o diamante do anel de noivado, o fumo dos cigarros rapidamente desaparecido no vento, e se a rapariga bonita aparecesse, os olhos dele encandeados pelo nevoeiro, o nevoeiro que o cegava como o sol o cegou no verão, olhava para o dono da esplanada, ela beijaria aquele homem, sentia ciúmes, os cabelos louros fustigados por rajadas de vento norte, trunfo, os peitozinhos redondos com os mamilos espetados por baixo de uma camisola de lã cor de mel, a cara dela tornava-se a de todas as raparigas, sempre o perfume de coco, o riso, de que se riem as mulheres, a chuva a cair no toldo da esplanada e no mar, a penugem loura escondida em meias de lã, a

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corrente de prata com o coração escondida, Eva com um casaco e umas botas que a água não manchava, Eva que se tinha tornado impermeável à água desde que morava numa casa longe de tudo e perto do mar, apesar de repetir constantemente, sou Peixes preciso tanto da água, morava numa das casas que desejou ter com ele, costumavam passear por lá longe de tudo para Eva sonhar, gostava de morar numa casa destas, as casas defendiam-se do desejo de Eva com grades pontiagudas, agora Eva morava numa daquelas casas, tinha um jardim e uma piscina e um comando para abrir o portão, ele ainda por lá passou muitas vezes, o tempo por gastar fazia-o ir a todos os sítios, de noite havia sempre luz num dos quartos, Eva ainda não conseguia dormir no escuro, ainda tinha medo, a cigarreira e o isqueiro de ouro com as iniciais gravadas nada podiam contra o medo do escuro, o perfume que lhe esconde o cheiro a relva acabada de cortar também não, nunca lhe perguntou se é feliz, ele já comprou uma casa para morarmos depois de nos casarmos, Eva tinha tanto receio de o magoar, ele não respondeu, ele comprou uma daquelas casas de que nós gostávamos, ainda bem, foi só o que lhe ocorreu, Eva ficou triste, não te importas, não, Eva ainda mais triste, a rapariga bonita de vez em quando aparecia para o sobressaltar, desaparecia quando apurava os olhos, tinha-se tornado o seu fantasma, procurava-a todos os dias, sentia-a perto, Eva desconfiada dos olhos dele sempre tão inquietos, não sei o que hei-de fazer contigo, és um caso perdido, Eva tinha razão, se não fosse um caso tão perdido tinha pedido os nomes, a morada, ainda rascunhou um anúncio para pôr no jornal, procura-se rapariga loura que esteve na praia no dia, riscava, procura-se família que esteve no parque de campismo de, desistiu, Eva só lhe falava de coisas que não o interessavam, nomeava os peixes do seu aquário, um aquário que ia de parede a parede da sala grande, preciso tanto de água, se tivesse decorado a matrícula do carro, Eva cada vez mais elegante, definitivamente livre do bairro, da vida que tiveram, do dia em que deixou as luvas de lã sobre os caixotes da mudança, as mãos de Eva já desabituadas, mesmo esquecidas, de consertarem ossos, mudámos Eva, todos nós mudamos, és um caso perdido, Eva nunca mais repetiu o que disse no dia em que terminaram de encaixotar a casa, o dia em que entregaram a chave da casa deles ao senhorio, somos dois casos perdidos, tu por não me conseguires amar e eu por não conseguir deixar de te amar, Eva já tinha no dedo o anel de noivado, o pequeno diamante que os afastava para sempre, ele como sempre não respondeu, não sentia nada de especial, talvez um alívio, Eva nunca soube que ele se sentiu aliviado quando entregaram a chave, acreditava que lhe fazia falta, foram tantos anos, uma questão de hábito, a rapariga bonita em toda a parte, em todas as mulheres, um fantasma que lhe tinha deixado um coração partido cravado no pé.

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O Senhor reconheceuque a maldade dos homens era grande na terra,que todos os seus pensamentos e desejostendiam sempre e unicamente para o mal.Gen. 6, 5.

Portavam-se como estranhos. Viam-se duas ou três vezes por ano em dias previamente marcados como este. A mãe tinha feito anos na terça-feira mas convidou-o para almoçar no sábado seguinte porque lhe dava mais jeito, isto se ele quisesse porque também se podiam ver noutro dia, não faria qualquer diferença, os dias são todos iguais, ele aceitou de imediato o sábado e desligou o telefone. Nem se despediram.

Fora destas duas ou três vezes em que se viam, falavam-se por telefone muito raramente e apesar de se verem ou falarem tão pouco nunca inventaram qualquer desculpa, nunca se desculparam, conheciam-se o suficiente para saberem que não desejavam mais nada um do outro, portavam-se como estranhos mas nunca sentiram necessidade de se portarem de forma diferente.

Olhavam para a televisão enquanto almoçavam na mesa posta com a toalha de pêssegos dourados, a toalha das visitas.

- A carne está muito boa.Fingiu que não sentia o sabor a queimado e que a carne não

estava tão dura e seca - está tudo muito bom - repetiu.- O forno está meio avariado, mas como quase nunca o uso não

vale a pena mandar arranjar - disse a mãe impaciente porque queria ouvir as notícias na televisão.

Ele tinha gasto uma semana a preparar esta visita e estava agora sentado ao lado da mãe sem coragem de olhar para as voltas que a comida dava na boca dela, uma pasta branca que o enojava e que de vez em quando ia parar ao prato quando a dentadura se soltava, nessa altura a mãe despejava a comida mastigada para o prato e depois colocava com destreza a dentadura no sítio certo, calcava-a com a língua e recomeçava a comer, dava voltas e voltas com a comida e nunca mais olhava para a pasta mastigada na borda do prato, ele tinha nojo, desviava os olhos para o ecrã onde o olhar opaco da mãe se perdia, os olhos embaciados da mãe temiam as águas barrentas do rio que invadiram uma sala, a sala mostrada na televisão podia ser aquela, a cristaleira e a ceia de Cristo pendurada na parede eram iguais, o jornalista anunciou mais dois soldados mortos depois de um curto intervalo, a mãe pegou no comando e mudou de canal, ele viu as mesmas águas noutra estação televisiva, uma escola com as carteiras empilhadas e um enorme atlas encharcado, o rio havia de regressar ao seu leito mas aquele mundo

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ficaria distorcido para sempre, miúdos juntavam-se à porta da escola e brincavam com a água que lhes entrava pelo futuro, a mãe tornou a mudar o canal porque não gostava de notícias repetidas, está tudo a dar a mesma coisa, noutro canal encontrou um homem angustiado, foi então que descobri que a minha próstata, a sala asséptica de uma clínica especializada, uma bata branca imaculada, a próstata do desconhecido em debate, a mãe desinteressada carregou no comando, passou pela música de um violino, soldados mortos, a mãe disse que já os conhecia, já os tinha visto muitas vezes na televisão, baixou a cabeça para agarrar um pedaço de pão e nesse instante apareceram no ecrã outros mortos que não estavam fardados, quando levantou os olhos a mãe ainda se sobressaltou mas apercebeu-se que aqueles mortos vinham ainda de mais longe e sossegou, os mortos de muito longe e com roupas esquisitas ficaram no ecrã luminoso, mãe e filho continuavam a almoçar apesar dos mortos, no ecrã até a morte é cheia de luz, a mãe suspirou, não gostava do aspecto daqueles mortos, uma farda contribui muito para o bom aspecto, serviu-se de mais uma fatia de carne assada, duas colheres de arroz branco e duas folhas de alface murchas, o jornalista apresentou um homem que devia comentar as imagens porque podia haver mortos nacionais, para reconhecerem os mortos as famílias servem-se acima de tudo de objectos pessoais, uma aliança, um relógio, um colar, um melro cantou na rua cheio de vida, noutros casos tem que ser pelos dentes ou impressões digitais, há situações em que tem que se recorrer à vala comum, é uma questão de higiene, de saúde, a mãe concordava, tem que ser, nunca é bom quando há assim tantos mortos, cada morto é um caso, o homem seria cangalheiro, interrogou-se ele, a mãe continuava atenta à explicação, o homem olhava condoído para a câmara, lembrou-se de outra entrevista que tinha ouvido há algum tempo, os mortos têm o seu feitio, uns são tão feios que por muito que os arranjemos nunca fazem um morto bonito, outros são teimosos, outros são tão bonitos que a morte lhes assenta bem sem fazermos quase nada, os mortos que gosto menos são as crianças, há mortos que nos levam horas de trabalho para os apresentarmos às famílias, aquele homem queria continuar a falar mas o jornalista disse muito obrigado e a câmara impiedosa fez desaparecer o especialista dos mortos.

Depois de se servir a mãe perguntou-lhe se queria mais e passou-lhe imediatamente a colher para a mão, não tinha fome mas serviu-se de mais um pouco de tudo, deixou cair bagos de arroz na toalha, esborrachou-os de imediato entre o polegar e o indicador com receio que a mãe se zangasse, a toalha das visitas não se podia sujar, a mãe nem sequer reparou porque estava atenta às comemorações de um dia internacional.

- Ainda estás no mesmo emprego? - perguntou a mãe, sem desviar os olhos da televisão.

- Estou. Mato-me a trabalhar mas...

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- Pagam-te bem?- Pagam. Pagam-me muito bem. Precisa de dinheiro?- Não. Não preciso de nada. Para mim sempre tive o suficiente.- Se precisar é só dizer.- Já te disse que não preciso de nadaEle queria falar do emprego mas a mãe fez-lhe novamente sinal

com a mão para ele se calar, ele levou à boca mais um pedaço de carne mal saborosa, apeteceu-lhe cuspi-la para o prato como a mãe fazia quando se desentendia com a dentadura, se a mãe sentisse o mesmo nojo talvez, mas engoliu e limpou os lábios antes de levar o copo à boca, viam televisão sem disfarçarem o silêncio entre eles, um casal exibia uma abóbora, agricultura biológica, o homem esforçava-se por falar rapidamente, em televisão os segundos contam, aproveitamos a oportunidade para dizer a todos os que nos estão a ver que não comprometam o futuro dos nossos filhos, a abóbora aos pés do casal, o futuro garantido dos filhos, abóbora-leão aos pés dos caçadores, depois de mais um curto intervalo a mulher que sem saber nadar salvou os seus porcos nas cheias da última noite, a mãe a fazer nova ronda aos canais, a dizer baixinho, não gosto nada da publicidade, na pensão os hóspedes gostavam de ver os carros novos e as meninas do champô, a senhoria gostava das promoções alimentares, o regresso à voz emocionada do jornalista em contraponto com a voz sensata da mulher, salvei-os porque precisamos dos animais, os porcos sobreviventes filmados num grande plano, a mulher a limpar as lágrimas, a água levou-nos tudo, não teve medo uma vez que não sabia nadar, já lhe disse que quem tem precisão não tem medo, a mulher limpava as lágrimas, o repórter disse o nome dele e do operador de câmara e desapareceu com a salvadora de porcos, 13-43, tinha tempo, foi só para o gastar que preparou a visita com tanta antecedência e cuidado, que comprou um fato novo para vestir no dia e um perfume para oferecer à mãe, que encomendou um bolo de aniversário numa pastelaria, um bolo que tinha de ser enfeitado com margaridas, a aniversariante gosta muito de margaridas, nunca soube de que flores a mãe gostava, e de massa de amêndoa recheada a ovos, a aniversariante nunca gostou de pão-de-ló, claro que não sabia se gostava ou não, mais indicações, quilo e meio e aquelas velas que não se apagam, mágicas, é isso mesmo que quero, velas mágicas, um naperon dourado como os que estão na montra, e já agora, desculpe lá, as letras, é que a aniversariante já não vê bem, se não der muito transtorno letras grandes, se der mais jeito o bolo pode ser quadrado ou rectangular se bem que a aniversariante prefira os redondos, gastou tempo e o bloco de notas do empregado, na sexta-feira foi à pastelaria para verificar se não tinham feito o bolo com antecedência, um bolo confeccionado de véspera era inaceitável, quando se tem tempo tudo se torna inaceitável, ficou satisfeito quando lhe mostraram o bolo por corresponder exactamente ao que tinha imaginado, a mãe havia de

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gostar daquele bolo e esse facto só o alegrava na medida em que demonstrava que ele sabia como agradar à mãe ainda que isso lhe fosse indiferente.

Quando chegou ao bairro eram exactamente 13.00. E considerou a hora certa um bom presságio para a tarde de sábado. Acendeu um cigarro porque nunca pôde fumar em casa da mãe, pegou com jeitinho na caixa do bolo e pendurou no pulso esquerdo um saco onde trazia o perfume para que a mão esquerda pudesse agarrar o ramo de rosas pálidas que a florista envolveu em plástico transparente e fechou com um laço muito vistoso. Puxou mais uma vez o fumo com força antes de apagar o cigarro com o pé e dirigiu-se para a porta. Quem o visse pensaria que era um filho dedicado que ia visitar a sua mãe e com este engano aos olhos dos outros veio o prazer de se parecer com quem nunca foi, de se aproximar duma pessoa que poderia ter sido.

O ramo das rosas pálidas bateu à porta e deixou-se cair ao longo do corpo. Endireitou a cabeça e esperou que a porta se abrisse. Ouviu os passos da mãe do lado de dentro e ensaiou a cara que devia ter quando a mãe o visse, inspirou-se na cara que os desertores do bairro faziam quando os encontrava por acaso, caras vitoriosas por terem conseguido fugir para onde as casas são pintadas em vez de terem o reboco triste de cimento à mostra e onde os esgotos não são riachos de merda que correm livres por toda a parte, os desertores fingiam que nunca tinham ali vivido, não reconheciam ninguém, se alguém lhes falasse viravam a cara com desprezo, o mesmo desprezo que ele pôs ao olhar para a porta da mãe, a sua expressão estava perfeita, se a mãe não se tivesse demorado a abrir a porta tinha visto um vencedor, ele distraiu-se com a demora e quando a mãe abriu a porta viu-o de cabeça baixa humildemente regressado ao lugar onde pertencia, ainda tentou livrar-se da verdade mas era tarde demais.

Logo que a viu deu-lhe um beijo de parabéns não se importando por estarem encurralados entre a camilha de renda e a estante das miniaturas de plástico. Sem dizer mais nada entregou-lhe rapidamente o bolo, o perfume e as rosas pálidas e soube que nunca poderia parecer um filho dedicado porque era necessário que a mãe também se parecesse com uma mãe com saudades do filho, uma mãe contente por ver o filho, e isso não acontecia. Tudo o que trazia nas mãos lhe pesou por ser tão inútil e teve a certeza que quando a mãe pegou no bolo, no perfume e nas flores sentiu o peso da mesma inutilidade, a única coisa que lhe interessava era percorrer a casa, confirmar que tudo se mantinha nos seus lugares, um móvel a menos, uma moldura fora do lugar e o passado tornava-se inatingível, reviu a manta aos quadrados sobre o sofá que tinha o braço esquerdo frouxo, a mesinha das fotografias, os passarinhos de loiça e um tigre de vidro com olhos horrivelmente verdes, o tempo continuava à espera dele, ainda podia escolher tudo, ainda não tinha esbanjado o futuro, a mãe retirou a jarra das chinesinhas para guardar as rosas

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pálidas, quando a florista lhe entregou o ramo pensou nas duas meninas de vestes largas que conversavam na borda do lago e admiravam um cisne, ofereceu as rosas às chinesinhas que a mãe inclinou para encher de água, mesmo inclinadas as chinesinhas continuaram a conversa eterna a que estavam obrigadas, o cisne impossibilitado de fugir das únicas águas onde existia, a mãe colocou a jarra na mesinha da cor da madeira que tinha as fotografias, aquelas pessoas sempre ali estiveram, ali ficariam para sempre, pegou no embrulho dourado da perfumaria, não devias ter trazido nada, não preciso de nada, a caixa quadrada do bolo foi posta com cuidado em cima da mesa, ele deixava que a casa o engolisse, as chinesinhas engoliram as rosas nas suas vestes de mangas largas e compridas, podia recomeçar tudo, ah! mais um perfume, disse a mãe sem qualquer emoção, ainda nem usei os que me deste, não se lembrava de ter oferecido os perfumes que estavam expostos no psiché do quarto, frascos cobertos de pó, e a mãe avisou que o almoço estava pronto. No fim do dia, quando estava quase a adormecer, é que se deu conta que a mãe não tinha agradecido nada do que lhe oferecera apesar de se ter espantado com o bolo redondo coberto de margaridas sobre um naperon dourado, com velas mágicas, as letras grandes dos parabéns e massa de amêndoa recheada a ovos.

As quatro mulheres permanecem na sala. A senhoria tem fome e propõe às outras uma ida ao refeitório mas ninguém lhe responde. A mãe tem os olhos fechados e não vê o raio de sol do meio-dia que lhe aquece o regaço no qual descansam as mãos e o rosário. A rapariga desapertou as sandálias e refresca os pés inchados no chão de mármore pintalgado. Liberta das sandálias que lhe marcaram a carne, coloca um pé de cada vez num determinado mosaico e calca-o com força. Um funcionário entra batendo com a porta e as quatro mulheres assustam-se. O funcionário não é o mesmo que detectou o problema da identificação nem o que as identificou. É outro, mas parece-se com os dois primeiros que também são parecidos entre si.

Isto está muito atrasado. Nestes casos podem ir comer ao refeitório. Têm aqui as senhas, estica-se para entregá-las, não pagam nada. A ex-mulher mexe-se irritada na cadeira e recusa a senha. Diz qualquer coisa que ninguém consegue perceber. A senhoria sorri para o funcionário e estende a mão com o mesmo contentamento com que um cão recebe alimento do seu dono, A mãe espera que chegue a sua vez, recebe a senha e guarda-a sem mostrar agrado ou irritação. A rapariga que, com vergonha, enfiara rapidamente os pés nas sandálias não quer aceitar a senha porque não gosta da comida de cantina. Diz que quer comer no bar. O funcionário responde que as senhas não dão para o bar e a rapariga insiste que tem fome mas não gosta da comida de cantina, só o cheiro a enjoa. O funcionário cala-se e a ex-mulher sorri quando a rapariga aceita a senha contrariada. A

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ex-mulher sorri porque o seu dinheiro lhe permite rejeitar o que não gosta.

O funcionário prepara-se para sair, mas a ex-mulher levanta-se, aproxima-se dele, está tão perto dele que lhe sente a respiração na face. Procura os olhos do funcionário e quando pergunta, posso vê-lo, o funcionário afasta-se assustado com a voz, com os olhos da ex-mulher. A quem, a ele, ele está cá não está, o funcionário continua a recuar, está apreensivo, não compreende a ex-mulher que lhe procura os olhos, que respira demasiado perto da cara dele, que lhe agarra o braço para o reter na sala. Não são permitidas visitas fora do horário habitual, mas eu quero vê-lo, tenho de o ver agora, não tive coragem até hoje mas agora quero vê-lo. A ex-mulher torna-se ameaçadora. O funcionário recua, já está do outro lado da porta. Vou perguntar ao meu chefe, mas no sítio onde ele está, parece-me, arrepende-se, vou perguntar ao meu chefe. Parece-lhe o quê, parece-lhe o quê?, vou falar com o meu chefe e já a informo.

A rapariga que se descalça novamente para colocar os pés nos mosaicos frescos pergunta, eu não tenho que o ver pois não, a ex-mulher vira-se com tanta violência que bate sem querer no joelho da mãe. A mãe abre os olhos, mas desvia-os imediatamente para a janela do saguão, suspira e torna a baixar a cabeça, fecha os olhos, não quer saber o que se passa na sala, não quer estar ali ao contrário da senhoria que apesar da aflição que finge deseja que alguém discuta, que se bata, se acontecer alguma coisa o tempo passa mais depressa e sempre tem alguma coisa que contar aos hóspedes ou a algum jornalista que apareça, a senhoria lamenta que os jornais já se tenham esquecido do crime da sua pensão, tem esperança que se tornem a lembrar no julgamento, talvez marquem de novo entrevistas, a fotografem, talvez lhe fixem a voz naqueles gravadores pequeninos, a senhoria gosta dos jornalistas, respeita o trabalho de quem pergunta tudo, de quem está disposto a ouvir tudo, de qualquer maneira o sítio onde o crime aconteceu continua intacto, a mancha de sangue, quase um altar, ainda está tudo como apareceu na televisão, a senhoria tem pena que o prédio seja demolido e que nessa altura termine tudo.

O funcionário aproveita para se libertar da ex-mulher. Quando é que o posso ver, ainda pergunta mais uma vez, mas o funcionário retira-se e os passos ecoam no corredor iluminado pela clarabóia, de longe o funcionário recomenda, os filetes não estão grande coisa, as bifanas comem-se melhor, e assobia porque a primavera começou e as árvores-de-Judas floriram.

Mãe e filho acabaram de almoçar sem terem dito mais nada um ao outro. Quando a mãe tirou os pratos da mesa, 13.32, ele deixou-se ficar sentado a ouvir os pratos a empilharem-se na cozinha, a artrose tinha tornado os gestos da mãe inseguros, queria tanto fumar um cigarro, procurou as duas janelas coladas ao tecto, numa cave ganham-se outros olhos, o chão transforma-se em céu, ajeitou-se no

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sofá apoiando-se no braço frouxo, Eva tinha mandado um beijo de parabéns, todos os anos mandava um beijo que ele nunca entregou, o que se faz aos beijos que não são entregues, pensou em muitas coisas até sentir o frio que vinha das paredes de cimento, paredes ásperas e feias, devia ter trazido uma roupa quente em vez do fato que a mãe nem sequer comentou, a mãe continuava na cozinha, parece que sempre viveram aqui mas já moraram noutro sítio, lembra-se vagamente, a mãe decidiu que ele tinha de ser alguém e nessa altura mudaram-se para a cidade, para esta cave, apanharam o comboio numa manhã muito fria e ao fim do dia os primos esperavam-nos na cidade, a justificação breve da mãe, vão-se mudar, cedem-nos a casa e os móveis, é uma grande ajuda que não podemos desperdiçar, no café da estação a prima que tinha o cabelo em forma de ninho de pássaro e um vestido amarelo muito curto ofereceu-lhe um bolo, nunca tinha visto uma montra de bolos, o primo deu-lhe palmadas nas costas e carolos na cabeça, as migalhas do bolo colaram-se à roupa, porta-te bem, advertia o primo, obedece à tua mãe, rapazinho, que estou de olho em ti, mais palmadas nas costas, se fizeres alguma a tua mãe diz-me e depois conversamos, ele abanava a cabeça com a boca cheia de açúcar, o primo deu-lhe mais um carolo, para que serve a família, rapaz, nunca mais o viu desde o café da estação, a mãe nessa altura acreditava que ele podia ser alguém, o primo onde quer que estivesse estava de olho nele, para que serve a família, rapaz.

A mãe sentou-se do outro lado do sofá, um de cada lado, propositadamente distantes sem terem que disfarçar qualquer proximidade, a mãe devia preferir que ele se fosse embora, apesar de todos os esforços só conseguira ser ninguém, nunca mais viu aqueles primos nem os outros que apareceram para o levarem ao enterro do pai, nem os que vieram almoçar numa páscoa, nem os que passaram antes de emigrarem para o estrangeiro, a mãe fechou os olhos para descansar a refeição, foi assim que disse, vou descansar a refeição, e recostou a cabeça no sofá, a televisão continuou ligada, na sala um cheiro desagradável, o que é feito de tantos primos, podia perguntar à mãe que adormecia no outro lado do sofá, nunca mais falaram nos primos nem na casa onde moraram antes dos primos do café da estação, nem no pai que continuava na fotografia da mesinha da cor da madeira, era a única fotografia que tinha do pai, o cheiro estranho mais forte, a cabeça da mãe inclinava para o lado esquerdo, a respiração compassada do descanso da refeição, o peito que subia e descia fechava-lhe as pálpebras, mas que cheiro esquisito, o sono da mãe a adormecê-lo, o fio de saliva que escorria da boca da mãe a acordar-lhe o nojo, este cheiro, a cabeça da mãe tombou para trás e a boca escancarou-se, daqui a pouco via as gengivas mirradas, daqui a pouco a dentadura descolava-se silenciosamente, é gás, cheira a gás, o forno anda meio avariado, quando chegou a mãe abriu a porta do forno e atirou um fósforo que incendiou um dos lados do forno, um

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barulho seco, durante algum tempo a chama foi amarela e irregular mas estabilizou-se num azul bonito, o outro lado do forno recusou-se a arder, a mãe enfiou à pressa a carne assada no forno para a aquecer, anda meio avariado, mais um fósforo para incendiar o lado sem chama e a porta do forno novamente fechada, se acontecesse alguma coisa todos diriam que tinha sido um acidente, o pai olhava-o da moldura, o peito da mãe subia e descia assobiando ar, o pai a aconselhá-lo da fotografia com o sorriso aparvalhado que ele herdou, vai-te embora como eu, entrega-a ao gás, podia ir-se embora como o pai foi antes de morarem nesta casa, a boca da mãe escancarada e ele sem coragem para ficar, para se ir embora, o pai da fotografia apesar de tudo nunca me arrependi, o mesmo nojo de há bocado, se fosse embora era um acidente, ninguém podia provar que tinha saído depois de ter identificado o cheiro estranho,

não sei o que faça, mãe,há muito tempo que não sei o que faça mãe, o meu pai soube o

que fazer, é certo que não adiantou muito, pouco depois de nos ter deixado, o teu pai morreu, nem sequer esperou que eu terminasse de lanchar, o teu pai morreu repetiu julgando que ele não a tinha ouvido, não queres saber como foi, quero, foi hoje de manhã de repente, até nisso aquele desgraçado teve sorte, ele ainda teve esperança que o pai voltasse, que deixasse de ser o homem da fotografia, perguntou, mas estava doente, se já te disse que foi de repente como é que estava doente, a mãe não reparou que tinha feito cantar as palavras, as meninas do liceu faziam cantar as palavras para os namorados, nunca namorei nenhuma, mas lia o que escreviam no caderno dos meus colegas, se ouvires dizer que morri não tenhas pena meu bem, se morro é só por ti não é por mais ninguém, e muitas flores desenhadas, muitos corações assimétricos.

Não sei o que faça mãe, a mãe sempre soube o que se devia fazer, o que ficava bem que se fizesse, ordenou-me que preparasse um saco com duas mudas de roupa, despacha-te, gritou, o desgraçado que morreu sempre é o teu pai, amanhã ao princípio da tarde vêm cá buscar-te para o funeral, mas de manhã ainda vais às aulas, o teu primo só pode voltar depois de amanhã, ficas a dormir uma noite na casa da tua tia, vê lá como te portas, obedece à tua tia, a fotografia na mesinha redonda da cor da madeira, o homem que tinha morrido de repente,

e se a deixar morrer devagar, mãe,tinha preferido que o pai tivesse morrido num desastre ou por

doença, qualquer causa nomeável, morrer de repente sugeria-lhe pouco mais do que a fotografia, também foi de repente que aquele homem ficou ali para sempre com o braço sobre a mãe e o sorriso aparvalhado na cara, a fotografia também o tinha matado de repente, tinha preferido um desastre ou uma doença por não saber imaginar o de repente, atropelado, quando os travões começaram a chiar o homem deixou de sorrir como na fotografia, o condutor ainda tentou

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guinar o volante mas o homem ficou tão parado no meio da estrada como está parado há anos na fotografia, a surpresa do homem por ser atropelado, homem e surpresa a morrerem ao mesmo tempo, o condutor a sentir o embate do corpo, o fato da fotografia ligeiramente ensanguentado, as marcas dos pneus na estrada, um acidente seria fácil, de repente não,

leva-se sempre algum tempo a morrer, mãe uma doença, um ataque cardíaco também seria mais fácil, os filmes ajudam muito a imaginação, uma dor aguda que lhe dilatava os olhos semicerrados da fotografia por causa do sol, a boca comicamente aberta, a mão que estava sobre os ombros da mãe a calcar o peito, os olhos mais esbugalhados e a boca mais torcida, nunca o sorriso aparvalhado da fotografia, as últimas palavras tentadas e nada, o mesmo silêncio da fotografia para sempre,

de repente é apenas um fechar de olhos, mãe, ou um tropeção, um gesto que habitualmente se faz mas que incompreensivelmente se torna o último, se a mãe morresse sentada na máquina de costura que lhe embaciou os olhos morria de repente, e você não vai ao funeral, ainda lhe perguntei, não queria ir sozinho, há muito que enterrei aquele desgraçado, mas tu és filho dele e tens que ir, é dele a tua feitura, eu já o enterrei há muito tempo não sei o que faça, mãe

nunca falámos sobre a morte do meu pai, nem lhe contei que não consegui adormecer com a excitação da viagem, nunca tinha ido para tão longe e nunca mais tornei a ir, nunca tinha ido a um enterro, para ser totalmente sincero a morte do meu pai não me incomodou muito, apesar de mais tarde ter querido que ele voltasse para nos levar do bairro, apesar de o ver todos os dias na mesinha das fotografias, lembro-me que tive medo de sonhar com ele morto, estava ansioso com a viagem, naquele dia devia ter-me deixado faltar às aulas, se me tivesse deixado faltar às aulas talvez eu tivesse sido alguém como a mãe tanto queria,

acordo-a ou deixo-a morrer, mãe,talvez não ficasse agora tão indeciso, na última aula da parte da

manhã, era a de matemática, copiei os exercícios para casa e por me julgar importante naquele dia disse à professora que ia faltar à aula da tarde e no dia seguinte por causa do funeral, a professora ficou muito séria, foi a primeira vez que olhou tanto tempo para mim, disse que falava comigo no fim da aula e ao fechar o parêntesis partiu o giz que guinchou no quadro, sentou-se na secretária e chamou um colega meu para apagar o quadro, tínhamos que bater o apagador com jeitinho para não espalhar o pó do giz pela sala, o meu colega no beiral da janela, a professora disse que falava comigo no fim da aula e que não podia brincar com coisas sérias,

não se brinca com coisas sérias, mãenão estava a brincar, ia ao funeral do meu pai com o primo como

estava combinado, no dia seguinte o primo apareceu com a mulher, foram simpáticos, disse à professora que voltava no dia seguinte, a

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professora mandou-me calar, no fim da aula, tornou a dizer, conversamos no fim da aula, os meus colegas riam-se baixinho, agitavam-se nas carteiras e quando tocou, os que passaram por mim fizeram-me sinais, tinham apreciado o que tinha feito, encorajavam-me, nesse dia fui quase um herói, os meus colegas pensaram que estava a gozar a professora, como se eu alguma vez me atrevesse, os meus colegas orgulharam-se de mim, este gajo tem cá uma lata, a professora avisou-me que era muito feio mentir e que ia chamar o meu pai para que ele soubesse como eu era cruel,

se me for embora também me acha cruel, mãe,a professora deu-me uma segunda oportunidade, se pedisse

perdão e me mostrasse arrependido esquecia tudo, insisti que era verdade e a professora impacientou-se e agarrou-me com muita força no braço, pensas que me enganas, se o teu pai tivesse mesmo morrido estavas com essa cara,

se a deixar morrer que cara ponho, mãe,brincar com a morte é um pecado grave, com a do pai um

pecado gravíssimo, a professora não sabia que eu tinha aprendido os pecados na catequese, matar era um pecado de bradar ao céu, havia uma lista que ainda hoje sei de cor, se não pedes desculpa imediatamente informo o reitor e vamos ver se continuas a achar graça à brincadeira, continuei calado, o resto já sabe, foi chamada ao liceu, a professora queria apurar até onde ia a minha maldade, o meu pai não pôde ir ao liceu como a professora desejava, tinha morrido mesmo e os mortos são muito difíceis de convocar, foi você que disse à professora que era verdade, não deve ter sido fácil, a professora estava muito exaltada quando me deixou, que raio de mentira para inventares, não sabes que Deus castiga quem mente e o teu pai pode morrer mesmo, ter sido de repente prejudicou-me, se tivesse pormenores de um acidente ou o nome de uma doença,

intoxicada com o gás de um forno que anda meio avariado, mãea mãe foi comprar a fita preta que amarrei no braço, obrigou-me

a andar com o fumo durante o tempo estipulado, nem um dia a mais nem a menos, a mãe sabe sempre o que se deve fazer, agora que estás de luto tens que, a professora ficou a abanar a cabeça e inspirou tão fundo, os pulmões cheios de ar, o gás a alastrar no seu corpo, para o teu bem espero que seja verdade, se for mentira vou ao reitor pedir que sejas expulso para nunca mais inventares uma mentira como esta, quando a professora se afastou os meus colegas rodearam-me satisfeitos, levaram-me ao bufete, pagavam-me o que quisesse, ainda pensei que fosse por causa de o meu pai ter morrido, mas era um prémio, tinha desafiado aquela vaca que andava a pedi-las há muito, foi o que eles disseram e eu concordei, imitaram a voz da professora e eu ri-me porque eles tinham muita piada,

é pena que um forno meio avariado não tenha piada, mãe os meus colegas orgulharam-se de mim, respeitaram-me, não podia voltar atrás, convidaram-me para sair com eles depois da aula, foi a

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primeira e única vez que os meus colegas me convidaram, foi por isso que cheguei tão atrasado a casa, os primos já estavam zangados, fartos de esperar, a mãe ralhou-me mas para mim já era tudo mentira, o meu pai estava vivo, tanto me fazia uma coisa ou outra e quis que fosse mentira, imitei a professora, pensas que me enganas, se o teu pai tivesse morrido nem conseguias falar, acrescentei ameaças que a professora poderia ter feito, os meus colegas riam-se e abraçavam-me, enganaste-nos bem, nunca pensámos que fosses capaz, até te achávamos um bocadinho, mas afinal, e olhavam uns para os outros surpreendidos, um deles imitou a professora a andar, uma vaca num pasto, outro a limpar os óculos suspensos na corrente prateada, outro a ditar os exercícios, raramente me senti tão bem, mas depois a mãe foi à escola e estragou tudo, a mãe estragou tudo, foi lá e transformou-me num monstro, os meus colegas quando souberam a verdade afastaram-se de mim para sempre, ainda tentei aproximar-me mas eles fugiam repugnados, amedrontados,

se a deixar aqui os meus colegas já não se podem afastar, mãeo chefe de turma convenceu-os que eu era um animal, pior que

um animal, o pai dele morreu mesmo e o parvalhão riu-se connosco a fazer de conta que era mentira, gozou a professora, nem um animal era capaz disso, os outros concordaram assustados, a mãe estragou tudo quando foi ao liceu, se tivesse dito que o meu pai estava zangado e que me ia moer de tareia, que eu era tão ruim que os castigos não serviam de nada, nem mesmo as nódoas negras do cinto nas costas, se a mãe naquele dia tivesse mentido talvez a minha vida tivesse sido diferente, um aluno expulso pelo reitor ganha o respeito dos colegas, ganha o mundo, penso que essa foi a minha única oportunidade de ser alguém como a mãe queria, no ano seguinte teria corrido tudo bem, sempre que eu passasse os outros diriam em voz baixa, foi este que foi expulso no ano passado, já não tinha que provar nada, talvez conseguisse ser eleito chefe de turma, se fosse eleito seria convidado para as festas, talvez as raparigas do liceu em frente quisessem namorar comigo, teria corrido tudo bem, a bravura aprende-se quando se tem homens para chefiar, foi o que me disseram na tropa, um homem sobrevive com pão e o respeito dos seus semelhantes, não precisa de mais nada, na tropa não falavam de Deus, a fórmula era diferente da que tinha aprendido na catequese, de qualquer maneira a mãe estragou tudo, no liceu nem nunca mais fui o que costumava ser, já não era invisível, todos se afastavam, uma doença contagiosa de que fugiam com medo, as professoras comentavam pensando que não as ouvia, é muito estranho, parece anormal, ficaram sempre com medo de mim, quando entrei na carrinha do primo estava satisfeito, ainda não sabia que a mãe iria ao liceu estragar tudo, acordo-a ou deixo-a morrer, mãe

a carrinha era de caixa aberta e eu ia na carroçaria porque na cabina ficávamos os três muito apertados, eles fecharam os vidros

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para se protegerem do vento, um ar muito quente que me espevitava o corpo, escolhi ir de costas para o destino, estava contente, sentia-me bem, nunca tinha visto tantos fios de electricidade, metros de fios arqueados ao correr da estrada, árvores, amendoeiras, disse depois o primo, oliveiras, disse a mulher, árvores, árvores que estranhamente sobreviviam naquela terra tão seca, gretada, povoações, velhas sentadas nas soleiras das portas, crianças a acenarem para a carrinha, o ar veloz quase irrespirável, ergui a cabeça de forma a ver o céu que andava sobre a minha cabeça, ninhos com cegonhas pasmadas sobre eles, nunca tinha visto cegonhas, acho que nunca mais tornei a ver, as tábuas do chão da carroçaria aleijavam-me, pus-me de joelhos contra a grade, ao longe mulheres formigas em carreiro por caminhos estreitos de terra, pó e céu, tornar ao pó a que todos pertencemos, mãe a carrinha parou mais uma vez, o primo saiu e gritou por mim, rapaz, apronta-te que estamos a chegar, tenho de ir ali mijar, virou-se para a berma e gritou para a mulher, não queres esticar as pernas, a mulher não lhe respondeu, tirei o pequeno saco e saltei da carrinha, o primo chamou-me, chega-te aqui, rapaz, aproximei-me, tinha que vestir a roupa do funeral, calças pretas, camisa branca e gravata preta, não me podia esquecer da braçadeira, o primo segurava na pila com a mão direita e com a esquerda apontava, estás a ver, hão-de construir ali a barragem, eu via o mijo espumoso dele saltar sobre a terra seca e veio-me também a vontade, o esguicho do primo descrevia uma trajectória tão perfeita, tive medo que o meu mijo não saltasse em arco sobre a terra seca, que não fosse tão sonoro, além disso tinha que acabar de me vestir, o primo sacudiu a pila e entrou na carrinha a cantarolar, passou as mãos pelas pernas da mulher que o afastou, eu tinha vontade mas o primo pôs a carrinha a trabalhar, a carrinha começou aos solavancos, o fumo preto de gasóleo, sobe rapaz que estamos atrasados, com a roupa nova não podia ir lá atrás, apertámo-nos os três na cabina, ainda é pequenito, disse a mulher, se fosses tão gordo como o teu primo não cabíamos, e riu-se muito, se fosses tão gordo como o teu primo, acabei de pôr a braçadeira já com a carrinha em movimento, eles não sabem que vi a mão do primo no pescoço da mulher, mas tu gostas de gordos, não é, riu-se o primo, é só peso, respondeu a mulher, seguimos viagem, pouco depois a mulher adormeceu, o primo conduzia com as mãos sobre o volante e os olhos na estrada que não parava de aparecer, não sabia que existia tanta estrada para andar, a vontade era cada vez mais forte, parecia que ia rebentar, já não conseguia olhar para os bandos de andorinhas que o primo descobria no céu, apertei as pernas para matar a vontade, o primo cantarolava, a gravata sufocava-me, mais um pouco e molhava as calças todas, a cabeça adormecida da mulher acompanhava os solavancos da carrinha, senti o líquido quente a fugir de mim, pedi ao primo para parar, a mulher acordou assustada, a carrinha entrou pela berma levantando muito pó, saí rapidamente, o primo estava

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espantado, o líquido quente nas cuecas, pelas pernas abaixo, abri rapidamente a braguilha e puxei a pila para fora mas não saía uma pinga, tinha as cuecas e as calças molhadas, não queria que eles soubessem, queres vomitar perguntou-me o primo, o primo deu-me uma excelente desculpa, baixei a cabeça e fiquei na posição de vomitar, o primo gritava, então isso vai ou não vai, continuava de cabeça baixa e a mão sobre o estômago, nem o primo nem a mulher se aproximaram de mim, nunca souberam que não vomitei, disse-lhes que era melhor ir na carroçaria, prometi-lhes que tinha cuidado, o primo encolheu os ombros e eu subi para a carroçaria, a carrinha recomeçou a andar e tive esperança que o vento me secasse as calças, fiquei de cócoras muito tempo até que a vontade regressou devagarinho, procurei uma fenda entre as tábuas e agachei-me, de olhos fechados com a pila na mão deixei-me escorrer sem sentir que o vento me devolvia o mijo, quando acabei limpei a cara e os sapatos com as mãos e pus-me de pé para que as calças secassem mais depressa, os fios de electricidade à beira da estrada, continuámos até que nos aproximámos de uma povoação onde a carrinha abrandou para se enfiar numa rua estreita, as calças estavam húmidas mas ainda não cheiravam a mijo, o primo parou a carrinha mesmo em frente a uma casa pequena toda pintada de branco, a mulher abriu a porta da carrinha, preparei-me para saltar, os homens todos de preto conversavam em roda à porta da casa, saltei da carroçaria e os homens empurraram-me para dentro da casa depois de me terem estendido as mãos, cumprimentei-os com o mijo entranhado na pele, passei por uma sala acanhada onde as mulheres choravam e cheguei ao quarto, penso que era o único que a casa tinha, e vi o morto sobre a cama,

os mortos já não se velam em casa, mãenuma mesa de madeira colada à cama ardia um candeeiro de

azeite com três pavios, aos pés do morto outro, não havia flores, sentada por baixo do Cristo na cruz estava uma velha, era uma velha igual às outras só que chorava mais, mandaram-me aproximar do morto e eu obedeci, o cheiro do mijo fermentava nas minhas mãos, foi quase como há bocado com o cheiro do gás, um cheiro desagradável que não identifiquei logo, um cheiro que vinha de mim, aproximei-me do morto e encontrei o homem da fotografia, eram iguais, na verdade o morto era mais severo, estava zangado com a morte, o fato era semelhante, se o morto se risse da sua condição, se entrasse sol dentro do quarto, se tivesse o braço erguido acima do ombro, se tudo isso acontecesse, o morto era igualzinho ao homem da fotografia, tinha a cor amarelecida do papel e a rigidez do vidro da moldura, a velha que chorava mais do que as outras levantou-se para me abraçar, disse que era a minha avó, os meus braços ficaram caídos, as outras mulheres disseram que eu era tão parecido com o morto que lhes fazia impressão, não havia flores,

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prometo que lhe encho a casa de flores, mãe a sua morte pode cheirar a flores, as flores hão-de apagar o cheiro a gás, uma mulher pegou-me no braço e mandou-me dar um beijo ao meu pai para me despedir, dei-lhe um beijo para me lembrar dele, o meu pai tinha a cara gelada e a barba mal feita, naquele momento pensei que o meu pai tinha a barba mal feita e que nunca mais se podia barbear, ao perto a morte era azulada e cheirava mal, afastei-me e outra mulher ofereceu-me biscoitos, a morte cheirou a manteiga e canela, não sei o que faça, mãe

esfreguei os lábios com muita força para os limpar da morte, trinquei um biscoito que tinha forma de um oito, a morte soube a manteiga e canela, o biscoito afastou o travo da morte, fiquei com outro biscoito na mão, a morte empapou-se na minha boca até que a quis cuspir, a luz consumia o azeite, o tempo esgotava-se,

nem a morte dura para sempre, mãea minha avó tinha regressado ao mesmo lugar com cara e corpo

contorcidos numa pintura de igreja, uma mulher mais nova abraçou-me, aproveitei para roçar os meus lábios pelo braço, precisava tanto de sentir carne quente, fiz do biscoito um amuleto que apertava com muita força, as pessoas iam e vinham, tocavam-me, agarrei-me ao amuleto, hoje sou tão parecido com o morto, tornei-me cada vez mais parecido, as sobrancelhas, a covinha do queixo e as mãos traçadas sobre o peito como ainda faço para adormecer, naquele dia não me apercebi que éramos tão parecidos, o azeite ardia, as pessoas começaram a inquietar-se com o atraso do padre, por onde é que andará, perguntavam ansiosos, andavam de um lado para o outro, fugiam da morte,

tenho de me ir embora, mãeo padre chegou, vinde a mim, vós todos os que vos afadigais e

andais sobrecarregados, vinde a mim, e todos os presentes se desviavam, aquele sono profundo era para sempre, o padre aspergiu o morto com água benta e as pessoas aproveitaram os salpicos para se benzerem, o padre rezava mas nem sempre se entendiam as suas palavras, perante a morte responderam sempre em uníssono, a morte leva mais facilmente uma voz solitária, todos receavam que a morte os descobrisse e repetiam em uníssono, que te recebam no paraíso, já tinham ensaiado noutros velórios, nem uma voz isolada, o padre falou para que todos o entendessem, têm mãos e não palpam, têm boca e não falam, têm ouvidos e não ouvem, os seus ídolos são ouro e prata, e todos numa única voz mandaram a morte embora, que te recebam no paraíso, tinham de pôr o morto na urna, os homens abeiraram-se da cama quando chegou o carpinteiro com a caixa de madeira clara, a morte cheirou bem, a madeira, fui para a rua, as vozes continuaram amedrontadas em uníssono, ninguém se atrevia a desafiar a morte, as minhas pernas tremiam e apertei mais o meu amuleto, um oito deitado, um infinito imprestável, mas dos muitos cheiros que a morte do meu pai teve o mais forte foi o do mijo,

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apesar de tudo a morte é tão solitária, mãe fizemos um cortejo a pé pela aldeia, à frente da urna um homem abria caminho com a cruz, acompanhei a urna mas não a carreguei porque era muito franzino, foi o que disseram, as mulheres moviam-se num único passo e vestiam-se numa única cor, a mancha preta avançava para a igreja, todas as casas fecharam as portas à morte, os homens caminhavam com os chapéus nas mãos apesar do sol, arfavam desesperados no caminho íngreme, suavam, foi um alívio quando entrámos na igreja fresca e escura, todos os presentes descansaram na última ida daquele corpo à igreja, a urna foi colocada perto do altar, as mulheres cantaram, tirei os pés dos sapatos novos, fechei os olhos, passou tempo até que alguém me empurrou para a comunhão, no regresso ao banco passei pelo morto com o Corpo de Deus colado no céu da boca, descobri uma santa que nunca tinha visto, tenho descoberto tantas santas ao longo da vida mas nunca lhes sei os nomes, o padre aspergiu novamente o morto e depois incensou-o, as vozes recomeçaram em uníssono, somos pó semelhantes ao feno e à flor do campo, na procissão para o cemitério as vespas cercaram-nos, naquela altura ainda não tinha medo dos insectos, o acólito parou à porta do cemitério para que o padre dissesse, esta é a porta, os justos entrarão por ela, o morto foi colocado no túmulo, foi aí que as mulheres se desconcentraram para gritar, puseram-me uma pá nas mãos com que atirei terra, um som seco sobre a madeira e mais nada, no monte de terra que se ia formando descobri bichos escondidos, foram eles que receberam o corpo bento e incensado, atirámos terra até que o caixão desapareceu, tínhamos os gestos coordenados, no fim o morto era apenas aquele monte de terra, sobre o monte de terra as mulheres pararam de chorar e colocaram flores do campo em leque sobre a terra, o eterno descanso deve depender da maneira como se colocam as flores

um bom descanso, mãea mãe mexeu ligeiramente a cabeça, mas continuou a dormir, a

boca escancarada, as pernas esticadas com as varizes tão azuis, pequenos rios em relevo sob a pele engelhada, a televisão continuava ligada, o passado regressava, os olhos da mãe embaciados na máquina de costura, a mãe não nasceu com os olhos opacos que o confundem, os olhos velaram-se com os enxovais das noivas que vinham de fora do bairro, traziam peças de pano branco que a mãe transformava em lençóis bordados para as noivas se oferecerem aos maridos, entregavam-se sobre as flores bordadas que cegaram os olhos da mãe, os olhos encheram-se de flores bordadas até não conseguirem ver mais nada, este é o lençol das núpcias mostrava a mãe e as noivas coravam, nunca percebi a satisfação daquelas criaturas transitórias, nunca percebi a linguagem dos bordados, fundos ajourados, ponto de cetim, as noivas escolhiam desenhos para toalhas de mesa, em ponto de Assis, mais flores e mais passarinhos numa inocência enjoativa, a mãe a encher os riscos a lápis com linhas

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de cores, as noivas diziam as iniciais dos nomes dos noivos, o monograma era bordado no peito do futuro marido, um roupão com um eme e um efe entrelaçados, o pé da mãe no pedal e a máquina na lengalenga, não posso continuar a sustentar-te, estou cansada, quadrículas pela sala, desenhos aumentados e diminuídos, sacos de ir ao pão, bolsas de guardanapos, tudo em verde-clarinho que é a cor da cozinha, tudo em rosa que é a cor da sala, as transitórias criaturas transitoriamente felizes, quando tinha a tua idade já tu tinhas nascido, as criaturas passado algum tempo regressavam com um amargo definitivo e com mais pano, pediam babetes em ponto cruz, cueiros, favos, a mãe abriu os olhos compôs a dentadura e disse que lhe estava a saber bem descansar, descanse para sempre, mãe

nesta casa só me pertence o passado, a mãe manda-me estar quieto para eu perceber a minha condição de visita, daqui a pouco convida-me a sair a pretexto de um cansaço que lhe dá sempre que cá venho, já nem se lembra de cozer castanhas com erva doce, não me convida para jantar, não me deixa dormir aqui uma noite, uma única noite, a mãe não sabe, mas este é o único sítio a que verdadeiramente pertenço, apesar de já não ter o meu pijama dobrado no armário, podíamos ficar a ver televisão até se retirar para as suas orações, nunca mais me deixou transformar este sofá do braço estragado na minha cama, adormecia com o barulho da chuva cinzenta no ecrã, esperava pela lua, às vezes a lua aparecia nesta casa onde o céu é chão, houve uma noite de lua vermelha, uma lua cheia de vermelho, os meus sonhos de agora não têm vista para a lua, se me deixasse ficar talvez,

não morra assim na minha cama,mãe levantava-me bem disposto e dobrava os lençóis pelos

vincos do ferro para os guardar, levantou-se devagarinho para não acordar a mãe, um forno meio avariado é um acidente, ninguém me pode acusar de nada, todos os dias acontecem acidentes, a mãe estremeceu e abriu os olhos, acordou sobressaltada porque sentiu um estranho a andar na sua casa, onde vais, a lado nenhum, deixe-se estar a descansar, a mãe endireitou-se, abriu e fechou as mãos, deixe-se estar, mãe, a mãe ensonada a esfregar a perna direita, esta perna fica-me sempre dormente, e se dá conta do cheiro a gás, tenho de fingir que não me apercebi, a mãe bocejou, os olhos sonolentos à procura da televisão, a mãe a reencontrar-se numa corrida de carros, e se não dá conta do cheiro do forno meio avariado, a mãe pergunta-lhe quando o vê a olhar para o relógio, estás com pressa, a mãe parece que não nota o cheiro esquisito, teve medo que ficassem ali os dois para sempre, foi mais forte do que ele, a mãe não sente um cheiro diferente, a mãe franze o nariz e boceja novamente, é do forno, acontece sempre isto, o canalizador já cá veio, o forno anda meio avariado, daqui a pouco já passa, se não estivesse tanto frio abria-se a janela mas daqui a pouco já passa, vamos abrir o bolo?

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Quando finalmente se libertou da dormência do sono, a mãe foi até à cristaleira e tirou de lá uma faca muito prateada, quando a viu com a faca brilhante na mão ainda suspeitou que a mãe tivesse adivinhado os seus pensamentos de há pouco, já que estás com pressa não quero prender-te mais tempo, tens a tua vida, não, não tenho pressa, deixe-se estar, a mãe estava a dormir, só ia tomar um café, queres um café, a mãe, definitivamente acordada, afastou-se e pôs água ao lume para o café instantâneo, vamos cortar o bolo, tem de apagar as velas, a mãe abanou a cabeça, se calhar contrariada, se calhar divertida, ele afastou uma margarida e espetou as duas velas no centro do bolo, acendeu-as, nada de cantorias, a mãe soprou e apagou as duas velas sem dificuldade, as velas reacenderam-se, são velas mágicas, lembram-se de cada coisa, e tornou a soprar, as velas reacenderam-se e a mãe impaciente, como é que isto se apaga de vez, não sei, a mãe pegou nas velas acesas e levou-as para a cozinha, ouviu a torneira, pronto não se acendem mais, trouxe a água quente e o frasco do café instantâneo, ele queria tanto fumar um cigarro, faltavam quinze minutos para as três, o cheiro a gás na sala, um cigarro, foi para se esquecer da vontade de fumar e do cheiro a gás que anunciou à mãe que se ia casar novamente.

Encontrei uma rapariga, a mãe não se interessou logo, todos os dias se encontram raparigas, estamos a pensar casar, a mãe virou-se rapidamente, ainda não tinham partido o bolo que continuava com os dois buracos das velas mágicas no centro, a mãe estendeu-lhe a faca muito prateada, e se a mãe descobriu tudo e o ameaça, encosta-lhe a faca ao pescoço, grita-lhe, seu desgraçado, desaparece daqui antes que, e se a mãe sabe de tudo, a mãe deu-lhe a faca para a mão, ele puxou o bolo para si e começou a cortá-lo com rigor a partir do centro, e quem é, perguntou a mãe, é uma rapariga que conheci este verão na praia, a mãe estendeu-lhe um prato onde ele depositou a fatia do bolo, cortou outra, onde é que ela mora, perto de mim mas os pais são de longe, este fim-de-semana foi visitá-los por isso é que pude vir, tenho cada vez menos tempo, trabalho muito, não tenho tempo para nada, e ela também trabalha, claro que sim, continuou a responder às perguntas da mãe que o ouvia atentamente e isso dava-lhe ainda mais prazer que a doçura do bolo na boca.

Tenho a certeza que vai gostar dela, é mais nova do que eu, mas se quisermos ter filhos até é melhor, olhe foi ela que escolheu o perfume que lhe trouxe, riu-se embaraçado, se é para uma senhora de idade leve este que é suave, jasmim e folhas de fambroesa, a empregada da perfumaria aconselhou-o e ele aceitou o frasco que estava no psiché, as senhoras idosas apreciam fragrâncias leves, as mais pesadas dão-lhes dores de cabeça, são mais para gente nova que gosta de sair à noite, ambientes com fumo, ele ouviu a empregada da perfumaria a decompor os perfumes, tinha tempo, sândalo, gengibre e almíscar, foi ela que escolheu o perfume tornou a dizer satisfeito apagando definitivamente a voz da empregada da

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perfumaria, flor de linho, cedro e noz moscada, acho que finalmente encontrei a pessoa certa, afirmou, acho que finalmente encontrei a pessoa certa, e estava realmente convencido que a tinha encontrado.

A mãe mastigava com satisfação a massa de amêndoa recheada a ovos, ele acompanhava-a, já não se sentia o cheiro a gás, comiam o bolo com apetite e bebiam o café de má qualidade como se fosse bom, ele tinha conseguido agradar à mãe, era tão fácil ser outro homem capaz de agradar à mãe.

- Ela veio cá noutro dia - disse a mãe sem qualquer entoação, pousando o prato do bolo e calcando as migalhas com a polpa do indicador direito.

Apesar de a mãe não ter dito o nome, ele sabia que se referia a Eva que era desde há muito inomeável.

- Nunca mais a vi - disse. - Não mais a tornei a ver.Encontramos tantas pessoas mas a ela nunca mais a vi - afirmou

convicto. - Veio cá a casa?- Não, foi ver a tia. Ela sabe que não a quero cá. Ficou

descansado porque não queria que a mãe e Eva falassem e no entanto tinha conhecido Eva por causa da mãe, se não fossem os ossos doentes da mãe nunca mais a teria voltado a ver, estava sentado no sofá à frente da televisão quando Eva saiu do quarto da mãe, já a tinha visto numa das tardes em que se sentou no muro do bairro com os rapazes, quase não conhecia ninguém, tinha-se mudado há pouco, os rapazes do bairro ficavam tardes inteiras no muro à espera das raparigas que passavam, tardes longas e tristes em que não acontecia mais nada além das raparigas que passavam, quando Eva passou os rapazes gritaram, magricela, e ele olhou para a rapariga desengonçada com calças à boca de sino e socas altas de madeira que se enterravam na lama, os rapazes assobiaram, magricela, Eva mandou-os à merda sem olhar para trás, os rapazes dobraram-se a rir, Eva, a magricela, pisou com mais força a lama e escorregou das socas de madeira, os rapazes agarraram-se ao sexo e gritavam cada vez mais alto, queres disto, Eva, a magricela, fugiu com o corpo desengonçado em cima das socas que lhe escapavam dos pés, tinha o fundo das calças enlameadas, anda chupá-lo, pediram os rapazes sufocados de riso, naquela noite quando saiu do quarto da mãe Eva já não era magricela e era bonita, aproximou-se para o cumprimentar, ainda lhe estendeu a mão, uma mão magra com a pele muito branca que ficou suspensa no ar quando se cumprimentaram com dois beijos, os lábios generosos de romã aproximaram-se dos dele, até para a semana, a mãe acompanhou-a à porta, é boa pequena, muito trabalhadora, há-de ser alguém na vida porque não foge do trabalho, disse quando voltou, durante o dia Eva trabalhava no hospital e à noite consertava ossos no bairro, mais tarde soube que Eva juntava todo o dinheiro que podia para sair do bairro e dos gritos dos rapazes, que ainda ficava enraivecida cada vez

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que falava dos gritos dos rapazes, magricela, das mãos deles no sexo, queres disto?, mais tarde soube.

- A vizinhança diz que ela sempre gostou de luxos e que já andava com ele há muito tempo - a mãe parou numa notícia de última hora na televisão - e que tu não sabias de nada. Nunca gostei dela mas não a critico por querer luxo. Quem é que não quer uma vida melhor se a puder ter? Nunca gostei dela mas nisso não a posso criticar.

Não podia contrariar a mãe, se a lembrasse do que tinha dito, é boa pequena, há-de ser alguém na vida porque não foge ao trabalho, se a lembrasse a mãe invocaria o cansaço que lhe acontecia sempre que ele a visitava, 16.04, se conseguisse ficar mais um pouco o sábado não era tão grande.

- Tem razão, ela sempre gostou de dinheiro.Não se incomodou por falar assim de Eva, atraiçoava-a por ter

decidido agradar à mãe, estava noivo, ia-se casar, a mãe regressou à televisão, ainda disse, o que lá vai, lá vai, se ela está bem tanto melhor para ela, no início ainda me tocou à porta umas vezes mas depois nunca mais, fez bem, não tenho nada para lhe dizer. Apesar de a mãe não ter nada para lhe dizer, Eva mandava sempre um beijo de parabéns, preocupava-se, não te esqueças de comprar qualquer coisa à tua mãe, e os ossos da tua mãe, os olhos, a mãe retribuía a preocupação de Eva com, nunca gostei dela, sem qualquer dúvida, sem se desculpar, a voz seca da mãe, nunca gostei dela, e no entanto comeu com satisfação o bolo que tinha sido pago com o dinheiro da que sempre gostou de luxos, e se ele dissesse que tudo, o fato, o bolo, as rosas, os perfumes expostos no psiché, tudo o que lhe ofereci foi pago com o dinheiro de Eva, mas a mãe via televisão e ele tinha anunciado o casamento, ela sempre quis luxos que não lhe podia dar, só se fosse roubar, continuou sem sentir remorsos, podia ter escolhido a verdade, uma parte já que a verdade nunca se deixa apanhar da mesma maneira por pessoas diferentes, Eva trabalhou muito e ainda me sustenta apesar de tudo, tira dinheiro ao marido para me dar, não me deixa faltar nada, mas escolheu dizer, nunca mais a vi, há pessoas que infelizmente não sabem viver com o que têm, não se sentia culpado, a mãe olhava-o agradada mas levantou-se, apesar de ter anunciado o casamento e de ter traído Eva, a visita chegava ao fim, ainda tinha tanto sábado para gastar, olhou para as janelas coladas ao tecto, chovia, numa cave quase não se ouve a chuva, o novo homem que ele escolheu ser perguntou:

- Quando é que eles fazem a estrada nova?O novo homem devia preocupar-se com a construção da nova

estrada mas a mãe não o ouviu, no bairro ninguém acreditara na estrada, ninguém acreditava em nada, no bairro os sonhos apesar de individuais e secretos eram só um, o sonho de fugir para os prédios novos, a realidade também só admitia uma diferença, os que tinham e os que não tinham conseguido fugir, ele e Eva eram dos que tinham

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conseguido sair do bairro, Eva tinha-se esforçado muito mas ele nunca fez nada para de lá sair, viveram no rés-do-chão que tinha sido da mãe de Eva, dormiram todas as noites em frente ao néon da serração de madeira que os abraçava numa luz alaranjada intermitente, ainda havemos de nos rir destes tempos, dizia Eva, nunca se chegaram a rir, quando se tornou a casar Eva foi viver com o marido para uma casa muito longe do bairro e perto do mar, quis libertar-se para sempre do bairro e assim teria acontecido se a tia de Eva tivesse conseguido sair do bairro, não conseguiu, não se sentia bem noutro sítio, a pobreza é uma doença difícil de curar a partir de certa idade, quando Eva visitava a tia os rapazes, outros rapazes que se sentavam no muro, invejavam-lhe o carro, não se riam nem gritavam pela magricela, aproximavam-se do carro e tocavam-lhe com prazer, os novos rapazes do muro já não tinham todos o mesmo sonho, já não sonhavam em sair do bairro, dispersavam-se em carros e outros luxos, tinham sido treinados para ali viverem, animais treinados de que não se conheciam os sonhos, isto se os animais sonham, muitos adoeceriam ou morreriam antes de serem adultos, apesar de todos se julgarem adultos, outros seriam presos, sobrariam poucos, o bairro tornara-se um sítio perigoso, os pais dos novos rapazes também já tinham deixado de sonhar, entregaram-se à vida como era. Quando entrava no carro Eva ainda pensava uns segundos neles, estão condenados, não saberiam viver noutro sítio, concluía para se descansar e acelerava com medo de ficar ali presa novamente.

A visita tinha chegado ao fim. Não lhe apetecia ir embora mas a mãe bocejava para o avisar que estava cansada, ele fingiu-se surpreendido com as horas, quase cinco, tenho que ir andando, a mãe perguntou-lhe, e como é que ela se chama, quem, ah! sim a, disse o primeiro nome que lhe veio à cabeça, a mãe comentou, pelo menos o nome é bonito, e foi indo para a porta, abriu-a para ele sair, a mãe ficou do lado de dentro com os braços caídos, incapaz de o abraçar, de lhe acenar, despediram-se com um encosto de cara, ele afastou-se, a porta fechou-se, um som seco na tarde de sábado, ainda estava no corredor quando ouviu as duas voltas à chave, não podia voltar atrás, a mãe tinha mudado a fechadura quando foi viver com Eva, ele só aparecia quando era convidado e saía a horas decentes, se tivesse sono nunca se esticaria no sofá, se tivesse sede pedia cerimoniosamente um copo de água, acendeu um cigarro, puxou o fumo, ainda era cedo, em vez de sair do bairro subiu a rua, o fato era frio, estava mal agasalhado mas tinha tempo, continuou a subir a rua enlameada, nas paredes tinham pintado a preto muitos ás de anarquistas, alguém tinha escrito, o Beto esteve aqui, Ana loves Américo, vão todos à merda, corações riscados, nomes de claques de futebol, muitas mamas, pilas e rabos, os novos rapazes desconheciam que havia poucas coisas mais obscenas do que o próprio bairro, mais mamas desenhadas nas casas clandestinas que

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continuavam a crescer nos baldios, cogumelos venenosos que matavam quem neles se atrevesse a tocar, as casas tinham plásticos a servir de janelas e o cimento e o tijolo à vista, por entre as casas carcaças de carros onde os novos rapazes se protegiam do frio ou do calor, ao longe um grande cemitério de pneus, outro de móveis, de pedras, cemitérios de tudo, quando vivia com Eva ainda não existiam tantas casas nos baldios, os baldios ainda estavam desocupados, as casas dos prédios eram só pequenas e velhas, uma pobreza digna, quase comovente, ninguém escrevia nas paredes, as paredes ainda eram mansas, os habitantes do bairro ainda sonhavam, a vida ainda não os tinha amarrado definitivamente ao bairro, aproximou-se do sítio onde beijou Eva pela primeira vez, tinha tempo para não se esquecer de nada, do número de telefone do hospital em que Eva trabalhava, inutilidades que lhe ocupavam a cabeça e o ajudavam a passar os dias, a tabuada de cor, a rede ferroviária da maior parte das colónias, chovia na noite em que beijou Eva, nessa altura Eva ainda não precisava dos três níveis de água, nessa altura Eva apenas precisava de ganhar dinheiro, dizia, temos que sair daqui, deixou o chapéu-de-chuva a escorrer na casa de banho enquanto massajou os ossos da mãe que se queixava, vamos lá ver se a consigo aliviar, dizia com doçura, a mãe continuava a lamentar-se, ele foi esperá-la à saída do prédio, escondeu-se até a ouvir, Eva olhou-o com estranheza quando o viu, ele desejou os lábios de romã nos seus, desculpou-se, ia tomar um café mas como está a chover voltei para trás, Eva desfez a interrogação dos olhos, também me apetece um café, saíram protegidos pelo guarda-chuva de cornucópias que tinha estado a escorrer na casa de banho, a chuva era um pó que vinha de todos os lados, não de água, não do céu como habitualmente, caminhavam próximos sob o círculo de cornucópias, a respiração deles espalhava-se branca na noite, seria mais fácil se ele a abraçasse, nunca soube o que havia de fazer, a mãe saberia o que era conveniente, se a devia abraçar ou não, continuaram a caminhar, passaram pelo muro vazio de rapazes, os anos cresceram os rapazes que tiveram outros rapazes que já não se sentavam no muro, as tardes do bairro continuavam longas e tristes mas os rapazes tinham descoberto outros sítios, mais espertos, mais corajosos, pensou, afinal eram só mais perdidos, mais tarde soube, sabe-se sempre tudo mais tarde, demasiado tarde, ele e Eva caminhavam lado a lado embaraçados, entraram no café, aqueceram as mãos nas chávenas de café, não disseram nada um ao outro, o silêncio é um dom, disse Eva quando ele se tentou justificar, um dom, saíram quando o dono do café virou as cadeiras sobre as mesas para lavar o chão com um balde de água acastanhada, hesitou em beijá-la, Eva deu-lhe a entender que o podia fazer, há coisas que ou se fazem num determinado momento ou nunca mais se fazem, disse, beijaram-se protegidos por uma aba do prédio, naquele mesmo sítio por onde passava agora com o fato ridículo, Eva convidou-o a entrar em casa, há coisas que ou se fazem num determinado

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momento ou nunca mais se fazem, encontraram-se no dia seguinte e nos outros dias que se seguiram, raramente falavam, gostavam do silêncio, não tinham medo, parecia que se amavam, poucos meses depois, na noite do corte geral de electricidade, Eva pediu-lhe que dormisse em casa dela, tinha medo, não conseguia adormecer no escuro, parecia uma criança, a mãe acompanhou-o à porta iluminando-o com uma vela, uma mulher que aceita em casa um homem sem se casar só pode ser uma, nessa noite Eva disse-lhe que passava em frente ao muro por causa dele, os olhos meigos de Eva pediam-lhe que ele também mentisse para que se amassem desde sempre, mas ele ficou calado e Eva desistiu do que queria inventar, estendeu-lhe os braços, ele aceitou o corpo quente que se lhe ofereceu, o candeeiro de petróleo espalhava a renda do cortinado pela parede, relampejou, a luz intensa do céu iluminou-lhes os corpos por segundos, contavam em voz alta à espera do trovão para se afastarem da tempestade, quando ele se ouvia estrondoso já tinham regressado às sombras, as mãos mexiam-se e alongavam-se nas paredes, Eva disse, vou-te amar sempre, sempre, o corpo dela cheirava a relva acabada de cortar, o cortinado sombreava-lhe o ventre de flores, os olhos da mãe agouremos, os de Eva tão brilhantes no escuro, mudámos Eva, tu não queres ouvir dizer que mudámos mas já não somos os dessa noite, nunca mais os seremos, Eva recolheu-o no seu corpo a tempestade foi-se afastando, as lanternas dos vizinhos apagaram-se, o céu parou de verter água, o perigo tinha passado, esqueceu-se dos olhos da mãe e acordou num dia de sol abraçado a Eva.

A sala está vazia. A ex-mulher espreita do lado de fora da porta pelo vidro que a rasga, um quadrado transparente na porta de madeira. Não vê nenhuma das outras mulheres. Abre a porta devagarinho, cautelosa. Não quer que a vejam com os olhos vermelhos e inchados. Especialmente a rapariga. Esforça-se por nomear o que sente pela rapariga, odeio-a, diz, tentando diminuir o ódio, tentando espalhá-lo nas paredes cinzentas para aliviar a alma que lhe pesa. O ódio também lhe magoa o corpo, odeia-a quando olha para a barriga cheia de vida, quando a vê passar a mão com desprendimento sobre a barriga, a rapariga não faz de propósito mas a ex-mulher acredita que sim, acredita que os cabelos louros, a blusinha às florinhas, que a rapariga faz ou tem tudo o que é preciso para a odiar.

Senta-se. Uma nuvem escureceu a sala. Levanta-se e acende o candeeiro do tecto. Distrai-se com estes gestos que considera importantes, urgentes. As outras mulheres ainda estão a almoçar. Estão a falar sobre mim, pensa. Acende um cigarro. Tem medo do que elas possam dizer. Do que ele possa ter contado sobre ela, especialmente à rapariga, tem ciúmes de ti, não se vêem, a voz dele

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embatendo na escuridão, engolida pela noite do quarto, sabes que ela dava tudo para estar no teu lugar, terá sido isso que ele lhe disse.

Sentada no banco, a ex-mulher descansa as mãos de cera trémulas. Penteou-se e está novamente bonita apesar dos olhos vermelhos. Espera o regresso das outras, a entrada de um funcionário, qualquer coisa que não a deixe pensar no que quer pensar. Os maus pensamentos colam-se, enxota-os mas eles regressam pouco depois mais fortes, menos perdoáveis, picam-lhe o corpo que se levanta desesperado, sem qualquer possibilidade de redenção.

A ex-mulher procura a janela, os enormes aparelhos de ar condicionado que resfolegam. Acede à vontade do corpo que lhe dói ou da alma que lhe pesa, caminha metodicamente pela sala, percorre os quatro lados uma, duas, três vezes, até que tem a rapariga deitada no centro da sala e a criança já foi expelida em bocados ensanguentados que estão pelo chão. Mais tarde tem que se reconstruir tudo para se ter a certeza que a criança está completa, as mãos da rapariga querem agarrar os bocados espalhados, grita, são meus, os bocados do meu filho são meus, falta pouco para que a rapariga se esvaia em sangue, jorra muito sangue da boca do corpo, o sangue é quase bonito, uma cereja esmagada que escorre, a rapariga tem o útero rasgado para sempre, nunca mais poderá passar a mão pela barriga, o desprendimento tem sempre um preço, a ex-mulher guarda os bocados da criança, bastará um saco plástico, um caixão branco de anjinho, um saco de plástico, a ex-mulher ouve barulhos no corredor, espreita a luz da clarabóia, se se puser em determinado sítio a sombra dela atravessa o corredor, por uma vez a sombra tem a cor certa, a cor da água suja que é a cor da sua alma, a rapariga continua deitada no charco de sangue, parece que está bem, os cabelos louros tingidos de vermelho, a morte parece doce, continua a percorrer metodicamente a sala, tropeça num banco, a sala tem encolhido desde que ali está, desde que os pensamentos maus se colaram a ela, a cinza do cigarro cai no chão, apanha-a e limpa o chão com cuidado, se conseguisse limpar os pensamentos maus, esfrega o mosaico, suja as mãos, só pára quando não vê vestígio de sujidade, se lhe pudesse falar, quer saber se é verdade o que dizem, se ele a amou assim tanto, se enlouqueceu, se matou por amor, parece uma coisa banal, uma consequência óbvia, quem ama é capaz de matar, uma lei geral e abstracta, o coração aperta-se, a vida foge-lhe, os pedaços da criança correm para ela, trepam-lhe pelas pernas e entram dentro dela.

Um funcionário, que não é o que distribuiu as senhas de almoço e assobiou contente o início da primavera, que não é o que descobriu o problema da identificação nem o que as identificou, mas que é parecido com os três, que também se parecem entre eles, aproxima-se, neste sítio os funcionários são todos parecidos uns com os outros. Mas este é novo, é a primeira vez que entra na sala e por isso olha

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em redor espantado. Pergunta pelas outras. A ex-mulher responde-lhe que foram almoçar por ordem de outro funcionário. Ah! exclama como quem compreende a rotina do serviço que presta. Então vai ser a primeira a depor.

Expulsa os bocados da criança de dentro de si. Levanta a rapariga do chão. Foi salva pelo funcionário que nunca saberá que a salvou.

Tinha pedido ao seu colega se o podia ver ainda hoje, como as outras ainda não chegaram talvez me possa levar até lá.

O funcionário sorri, prestável, só a posso levar ao gabinete do doutor, se ele autorizar levo-a, mas ele é que decide, prometo que não demoro, é que não acredito no que me dizem, é por isso que preciso de o ver, não consigo acreditar no que me dizem.

O funcionário mantém-se inflexível, depende do doutor, eu aqui mando tanto como a senhora. Então não saio daqui, quer dizer mas cala-se, segue o funcionário, as pulseiras pesam-lhe e quando tilintam já não é um barulho de festa, algemas, os sapatos apertam-lhe os pés, a roupa fere-lhe a pele, se pudesse deitar-se e arrastar-se pelo fresco do chão, continua a andar submissa atrás do molho de chaves do funcionário, lá fora é primavera e o ar cheira a jasmim, lá fora nunca existirá o ar encardido da sala, o funcionário espera por ela, abre outra porta, avistam dois doentes, a ex-mulher assusta-se, estes são inofensivos, andam por todo o lado, esclarece o funcionário, a ex-mulher pára, não se quer cruzar com aqueles homens, acende um cigarro, o funcionário enxota-os, moscas enormes, o funcionário diz que não há nada mais triste do que perder o juízo, a ex-mulher ouve-o cada vez mais submissa, o funcionário continua a falar, para si próprio ou para a ex-mulher, todos os dias os vejo, todos os dias chegam novos, há quase vinte anos que os vejo e nunca me hei-de habituar à ideia de que se pode perder o juízo, se me habituar à ideia acabo como eles.

Andava pelo bairro disposto a aceitar qualquer coisa que lhe gastasse o resto do sábado, 18.20, ainda tinha pelo menos cinco horas para gastar, ao fim-de-semana chegava sempre mais tarde à pensão, as antenas de televisão abanavam com o vento, a roupa que estava a secar enrodilhava-se nas cordas, aproximou-se do barracão da catequese, ainda sabia recitar os pecados como tinha aprendido, as listas que o ajudavam a passar o tempo, exceptuando o original, que é só um, existem pecados mortais e veniais, o barracão da catequese estava abandonado, os pecados amontoaram-se a um canto juntamente com cadeiras e mesas velhas, existem quatro maneiras de cometer os pecados actuais, o barracão já nem porta tinha, pensamentos, palavras, actos e omissões, espreitou, não via quase nada, o barracão era um lugar cheio de noite, os pecados que bradam ao céu são quatro, homicídio voluntário, pecado sensual contra a natureza, opressão dos pobres, e não pagar o salário a quem

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trabalha, afastou-se da noite do barracão, os inimigos da alma são três, o mundo, o demónio e a carne, em lado algum se considerava o tempo por gastar, uma mulher acenou-lhe duma janela, conhecia aquela casa, não conhecia a mulher que o convidava para entrar, entrou na casa da Alicinha, em lado algum consta o pecado de ter muito tempo para gastar.

A mulher recebeu-o sorridente na casa da Alicinha, não és de cá, pois não, querido, a mulher não era nova nem velha, existia sem idade, a carne quando pendurada no talho também fica sem idade, a carne um dos inimigos da alma, tão diferente da Alicinha que era uma santa, e se esta mulher fosse a carne que sobrou da Alicinha, uns metros mais abaixo a mãe fervia o leite para os flocos de aveia, não sabia o que fazia em casa daquela mulher, o mundo ficava para lá do bairro, a mulher insistia, tu não és de cá, pois não, querido, podia ter dito, já fui e quando se é de cá nunca mais se deixa de ser, calou-se, conheceu a Alicinha que morava nesta casa, perguntou, a mulher pôs-se a pensar, Alicinha, como é que ela era, cercava-o, o vestido justo enrolava-se e trepava as pernas, a Alicinha nunca usaria um vestido daqueles, vestia-se de muito branco, meias até ao joelho muito brancas, sapatos muito brancos, laços muito brancos, tinha sempre a mãe à espera à porta da catequese, estou à espera da minha santinha, a mulher fungava, se calhar do vestido tão fino, se calhar de tanto tempo à janela.

Alicinha, não me lembro de nenhuma Alicinha, uns metros mais abaixo a mãe juntava ao leite os flocos de aveia, mora cá há muito tempo, a mulher negou com a cabeça e riu-se, de que se riem as mulheres, não querido, essa Alicinha já não é do meu tempo, como é que aquela mulher podia falar assim na Alicinha, era tua namorada, querido, ninguém podia namorar com uma santinha, era só uma conhecida que morava aqui, seria melhor dizer desconhecida, a mãe da Alicinha tinha cara de passarinho e o pai, do pai não me lembro bem, raramente o via, Alicinha também sabia de cor o catecismo inteiro, era a única que o sabia também de coração, foi por isso que substituiu a catequista, quando a mulher lhe perguntou, oh querido, o que vieste aqui fazer, não lhe falou da mãe que uns metros mais abaixo via televisão com a tigela dos flocos de aveia no colo, passei por aqui, isto não é um sítio por onde se passe, tem razão, o novo homem tinha de falar na estrada, nem sequer tem estrada, tem toda a razão, a mulher não deu pela mudança, mas o que aconteceu à tal Alicinha, não sei, nunca mais a vi, e tens a certeza que era esta casa, mentiu, se calhar não era, aqui as casas sempre foram quase iguais, a mulher descruzou as pernas e o vestido subiu ainda mais, a mãe tinha razão, uma mulher que aceita um homem em sua casa sem se casar é, a mulher deixou que ele lhe visse as cuecas muito rendadas, os vestidos de domingo da Alicinha também eram rendados, a mulher pediu-lhe que pusesse o dinheiro em cima da mesinha de cabeceira, não é que desconfie querido mas, ele pôs as notas na mesinha de

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cabeceira sem as contar, a mulher avisou-o que só fazia coisas normais, só preciso de coisas normais, a mulher de novo satisfeita sussurrou-lhe que não se ia arrepender, e se esta mulher fosse o que restou da Alicinha, deitou-se sobre os lençóis que eram tão diferentes dos lençóis nupciais que a mãe bordava, só bordo lençóis para mulheres que cheguem ao casamento em condições, ele e Eva nunca tiveram lençóis bordados, a Alicinha era imune aos inimigos da alma, tão diferente da mulher que destapa os mamilos, armas escuras que lhe aponta, a mãe terminou de comer os flocos de aveia e comeu mais uma fatia de bolo de amêndoa recheado a ovos, admirou o naperon dourado, daqui a pouco fará as orações da noite, pedirá pelos pecadores e pela paz no mundo, o sexo quente e pegajoso da mulher colado à barriga dele, a Alicinha substituiu temporariamente a catequista que se desgraçou num assomo de loucura, atirou-se para as fundações de um prédio em construção, caiu, a pobre catequista escorregou, disseram os do bairro, especialmente as mulheres, um barulho no quarto ao lado, a mulher tapou o candeeiro com um pano vermelho, se a mãe soubesse que ele estava num quarto da cor do inferno, da cor que a Alicinha nunca há-de conhecer, as pernas da mulher enroscadas no seu tronco, serpentes, ninguém consegue cair em fundações vedadas com arame, é preciso vontade, ninguém se descalça antes de cair, é preciso premeditar a queda, todos mandariam calar quem se lembrasse disso, mas ninguém dizia lembrar-se, uma catequista não se atira para as fundações de um prédio, todos aceitam um acidente, um acidente é só vontade de Deus.

Um homem tossiu no quarto ao lado, está mais alguém cá em casa, o meu irmão, a mulher arfava, então querido, o dinheiro pousado na mesinha de cabeceira, a mãe também reza pelo filho, é um hábito como outro qualquer, diz, protege-o Senhor de todo o mal, a mulher apressou-o, o homem que seria o irmão da mulher tossiu novamente, a luz vermelha trouxe-lhe outra vez o sarampo, a mulher não percebeu a comichão súbita, ele só queria falar da Alicinha, uma santinha muito branca, o quarto azedava os cheiros dos corpos, não tinha janela, os lençóis amarrotados, a mulher continuava deitada sobre ele, o monte de carne sem idade engolia-lhe o sexo, o ramo de rosas pálidas engolido pelas chinesinhas que conversavam à beira do lago, a mulher esforçada e ele cada vez mais envergonhado por fazer tão má figura, então, querido, a Alicinha promovida a catequista efectiva enumerava para os miúdos do bairro os pecados de bradar ao céu, ele já não assistia, mas tinha a certeza que a santinha muito branca não se esquecia de nenhum, não pagar o salário a quem trabalha, as notas pousadas na mesinha de cabeceira e os saltos altos da mulher espetados nas coxas, está a aleijar-me, a mulher ajeitou-se melhor, uma equilibrista num circo, a ele coube-lhe ser o palhaço, então, querido, a voz perplexa da mulher, os mamilos escuros apontados para ele, armas, as pernas a apertarem-lhe o

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tronco, serpentes, então, querido, Alicinha também ensinava os sete dons do Espírito Santo, sapiência, piedade, a mulher baloiçava-se piedosa sobre ele, os doze frutos do Espírito Santo, caridade, mansidão, castidade, o homem que seria o irmão tossiu novamente, as virtudes cardeais, a prudência, não devia ter entrado, obras de misericórdia, corporais e espirituais, a mulher arranhava-lhe o peito misericordiosamente, no dia seguinte seriam marcas de desespero, ele tão casto que murchava dentro dela, a mulher sussurrava obscenidades, a voz sábia da Alicinha, para se ganhar o céu temos de fugir dos pecados da carne, durante algum tempo a mulher fingiu que não sentia a falta de desejo dele, o homem que seria o irmão andava pela casa, o calor da mulher incomodava-o, a mãe da Alicinha ainda terá cara de passarinho, um passarinho que teve uma santinha que não é deste mundo, a catequista atirou-se às fundações do prédio, caiu, a Alicinha convenceu-se que a catequista teve uma tontura que a fez cair, tinha-se esquecido dos sapatos deixados na beira do precipício, na vedação, a mulher despiu-o completamente, deve ser a roupa que te atrapalha, o fato novo amarfanhado numa cadeira, os sapatos aos pés da cama, a camisa no chão, estava nu, o corpo do pai sobre a cama tão rígido como o dele agora, a catequista rapidamente esquecida, na missa do primeiro aniversário quase ninguém se lembrava dela, quem não aparece esquece, não existe outra razão para os fantasmas, a mulher impaciente, sabes, querido, acho que tens problemas, se me deixasse dormir um bocado, posso oferecer-lhe mais dinheiro, a lista original de pecados e de virtudes enterrada nas fundações do prédio, a mãe apagou a luz para dormir, as roupas dele pelo quarto da mulher, pára, pára, a mulher saiu de cima dele, disse, já percebi, estás nervoso, querido, acariciou-lhe o sexo frouxo, se a catequista morreu em pecado mortal teve que se confessar logo que chegou à outra vida, nunca fez esta pergunta mas tem a certeza que a voz caridosa da Alicinha conseguiria explicar, uma santinha sabe tudo das duas vidas e das várias mortes, o sexo mirrou até ser outra vez criança, estou nu, como é que saio daqui, de qualquer forma a catequista morreu na graça dos pilares de betão e dos ferros retorcidos, não conseguia andar nu à frente de desconhecidos, foi a tentação de voar que atirou a catequista para as profundezas do inferno, foi um engano, pode parecer mas ao céu não se chega a voar, a Alicinha sabe de certeza como é que se chega ao céu, se calhar até conhece o caminho mais rápido e o mais demorado, uma santinha sabe tudo, uma santinha ajuda sempre quem precisa, se me ajudasse a sair daqui podia fazer um xis na lista das obras de caridade.

A mulher deitou-se ao lado dele, querido, assim não consigo, olhou para o dinheiro, a culpa não é minha, não pagar o salário a quem trabalha, um dos pecados que bradam ao céu, levantou-se, recolheu as roupas e tapou envergonhado o sexo mirrado, o quarto iluminado pelo inferno do sarampo, os olhos fundos da mulher

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demasiado atentos, tens problemas com a tua mulher, querido, não sou casado, então deve ser disso, querido, os homens quando ficam sem mulher muito tempo, queria vestir-se, a mulher ficou em cuecas e soutien rendados, retirou o lenço vermelho do candeeiro, a luz branca afugentou o sarampo e o inferno mas não lhes trouxe a luz do céu, os homens precisam de mulher, vou-me casar daqui a dias, ah, então vieste comemorar, querido, sim, foi isso mesmo, a mulher de gatas sobre a cama para o agarrar, então vamos lá tentar novamente, querido, fala-me da tua noiva, irritava-o que ela lhe chamasse querido, descreveu-lhe a beleza da rapariga da praia, querido, vê-se mesmo que estás apaixonado, de certeza que a Alicinha mudou de casa, foi-se embora do bairro, foi das que conseguiu sair, ainda será catequista, se o vir na rua não lhe fala apesar de todas as semanas mandar as crianças repetir, amai-vos uns aos outros, a mãe uns metros mais abaixo adormeceu depois de ter rezado, a mulher colou-se a ele, queres beber alguma coisa, querido, os mamilos escuros debaixo da renda do soutien, a mulher saiu do quarto para ir buscar uma bebida e falou baixinho com o homem que seria o irmão, a luz leitosa azedava o quarto, o dinheiro sobre a mesa, a mulher voltou com um copo e uma garrafa, bebe, querido, que te faz bem, engoliu a bebida sem lhe tomar o sabor, encheu novamente o copo, a mulher pôs os olhos gulosos no relógio dele, foi a minha noiva que mo ofereceu, outra vez a tosse do homem que seria o irmão, a cara e o corpo da mulher a ganharem idade, velhos, tudo na vida tem um preço, a voz de Eva não podia ser ouvida naquele quarto, os olhos da mulher a ganharem ganância, o homem que seria o irmão apareceu no quarto e viu-o nu com sexo de criança, a mulher levantou-se rapidamente da cama, deixou-o a sós com o homem que seria o irmão, ele percebeu tudo e facilitou-lhes o trabalho, entregou voluntariamente a carteira e o relógio, o fato, recebeu as calças e a camisola das mãos do homem que seria o irmão, cambaleou quando saiu do quarto nas roupas velhas, não chegou a ser um assalto apesar do fato novo, o relógio e a carteira terem ficado no quarto de luz azeda, até se sentia mais agasalhado com a roupa que lhe tinham dado, prometeu silêncio para salvar a vida, o homem hesitou se lhe dava ou não uma tareia para o amedrontar, acreditou na cobardia que via, a mulher não tornou a aparecer, saiu da casa da Alicinha sabendo que os dois se estavam a rir por o roubarem tão facilmente, olhou para o pulso, fez o gesto por hábito, deixara de ter horas, mas não precisava, conhecia o tempo de cor, afastou-se rapidamente da casa da Alicinha, o pulso sem relógio não era o dele, não lhe pertencia, passou novamente no escuro do barracão abandonado, o monte dos pecados tinha diminuído, alguém lhes tinha arranjado serventia, alguém que não se importasse de usar pecados em segunda mão, alguns ainda em bom estado, talvez um antiquário de almas, talvez, dirigiu-se para o prédio onde a catequista se matou, estava a precisar de ser pintado, o alumínio brilhava nas

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marquises fechadas, algumas casas tinham luz, possivelmente ninguém sabe que mora sobre os restos mortais de uma catequista.

Estava fora do bairro com calças roxas e uma camisola azul-claro, no bairro a roupa até lhe ficava bem, se a mãe o visse outro homem, mais um dos muitos que podia ser, um que cheirava a sexo de mulher, que não usava relógio, que nunca tinha visto a Alicinha, continuou a caminhar, ia até à casa onde morou com Eva, talvez o néon da serração acendesse e apagasse noutra cor, ia sentar-se no muro dos rapazes, as noites no bairro continuam longas e tristes, caminhava, se a catequista tivesse deixado um bilhete nos sapatos que ensinasse o que fazer com a vida, se a catequista tivesse deixado o bilhete teria salvo muitas almas e talvez a sua também.

A ex-mulher segue o funcionário por corredores sombrios que vão dar a outros corredores. Os corredores têm muitas portas. As portas estão todas fechadas. A ex-mulher quer parar mas tem vergonha de dizer ao funcionário que está muito nervosa, que um calmante a ajudava, que não costuma tomar calmantes mas também nunca esteve num sítio destes.

Quando o funcionário abre a porta de mais um corredor, a ex-mulher vê a mãe. A mãe dirige-se para a sala. Apesar dos olhos baços e da pouca luz do corredor, a mãe caminha com segurança. A ex-mulher sabe que mais à frente vão passar uma pela outra. Pensa que poderá aproveitar para parar e que deixará de tremer. Avança. A mãe ainda não os viu. Há muito que a mãe só vê o que quer.

Os passos da mãe são silenciosos. A mãe é uma sombra negra que se desloca junto à parede do corredor. Os saltos da ex-mulher são ruidosos, as solas do funcionário chiam. A mãe não os vê mas ouve-os e encosta-se ainda mais à parede.

A ex-mulher pára. Diz ao funcionário que precisa de dar um recado àquela senhora. O funcionário olha para o relógio, o doutor está à espera, não se demore, o doutor não gosta que o façam esperar. Podia ter dito, mas eu esperei tanto, mas agarra o braço da mãe, obriga-a a olhar para ela. O funcionário pára mais à frente. A mãe levanta a cabeça, mas os olhos opacos não mostram surpresa nem zanga, os olhos opacos mostram apenas a rotina de esperarem.

A ex-mulher escolhe as palavras. As palavras que surgem são as que sempre quis dizer, que são as únicas que não serão ditas. Procura outras. Tem pouco tempo e está nervosa. A mãe deseja continuar a andar, talvez perder-se no labirinto de corredores. O funcionário aguarda. As duas mulheres têm pouco tempo para corrigir o silêncio de que se fez o passado. Baixinho, a ex-mulher pergunta, não quer ver o seu filho, depois mais alto, não quer ver o seu filho, até quase gritar, não quer ver o seu filho.

A mãe não baixa os olhos, não receia as palavras da ex-mulher e espera que lhe seja dada uma razão para ver o filho. A ex-mulher não a dá, perde-se outra vez nas palavras que sempre lhe quis dizer. A

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mãe responde que não precisa de ver o filho. Não há qualquer mágoa nem raiva nessa decisão. É apenas a não vontade de o ver. A ex-mulher morde os lábios. Se a mãe desejasse ver o filho talvez fosse mais fácil obter a autorização do doutor, qualquer pessoa compreende a dor de uma mãe, o parto torna a dor de uma mãe verdadeira para sempre. Mas a mãe não quer ver o filho, não há nada para ver, acrescenta.

A ex-mulher sabe que assim é, mas não compreende. A verdade é sempre muito difícil de compreender. A mentira é sempre mais compreensível, mais lógica, mais correcta como tudo o que é construído. A mãe segue o seu caminho, quer sentar-se a descansar no banco de madeira da sala.

A ex-mulher fica a ver a mãe afastar-se, os passos silenciosos misturam-se no escuro do corredor, a mãe torna-se uma sombra que se move devagar até desaparecer por detrás de um guarda-vento. O funcionário recomeça a andar, cumpre ordens, há muito que acompanha maquinalmente as pessoas, não quer saber o que se passou, há muito que não é curioso, que não se comove, há muito que é apenas um funcionário que daqui a pouco termina o turno.

Entrou com cuidado na pensão porque não queria que ninguém o sentisse entrar, não podia saber que o tempo não se deixa contar de cor e foi-se desacertando com a vida, sem o relógio no pulso voltava cada vez mais tarde para a pensão, ainda pensou em comprar outro, chegou a entrar numa loja, mas os dias foram passando e sem se dar conta desacertou-se de vez com a vida.

A senhoria não desconfiou logo, andar desacertado com a vida não é imediatamente visível, durante um tempo ainda conseguiu manter os horários, começou por chegar um pouco mais tarde à noite, desculpava-se, estive com um amigo que já não via há muito tempo, mais tarde inventou horas extraordinárias, mudanças profundas no emprego, a senhoria não acreditou mas fingiu que sim, mais tarde também deixou de cumprir o horário da manhã, a senhoria inquietou-se, ele estava a violar um dos princípios fundamentais da pensão, um hóspede permanente tem de estar empregado, a senhoria encheu-se de coragem e perguntou-lhe se tinha sido despedido, ele riu-se, antes pelo contrário, finalmente fui promovido, a senhoria felicitou-o, ele falou do horário flexível, não tinha horas para entrar nem para sair, as empresas mais competitivas funcionam assim, a senhoria aproveitou para lhe pedir um aumentozinho, claro que podia pagar um pouco mais pelo quarto, a senhoria ficou muito agradecida e durante algum tempo não lhe fez perguntas.

Evitou que a porta batesse, pousou cautelosamente os pés nas tábuas roídas pelo caruncho para que não chiassem, o menino partido continuava com o globo intacto na mão, quanto tempo aguentaria, atingiu o primeiro patamar e ouviu vozes alteradas, parou para

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escutar, era na pensão, pensou que seria uma discussão entre a senhoria e os parasitas por causa da água roubada ou outra coisa semelhante, a criatura do segundo andar gritava um pouco mais alto do que o habitual, ficou à escuta, e se a senhoria tivesse descoberto a verdade, aquela gritaria podia ser a partilha com os hóspedes da raiva de ter sido enganada, continuou parado no patamar, estava indeciso se havia ou não de se ir embora, podia voltar mais tarde, a senhoria andava desconfiada, a senhoria podia estar muito irritada por ele ter violado um dos princípios fundamentais da sua pensão, era pouco provável mas pessoas como a senhoria têm reacções imprevisíveis, a senhoria falava muito alto e ele parou para ver se conseguia perceber o que se passava.

Estava parado no patamar quando apareceu, vindo da rua, um dos rapazes da família do quarto andar, o que o incomodava mais por ser injustamente tão bonito, desagradou-lhe ter sido apanhado a escutar a conversa no patamar, disfarçou recomeçando a subir os degraus, fez de conta que verificava qualquer coisa na sola do sapato, mas o rapaz nem olhou para ele, subiu mais depressa e ultrapassou-o.

Quando chegou à porta da pensão é que lhe falou e ainda lhe pareceu mais bonito, vieram cá outra vez hoje, é desta que isto vai mesmo abaixo, fui lá fora comprar bebidas, está tudo reunido, não disse mais nada, empurrou a porta e entrou com o saco das bebidas, ele ainda respondeu, ah, vieram cá outra vez, mas o rapaz não o ouviu.

Entrou no seu quarto independente que tinha a vantagem de poder entrar sem ser visto por ninguém. Colou o ouvido à porta, esperava que o rapaz falasse nele, que dissesse, chegou o hóspede que faltava, mas o rapaz ignorou-o e ele ainda se irritou mais. Estavam todos reunidos, só faltava ele e a criatura do segundo andar, se calhar queria dizer alguma coisa, talvez fossem igualmente dispensáveis, pensar nisso quase o magoou, os rapazes do muro também o tinham dispensado rapidamente, os colegas de liceu nunca chegaram a chamá-lo, estava na categoria dos dispensáveis, o mundo sempre se dividiu entre os que são indispensáveis e os que não o são, houve um tempo em que a senhoria acreditou que ele tinha amigos influentes, nesse tempo era completamente indispensável, os amigos influentes podiam salvar o prédio, a senhoria andava sempre atrás dele, se me fizesse o favor de falar com os seus amigos, o reformado também o respeitava, dizia-lhe várias vezes, meu amigo quem tem padrinhos tem a vida governada, o gordo justificava-se por ter que vender cervejas pela noite fora, o trabalho não deve envergonhar ninguém, vergonha é roubar, ele concordava, mas agora quase não lhe falavam, o reformado às vezes até se ria trocista quando ele falava nos amigos influentes, o gordo dizia conversa vejo eu muita, desrespeitavam-no mas a falta de dinheiro da senhoria permitia-o na pensão, a senhoria fingia que ele tinha um emprego honesto, mas

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vivia em sobressalto, será que este mês paga, a senhoria não podia adivinhar que Eva o sustentava com o dinheiro do marido, que ele tinha cheques em branco que podia preencher no montante que quisesse, a senhoria que gritava na sala, querem-nos pôr daqui para fora, não conhecia Eva, imaginava uma guia turística, o engenheiro veio com o funcionário do tribunal para nos assustar, eles querem-nos pôr daqui para fora mas eu já me informei, estou bem informada, se julgam que vão deitar o prédio abaixo estão enganados, a senhoria hesitou, se pensam, amoleceu a voz até ao choro, a papada parou de se agitar, os dedos gordos cairam no colo, digam-me para onde é que vou, para a rua, sem esta pensão vivo de quê, digam-me, a voz da senhoria já quase não se ouvia, daqui a pouco teria que chorar um bocado para se acalmar, quando terminasse de chorar a senhoria diria, deitando tudo cá para fora sinto-me logo melhor, assoava-se, estes nervos dão cabo de mim, o reformado dava-lhe palmadinhas nas costas curvas, o gordo abanava a cabeça, repetia, só a morte é que não tem solução, a senhoria quando ouvia a palavra morte tinha que bater três vezes na madeira, já lhe disse para não dizer essa palavra cá em casa, se fosse mais atento teria percebido, a senhoria tinha arejado os quartos e encerado os móveis e o soalho, os tapetes tinham sido postos nas cordas e batidos violentamente, os cortinados ainda estavam lisinhos do ferro, se não fosse tão desinteressado teria percebido que a senhoria preparava a casa para as visitas da câmara, iria receber outra ordem de despejo, mas não pensou em mais nada do que no cheiro anormal de lixívia e óleo de cedro, continuava a procurar a rapariga bonita, andava o dia todo.

De manhã tinha acordado com barulhos anormais, a senhoria andava de um lado para o outro e mexia em tudo, ele levantou-se e quando foi à casa de banho cumprimentou a senhoria e o reformado, arranjou-se rapidamente e saiu, ninguém lhe disse que esperavam visitas, que pouco depois de ele ter saído o engenheiro e o funcionário do tribunal bateram à porta, a senhoria apareceu com o cabelo alto pulverizado de laca, mise, era assim que a senhoria se referia ao seu cabelo alto, uma saia de veludo preto e sapatos de sair, pérolas plásticas nas orelhas e perfume de água de rosas, a senhoria quando abriu a porta ao engenheiro e ao funcionário do tribunal estava muito nervosa, entrem, entrem, disse com um sorriso que lhe custou muito fazer, os dois homens entraram e ficaram parados no corredor. Começou por lhes oferecer um café mas eles não aceitaram, acabámos de tomar, disseram quase em uníssono como se não estivessem a mentir. Encaminhou-os para a sala de entrada, então o que me dizem, esperava que eles reparassem nos tapetes sacudidos, nos cortinados limpos, no soalho encerado mas eles olhavam desagradados para as paredes, espreitavam para o fundo do corredor, os senhores devem ter pressa, hoje em dia tudo tem pressa, esta senhoria apesar da mise e dos sapatos altos contorcia as mãos como a dos chinelos de andar por casa, tinha o mesmo medo, os

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homens percorreram a pensão, os quartos dos hóspedes, a cozinha, casa de banho, o quarto da senhoria que pega com outro que é para o caso de um filho ou um familiar precisar, os homens não comentaram a generosidade, a senhoria mostrou a marquise fechada de novo há menos de cinco anos, o tecto está um bocado escuro porque chove na varanda de cima, a senhora que lá vive, ouviram gritos nas escadas, pobrezinha aquilo é um sofrimento, esta pensão já ocupou o prédio inteiro, já foi muito importante, tem mais de cem anos, a senhoria apontou para uma fotografia na parede, vejam, os homens olharam desinteressados, tenho recortes de jornais, posso mostrar aos senhores, deitar isto abaixo, nem sei como é que podem pensar nisso, os homens tinham pressa, em 1946 uma cantora francesa viveu aqui seis meses, o engenheiro disse, aposto que agora não ficava cá um dia, os homens riram-se muito da piada, a senhora quer ver como isto está, disse o engenheiro retomando o ar sério, arrancou um pedaço de estuque com a unha, isto desfaz-se assim porque está podre, entrou aqui muita água, o prédio cedeu, olhe para isto, as fendas na parede, a senhoria não olhou, se não olhasse as fendas não existiam, a senhoria falou no soalho, ainda é de casquinha, um soalho destes, vejam este tecto, o estucador que o fez foi o mesmo que esteve a trabalhar num palacete muito importante, não me lembro agora do nome mas é aqui perto, o engenheiro criticou a instalação eléctrica, os fios descarnados que corriam nas paredes, estou farta de ver casas com os fios assim, na televisão fartam-se de mostrar casas assim, queria ver se as deitassem todas abaixo, o engenheiro abanou a cabeça, o funcionário do tribunal também, percorreram a pensão em sentido contrário, a senhoria acompanhava-os martelando o soalho com os sapatos de sair, ajeitando as pérolas nas orelhas, a água de colónia provocava tosse ao engenheiro que punha e tirava os óculos, insistia numa cedência grave, veja isto são fendas a quarenta e cinco graus, pararam na sala grande que tinha os frisos de estuque estalados, os homens não repararam nos sofás sem as mantas de protecção e no televisor desligado, não estranharam que um velho estivesse sentado de fato e gravata no sofá, o velho estava muito direito, a senhoria apresentou-o, é um dos meus hóspedes, um hóspede da pensão, tenho outros mas este já está reformado, os outros claro estão a trabalhar, nunca admiti vadios nem, os senhores sabem como vivem essas pensões da rua, somos quase uma família, o engenheiro olhou apressado para a parede da sala, o funcionário do tribunal não dizia nem fazia nada limitando-se a transportar uma pasta e um papel que a senhoria deveria assinar, o engenheiro não reparou na mesa Queen Anne sem o oleado de frutos, quis ver de novo a casa de banho, a senhoria referiu orgulhosa o esquentador que um familiar trouxe do estrangeiro, o engenheiro passou à cozinha, rejeitou de novo o cafezinho que a senhoria insistentemente ofereceu, ainda olhou para o bolo de chocolate que amolecia num prato de vidro, a senhoria

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avisou que o advogado lhe tinha dito para não assinar nada, o engenheiro respondeu entre dentes, a senhora é que sabe, a senhoria assustou-se com a indiferença do engenheiro, os lábios da senhoria tremeram de choro, o funcionário do tribunal manteve-se calado, carregava a pasta e olhava com nojo para tudo o que via, às vezes substituía o nojo pelo medo que tinha de permanecer num prédio em risco de ruir.

Quando os homens se foram embora, a senhoria descalçou-se imediatamente, correu para o quarto e reapareceu passados segundos de bata e chinelos, tinha voltado ao que era, da senhoria que acompanhou os homens só ficaram as pérolas plásticas nas orelhas, a senhoria colocou o oleado sobre a mesa Queen Anne, tapou os sofás, o reformado retirou-se e voltou de pijama, sentou-se no sofá novamente coberto, quando a ordem foi reposta, quando tudo voltou ao normal, a senhoria pôde chorar. O reformado ouviu-a chorar sem a interromper, a senhoria limpou os olhos com raiva, jurou que havia de se vingar na televisão, mais calma ligou para os fiscais camarários que mensalmente a visitavam, nenhum a atendeu, a senhoria compreendeu que o envelope que dava aos filhos, que nestas idades precisam de tanta coisa, já não tinha qualquer importância, mais tarde lembrou-se de falar com os vizinhos, apesar de tudo se o prédio fosse demolido eles também ficavam sem tecto.

Foi por isso que se reuniram na sala grande, os velhos do terceiro andar tinham pressa, queriam ir dormir, bocejavam, quanto a nós logo se vê, a senhoria não compreendia, depois logo se vê, depois, o velho bocejava, ficamos bem em qualquer lado, não faltam por aí casas, isto não é nosso, como achámos isto havemos de achar outro sítio qualquer, não queremos complicações, vamos ficando até, ainda não tinha ouvido ninguém da família do quarto andar, o gordo confessou que a pensão era uma solução temporária e que queria comprar um apartamentozinho, o reformado estava calado, a senhoria enervou-se, o rapaz do quarto andar que o tinha apanhado a escutar nas escadas disse, a mim só me levam daqui à força, e o pai zangou-se, cala-te seu estúpido, sabes lá o que dizes, quando eles quiserem pegamos nas nossas coisinhas e fazemo-nos à vida, na rua é que não ficamos, o gordo continuava a falar, chegam-me duas assoalhadas, não queria era ir para os arredores, com o negócio da cerveja não me dá muito jeito, a senhoria não queria saber nem dos planos nem dos problemas do gordo, estava furiosa com os parasitas, se as casas fossem vossas não estavam tão descansados, o velho do terceiro andar levantou-se, tenho de ir andando, a senhoria gritou, todos os dias me roubam e agora fogem todos, o velho não respondeu por pressa de se deitar, os do quarto andar ainda resmungaram, a senhoria insistiu, pensam que não me custa a pagar a água que me roubam, e a luz, a comida que os miúdos me pedem, devia era ter feito queixa quando vieram para cá, a senhoria arrancou as pérolas das orelhas, começou a chorar, os parasitas levantaram-se

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e saíram, quando já estavam na porta a senhoria falou num requerimento, se estivermos todos juntos, se formos muitos não nos conseguem pôr daqui para fora, ninguém lhe respondeu, foram-se embora e o velho do terceiro andar bocejou alto ao subir as escadas.

Continuou fechado no quarto, viu uma carta de Eva que a senhoria lhe deixara em cima da cómoda, não a abriu, acendeu um cigarro, daqui a pouco iam todos deitar-se, o reformado disse que aquelas reuniões não serviam para nada, estes vagabundos tanto lhes faz ficarem aqui ou noutro sítio qualquer, a senhoria deu-lhe razão, tinha que ser ela sozinha a tratar de tudo, ele apagou a luz com receio que percebessem que estava no quarto, qual é a lei que deixa que tirem as casas às pessoas, repetia a senhoria para se convencer, qual é a lei, o gordo despediu-se, ia à casa de banho, a senhoria andava de um lado para o outro, arrumava a sala, falava alto, se pensam que me tiram daqui, arrumava as cadeiras e despejava os cinzeiros, recolhia garrafas, maldito vício, amanhã tenho de arejar esta casa, estes vadios só têm vícios, ele continuou no escuro à espera, ouviu o autoclismo, os gritos da criatura do segundo andar, um dia tinha que subir a escada de incêndio para a ver, o reformado dizia que a tinha visto uma vez e que esperava ter sido a última, é pior do que um animal, dizia assustado. Esperava que todos se deitassem, se a senhoria o visse perguntava-lhe como correu o dia de trabalho, perguntava-lhe sempre para poderem continuar a fingir que nada se tinha alterado, ele respondia com uma frase que ouvia aos outros, cada vez mais trabalho e menos tempo, a senhoria ficava satisfeita, se o reformado o ouvisse diria que sentia a falta do trabalho, nesta idade sente-se falta de tudo, o gordo foi para o quarto e deitou-se sobre a cama que chiou, ele aguardava que todos se deitassem, fazia sempre isso, não gostava que o esperassem à porta da casa de banho, ficava aflito, teria ou não puxado o autoclismo, a sanita estaria suja, e o cheiro, o lavatório teria restos de pasta dentífrica, voltava atrás para confirmar, arranjava uma desculpa, o hóspede que estava à espera insistia, esteja à vontade, só bati porque a luz podia ter ficado acesa por esquecimento, ficavam os dois apertados no corredor cada um com o respectivo saco na mão, o saco do sabonete, da escova e pasta de dentes, falavam por obrigação, esta noite estou com uma azia desgraçada, era sempre assim que o gordo começava as conversas, com a azia, passava rapidamente às cervejas, sabe quantas cervejas vendi esta noite, claro que não queria saber, não lhe interessava mas o gordo explicava-lhe na mesma, ouvia-o com atenção e tinha medo de se perder nas contas, de ser apanhado em falso em qualquer custo adicional, na pensão era um contabilista, um homem simples que arranjava a vida para se casar, mesmo que estivesse desempregado um contabilista percebia sempre os custos e os lucros, nisso não podia ser desmascarado, ficavam apertados no corredor, a porta da casa de banho entreaberta, a sanita teria ficado suja, o gordo continuava nas

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margens de lucro das cervejas, margens mais estreitas do que as fendas na parede em frente, ele desesperava, se não fosse estar investido no papel de contabilista podia gritar como a criatura, o reformado salvava-o, aproximava-se com o robe enorme que usava dia e noite, dizia ao gordo apontando para a casa de banho, se não precisa vou eu, o gordo despedia-se contrariado e fechava-se na casa de banho, o reformado ficava à porta com o sabonete na mão e a escova de dentes espetada no bolso do robe à laia de flor, ele afastava-se. Outras vezes era o reformado que o esperava à saída da casa de banho e o prendia no corredor exactamente no mesmo sufoco, falava dos filhos, os filhos não são da gente são do mundo, tenho netos que nem conheço e os outros se os vir na rua, o reformado contava a vida dos filhos, o gordo aproximava-se, limpava o suor da testa, dizia, oh homem, você de manhã fica a dormir, mas nós temos que trabalhar, o reformado pedia desculpa, afastava-se humilhado com a escova de dentes no bolso do robe à laia de flor, era por isso que não gostava que o esperassem à porta da casa de banho, que o obrigassem a conversar, não se importava de esperar que todos se deitassem, tinha tempo, se a senhoria o visse talvez ainda lhe pedisse que a ajudasse, que falasse com os amigos influentes que ele conhecia, será que a senhoria ainda acreditava que ele tinha amigos influentes, se a senhoria o visse recordava-o da promessa, não se preocupe, isto resolve-se, pedia novamente o nome do engenheiro responsável pelo processo, o número do processo, fazia perguntas técnicas, contava qualquer coisa que a animasse, ainda há pouco tempo queriam despejar uma família a estes meus amigos conseguiram, a senhoria precisava de acreditar, esperava que o reformado se deitasse, que a senhoria desligasse o esquentador que não podia ficar toda a noite a gastar gás, ouvia sempre o estalido do esquentador, quando todos se deitassem podia sair, passava no corredor, os gritos da criatura abafavam-lhe os passos, se por acaso alguém se levantasse dizia que tinha acabado de chegar, estava cansado mas o dia seguinte seria outro dia, os dias são quase todos iguais, uns têm sol e outros não.

Quando o tempo ficava muito frio, recolhia-se no cinema. Chegava a ver duas vezes o mesmo filme de seguida. Se não lhe apetecesse ir ao cinema procurava um sítio suficientemente aquecido e deixava-se lá ficar. Mas naquela tarde, apesar do frio, apeteceu-lhe andar, sentia-se bem, estava agasalhado, tinha almoçado, tinha cigarros, o céu estava muito azul, quais serão os pecados que bradam a este céu perfeito, andou algum tempo até que parou na entrada de um jardim, não gostava dos jardins na cidade, eram sítios onde se prendiam meia dúzia de árvores e centenas de pombas que sujam tudo, velhos que jogam às cartas e avós que empurram os baloiços dos netos, não gostava de pombos nem de velhos, das crianças nem tinha opinião, duram tão pouco tempo, dirigiu-se para o quiosque das

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revistas, tinha que se sentar no banco de jardim com as mãos ocupadas, se tivesse um jornal ou uma revista seria um homem normal a passar uma tarde de folga no jardim, apesar do frio e das árvores em bonitos esqueletos contra o céu, apesar dos pombos, dos velhos e das crianças, abriu a boca e o bafo manchou o ar, o céu azul tão cheio de frio, pegou numa revista, aproveitou a distracção da dona do quiosque para sair sem pagar, não sabia porque o fazia, tinha dinheiro para comprar as revistas que quisesse, o tempo por gastar é realmente perigoso, afastou-se, percorreu o jardim e escolheu um banco que ficava na parte dos namorados. Se a trovoada que a televisão tinha anunciado chegasse rapidamente podia salvá-lo do tédio, desejou que nevasse ou que a cidade se inundasse, talvez fosse hoje que encontrasse a rapariga bonita, calçou as luvas, enrolou cuidadosamente o cachecol à volta do pescoço e abriu a revista.

Uma pomba andava numa poça de água de chuva e reflectia-se, duplicando-se. Os namorados pelo contrário de tal forma entrelaçados tinham apenas um corpo. Sorriu para a pomba e para os namorados. Muito perto do jardim, separados pelas grades de ferro, as pessoas trabalhavam, exasperavam-se, e estavam tão perto do jardim. Ficou sentado com a revista aberta à espera que o tempo passasse sem o poder contar. O relógio já não lhe fazia falta. Quando lhe apeteceu, começou a andar até passar as grades para entrar de novo a cidade, não tinha frio, nem fome, nem motivo para sair do jardim a não ser a vontade. Deitou a revista num caixote de lixo. No bolso do casaco ainda tinha a carta de Eva que a senhoria lhe tinha deixado no quarto há alguns dias. Retirou-a do bolso e deitou-a no mesmo caixote sem a abrir.

Viu a entrada de uma estação de metro. Não pensava em nada quando desceu. Já lá em baixo sentou-se num banco metálico moderno que era muito diferente do banco de madeira às ripas do jardim. As pessoas também eram diferentes. Os velhos dos jogos de cartas e as avós do baloiço só existiam no jardim. No metro eram atrapalhos, uns desgraçados que andavam devagar e que tinham que esperar que os outros lhe dessem passagem, as crianças já espetavam os cotovelos para abrirem caminho, e aquele pedaço inútil de terreno com árvores era uma ilusão que estava presa pelas grades de ferro. Na realidade, no metro era segunda-feira e com esse pretexto todos se mostravam mais intolerantes do que habitualmente. Justificavam-se com o início de mais uma semana.

Deixou que passassem vários comboios até entrar num. As segundas-feiras nunca poderiam ser dias piores porque os dias sempre foram todos iguais por muito que todos os queiram sempre diferentes. Sentou-se do lado da janela a olhar para o túnel de cimento que sustinha a terra. Não queria ver ninguém. A carruagem parou, recomeçou a andar, tornou a parar sem que ele desviasse o olhar. Com o olhar virado para fora conseguiu não ver ninguém mas

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ainda assim aborreceu-se por ter reparado nos borbotos da camisola da mulher que se sentou ao lado. Não queria ver nada mas isso só era possível se ficasse fechado nele, no escuro dos olhos fechados. Com os olhos abertos não havia sítio onde estivesse a salvo. Uma carruagem de sentido contrário parou junto dele. Estava separado daquelas pessoas por dois vidros e um sentido. Poderia ter fechado os olhos para não as ver mas não o fez. Fixou-as sabendo que era quase impossível reencontrá-las. O comboio apitou e arrancou. Nunca mais veria as caras retidas na memória. Esquecê-las-ia daí a pouco. Deixou-se continuar com a cara encostada ao vidro, daí a pouco seria a estação terminal e tinha de se levantar. O comboio avançou veloz no túnel escavado na terra e ele pensou no corpo do pai definitivamente parte da terra e nos bichos que o comeram.

Fechou depois os olhos até chegar à estação terminal. Saiu e dirigiu-se para as escadas rolantes. Faria a linha em sentido contrário. E quando estava já no outro lado, desatento, à espera do comboio, viu a rapariga bonita na plataforma donde tinha vindo, no cais terminal, num sítio onde ninguém espera, por não ter destino.

Abriu e fechou os olhos a pensar que a cara da rapariga desapareceria como ultimamente lhe acontecia. Aproximou-se, colocou os pés sobre a linha amarela que sinaliza o perigo, inclinou-se sem reparar que os outros passageiros o olhavam assustados. Mas quando olhou novamente a rapariga bonita não tinha desaparecido, continuava do outro lado, o que faria ali sem ninguém, estavam separados pelas linhas electrificadas, um fosso da morte que dispensava o monstro que nas fábulas guardava a princesa. Acenou, a rapariga sorriu, tinha-o reconhecido, era a rapariga bonita que ali estava.

Avançou para depois da linha amarela. Estava como à beira do precipício, se perdesse a consciência caía na morte como a catequista nas fundações, gritou, espera por mim, mas um apito anunciou o comboio que chegava, a rapariga riu-se, de que se riem as mulheres, as mulheres riem-se de coisas sérias, da proximidade da morte. Ele correu empurrando os que se cruzavam com ele. Era uma urgência, a rapariga bonita esperava-o do outro lado, no cais terminal, agora tinha a certeza de que ela seria dele, cairiam nos braços um do outro como nos filmes, seriam felizes para sempre quando aparecesse o fim, subiu as escadas, correu, quando atingiu o outro lado o comboio dele tinha partido, enfiara-se terra adentro e não viu ninguém. Andou até ao fim do cais ainda com esperança, mas não a encontrou. Pensou, foi ter comigo ao outro lado, correu para mim, recomeçou a andar, primeiro apenas com pressa e depois novamente a correr, batendo nuns e noutros, nem sequer olhava, está à minha espera do outro lado, também ela correu para mim.

Novamente do outro lado, um polícia mandou-o parar. Ele arfava. Por favor, ando à procura de uma pessoa, não disse há quanto tempo, quantos dias, o polícia certamente não percebeu, não pode correr

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assim, os passageiros desviavam-se, contornavam-nos, ele arfava, se o polícia o retivesse mais tempo atirá-lo-ia à linha, tenho que encontrar esta pessoa, é muito importante, o polícia largou-o mas já o tinha feito perder tanto tempo, recomeçou a correr, correu muito, de um lado para o outro, ouviu mais um apito de comboio, já não sabia de que lado, em que cais a rapariga bonita o esperava, do comboio recém-chegado saíram muitas pessoas que encheram o cais, não conseguia andar, o coração saltava-lhe no peito, se pudesse empurrar toda a gente, se pudesse saltar a linha, viu o casaco dela, um casaco preto ao longe, era ela, afastou todos os que se interpunham entre eles, deixou de a ver, procurou os cabelos louros e o casaco preto, o mesmo polícia mandou-o parar, já o avisei, não pode andar aqui assim, está mesmo ali, fugiu do polícia, uma mulher disse, há cada doido, correu, a rapariga bonita tinha desaparecido, ela está à minha espera tenho que a encontrar, teria subido as escadas ou entrado no comboio, esperava-o mas não sabia onde, subiu e desceu as escadas, percorreu a estação, parou quando já não conseguia respirar de tanto correr.

Não sabe quanto tempo ficou sentado de cabeça baixa no cais terminal. Quando levantou os olhos tornou a ver a rapariga bonita sentada do outro lado. Ele gritou mas a rapariga bonita parecia que não o ouvia. Viu-a levantar-se para entrar no comboio que chegava. Se pudesse parar tudo para lhe dizer que a procurava desde o dia em que a viu na praia, há muitos dias, se pudesse parar tudo, gritou desesperado mas o comboio afastou-se levando-a para dentro da terra.

O médico ainda é novo e tem um aspecto saudável. Aponta tudo o que a ex-mulher diz. Às vezes repete para ver se percebeu correctamente. Como agora. Foram casados e divorciaram-se porque não eram felizes, é assim. Sim. O médico olha-a incrédulo. Não há mais razões? Não. Divorciaram-se porque não eram felizes. A ex-mulher responde, não acha que basta? O médico fica calado. Pensa se é feliz. Mas volta ao interrogatório. Depois de se divorciarem mantiveram um relacionamento estranho, continuaram muito próximos. A ex-mulher pergunta se pode fumar. O médico diz que não. Justifica-se: sofre de asma e na primavera é bem pior. A ex-mulher esfrega as mãos que estão frias e diz, que pena. Depois olha muito séria para o médico que repete a pergunta. Finalmente responde, era uma relação sem nada de especial, ajudava-o porque tinha pena dele e mesmo assim vivia naquela pensão, conhece a pensão? O médico acena negativamente, ainda é novo e tem um aspecto saudável, ninguém diria que é asmático, que tem medo da primavera, que se não tomar medicamentos sofre muito e pode morrer, ninguém diria. A ex-mulher continua, se não o ajudasse tinha

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ido parar à rua e apesar de tudo não queria ter um vagabundo como ex-marido.

O médico anota. Continua a pensar se é feliz e como poderá sabê-lo. Os sintomas da infelicidade são inespecíficos, não diagnosticáveis. É agressivo, considera-o agressivo? A ex-mulher responde prontamente que não. No entanto matou de forma violenta, tem a certeza que nunca percebeu que era uma pessoa desequilibrada, doente? A ex-mulher fica calada. Observa atentamente a secretária do médico. Procura um sinal que lhe diga se pode confiar nele mas não o encontra. Por isso mente e não conta o último encontro, não diz que esteve à beira de se perder com ele. Diz, nunca lhe vi um gesto violento, sempre o achei cobarde, nunca me foi ver ao hospital porque tinha medo do sangue, não saía de casa porque tinha vergonha das vizinhas, tinha medo e vergonha de tudo, sinceramente não percebo, não o posso ajudar porque não percebo.

O médico escreve as palavras da ex-mulher em folhas finas de papel branco. O bico da caneta arranha o papel e as letras aparecem miúdas em filas que sobem e descem. Tem uma letra bonita e legível. Conhecia a vítima? Nunca a tinha visto. O médico olha-a e diz, penso que eram amantes. A ex-mulher sobressalta-se, pensa que o médico a quer apanhar. Amantes, nós? O médico sossega-a, ele e a vítima. Ah, responde aliviada, não faço ideia, do crime só sei o que li nos jornais e dizem que sim. O médico faz mais perguntas a que a ex-mulher responde sem questionar ou acrescentar o que quer que seja ao que lhe é perguntado. Conta a verdade apesar de saber que a verdade se apresenta de várias formas. Escolhe a verdade dela, a que lhe convém. O médico sorri de vez em quando. Cumpre o seu trabalho. Ainda é novo e tem um aspecto saudável.

Mas é asmático e a ex-mulher lamenta não poder fumar um cigarro.

A ex-mulher sente-se mais segura quando pensa que o médico não a pode interrogar sobre os pensamentos maus que se lhe colam à pele, sobre a dor que esses pensamentos lhe provocam. No entanto inquieta-se quando pensa que o médico pode perguntar o que sente por ele, que tipo de sentimento os unia, todos consideram os sentimentos tipificáveis. Se o médico perguntar a ex-mulher sabe que tem que dizer qualquer coisa muito diferente da verdade porque o médico nunca poderá compreender o pacto deles. Ninguém pode compreender. Escolhe as palavras que não pode dizer. Precisávamos um do outro para nos enganarmos. Sobrevivemos ao bairro e os sobreviventes nunca são boas pessoas porque apesar de tudo sobreviveram. Uma boa pessoa sucumbe se vê coisas terríveis. Ele nunca me amou, eu nunca o amei. Ele amou-me e eu amei-o. Somos dois casos perdidos. Precisávamos um do outro para fingir coisas diferentes. A ex-mulher escolhe o que não dirá em circunstância alguma, mas o médico não lhe perguntará o que sente por ele porque

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diz que não precisa de mais nada, por enquanto não preciso de mais nada.

A ex-mulher diz que sempre soube que ele acabaria mal, mas não assim. Depois pede para o ver. Justifica-se, preciso de me despedir dele para me esquecer desta história má. O médico cala-se, avalia o motivo, é um bom motivo, por isso autoriza a visita, cinco minutos no máximo, os outros doentes sobressaltam-se quando vêem estranhos. A ex-mulher agradece e sai. O médico ainda pensa se é feliz e como poderá sabê-lo.

Esperava por Eva num café. Estava impaciente e batia ritmadamente com os dedos no tampo da mesa. Podia incomodar as outras pessoas mas chovia ininterruptamente há quatro dias e as pessoas só reparavam na chuva. Ele e Eva já não se viam há mais de um mês e Eva atrasava-se como de costume. Tentou acalmar-se olhando para a chuva que batia no vidro tocada pelo vento. A chuva era feita de muitas gotas redondas que perdiam rapidamente a forma e escorregavam pelo vidro num risco. Riscos de água no vidro. Eva devia estar presa no trânsito mas por uma vez ele não podia esperar o tempo que fosse preciso. Um carro buzinou a um homem que atravessava a estrada. Uma mulher abrigou-se na entrada de uma loja olhando desesperada para a chuva. Outra protegeu o filho apertando-lhe o casaco grosso e puxando o carapuço, a criança reclamou porque a lã lhe arranhava a pele. Nos dias de chuva as pessoas eram mais bonitas e vistas de dentro do café eram peixes num aquário.

Eva finalmente apareceu. Trazia um casaco cinzento que combinava com o dia. Cheirava a perfume caro e a tabaco. Cumprimentou-o de forma discreta e pediu um chá de limão.

Continuavam a portar-se como amantes. Quando se sentou Eva tirou as luvas puxando pelos dedos devagar. Fez exactamente o mesmo gesto do último dia no bairro, quando se preparavam para entregar a chave da casa deles. As luvas não eram deste cabedal fino, eram de lã grossa e ficaram pousadas sobre o caixote. Ele guardou-as sem saber o que fazer com elas. As mãos de Eva continuavam iguais, mãos magras de cera, ainda mais falsas por causa do pequeno diamante. Eva deixou as mãos pousadas sobre a mesa do café. Ainda olharam um para o outro mas fugiram rapidamente do encontro dos olhos. Não podiam arriscar que os olhos os denunciassem.

Eva finalmente falou, os lábios de romã, a voz pausada, as palavras soletradas, atrasei-me por causa da chuva, não gosto nada destes dias, são horríveis, já viste há quantos dias chove sem parar? E nas notícias dizem que vai continuar, um mês inteiro de chuva. Eu não me importo, se calhar até gosto destes dias, respondeu ele, gosto menos dos dias limpos, do céu muito azul. Eva respondeu-lhe como se não o tivesse ouvido, esta manhã fui nadar, faz-me bem nadar, ele continuou sem lhe responder, apontou para a rua, já estão a enfeitar

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tudo para o natal, põem as luzes cada vez mais cedo, Eva insistiu, não por entusiasmo nem por desprezo, era apenas o privilégio de se conheceram há tanto tempo, de serem tão próximos, estive a boiar, o tecto da piscina é transparente, quando me deito na água vejo o céu, parece que estou dentro das nuvens, um pássaro parado no céu, ele disse, este ano puseram estrelas e asas de anjos, no ano passado foram sinos, acho que gostava mais dos sinos, Eva interrompeu-o, se pudesse passar os dias dentro de água, ou então devíamos poder voar, ou pelo menos bastava elevarmo-nos um pouco da terra, levantar os pés do chão para deixarmos de sentir o peso do corpo, nunca sonhaste que voavas, quase nunca me lembro dos sonhos, eu sonho tantas vezes que estou a voar, deve querer dizer alguma coisa, por exemplo, calou-se porque nunca dizia o nome do marido, se não o nomeasse ele não existia entre eles e não se pode trair quem não existe, generalizou, sei de quem nunca tivesse sonhado que voava, aliás há pessoas que quase não sonham, deve ser tão chato, dormem apenas, é estranho, não é?

Percebeu que o marido de Eva não sonhava, era um homem prático, foi assim que Eva o definiu quando o conheceu no hospital, estavam a jantar e Eva disse, hoje foi lá ao hospital um homem vender equipamento, máquinas, calhei a falar com ele, e sabes é a pessoa mais prática que já conheci, nunca tinha conhecido ninguém assim, ele pensou o que seria uma pessoa prática, óculos pendurados na corrente, sacos plásticos, o comando à distância, tudo isto são objectos práticos, mas um homem mais prático não conseguia imaginar o que fosse apesar de Eva garantir que tinha conhecido, naquela noite enquanto jantavam Eva não adivinhava que se casaria pouco depois com o homem prático, que viveriam na casa grande junto ao mar, mais tarde Eva disse, foi mais prático assim, e ele concordou.

Eva continuou a falar de água, que precisava muito de água mas não desta maldita chuva, deve ser por causa do signo, nunca conheci Peixes que gostassem de chuva, ele ouvia-a, Eva continuava, detesto o frio, sou tão infeliz nestes dias, eu não me importo, as pessoas ficam mais bonitas, há uma higiene no frio que me agrada, uma higiene, as pessoas cheiram menos mal, transpiram menos, tapam-se mais, agrada-me a decência do frio, dizes cada coisa mais disparatada, higiene e decência no frio, eu só vejo pessoas exasperadas, não sei que beleza podes ver nestas pessoas tão incomodadas, acendeu um cigarro e expirou rapidamente o fumo, não devia ter vindo, ando sem paciência, ainda pensei em desmarcar mas já não te vejo há tanto tempo, não sabia nada de ti, estes dias põem-me doida, se pudesse ficava na cama até, não tens nada para me contar?

Ele só queria ir-se embora mas era a única coisa que não lhe podia dizer, nunca lhe tinha falado da rapariga bonita que o esperava, falou-lhe da pensão, para Eva tinha inventado que a senhoria era uma

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viúva de um almirante entrevada que ele acompanhava de vez em quando ao médico, a viúva entrevada tinha um único filho que vivia no estrangeiro, tinha inventado esta verdade só para Eva que o ouvia desatenta, da pensão sabia pouco mais que o número de telefone, nunca tinha lá ido, não corriam riscos desnecessários, Eva nunca poderia avaliar o trabalho que ele tinha ao inventar uma verdade para cada pessoa, a calma que era necessária, o controlo, a memória, ele tinha sempre que esperar pelo que precisava de ser dito, nunca se podia antecipar, era um jogo, a carta que sai determina a jogada seguinte, tudo dependia do que Eva perguntasse, cumpria as regras apesar de Eva o ouvir sem dar importância aos pormenores, aos pequenos detalhes, o mais difícil, o que é inventado tem de ser rigorosamente certo até ao fim, um pequeno erro estraga o trabalho todo, só a vida se permite errar, Eva não podia avaliar o trabalho de se inventar uma vida lógica e rigorosamente certa para cada pessoa, um jogo difícil mesmo se as cartas estão marcadas, viciadas, era por isso que não descurava um pormenor apesar do desinteresse de Eva, falava da pensão quando Eva o interrompeu para lhe dizer que o achava estranho, um pressentimento que a incomodava, ele tossiu atrapalhado porque receou que Eva soubesse tudo.

Eva podia estar a dar-lhe uma oportunidade, conta-me o que quiseres que eu faço de conta que acredito, fala-me na tal rapariga desde que não me magoes, podia estar a dar-lhe tempo de construir com os factos outra verdade, sabia o que Eva aceitaria, tinha de contar a sua nova vida de forma a agradar Eva, tudo dependia de como construísse a história, tinha que omitir factos, por exemplo, que procurou desesperadamente a rapariga bonita todos os dias, tinha que omitir tudo o que desagradasse Eva, inventar outra verdade que Eva aceitasse, mas acima de tudo queria ir-se embora, tinha quem o esperasse e uma verdade demora sempre algum tempo a ser inventada, tinha deixado de ter tempo, foi por isso que deixou Eva com a verdade antiga, quando se conta uma verdade nova tem de se corrigir tudo o que fica para trás, precisava de tempo, sabia que Eva queria que ele existisse sem ninguém, gostava de lhe poder perguntar, há quanto tempo não tens ninguém, por isso tinha de ser cauteloso, Eva podia reagir mal e ele precisava daquela vida específica, precisava do cartão de crédito que lhe permitia aquela vida. Eva zangara-se com ele quando aceitou o pedido de casamento do homem mais prático que tinha conhecido, disse-lhe, sei que estás farto de mim, que nunca me amaste mas penso que é uma limitação tua, com o tempo conseguirei apurar a verdade e se assim for perdoo-te, se descobrir que me enganaste sou capaz de te matar, olha que estou a falar a sério, ele aceitou a limitação que Eva lhe impôs, se Eva queria um caso perdido ele era capaz de o ser, a única coisa que conseguia fazer era ser o que os outros queriam que fosse, e Eva não podia saber de nada, mas de repente lembrou-se que a mãe podia ter comentado com a tia de Eva que o filho se ia casar, e a

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tia podia ter dito a Eva, assustou-se, tinha sido imprudente, tinha-se deixado levar pelo entusiasmo de ser o que a mãe queria, sempre tinha seguido a regra de nunca se aproximar de um facto que se podia tornar verdadeiro, talvez Eva soubesse de tudo e apenas esperasse a oportunidade de se vingar, de lhe chamar miserável, talvez Eva só se quisesse vingar, se descubro que me enganaste sou capaz de te matar, queria ir ter com a rapariga bonita, se tivesse tempo podia inventar outra verdade para Eva, se tivesse tempo.

E se estivesse quase a perder Eva para sempre, se ao menos tivesse lido a carta que Eva lhe escreveu em vez de a deitar no caixote do lixo, Eva insistia, estás tão estranho, devia ter lido a carta, teria percebido a desconfiança, convenceu-se que a carta era uma forma de Eva lhe dar tempo para que ele lhe mentisse convenientemente, um jogo que se joga a dois, talvez Eva, o medo aflorou-lhe aos olhos, um olhar infeliz posto sobre a mesa do café que fez com que Eva dissesse, olha como andas mal agasalhado, ainda apanhas uma gripe, vê-se mesmo que não tens quem cuide de ti.

Sacudiu da toalha o medo que os olhos estenderam sobre a mesa, Eva olhava-o como dantes, preocupava-se com uma gripe, de certeza que a mãe não tinha falado com a tia, a tia não tinha falado com Eva, de qualquer maneira tinha sido estupidamente imprudente, tinha-se aproximado demasiado da verdade, quando visitou a mãe procurava a rapariga bonita, era uma questão de tempo, um inventor de factos deve precaver-se dos factos que se podem tornar verdadeiros, tinha corrido perigo desnecessariamente, as vidas dele dependiam apenas do momento certo onde parava, nas vidas dele não existia a morte, o único limite era apenas o momento certo de parar, um vício controlado, enquanto se controlasse tudo correria bem, nunca seria descoberto, sou muito bom naquilo que faço, imaginou-se a dizer à mãe, sou alguém na vida, como a mãe quis, é preciso inventar tudo muito bem para que a voz nunca falhe, é um trabalho árduo fazer com que todos os factos coincidam, um trabalho minucioso que não admite erros, um trapezista sem rede, o perigo estava em todo o lado, em qualquer pessoa, a memória dos outros era um perigo sério, a argúcia outro, isto para não falar no acaso que nunca se pode controlar, Eva estava diante de si e olhava-o como dantes, ainda não sabia, continuava a acreditar na verdade que ele lhe tinha oferecido, a mãe acreditava noutra, a senhoria noutra, cada pessoa que se cruzava com ele podia contar com uma verdade feita à sua medida, haverá melhor forma de amar, apesar de tudo sempre a voz de Eva, és um caso perdido, haverá maior manifestação de amor do que a de não confrontar o ser amado com uma verdade que não deseja, se assim não fosse Eva daqui a pouco não partiria descansada para a casa grande perto do mar, não se sentaria na sala da casa grande a admirar a piscina, apesar de estar tapada com plástico por ser inverno, a descansar os olhos no aquário que vai de um lado ao outro da parede, se assim não fosse Eva não partiria descansada para

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os três níveis de água que considerava essenciais, sou Peixes, preciso de água para demolhar o coração, Eva era injusta quando o acusava de ser um caso perdido, desconhecia-o profundamente, ele era tudo o que os outros quisessem, quase nada nele era essencial ao contrário de Eva que ainda deixa a luz acesa no quarto da casa grande, Eva continua com medo do escuro, ninguém muda convence-te, é o que Eva lhe diz, realmente não mudou, ou então só os seus medos e as suas angústias é que são definitivos, tão definitivos que nem parecem verdadeiros, a verdade pode mudar de segundo a segundo mas a mentira possui artificiosamente o dom da eternidade, se Eva lhe pedisse para ir dormir com ela, como o fez na noite do corte geral de electricidade, não seriam capazes de sentir o mesmo, no entanto o medo do escuro ainda seria igual ao dessa noite, eles também, aquela noite tinha existido de verdade, mas a verdade muda, não foram felizes depois dessa noite mas Eva convenceu-se que sim, fomos felizes nos primeiros tempos, afirma, e é só nisso que quer acreditar, às vezes desculpa-se, a felicidade nunca é o que se imagina, fomos felizes só que a felicidade não se descreve, não se toca, não se vê, claro que se esquece dos pequenos gestos em que a felicidade tem por hábito denunciar-se, flores compradas num sábado de manhã, uma caixa de bolos presa por um cordel no domingo à tarde, nunca fizeram isso, não foram felizes nem na pequena medida com que a felicidade contenta os que dela precisam, apesar de Eva dizer que sim, se calhar por se ter esforçado muito. Eva esforçou-se muito em tudo, trabalhava de noite e de dia, ele andou por muitos empregos mas a maior parte do tempo esteve em casa, fechava as janelas e deixava-se lá ficar protegido dos outros, por ingenuidade pensava que os podia enganar desta maneira, ainda era um aprendiz da arte que veio a ter, ter outras vidas é um trabalho que exige experiência, quando saía à rua as vizinhas cochichavam, não faz nada, nunca vi tanta preguiça, a coitadinha merecia bem melhor mas quem corre por gosto não cansa, o dono do café olhava-o enojado, um homem não se deixa sustentar pela mulher, foi o agouro dos olhos da mãe que os perdeu, no tempo que passava em casa podia ter feito o jantar, ter escrito amo-te no armário da casa de banho, ter comprado um ramo de flores, podia ter feito tantas coisas que aliviassem o cansaço de Eva, que a compensassem da má escolha, mas deixava-se sempre ficar a ver televisão, deitava-se no sofá e lia revistas aos quadradinhos, comia bolachas de água e sal, Eva apesar de tudo enternecia-se, pareces um miúdo, nunca soube que ele se demorava a tomar banho, a barbear-se, detinha-se em qualquer coisa, conhecia perfeitamente os passos dos vizinhos de cima, sabia a quem correspondiam, à mãe, ao pai, a cada um dos três filhos, é difícil reconhecer os passos de cinco pessoas, são precisos muitos dias atentos, e depois havia outras coisas, por exemplo, as nódoas na alcatifa, ordenava-as por tamanhos, antiguidade e origem, também sabia as horas a que o sol batia na jarra de vidro martelado, dias

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inteiros fechado à espera que Eva voltasse do hospital, nunca a foi esperar, as minhas colegas pensam que tu não existes, à noite enquanto Eva consertava ossos nas casas das vizinhas ele ia para o café, voltava depois de Eva ter adormecido, deitava-se e incomodava-se com o hálito de Eva que lhe perguntava as horas, com o corpo quente que se enroscava no seu, o cabelo farto que lhe fazia comichão onde quer que tocasse, ainda havia as chinelinhas de seda que Eva deixava ao lado da cama e que o faziam tropeçar e ficar irritado, as mãos de Eva que se lhe agarravam às costas, polvos, não queria estar ali mas também não sabia para onde ir.

Eva exigia-lhe tão pouco que foi fácil deixar-se ficar até que Eva conheceu o homem mais prático do mundo e se foi embora, as mesmas vizinhas que a lamentavam acusaram-na, o que ela quer é luxos, ele concordava, precisa de um homem rico, ainda hoje o diz à mãe nas raras vezes em que se encontram, Eva sempre o defendeu, apesar de se ter cansado de lutar pelos dois sempre o defendeu, durante muito tempo julguei que o meu amor era suficiente para compensar a falta do teu, foi o que Eva lhe disse quando se foi embora, ele aborrecia-se daquele amor tão exagerado, quase uma doença, para os salvar, algum tempo antes, Eva desejou uma criança, um amor tão exagerado, quase uma doença, nunca teve coragem de lhe dizer que não tinha qualquer interesse em dar a vida a alguém, não era generoso nem sequer vaidoso, além disso não gostava de ver as mulheres tão inchadas de vida, mas para os salvar Eva, generosa, dispôs-se a ter um filho, um amor tão exagerado, quase uma doença, durante algum tempo olhou esperançada para as montras das roupinhas pequenas, as fotografias de bochechas desdentadas, durante algum tempo olhou esperançada mas ele concentrou-se numa vontade tão forte que matou qualquer esperança, nunca lhe disse que não a queria mãe, que o aborrecia aquele amor tão exagerado, que não se deixava salvar assim tão facilmente, assim dito podia parecer tão cobarde e tão cruel, mas a verdade é que se orgulhava dessa vontade que venceu Eva, vacilou uma vez e quase aconteceu, Eva ficou tão feliz com o resultado do teste que compraram na farmácia, as gotas de urina inequivocamente azuis, firmou a vontade e passado uns dias Eva encheu-se de sangue, depois de ter derramado o filho que tanto queria, foi depois deste acidente que Eva chorou por estar quase morta e desistiu de os salvar, uma morta não pode salvar ninguém, culpava-se porque o corpo dela não queria acolher outra vida, dizia que não descansava o suficiente, que tinha qualquer defeito, depois do acidente Eva aceitou pacificamente a sua condição de imprestável e tornou-se perfeita aos olhos dele, se tivesse elogiado essa forma de perfeição talvez Eva tivesse voltado a querer salvá-los, não tivesse aceitado o pedido de casamento do homem mais prático do mundo.

Depois de ter dito várias vezes que tinha que se ir embora, como sempre fazia, Eva finalmente partiu para a casa grande longe de tudo

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e perto do mar. Ele saiu do café apressado, se se despachasse ainda podia ir com a rapariga bonita ao cinema, tinham combinado encontrarem-se perto da pensão mas talvez ainda fossem a tempo do cinema, a rapariga bonita gostava de histórias de amor, queria fazer-lhe uma surpresa, se se despachasse ainda tinha tempo de comprar uma dúzia de rosas vermelhas para lhe oferecer, desatou a correr sem pensar que um amor tão exagerado, quase uma doença, podia ter chegado a vez dele, todos têm a sua vez por muitas vidas que tenham, mais tarde ou mais cedo, um amor tão exagerado, quase uma doença, torna-se fatal.

O mesmo funcionário regressa com a ex-mulher à sala. Pede à mãe que o acompanhe. A ex-mulher senta-se no banco de madeira. Acende um cigarro e prepara-se para esperar que o funcionário a leve até ele. O médico não lhe disse quando é que o podia ver, disse-lhe apenas que o podia ver e que ainda podia precisar dela.

A ex-mulher não foi sincera nas declarações que prestou. A maior parte das vezes a verdade é incompreensível e por isso desnecessária. O médico nunca a compreenderia. A ex-mulher nunca teve medo da primavera e também não compreende o medo do médico. A ex-mulher apaga o cigarro e esfrega as mãos que estão frias.

A mãe levanta-se para acompanhar o funcionário e guarda o rosário na carteira de cabedal muito lustroso. A senhoria retoca os lábios com a ponta dos dedos gordos. A rapariga dorme com as mãos sobre a barriga. A luz coada do saguão esconde a figura magra da mãe que abandona a sala, no corredor a mãe é uma sombra projectada na parede que acompanha naturalmente o funcionário. Atravessam, funcionário e sombra, corredores que vão dar a outros corredores.

Os corredores têm muitas portas, mas a mãe não se detém em nenhuma, não espreita para nenhuma. Avança sempre. O funcionário olha-a com compaixão. É a mãe, o que sentirá uma mãe depois do filho ter feito o que fez, depois do filho ter ficado assim, pensa o funcionário. O que sente uma mãe?

A mãe avança pelo último corredor, acompanha o funcionário. Apesar de só ver o filho duas vezes por ano, senta-se em frente ao médico para falar de um estranho. Mas ainda assim ninguém pode deixar de sentir compaixão por esta mãe. O médico também não.

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Não vos lembreis mais dos acontecimentos passadosnão presteis atenção às coisas antigas.Eis que vou realizar uma obra nova,a qual já começa -. Não a vedes?Vou abrir um caminho no deserto,e fazer correr rios na estepe.Is. 43, 18-19.

Portavam-se como apaixonados. Andavam abraçados na rua. Beijavam-se. Riam-se de tudo. Não achavam nada de que não gostassem. Falavam ao mesmo tempo e forçavam coincidências. Quando se deitavam provocavam o desejo com medo de adormecerem sem se terem amado. Quando isso acontecesse a ilusão desfazia-se e a verdade apareceria intolerável. Seriam apenas dois corpos que não sabiam o que faziam ao lado um do outro.

Metia uma moeda e carregava nos botões da máquina, comandando os ganchos metálicos de forma a apanhar o boneco que a rapariga bonita queria, um cão com a cauda verde-alface. A rapariga bonita tinha-o escolhido no meio de ursos, coelhos, quero aquele cão de rabo verde, aquele ali, ele esforçava-se para apanhá-lo com os três ganchos metálicos, carregava no botão, aproximava as garras do boneco, a rapariga bonita estava pendurada no braço dele o que lhe dificultava os movimentos, podia mandá-la afastar-se mas não o fez, tinha medo que ela desaparecesse outra vez como quando a via em todo o lado. A máquina parou e os ganchos metálicos desceram e elevaram-se, o cão da cauda verde-alface tinha escapado.

- Fica para a próxima. Vamos embora. - Disse a rapariga bonita que tremia de frio.

- Só mais uma moeda. Se não conseguir desta, desisto, prometo que desisto.

- Gostas mesmo de mim? - A voz mimada, a respiração no pescoço a fazer-lhe cócegas.- Gostas assim tanto de mim?

- Desde o primeiro dia em que te vi - pôs uma moeda na máquina e as garras de metal recomeçaram a trabalhar -, desde que te vi na praia.

Esforçava-se mas não conseguia prender o cão e içá-lo. Afastaram-se da máquina dos bonecos e abraçaram-se. A rapariga bonita não lhe tornou a dizer que nunca tinha ido à praia de que ele falava. Já se tinha cansado de o dizer e convenceu-se que não faria diferença ter ido ou não à tal praia de que ele falava.

- Aonde vamos?- A um lado qualquer. Estou bem desde que estejas ao pé de

mim.

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Tinha copiado esta resposta de Eva, repetia as palavras que Eva lhe costumava dizer, estou sempre bem desde que estejas ao pé de mim, a rapariga bonita ouvia-o sem saber da existência de Eva, tremia de frio, entraram numa avenida muito enfeitada de natal, os troncos das árvores estavam rodeados de luzinhas, as copas de estrelas, de um lado ao outro da avenida anjos enormes com cornetas, era quase assustador tanto natal, as montras das lojas estavam decoradas de muitas maneiras, havia neve artificial no chão das montras, a rapariga bonita tremia de frio apesar do casaco forte e das botas de camurça clarinhas que ele lhe tinha oferecido, os empregados de um café andavam às voltas com um pinheirinho plástico que tinha caído ao chão, a caixinha forrada de papel prateado com votos de feliz natal e bom ano novo tinha vertido as moedas todas pelo chão, espreitaram para o café e continuaram a andar, ele não lhe largava a mão, quando não a abraçava agarrava-lhe a mão com força, continuava com medo que desaparecesse, tinha demorado tanto a encontrá-la, a rapariga bonita parou em frente a uma montra.

- Queres alguma coisa? - perguntou ansioso. - Escolhe o que quiseres.

A rapariga bonita continuou indecisa enquanto ele esperava ansioso. Abanou a cabeça e disse que não queria nada, estava cansada e queria dormir um bocado, ele olhou-a desiludido, queria sempre que ela quisesse coisas, não se lembrava do enfado com que recebia os presentes de Eva, a rapariga bonita insistiu que queria dormir.

- Não podemos ir já para a pensão - disse contrariado. - Não podemos ir já para a pensão porque a senhoria...

A rapariga bonita fez sinal que compreendia, não se mostrou zangada, seguiu-o, continuaram abraçados, riram-se, paravam nas montras, atrapalha-vam as pessoas que andavam apressadas cheias de embrulhos de natal, ouviram uma velha dizer, esta época é um inferno, um verdadeiro inferno, riram-se muito, ele não estranhava rir-se tanto de nada, caminharem assim tão abraçados, parecia-lhe que tinha sido sempre assim, toda a sua vida se rira abraçado à rapariga bonita, o rapaz que passava as tardes no muro tinha desaparecido, o homem que se tinha casado com Eva também, toda a sua vida se rira abraçado à rapariga bonita, tinha sido sempre assim e nunca mais pararia de se rir nem de caminhar abraçado, não temia a voracidade deste estado feliz, não receava nunca ser saciado, caminhavam abraçados e o mundo era perfeito como nunca fora.

Pararam numa montra de uma ourivesaria. A rapariga bonita disse que precisava de uma figa em ouro contra o mau-olhado, tinha perdido a que a mãe lhe dera pouco antes de o conhecer. Ele ficou contente por lhe poder oferecer mais uma coisa. A rapariga bonita explicou-lhe que a figa de ouro a protegia contra a maldade do mundo e que ele também devia comprar uma, que todas as pessoas

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precisam de se proteger do mal. Ele disse-lhe que tinha prazer em lhe oferecer tudo o que ela quisesse mas que não costumava usar nada. Quando entraram na ourivesaria pediu à rapariga bonita que comprasse também uma corrente para o tornozelo e um coração igual ao que tinha. A rapariga bonita surpreendeu-se, nunca tinha usado pulseiras no pé, ele insistiu, compra uma igual à que tinhas quando te conheci na praia. A rapariga bonita encolheu os ombros e mais uma vez não o contrariou, não lhe disse que nunca tinha ido à praia de que ele tanto falava, nunca tinha usado pulseiras no tornozelo, ele devia estar a confundi-la com outra pessoa, se não tivesse receio que ele se fosse embora ter-lhe-ia dito, mas gostava dos dias que passavam juntos, de ser tão desejada, no início tinha tentado dizer-lhe mas ele não a quis ouvir, claro que podia ter insistido, podia ter pedido para que ele olhasse bem para ela, vês como não sou a tal rapariga, há sempre maneira de dizer o que se quer, mas gostava dos dias que passavam juntos e pensou que também não haveria grande diferença, se ele se sentia tão bem ser ela ou a tal rapariga da praia era a mesma coisa. De resto, existiam tantas outras coisas que a rapariga bonita não percebia na vida dele que a referência constante a um dia de praia, ou a um corte no pé, era só mais uma dessas coisas, uma rapariga e um dia de praia não podiam encerrar nada de tão grave.

Compraram a figa em ouro, uma pulseira em prata para o tornozelo e o coração. Ele pagou com um dos cheques que Eva lhe tinha dado para usar em caso de emergência enquanto estivesse no estrangeiro. Foi a primeira vez que ele utilizou um desses cheques, mas qualquer desejo da rapariga bonita era para ele mais do que um caso de emergência. Quando saíram da ourivesaria, a rapariga pediu-lhe para colocar a figa no cordão que trazia ao pescoço e as mãos dele tremiam tanto que quase não conseguia. Depois a rapariga bonita pôs no tornozelo, por cima da meia, a pulseira com o coração. Beijaram-se. A rapariga bonita ainda o censurou por não ter comprado uma figa para se proteger do mal mas depois começou a rir. Ele disse-lhe que enquanto a tivesse junto dele nada de mal lhe poderia acontecer. A rapariga bonita olhou-o muito séria e ofereceu-lhe o coração, mais uma vez, não tenho nada para te dar mas ofereço-te o meu coração, gostas tanto de mim que o meu coração é teu. Ele beijou-a e continuaram a andar abraçados pela avenida enfeitada de natal, ele não achava nenhuma conversa ridícula, nem sequer esta em que a rapariga bonita lhe ofereceu o coração.

Regressaram à pensão quando já o podiam fazer. Não se podiam afastar dos horários habituais, os olhos da senhoria obrigavam-nos a viverem de uma maneira decente, a senhoria não podia permitir que vadios como eles manchassem o nome da sua pensão, eles tinham aceitado, enquanto se mantivessem decentes a senhoria fechava os olhos e não queria saber de mais nada.

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A rapariga bonita não gostava de viver na pensão nem da senhoria. Queria convencê-lo a mudar-se para outro sítio, falar-lhe-ia nisso quando surgisse uma oportunidade, tinha pensado várias vezes na maneira de abordar o assunto, começaria assim, não tens medo de viver aqui, e depois dizia-lhe que tinha medo que o prédio caísse, tinha lido o aviso que estava afixado na porta do prédio, um dos hóspedes tinha-lhe dito que num prédio mais à frente ficaram duas famílias soterradas nos escombros, tinha que lhe fazer ver que era perigoso continuarem ali, não percebia como é que ele não tinha medo, a rapariga bonita tinha a conversa ensaiada mas estava à espera de uma oportunidade, o êxito de uma conversa depende acima de tudo das circunstâncias, a rapariga bonita não sabia dizer isto assim mas já tinha aprendido a lição com outros homens, pode-se dizer tudo desde que seja na melhor altura e da melhor forma.

Ao entrarem cruzaram-se com o rapaz do quarto andar que ralhava com os irmãos que brincavam às grutas com as paredes do prédio, cumprimen-taram-se rapidamente, subiram as escadas, os restos do menino continuavam a segurar no mundo no arranque do corrimão, a rapariga bonita não reparou nas baratas que se lhe atravessavam à frente, no corrimão solto, subia as escadas depressa para deixar de ouvir os gritos da criatura do segundo andar, de tudo o que a incomodava mais eram os gritos, já lhe tinha dito que aqueles gritos lhe faziam muita impressão, ficava toda arrepiada, nunca tinha ouvido ninguém gritar assim, ele acalmou-a dizendo que era uma pobre mulher que tinha enlouquecido, é completamente inofensiva, não sai de casa há mais de trinta anos, um dos hóspedes disse-me que tem um aspecto horrível, parece um animal, ele abanou a cabeça, o reformado adora contar histórias, de qualquer maneira a rapariga bonita subia sempre as escadas a correr, entraram na pensão e foi nesse momento que lhe perguntou quem era o rapaz que tinham visto à entrada.

Quando a rapariga bonita lhe perguntou quem era o rapaz ele sentiu um incómodo desconhecido no peito, na cabeça, até parecia que a criatura tinha começado a gritar mais alto, deu um murro na parede, cala-te sua desgraçada, como não conhecia o ciúme não identificou os sintomas, sentia-se mal, desesperado, enraivecido, respondeu tentando controlar o mal-estar, os pais ocuparam o quarto andar, são uns parasitas, os irmãos passam o dia a fazer buracos nas paredes, é gente que não interessa nada, apesar de se tentar controlar foi a primeira vez que lhe falou assim, a dor desconhecida fê-lo perder a doçura em que besuntava a língua sempre que lhe falava. A rapariga bonita reconheceu o ciúme que já tinha conhecido em outros homens e sentiu-se orgulhosa de o ter provocado, estava satisfeita, ainda bem que ele tinha medo de a perder, a rapariga bonita sentiu-se mais segura depois de ter reconhecido nele o ciúme que o desesperava.

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Quando ele a levou pela primeira vez à pensão apresentou-a à senhoria como sendo a namorada que lhe escrevia do estrangeiro, a senhoria olhou para a rapariga bonita e não acreditou, era muito nova e tinha mau aspecto, o cabelo despenteado, as unhas roídas, as roupas mal tratadas, uma pessoa com aquele aspecto não podia ter estado no estrangeiro, possivelmente nunca tinha entrado num avião, de certeza que nunca tinha visto os envelopes das cartas que chegavam à pensão, a senhoria nunca acreditou nele mas fingiu que sim porque precisava de dinheiro, se os pusesse na rua perdia a renda de dois quartos, ele ajudou-a, compôs uma história que agradou à senhoria, como se iam casar em breve a noiva tinha pedido uma licença no trabalho, e depois tinham tantas coisas a tratar que o melhor era ficarem os dois na mesma pensão, claro que em quartos separados, haverá melhor forma de amar o próximo do que lhe contar a verdade que ele quer ouvir, neste caso, haverá melhor forma de lidar com o próximo do que lhe dizer o que quer ouvir, ele ajudou a senhoria a aceitá-los, deixou que a senhoria pedisse uma quantia exagerada pelo quarto para em troca poder considerar a rapariga bonita uma noiva.

Na ausência deles a senhoria queixava-se ao reformado por ter que os aceitar, já reparou naqueles cabelos que nunca devem ter visto um pente, o reformado concordava, não deviam ser penteados há mais de um ano, e as roupas tão sujas, as saias tão compridas, ainda deve ser aciganada, é esquisito ser tão loura, mas olhe que há ciganas louras, só se forem mistas, a senhoria suspirava, além do dinheiro que lhe fazia muita falta precisava de pessoas na pensão, quantos mais lá vivessem mais difícil seria a demolição do prédio, o edital continuava afixado na entrada do prédio, já lhe tinha chovido em cima, os miúdos já lhe tinham rasgado um canto mas a ameaça mantinha-se afixada na entrada do prédio, quem não soubesse pensava que se tratava de um aviso sem importância que tinha envelhecido com o prédio, na ausência deles a senhoria queixava-se, limpava as mãos na bata e acalmava-se repetindo, a culpa fica com quem comete o pecado, a vida deles é lá com eles, são eles que hão-de prestar contas, às vezes acrescentava a pena da pobre coitada que lhe escrevia, se não lhe fez o mesmo é bem parva, mas já agora com uma coisinha melhor, cá se fazem cá se pagam, a papada da senhoria agitava-se e vomitava provérbios, depois esquecia-se deles porque tinha coisas mais importantes em que pensar, perguntava ao reformado, diga-me lá como é que hei-de arranjar dinheiro para as obras, se conseguir fazer umas obritas não deitavam o prédio abaixo, o reformado mirrava no robe, o dinheiro é a coisa mais difícil de arranjar, pensava, mas acabava sempre por dar o mesmo conselho, vá à televisão, nos concursos da televisão é que se ganha muito dinheiro, a senhoria entusiasmava-se, de facto era uma maneira fácil e rápida de ganhar dinheiro de forma honesta, mas viam um concurso e a senhoria ficava abatida, não conseguia responder às perguntas, o

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reformado dizia, este só trabalha com a sorte, não precisa de saber nada, a senhoria chorava, nunca tinha tido sorte, se tivesse sorte a câmara não tinha escolhido aquele prédio para demolir com tantos prédios velhos na cidade, se não tentar não pode saber, a senhoria afastava a ideia, também não quero fazer má figura na televisão, o reformado encolhia os ombros, olhe então não sei, muito dinheiro de repente só mesmo nos concursos da televisão, ainda um dia destes um rapazito ganhou tanto dinheiro que ia ficando maluco, a senhoria abanava a cabeça, a mim é que me fazia jeito, o que eu precisava desse dinheiro, calavam-se e continuavam em frente ao ecrã, viam as notícias, mas as mesmas notícias eram interpretadas de forma diferente e as reacções eram diferentes, por exemplo, neste caso o jornalista disse, mais casos de tuberculose, a senhoria comentou de imediato, se não tirassem as casas às pessoas não tinham tantos casos de tuberculose, o reformado ficou a pensar mais um pouco e depois, na última carta a minha filha contava que o marido anda com uma tosse esquisita, os casos de tuberculose não eram sentidos da mesma maneira, mas uma cidade destruída também não, a senhoria disse, veja lá se aqueles prédios não estão bem pior que o nosso e ninguém os quer deitar abaixo, o reformado sempre mais lento, os meus netos estão quase a ir para a tropa, a senhoria zangava-se com o reformado, só pensa nos seus netos, e aqueles não são netos de ninguém, o reformado calava-se amedrontado, nunca respondia à senhoria, continuavam em frente ao ecrã, viam as notícias apesar de raramente se entenderem na interpretação das mesmas, a senhoria relacionava tudo com o edital afixado na entrada do prédio, o reformado relacionava tudo com a família que tinha espalhada pelo mundo, claro que também não queria sair da pensão porque não era fácil encontrar outro quarto tão barato, mas era um problema secundário, a vida dele era feita pelos filhos que se tinham espalhado pelo mundo, só os dois é que viam as notícias porque o gordo chegava cada vez mais tarde, o negócio das cervejas também não corria bem, quando as notícias não tinham qualquer interesse a senhoria e o reformado voltavam ao assunto do dinheiro para as obras, da vadia, dos parasitas que ocuparam as casas, dos vários passados que recriavam conforme os dias, da forma de arranjar dinheiro, da vadia, as conversas entre eles eram circulares, falavam sempre nas mesmas coisas com o mesmo entusiasmo.

Até que num serão senhoria e reformado ouviram a mesma notícia, passou um caso na televisão e inesperadamente estavam ambos de acordo, foi assim que descobriram a maneira de salvar o prédio, tinham que denunciar o caso na televisão, era a única esperança, iam contar à televisão o risco que corriam, não só eles mas várias famílias, crianças inocentes que iriam ficar sem tecto, concordaram também que para a televisão não interessava dizer que eram clandestinos, e a pobrezinha do segundo andar?, o reformado e a senhoria chegaram a comover-se depois de pensarem bem na

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desgraça, demorou vários dias mas também chegaram a acordo na redacção da carta que escreveram para a televisão, o reformado ditou a sua confiança muito individualista na justiça, se não fizerem justiça num caso destes então é porque a própria justiça não existe, a senhoria estava mais habituada a rezar e implorou a intercessão de quem estivesse a ler esta carta, ambos se orgulhavam da carta, a senhoria ainda pediu aos parasitas que a assinassem também mas eles não quiseram, eram clandestinos e os clandestinos não assinam nada que os denuncie, a senhoria zangou-se mais uma vez com eles, nunca tinha sido clandestina e não conseguia compreender tão má vontade, não lhes custava nada assinar, foi então que a senhoria depositou a sua esperança toda na miséria do segundo andar, se filmassem a velha a apanhar a comida que lhe deixava na varanda, se filmassem a velha e não houvesse quem se comovesse o mundo estava definitivamente perdido e a senhoria podia morrer sem ter pena de o deixar.

Quando entrou na sala da televisão com a rapariga bonita, a senhoria e o reformado falavam outra vez da carta que tinham escrito para a televisão, a senhoria estava sempre a falar na carta porque ainda não tinha havido resposta, se calhar não a receberam, inquietava-se pela morada, o reformado sossegava-a, recebem muitas cartas e acontece sempre tanta coisa no mundo, não lhes falta trabalho, a senhoria tinha prometido que se obtivesse a graça mandava publicar no jornal uma oração à padroeira dos impossíveis, quando a senhoria os viu calou-se, não se podiam servir dois senhores, a senhoria temia que a vadia afastasse a padroeira dos impossíveis e consequentemente a televisão, se pudesse punha-a na rua mas por enquanto eram muito úteis, não era só pelo dinheiro, quando a televisão viesse filmar quantos mais vivessem no prédio melhor, por enquanto até me fazem jeito, pensava a senhoria para conseguir cumprimentá-los com um sorriso, o reformado quase não lhes falava, eram pessoas que não lhe interessavam, a senhoria fazia o favor de perguntar sempre pelo dia, ele respondia pelos dois, eu fui trabalhar como sempre e ela foi conhecer o novo centro comercial, fez muito bem, a senhoria dizia sempre fez muito bem, e calava-se, se eles não estivessem presentes teria voltado imediatamente ao seu assunto, gastam tanto dinheiro só este prédio desgraçado é que não tem direito a nada, não se podem servir dois senhores, ele e a rapariga bonita despediam-se, tinham que se deitar cedo, a senhoria e o reformado entreolhavam-se, não hão-de estar cansados com as noites que passam, a rapariga bonita não gostava de viver na pensão mas ainda não tinha encontrado uma oportunidade para lhe dizer, falavam muito pouco, esta noite dir-lhe-ia, e se fôssemos viver para outro sítio, a senhoria não gosta de nós, tenho medo dos gritos da velha de cima, o reformado é um ordinário, não gosto deste cheiro a podre, qualquer dia cheiramos nós a podre, esta noite a rapariga bonita tinha que arranjar maneira de lhe dizer que não queria viver

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mais ali, ele tinha que compreender que ninguém conseguia viver num sítio daqueles.

O médico recebe a mãe com simpatia. A mãe não agradece a simpatia apesar de a reconhecer. A mãe quer que o médico se despache, precisa de ir para casa jantar os flocos de aveia enquanto vê televisão. Há muito tempo que a única coisa que a mãe quer é repetir todos os dias os mesmos gestos até ao dia em que já não precise de os fazer. O médico não pode conhecer esta vontade da mãe.

A mãe começa por dizer que não pode ajudar em nada, não sabe o que aconteceu, nem percebe por que a chamaram, não vive com o filho há muitos anos, educou-o o melhor que pôde, ninguém a pode responsabilizar por nada.

O médico depois de a ouvir diz que precisa de lhe fazer umas perguntas. Poucas. A mãe parece entender a necessidade do médico de fazer perguntas. Fica à espera sem ouvir a chiadeira mansinha na respiração do médico.

O médico repete as perguntas que fez à ex-mulher, considera o seu filho uma pessoa agressiva, alguma vez reparou num comportamento mais estranho, a mãe nega tudo, sempre foi um rapaz normal, nem pior nem melhor do que os outros, sempre foi um rapaz normal. O médico insiste, qualquer coisa que se lembre de mais estranho, a mãe não se lembra, não se lembra de quase nada, nem do filho, nem dela, não sei o que estou aqui a fazer, diz.

O médico esforça-se por ser simpático, mas os olhos enevoados da mãe incomodam-no. A senhora está aqui porque o seu filho assassinou uma mulher. A mãe não tem qualquer reacção. Alguma vez lhe tinha falado nela?

Mais uma vez a mãe nega. Nem os jornais li, acrescenta. Não sei de nada. O médico ainda tem boa vontade, apesar de tudo é a mãe, aquela mulher é a mãe de um assassino que abriu o peito de uma mulher à facada, aquela mulher não pode ter um castigo maior. É só por isso que o médico é tão paciente. O seu filho poderá ter matado por ciúmes? A mãe fecha os olhos, responde, acredito que possa ter matado por o que quer que seja, mas ele deve ser julgado pela lei de Deus e não dos homens.

O médico não quer desistir da mãe porque tem a certeza que as mães conhecem os filhos que geram. Pede-lhe que aguarde na sala porque ainda pode precisar dela. Ainda tem esperança que a mãe fale com ele, que lhe conte o segredo daquele filho. A mãe aceita o pedido contrariada. Tem pressa e não tem nada a dizer mas fará o que lhe mandam, sempre fez o que lhe mandaram.

O médico escreve na sua letra bonita e legível, interrogar outra vez a mãe, e sorri para a velha que se afasta devagar. O corpo do médico enfrenta a primavera que existe lá fora.

Antes de fechar a porta, a mãe pergunta ao médico se tem filhos. Dois, responde o médico, com ternura, dois. A mãe diz, então quando

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lhe acontecer o mesmo a si verá que não tem nada para dizer, a única coisa que se tem é tanta vergonha que os olhos dos outros nos queimam, quando lhe acontecer o mesmo vai perceber que um filho pode ser um azar muito grande que ninguém consegue explicar.

Quando lhe acontecer o mesmo a si vai perceber, repete a mãe e depois fecha a porta com cuidado, afasta-se lentamente no corredor, o funcionário há-de apanhá-la mais à frente.

O médico pensa nos dois filhos que estão no colégio. A menina tem um aparelho nos dentes de leite e o rapaz óculos correctores. O médico protege-lhes assim o futuro, mas nunca tinha pensado que não existem apetrechos capazes de corrigir almas de assassinos e isso assusta-o.

Quando deixa de ouvir os passos da mãe, o médico só deseja que o dia acabe depressa, o corpo vai cedendo à primavera que existe lá fora, risca o que tinha escrito na sua letra bonita e legível, interrogar novamente a mãe, risca com muita força para se esquecer dos olhos agourentos da mãe.

Quando sentiu que todos se deitaram, foi ter com a rapariga bonita ao quarto sempre com cuidado para que não o ouvissem. Como não podia acender a luz guiou-se pelo tacto, na pensão todos sabiam que dormiam juntos, mas tinham que manter a decência da pensão, era esse o acordo, entrou no quarto, a rapariga bonita já tinha adormecido, deitou-se ao lado dela, passou-lhe a mão no cabelo, no escuro ainda sentia o mar mais próximo, o mar de quando a viu pela primeira vez, as ondas quebravam-se mansas na areia, a penugem dourada, os mamilos tesos cobertos pelo paninho cor de mel, acordou-a com um beijo, precisava dela, um amor tão exagerado, quase uma doença, a rapariga bonita deixou-se abraçar, ele colou o seu corpo ao calor do dela, gostou de lhe sentir o suor do sono, um desejo tão sôfrego, quase uma doença.

Depois de se terem amado, a rapariga bonita disse-lhe que no dia seguinte precisavam de conversar, ele assustou-se, era a primeira vez que a rapariga bonita dizia que precisavam de conversar no dia seguinte, diz-me hoje, a rapariga bonita tinha sono, queria dormir mas ele não a deixou, o que me queres dizer, estava muito inquieto, a rapariga bonita achou-o maçador, não gostava que não a deixassem dormir e foi isso que lhe espantou o sono e que a fez sentar na cama.

Começou, não é nada de especial, é sobre a pensão, há quanto tempo é que aqui estás. Ele não sabia ao certo, há algum tempo, bastante, a rapariga bonita continuou com a voz meiga, é tão desagradável o sítio, e as pessoas são tão más, sinceramente não percebo por que é que estás aqui. Ele não se lembrou de nada especial, nem sequer do insecticida, respondeu, calhou, a rapariga bonita tinha encontrado a oportunidade por que esperou, podia dizer-lhe tudo que ele não se zangaria, mas se estás aqui há tanto tempo deves saber porquê, ele continuou calado, não tens que aqui ficar

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pois não, a voz da rapariga bonita foi deixando de ser meiga ao mesmo tempo que sentia o medo dele, ele respondeu de forma segura, claro que não, posso mudar-me amanhã mesmo, a rapariga bonita ficou muito satisfeita, pensou, os homens são mesmo assim, deixam-se ficar nos sítios sem razão, para além disso tinha percebido que ele precisava mais dela do que ela dele, podia fazer o que quisesse enquanto isso acontecesse, ele começou a fazer planos, podiam mudar-se para outro sítio, um quarto de casal, a rapariga bonita acompanhou-o, os planos iam sendo cada vez mais ambiciosos, a rapariga bonita foi amolecendo naquele futuro tão bem encaminhado, o sono voltou, antes de adormecer disse-lhe que durante a semana tinha de ir visitar uns amigos e que por isso ficava uns dias fora, agora já lhe podia falar assim, tinha percebido que ele precisava mais dela do que ela dele.

Ele surpreendeu-se, amigos, a rapariga bonita respondeu naturalmente, sim, amigos, então também vou, quero ir sozinha, mas ele queria dizer-lhe que ela já não existia sozinha, eram apenas um, a rapariga bonita ainda se riu de tanto sobressalto, são dois dias, ele tinha tanto medo que ela desaparecesse de novo, é longe?, não, então posso ir contigo perfeitamente, como se a distância interessasse, como se não a seguisse até ao fim do mundo, a rapariga bonita tornou a dizer que queria ir sozinha, ele insistiu, vou contigo, era uma ordem, vou contigo, a rapariga bonita aborreceu-se, não vais nada, ele zangou-se, só se te vais encontrar com alguém que eu não possa saber, estava desconfiado, sofria, outra vez aquela dor no peito que o desesperava, a rapariga bonita divertia-se e zangava-se ao mesmo tempo, vou sozinha e tu pensa o que quiseres, ele não queria que isto estivesse a acontecer, era a primeira discussão que tinham, ele não queria nada que fosse diferente dos dias perfeitos que tinham passado, quem seriam os amigos, a rapariga abraçou-o, nunca conheci ninguém tão ciumento, ele rendeu-se, deixou-se ficar sobre o peito da rapariga, uma criança assustada a implorar para não ser deixada, ficas comigo para sempre, estava quase a chorar, a rapariga bonita sacudiu-o porque não gostava de homens tão fracos, mesmo assim acalmou a criança assustada com a brincadeira que costumavam ter, já te dei o meu coração, já não o posso dar a ninguém, mas estava farta de tanto amor, disse-lhe muito séria, se queres viver comigo tens que confiar em mim porque não gosto que me prendam, um pardal também morre se o aprisionam, sobrevive apenas na rua, ele concordou, não tinha outra alternativa, regressou aos planos, tinha que a manter acordada, não te afastes de mim nem que seja para dormir, a rapariga bonita olhou-o incrédula, amanhã começamos a procurar um sítio novo, por que não uma casa, uma casa a sério, a rapariga bonita entusiasmou-se, há muito que quero ter uma casa a sério, um tapete à entrada, um telefone, vamos ter telefone, não vamos, a rapariga bonita queria um telefone, precisas de telefonar a alguém, de novo inquieto, a dor nova que o cegava, a

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rapariga bonita não lhe respondeu, virou-lhe as costas, não me podes dizer quem são os teus amigos, aonde vais, era tão patético a implorar, não me faças isso, a rapariga bonita estava farta e queria dormir, não precisas de ter ciúmes, ele agarrou-se muito ao corpo dela, sentiu-o adormecer, um sono profundo, fechou os olhos muito assustado só com a ideia de a perder, decidiu segui-la, tenho que descobrir aonde vai, a respiração da rapariga bonita era pausada, quase harmoniosa, estava tão desprotegida ao lado dele, e se a prendesse, se a obrigasse a aceitar a sua companhia, tenho que a seguir, ele e Eva também se portavam como amantes, encontravam-se sem que o marido dela soubesse, quem lhe dizia que, não conseguia aceitar que ela se pudesse encontrar com outro homem, lembrou-se do rapaz do quarto andar, será que, lembrou-se de muitos rapazes que se cruzaram com eles, a rapariga bonita olhava-os, esquecia-se dele, nessas alturas até a compreendia, são mais novos e mais bonitos, mas agora revoltava-se, ele e Eva não faziam nada de mal mas mesmo assim, e se a acordasse e lhe dissesse que ela era uma, quem se deita com um homem na cama sem o conhecer, a voz da mãe na noite do corte geral de electricidade, os olhos agourentos que ele enxotou violentamente com as mãos. No escuro as recordações batiam umas nas outras conflituosas, os pensamentos desordenados, o escuro piorava tudo, seria isso que Eva não aguentava, aqueles pensamentos tão desordenados, ele e a rapariga bonita tinham passado dias tão bons, mas o comportamento da rapariga bonita sempre foi estranho, nunca lhe tinha perguntado por que mentiam à senhoria, a que noiva se referiam, donde vinha tanto dinheiro se ele não trabalhava, como é que podia aceitar tudo sem nada perguntar, ninguém consegue aceitar uma vida assim, a não ser que não se interessasse nada por ele, que não amasse, começou a transpirar, a rapariga bonita não o amava apesar de lhe oferecer o coração, ia fugir, era por isso que ele não a podia acompanhar, que aceitava tudo sem perguntar nada, no escuro a verdade vê-se mais facilmente, tentava confortar-se com os dias tão bons que passaram juntos, refazia tudo, gosta de mim mas não se quer sentir presa, há pessoas assim, mas ele já não podia viver sem ela, uns dias passam-se em qualquer lado, se calhar não tinha outro sítio para ir, tentava adormecer repetindo, ela ama-me, ela também não pode viver sem mim, mas não se conseguia convencer por muito que repetisse, se acendesse a luz tudo lhe apareceria diferente, no escuro o medo avoluma-se, toma conta de tudo, a rapariga bonita continuava adormecida ao seu lado, não parecia estar de passagem, quem está de passagem não dorme tão profundamente, segui-la-ia e descobriria tudo, e se fosse ter com outro, há coisas que se podem aceitar desde que combinadas, aceito o que tu quiseres, imaginou-a com outro e aquela dor nova que tinha conhecido há pouco tempo voltou ainda mais forte, não a podia imaginar com mais ninguém, virou-se na cama e a rapariga bonita protestou, um gemido, e se a prendesse,

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podia não ter outra oportunidade, estava desprotegida a dormir, nas mãos dele, e se a amarrasse, ouviu passos, pôs-se à escuta, era a senhoria, andava de um lado para o outro na sala, não devia conseguir dormir por causa da ordem de demolição, amanhã sigo-a, quanto mais cedo souber a verdade melhor, a senhoria continuava de um lado para o outro mas ele não sentiu pena, noutra noite tinha-a ouvido a falar com o reformado, aquela vadia endoidou-o de todo, não é o primeiro nem há-de ser o último que se desgraça assim, essas mulheres só servem para isso, por isso merecia a insónia e o prédio todo em pó, ouvia tão bem os passos da senhoria porque a criatura do segundo andar estava calada, teria morrido, a senhoria continuava, cansa-te velha, cansa-te a andar de um lado para o outro que não te há-de adiantar nada, a senhoria tinha dito ao reformado que só tinha pena da coitada que lhe escreveu durante anos, só tenho pena dessa, se um dia me telefonar para aqui ele que não pense que o encubro, anda para aí sua velha que isto há-de ir tudo abaixo, ele e a rapariga bonita assistiriam a tudo, já teriam uma casa, um tapete na entrada, um telefone, e a voz do reformado, se era isso que queria bastava-lhe descer as escadas, a avenida está cheia delas com melhor aspecto, aqueles desgraçados haviam todos de morrer com o prédio.

A rapariga bonita mexeu-se e ele abraçou-a com muita força, um amor tão exagerado, quase uma doença, ninguém ma pode tirar, é minha, só minha, a rapariga bonita afastou-o, ele apertou-a mais, sufocava-a, ninguém ma há-de tirar, vamos mudar-nos para uma casa, na casa nova pomos as fotografias um do outro nas mesinhas-de-cabeceira, ao domingo damos um passeio maior, havemos de fazer como os outros, um saco de pão bordado igual aos que a mãe oferecia às noivas, o robe com as iniciais dele, um amor tão exagerado, quase uma doença, a rapariga bonita debateu-se até que ele a largou, estás maluco, a rapariga bonita estava assustada, estava a pensar na nossa casa, beija-me, a rapariga bonita deixou que ele a beijasse, nunca a tinham desejado assim, não estava apaixonada mas gostava dos dias que tinham, eram dias quase iguais aos que tinha vivido com outros homens, a única diferença era ter conhecido aquele amor tão exagerado, quase uma doença.

A mãe regressa à sala acompanhada pelo funcionário e senta-se no lugar inicial, no banco de madeira que lhe pertence. Não olha para as outras, retira devagar o rosário da carteira de cabedal muito lustroso e aperta-o. A mãe encontra no rosário as razões que levaram o filho a matar, o filho foi mais um dos que se perdem nesta vida, a mãe agarra-se ao rosário com muita força para não se perder em pensamentos inúteis, não quer apurar se tem alguma culpa no que aconteceu, se podia ter evitado, a mãe quer ir para casa jantar flocos de aveia em frente à televisão, a mãe só quer ir para casa descansar.

O funcionário pede à senhoria que o acompanhe. Eu, pergunta a senhoria que percebeu tudo mas gosta de fazer perguntas, é uma

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forma de se tornar mais importante, eu, então chegou a minha vez, diz triunfante, apesar de querer parecer sofrida e contrariada, a senhoria até costuma fingir bem o que sente mas está demasiado excitada e é isso que a denuncia. Levanta-se e ajeita os pés nos tornos de verniz branco, compõe a saia, pede licença para retocar o bâton antes de falar com o doutor. A ex-mulher aproveita o tempo da senhoria pintar os lábios para perguntar ao funcionário se o doutor já disse quando a pode acompanhar até ele. O funcionário responde sem olhar, ainda não, tem que aguardar, possivelmente só no fim de tudo. A senhoria olha um e outro enquanto enche os lábios de cor de sangue desmaiado. Depois guarda cuidadosamente na carteira o espelhinho com costas de porcelana. Quer refrescar-se com mais um toalhete encharcado em rosas mas o doutor espera-a e também está ansiosa para contar o que viu, de todas as que ali estão foi a única que viu tudo, que apareceu na televisão e isso fá-la sentir-se muito bem.

Quando a senhoria sai da sala, as três mulheres sentem-se melhor, mais unidas porque ele foi de cada uma delas durante algum tempo, unem-se na posse, cada uma delas o usou em determinado tempo para algum fim, ele foi de cada uma daquelas três mulheres e isso deixa sempre alguma saudade mesmo que nenhuma delas o queira neste momento, ele já não lhes serve, aconteceu o mesmo com uma camisola de que a rapariga gostava muito, deixou de lhe servir e a rapariga deitou-a fora, a ex-mulher desfaz-se de muitas coisas no lixo ou nas obras de caridade conforme lhe apetece, a mãe deixou que a máquina de costura se avariasse porque já não lhe serve para nada.

Mas cada uma das três mulheres culpa as outras e é isso que as desune, atiram para as outras o dever de o salvar, é acima de tudo a culpa que as desune.

A mãe culpa a ex-mulher por o ter desencaminhado antes, na noite do corte de electricidade, e depois. A mãe tem a certeza que a ex-mulher o fez pecador e um pecador acaba sempre mal, a menos que se arrependa. Para a mãe a ex-mulher ainda vive em pecado e dificilmente se arrependerá, é disso que os olhos opacos da mãe a acusam, e é também disso que fogem porque o pecado é guloso, anda sempre à procura de novos corpos.

A ex-mulher culpa a mãe por não amar o filho, por não o amar como uma mãe deve amar um filho. Se o amasse como devia nunca teria deixado de acreditar que o filho podia ser alguém na vida, nunca o teria deixado dormir em restos de lençóis por bordar, os que sobravam e que lhe davam azar aos sonhos. Se a mãe o amasse como devia, teria acreditado que eles podiam ser felizes e a mãe nunca acreditou.

A mãe não sabe o esforço que a ex-mulher fez para o salvar, a ex-mulher não sabe o esforço que a mãe fez para que ele fosse alguém, uma da outra sabem apenas a culpa de que se acusam

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apesar de nunca terem falado nisso, sabem o que pensam uma da outra e até o que pensam da rapariga que não conhecem.

Nenhuma delas gosta da rapariga. Algumas razões coincidem, outras não. As duas não gostam: do vestido às florzinhas, do cabelo despenteado de criança, das unhas roídas e da maneira como se mexe. A ex-mulher não gosta: da idade dela. A mãe não se incomoda com a idade porque também estava grávida por volta da idade dela. A ex-mulher também não gosta: que a rapariga se tenha deixado engravidar, tem a certeza que fez de propósito. A mãe pensa que são coisas que acontecem, também ela engravidou sem fazer por isso, é a vontade de Deus. A mãe não gosta: que a rapariga tire os pés das sandálias e que saia tantas vezes da sala. A ex-mulher compreende-a, também a ela lhe apertam os sapatos e a roupa, também ela não sabe estar parada naquela sala. Algumas razões coincidem, outras não, mas nenhuma delas gosta da rapariga.

A mãe e a ex-mulher também estão de acordo em não culpar a mulher que foi morta, apesar dos jornais que afirmam que tinha um caso com ele, não a podem culpar porque essa já pagou por todos os erros que cometeu nesta vida. A culpa é um juízo para os vivos, os mortos descansem em paz, amém.

A rapariga não as culpa. Também não gosta delas, mas não as culpa. A rapariga tem medo da raiva tão escura dos olhos da ex-mulher, do perfume forte, das unhas pintadas, do isqueiro e da cigarreira em ouro. Nunca se deu com pessoas com aquele aspecto. Podia dar-se bem com a mãe, mas assustam-na os dedos encurvados presos no rosário, garras, o corpo magro que é pouco mais do que uma sombra, um fantasma.

A rapariga não gosta delas, mas não as culpa. Carrega na barriga a culpa mais pesada que pode sentir, aquele filho é um estúpido acidente na vida que escolheu, daqui a quatro meses livra-se finalmente daquele contratempo e descansa.

Mas apesar de tudo sentem-se cúmplices porque todas o tiveram e usaram da forma que lhes deu jeito. E como cúmplices têm um entendimento secreto sobre o crime que cometeram.

Da sala da casa grande Eva esteve muito tempo a olhar para o mar. Estava triste porque ele tinha faltado ao encontro. Era a primeira vez que ele faltava a um encontro e por isso Eva também estava inquieta, tinha quase a certeza que lhe tinha acontecido alguma coisa má, ele só faltaria a um encontro com ela se lhe tivesse acontecido alguma coisa má.

Eva também não gostava do inverno que a obrigava a cobrir a piscina, a lona impedia-a de ver os três níveis de água que a acalmavam, foi por isso que Eva esteve muito tempo a olhar para o mar apesar de não gostar dele tão bravo, das ondas violentas desfeitas nas rochas negras. Se o mar estivesse plano e doce talvez tivesse conseguido sossegar o pressentimento mau, mas a massa de

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água raivosa e sem luz não a ajudou, o mar era uma superfície turva sem qualquer beleza, Eva ainda pensou sair, caminhar até à marginal à procura de uma pequena baía onde repousasse os olhos, se a encontrasse podia atirar pedras, uma pedra que provocasse os habituais círculos concêntricos, o mau pressenti-mento seria engolido pelas dezenas de círculos criados, uma ratoeira que lhe podia montar, mas foi-se deixando ficar na sala da casa grande, a areia estava cheia de pedras e limos, os limos são os cabelos das sereias e nestes dias Eva não queria encontros com as sereias de cabelos verdes, nestes dias podia acompanhá-las sem querer.

Tinha no colo o número do telefone da pensão e as mãos de cera agarradas a um portátil quase sem peso. Eva queria ter nas mãos um dos antigos telefones pretos, eram telefones mais confiáveis, as vozes estavam mais bem guardadas, se tivesse nas mãos um dos antigos telefones da companhia Eva teria onde se agarrar, quando fizesse o número o marcador redondo voltaria sempre para trás acompanhando-lhe a indecisão, dar-lhe-ia tempo para a certeza, no portátil quando carregava numa tecla não ouvia barulho nenhum, a tecla permanecia no mesmo sítio, Eva ainda não sabia se lhe devia telefonar, não tinha o hábito de lhe telefonar, portavam-se como amantes, não corriam riscos desnecessários.

Mas era a primeira vez que ele faltava a um encontro, tinha acontecido alguma coisa, o mau pressentimento não a deixava, Eva agarrava-se ao portátil, tinha que saber o que lhe tinha acontecido, não conseguia esperar que ele lhe telefonasse a explicar-se, era a ânsia de um amor tão exagerado, quase uma doença, estava um dia tão frio e Eva não gostava destes dias iguais àquele em que o juiz os declarou divorciados, foi num dia destes que o juiz os separou para sempre, avisou-os que tinham cessado os deveres ou direitos entre eles, o juiz informou-os de tudo, mas quando saíram do tribunal juraram um ao outro que nunca se afastariam, foi Eva que jurou primeiro, ele como sempre jurou quando Eva lhe pediu, até agora tinham cumprido o juramento, era das poucas coisas que julgavam sérias, que Eva julgava séria e ele como sempre acompanhava-a, Eva carregou com jeito nas teclas do portátil, fez quase o número inteiro, ia-se desculpando, se ele estivesse doente podia precisar dela, telefonava-lhe porque ele podia precisar dela, não porque ela precisasse dele, e se não o encontrasse, Eva interrompeu o número para pensar no que faria, deixaria um recado, uma hora e um local para o dia seguinte, Eva pensava no que lhe poderia ter acontecido, o tempo estava tão feio, o mar não se distinguia do céu, tudo tomado por um cinzento baço e espesso, o vento sacudia as árvores do jardim que se vergavam, iam quase até ao chão, ainda bem que os vidros duplos não a deixavam ouvir a lamúria do vento, os uivos que a desesperavam, o que lhe teria acontecido, precisava dele apesar de ter pedido ao tribunal que os separasse para sempre, o juiz declarou-os divorciados, o gabinete do juiz estava muito frio apesar do radiador

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ligado, duas resistências laranjas quase iguais ao néon da serração, as resistências não acendiam e apagavam, a funcionária esfregava a caneta nas mãos para as aquecer e a caneta fazia um barulho contra a aliança, o juiz tinha os pés esticados na direcção do radiador, está ligado, perguntava à funcionária, era um homem velho desagradado com o frio que lhe arroxeava o nariz, Eva nunca mais se esqueceu do frio do gabinete, da funcionária que esfregava a caneta nas mãos, do nariz arroxeado do juiz, do radiador, tinha cortado o cabelo e envernizado as unhas, escolheu um fato vermelho que lhe ficava bem com os cabelos e os olhos escuros, os sapatos de salto alto alongavam-lhe as pernas magras, pintou os lábios de vermelho-forte, pôs-se tão bonita para ele mas não vacilou quando o juiz lhes perguntou se estavam realmente decididos, Eva respondeu que sim enquanto rodava o anel de noivado, o diamante que ainda tem no anelar da mão direita, Eva repetiu sim com medo que o juiz não a tivesse ouvido.

Antes de entrarem para o gabinete do juiz Eva ajeitou-lhe as golas do casaco, o mesmo gesto de sempre apesar de lá dentro declararem que não tinham bens a partilhar e que no casamento não houve filhos, não tinham nada porque os gestos de sempre não contam nestas coisas, o nariz arroxeado do juiz ouviu-os sem atenção, estava concentrado a receber o calor das resistências laranjas, no casamento não houve filhos, não se pode chamar filho ao sangue derramado, a duas ou três botinhas de lã compradas enquanto ainda havia esperança, Eva continua com o portátil na mão, se tivessem tido aquele filho se calhar ainda estavam juntos, desejou tanto um rapaz parecido com o pai, mas declararam que no casamento não houve filhos, ao tribunal não lhe interessava se Eva desejou um filho parecido com o pai, ele estava em pé em frente ao juiz, tinha um fato cinzento e os sapatos cambados com cheiro a graxa, Eva não gostaria de ter um filho com os sapatos cambados, as costas dobradas e os olhos no chão, Eva não gostaria de ter tido o filho parecido com o pai apesar de o ter desejado tanto, a verdade muda, quando Eva marcou o número da pensão teve medo de saber que lhe tinha acontecido uma coisa grave, tinha de se preparar, desligou carregando no botão maior e iluminado, antecipou o que lhe podiam dizer, se tivesse tido um acidente, está no hospital em estado muito grave, abandonaram o gabinete do juiz e Eva tinha outra vez o nome de solteira, podiam afastar-se para sempre, dali a uns meses Eva casar-se-ia com o homem mais prático que tinha conhecido, ele não tinha planos, e se estivesse apenas doente, uma gripe, está de cama não pode vir ao telefone, quando desceram as escadas do tribunal Eva prometeu amá-lo para sempre, não parou em nenhum degrau, não olhou para ele, vou amar-te para sempre, e depois acrescentou que tinha fome e convidou-o para almoçar, a mesma voz, os mesmos passos, ele aceitou a promessa e o convite sem nada dizer, Eva descia os degraus com os sapatos de salto alto e fazia um

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barulho engraçado, tic-tic, foi nisso que ele ficou a pensar, no barulho dos saltos de Eva.

Quando pensam no mesmo dia recordam-no de maneira diferente, ele surpreendeu-se por não ter de assinar nada, um papel como quando se casaram, esperava que o juiz pedisse, assine aqui com a assinatura igual à do seu bilhete de identidade, a secretária do juiz estava cheia de folhas presas por fios grossos, fios castanhos em ziguezague, na janela estava uma planta envasada, as paredes eram muito brancas, é disso e do barulho dos saltos de Eva nos degraus que ele se lembra, não reparou na funcionária que esfregava a caneta nas mãos, no nariz arroxeado do juiz, se falassem sobre esse dia diriam coisas tão diferentes que quem os ouvisse julgá-los-ia a mentir.

Afastaram-se do tribunal e Eva levou-o a um restaurante caro, vamos a um restaurante muito caro, o empregado puxou a cadeira e Eva sentou-se e agradeceu, ninguém podia dizer que o lugar de Eva não era naquele restaurante, Eva tinha crescido no bairro mas pertencia àquele restaurante silencioso cheio de talheres na mesa e copos de pé alto a brilharem, as unhas envernizadas de vermelho combinavam com o dourado da ementa, ninguém podia dizer que aquelas mãos deviam estar no conserto dos ossos, ficavam ali tão bem a escolherem o mais caro da ementa, ele tinha fome e não reparou que Eva escondia de vez em quando a cara atrás da ementa azul e dourada, tinha fome e não reparou que os olhos de Eva brilhavam um pouco mais do que o normal, lágrimas empoçadas, comeram em silêncio, Eva não tinha fome, continuava com o hábito de brincar com a comida, podiam fazer de conta que nada tinha mudado, ainda estavam dobradas na gaveta da mesinha-de-cabeceira as contas da água, luz e telefone, a colcha de renda posta na cama, o sofá tapado com o pano dos elefantes que compraram na feira de artesanato, o saco do lixo amarrado com um nó para ir para o contentor, as escovas de dentes no mesmo copo, nada tinha mudado, era um pouco estranho almoçarem naquele restaurante com empregados tão silenciosos, Eva pediu as sobremesas, ninguém podia dizer que Eva não pertencia ali, que durante anos consertou ossos para pagar as contas que continuavam dobradas na gaveta da mesinha-de-cabeceira, que nunca tinha conseguido comprar o serviço de copos de pé alto com uma percentagem pequenina de cristal, nem o serviço de jantar em porcelana pouco pintada, nem o faqueiro numa liga inoxidável.

Pediram os cafés, acenderam um cigarro, ainda partilharam esse cigarro, o juiz não declarou haver cessado a partilha dos cigarros, foi o tempo que lhes retirou o hábito de fumarem a dois, saíram do restaurante afastados, ainda não sabiam o que eram um ao outro, no que se haviam de tornar, já não adormeceriam embalados pelo néon da serração, nunca mais teriam que dar a pancada no frigorífico para que ele recomeçasse a trabalhar, a fruteira de vidro que colaram num

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sábado à tarde tinha sido posta no lixo, o recheio da casa já tinha sido posto à venda, a cama com a colcha de renda, o sofá com o pano dos elefantes, o gira-discos, as chávenas desirmanadas dos pires, decidiram vender tudo o que lhes quiseram comprar e Eva deixou que ele ficasse com o dinheiro todo, nunca mais precisaria de dinheiro feito no bairro, daqui a meia dúzia de meses ia casar-se com o homem mais prático que tinha conhecido, ia morar na casa grande perto do mar.

Ele estava desempregado e alugou um quarto na cidade, ficou bem, Eva foi de lua-de-mel, um cruzeiro das montras das agências de viagem, uma lua-de-mel a sério, quando voltou Eva disse-lhe, ainda tens as tuas roupas e outras coisas em casa da minha tia, não sei se te fazem falta, ele não queria nada, estava bem no quarto da pensão, ando à procura de um sítio maior porque neste quarto não tenho espaço, não lhe disse, nada disso me faz falta. As roupas, os discos e os livros do liceu continuam emalados em casa da tia de Eva, há pouco tempo Eva perguntou-lhe, se te comprassem as recordações também as vendias, não lhe respondeu, não por cobardia, apenas por indiferença, palavras poupadas como bens preciosos, vendia, se alguém mas quisesse comprar claro que vendia, as recordações não nos servem, continuou calado, Eva entristeceu como quando lhe entregou a caneta dourada, faz hoje seis meses que nos casámos, desculpa, não me lembrei, os esquecimentos dele tornaram-se habituais e já nem eram comentados, Eva aceitava os esqueci-mentos como se fizessem parte dele, mas apesar de aceitar tudo estava outra vez casada, tinha acrescentado outro nome ao seu nome de solteira que um juiz de nariz arroxeado podia sempre retirar mais tarde.

No início Eva mexia muito na aliança, tinha medo de a perder, ele dizia-lhe, se a perderes o teu marido compra-te outra, Eva baixava os olhos e procurava um sítio onde vincasse riscos e cruzes com as unhas, nunca me vais perdoar, pois não, perguntava-lhe Eva, tinha falado sem qualquer intenção, nunca tinha nada para dizer, Eva ficava com os olhos ainda mais escuros, ainda mais bonitos, fiz isto por nós, podes não acreditar mas fiz o que achei melhor para nós, nunca compreendeu mas concordava, eu sei que foi por nós, não sabes nada, nunca soubeste nada, Eva quase lhe gritava, nunca soubeste nada, ele não a percebia mas pedia desculpa, não foi com nenhuma intenção, acho muito bem que te tenhas casado outra vez, não sei por que digo estas coisas, os olhos de Eva cada vez mais escuros, a sério que acho bem, Eva dizia baixinho, se ao menos uma vez sentisse que gostavas de mim, nunca compreendeu Eva que na casa grande marcou o número da pensão e deixou que o telefone chamasse.

Tinha-se preparado para tudo, quando o reformado a atendeu perguntou por ele com a voz certa, nem demasiado segura nem demasiado tímida, a voz certa de quem telefona normalmente sem

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pressentimentos maus, o reformado disse que não, não se encontra de momento, Eva insistiu, mas volta, penso que sim, saiu de manhã cedo com a noiva mas deve voltar, com quem, com a noiva, tem a certeza que é noiva, eles dizem que sim, minha senhora, saíram de manhã cedo e devem voltar tarde, Eva desligou sem agradecer, ficou parada, saiu de manhã cedo com a noiva, o cinzento feio do dia abafou-a na sala, as ondas pararam nas rochas negras, tudo parou aos olhos de Eva, as árvores endireitaram-se, a lona da piscina imóvel, os peixes esconderam-se no fundo do aquário, Eva fugiu da sala grande, subiu as escadas agarrada ao portátil, entrou no quarto, sentou-se na cama, acalmou-se, pensou, foi engano, uma brincadeira, claro que não existe noiva, onde é que ele ia arranjar uma noiva, riu-se, acendeu um cigarro, o marido não gostava que fumasse no quarto, abriu a janela e fumou virada para fora, estava muito frio, as mãos gelavam, foi uma brincadeira, não quis pensar que o reformado parecia certo do que dizia, que o repetiu várias vezes, que os enganos não são assim tão seguros, marcou novamente o número, desta vez carregou nas teclas do portátil com força, atendeu-a o mesmo homem, perguntou por ele não se importando com a voz alta demais, com o facto do homem a ter reconhecido do telefonema anterior, ouviu a mesma resposta, insistiu, tem a certeza que saiu com a noiva, é o que eles dizem, minha senhora, repetiu o reformado, Eva desligou, deitou-se na cama e deixou a janela aberta, uma noiva, o cinzento espesso sufocava-a, pôs os olhos no tecto à espera de perceber, começou a procurar indícios, achava-o estranho, tinha sempre pressa quando se encontravam, gastava mais dinheiro, parecia feliz, era isso, quase parecia feliz, era isso que Eva estranhava, o ar ausente tão próprio dos apaixonados, de olhos fixos no tecto tentava apanhar a verdade para a destruir, não pode estar noivo, encontrava-se com ele sempre que queria, foi a primeira vez que faltou a um encontro, sempre teve aquele sorriso tonto, sempre foi um caso perdido, a verdade, saiu de manhã cedo com a noiva, as palavras do reformado aos tombos na cabeça, ele desmentiria tudo, tinha a certeza, quando o visse chegariam à conclusão que era um mal-entendido, rir-se-iam, noiva, saiu de manhã com a noiva, ele rir-se-ia, e a estranheza daquele ar quase feliz, a esperança no ano novo, fico sempre assim em vésperas de um ano novo, não devia ter acreditado, há quanto tempo não tens ninguém, sempre ficou calado, deixava que ela o beijasse nos lábios, estão noivos, eles dizem que sim, as palavras do reformado aos tombos na cabeça, ele estava noivo e no quarto da casa grande Eva enrolou-se sobre si mesma para chorar, não viu mais nada, não quis compreender, um caso perdido é capaz de tudo até de trair, se não morasse tão longe, se não tivesse que esperar pelo marido que viria jantar como noutro dia qualquer, Eva continuou enrolada sobre si a chorar, o peito tão apertado, há quanto tempo ele a traía, o frio entrava e enroscava-se em Eva que continuava deitada, deixou-se ficar, um vazio tão grande,

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e se ficasse assim para sempre sem sentir mais nada a não ser aquele vazio, uma noiva, se me aperceber que tu me enganaste sou capaz de te matar, e ele tinha-a traído, deixou-se ficar a chorar enrolada sobre si mesma, o frio em todo o corpo, não sabia libertar-se daquele amor tão exagerado, quase uma doença, o que fazer com a certeza que tinha, és um caso perdido, nunca serás capaz de amar alguém, o que fazer com os casos perdidos que eram os dois, foi o que Eva lhe disse no dia em que entregaram as chaves da casa, olhava pela última vez para os discos inclinados na estante de fórmica, ele nunca mais poria aqueles discos a tocar, nunca mais o veria a segurar na agulha e a pousá-la com jeitinho no início da faixa, nunca mais ouviria os discos riscados que encravavam, nunca mais adormeceriam com a luz do néon da serração, foi a única vez que lhe disse, não consegues amar-me, não consigo deixar de te amar, somos dois casos perdidos, se descobrir que me enganaste sou capaz de te matar, uma noiva, o frio em todo o corpo, o cinzento cada vez mais espesso, o que somos nunca está ao alcance da nossa vontade, e se fosse mesmo verdade, se ele quebrasse para sempre a ilusão, não podia perdoá-lo, cada pessoa tem a sua utilidade, tinha coberto de mágoa o seu amor tão exagerado, quase uma doença, há muito tempo que se tinha completado com aquele amor, o que iria agora colocar no vazio que lhe crescia no peito, Eva chorou durante muito tempo enrolada sobre si, no quarto da casa grande junto ao mar e quando anoiteceu, os dias no inverno são tão pequenos, Eva tinha adormecido.

O médico manda calar a senhoria porque não está interessado naqueles pormenores. Precisa de respostas rápidas e concisas, sente que o seu corpo cede à primavera, à vida que ficou lá fora. Já mandou retirar a alcatifa do gabinete, já pediu que o pó seja diariamente limpo, a bata foi feita num tecido especial, o médico protege-se de tudo mas nada pode contra a vida que explode em flores.

A senhoria esperou muito tempo para falar, portanto sente-se no direito de reclamar. Quer ou não saber o que aconteceu? Afinal delas todas fui eu a única que vi tudo.

O médico impacienta-se, quase grita, a senhora responde só ao que eu pergunto.

Atitudes violentas? A senhoria olha-o de soslaio, ainda agora quase gritou com ela, o que quer que lhe diga, ele ameaçou-me mas isso só depois daquela, desculpe, daquela moça o ter endoidado, antes era um homem muito educado, se não fosse não tinha estado tanto tempo na minha pensão, porque eu na minha...

O médico impacienta-se novamente, como é que ele a ameaçou, quando, por favor, responda só ao que lhe pergunto.

A senhoria fica ofendida e fala baixinho. O médico fixa a versão da senhoria na sua letra bonita e legível.

Comportamentos menos aceitáveis? A senhoria faz um sinal de desespero, tem tanta coisa para contar. Primeiro o choque de saber

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que ele andava metido com a pobre mulher que acabou por matar, Deus lhe tenha a alma em descanso, quando soube até me benzi, com um filhinho tão pequeno, o médico pergunta, mas tem a certeza do que diz, eles de facto tinham um relacionamento amoroso, a senhoria responde, não leu nos jornais, e calou-se porque os jornais eram incontestáveis até para um médico tão mal-educado.

O médico anota que a senhoria entende que a única verdade é a que vem nos jornais.

Quer saber como ele a matou? Não vi desde o princípio, mas tanto eu como os senhores da televisão ainda vimos a maior parte, quer saber?

O médico deixa que a senhoria fale mas não anota nada.E da ex-mulher, aquela que ali está, sabe que se fez passar por

amiga da noiva para ir lá à pensão buscar as roupas, sabe? Dizem que também andava metida com ele, quer dizer os jornais não falaram nisso porque agora é casada com um homem cheio de influência mas, o médico deixa de a ouvir.

A senhoria passa à mãe, desde que ali estamos nem sequer falou uma vez com a pobre desgraçada que traz o neto na barriga, o médico já não a ouve, sente-se mal, os corticóides que inala provocam os seus efeitos, o médico sente-se mal.

O médico quer dispensar a senhoria, ganha coragem, daqui a pouco quando ela mudar de assunto, acaba a bajulá-la, a senhora é uma testemunha tão importante que estou certo que vai ser muito útil aos meus colegas, sabe eu só tenho que fazer umas perguntas prévias, não sou o responsável por este caso, a senhora vai ter oportunidade de contar tudo mais tarde.

A senhoria cala-se satisfeita, já demonstrou que sabe muito, que é indispensável, era só isso que queria, mais tarde falará com os outros médicos, este é tão novo e tão mal-encarado, a senhoria sai da sala, está satisfeita por saber tanto sobre o caso que lhe mudou a vida, a senhoria nunca contará a ninguém que este caso veio mesmo a calhar, abençoada televisão, abençoados jornais, já fixaram a indemnização que vai receber quando o prédio for demolido, a senhoria não se sente culpada, se aquela tragédia tinha que acontecer ainda bem que foi útil a alguém, ela não pediu nada, não se pode sentir mal, qualquer pessoa faria o mesmo no lugar dela, é o que a senhoria pensa quando caminha ao lado do funcionário de regresso à sala.

O médico pede ao funcionário que não traga mais ninguém porque precisa de fazer uma pausa.

A rapariga bonita não gostava que ele a seguisse como um cão. Disse-lhe isto a gritar porque estava muito zangada por ele a ter seguido e por ter aparecido aos seus amigos. Ao longo da discussão a rapariga bonita gritou muito, disse-lhe muitas vezes que ele a seguia como um cão mas nunca falou na vergonha que sentiu quando os amigos o viram.

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Estava sentada com os amigos quando ele apareceu e se sentou na mesa ao lado, os amigos não disseram nada, não costumavam comentar os velhos que se sentavam no café, ele sorriu, um dos amigos ainda disse, outro doido, mas ele aproximou-se dela e pôs-lhe as mãos sobre os ombros, ao princípio os amigos ainda a defenderam de um velho doido mas depois calaram-se quando perceberam quem ele era, a rapariga bonita corou muito, os amigos não conseguiam disfarçar o gozo, a rapariga bonita tinha-lhes dito que se ia embora porque queria outra vida, uma vida melhor, tinha regressado para lhes contar que já a tinha encontrado, a rapariga bonita quando falou no papel dele na outra vida que tinha encontrado não lhes disse que era velho, que se vestia mal, que era assim como o viam, escolheu o que queria contar, os amigos não disfarçavam o riso, então era aquele velho a outra vida que tinha encontrado, os amigos piscaram-lhe o olho, a rapariga bonita teve muita vergonha, se pudesse desaparecer, a rapariga bonita sabia que tinha que passar por várias vidas até encontrar a que procurava, ele era só mais uma dessas vidas, sempre era melhor que passar as tardes inteiras no café, tinha conseguido comprar a figa em ouro, a sorte da vida dela estava a mudar, os amigos apodreceriam naquele café, a rapariga bonita estava farta da vida que tinha com eles, tinha decidido ir embora, tinha regressado vitoriosa e ele tinha estragado tudo.

Quando saíram do café, a rapariga bonita ralhou-lhe muito, segues-me para todo o lado como um cão, caminhava muitos passos à frente dele, não permitia que ele lhe tocasse, ainda via a cara dos amigos, o riso, os amigos nunca perceberiam que até gostava dos dias que passava com ele, era nova, tinha uma vida inteira à frente, podia perder tempo assim, ele tentava alcançá-la, pedia-lhe que o perdoasse apesar de não saber o que lhe tinha feito, a rapariga bonita estava muito enervada, não parava de caminhar, ele nunca compreenderia o mal que lhe tinha causado e isso ainda a irritava mais, gritou-lhe, não vês que eles não sabiam que eu estava contigo, ninguém precisava de saber que tu existias, ele não percebeu a vergonha dela, aquele amor tão exagerado, quase uma doença, toldava-lhe o entendimento, puxou-a, tentou abraçá-la, se quiseres caso-me contigo e eles deixam de falar, queres casar comigo, a rapariga bonita parou, teve muita pena dele, tinha sentido tanta vergonha dele e ele oferecia-se para a salvar, se quiseres caso-me contigo, quando ele repetiu o pedido de casamento a rapariga bonita deixou de ter pena, era tão miserável, a raiva voltou, queria gritar, não percebes que eu tenho vergonha de ti, tenho outros planos, nunca me casarei contigo, já vivi com outros homens, fartei-me de alguns, alguns também se fartaram de mim, com outros desencontrei-me e pronto, sabes que chegou a tua hora, que me vou fazer desencontrada, continuava a caminhar, como é que ele podia ter pensado em casamento, estava doido, como é que ele podia ter pensado que ela se casava com um velho como ele com os dentes

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amarelos, o miserável puxava-a para a abraçar, vamo-nos casar, os outros homens nunca a tinham seguido, este julgava-a dele, não tinha percebido as regras do jogo, gritou-lhe, desaparece da minha vida, empurrou-o, tinha nojo dos dentes amarelos, ele parou quando a ouviu dizer, desaparece da minha vida, a rapariga bonita não se deu conta do rombo que lhe fez, continuou, olhou para trás e repetiu, casar-me contigo nem morta, ele continuou parado sem responder.

A rapariga bonita pensou que ele não a ouvia, voltou para trás, perguntou, ouviste o que eu disse, ele não reagiu, a rapariga bonita vacilou, não esperava aquele silêncio, agora tinha a certeza que nunca tinha conhecido ninguém parecido com ele, assustou-se com os olhos dele tão parados, um quase sorriso nos lábios, o que é que te deu, fez-se de forte, ficaste mudo, ele continuava parado, as mãos tremiam-lhe, a rapariga bonita teve medo, sentiu-se ameaçada, nunca tinha visto aquela expressão em ninguém, quer dizer, tinha visto nos tarados que apareciam na televisão, de repente pensou na rapariga da praia de que ele lhe falava, estavam os dois parados no meio do passeio, a rapariga bonita disfarçava o medo desafiando-o, o que é que te deu, vais ficar aí todo o dia, ele continuava sem reacção, estava pálido, o que teria acontecido à tal rapariga, às outras raparigas, não devia ter pensado que era uma brincadeira, sentiu-se bem a ocupar o lugar de outra pessoa só que agora era ela que podia desaparecer e outra ocupar o lugar dela, devia ter tido mais cuidado, se ele fosse um tarado como os da televisão, vivia naquela pensão, ninguém vive num sítio daqueles sem motivo, a rapariga bonita olhou bem para ele e acalmou-se, o que via era tão triste, um homem destes não pode ser um tarado, não conseguia achá-lo perigoso, era um pobre coitado que lhe implorava que se casasse com ele, podia fazê-lo chorar facilmente, por outro lado donde vinha o dinheiro, ele continuava a tremer, estava assustado com a ideia de a perder, a rapariga bonita não sabia o que pensar, sabia que os tarados nunca parecem o que são, é por isso que enganam as vítimas tão bem, ele correu para ela e agarrou-a, tremia, prometeu-lhe tudo o que ela quisesse, uma mota, queres uma mota, eu sei que gostas de andar de mota, a rapariga bonita não percebeu, uma mota igual à do dono da esplanada, maior, continuou agarrado a ela, e a rapariga bonita pensou que ele a ser alguma coisa era um louco, um homem perigoso não reage assim, deixou-se ficar, deixou que ele falasse no dono da esplanada, na mota, na casa nova, recomeçaram a andar.

Enquanto caminhavam ele abraçou-a com muita força e pediu-lhe que se casasse com ele. A rapariga bonita teve ainda mais vergonha dele, era tão miserável, amo-te, repetia-lhe ele, sem reparar na vergonha dela, os amigos deviam ter chamado outros e neste momento contavam-lhes o que tinham visto, riam-se todos do velho, se vissem a cara do velho, a rapariga bonita estava sem saber o que fazer, um pobre coitado ou um tarado perigoso, podia ser as duas coisas, olhou bem para ele, não teve dúvidas, era apenas um

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pobre coitado, os amigos deviam estar a rir-se dela no café, ele agarrava-a com tanta força, beijava-lhe os cabelos, um amor tão exagerado, quase uma doença, a rapariga bonita teve muita pena dele, continuaram a andar, as pessoas que se cruzavam com eles olhavam-nos admiradas, não eram um casal normal, a rapariga bonita apertou a figa em ouro, e se for perigoso, abrandou o passo, se ele fosse perigoso tinha que ter cuidado para não acabar como as outras, não podia deixar que ele desconfiasse que ela já sabia o que tinha acontecido à rapariga da praia, às outras que também desapareceram, a rapariga bonita lembrou-se que as vítimas que se salvam dizem sempre nos jornais, fiz de conta que não percebi nada, fingi-me de parva, ele não podia desconfiar de nada, a rapariga bonita olhou bem para ele e desatou a rir, como é que podia achar um homem daqueles capaz de lhe fazer mal, um homem que lhe implorava quase a chorar que casasse com ele, um miserável, a rapariga bonita pensou que podia desatar a correr, se ele a apanhasse e lhe quisesse fazer mal pedia ajuda a alguém, passavam tantas pessoas, ele pediu-lhe um beijo, dá-me um beijo para ter a certeza que me perdoas, não podia ter medo de um desgraçado como ele, a rapariga bonita deixou que ele a beijasse, desagradou-lhe o sabor da boca dele, os lábios quentes mas ainda assim deixou-se beijar, ele ficou feliz, aproximava-se deles um grupo de homens, e se gritasse, este homem quer fazer-me mal, o grupo de homens caminhava para eles, a rapariga bonita tentava decidir se o achava ou não perigoso, de qualquer forma, sendo ou não perigoso, queria deixá-lo, não gostava que ele a seguisse como um cão, estava farta, a rapariga bonita pensava em deixá-lo quando lhe deu a mão e aceitou casar-se com ele, os homens passaram por eles, ele agarrou-lhe com mais força a mão, continuaram a caminhar enquanto faziam planos, uma casa nova, um tapete à entrada, a rapariga bonita tinha que esperar, entre ele e a rua sempre era melhor estar com ele, a rapariga bonita também não queria voltar para os amigos que se riam dela no café, quando arranjar outro sítio, a rapariga bonita decidiu que se ia embora logo que pudesse mas continuou a fazer planos com ele, uma casa para os dois com um tapete de flores à entrada, um quarto de casal, uma cozinha toda equipada, ele estava entusiasmado, caminharam abraçados até se cansarem e depois apanharam um táxi para a pensão como noutro dia qualquer.

Eva perfumou a água da banheira com uma mistura de cipreste e sândalo. Quando pôs o pé na banheira para experimentar a água achou-a muito quente mas entrou e deitou-se. Tinha enrolado uma toalha branca na cabeça que lhe prendia os cabelos escuros. Acendeu um cigarro e fechou os olhos. A casa grande longe de tudo e perto do mar cheirava a cipreste e sândalo.

Eva levantou uma perna e apreciou-a com olhos de estranha, ainda era bonita, estava bem para a idade, apesar de ele a ter traído continuava bonita, aquele tinha sido o último dia que os tinha

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seguido, o que tinha visto já era suficiente para o esquecer, ele tinha-a traído, antes de os ver torturava-se com a certeza de que a rival seria mais nova e mais bonita do que ela, quando os viu ficou mais calma, teve pena dele, aquela rapariga nunca seria noiva de um homem a sério, julgou-o doente, continuou a segui-los, foram precisos muitos dias para não se importar com o que via, foram precisos muitos dias para conseguir tornar a encher a banheira para tomar um banho perfumado com cipreste e sândalo, mesmo assim ainda lhe veio à cabeça o corpo dele debaixo do chuveiro, estiveram casados tantos anos, portavam-se como amantes, ele não a podia ter traído, ainda por cima com uma rapariga tão desmazelada, tinham feito um acordo, um acordo justo, ele só tinha que ser um caso perdido para sempre, o corpo dele continuava a aparecer-lhe com o chuveiro encostado ao peito, deixou-se escorregar na banheira, pousou o cigarro, molhou a toalha que tinha enrolado na cabeça, o marido estava a chegar e Eva arranjava-se para ele, o marido era um homem muito prático que não gostava de nada que não fizesse sentido, que não fosse facilmente explicável, o marido nunca considerou a possibilidade de ser traído, uma mulher a quem dava tudo o que queria não o podia trair, essa possibilidade não era facilmente explicável, Eva tinha comprado roupa, ia maquilhar-se e perfumar-se para o marido, saiu da banheira, o vapor embaciou o espelho, o que a deixou satisfeita, já não gostava de se ver nua, o espelho começava a ser um instrumento de tortura, Eva não via qualquer beleza em envelhecer, repugnava-lhe a pele dos velhos que crescia e sobrava engelhada em todo o lado, a barriga que caía mesmo sem ter por onde, as costas dobradas, os dois pedaços de carne tristemente pendurados no lugar das mamas, Eva nunca viu qualquer beleza nos corpos dos velhos, protegia o dela, não havia qualquer benefício em levar a vida até ao fim, as plantas deitam-se fora logo que murcham, os animais abatem-se quando deixam de estar aptos, mas por enquanto Eva ainda estava bem, ainda era bonita, menos bonita do que tinha sido no tempo em que era casada com ele e ele punha um disco a tocar, dançava nua pela casa, foram felizes, foram tão felizes como Eva ainda o é a ouvir as mesmas músicas, o tempo dispensou os gestos dele, já não é preciso limpar os discos nem pegar na agulha, o tempo encarregou-se de o dispensar, gostava de o ouvir cantar por cima da música, a felicidade é pouco mais do que alguém a cantar por cima de uma música, foram felizes e ele traiu-a com uma rapariga desmazelada, Eva saiu do banho, a casa grande cheirava a cipreste e sândalo, Eva entrou no quarto e preparou-se para o marido, a voz do reformado ainda dava tombos na sua cabeça, saiu de manhã cedo com a noiva, foi difícil encontrar a pensão, também lhe tinha mentido, nunca pensou que ele morasse num sítio tão miserável, nunca o conheceu, Eva pôs o vestido novo e umas meias de renda, ainda era bonita, maquilhou-se com cuidado, o risco preto nos olhos para os aumentar, o bâton carregado tornava os lábios de romã ainda

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mais apetitosos, tinha-o visto abraçar a rapariga, segredar-lhe coisas ao ouvido, o marido não repararia no vestido novo, Eva não se zangava, tinha casado com o homem mais prático que conhecera e os homens práticos não reparam nessas coisas, Eva não se zangava, nunca tinha discutido com o marido, eram felizes.

Ao jantar falariam das coisas habituais, depois de jantar o marido retirar-se-ia para o escritório, faria exactamente o mesmo que todas as noites, os homens práticos seguem rotinas, são-lhes fieis, mas para Eva parecia tudo diferente, tinha decidido que nunca mais o veria, deixava de se portar como amante, naquela noite Eva era completamente fiel ao marido que lhe falava dos filhos, de-tes-tam-me, pensou Eva, o marido comia com satisfação, não podia saber o que Eva tinha decidido, que pela primeira vez a mulher lhe era completamente fiel, comiam e dormiam juntos e no entanto não sabiam quase nada um do outro, ilhas, uma ausência de amor rodeada de amor, acabaram de jantar, o marido pediu-lhe que o acompanhasse no café, Eva seguiu-o até ao escritório, sentaram-se nas poltronas, Eva perguntou, sem nenhum interesse, como corriam as coisas, bem, muito bem, enquanto existirem doentes as máquinas vendem-se, e nunca hão-de faltar doentes, o marido riu-se, estava orgulhoso de ter escolhido um negócio tão seguro, Eva não o achava grosseiro, era o homem mais prático que tinha conhecido, sorriu, se o marido precisasse de ser amado talvez um dia fosse capaz de o amar, mas o marido era um homem muito prático e também para Eva o amor era um estorvo, entendiam-se bem assim, Eva fez companhia ao marido como se fosse uma noite igual às outras, provou o digestivo, acendeu um cigarro, o marido passou-lhe a mão pelas nádegas, não o achava grosseiro, também se entendiam bem no desejo pouco polido, na carne que satisfazia a carne, Eva deixou-se ficar na poltrona a ler uma revista de decoração, talvez mudasse os cortinados, estava maçada das flores, talvez mudasse os cortinados para um padrão liso, o marido fazia contas, Eva decidiu que mudaria os cortinados da casa toda.

Esperou que o marido se deitasse, o marido nunca se deitava depois da meia-noite, um homem prático tem rotinas, e telefonou para a pensão, tinha que lhe dizer que não o queria ver mais, estava agradecida por ele a ter libertado daquele amor tão exagerado, quase uma doença, sentia-se bem, já era tarde mas Eva não considerou as horas, tinha que lhe dizer ainda esta noite que não o queria ver mais, marcou o número, quando soube onde ele vivia Eva ainda se comoveu, um prédio tão velho, uma avenida tão feia, espreitou para as escadas do prédio e fugiu, não viu o edital da câmara afixado na entrada, mas mesmo assim fugiu, carregou nas teclas, já não tinha medo de se confrontar com a verdade, estava curada, ele tinha-a traído, tinha quebrado o acordo, deixara de ser um caso perdido, estava noivo, o telefone tocou e a senhoria assustou-se, pensou que

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fosse uma má notícia, quando o telefone tocava assim tão tarde pensava sempre nos filhos e levantava o auscultador a tremer.

Eva perguntou por ele, a senhoria ficou aliviada, os filhos continuavam bem, disse contrariada que era tarde, Eva não pediu desculpa, tornou a pedir para falar com ele, a senhoria reconheceu-lhe a voz, já não esperava que a pobre coitada telefonasse, apertou entusiasmada o cinto do robe, pediu licença para pousar o auscultador e foi chamá-lo, pelo barulho Eva soube que a senhoria ainda tinha um dos telefones pretos da companhia, ouviu a senhoria gritar, a senhoria gritou para o corredor, queria que a rapariga bonita a ouvisse, está ao telefone uma senhora para si, frisou, uma senhora para si. Regressou à sala, a papada subia e descia de excitação, disse baixinho ao reformado quem estava ao telefone, se calhar só agora é que soube, fez o gesto de cornos com a mão, tomou-lhes o peso, a senhoria e o reformado riram-se e baixaram a televisão para poderem ouvir.

Ele pensou logo em Eva, uma senhora para si, pegou no auscultador, estranhou que Eva lhe telefonasse àquela hora, quando a ouviu soube imediatamente que Eva sabia da rapariga bonita, era um privilégio de se conhecerem tão bem, de poderem interromper as conversas a qualquer momento, disfarçou, tinha sido apanhado, aconteceu alguma coisa, perguntou, isso pergunto eu, sempre foi bom neste jogo, mas agora faltavam-lhe as palavras que o podiam salvar, fez-se desentendido para ganhar tempo, tinha que perceber o que Eva sabia, se se precipitasse podia estragar tudo, tinha que a ouvir e depois raciocinar depressa, sempre tinha sido bom a dizer o que as pessoas querem ouvir, a única coisa que sabia fazer bem, sempre era alguém como a mãe desejou, o telefone dificultava o jogo, não lhe via a cara, não lhe podia procurar os olhos, Eva não os podia ter visto juntos, não costumava vir à cidade, a casa grande ficava longe de tudo, tinha de se manter calmo até perceber o que Eva sabia, um jogador não se pode precipitar, concentrou-se, do outro lado Eva insistiu, não tens nada para me dizer, nunca lhe tinha falado assim, não lhe conhecia aquele tom, tens a certeza de que não tens nada para me dizer, tornou a perguntar Eva.

Não percebo, a voz tremia-lhe, estava a perder, afinal não era suficientemente bom, nem naquele jogo era alguém, não podia desconcentrar-se, um jogador tem que manter o sangue-frio, tinha que jogar uma carta que o salvasse, não bastava repetir, sinceramente não percebo, falhava como a mãe sempre pressentiu, estava preso no medo, Eva do outro lado disse-lhe que então não tinham mais nada que dizer um ao outro, não esperava que Eva o ameaçasse, não lhe conhecia aquela calma, Eva não estava enervada, de certeza que não puxava o cabelo para trás, se lhe pudesse ver os olhos, avançou cauteloso, não é o que tu pensas, é melhor falarmos pessoalmente, sabia que a senhoria e o reformado escutavam à porta, Eva disse, não te quero ver mais, foi por isso que

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telefonei, nunca mais te quero ver, Eva desligou o telefone, ele fez de conta que Eva não tinha desligado, continuou ao telefone, ganhou confiança, a senhoria e o reformado estavam a ouvir por isso podia continuar a jogar, ensaiou na linha vazia ser outra vez alguém, eu sei que te preocupas quando não te dou notícias mas tenho tido uma vida, andamos a tratar dos papéis, riu-se, oh que disparate, sabes que já não tenho idade para festas, apesar de continuar ao telefone sentia que tudo lhe fugia, tinha perdido o controlo, tinha que se encontrar com Eva, tinha que lhe dizer o que Eva queria ouvir, Eva não o podia abandonar logo agora que precisava tanto do dinheiro dela, tinha prometido uma casa à rapariga bonita, tinha prometido o mundo à rapariga bonita, estava quase sem dinheiro, no princípio do mês tinha que pagar à senhoria, ninguém podia ficar a dever, um princípio da pensão ainda mais importante que a decência, Eva não o podia abandonar, ainda tinha cheques assinados em branco, quando se encontrassem tudo se resolveria, Eva sempre o provocou, há quanto tempo não tens ninguém, falaria com Eva, havia de encontrar o que Eva queria ouvir, sempre assim foi, terminou o telefonema despedindo-se afectuosamente, passou pela sala para agradecer à senhoria e ainda a viu espantada, o reformado tossiu para disfarçar, enfiou-se no quarto, daí a pouco iria ter com a rapariga bonita e teria que inventar qualquer coisa que justificasse o está ao telefone uma senhora para si, não tinha escolhido uma vida fácil, talvez o lucro das cervejas do negócio do gordo fosse mais compensador ou mesmo uma pensão em risco de ruir, não podia descontrolar-se, entrou no quarto e enervou-se porque a senhoria tinha-se desleixado, não punha insecticida, não mudava os lençóis, devia ter saído da pensão há mais tempo, tinha que convencer Eva que a rapariga bonita era apenas uma companhia, um homem precisa de companhia, estou a ir para velho, continuava o mesmo caso perdido que tinha muito tempo para gastar, o tempo por gastar é perigoso, ganham-se vícios, pensamentos que não nos saem da cabeça, Eva tinha que compreender, quando lhe telefonasse tudo se resolveria, tinham sido casados durante tanto tempo, portavam-se como amantes, Eva não o podia trair agora que precisava tanto dela.

Na sala as quatro mulheres continuam sentadas nos bancos corridos de madeira. Não se cansam em gestos inúteis, deixam-se estar na sala, continuam caladas mas estão distraídas umas das outras.

A ex-mulher pensa que ainda hoje apurará se é verdade o que dizem. A ex-mulher não acredita que ele tenha enlouquecido, julga-o capaz de tudo para não pagar pelo que fez. A ex-mulher quer desmascará-lo. Não sabe donde lhe vem esta raiva tão exagerada, quase uma doença.

A mãe pensa que à noite há menos autocarros para o bairro, demorará mais a chegar a casa, precisa tanto de descansar as pernas, livrar-se daquela roupa, quando se sentar a comer os flocos

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de aveia em frente à televisão tudo voltará a ser como dantes, a mãe sabe que em casa consegue não pensar que o filho ficará ali para sempre por ter cometido um crime, em casa a mãe consegue pensar só no que quer.

A senhoria pensa em telefonar a um jornalista para lhe contar as novidades, ele foi casado com uma mulher rica, a mãe vive perto, pode ser que o jornalista consiga convencer a mãe a deixar-se entrevistar, o crime da pensão pode voltar aos jornais, a senhoria já tem a vida dela resolvida com a indemnização que lhe propuseram, tem a velhice garantida, mas gosta de aparecer nos jornais, gosta de dizer ao vendedor de jornais, esta sou eu, a vida dela mudou tanto desde que a conhecem, as pessoas respeitam-na, a senhoria agradece sempre à televisão e aos jornais por a terem salvo, e tem um carinho especial por este caso, a senhoria evita a palavra crime, fala em caso, tragédia, evita a palavra crime.

A rapariga sempre conseguira pensar em nada, mas agora era difícil estar sem pensar em nada, olha para as paredes, procura a janela, o fio eléctrico, as manchas de humidade, a rapariga quer distrair-se da criança que se mexe na sua barriga, desde que tem a criança na barriga não consegue estar a pensar em nada, daqui a quatro meses estará livre de tudo, a rapariga não se magoa com a indiferença da mãe que não quer saber do neto, com a raiva da ex-mulher que a acusa de tudo, com a maldade da senhoria que considera que foi feita justiça, tiveram os dois o que mereciam, a rapariga sente apenas a criança que cresce dentro dela, sem querer afeiçoou-se àqueles movimentos dentro da barriga, à imagem que viu no ecrã quando a médica lhe explicava a criança, a rapariga não pode gostar da criança, daqui a quatro meses tem que a expulsar para sempre da vida dela, a criança foi um acidente que lhe aconteceu, a vida dela terá que prosseguir como era antes do acidente.

Quando as máquinas começaram a demolir outro prédio do mesmo quarteirão, os velhos do terceiro andar foram-se embora, tinham medo que a casa lhes caísse em cima e não suportavam o barulho e pó, os velhos do terceiro andar pegaram nas suas coisas e foram-se embora sem se terem despedido de ninguém.

A senhoria só se apercebeu uns dias mais tarde que os velhos do terceiro andar se tinham ido embora, ficou desesperada, ainda gritou, como é que aqueles desgraçados puderam fazer-me uma coisa destas, o reformado coçou o queixo, a televisão continuava sem dar resposta, a senhoria depois de gritar começou a chorar, estava perdida, a vida dela começava a chegar ao fim, era assim que a senhoria dizia, estou a começar a chegar ao fim das minhas forças, a senhoria utilizava frases compridas e complicadas quando queria demonstrar que a situação era grave.

Talvez por estar tão desesperada a senhoria bateu-lhe à porta do quarto, enquanto esperava que ele abrisse torceu as mãos dentro do

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bolso do avental, ele nunca tinha visto a senhoria com os lábios tão caídos e os olhos tão pisados, a senhoria disse num fiozinho de voz, os velhos do terceiro andar já se foram, ele também não sabia, os miseráveis foram-se embora, foram os do quarto que me disseram agora mesmo, devem ter tido medo do prédio que andam a deitar abaixo, ou então arranjaram um sítio melhor, os parasitas têm sempre sorte, qualquer dia os do quarto andar também se vão e ficamos só nós, nós e a velha aqui de cima, quantos menos aqui estiverem mais fácil é correrem connosco.

Ele olhou para o balde de plástico azul colocado ao pé da janela para recolher a água que caía do tecto, estava quase cheio, respondeu, este ano tem chovido muito, a senhoria assustou-se, também estão a pensar ir embora, por amor de Deus não me façam isso, esteja descansada, ainda ficamos mais um tempinho, não costumava dizer tempinho, talvez tenha dito para combinar com o fiozinho de voz da senhoria, a senhoria falou da carta que tinha mandado para a televisão, a voz foi-se elevando, ele receou pelo sono da rapariga bonita que estava no quarto ao lado, pediu à senhoria que falasse mais baixo, quando tinha muito tempo para gastar o desespero dos outros salvava-o do tédio mas agora tinha tanto que fazer, ainda não tinha conseguido falar com Eva, sentia a rapariga bonita diferente, tinha tanto que fazer, a senhoria continuava a falar, diga-me o que hei-de fazer, se me deitam abaixo a pensão o que será de mim, lembrou-se que a senhoria deixara de pôr insecticida e de mudar os lençóis, foi isso que lhe disse, a senhoria desatou a chorar, sentia-se injustiçada, faço tudo o que posso, o choro da senhoria enervou-o, tinha pressa, não tem posto insecticida e não tem mudado os lençóis, a senhoria estava muito magoada com a acusação e chorava cada vez mais, ele tinha que se despachar, tinha muito que fazer, a senhoria chorava, faço tudo como dantes, a não ser que a minha pobre cabeça se tenha esquecido, ando tão nervosa, ele nunca pensou que um dia tivesse tanta pressa, se quiser vou agora buscar o insecticida, se quiser mudo agora mesmo os lençóis, ele estava cada vez mais enervado, tentou acabar com a conversa mas a senhoria não o deixou, agarrou-lhe no braço, vou mudar os lençóis e pôr insecticida, vai ver com os seus olhos para depois não me acusar, a senhoria fungava e a papada subia e descia, o azul dos olhos escorria para as bochechas, um palhaço de avental que o segurava pelo braço.

A senhoria continuava a prendê-lo pelo braço, não sei como é capaz de me dizer uma coisa dessas, ele arrependeu-se de lhe ter falado, tinha que resolver muitas coisas antes que a rapariga bonita acordasse, a senhoria não o deixava ir embora, foi isso que o descontrolou, tinha que se libertar da mão gorda que lhe apertava o braço, foi isso que o descontrolou, cale-se, gritou, pare com essa choradeira que já não a posso ouvir, a senhoria estremeceu e calou-se, mesmo assim ele tornou a gritar, cale-se que não a posso ouvir,

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não conseguia filtrar o pensamento, a senhoria assustou-se, ele estava espantado por se ouvir gritar mas gostava e não conseguia parar, não a posso ouvir, cada vez se sentia melhor, a senhoria recuava, pôs as mãos na cabeça, o que é que lhe deu, ele sentia apenas prazer em gritar, não lhe interessava o que dizia, se a senhoria lhe respondesse era capaz de a esbofetear, raramente se tinha sentido tão bem, a rapariga bonita acordou com os gritos, a senhoria afastou-se, a rapariga bonita abriu a porta e espreitou, ele olhou-a e sorriu docemente, a rapariga bonita teve muito medo daquele sorriso e confirmou que as suas suspeitas estavam certas, agora sim, tinha a certeza que era verdade tudo o que receava mas também lhe sorriu com a mesma doçura, ele correu para ela, beijou-a, a rapariga bonita disse que ainda tinha sono, que ia dormir mais um bocado.

Desceu os degraus a cantarolar, não olhou para as baratas esborrachadas pelos miúdos do quarto andar, saiu da pensão e deixou que a porta batesse, fez-lhe bem gritar com a senhoria, a dor no peito tinha desaparecido, andava com os passos seguros, tinha pressa de chegar ao banco, tinha realmente uma coisa para fazer, quem o visse podia dizer, ali vai um homem apressado, sentiu-se bem por estar a ser tão verdadeiro, por não ter que fingir pressa numa manhã bonita como esta.

Entrou num banco com os cheques que Eva lhe tinha dado para utilizar em caso de emergência. Preencheu um dos cheques no balcão para o efeito e depois aguardou na fila. Olhou para o relógio redondo que estava na parede e seguiu os ponteiros dos segundos como costumava fazer. Quando chegou a vez dele, entregou o cheque ao funcionário. O funcionário pegou no cheque, olhou admirado, verificou a assinatura, virou o cheque, tem de pôr aqui o seu número de telefone e o bilhete de identidade, ele acendeu um cigarro, o funcionário advertiu-o que não podia fumar, ele não sabia onde apagar o cigarro, o funcionário foi buscar um cinzeiro, as pessoas que esperavam na fila olharam-no desagradadas, ele estava a atrasar tudo, o funcionário disse que era um cheque de montante muito elevado, vou ter que falar com o gerente, se o montante não fosse tão elevado, ele disse em voz alta, fale com quem quiser mas despache-se, nunca tinha falado assim com um funcionário, o funcionário afastou-se, ele viu que o fato cinzento estava mal cortado e não lhe assentava bem, teve pena do funcionário por andar com um fato mal cortado, olhou novamente para o relógio, e se comprasse um relógio, ia ter uma casa nova, decidiu que não, já não precisava de relógio, eram 9.16.

Os outros funcionários olharam-no desconfiados, as pessoas que estavam noutra fila também, contou cinco homens e três mulheres, dois velhos, a manhã cheirava a café, o céu estava muito azul, qual será o pecado deste céu tão azul, daí a poucos dias era natal e ele e a rapariga bonita iam passar a consoada a casa da mãe como tinha

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prometido, uma família normal, só faltava a casa nova, este era o tempo certo para obras de misericórdia espiritual, dar bom conselho a quem precisa, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, o funcionário aproximou-se, o gerente pediu-me que telefonasse à titular da conta, compreende que não é uma situação vulgar, decerto que a titular dirá que está tudo bem, o funcionário ia falar com Eva e ele ficou muito assustado.

Desde que Eva lhe dissera que nunca mais o queria ver ainda não lhe tinha conseguido falar, não sabia o que Eva seria capaz de dizer, não conheço esse homem, ou esse homem roubou-me os cheques, devia ter tentado mais vezes mas tinha sempre tanto que fazer, a rapariga bonita esgotava-lhe o tempo, tinha ido ao banco porque ficara pela primeira vez sem dinheiro no cartão, o cartão plástico com letras douradas já não servia para nada, o funcionário estava afastado, marcava o número, o telefone tocaria na casa grande longe de tudo, podia ser que Eva dissesse que estava tudo bem, e se o marido atendesse, tinha que agir depressa, um dos pecados contra o Espírito Santo, presunção de se salvar sem merecimentos, se pedisse novamente o cheque o funcionário desconfiava, o funcionário marcou novamente o número, ele transpirava, tinha a certeza que todos reparavam que ele não se sentia bem, tinha que agir depressa, o funcionário virou-se de costas, ainda era pior, não sabia se estava ou não a falar, tinha que agir rapidamente, podiam estar a preparar-lhe uma armadilha, outro pecado, contradizer a verdade conhecida como tal, o funcionário desligou o telefone e chamou-o à parte, ele fugiu, bateu nas pessoas que estavam atrás dele, carregou com força no botão da porta, abriu-a, ficou enjaulado numa pequena caixa, medidas de segurança, o funcionário olhava-o espantado, ainda o chamou mas ele carregava no botão da outra porta que finalmente se abriu, empurrou a porta e desatou a correr, tinha a certeza que o queriam prender, Eva tinha dito que ele era um ladrão, só parou de correr longe do banco, tinha que ir buscar a rapariga bonita à pensão, o nome dele tinha ficado no cheque, como é que se pôde arriscar tanto, e se o prendessem, transpirava, tinha que ir à pensão buscar a rapariga bonita e depois resolveria tudo com Eva, não se podia descontrolar, era bom naquilo que fazia, foi a senhoria que o enervou, se a senhoria não o tivesse enervado, parou numa florista para comprar uma dúzia de rosas, a rapariga bonita gostava muito de receber flores, e se lhe levasse um presente, ainda tinha algum dinheiro no bolso, mais tarde falaria com Eva e resolveria tudo, comprou uma dúzia de rosas vermelhas e correu para a pensão, estava apaixonado e os apaixonados nunca temem o futuro.

Até o ouvir gritar com a senhoria a rapariga bonita não tinha a certeza que ele era realmente perigoso, nunca o tinha visto descontrolado, não o achava agressivo, até o ter visto gritar com a senhoria a rapariga bonita tinha-se convencido que ele era um pobre

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coitado que a adorava, foi por isso que se foi deixando ficar, ainda não tinha arranjado sítio para onde ir, de qualquer maneira desde que suspeitou dele a rapariga bonita acautelou-se, era ela sempre que decidia aonde iam, ele nunca se opunha a nada, estou sempre bem desde que esteja contigo, a rapariga bonita escolhia locais movimentados, ele não lhe podia fazer mal, na pensão bastava-lhe falar mais alto e a senhoria aparecia, a rapariga bonita não tinha medo dele mas pensava deixá-lo em breve porque já estava farta, já não gostava dos dias que passavam juntos, daquele amor tão exagerado, quase uma doença, achou-o inofensivo até ao dia que o ouviu gritar com a senhoria, tinha-se enganado, ele não era só um desgraçado perdido de amor como julgou, ele era de facto perigoso, aquele sorriso doce tinha-o denunciado, tinha que ir embora antes que fosse demasiado tarde, arranjaria um sítio qualquer, podia sempre voltar para os amigos que se riram dela no café, em último caso voltaria para os amigos.

Naquela manhã, em vez de se ir deitar como lhe tinha dito, a rapariga bonita abriu o armário e atirou as roupas para cima da cama, tinha pouca coisa, cabia tudo num saco, começou a dobrar as roupas, talvez conseguisse sair antes dele chegar, era mais fácil se ele não a visse, raramente ficava sozinha, a senhoria também não daria conta de nada, tinha começado a limpar a pensão freneticamente, a rapariga bonita meteu tudo no saco, durante a noite ele tinha-lhe pedido para nunca o deixar, a rapariga bonita pôs-se a pensar que ele era capaz de lhe fazer mal se a visse partir, tinha gritado daquela maneira com a senhoria, a rapariga bonita passou a mão pela figa de ouro para se proteger, ia-se embora, se se cruzasse com ele logo se veria.

Ainda pensou escrever-lhe um bilhete breve a pedir-lhe que não a procurasse, podia dizer que tinha encontrado outra pessoa, talvez fosse mais fácil ele desistir dela, mas não escreveu nada, não podia evitar que ele a procurasse em todo o lado se essa fosse a vontade dele, só se abandonasse a cidade por uns tempos, quando saísse dali logo decidiria, se ficasse na cidade ele acabaria por encontrá-la, se calhar tinha mesmo que ir para longe, ele não era como os outros homens com quem tinha vivido, nunca tinha conhecido ninguém assim, com os outros homens que teve quando se fartava ia-se embora, despedia-se normalmente, quando eram eles que se fartavam dela faziam eles o mesmo, mas ele era diferente, a rapariga bonita bateu a porta e desceu os degraus com jeitinho, não queria que ninguém a visse partir, quando saiu do prédio ainda não sabia para aonde ia, começou a andar, o saco não lhe pesava, a rapariga bonita pensou que com um bocado de sorte encontrava rapidamente outro lugar, ainda era nova, continuou a andar, estava outra vez por conta própria, a manhã estava muito bonita, o céu estava muito azul, a rapariga bonita desceu contente a avenida.

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Apesar da limpeza a senhoria ouviu bater a porta mas não desconfiou que a vadia tivesse ido embora de vez, se assim fosse tinha tentado impedi-la, precisava dela na pensão, a televisão tinha telefonado, iam lá dali a dois dias, o que eram dois dias na vida da rapariga, se a senhoria tivesse percebido teria tentado impedi-la, mais uma pessoa dá sempre jeito, a senhoria já tinha arranjado umas crianças para a televisão, tinha pedido a uma vizinha que trouxesse os netos, a vizinha concordou desde que não fosse obrigada a falar para a televisão porque tinha medo de se atrapalhar, a senhoria sossegou-a, bastava que ficasse sentada na sala e que se deixasse filmar com os netos como se ali vivesse, se puder traga-os todos, sempre é uma recordação, a vizinha perguntou para que programa era, ficou satisfeita, as notícias ainda são o melhor, mais tarde a vizinha pediu a um dos filhos que gravasse o programa, não é todos os dias que se aparece na televisão, dali a dois dias a vizinha apareceria com os netos na televisão, a senhoria afadigava-se nas limpezas, queria que vissem tudo em condições, o reformado pensava se havia ou não de comprar um fato novo, nunca tinha aparecido na televisão, a senhoria já lhe tinha contado o telefonema várias vezes, primeiro uma menina perguntou por ela, uma menina muito educada, depois passou-a à jornalista, a senhoria contou várias vezes o que lhe tinha dito, querem deitar abaixo um prédio cheio de crianças e velhos, a jornalista disse que a equipa de reportagem passaria da parte da tarde, a senhoria ficou assustada, tinha que ter tempo para dar um jeito a tudo, quando soube que tinha dois dias a senhoria respirou aliviada, o reformado decidiu que ia comprar um fato novo, podia mandar uma cassete aos filhos, foi o que a senhoria lhe disse, o filho da vizinha ia gravar tudo, o reformado queria que os filhos o vissem com um fato novo.

Quando o gordo soube também ficou muito entusiasmado, mais tarde o gordo disse à senhoria que tinha falado com o sócio e que ele lhe tinha dado uma ideia muito boa, se a senhoria pusesse o nome da companhia de seguros na sala podia ganhar algum dinheiro, claro que ninguém precisava de saber, era assim que faziam nas novelas, a senhoria ouviu-o atentamente e disse que ia estudar a proposta, a papada da senhoria andava alegre para cima e para baixo, a senhoria já não se lamentava, foi por isso que não deu conta que a vadia se tinha ido embora de vez, num dia normal ninguém deixaria assim a sua pensão.

O funcionário entra na sala e pede à rapariga para o acompanhar. Ela obedece. É uma criança com o cabelo despenteado que vai pelo corredor sombrio, uma criança que carrega outra dentro dela.

O médico tem pressa em acabar o dia, quer ir para casa verificar se tudo continua bem, se os filhos e a mulher estão bem, se o aparelho dos dentes e os óculos correctores são capazes de prevenir

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uma alma de assassino, se a sua mulher sabe se são felizes, o médico também teme que o seu corpo ceda, está cansado.

A rapariga não diz nada, espera que o médico a interrogue, voluntaria-mente não tem nada para dizer.

Como é que o conheceu? A rapariga já não se lembra onde e quando o viu pela primeira vez, sabe que parece mal não se lembrar, inventa, numa festa de amigos comuns, é assim que quase todos os casais respondem nas revistas que lê. O médico anota tudo na sua letra bonita e legível.

O médico faz pela última vez as mesmas perguntas, comportamentos agressivos ou estranhos, qualquer coisa que a rapariga se lembre, o médico pensa que se a sua menina tivesse aquela barriga em vez do aparelho nos dentes ele era bem capaz de morrer de tristeza, é por isso que o médico quer que a rapariga saia depressa da sala.

A rapariga não gosta da pena que sente nos olhos do médico porque vive como quer e de certeza que o médico não vive como quer, se vivesse não tinha aquele aspecto.

Como é que ele reagiu à sua gravidez? A rapariga pensa que esta resposta é a mais fácil de todas, diz satisfeita, não soube, não chegou a saber porque quando me fui embora ainda não sabia que estava grávida.

O médico espera que a junta médica consiga fazer perguntas pertinentes e obter boas respostas porque será a junta médica que decidirá se o doente pode ou não ser julgado pela lei dos homens. A ele só lhe cabe escolher as declarações que a junta médica deverá ouvir.

A rapariga não acrescenta nada ao que as outras mulheres disseram. O médico pensa que deverá ser dispensada por ter pouco interesse. O médico escreve nas folhas brancas na sua letra bonita e legível em linhas que sobem e descem, viveu uns meses com o paciente obviamente por razões de natureza económica, atendendo às dificuldades que teve nunca saberá distinguir um comportamento saudável de um doentio, parece encarar com normalidade as obsessões do paciente, aliás, encara como normal tudo o que é aberrante.

O médico quer perguntar à rapariga como pensa criar o filho, mas não o faz porque tem medo da resposta, tem medo que a rapariga lhe responda, como me criaram a mim, o médico tem medo do que pode ser um perigo no futuro da sua menina e do seu menino, tem medo dos que são iguais a esta rapariga, dos que são incapazes de distinguir o bem do mal.

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Meus irmãos: revesti-vos de entranhas de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão e paciência.

Suportai-vos uns aos outros.Col. 3, 12-13.

Foi ontem de manhã brutalmente assassinada uma mulher de 27 anos. O crime ocorreu numa pensão de uma zona degradada e até agora desconhecem-se os motivos que levaram a tal acto. O crime surpreendeu os restantes moradores uma vez que o homicida é uma pessoa pacata que trabalha há muitos anos como contabilista numa grande empresa. Os familiares da vítima afirmam... (continua na pág. 3)

Era a primeira vez que Eva entrava na pensão. Subiu a medo os degraus, não reparou no menino partido que segurava o mundo no arranque do corrimão, nem na passadeira de linóleo, na água que escorria pelas paredes, nas baratas esborrachadas pelos miúdos do quarto andar. Desde que se aborreceram de procurar tesouros nas paredes, os miúdos apostam quantas baratas conseguem matar e divertem-se com o barulho que as baratas fazem quando rebentam. Mesmo assim, Eva achou a pensão ainda mais horrível do que a imaginou das vezes que a tinha visto por fora.

Nesses dias Eva estava magoada por ele lhe ter mentido, tinha-lhe dito que morava no lado oposto da cidade, numa pensão pintada de amarelo sol e janelas verdes de madeira, agora já sabia que ele lhe tinha mentido em tudo, já não se sentiu enganada antes se culpou por não ter desconfiado que ele viveria num sítio daqueles, às vezes ele gostava das manhãs outras achava-as demasiado bonitas, o mar era tão grande que o enervava, as flores tinham muitas cores, as árvores monotonamente verdes, não gostava nem odiava nada em particular, uma pessoa assim tinha que acabar num sítio daqueles, a senhoria abriu-lhe a porta, correspondia ao que Eva tinha imaginado depois de ter visto o prédio, era gorda, o cabelo pintado de caju, Eva reconheceu a cor das embalagens do supermercado, maquilhada com sombra muito azul nas pálpebras e um risco preto mal traçado que lhe aumentava as olheiras, muitos anéis nos dedos, o avental plástico queimado num dos lados, a senhoria cumprimentou-a com um aperto de mão e encaminhou-a para a sala.

Eva percebeu que a senhoria tinha ficado agradada com o seu aspecto e que ao contrário dela não a tinha imaginado assim, a senhoria não tinha conseguido disfarçar o espanto, quem diria que ele conhecia alguém tão fino, a senhoria fê-la entrar na sala que tinha a televisão ligada. Eva sentou-se e ficou a olhar para as molduras com fotografias em cima da televisão, uma série de casamentos, outra de baptizados, a família da senhoria emoldurada, desviou os olhos, a

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senhoria pediu-lhe licença, retirou-se. Enquanto esteve sozinha Eva imaginou-o sentado naquele sofá a ver televisão, cruzou a perna como ele costumava fazer, olhou em volta, a senhoria reapareceu sem o avental, Eva merecia que tirasse o avental, sentou-se no sofá em frente, traçou os pés gordos recuando-os ligeiramente, Eva perguntou se podia fumar, a senhoria estendeu-lhe o cinzeiro com cerimónia, ele também fumava muito, disse, com um ar sofrido, o reformado entrou na sala mas a senhoria mandou-o embora porque se tratava de uma conversa particular.

Disse que ainda não estava nela, e a papada subiu e desceu a confirmar o nervosismo. Recebia-a porque era amiga da namorada dele que, não desfazendo, sempre tinha sido muito educada, e porque também se queria ver livre das coisas dele, não gosto de nada que não seja meu, só por isso é que a recebo, Eva quase não falava com medo que a senhoria lhe reconhecesse a voz, que chegasse à conclusão que a namorada e a amiga eram a mesma pessoa, noutra altura a senhoria teria reparado mas ainda não estava nela, o protagonismo que nos últimos tempos se tinha colado a ela desconcentrava-a, a senhoria disse, a sua amiga deve estar a passar um mau bocado, nunca a conheci mas deve ser uma excelente pessoa, parecia gostar muito dele, era pena estar tantas vezes no estrangeiro por causa da profissão, os homens sozinhos fazem sempre asneiras, Eva não sabia o que ele tinha inventado acerca dela, mais tarde percebeu que a julgavam guia turística, a senhoria começou a contar o que aconteceu, Eva percebeu que já o tinha feito muitas vezes, já tinha encontrado o ritmo adequado, foi no dia em que a televisão cá veio, claro que foi por acaso, calhou ser nesse dia, podia ter sido antes ou depois mas ainda bem que foi nesse dia, os senhores da televisão sempre ajudaram, se não estivesse cá a televisão não sei o que teria sido, Eva preparou-se para a ouvir relatar tudo, a senhoria tinha que contar tudo antes de lhe dar as coisas dele, Eva ainda não sabia para o que as queria, nunca o julgou capaz de matar, foi à pensão à espera de compreender.

As palavras escorriam oleadas pela boca da senhoria, os lábios finos descaídos mexiam-se muito, Eva pensou que nunca simpatizaria com uma pessoa de lábios tão finos, de vez em quando deixava de a ouvir, se não parecesse mal acendia outro cigarro, a senhoria continuava, para mim foi tudo por causa daquela, nem sei como lhe hei-de chamar, desde que a conheceu parecia embruxado, quando ela o deixou, nunca vi nada assim, Eva reconheceu as palavras da senhoria dos jornais, parecia embruxado, no dia que ela se foi embora julguei que era a mim que, só de pensar nisso fico toda arrepiada, olhe, a senhoria mostrou os braços com pêlos escuros eriçados, quando ele entrou por aquela porta, trazia um grande ramo de rosas e um embrulho, se ela pedisse o céu dava-lhe o céu, entrou por ali, a senhoria devia ter feito os mesmos gestos para os jornalistas, para os vizinhos, para todos os curiosos que visitaram o lugar, quando viu o

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quarto e o maldito armário vazio nem pode imaginar o que aqui foi, parecia que o picavam, eu nem me tinha apercebido de nada, se fosse num dia normal, mas como disse foi em vésperas de a televisão cá vir, andava ocupada com as limpezas, ela pôs-se a andar depressa porque tinha pouca coisa, não é para dizer mal mas não sei onde é que ele a foi descobrir, ninguém me tira da ideia que ela se safou logo atrás dele, deviam ter tido alguma discussão, nesse dia gritou comigo como um doido e depois saiu porta fora, foi a primeira vez que me gritou, nem sei como saiu sem ela, desde que a trouxe para cá que nunca davam um passo um sem o outro, naquele dia deviam estar zangados, e ela já devia ter a ideia de se ir embora, eu estava muito ocupada porque vinha cá a televisão, tinha escrito a carta há tanto tempo que começava a desanimar e foi nesse mesmo dia que me telefonaram a dizer que vinham cá, aconteceu tudo ao mesmo tempo, por isso é que ainda não estou em mim, como iam filmar queria que vissem tudo limpo, estava a limpar aquele quartinho ao fundo quando ele entrou, para a senhoria estes pormenores eram importantes, faziam parte do crime, ouvi-o chegar mas como não sabia de nada continuei no meu trabalho, ele foi direito ao quarto dela, a senhoria parou uns instantes, este silêncio também era importante e tinha que ser respeitado para que nada falhasse, nunca na minha vida vi nada assim, ele andava sempre, sempre atrás dela, se ela ainda fosse alguma coisa de especial, sinceramente não percebo o que viu naquela rapariga, andava sempre com o cabelo cheio de ricas, as saias a arrojarem pelo chão, parecia aciganada, Deus me perdoe, mas parecia aciganada, tive que a aceitar, aliás, aceitei-a por causa dele, e quando se tem uma casa aberta, Eva acenou compreensiva com a cabeça, quando entrou no quarto e percebeu que ela se tinha ido embora deu uns gritos que parecia o diabo dentro dele, eu fui até ao quarto, se visse a minha surpresa quando percebi o que se passava, pensei, deve ter arranjado outro, juro que pensei, estas mulheres são mesmo assim, claro que não lho disse mas que pensei, pensei, ele perguntou-me por ela, tinha o diabo no corpo, olhe que não sei de nada, de manhã ele já tinha gritado comigo, daí que eu tenha dito logo, olhe que não sei de nada, o que tinha acontecido era lá entre eles, não me queria meter, olhe que não sei de nada foram as únicas palavras que lhe dei, Eva pensou que nenhum jornalista tinha ligado a esta frase que a senhoria tanto repetia, olhe que não sei de nada, ele começou a gritar comigo, chamou-me tudo o que lhe apeteceu, Eva tinha lido, vaca e usurária, estava tão enraivecido, em toda a minha vida acho que nunca vi ninguém assim, o meu hóspede, aquele que aqui veio há pouco, como já está reformado passa aqui os dias e naturalmente até tinha comprado um fato novo, o pobrezito veio em meu socorro, a senhoria esfregou as mãos e suspirou, Eva pensou que os suspiros da senhoria também não tinham sido transcritos para as notícias que leu, o velhote aproximou-se de mim e ele chamou-lhe pedaço de merda, veja lá, Eva tinha lido, vai-te embora, seu pedaço

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de merda, claro que tivemos os dois muito medo, ele estava louco e um louco não sabe o que faz, ainda tentei sair do quarto, mas ele empurrou-me para cima da cama, tanta força como só o inimigo pode ter, a senhoria bateu três vezes na madeira, desequilibrei-me, caí sobre a cama, o velhote ainda me tentou ajudar mas ele impediu-o, claro que o homem nem se mexeu, tenho a certeza que até se mijou, desculpe dizer isto assim mas tenho a certeza que o velhote se mijou todo, um dia destes ainda lhe hei-de perguntar, tem sido tanta coisa que me tenho esquecido, Eva pensou que a senhoria já tinha perguntado mas que gostava de contar assim, se o velhote se tivesse mijado teria sido uma prova do medo que sentiram, a senhoria há-de sempre lamentar que o velhote se tenha aguentado, para a próxima a senhoria deseja que alguém se mije perante uma situação de perigo para ser tudo mais verídico.

Chamou-nos todos os nomes que lhe passaram pela cabeça e foi-se embora. Nós ainda pensámos chamar a polícia, mas estava tão atrapalhada, e depois podia parecer mal, também não podia adivinhar que ele, quem é que pode pensar que uma pessoa normal de repente, bom, pensei que aquilo era um arrufo e que ela acabava por regressar, se aquela vadia, desculpe, mas é assim que lhe chamo, se ela tivesse voltado tenho a certeza que ele não tinha feito nada, eu só queria que tudo corresse bem com a televisão, isto está assim como vê mas não é culpa minha, é a velhice do prédio, eu bem esfrego as paredes, ainda me doem os braços, faço uma bacia de detergente verde e lixívia e com a escova, antes de se ir embora ameaçou-nos, se soubesse que nós lhe tínhamos feito alguma coisa, não sei se deve contar isto à sua amiga, são coisas tão tristes, Eva prometeu que não contaria nada à amiga, acendeu outro cigarro, a senhoria manifestou interesse em saber mais sobre a amiga, ainda pensei que os jornalistas a entrevistassem, e à mãe, imagino o desgosto daquela mãe, se um dos meus filhos me fizesse uma coisa igual morria de desgosto e de vergonha, até pensei que a sua amiga estava zangada, ninguém gosta de ser trocada ainda por cima por uma rapariga daquelas, mas aquilo foi bruxedo, Eva disse que a amiga não estava zangada, a senhoria abanou piedosamente a cabeça, até um assassino merece perdão, toda a gente merece perdão, ninguém está livre, nesse dia se tivéssemos dado um passo ou feito qualquer coisa tenho a certeza que também já não estava aqui a falar consigo, tenho a certeza, da forma que estava virado, mas ficámos quietos e como não lhe respondemos ele lá se foi.

Eva queria receber as coisas dele para se ir embora, não gostava de estar ali, do cheiro a fruta apodrecida, do póster com o menino a tocar piano, Eva não gostava de estar sentada na pobreza, de respirar a pobreza, tinha conseguido fugir do bairro, nunca mais queria estar perto da pobreza, a senhoria ainda tinha muito para contar, Eva traçava a perna, cruzava os braços, fazia qualquer coisa para deixar de a ouvir, nesse dia voltou muito tarde, deve ter andado à procura

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dela, não lhe perguntei nada, tinha decidido que ele se ia embora mas só depois da televisão cá vir, não queria que nada corresse mal, ainda hoje não sei o que aquela vadia lhe deu, ele era um homem pacato, durante os anos que aqui morou ia e vinha para o emprego, parecia um relógio, Eva tinha lido, contabilista numa grande empresa, a senhoria continuou, era um homem pacato, estava a arranjar a vida para se casar com a sua amiga, se se tivessem casado nada disto tinha acontecido, Eva concordou com a cabeça, telefonava à mãe, era educado, respeitador, até conhecer aquela vadia não tenho nada a dizer dele, era um bocado fechado demais para o meu gosto, mas cada um tem o seu feitio, nunca nos fazia companhia na televisão, desculpava-se que tinha que se deitar cedo por causa do emprego, ninguém podia adivinhar que era capaz de uma coisa daquelas, Eva interrompeu-a de repente para perguntar, a mãe dele alguma vez o visitou, não, está na terra, é velha, ele é que de vez em quando lá ia, mas telefonava-lhe todas as semanas, Eva tinha lido, a mãe ainda vive na sua aldeia natal, ninguém conhecia o bairro, era um filho muito dedicado, Eva pensou que ele tinha inventado uma vida e que os jornais tinham confirmado essa vida, a senhoria repegou nas palavras, não gostava de ser interrompida, tinha de contar sem interrupções para não se esquecer de nada, é certo que ela o endoidou, mas daí a ser capaz, a senhoria evitava falar nas facadas à volta do coração, ainda hoje me custa a aceitar, se tivesse visto, ele tinha sido violento comigo, mas nunca pensei que fosse capaz de ir buscar a maldita faca, há anos que a tinha na cozinha, fazia-me jeito para arranjar uma galinha, daquelas maiorzinhas para canja, há anos que a tinha na cozinha, agora é a polícia que a tem, ele deve ter ido buscá-la já com a ideia de a matar, quer dizer não sei, não vi, os senhores da televisão estavam a montar as luzes, a coitadinha, era assim que a senhoria se referia à vítima, Eva esperava que a senhoria chorasse, mas a senhoria prosseguiu de olhos secos, a voz ligeiramente trémula, a coitadinha estava aqui nesta sala à minha espera, quando cá vinha nunca se demorava, mas naquele dia por causa da televisão deixou-se ficar mais um bocadinho, pouco antes ainda me disse, nunca pensei que fosse preciso tanta coisa, foram as últimas palavras que me disse, coitadinha, num minuto admirada com o mar de fios que andava por aqui e noutro morta, é bem verdade que não somos ninguém nesta vida, tinha chegado a hora dela, os senhores da televisão ligaram as luzes, quando as acenderam parecia que tinham posto o sol aqui dentro, estavam cá umas vizinhas, uma até trouxe os netos, as pessoas gostam sempre de ver a televisão, estavam cá umas vizinhas, os meus dois hóspedes, o que já se reformou e o outro que trabalha por conta própria, os parasitas do terceiro e do quarto é que não, a senhoria apontou para o tecto, a desgraçada daqui de cima, deve tê-la ouvido gritar, essa nunca sai de casa, há mais de vinte anos que não sai de casa, é uma miséria, mas eles foram lá acima filmá-la, Eva tinha visto na televisão uma velha

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desgrenhada de cócoras junto de um prato de comida, deixo-lhe sempre comida na varanda, isto para dizer, tantas pessoas e ninguém deu conta, quando demos conta já não havia nada a fazer, ele deve-a ter chamado para o quarto e a coitadinha foi, fingiu que queria comprar alguma coisa, isso penso eu porque o que se passou nunca se pode saber, quando a ouvimos gritar já era tarde, ele já a tinha, olhe fico toda arrepiada, a senhoria mostrou outra vez os pêlos eriçados, quando fomos acudir ela estava deitada no chão e ele prendia-a com os joelhos, tinha os joelhos em cima da barriga da pobrezinha, foi por isso que não conseguiu gritar mais alto, sim, porque vontade não lhe deve ter faltado quando o viu com a faca, pelo menos deve ter gritado quando ele a espetou, a não ser que tenha desmaiado, mas não me parece que tenha desmaiado, deve ter-se apercebido de tudo, espetou-lhe a faca no peito, Eva tinha lido os tamanhos e os sítios de cada golpe, se calhar viu na televisão, Eva tinha visto na televisão o corpo a ser removido numa maca, na televisão passa depressa mas os jornais contaram tudo, tenho ali todos, Eva olhou para cima da mesa e viu o monte de jornais, mesmo depois de lá estarmos ele ainda tentou enfiar a mão num corte maior que lhe tinha feito, como se andasse à procura de qualquer coisa dentro dela, olhe não sei explicar, Eva tinha visto as fotografias da vítima, os senhores da televisão, os meus hóspedes, todos os que aqui estávamos ficámos sem reacção, não nos conseguíamos mexer, a pobrezinha deitada no chão e ele a, nem a um animal consigo fazer o mesmo, uma galinha ou um peru o que me custa, tenho que os matar, mas o que me custa, os senhores da televisão ainda não tinham as coisas preparadas para filmar, foi pena, se tivessem filmado é que tinha visto bem o que aconteceu, um homem que desata a espetar uma mulher no peito é obra do inimigo, a senhoria bateu três vezes na madeira, a mim ninguém me convence que estava nele, a coitadinha veio cá nesse dia porque lhe tinha encomendado uma camisa azul com uns botões douradinhos para a missa de ano novo, ainda ontem dei o dinheiro ao marido, contas são contas, Eva tinha lido, a vítima vendia roupa e outros artigos a prestações, a coitadinha trouxe-me uma saia a condizer mas não lha comprei, não me assentava bem, a coitadinha deixou-se ficar por causa da televisão, a pessoa tem sempre aquela curiosidade, e foi isso que a matou, ainda ontem o marido me contou que ela tinha brincado com ele, vou aparecer na televisão, mal ela sabia, Eva tinha lido que o marido da vítima não se conformava, a televisão vai hoje à pensão da fulana tal, foram essas as últimas palavras que disse ao marido, a senhoria continuou devagar, Eva acendeu outro cigarro, a senhoria sorriu, olhe que lhe faz mal à saúde, Eva agradeceu a preocupação, há anos que lhe comprava roupa, deixou um filho pequenino, Eva tinha lido, a vítima deixa marido e um filho de três anos, até lhe tinha prometido comprar um casaco de cabedal no princípio do ano se as coisas corressem bem, tinha-os muito bons,

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também vendia algum ouro, ouro de lei, era uma pessoa muito honesta, sabe que me custa usar estes anéis que lhe comprei, estendeu a mão e os dedos para que Eva pudesse ver os anéis, mas a vida continua, ficou uma poça de sangue no quarto, nem quero pensar, os senhores da televisão agarraram-no mas já não havia nada a fazer, foi pena não terem filmado, eu vi logo que ela não se safava, estava branca como a cal, foram precisos quatro homens para o agarrarem, era a força do mal com ele, quando o agarraram não disse nada, até parece que não percebeu o que fez, não estava nele, tenho a certeza que não estava nele, com os nervos desatei a gritar, foi uma aflição tão grande, o quarto cheio de sangue, Eva percebeu que a senhoria costumava chorar nesta parte e ela assim fez, limpou uma lágrima que criou com dificuldade, ainda a levaram para o hospital, mas chegou lá morta, Eva tinha lido, a vítima foi levada ainda com vida para o hospital mas viria a falecer no caminho, os da televisão ajudaram a polícia, juntou-se aqui um mar de gente, e agora o que me custa entrar naquele quarto, ainda lá está a mancha do sangue, Eva tinha visto fotografias, então se estou cá sozinha, acontece raramente, claro que se for preciso alguma coisa entro, olhe que ele também não tem muitas coisas, está quase tudo em casa da sua amiga, era o que ele dizia, comprámos isto e isto mas ficou em casa da minha namorada, Eva lembrou-se dos discos dele ainda encaixotados em casa da tia, tem ali roupas e pouco mais, a senhoria tinha acabado a versão oficial, Eva tinha que a interromper para que a senhoria não começasse a versão pessoal, a senhoria perguntou, eram amigos, quer dizer conhecia-o bem, Eva abanou a cabeça, não, praticamente não nos conhecíamos, sou amiga da namorada, amigas de infância, crescemos juntas, mas tinha boa impressão dele, a senhoria ficou satisfeita, mas no fim de tudo a minha pensão até ficou bem na televisão, não sei se viu, Eva negou, não podia dizer o que tinha achado da pensão, não vejo muita televisão, a senhoria olhou para a televisão que esteve sempre ligada enquanto conversaram, esta humidade quase não se via, não fui só eu que gostei, os vizinhos também se fartaram de elogiar, ele ainda me prometeu que ia falar com uns engenheiros que conhecia, depois meteu-se com ela, a sua amiga se calhar também os conhece, Eva disse que não sabia, Eva tinha lido, dona da pensão vai para a rua, a senhoria continuou, agora como o caso foi denunciado eles já querem um acordo, um dos jornalistas disse-me que vão fazer andares de luxo porque isto é um sítio muito central, nesta avenida já deitaram abaixo uma série de prédios, não sei se reparou num espaço dois prédios à frente deste, estava lá um igualzinho a este, se calhar um bocadinho mais pequeno, ainda estava em bom estado mas também foi abaixo, a televisão foi uma grande ajuda, ainda por cima como aconteceu o que aconteceu vieram cá outras televisões, pensei que dava em maluca, os jornalistas não descansam enquanto não descobrem tudo, acabam sempre por descobrir tudo, os jornalistas descobrem sempre tudo,

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não digo que não saio daqui, que não chegue a um acordo, estou cansada, uma pensão dá muito trabalho, se fosse mais nova, e ganhei medo, a gente pensa que conhece as pessoas mas não, quem diria que ele era capaz de fazer o que fez, ia fazer seis anos que aqui estava, não foram seis dias, os meus filhos ainda ontem me telefonaram para me pedirem para não aceitar mais ninguém, se a indemnização fosse um bocadinho melhor dizia já que sim, tenho que fazer contas, mas é como eu digo, foi a televisão que me salvou, ainda por cima como aconteceu aquilo, a senhoria nunca dizia a palavra crime, falei do meu problema a cada jornalista que cá veio, eles vinham mais por causa do que aconteceu mas sempre deram uma ajuda, enquanto for viva hei-de dizer a toda a gente que foi a televisão que me salvou, mas não deve ter tempo para estar a ouvir uma velha a falar, deve querer as coisinhas dele, Eva sorriu, foi um prazer, claro que tem a sua vida, a senhoria levantou-se e Eva seguiu-a, entraram no quarto, foi aqui que tudo aconteceu, horas do inimigo, a senhoria bateu mais três vezes na madeira, quando a sua amiga telefonou pus logo as coisas dele em cima da cama, pode ver mas as gavetas estão vazias, Eva viu em cima da cama as roupas que lhe tinha comprado ao longo dos anos, os postais que lhe tinha enviado, umas luvas de lã velhas, Eva começou a juntar as coisas, a senhoria observava-a, diga à sua amiga que se faltar alguma coisa ninguém mexeu em nada desde que o levaram, a polícia mexeu mas acho que deixou aí tudo, os jornalistas estiveram cá mas eu estive sempre presente, as coisas estavam à minha guarda, Eva sentou-se na cama dele para dobrar melhor as roupas, a criatura do andar de cima gritava, Eva pensou que era muito fácil enlouquecer se ficasse ali muito tempo, bastava tempo e uma distracção, era fácil matar naquele quarto, bastava pensar nisso, a senhoria trouxe sacos plásticos para guardar as coisas miúdas, Eva comoveu-se com as luvas velhas de lã, nunca mais as tinha visto, não sabia que ele as guardara, o passado apareceu inteiro de repente, a senhoria não se apercebeu de nada, Eva arrumou tudo, a senhoria continuou, parece que estou a ver a coitadinha deitada no chão, Eva pegou nos sacos, deu uma gratificação à senhoria, por favor, foi a minha amiga que me pediu, a senhoria mudou de expressão, sendo assim, olhe diga-lhe que espero que organize depressa a vida dela, se conseguisse esquecer-se disto tudo era o melhor que fazia, Eva despediu-se, a senhoria acompanhou-a à porta e disse três vezes com licença antes de fechar a porta.

Nas escadas Eva esfregou com força as mãos no casaco e saiu da pensão aliviada por nunca mais ter que estar naquele sítio ou falar mais com a senhoria. Quando entrou no carro abriu os sacos, leu pedaços de cartas que lhe escreveu, mexeu em tudo à procura de qualquer coisa que justificasse o que se tinha passado, um diário se ele tivesse o hábito de o escrever, um bilhete a chantageá-lo, um medicamento que tivesse a loucura como efeito secundário, não

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encontrou nada, mais tarde abriria a mala que a senhoria disse ter só roupa, quem sabe se no bolso de um casaco, Eva pôs o carro a trabalhar para se afastar dali, ficou parada na avenida no meio de muitos carros, a cidade engarrafada e dois homens empoleirados numa escada a desfazerem os enfeites de natal, duas cornetas de anjo no chão, Eva ligou o rádio, música romântica, mudou, notícias, mudou, música de que não gostava, mudou, o terço transmitido directamente da Capelinha das Aparições, Eva desligou o rádio, os carros não se mexiam na avenida, Eva procurou o prédio que tinha sido demolido, dois prédios mais abaixo, ainda estavam pedras no chão e restos de cor agarrados à empena do prédio ao lado, os recortes das chaminés na empena do prédio que também haveria de ser demolido, tudo a seu tempo, e se atirarasse tudo para o terreno do prédio demolido, se pudesse estacionar, fez sinal, virou para uma rua secundária, um homem indicou-lhe um lugar vago, corria à frente do carro protegido por um chapéu de chuva, tinha começado a chover, Eva aborreceu-se, não queria molhar o cabelo mas queria desfazer-se rapidamente das coisas dele, não tinha mais nada para ver, nunca seria capaz de compreender o que se tinha passado, arrependeu-se de ter ido à pensão, de ter fingido que era uma amiga da namorada, de ter confirmado o que ele tinha inventado, de ser cúmplice dele até ao fim, o cheiro horrível da pensão tomava conta do carro, quando deitasse tudo fora ele sairia para sempre da vida dela, o homem indicou-lhe um lugar, Eva parou o carro e abriu a porta de trás, fez-lhe sinal para levar as coisas, o homem não percebeu, Eva gritou-lhe, tire estas coisas daqui, deitou fora alguns sacos, quando percebeu o homem pegou na mala, salvou-a das luvas de lã que punha quando saía para consertar ossos, salvou-a dele, o homem abriu a mala, era um animal satisfeito, mexeu na roupa com as mãos encardidas, experimentou um casaco, ele e este homem eram quase da mesma estatura, feitos da mesma massa, o homem não agradeceu, ia-se embora quando perguntou, por acaso isto é de algum morto, dá-me azar vestir roupa dos mortos, Eva surpreendeu-se por aquele homem ainda saber o que lhe dava azar e respondeu que eram coisas de que o marido não gostava.

Deixou que ele se confundisse com o homem que ficou no vazio do prédio demolido, ainda o viu durante algum tempo no espelho retrovisor, eram quase da mesma estatura, feitos da mesma massa, Eva voltou para o engarrafamento e desejou sair rapidamente da cidade, queria voltar para a casa grande longe de tudo e perto do mar, Eva reparou numa unha que se tinha partido, e logo hoje que há jantar de família, de-tes-tam-me, vão reparar na unha partida, o carro de trás buzinou e Eva arrancou no semáforo.

O crime na pensão da avenida. Fonte segura afirma que o alegado homicida, que se encontra detido preventivamente, confessou o crime e explicou os motivos que o impeliram a tão cruel acto. A mesma fonte afirma que se tratou de um crime passional e

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que o alegado homicida já tinha ameaçado a vítima várias vezes. Contactado por este jornal, o responsável pelas investigações não confirmou nem desmentiu. O marido da vítima (primeira foto à direita) ficou surpreendido com a notícia, declarou que está disposto a fazer justiça com as próprias mãos e nega qualquer envolvimento da vítima com o homicida. O resultado da autópsia e vários testemunhos nas páginas centrais.

Eva fechou o jornal. Depois amarrotou-o com força e atirou-o para o chão. A senhoria tinha razão, os jornalistas descobrem sempre tudo. Levantou-se do sofá, tirou a cigarreira e o isqueiro do bolso do robe em cetim que Eva gostava de sentir sobre a pele. Tocou sem querer na carta que recebera há uns dias, a notificação para depor no processo, e isso enervou-a, ajeitou o cabelo como fazia sempre que se enervava. Acendeu um cigarro e enquanto o fumou, calcou devagarinho o jornal, quando apagou o cigarro tinha decidido que nunca mais o procuraria nos jornais.

Nunca tinha acreditado que se podia começar a vida outra vez, e a carta que a intimava a depor dava-lhe razão. Começar a vida era um privilégio de um recém-nascido ou de um amnésico, não estava ao alcance dela nem de ninguém, os que diziam isso estavam enganados ou mentiam. Eva não os criticava porque era fácil enganarem-se e bom mentirem, em contrapartida acreditava que todos os erros podiam ser corrigidos desde que se tivesse vontade, a vontade chegava para corrigir os erros, mas nunca para se começar tudo de novo, Eva queria corrigir o erro de ter confiado nele.

Temia que o marido descobrisse que o tinha traído e pensava no que podia fazer para que nunca soubesse. Sabia que a vida lhe era favorável, os traídos nunca acreditam logo na traição, não tinha acreditado que ele estava noivo como o reformado lhe dissera, durante algum tempo recusou-se a acreditar que tinha sido traída, a vida corria a seu favor, bastava uma história bem inventada para que o marido nunca soubesse o que se tinha passado.

Eva seguiu-o para confirmar que era mentira e quando o viu com a rapariga surpreendeu-se com a verdade. Depois continuou a segui-lo porque pensou que era a maneira mais fácil de o esquecer e de começar a vida outra vez. Quanto mais vezes os visse juntos mais fácil seria esquecê-lo, era o que pensava, mas o tempo demonstrou-lhe como estava enganada, o esquecimento não tem método e a vida começa-se uma única vez.

Ele tinha-lhe mentido em relação à pensão, tinha-lhe mentido muito sem que Eva conseguisse perceber o que o levou a mentir. Durante muito tempo teve esperança de o compreender mas não foi capaz. Não o encontrou quando lá foi pela primeira vez. Na manhã seguinte esperou-o muito cedo para não o perder, chovia e Eva ficou dentro do carro a ver a chuva cair no pára-brisas e a ouvir o barulho no tejadilho. Não fez mais nada. Gostava das sombras que a chuva fazia à noite quando caía no pára-brisas, à noite a água fazia sombras

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muito bonitas dentro do carro, pelo menos Eva gostava, mas durante o dia a chuva era monótona porque se limitava a cair no vidro e a fazer barulho.

Ele e a rapariga saíram da pensão a meio da manhã. Pelos passos pareciam ensonados. Caminharam pela avenida abraçados e Eva admirou-se por se rirem tanto.

Enquanto estiveram juntos nunca tinham andado abraçados na rua e nunca o tinha visto tão feliz. Mas isso não foi suficiente para que Eva desistisse dele. Foram precisos muitos dias, ele nunca se apercebeu porque estava feliz e a felicidade toldava-lhe os olhos e a consciência da passagem do tempo. Para Eva a única satisfação desses dias foi o facto de achar a rapariga desmazelada e nada bonita, a rapariga era pobre e por isso muito banal. Nunca teria suportado que a rapariga fosse bonita, desde que o reformado lhe disse que ele estava noivo o que mais temeu foi a juventude e a beleza da noiva. Quando os viu juntos descansou, a rapariga era nova, quase uma criança ao pé dele, mas desmazelada e nada bonita. Ao princípio doeu-lhe vê-lo tão feliz, mas ao fim de alguns dias já não lhe custava. Também a distância a que o sentia a magoava, mas ao fim de outros tantos dias agradeceu a distância que se tinha interposto entre ela e aquele desgraçado. Foi nesse momento, quando já não sentia nada, que parou de o seguir.

Eva nunca desejou que ele fosse feliz nem nunca lhe mentiu a esse respeito. Precisava dele, como o conhecia, para poder fingir que o amava. Não corria riscos nesse fingimento porque ele era a pessoa certa, um caso tão perdido como ela, a única coisa que realmente a magoou foi ter perdido o recipiente do seu amor tão bem fingido que parecia verdadeiro. Se alguém a julgasse pela forma como o utilizou, Eva alegaria sempre a sua inocência porque não era culpada de não ser capaz de outra forma de amar.

Releu a carta que a intimava a depor, decorou o número do processo, o dia e a hora. Continuava sem saber como corrigir o erro de ter confiado nele. Também tinha que impedir o marido de descobrir a verdade. Não amava o marido que felizmente era um homem prático que dispensava sentimentos supérfluos, mas um homem prático nunca perdoaria uma traição por ser incapaz de a compreender.

Os dias que o seguiu forçaram-na a admitir que ele amava a rapariga, mas o crime continuava por justificar, a vítima tinha sido outra, Eva tinha ido à pensão na esperança de compreender, se fosse capaz de compreender seria capaz de se esquecer de tudo mais facilmente, não havia nada pior do que um mistério para prender pessoas como Eva que gostavam de verdades facilmente demonstráveis, Eva tinha que corrigir o erro de ter confiado nele, queria vingar-se da memória da dor que ele lhe dera, foram precisos muitos dias para Eva deixar de sentir a dor de saber que ele nunca

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mais lhe pertenceria e era da memória dessa dor que se queria vingar.

Eva disse ao marido que os velhos do hospital tinham razão, que a dor é realmente um fenómeno esquisito. O marido anuiu e não lhe perguntou nada nem estranhou a conversa porque os homens muito práticos têm essa vantagem, a de aceitarem tudo como normal. Eva contou-lhe que os velhos do hospital deixavam de sentir a dor com o tempo, era estranho como conseguiam habituar-se tanto à dor até ao ponto de deixarem de a sentir, sofri muito, na altura sofri muito, mas depois a vida continua, diziam para justificarem a sobrevivência à morte dos que tinham amado, a uma dor tão forte que quase os matou. No entanto, Eva nunca disse ao marido que tinha sido velha cedo demais por não conseguir sentir mais do que aqueles velhos que consideravam já ter deixado de sentir fosse o que fosse.

Estava novamente sentada no sofá na sala da casa grande longe de tudo e perto do mar com os pés pousados na banqueta.

Inquietava-se por se aproximar o dia em que iria depor e ainda não saber o que tinha que fazer. Nunca mais o tinha visto e só sabia dele pelos jornais. Eva estava rodeada de objectos bonitos, mas gostava particularmente da caixa de música porque a tinha comprado há pouco tempo e ainda não se tinha habituado a ela. O tempo que habituava os velhos à dor era o mesmo que não permitia que Eva sentisse a beleza dos objectos mais antigos.

A caixa de música tinha dentro uma bailarina que rodopiava quando se levantava a tampa, se tivesse corda, a bela bailarina precisava de alguém que lhe desse corda. Não existia neste mundo uma coisa que não precisasse de nada e a bela bailarina precisava de alguém que lhe desse corda. Eva precisava dele, não o amava mas precisava dele, o que ainda era pior. Por fora a caixa de música era toda laçada a preto. Tinha sido muito cara e o antiquário para justificar o preço tinha-lhe dito que pertencera a alguém famoso, um nome de que Eva já se esqueceu. Possivelmente enganou-a, mas não precisava de o ter feito porque Eva teria comprado a caixa de qualquer maneira.

A empregada entrou na sala para dar comida aos peixes do aquário, Eva gostava que os peixes comessem a horas certas. Obrigava a empregada a andar fardada. Sabia que ela não apreciava, mas não suportava vê-la vestida de maneira diferente todos os dias. Fardada nunca a surpreendia e podia fingir que a conhecia nas riscas azuis e no avental branco sempre iguais. Uma empregada fardada era sempre igual, não tinha dias bons nem maus, de melhor ou pior gosto. Os peixes do aquário amontoaram-se junto à comida, o tempo também era importante para eles se bem que não soubessem o que era o tempo, sabiam apenas que se não fossem suficientemente rápidos não comiam, a vida dos peixes devia ser triste porque desconheciam tudo o que não era essencial.

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Eva tinha mandado destapar a piscina. O calor não tardava a começar. A árvore-de-Judas costumava ser a primeira a florir mas este ano tinha sido o pessegueiro. De resto tudo se repetia no jardim. A água da piscina estava tão azul e tão parada que parecia falsa. A prancha vista da sala parecia-lhe despropositada. Precisava de uma pessoa pronta a saltar, de uma justificação para existir. Se fosse bela como a bailarina não precisava de mais nada para ser vista. Eva sem ele também parecia despropositada apesar da fragilidade do sentimento que os unia.

Eva precisava de se sentir desejada, de quem dependesse dela, de quem a esperasse, e até ao dia em que faltou ao encontro ele sempre a esperou e Eva sempre se atrasou voluntariamente. Ele nunca disfarçou a vontade de a beijar mas nunca se atreveu a fazê-lo, apesar de Eva lhe dizer o que gostaria de sentir, que ele a amava, um dia, um minuto que fosse, para deixar de conhecer as coisas só de ouvir falar, dizia-lhe, vou amar-te para sempre e nenhum deles acreditava, no entanto fingiam que sim, era muito difícil encontrar alguém que a deixasse fingir tudo o que queria, podia fingir que o amaria para sempre sem nunca ter sentido a obrigação de o amar, estiveram juntos tantos anos e sempre se enganaram, foram felizes, mas ele traíu-a e Eva continuava sem compreender e sem querer perdoar.

Acendeu outro cigarro. Não sabia porque é que ele lhe tinha mentido tanto, de qualquer maneira Eva nunca soube fingir que acreditava no que ele lhe dizia, apesar de ser esse o papel que lhe estava destinado, tinham sobrevivido ao bairro e tinham-se perdido por uma rapariga desmazelada e nada bonita, uma coisa de nada, Eva não conseguia perceber por muito que se esforçasse, e depois o crime, ele não fora uma boa pessoa, Eva também não, nunca foram capazes de arriscar nada de que gostassem por ninguém, mas daí a matar, sempre foram dois casos perdidos, eram quase iguais, devia ter-se afastado dele quando se tornou a casar, se se tivesse afastado não tinha agora que inventar uma história para contar ao marido.

Eva continuava com a carta na mão e três níveis de água à sua frente. Tinha inventado que lhe eram essenciais três níveis de água por causa do signo. Era outra coisa que achava engraçada apesar de nunca ter acreditado nos signos.

Como a história de serem ambos casos perdidos. Mas para que a história se cumprisse ele nunca poderia amar alguém, ele nunca tinha sentido nada por ela nem por ninguém, tinha vivido sem precisar de nada, era a única coisa que Eva conheceu neste mundo sem precisar de nada, só tinha que se manter assim, como contrapartida Eva tomara conta dele, fingia que não era capaz de deixar de amar a coisa rara que ele era, que o amava até esse impossível que faz perder a razão. Se algum dia ele amasse alguém ainda que fosse de forma mediana estragaria tudo, se ele amasse alguém seria mais um

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igual aos outros, um caso irrecuperável, já que Eva não conhecia ninguém que não se tivesse viciado em sentir fosse o que fosse.

Quando o viu com a rapariga teve a certeza que ele se tinha deixado contaminar e que já era igual a todos apesar de não acreditar que ele amasse a rapariga da forma excessiva que diziam. Gostava mais de pensar que foi o tempo por gastar que o perdeu, era indiferente, o que importava era que ele se tinha deixado contaminar e Eva nunca mais poderia confiar nele, teve a certeza que assim era quando ele a chantageou, quando lhe disse que contava tudo ao marido se não se encontrasse com ele, o amor, o que ele julgava ser amor, fazia-lhe mal.

Eva encontrou-se com ele num café da avenida, não se cumprimentaram, portavam-se como inimigos mas ele estava de tal forma inebriado com o que sentia que nem disso se apercebeu. Queria dinheiro, uma casa nova, falou-lhe incessantemente da rapariga que o esperava na casa nova. Eva contrariou-o e ele apertou-lhe a mão até que os ossos estalaram. Estava tão transtornado que Eva o julgou capaz de a magoar gravemente, mas sentiu prazer no mal que ele lhe fazia porque era uma forma nova de sentir o medo. Quando ele a obrigou a comer, Eva obedeceu, fez tudo o que ele mandou e esteve quase a cometer a imprudência de o amar verdadeiramente.

Ele nunca soube que Eva esteve tão perto de o amar, que foi a primeira vez que se aproximou desse perigo, ficou satisfeito com o dinheiro que recebeu, com a promessa que continuaria a ser sustentado, largou-lhe a mão dorida, Eva levantou-se, ele mandou-a sentar, quem decidia era ele, tinha descoberto que bastava apertar uma mão com força, ou chantagear, ou gritar, tinha aprendido a usar o poder que lhe surgia tão claro e definido, já não era diferente de ninguém, tinha-se viciado em sentir, faria o que fosse preciso para se saciar e foi quando ele se tornou um homem igual aos outros que Eva esteve perto de o amar.

Eva amarfanhava, com raiva, a notificação no bolso do robe de cetim, nunca se podia começar a vida de novo, Eva sabia que seria feliz na vida que tinha de continuar, inventaria uma desculpa que descansasse o marido, era a mãe dele que me pedia, o marido era um homem muito prático que não perdia tempo a desconfiar de ninguém, Eva conseguiria manter a normalidade da sua vida desde que tivesse os três níveis de água à sua frente, continuaria a dizer que lhe eram essenciais por causa do signo, a água do aquário era verde, a da piscina azul e a do mar salgada e sem cor definida, mas na essência só havia uma fórmula, Eva tinha que seguir a sua, não se podia entregar ao desejo de se vingar dele, à dor de ter sido traída, tinha sobrevivido até aqui, tinha que ser capaz de lhe sobreviver, conseguiria se nunca se esquecesse que se tratava apenas de água, que na essência é sempre tudo igual e que os velhos do hospital tinham razão.

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O crime na pensão da avenida. Depois de vários meses de investigação concluiu-se que o alegado homicida e a vítima do crime da pensão da avenida tinham um relacionamento amoroso há já alguns anos. A dona da pensão onde o bárbaro assassinato teve lugar confrontada com as conclusões deste inquérito não se mostrou surpreendida já que «sempre achei estranho que ela o tivesse seguido para o quarto tão facilmente». O palco deste crime irá ser destruído uma vez que por ordem camarária o prédio onde a pensão funcionava irá ser demolido devido ao seu estado de degradação. A polícia considera assim o homicídio justificado. Recorde-se que segundo a autópsia a vítima terá morrido afogada no seu próprio sangue em consequência... (última página) o respectivo processo a fls. 37 e seguintes Pelo responsável (assinatura ilegível)

Não é difícil abrir o peito a alguém. Pode exigir algum esforço físico dependendo da maneira que se escolhe para o fazer. No meu caso, que decidi fazê-lo com uma faca, precisei de alguma força de mãos e braços.

Quando espetei a faca à procura do coração que sempre pensei estar a meio do peito, verifiquei que a carne ainda é mais mole do que parece. A faca entrou com tamanha facilidade que me pareceu estar a espetar um pedaço maior de pão. Claro que foi só até apanhar os ossos. Os ossos são muito difíceis ou talvez a faca não estivesse suficientemente afiada ou não fosse adequada. Mas abrir o peito a alguém não é difícil.

Difícil é tirar o coração a alguém. Eu tentei tirar-lhe o coração, se tivesse conseguido ela já não me aparecia, continua a brincar comigo, aparece e desaparece como no princípio, vejo-a muitas vezes, brinca comigo porque sabe que estou à espera, preciso dela na casa nova, já pus o tapete à entrada como tínhamos combinado, comprei uma árvore de borracha como a da minha mãe, copos de vidro grosso e pratos com flores, quis ficar-lhe com o coração para a ter segura mas não fui capaz, foram os ossos e o sangue que me atrapalharam, e o homem do sorteio dos cegos, desde manhã cedo que o homem anunciava um sorteio honesto e digno, ainda hoje oiço a actualização das cadernetas, mastiguei um calmante, foi antes de perceber que o melhor seria ficar-lhe com o coração.

Ela estava sentada na sala da televisão a falar com a senhoria. Aproximei-me, mas ela fez que não me reconheceu, faz sempre a mesma coisa, também fingiu que não reconhecia o dono da esplanada que andava por lá cheio de fios na mão, se calhar pensou que não percebi que era ele, o andar de quem não se habituou a terra firme, a pele morena, aproximei-me dela e percebi que ia fugir-me outra vez, ainda lhe pedi com jeitinho que ficasse comigo mas ela riu-se, foi então que lhe pedi o coração, foi ela que me deu o coração, nunca me teria lembrado de o pedir mas ela, só te posso dar o meu coração, mais tarde quando a lembrei que me tinha dado o coração respondeu-me mal, se to dei vem cá buscá-lo, se o conseguires levar

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é teu, riu-se muito, foi ela que mo deu, tinha de o ir buscar como ela disse, pensei na faca da cozinha, a pensão estava cheia de gente, o dono da esplanada andava de um lado para o outro, eu chamei-a com jeitinho e ela veio, tinha escondido a faca, quando me lembrei de pegar na faca para lhe ir buscar o coração já tinha fumado dezassete cigarros, no dia anterior tinha fumado quarenta e três, não sei desde quando conto os cigarros que fumo, os passos que dou, não consigo deixar de contar tudo o que vejo, os miúdos do quarto andar esborrachavam baratas e o homem do sorteio dos cegos não parava de falar, às vezes confundo-me e já não sei o que estou a contar, mas no dia anterior tinha fumado quarenta e três cigarros, disso tenho a certeza, naquela manhã tinha fumado dezassete cigarros e tinha contado vinte e duas janelas no prédio em frente, é muito cansativo estar sempre a contar alguma coisa, só descanso quando fecho os olhos.

Ela assustou-se quando viu a faca, conheço o medo que sou capaz de provocar desde que o vi na senhoria e no reformado, não sei como não conheci mais cedo o medo que sou capaz de provocar, todos me olham doutra forma, sempre quis ser respeitado, desde que descobri esse poder em mim conseguia tudo o que queria, só não fui capaz de lhe tirar o coração porque não é fácil, não é nada fácil, nada.

Ainda que se consiga abrir o buraco no peito sem problemas o coração está escondido, se não me tivessem agarrado talvez conseguisse, tenho a certeza que foi a senhoria que chamou o dono da esplanada, não sei quem eram os outros, não percebi por que não tiveram medo de mim, ainda tentei bater-lhes, especialmente à senhoria, a senhoria merecia que lhe batesse porque não punha insecticida há muito tempo, é um pecado que não está na lista, não pôr insecticida será um pecado de bradar ao céu ou contra o Espírito Santo, deixei que aqueles homens me agarrassem porque não conseguia encontrar o coração, tinha de a deixar ir embora outra vez, mas quero que ela venha para a casa nova comigo como tínhamos combinado, já pus o tapete à entrada, desde aquele dia que me aparece e desaparece, tenho a certeza que ela acabará por voltar, a senhoria já há muito que não me vem cumprimentar, não me pergunta como me correu o dia de trabalho, o reformado não me retém no corredor à entrada da casa de banho, o gordo não me fala das margens do negócio da cerveja, fogem todos de mim, sentem o meu novo poder, Eva também nunca mais apareceu, com Eva foi mais complicado fazê-la acreditar que tinha mudado, conhece-me há muito tempo, mas mesmo assim consegui, obriguei-a a encontrar-se comigo no dia em que fui ao banco, foi a primeira vez que não tive que esperar por ela, quando chegou senti o cheiro do medo que nem os perfumes caros conseguem disfarçar, o cheiro do medo é mais forte do que tudo, Eva acendeu um cigarro que por acaso contei como se tivesse sido eu a fumá-lo, as mãos tremiam-lhe, senti que podia mandar-lhe fazer o que eu quisesse, havia uma árvore de natal

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no balcão do café com muitas bolas vermelhas, uma mesa coberta de bolos-reis, Eva disse que tinha pressa, não gostei que me falasse assim, mandei-a repetir, quando ela o fez mandei-a repetir até que me fartei, senti-me tão bem, noutra altura agarrei-lhe na mão já não sei porquê, ao princípio ainda lhe queria pedir como dantes fazia, lembrei-me do meu novo poder e apertei-lhe a mão, aleijei-a até que ela me mandou parar, tinha lágrimas nos olhos, não me comovi, o empregado aproximou-se de nós, o que vão tomar, perguntou delicado, escolhi pelos dois, escolhi sonhos, Eva não me contrariou, estava tão surpreendida comigo, ordenei-lhe que os comesse, Eva mastigou o sonho com dificuldade, tinha os lábios cheios de açúcar e canela, apeteceu-me beijá-la, sempre gostei de a beijar, Eva acabou o sonho, pedi mais ao empregado, tinha de comer muitos sonhos, Eva queria ir-se embora mas não a deixava, apertava-lhe o braço com força, a pele dela sempre enegreceu com facilidade, senti prazer ao pensar que lhe enegrecia a pele, ficas aqui, Eva disse que sim, rendeu-se, sentia-me tão bem, apertei-lhe o braço com mais força, procurei-lhe as mãos, as mãos de cera, podia partir-lhe os ossos, era só apertar mais um bocadinho, os gatos recém-nascidos que a minha mãe afogou num alguidar também não se debateram, foi então que Eva propôs dar-me muito dinheiro com a condição de nunca mais me ver, aceitei, não precisava de a ver, Eva levantou-se, obriguei-a a sentar-se porque tinha que acabar o sonho, era natal, não lhe contei que ia comprar um pinheirinho para a casa nova, enfeitá-lo com luzinhas para que os outros as vissem da rua, durante anos fui eu que vi as luzinhas dos outros, deixei-a ir depois de me ter dado dinheiro, pedi um café ao empregado e comi mais dois sonhos, raramente me senti tão bem.

Sei que sempre falaram de mim nas minhas costas, mas quando ela se foi embora piorou, na pensão não se calavam, eu não ligava porque andava muito cansado, deitava-me vestido sobre a cama e adormecia, acordava muito cedo, levantava-me e saía para a rua sem passar água na cara, vestia a camisola dela que tinha ficado esquecida no meu quarto, ficava-me muito justa, ela tem ombros estreitinhos de criança, as pessoas olhavam para mim, e tenho a certeza que era por causa da camisola, quando a via ela desaparecia, ainda a agarrei uma vez mas não sei o que aconteceu, quando dei por mim tinha uma mulher presa na mão, uma mulher horrível que só me gritava, empurrei-a e fugi.

Ela não podia ter desistido da casa nova, do tapete à entrada, nunca se sabe o que pensam as mulheres, de que se riem, tinha prometido levá-la à minha mãe no natal, quando a vi na pensão ainda não me tinha lembrado de lhe arrancar o coração, foi qualquer coisa que o homem do sorteio dos cegos disse que me fez pensar nisso, roubar-lhe o coração para o pendurar numa corrente de prata, não é difícil abrir o buraco, a carne é bastante mole, se não fossem os ossos, se o coração não estivesse tão escondido, o sangue também

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não ajuda, e o sorteio dos cegos desconcentrou-me, se não me tivessem agarrado talvez lhe encontrasse o coração, ela agora deve andar por aí com o buraco no peito, foi ela que me deu o coração, mostrei-lhe a minha cicatriz, tenho o coração dela desenhado no pé, foi ela que me deu o coração, mas afinal não é assim tão fácil tirá-lo, ela devia saber que era difícil arrancar-lhe o coração, ainda hoje a vi, a camisola não deixava ver o buraco no peito, mas era ela, continua a fugir-me, mas já não me importo de estar aqui sozinho enquanto a espero, já deixei de a procurar, ela há-de voltar para vivermos na casa nova como queria, um tapete à entrada, eu sei que um dia ela há-de voltar para mim.

O funcionário dispensa as quatro mulheres. Informa a ex-mulher que excepcionalmente o poderá visitar. A ex-mulher agradece mas diz que já não o quer ver, que já não precisa de o ver. O funcionário olha-a espantado. A ex-mulher não lhe diz que tem medo de se deixar contagiar pela doença que o atingiu a ele, sabe que são parecidos, quase iguais e basta um gesto, uma distracção para que fiquem outra vez iguais.

As quatro mulheres levantam-se e não disfarçam a pressa de saírem daquela sala e quando a deixam a única certeza que levam é a de que ele é culpado.

A ex-mulher culpa-o por a ter abandonado na possibilidade de serem outros que não eles.

A mãe culpa-o por lhe ter dado a vergonha e a dor que lhe acordaram o coração que dormia.

A senhoria culpa-o por lhe ter confundido o pensamento normalmente tão claro.

A rapariga culpa-o por a ter condenado à criança que cresce dentro de si.

Nenhuma delas o culpa pelo crime que cometeu porque não estava na mão dele evitá-lo, cada uma tem a sua razão para pensar assim, a razão não é necessariamente igual.

Saem do edifício principal. Percorrem a alameda. O ar cheira bem e as quatro mulheres apressam-se a distanciarem-se umas das outras. Não têm nada em comum, estão ali por causa de um homem que cometeu um crime, se por acaso se encontrassem na rua nem sequer se cumprimentariam.

O médico observa-as da janela do gabinete protegido por um vidro. As mulheres aproximam-se do local onde a alameda se bifurca e contorna um terreno. O médico interroga-se se, para atingirem a rua, as mulheres atravessarão o terreno atalhando caminho.

As quatro mulheres assim fazem, pisam o terreno que já foi um campo relvado e agora está cheio de ervas daninhas. Os pés enterram-se na terra e as ervas roçam-lhes nas pernas. Abrandam o passo. Mais à frente está o portão de ferro que querem alcançar, um portão bonito com rosas desenhadas.

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O médico vê que cada uma das mulheres escolhe um caminho para atravessar o terreno. A ex-mulher atravessa o terreno fazendo uma diagonal, a mãe uma linha recta, a senhoria voltas de serpente e a rapariga desvia-se várias vezes do caminho que parecia ter escolhido, possivelmente para ver qualquer coisa, ou somente para se entreter.

As quatro mulheres caminham e não vêem o pardal que pousa na árvore-de-Judas que está plantada a meio do terreno.

O médico arruma a secretária. Toma o medicamento que ajuda o corpo a suportar a primavera. Telefona para casa, diz à mulher que a ama e pede para falar com os filhos. A mulher estranha porque o médico não tem o hábito de chamar os filhos ao telefone. O médico chama campeão ao menino que tem óculos correctores e princesa à menina que tem o aparelho nos dentes. Desliga o telefone. Ganha força para atravessar o terreno e alcançar o portão de ferro, um portão bonito com rosas desenhadas.

Está deitado na cama. Olha há mais de uma hora para o tecto tentando seguir o percurso de uma mosca. Uma enfermeira aproxima-se silenciosamente. Os sapatos demasiado silenciosos e demasiado brancos das enfermeiras. A enfermeira cheira a lavanda e a mãos desinfectadas.

- Como é que hoje estamos? - diz ajeitando a franja que lhe cai para os olhos pequenos e afastados.

Não responde. A mosca acaba de ser apanhada na teia da aranha. Debate-se violentamente agitando as asas. Ele sabia que se a mosca fosse para aquele canto seria apanhada na teia da aranha. A mosca não sabia por que não tinha visto as outras moscas que nos dias anteriores tinham caído na armadilha da aranha. Ele conhecia as moscas dos outros dias. Conhece a aranha e a teia. Todos os dias a observa. Não faz mais nada do que observar as moscas e a aranha e esperar pelo dia que uma mosca se consiga libertar da teia, ganhar à aranha. Talvez aconteça esse dia, talvez aconteça esse dia no meio dos outros todos iguais. Sabe que pode ouvir o zumbido desesperado da mosca a tentar salvar-se, mas era necessário que a enfermeira se calasse.

- Portámo-nos mal. Sujámos outra vez a cama. Se não se quer levantar peça a arrastadeira. Portámo-nos muito mal - o tom é levemente ameaçador apesar de continuar a sorrir. - Não quer fralda mas vai ter que ser, portámo-nos muito mal.

A mosca desiste de lutar. Lentamente. Aceita a derrota.- Luta até ao fim - diz com voz alterada - Luta.- Quem é que tem de lutar até ao fim? - pergunta a enfermeira.- A mosca.- Que mosca?- Aquela - aponta para um canto.

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- Ah sim. Mais logo vai fazer outra vez exames no pavilhão grande. Vai dar uma voltinha, está um dia muito bonito, sabe que hoje começa o verão, para a outra vez toca a campainha, não toca?

- A aranha vai matar a mosca.A enfermeira abana a cabeça. Habituou-se a ver tudo da mesma

forma que os doentes vêem. Com certeza que a aranha vai matar a mosca.

Chega uma auxiliar para o lavar. É agradável sentir as mãos mornas da auxiliar nas virilhas e no sexo. A auxiliar é uma mulher forte com um nariz ligeiramente adunco e olhos de águia. Cheira a sabão azul e branco. E quando o está a lavar cantarola e faz os gestos de quem lava roupa num riacho.

Tem sono. Fecha os olhos. Adormece sem esperar que a aranha mate a mosca. Amanhã é outro dia e com sorte um dia diferente.

Ninguém se engane a si mesmo;se algum entre vós se julga sábio, segundo este mundo,faça-se louco para se tornar sábio.Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus,pois está escrito:"O Senhor sabe que são fúteis os pensamentos dos sábios".Cor. 3, 18-20.

Casas dos Anjos, da Torre e do Campo Grande,Maio de 2001

Agradeço a Dulce Maria Loynaz a definição de ilha.

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