Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.
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DESPATOLOGIZAR É PRECISO: A EXPERIÊNCIA DO CCAZINHO
Maria Irma Hadler COUDRY1
RESUMO: Atualmente, no Brasil, com freqüência, crianças têm sido diagnosticadas de várias (supostas) patologias: dislexia (específica de desenvolvimento), transtorno do déficit da atenção com e sem hiperatividade (TDAH), alteração do processamento auditivo, dificuldade/transtorno de aprendizagem e, mais recentemente, transtorno desafiador opositor (TDO). Para enfrentar tanta sigla e tanto transtorno/déficit o Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho) que funciona no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, desde 2004, acolhe crianças a quem foi atribuído um desses diagnósticos que, se deixados sem intervenção, passam a funcionar como uma barreira para o aprendizado formal da escrita e a criança passa a corresponder a essa suposta condição. Os diagnósticos que as crianças do CCazinho apresentam não se sustentam estando elas envolvidas e interessadas no mundo da fala, escrita e leitura, embora apresentem dificuldades de várias ordens. Serão mostrados para argumentar contra isso dados de uma criança diagnosticada de dislexia, produzidos na escola - onde não há nada de próprio dela - e no CCazinho - onde a criança desocupa o lugar da suposta patologia e toma o lugar de um sujeito com nome e vida próprios. A dislexia, de fato, será discutida, diferenciando-a da suposta dislexia que se confunde com erros naturais e instabilidades que fazem parte do processo de aquisição e uso da leitura/escrita. PALAVRAS-CHAVE: Neurolingüística; escrita/leitura; dislexia; dificuldade de aprendizagem; déficit de atenção com e sem hiperatividade. Introdução
No Brasil tem sido cada vez mais freqüente o diagnóstico de patologia atribuído a crianças
em idade escolar – e precocemente, já a partir de sete anos. Se você fala pobrema, menas –
que são marcas de uma variedade de fala de quem teve pouca escolaridade - em um
ambiente mais formal, será rotulado de não saber falar a língua e motivo de risos. Esse 1 Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Departamento de Lingüística; Rua Sergio Buarque de Hollanda, s/n. CEP: 13083-970; Campinas (SP), Brasil; [email protected]
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aforismo tem funcionado assim na escola, no Brasil: o que se diferencia do que é
considerado padrão é anormal ou patológico. Se a criança trocar letras, não escrever
ortograficamente, não entender um enunciado matemático ou se distrair durante a cópia da
lousa tem algum problema, que logo terá um rótulo de patologia, como dislexia ou o
chamado transtorno do déficit da atenção com e sem hiperatividade (TDAH), alteração do
processamento auditivo, dificuldade de aprendizagem e, mais recentemente, transtorno
desafiador opositor (TDO).
Nas instituições de ensino isso não é diferente; aquele que não se encaixa nos padrões e
modelos estabelecidos é logo rotulado com algum tipo de patologia. Se não aprendeu a
ler/escrever até a primeira série é porque tem dislexia, se não entende quando lê os
enunciados dos exercícios de matemática tem distúrbio de aprendizagem, se não entende o
que o professor explica e levanta o tempo todo da carteira tem déficit de atenção e
hiperatividade. Dislexia é tema de novela, entrando na vida de todos os brasileiros; é
motivo de apreensão por parte dos pais, sendo que a mídia, na maioria das vezes, contribui
para uma desinformação geral, com foco no exótico: Einstein tem dislexia, Tom Cruise tem
dislexia, Bill Gates tem dislexia; além disso, a mídia passa informações erradas (a
porcentagem, a lista de sintomas), o que contribui para aumentar o número de casos
avaliados como patologia sem que se trate disso.
Foi para intervir nessa realidade que inquieta – o suposto percentual de crianças com
dislexia é de 25% - que o Centro de Convivência de Linguagens - CCazinho - foi criado na
UNICAMP em 2004. O CCazinho funciona no Instituto de Estudos da Linguagem e acolhe
crianças a quem foi atribuído um desses diagnósticos que, se deixados sem intervenção,
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passam a funcionar como uma barreira para o aprendizado formal da escrita e a criança
passa a corresponder a essa suposta condição. A experiência do CCazinho tem mostrado
que tais diagnósticos não se sustentam se as crianças estiverem envolvidas e interessadas no
mundo da fala, leitura e escrita, embora apresentem dificuldades de várias ordens para ler e
escrever. É isto que se quer mostrar neste texto, apresentando, por um lado, uma reflexão
de quando se trata de dislexia e, por outro, de quando não se trata.
Para argumentar contra essa tendência de achar dislexia onde não há, apresento dados de
escrita de ML (10 anos, 4a série), estudante de escola particular, que recebeu o diagnóstico
de dislexia de um neuropediatra. Ela está em acompanhamento individual com a
investigadora, autora deste texto (Imc) e freqüenta o grupo do CCazinho. Os dados são de
seu caderno escolar e de seu acompanhamento individual2, onde a criança desocupa o lugar
da suposta patologia e toma o lugar de um sujeito com nome e vida próprios. O texto que lê
com Imc (cuja escrita é apresentada logo abaixo) é alimento para ML escrever sobre ele; e
durante a leitura as duas comentam sobre ele.
Para compreender o que ML escreve e como escreve, é preciso entender que, inicialmente,
no processo de aquisição e uso da leitura/escrita, a criança está mais na fala e na leitura do
que na escrita. No CCazinho, nos propomos a enfrentar essa relação desigual. Ter mais e
mais contato com a leitura (feita com e para eles) para depois se debruçar na escrita, seja
para o domínio do sistema alfabético, seja para a familiaridade com sua estruturação em
construções próprias – é um princípio que procuramos seguir. É para não esquecer de que 2 Que segue os mesmos princípios teórico-metodológicos da Neurolingüística Discursiva (COUDRY, 2009) desenvolvida na UNICAMP, a partir de 1981, que fundamentam os grupos: o Centro de Convivência de Afásicos, o CCA, destinado a adultos afásicos, em funcionamento no IEL desde 1989, e o CCazinho, destinado a crianças e jovens, idealizado pela autora.
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nós adultos habitamos a linguagem de forma diferente: em determinadas situações estamos
mais na fala, em outras mais na escrita, mais na leitura, e nunca as confundimos.
Dislexia: quando não é
Vamos olhar um pouco mais de perto os chamados sintomas das patologias que estão
presentes na escola. De imediato, identificamos características que cabem em muitas
crianças em idade escolar, como algumas descritas nos sites www.brasilescola.com e
www.andislexia.org.br:
Dificuldade de escrever cometendo diversos erros ortográficos
(disortografia); dificuldade de compreender linguagem matemática
(discalculia); lentidão ao fazer os deveres escolares; letra feia; interrompe
constantemente a conversa dos demais; só faz leitura silenciosa; tem
grande imaginação e criatividade.
É incrível que imaginação e criatividade constem como sintoma de patologia, ainda mais na
infância. Notem que vários desses chamados sintomas são características de muitas crianças
e jovens normais. Trata-se de categorias amplas e vagas que determinam a inclusão de
qualquer criança nelas.
Há casos reais de patologia de linguagem, que são raros e muito diferentes da banalização a
que se chegou hoje em dia para avaliar a patologia, por um lado, e desconhecimento de
como se dá o aprendizado da leitura/escrita, por outro. A maioria do que se apresenta
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oficialmente como sintoma de dislexia é indício de como o sujeito está no processo de
aquisição e uso da leitura/escrita e não patologia (COUDRY, 2009; BORDIN, 2009).
A escrita de ML levanta a questão da dislexia na escola que é aceita pela família. E o que é
que o ato de escrever envolve?
Escrever requer uma concomitância entre o sonoro e o motor, imagens visuais das letras
mais suas impressões dos movimentos das mãos (cinestesias) e dos olhos (controle óculo-
motor); isso cria possibilidades de associar letras e sons de forma mais estável de acordo
com o sistema escrito da língua. Muitas crianças e jovens estão a meio caminho desse
processo quando escrevem ainda como falam, quando usam sons e letras próximos sonora
e/ou visualmente, o que não coincide com a forma ortográfica. Uma tarefa a realizar é
diferenciar erros naturais de aprendizes de escrita de sintomas de dislexia.
Por que a escrita de ML não apresenta marcas de dislexia?
No CCazinho, em sessão3 individual, a partir da leitura conjunta entre Imc e ML do Livro
dos Gestos e dos Símbolos de Ruth Rocha e Otávio Roth. ML escreveu a partir do início
dado por Imc (O livro conta ...).
3 O acompanhamento individual de ML teve início em 30 de março de 2009. A sessão referida acima, de 25 de maio, é o 5o encontro entre elas e o texto apresentado é o primeiro composto a partir de uma leitura conjunta.
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O livro conta... a várias possibilidades de se comunicar que os seres vivos
têm. As abelhas dançam para saber onde tem meu, as baleias emitem um
som prolongado, os bebês choram, riem, fazem grasinha, os surdos usam
a língua de sinais, os índios se enfeitam, usam usam e cabelos diferentes.
As cores também comunicam a alegria, o luto, paz. Entre os barcos há a
cominicação por sinais luminosos, buzina e pelo telégrafo. Outra forma
de comunicação é a música que transmite alegria, tristeza, emosão. Os
sinais de transito também informa por meio de avisos, indicações,
simbulos.
Em seu caderno com Imc, ML escreve: custurei por costurei; gardo por guardo; dinada por
de nada; difercios por diversos; cranito por granito; compaquitas por compactas; preção
por pressão; comesaram por começaram; grasinha por gracinha; simbulos por símbolos;
auguma por alguma.
O que esses dados revelam? Que se trata de uma escrita de quem está aprendendo a
escrever conforme as regras do sistema ortográfico de sua língua, o Português Brasileiro
(PB); são erros de quem está formulando hipóteses de como se escreve e está às voltas com
a não correspondência um a um entre letra e som, embora como se vê em seu texto escrito
ela já tenha estabilizado muitos conhecimentos acerca da escrita. Nos dados de ML
encontramos um mesmo som - como /s/ - representado por letras diferentes - s, c, ç, ss, sc -
como em: grasinha (gracinha), preção (pressão), comesaram (começaram); e sons que
pronunciamos de um jeito - como /u/ - e escrevemos de outro modo - o ou l -, como em
custurei (costurei), simbulos (símbolos) e auguma (alguma). Esses dados mostram que ML
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escreve com base em sua fala, o que é muito natural no início do aprendizado, até que a
escrita se torne autônoma – e isso se dá com o envolvimento sistemático com a leitura e a
escrita. Com base ainda em sua fala, e porque certamente sussurra a palavra antes de
escrevê-la, usa as consoantes surdas (c, f) no lugar de sonoras (g, v); a motivação para isso
é falar baixinho enquanto escreve. É o que acontece quando escreve difercios (diversos) e
cranito (granito).
Ortografia se aprende de tanto escrever e ler, e reler o que se escreve. Corrigir é complexo:
é preciso saber o que o aluno tentou escrever para saber como corrigir, não bastando dar a
palavra corrigida. Escrever garda para guarda; otem para ontem tem uma explicação que
deve ser compreendida para que não se tomem erros assim como sintoma de patologia. Não
é óbvio para a criança/jovem representar ortograficamente o som /ge/ pela escrita gue ou o
som /je/ pela escrita ge. Isso se aprende com o uso. A representação escrita da nasalidade
em português também não é óbvia para quem não tem autonomia de escrita. Do ponto de
vista do aluno, a palavra muito tem uma nasalidade explícita na fala e isso não é marcado
na escrita como poderia ser, por exemplo: muinto. Por isso um iniciante de escrita ou um
jovem que ainda não tem domínio da forma ortográfica pode escrever otem por ontem e
isso não é sintoma de doença.
Vejam as grafias abaixo, e nem por isso, se trata de dislexia:
No Almanaque Eu sei ler4 - leitura e scenas infantis (Livraria Garnier, Rio de Janeiro, s/d) –
encontram-se várias palavras escritas que se tomadas hoje seriam sintomas de patologia:
4 Não encontrei a data dessa publicação, mas presumo ser da década de 40 do século XX.
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scenas (cenas); creanças (crianças); creada (criada); jornaes (jornais); fazel-o (fazê-lo);
vel-o (vê-lo); impoz (impôs); poz (pôs).
O mesmo pode se dizer de Espumas Fluctuantes, de Castro Alves, (Livreiro Editor, 1938),
onde se tem: céo (céu); somnolento (sonolento); abysmos (abismos); sympathico
(simpático); elle (ele); vivêra (vivera).
Para argumentar contra o fato de as grafias não serem naturais, Possenti (2005) cita um
documento de 1725, transcrito em Tempos Lingüísticos (Ática, 1990), de Fernando Tarallo,
onde se encontram grafias como apartir (a partir), seachar (se achar), nemseatreve (nem se
atreve), oobrigaraõ (o obrigarão).
Agora, vejam os escritos das placas e anúncios abaixo:
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http://img387.imageshack.us/img387/7953/298053478qy.jpg
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http://3.bp.blogspot.com/cuhiPDVN0qc/SMe7DJpNZsI/AAAAAAAAAC8/y9MCuKRaM50/s320/2.gif
Percebe-se uma semelhança entre esses escritos, a escrita de ML e a dos autores dos textos
acima citados: tal como eles, as pessoas que escreveram os textos das placas e dos anúncios
não dominam o sistema alfabético da língua, e escrevem como falam. O que é possível
observar sobre essas escritas? Que são hipóteses de como se escreve com base na fala,
próximas da variedade lingüística do falante e distantes da variedade padrão da língua
escrita. Por isso vem escrito u por l e o (sausicha por salsicha; cauçada por calçada); z por
s (cazeira por caseira); c por s (cegredo por segredo, cuas por suas, cem por sem); c por q
(acui por aqui – neste caso tanto c quanto q são pronunciados /k/). A escrita de agrotoxio e
alimentisimos reforça a idéia de que as pessoas que escreveram falam assim; o mesmo
ocorre com ML ao escrever a palavra diversos como difercios (porque sussurra ao
escrever).
Os dados apresentados neste texto têm o propósito de possibilitar uma reflexão que se volta
sobre a nossa própria língua em estado de aprendizado. Leitores e escreventes que têm
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bastante familiaridade com a leitura e com a escrita podem ter dúvida de como se escreve
uma palavra, dada a relação entre som e letra que se tem no cotidiano da língua onde
predomina a fala. Tudo isso mostra que a língua em funcionamento é aberta a múltiplos
usos e sentidos tratando-se de fala ou leitura/escrita (COUDRY E FREIRE, 2005).
ML não apresenta dislexia, mas tem necessidade de se manter por mais tempo do que
outras crianças na relação entre fala e escrita, embora sua produção escrita dê indícios
claros de que ela se encontra cada vez mais próxima da escrita e de suas regras, tanto para
produzir textos quanto para dominar o sistema ortográfico da língua. A busca de ajuda por
parte da família pode ser explicada pela instabilidade ortográfica que ML mantém diante de
palavras simples, o que não ocorre, como seria esperado, com palavras mais difíceis de
serem escritas.
Dislexia: quando é
Vimos o que tem sido considerado dislexia e não é. A dislexia que é dislexia é rara e
envolve características muito distintas de questões ortográficas. Trata-se de dificuldades
espaciais e visuais implicadas, por exemplo, na ordenação de segmentos da escrita, que traz
também o acústico representado. O disléxico escreve jalane por janela; altera a ordem das
palavras quando lê (Como a avenida disparou na moto ninguém a viu passar; por Como a
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moto disparou na avenida ninguém a viu passar), o que lhe dificulta a compreensão. Além
disso, estudos mostram (GALABURDA, 1994) que a dislexia adquirida tem base
orgânica, tendo parte do lobo temporal, mais exatamente o planum temporale, envolvido.
Essa estrutura, Planum Temporale, participa da síntese acústica, por isso ocorrem
dificuldades de compreensão do que se lê, porque a leitura pressupõe o funcionamento
acústico e vísuo-motor da palavra lida/escrita. Nos disléxicos, descobriu-se uma simetria do
planum temporale nos dois hemisférios cerebrais Em condições normais essa estrutura é
maior no hemisfério esquerdo em quem é destro, ao passo que, nos canhotos, essa
assimetria é mais acentuada no hemisfério direito.
Assimetria do Planum Temporale Essa região do lobo temporal
superior é normalmente maior no hemisfério esquerdo (Geschwind e
Levitsky, 1968).
Planum Temporale (hemisfério direito)
Planum Temporale (hemisfério esquerdo)
Lobos Occipitais
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É importante caracterizar os sintomas da dislexia específica de desenvolvimento - contra
os quais argumentaremos abaixo, indicando os sintomas que consideramos relevantes. Em
geral, define-se a dislexia específica de desenvolvimento primeiro por problemas de leitura
para, em seguida, apresentar problemas de ortografia, déficits afetando a linguagem escrita
e o cálculo, por oposição à linguagem falada. Estudos (CONDEMARÍN E BLOMQUIST,
1986; PINHEIRO, 1994, NUNES, 1992) e associações que avaliam a dislexia5 consideram
que para ser diagnosticada, é preciso descartar problemas intelectuais, psicológicos,
emocionais, afetivos, sociais e de método de ensino inadequado. Vêm de onde então as
dificuldades? Não se trata de causa e efeito, mas questões de ordem psico-afetiva, de
desestruturação familiar, de falta de condições em casa para fazer as lições afetam a relação
da criança com a leitura e a escrita, cujo domínio põe a criança em outra condição.
Para compreender a diferença entre o que não é dislexia e o que se apresenta como tal, é
preciso compreender que fala, leitura e escrita envolvem uma concomitância entre o
som/acústico (significante), o visual (significado) e o motor (execução do traçado e da fala)
e isso se dá de forma hierárquica conforme se trate da fala (predomínio do acústico e do
motor sobre o visual); da escrita (predomínio do motor e do visual sobre o acústico); ou da
leitura (predomínio do visual e do acústico sobre o motor). Em suma, fala, leitura e escrita
envolvem o funcionamento de todo o cérebro, mais precisamente, a parte anterior associada
ao motor e as partes posteriores associadas ao acústico, ao espacial e ao visual.
Que sintomas há nos alunos que apresentam, de fato, dislexia?
5 www.dislexiadeleitura.com.br; www.abd.org.br; www.andislexia.org.br
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Fala, leitura e escrita se estruturam e se mantêm em um tripé no processo de aquisição da
escrita que, depois, com o uso freqüente se automatizam de tal forma que seu conjunto
prescinde do individual. Por isso podemos ler sem precisar escrever, sem precisar do apoio
da voz. Mas quando lemos um texto difícil retornamos ao tripé na sua forma individual: as
palavras lidas para completarem o sentido voltam a precisar do apoio da fala e/ou da
escrita. Retomando, fala, leitura e escrita, individualmente, e as três juntas, sustentam o
tripé, sendo que o equilíbrio entre elas muda conforme a atividade realizada. A ordenação
dessa estrutura é hierarquizada. Na leitura, por exemplo, no processo de sua aquisição, há o
predomínio do traçado visual que compõe a letra para que se possa reconhecer o que é letra
e o que não é. Esse processo só se completa se houver reconhecimento da letra associado a
um ou mais correspondentes acústicos. Dado o reconhecimento da letra e sua imagem
acústica o próximo passo é sua realização motora que se dá pela fala. Nesse momento há
leitura da letra em voz alta, o que possibilita sua combinação com outras para formar uma
unidade de sentido, a palavra (FREUD, 1891; VYGOTSKY, 1934/1979; 2004; LURIA,
1979). O que faz do conjunto de letras escritas uma palavra é seu reconhecimento pela fala
da própria criança, dos adultos que a cercam, da televisão, enfim, da cultura em que está
inserida.
Por que leitura e fala precisam uma da outra? Ler com compreensão significa fazer uma
leitura semântica, ou seja, povoada de entonação, ritmo, pausas nos lugares adequados e
coordenação pneumofônica, o que possibilita que as unidades se encadeiem para fazer
sentido. Por que o sentido do que é lido pela criança não se faz de imediato quando ela está
aprendendo a ler? Por que a realização motora e acústica inicial (fala) da leitura da palavra
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não vem carregada da entonação correspondente na produção da fala que se reconhece
como fala. Por exemplo, a palavra tabela, para quem está aprendendo a ler/escrever, pode
ser lida pela primeira vez (na maioria das vezes de forma silabada) como tábela e em
seguida retomada como tabela pela fala, e isso mostra que a criança está dentro da leitura –
lendo - e não decodificando. Em outras palavras, a criança que já conhece pela fala uma
palavra, quando está aprendendo a ler o sistema escrito de sua língua materna, pode
primeiro ler silabando e/ou alterando a tonicidade, mas, logo em seguida, retoma a leitura
pela fala, ajustando seu ritmo e reconhecendo-a. Nas primeiras experiências de leitura, as
crianças lêem palavras velhas como se fossem novas. (FREUD, 1891). Esse vai-e-vem leva
a criança a reconhecer na escrita o que já conhece na sua fala e na fala de outros
(COUDRY, 2009). Crianças disléxicas ficam sempre a meio caminho desse processo, ou
seja, não retomam pela fala a leitura com compreensão do que estão lendo, o que lhes
dificulta entrar para o mundo da leitura e da escrita.
Elas apresentam, ainda, problemas de percepção e de memória visual na identificação das
letras e, por isso, quando lêem e quando escrevem invertem a direção de traços das letras
(b/d) e das letras na palavra (satopa por sapato). Também podem apresentar dificuldades de
associar estruturas visuais ordenadas no espaço (letras que se combinam para formar
palavras que se combinam para formar frases) e estruturas auditivas ordenadas no tempo
(as estruturas dos fonemas e das palavras faladas), associado a uma má discriminação
auditiva para selecionar e combinar fonemas.
Na dislexia, há sempre envolvimento/dificuldade de ordem motora e/ou acústica e/ou
espacial e/ou visual, o que demonstra a complexidade de fatores implicados na
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avaliação/diagnóstico dessa patologia e que, portanto, não pode ser banalizada com tem
ocorrido.
Dados produzidos por ML na Escola
Como vimos, um dos sintomas apontados como característica da dislexia é a dificuldade de
compreender enunciados de matemática (discalculia). Veja o enunciado abaixo, o que está
em negrito é o modelo e o que está em itálico é a resposta de ML:
Complete o quadro com as dezenas, centenas e milhares completos mais próximos do
número. Observe com muita atenção o exemplo resolvido!
Número Dezena mais próxima
Centena mais próxima
Unidade de milhar mais próxima
5638 5640 5600 6000 14431 1440 14400 (correto) 4000
324634 3240 32400 4000 26786 2670 26700 7000
Trata-se de um exercício de matemática (proposto em uma prova) que ML não compreende
o que se pede e erra. E por que isso acontece? O enunciado é mal formulado e de difícil
compreensão; a expressão dêitica - mais próximo de – pede uma referência clara do que
seja algo próximo, sem o que não dá para estabelecer a proximidade. O fato de ML errar
não prova que não sabe ler, fazer exercícios de matemática, ou que é disléxica. ML tenta
acertar e adivinha/interpreta como pode, a partir do modelo: na primeira coluna escreve
números com um zero no final; na segunda coluna, escreve números com dois zeros no
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 11 – O Português falado e escrito em contexto de aquisição e perda de linguagem.
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final; e na terceira considera que milhar é um número redondo, com três zeros ao final. E
assim elabora respostas consistentes que seguem uma lógica.
Em outro exercício escolar assim está escrito:
Os números abaixo estão na forma abreviada. Escreva cada um deles usando apenas algarismos: 700 mil = setecentos mil = 700 [no lugar de 700 000]
A proposta do exercício está equivocada, uma vez que o que se solicita como abreviação é
na verdade outra forma de representar matematicamente o número. O sentido da palavra
abreviada fica confuso, já que em 700 mil há algarismo e palavra. ML tenta entender o que
se pede e erra: ela escreve por extenso e depois abrevia a palavra mil, deixando apenas o
algarismo 700 (que é uma das solicitações do enunciado do exercício).
Queremos mostrar com esses dados do caderno de ML que não se trata de dislexia, mas de
um enunciado mal formulado que confunde a criança, sobretudo em processo de aquisição
e uso da escrita, com suas idas e vindas, que não são dificuldades, mas características do
processo. Por isso, é importante refletir a respeito das atividades que propomos e o efeito
que isso pode ter no que o aluno entende do enunciado e escreve como resposta.
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Conclusão
Para concluir, apresento uma questão escolar e seu enfrentamento no CCazinho. Uma das
dificuldades que as crianças do CCazinho relatam ter na escola é copiar da lousa para o
caderno, e/ou do livro didático para o caderno. Para compreender suas dificuldades nessa
tarefa escolar, propusemos fazer cópia, tanto como atividade em grupo como nas sessões
individuais: cópia de um parágrafo, de palavras conhecidas e de palavras em outras línguas
(russo e francês). A motivação para isso é o fato de as crianças fazerem muita cópia na
escola, e muitas vezes sem sucesso, não conseguindo copiar antes que a professora apague
a lousa. Queríamos entender as razões da demora: desenham letras ou escrevem;
segmentam a palavra letra por letra; entendem o que copiam.
E o que observamos?
Uma das crianças, BR, se dispersa durante a cópia, segmenta muito a palavra para copiar,
não tendo automatizado o controle óculo-motor de cima para baixo, movimento que
envolve espaço (ordem das letras no espaço) e tempo (seqüência das letras dispostas da
esquerda para a direita no tempo da escrita). Isso compromete o vai-e-vem da lousa para o
caderno e vice-versa, fazendo BR perder o ponto em que está quando passa da lousa para o
caderno. Saber disso é compreender um aspecto importante de seu processo de
leitura/escrita, no tocante à concomitância de ações motoras, acústicas e visuais, que ainda
não realiza, o que abre a possibilidade de intervir onde é preciso.
Outra criança, ER, olha a palavra toda antes de copiar, e a copia rapidamente e bem; tem
controle vísuo-motor para passar da lousa para o caderno, mas não lê com compreensão o
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que escreve. Falta, pois, ajustar a esse controle a concomitância com a face sonora, presente
ou representada mentalmente, ou seja, da metáfora do tripé falta um dos apoios para
completar o processo de leitura e escrita.
Para saber se desenham as letras uma a uma quando copiam sem ler/compreender o que
escrevem, passamos duas palavras em língua estrangeira, uma em russo e outra em francês
(sem pista para saber seu significado: aujourd´hui), e o resultado foi o esperado. Ressalta-
se que observamos entre as crianças diferenças na velocidade com que as copiaram, o que
também ocorre quando copiam em sua língua materna.
Na mesma sessão, palavras foram escritas sob soletração6 para analisar a reversibilidade
entre fala, leitura e escrita, observando o que apagam do nome das letras e o que escrevem;
e, ainda, se escrevem a palavra toda, se a decompõem, considerando que tem o sentido
como guia, já que foram soletradas “palavras/coisas que estão à nossa volta, na sala”.
Discutimos as dificuldades gerais das crianças no grupo para que tomem conhecimento
delas bem como das possibilidades de melhorarem sua performance, já que tem que
enfrentar a cópia no cotidiano escolar; nesse sentido, encaminhamos para as sessões
individuais um trabalho mais pormenorizado a respeito.
A experiência tem mostrado que as dificuldades de escrita e leitura vão sendo superadas na
medida de um processo em curso com idas e vindas. Ao escrever palavras que nunca foram 6 Soletrar, apesar de parecer uma atividade mais oral do que escrita, implica necessariamente em uma representação ou mental ou escrita da letra; implica, ainda, conhecer o traçado de cada letra que corresponde a cada nome da letra e o conjunto de gestos articulatórios que representam o nome das letras, cujas ações motoras são diferentes daquelas envolvidas na produção dos sons que formam a palavra. Falar ENE-A-VE-I-O é diferente de falar NAVIO. É preciso apagar o nome da letra para escrever e ler a letra. O domínio da soletração envolve o cruzamento de conhecimentos da escrita (coordenadas vísuo-espaciais e temporais) com os da oralidade (aspectos acústicos, motores e visuais), o que nos faz reconhecer que no processo de aquisição e uso da leitura e escrita o cérebro trabalhe integradamente como uma orquestra (LURIA, 1981).
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escritas elas fazem hipóteses que se ancoram em sua própria fala, que por sua vez são
reconhecidas na fala de outros.
Por que dizemos que as crianças do CCazinho diagnosticadas de dislexia e dificuldade de
aprendizagem não têm essas patologias? Porque vemos (pelas atividades que produzem e
pela compreensão de leituras que fazemos juntos) que elas entram no mundo da
leitura/escrita, quando inseridas em atividades interessantes, mediadas pelo outro e pelo
sentido, que as envolvem, que provocam o fazer, o brincar/criar e o refletir - que a leitura e
a escrita abrem como possibilidade ilimitada.
Referências bibliográficas
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LURIA A.R. Curso de Psicologia Geral. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979. _____ Fundamentos de Neuropsicologia. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos S.A., 1981. _____ Pensamento e Linguagem: as últimas conferências. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. NUNES. T e cols. Dificuldades na aprendizagem da leitura: Teoria e prática. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2000. PINHEIRO, A, M. V. Leitura e escrita: uma abordagem cognitiva. 1a Ed. Campinas: Editorial Psy II, 1994. POSSENTI, S. Aprendendo a escrever (re)escrevendo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. VYGOTSKY, L. S. Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Edição Original,1926. ____ Pensamento e linguagem. Lisboa: Antídoto, 1979. Edição Original, 1934.