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AVM FACULDADE INTEGRADA LICENCIATURA EM PEDAGOGIA FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA DE PAZ: CRÍTICA AO PARADIGMA CONTEMPORÂNEO BRUNO GAWRYSZEWSKI Orientador: Prof. Dr. Vilson Sérgio de Carvalho Rio de Janeiro 2012 DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEI DE DIREITO AUTORAL

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AVM FACULDADE INTEGRADA

LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA DE PAZ: CRÍTICA AO PARADIGMA CONTEMPORÂNEO

BRUNO GAWRYSZEWSKI

Orientador: Prof. Dr. Vilson Sérgio de Carvalho

Rio de Janeiro

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AVM Faculdade Integrada

LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA DE PAZ: CRÍTICA AO PARADIGMA CONTEMPORÂNEO

Apresentação de monografia ao IAVM como

requisito parcial para obtenção do grau de

Graduação de Licenciatura em Pedagogia

Por: Bruno Gawryszewski

3

4

AGRADECIMENTOS

Às minhas companheiras de turma e projetos interdisciplinares, Margarida Avelar, Adriana Teixeira, Elane Neves, Daniele Rosa e Mônica Borges por tornarem o cumprimento de tarefas uma grande satisfação. À Escola Municipal Luiz Delfino, em especial ao Diretor Luiz Claudio e a Professora Adriana, por ter aberto suas portas para a minha prática docente. Aos trabalhadores da educação que dedicam suas vidas a uma árdua e imprescindível missão.

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DEDICATÓRIA

Todo meu carinho às crianças matriculadas nas escolas públicas do país. Futuro do Brasil tão negligenciado e flagelado, mas que resiste

e constrói seus próprios caminhos.

6

RESUMO

A educação e a cultura de paz foram incorporadas pelo sistema ONU /

UNESCO como noções centrais para a formulação de seus programas

educacionais e de ajuda humanitária. A sua importância como intelocutor

político internacional proporcionou que se estabelecesse um paradigma

centrado em valores como tolerância, cooperação, solidariedade, não-violência

e resolução positiva dos conflitos. A leitura da realidade é realizada de forma

insuficiente ou ingênua já que confere muita ênfase às ações individuais como

foco para a resolução de conflitos; no plano superestrutural, minimiza a

contextualização sócio-histórica da construção de relações violentas na

sociedade; e não trata a violência como fenômeno social, pois procura em sua

negação, a chave explicativa para a constituição de outro patamar de

sociabilidade. Em resposta aos problemas apontados, realizou-se uma releitura

da filosofia clássica, tanto os liberais, quanto os marxistas, de forma a ponderar

que a violência não apenas é um elemento formativo das relações humanas,

mas que em certas situações é legitimada em prol da manutenção ou

transformações da vida em sociedade. Por fim, estabeleceu-se um diálogo com

referências teóricas distintas das apresentadas pelo paradigma contemporâneo

do sistema ONU / UNESCO, com o objetivo de fundamentar um projeto

educacional que, ao expressar uma reflexão objetiva sobre a totalidade,

intervenha concretamente nas questões que constituem a realidade, em prol da

construção de um mundo alternativo.

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METODOLOGIA

O material que motivou a execução do estudo da educação e da cultura

de paz foram os diversos documentos escritos pelo Sistema ONU / UNESCO.

Tais documentos conclamam indiscriminadamente que todos assumam uma

postura perante às situações de conflito, de forma a não resolvê-los por meio

da violência, mas sim, pelo diálogo.

Concomitante a esse movimento político-institucional, também a área

acadêmica passou a discutir o tema, de forma a adensar teoricamente as

proposições resultantes das conferências e eventos internacionais. Ao trazer a

discussão para as universidades e escolas, pretendeu-se aplicar praticamente

como objeto de estudo e prática pedagógica, aqueles princípios difundidos no

âmbito diplomático, ainda que nem sempre fossem materializados pelos

respectivos governos signatários.

Entretanto, ainda que coberto de boas intenções e defendido de forma

sincera por muitos ativistas e professores, as noções de educação e cultura de

paz ainda carecem de maior robustez teórica, fato identificado na consulta dos

materiais bibliográficos que originaram o estudo. Nesse sentido, a monografia a

seguir questiona os fundamentos contemporâneos que têm balizado a idéia de

uma educação e cultura de paz, a fim de indicar suas fragilidades e apontar

possíveis caminhos para o desenvolvimento da reflexão sobre o tema.

Este caminho propositivo-reflexivo foi percorrido por meio da consulta à

referências da filosofia política clássica (MAQUIAVEL, s/d; HOBBES, 2002;

LOCKE, 2002; KANT, 2008; MARX e ENGELS, 1998; ENGELS, 1975) e

contemporâneos como Slavoj Zizek (2008) e Adolfo Sanchez Vásquez (1990)

possibilitarão apropriação das noções acerca de violência e de paz, articuladas

ao campo educacional, em diálogo com a educação para além do capital e

socialista de István Mészáros (2007) e a Pedagogia Histórico-Crítica formulada

por Dermeval Saviani (2005).

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SUMÁRIO

Introdução 9 Capítulo I – Fundamentos da educação e da cultura de paz 12 Capítulo II – Fundamentos conceituais sobre a violência 25 Capítulo III – Violência, cultura de paz e educação: uma síntese questionadora e propositiva 41 Conclusão 51 Bibliografia 54 Índice 57

9

INTRODUÇÃO

A década de 2000 foi marcada pela ascensão da noção de cultura de

paz, promovida em grande parte pelo sistema coordenado pela Organização

das Nações Unidas (ONU), através de suas agências como a Organização das

Nações Unidas para a educação, ciência e cultura (UNESCO), através de seus

programas de intervenção humanitária. Consequentemente, esse movimento

reverberou para a educação, que, por sua vez, vem adotando a promoção da

paz e da não-violência como um tema a ser incluído nas práticas pedagógicas.

O trabalho tem como desafio captar o objeto imerso na totalidade

concreta das relações sociais. Sem esse movimento dialético, o objeto é visto

de forma atomizada e isolada, como se não fizesse parte da construção

humana do mundo. E é nesse sentido que o binômio paz e não-violência têm

sido empregados como termos autoexplicáveis.

Assim, o objetivo geral do trabalho é discutir quais os fundamentos

teóricos das tendências contemporâneas da educação e da cultura de paz,

entendendo que estas são carregadas de uma significativa dimensão ético-

política sobre os sujeitos a qual desejam incidir.

Ao passo que a compreensão sobre a paz será abordada, também se

faz necessário aprofundar o entendimento reflexivo sobre a violência, pois

quando se apela meramente para a negação de um fato, corre-se o risco de

perder de vista esse objeto de estudo como um fenômeno social.

E, por fim dos objetivos, após problematizar a compreensão vigente de

paz e não-violência, pretende-se contribuir com outras referências teóricas que

não desvinculem as determinações objetivas da sociedade da construção de

um projeto educacional que enfrente os problemas pungentes do cotidiano, o

que inclui, por óbvio, a violência.

A justificativa do tema escolhido se deu através da leitura de

documentos e textos publicados pela UNESCO ou por intelectuais associados

à agência. Por conta de sua preponderância como interlocutora em escala

mundial e pelo fato de não ser um tema amplamente estudado pelos

pesquisadores acadêmicos, acabou se constituindo um paradigma hegemônico

10

de educação e da cultura de paz que se ampara em ideias que sobrepõem os

desvios da natureza humana à análise concreta das relações sociais. Desse

modo, a defesa da educação e da cultura de paz tem sido incapaz de fazer

uma crítica radical à ordem social capitalista. A conseqüência mais drástica no

campo educativo é a falta de problematização dos sentidos da violência e paz,

utilizados como termos autoexplicáveis e gerando um par de oposição binária

entre um e outro. No campo das propostas educacionais, as recomendações

do paradigma hegemônico incluem uma reformulação metodológica

educacional, orientando que as práticas pedagógicas desenvolvam valores

como tolerância, solidariedade, cooperação, não-violência e resolução positiva

dos conflitos.

Decerto que não há mal algum em transmitir ao próximo ou a seus

educandos tais valores. Eles são componentes da construção humana advinda

de várias fontes como a religião, o pensamento filosófico, o humanismo, todos

são frutos da tentativa de dotar a vida de uma existência menos sofrida e mais

plena, em que as relações interpessoais se desenvolvam de maneira mais

harmônica e regida por sentimentos e emoções que favoreçam o bem-estar

comum.

Os questionamentos e as críticas apresentadas neste trabalho

monográfico decorrem da incapacidade ou da ingenuidade de tais propostas de

ofereceram respostas satisfatórias para uma leitura da realidade.

Muito se fala sobre a crise de valores e do respeito e, manifestada

especialmente na crescente criminalidade e delinqüência, faz-se um apelo

direto e retórico à consciência dos indivíduos. Quando essa pregação fracassa,

como tem de fracassar, uma vez que se evita atacar as causas sociais dos

sintomas denunciados, os gestores políticos do aparato estatal e as figuras

proeminentes da sociedades, como empresários bem-sucedidos, intelectuais

habitués em programas de comunicação em massa, ou dito da forma como

cunhou Karl Marx, as “personificações do capital”, passam a adotar uma linha

de identificação dos possíveis criminosos através de rotulações ou dados

científicos que “comprovem” a periculosidade iminente. Negam expressamente

que possa haver alguma coisa seriamente errada com a sociedade da forma

11

como existe, mas apenas os indivíduos encarcerados é que merecem ser alvo

de uma ação corretiva.

Esse é o desafio, não simples, que se pretende esboçar neste estudo

monográfico.

12

CAPÍTULO I

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E DA CULTURA DE PAZ

A paz é, possivelmente, algo que todos almejam alcançar.

Corriqueiramente, ela se encontra associada a uma espécie de estado de

espírito e tranqüilidade, coligado a atitudes não-violentas e formas pacíficas de

convivência em sociedade. Não seria imprudente afirmar que todos esperam

viver de forma mais harmoniosa e que os conflitos não se transformem em atos

de violência e guerra.

Apesar de não existir uma definição conceitual rigorosa, a noção de paz

na sociedade ocidental provém da Grécia (eirene) e de Roma (pax). A eirene

refere-se à busca da perfeição na harmonia mental e com um estado de

tranqüilidade e de serenidade caracterizado pela ausência de hostilidades e

guerras na ordem social grega, ou seja, não considerava as relações entre os

povos gregos e os estrangeiros. O segundo, a pax romana, relaciona-se ao

projeto expansionista de conquistar e dominar outros povos e, para isso, seria

necessário a geração de um poder centralizado com força suficiente a fim de

manter e respeitar a lei e a ordem estabelecida por Roma (CALLADO, 2004).

É possível afirmar que essas formas conceber a paz se estende até os

dias atuais. Por um lado, a eirene grega pode ser percebida a associação com

a ausência de conflitos de qualquer dimensão, tratando a paz de maneira

idealista. Essa concepção de paz também encontra respaldo nas tendências

culturais conhecidas como New Age, que associa melodias suaves,

misticismos e prega sentimentos de harmonia, paz interior e valorização da

natureza. Por outro, a pax romana se caracteriza como uma doutrina bélica,

empregada pelos países imperialistas dispostas a dominar outros povos a fim

de manter sua hegemonia político-econômica no mundo. Assim, justificam a

paz pela guerra (Si vis pacem, para bellum), vide as recentes invasões

estadunidenses no Iraque e Afeganistão.

Callado (2004) destaca as características atuais do conceito de paz:

13

1) A paz é um conceito negativo, resumindo-se a ausência de conflito

bélico;

2) A visão ocidental para a manutenção da paz inclui o uso da força;

3) Tem uma visão etnocêntrica dos fatos, em que se destaca o papel das

guerras nos processos de transformação social, enquanto a paz é

apresentada como processos estáticos;

4) A concepção ocidental limita-se ao estabelecimento de pactos que

mantenham a ordem estabelecida;

5) A concepção intimista de paz, presente na tradição popular, tem

desenvolvido uma imagem passiva de paz, percebida como um ideal

utópico e inatingível.

Essa perspectiva se ampara em interpretações negativas e até

reacionárias, na medida em que pretende manter a ordem social posta, ainda

que seja necessário dispor do uso de intervenções militares ou policiais,

desconsiderando a democracia e a liberdade de expressão. Assim, os

espanhóis Carlos Velázquez Callado e Xésus Jares, apoiado em autores como

Johan Galtung e Adam Curle, procura reelaborar a noção de paz com uma

concepção positiva, entendendo que ela se constitua não apenas como aquilo

que a humanidade supostamente rejeitaria, mas, ao contrário, baseado nas

condições e desejos humanos, não mais se restringindo como uma questão de

Estado, mas também do entendimento e da cooperação entre indivíduos. Para

atingir tal fim, os autores não só compreendem que os conflitos não podem ser

negados, mas que são componentes da existência humana e que deveriam ser

revertidos em possibilidades de um processo pedagógico de transformação

social.

Na concepção advogada por Callado, os conflitos não seriam resolvidos,

mas regulados, porque se entende que eles não são eliminados, mas

minimizados, já que é parte de um processo natural da sociedade. Desse

modo, seria imprescindível o fomento de processos de mediação, capazes de

obter compromissos de convivência tolerante entre as partes, evitando que as

divergências inviabilizem as relações entre as pessoas (CALLADO, 2004).

14

Por sua vez, Jares critica a compreensão positivista que apresenta o

conflito como uma disfunção ou uma patologia e, sobretudo, como uma

situação a ser corrigida ou evitada. O autor afirma que alguns conflitos são

associados à violência porque se confundem com agressão, assim como seria

necessário distinguir agressão de agressividade, já que a segunda seria parte

da conduta humana, não negativa em si mesma, mas positiva e necessária

como força para a auto-afirmação do indivíduo. Dessa forma, o conflito é

absorvido como parte do processo educativo e intrínseco à própria existência

humana, cabendo a ele um potencial papel didático como: a) sensibilização

diante de determinados conflitos violentos; b) desenvolvimento da competência

individual e coletiva no uso de técnicas não-violentas para a resolução de

conflitos; c) nos formatos organizacionais em que transcorre a ação educativa

(JARES, 2007, p.35-9). Assim, a postura a ser tomada diante de um conflito

não é ignorá-lo ou ocultá-lo, mas confrontá-lo de forma positiva e não-violenta,

orientando que as práticas pedagógicas para a confrontação e a resolução

não-violenta de conflitos.

Portanto essa concepção positiva de paz, centrada na regulação /

resolução dos conflitos como forma de transformação das relações

estabelecidas, denomina de cultura de paz, que, segundo Callado (2004, p.29)

“apresenta-se como uma resposta à tríplice agressão do homem a si mesmo,

aos demais e à natureza que nosso modelo de organização e de ordenamento

social gera na atualidade”. Essa expressão foi utilizada por Federico Mayor

Zaragoza na Conferência de Yamoussoukro (Costa de Marfim) em 1995, para

definir um processo de transformação da cultura da guerra, da violência,

imposição e discriminação, em outra cultura comprometida com a não-

violência, o diálogo, o respeito e a solidariedade.

Gradualmente, a noção de cultura de paz (ou da paz) foi incorporada

pelas organizações internacionais, especialmente pela Organização das

Nações Unidas (ONU) e sua agência, UNESCO. A cultura de paz assumiu a

figura de um estandarte carregado pela UNESCO (2001), sustentado pelos

valores “sagrados” da tolerância, da democracia e dos direitos humanos.

Definem que a cultura de paz é

15

“uma cultura baseada em tolerância, solidariedade e compartilhamento em base cotidiana, uma cultura que respeita todos os direitos individuais - o princípio do pluralismo, que assegura e sustenta a liberdade de opinião - e que se empenha em prevenir conflitos resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaças não-militares para a paz e para a segurança como exclusão, pobreza extrema e degradação ambiental. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis” (p.6).

Em 20 de novembro de 1997, as Nações Unidas proclamaram o ano

2000 como o Ano Internacional da Cultura de Paz, marcando o início de uma

mobilização mundial e de uma aliança global de movimentos existentes, para

juntos transformar os princípios norteadores da cultura de paz em ações

concretas. Em 10 de novembro de 1998, por meio de nova resolução, as

Nações Unidas proclamam a década 2001-2010, como a Década Internacional

da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do

Mundo3 a fim de reforçar o movimento global formado e apontando a UNESCO

como agência líder para a Década, responsável por coordenar as atividades do

sistema ONU e de outras organizações.

Em 1999, a UNESCO promove a Conferência do Apelo de Haia pela

Paz, em que, no seu encerramento, foi lançado o manifesto “Programa do

Século XXI pela Paz e Justiça”. Os quatro pontos principais destacados pelo

documento foram: o desarmamento e a segurança humana; a prevenção,

resolução e transformação de conflitos violentos; o direito e as instituições

internacionais nos âmbitos humanitários e dos direitos humanos; e as causas

principais da guerra e a promoção da cultura da paz.

Posteriormente, a Assembléia Geral das Nações Unidas reafirmou, em

março de 1999, que o ano 2000 seria disseminado como o “Ano Internacional

da Cultura da Paz”, lançando o documento oficial que, por sua vez,

desconsidera as raízes histórico-sociais dos problemas levantados, porque se

preocupa em se apresentar de forma (pro)positiva, destacando o potencial que

a ciência, os valores democráticos e a participação da sociedade civil podem

exercer para o exercício de tempos mais estáveis e tolerantes. Ainda destaca

16

que essa missão não pode ser apenas dos governos, mas que seja assumido

um compromisso pelos cidadãos em que também se integrem em gerar um

ambiente favorável à cultura da paz.

É possível perceber que as linhas de atuação, definidas por uma

coalizão de organizações, gerou temas repetitivos ou sobrepostos. Por isso,

essas medidas foram resumidas e aglutinadas. Destaca-se a ênfase no

desenvolvimento de uma educação para a paz, o respeito aos direitos

humanos e fomento e consolidação da “democracia”; combater efeitos

adversos da mundialização; desenvolvimento sustentável dos recursos

extraídos do meio ambiente; justiça e tolerância entre etnias, gêneros, crianças

e minorias em geral; eliminação da violência como recurso para alcance de

mudanças sociais; tribunais penais internacionais; fortalecimento da ONU como

mediadora de conflitos internacionais; desmilitarização da economia e

assinatura de tratado de prevenção à guerra (UNESCO, 1999).

Ainda em 1999, a campanha pela cultura da paz no interior da agência

internacional se concretizou no lançamento do “Manifesto 2000: por uma

cultura da paz e da não-violência”, conforme reproduzido abaixo1:

“Reconhecendo a cota de responsabilidade de cada um

com o futuro da humanidade, especialmente com as

crianças de hoje e as das gerações futuras, cada

indivíduo deve se comprometer – em sua vida diária, em

sua família, no seu trabalho, na sua comunidade, no seu

país e na sua região, a:

��Respeitar a vida e a dignidade de cada pessoa, sem

discriminação ou preconceito;

��Praticar a não violência ativa, rejeitando a violência

sob todas as suas formas: física, sexual, psicológica,

econômica e social, em particular contra os grupos mais

1 O manifesto pode ser facilmente encontrado em várias páginas na internet. A consulta para escrever essa monografia foi feita no site http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/UNESCO-Organiza%C3%A7%C3%A3o-das-Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas-para-a-Educa%C3%A7%C3%A3o-Ci%C3%AAncia-e-Cultura/manifesto-em-defesa-da-paz-2000.html.

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desprovidos e vulneráveis como as crianças e os

adolescentes;

��Compartilhar o seu tempo e seus recursos materiais

em um espírito de generosidade visando o fim da

exclusão, da injustiça e da opressão política e econômica;

��Defender a liberdade de expressão e a diversidade

cultural, dando sempre preferência ao diálogo e a escuta

no lugar do fanatismo, da difamação e da rejeição ao

outro;

��Promover um comportamento de consumo que seja

responsável e práticas de desenvolvimento que respeitem

todas as formas de vida e preservem o equilíbrio da

natureza do planeta;

��Contribuir para o desenvolvimento de sua

comunidade, com a ampla participação da mulher e o

respeito pelos princípios democráticos, de modo a

construir novas formas de solidariedade”.

Estrategicamente mais enxuto (apenas uma lauda), o Manifesto 2000

procura atingir o cidadão comum, ao enfatizar argumentos de que cada

indivíduo tem a sua cota de responsabilidade com o futuro da humanidade e

lança mão de um conjunto de vocábulos que conclama a compromissos como

“consumo responsável”, “respeito”, “compartilhar recursos materiais”,

“diversidade e diálogo”, “princípios democráticos e solidários”.

A estratégia de chamar cada cidadão de que exerça o seu papel

individualmente na construção da cultura de paz pode ser interpretada como a

forma de operar que a organização de operar a sua política, tendo em vista que

a assimetria de poder econômico e político têm levado que os arranjos

diplomáticos a se constituírem cada vez mais em letra morta ou, pelo menos,

em esforços insuficientes para garantir o cumprimento dos acordos instituídos,

então resta apelar à convocação do bom cidadão, apoiando-se em argumentos

de que o mundo será melhor se “cada um fizer a sua parte”.

18

Desse modo, o discurso construído pela UNESCO se caracteriza por

certa hesitação e contradição, pois, concomitante ao fato de que a

Coordenadora de Ciências Humanas e Sociais no Brasil, Marlova Noleto (2010,

p.11) declare em documento oficial da organização que

“no campo do desenvolvimento econômico é preciso passar da economia competitiva de mercado para um modelo de desenvolvimento mútuo e sustentável, sem o qual é impossível alcançar uma paz duradoura” (p. 11).

A mesma organização procura interpretar que a crise das sociedades

contemporâneas, conforme o então representante da UNESCO no Brasil, Jorge

Werthein (2001, p.5) se traduziriam em “crise de valores, crise de pontos de

referência, tensões ligadas ao desconhecido”, ou seja, ainda que se reconheça

que o modelo econômico é excludente, que concentra a renda em uma fatia

privilegiada da população e acentua as desigualdades sociais, a raiz das

questões não se encontraria no próprio sistema, mas em degenerações de

ordem cultural, o que implicaria em hábitos tumultuados, convivência não-

pacífica e um padrão não-civilizado de sociabilidade.

Faz-se relevante perceber que apesar dos esforços em reforçar a

concepção positiva de paz, o mesmo documento salienta que o quesito

segurança também se encontra presente nos princípios norteadores da

organização, o que pode gerar múltiplas interpretações quando ditas de forma

indefinida, como, por exemplo, segurança contra qualquer iniciativa político-

ideológica insurgente da ordem estabelecida2.

O lastro gerado com as iniciativas públicas e a sua discussão nos fóruns

oficiais da organização compõe os argumentos que justificarão a

implementação dos programas pela cultura de paz, que se desdobrarão em

formulações para o campo educacional. Alguns autores como os (já citados)

espanhóis Carlos Velázquez Callado e Xesús Jares, apesar de não

pertencerem aos quadros da ONU / UNESCO, têm contribuído com propostas

2 Jorge Werthein (2001, p.6) relembra que a missão exclusiva da UNESCO é “O propósito da Organização é contribuir para a paz e a segurança, promovendo cooperação entre as nações por meio da educação, da ciência e da cultura visando favorecer o respeito universal à justiça, ao estado de direito e aos direitos humanos e liberdades fundamentais afirmados aos povos do mundo".

19

que caminham no sentido de formular um quadro teórico-metodológico da

educação para a paz.

Ambos partem do princípio de que a educação precisa ser situada como

parte integrante do conjunto da sociedade e que, nesse sentido, será definida e

constituída como um substrato das relações sociais criadas e desenvolvidas

pelo ser humano consigo mesmo, com os demais e com as suas instituições.

Para tanto, Jares (2007, p.45) compreende que a educação para a paz seria

concebida como

um processo educativo, contínuo e permanente, fundamentado nos dois conceitos fundadores (concepção de paz positiva e perspectiva criativa do conflito), que, pela aplicação de métodos problematizantes, pretende desenvolver um novo tipo de cultura, a cultura de paz, que ajude as pessoas a entender criticamente a realidade, desigual, violenta, complexa e conflituosa, para poder ter uma atitude e uma ação diante dela.

A educação para a paz, enquanto uma perspectiva teórico-metodológica

educacional, está composta de princípios educativos norteadores para sua

intervenção prática. Ambos os autores (ibidem) citados tem comum acordo que

a educação para a paz seria:

1) Pressupondo que a educação não é um processo neutro, a educação

para a paz é uma forma particular de educação a partir de valores.

Pressupõe educar a partir de valores como a justiça, a cooperação, a

solidariedade, o compromisso, a autonomia pessoal e coletiva, o

respeito, ao mesmo tempo em que questiona os valores contrários a

cultura de paz, como a discriminação, a intolerância, o etnocentrismo, a

obediência cega, a indiferença e o conformismo, desenvolvendo-se

como um processo de esclarecimento, cujo mote principal não é

doutrinar os alunos aos valores “corretos”, mas ajudá-los a descobrir e

eleger seu próprio sistema de valores;

2) É uma educação a partir de e para a ação, em que se supõe formar

pessoas capazes de atitudes críticas diante de situações de

20

desigualdade e injustiça, mas capazes de atuar sem fazer uso da

violência;

3) Educar para a paz é um processo contínuo e permanente, em que se

exige uma atenção constante por parte da comunidade escolar em geral

e do professorado em particular;

4) Educar para a paz é um processo transversal e interdisciplinar.

A partir dos princípios mencionados, a proposta de educação para a paz

feita por Jares (2007), elaborou um rol de componentes curriculares a estarem

presentes no processo de ensino das atividades escolares. Esses seriam:

- Educação para a compreensão internacional (valorizar a diversidade cultural,

favorecer a tolerância, conhecer a luta dos diferentes povos em favor da paz);

- Educação para os direitos humanos e a cidadania democrática (história da

luta pelos direitos humanos, conhecer a Declaração Universal, identificar

violações aos direitos humanos, conhecer o trabalho dos organismos,

relacionar os direitos humanos às noções de justiça, igualdade, liberdade, paz

e democracia);

- Educação multicultural (valorização da diferença e respeito pelo outro, visão

conflituosa da realidade e do contato entre culturas, análise crítica dos

estereótipos e dos preconceitos);

- Educação para o desarmamento (confrontar o desarmamento contra a corrida

armamentista, o sistema de guerra e seus efeitos para a humanidade,

comparar os gastos militares com as necessidades sociais, alternativas não-

violentas de defesa);

- Educação para o desenvolvimento (conhecer o conceito, analisar a história do

subdesenvolvimento, propiciar atitudes críticas sobre as trocas desiguais entre

Norte-Sul, compreender o problema da dívida externa, questionar a

problemática da fome, compreender os processos de industrialização,

transferência tecnológica e catástrofes nos países dependentes, questionar as

atitudes neocoloniais para com o 3o mundo);

21

- Educação para o conflito e a convivência (reconhecer o conflito como natural

e inevitável à condição humana, exercitar-se na análise e resolução de

conflitos, conhecer e praticar técnicas de enfrentamento não-violento, identificar

os reais interesses das ideologias que encobrem determinados conflitos,

favorecer atitudes de desobediência ante situações de injustiça).

Diante da relevância que a educação para a paz foi adquirindo na

década de 1990, tanto no meio acadêmico, quanto na diplomacia internacional,

em 2001, a UNESCO, levando adiante a sua cruzada pela paz mundial, lança o

documento “Educação e Cultura para a Paz” que traz uma proposta de

intervenção educacional para disseminar uma cultura de paz.

No que tange aos princípios teóricos, a proposta originária do Sistema

ONU / UNESCO se encontra no relatório produzido pela Comissão

Internacional para o século XXI, presidido pelo francês Jacques Delors. O

chamado Relatório Delors, na verdade intitulado “Educação: um tesouro a

descobrir”, propôs princípios, também chamados de “pilares do conhecimento”,

que deveriam nortear a intervenção educacional na seguinte década. Os quatro

princípios seriam:

1) aprender a conhecer: refere-se a aprendizagem instrumental do

conhecimento, em que, devido à multiplicidade e abundância das

fontes, seria preciso aprender uma cultura geral, facilitada por uma

metodologia que permita ao educando filtrar aquelas informações

mais pertinentes para si;

2) aprender a fazer: preparar o indivíduo para atuar profissionalmente,

de modo que ele possa responder aos requisitos do mundo do

trabalho;

3) aprender a viver juntos: fomentar uma educação que preze pela

resolução e regulação dos conflitos de forma pacífica, de modo que a

solidariedade seja um componentes presente nas relações

educativas;

4) aprender a ser: que todo ser humano deve ser preparado para a

autonomia intelectual e para uma visão crítica da vida, de modo a

poder formular seus próprios juízos de valor,

22

A partir desses princípios norteadores, a organização formulou o

programa “Abrindo Espaços”, em que propõe que as escolas abram nos fins de

semana com atividades direcionadas para os jovens, pois, segundo a UNESCO

(2001, p.6), a escola seria o lugar da transmissão de valores como “tolerância,

não-violência, solidariedade, respeito mútuo...” (p.6). Conforme consta no

documento, a proposta se basearia em experiências realizadas nos Estados

Unidos, França e Espanha, em que o trabalho com jovens nas dimensões

artísticas, culturais e esportivas teria se constituído em instrumento de

prevenção da violência.

Destaca que as pesquisas realizadas pela UNESCO mostraram que a

violência envolve de sobremaneira os jovens, seja como vítimas, seja como

agentes diretos. E que, ao mesmo tempo, percebe-se a demanda por espaços

e equipamentos para o exercício de atividades lúdicas, esportivas e culturais,

espaços de sociabilidade e manifestação artística. As pesquisas também

alertariam para a descrença dos jovens com as instituições tradicionais, a

exclusão econômico-social e a perda de valores coletivos, o que propiciaria

maior vulnerabilidade a situações de comportamentos inadequados como atos

de vandalismo ou o uso de drogas.

A partir de um cenário traçado de desigualdade social com um modelo

de desenvolvimento econômico excludente caberia como missão “pensar em

uma educação que contemple os desafios do futuro [...] coloca(ndo)-se como

fator de coesão” (UNESCO, 2001, p.14). Desse modo, ainda que a educação

não contemple as expectativas de ascensão social e estabilidade no mundo do

trabalho, ao menos ela deve cumprir um papel de apaziguador das mazelas

sociais, de modo a não permitir uma insatisfação generalizada provocada pelo

funcionamento das relações sociais vigentes no capitalismo. Assim, ganha

força um ideário autoexplicativo da cidadania, referindo-se genericamente a ao

asseguramento do conjunto de direitos sociais e humanos.

Uma medida prevista para implantação de programas educacionais que

correspondam à expectativa de fomentar a cultura de paz está associada a

estratégias como descentralização administrativa e intensa participação

comunitária, o que asseguraria diagnósticos mais precisos da realidade local.

Assim, o marco teórico dessas estratégias se clareia, pois defende que o

23

estabelecimento de vínculos com a realidade local tem como objetivo traçar

uma rede de relações altamente capilarizadas, o que aumentaria o “capital

social”. Citando Putnam, o mentor contemporâneo do conceito, a UNESCO

(2001, p. 20) compreende que “o capital social é freqüentemente um

subproduto valioso das atividades culturais [...] todas produzem grande ponte

para o capital social – esse aspecto é a mais importante realização”.

Em síntese, uma vida mais comunitária, em que valores familiares sejam

alimentados, tornaria muito mais efetivas as políticas focalizadas e de alívio à

pobreza, contribuindo para que os chamados excluídos do sistema se sintam

reconhecidos, valorizados e respeitados. Estes valores, conforme os teóricos

do capital social são cruciais para afastá-los de ações e contextos disrruptivos,

seja no plano da radicalidade da ação política, seja por meio da adesão a

grupos que fazem uso da força para impor os seus negócios considerados

ilícitos. O capital social, nessa perspectiva, é importante para a cultura de paz e

vice-versa.

A partir de 2004, por meio de cooperação entre a UNESCO e o

Ministério da Educação (MEC), foi criado o programa “Escola Aberta”, baseado

no know-how trazido pela organização internacional. Esse estreitamento com a

estrutura do Estado permitiu que a organização viabilizasse a continuidade do

programa com diversos parceiros, tendo em vista a visibilidade conseguida,

destacando-se a empresa de extração de minérios Vale, a fundação Palas

Athena e o próprio governo federal, que firmou convênio com outro programa, o

Pronasci3.

Os esforços da organização em âmbito internacional fizeram com que,

inspirados nos princípios construídos em torno da cultura e da educação para a

paz, diversos países adotassem programas e estabelecessem convênios no

sentido de implantar intervenções socioeducativas que se direcionem aos

3 Criado em 2008, pelo Ministério da Justiça do Governo Federal, busca articular políticas de segurança e ações sociais diversificadas, a partir da cooperação entre forças de segurança pública e representantes da sociedade civil, cuja previsão de investimentos, até 2012, é de R$ 6,707 bilhões. Tal expressão aparece no Informativo PRONASCI, ano 2, número 73, de 26 de novembro de 2008. Disponível em:<http://www.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJA49D1180ITEMIDE10E2DBCF99741E4AD6C9D3C91BDF979PTBRIE.htm>. Acesso em 21 de dezembro de 2008.

24

chamados jovens em “situação de risco” ou em estado de “vulnerabilidade

social”4.

Por fim, o capítulo apresentado teve por intenção traçar um panorama

sobre a concepção da cultura e da educação para a paz, estabelecendo um

diálogo entre autores do tema e a intervenção levada adiante pela UNESCO.

Os capítulos seguintes têm a pretensão de destrinchar os pressupostos

evidenciados nos textos que sustentam a concepção contemporânea de paz,

em vista de problematizar alguns marcos conceituais.

4 É possível ter acesso a algumas experiências no documento da UNESCO (2008) “Convivencia democrática, inclusión y cultura de paz”, disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001621/162184s.pdf, acesso em 29 novembro de 2011.

25

CAPÍTULO II

FUNDAMENTOS CONCEITUAIS SOBRE A VIOLÊNCIA

A proposta do capítulo II é discutir os fundamentos conceituais da

violência, com o intuito de deixar de lado a noção corrente de negação a toda e

qualquer forma de sua manifestação. Abordada como uma praga que assola o

cotidiano das pessoas, suas manifestações mais imediatas são

responsabilizadas por interferirem no funcionamento estável da sociedade e

causarem desequilíbrios entre seus indivíduos, provocando largas fraturas

sociais que põem em xeque a forma de organização social.

Não menos importante é o papel que os grandes veículos de

comunicação conferem à violência que, ao examinarem o tema, não apenas

relatam fatos e acontecimentos ocorridos, mas também organizam um modo de

pensar gestado no interior da sociedade, ajudando a difundir e conformar

comportamentos sociais, como a “cultura do medo”, o que implica a sugestão

de um estado de pandemia social.

Desse modo, o capítulo discutirá a violência como manifestação humana

e como instrumento balizador da manutenção ou transformação da ordem

social, a partir das bases de seu pensamento político de alguns teóricos

sociais. Para dar conta desta tarefa, foram selecionados autores que podemos

classificá-los como clássicos e que perpassam o pensamento social ao longo

dos séculos. Primeiramente, discutirá as bases conceituais que atribuem a

violência como práxis social dos homens. Em seguida, o tema será discutido

pelas reflexões de Maquiavel, Hobbes e Locke, autores que acompanharam ou

participaram de maneira efetiva das grandes transformações sociais. Por fim,

será a vez do referencial marxista, composta por indivíduos que não apenas

analisaram a política do seu tempo, mas foram protagonistas das rebeliões e

revoluções sociais.

2.1. Práxis e violência

A práxis, segundo os gregos a designavam, é a ação de levar a cabo

alguma coisa. Contudo, para o pensamento marxista, a práxis se entende

26

como uma atividade prática que intervém e transforma o mundo, que tem a

capacidade de fazer e refazer coisas, com o intuito de metamorfosear uma

matéria ou uma situação.

A atividade prática humana revela funções mentais de síntese e

previsão, na qual ostenta um caráter teleológico ou finalista: logo, esta

atividade se adequa a metas fixas, as quais vão presidir as modalidades de

atuação. Tendo em vista que a história não é explicável mediante a

combinação de condições invariáveis, nem se desenvolve universalmente

pelas mesmas etapas, faz-se necessário que a ação se sustente em teorias

com uma orientação ou finalidade (que jamais deve alienar-se das

necessidades primárias e imediatas, porque então operaria como especulação

parasitária). Por isso, pode-se afirmar que a práxis humana, uma atividade

adequada a certos fins, ostenta um caráter teleológico.

Pela ação impingida a determinada coisa, também se pode considerar a

práxis como um processo formativo, isto porque, o sujeito imprime uma

determinada forma a um objeto, modificando a estrutura que a sustentava, para

adequá-la a uma forma que lhe seja útil. Por outro lado, chama a atenção

Sánchez Vasquez (1990):

“o objeto só é objeto da atividade transformadora do sujeito na medida em que perde sua substantividade para converter-se em outro. Desse modo, é arrancado de sua própria legitimidade, da lei que o rege, para sujeitar-se à que o sujeito estabelece com sua atividade” (p. 373).

Geralmente, essa transformação do objeto encontra certa legitimidade

em suas propriedades que oferecem condições para sua transformação, pois,

se não as houvesse, sua possibilidade de transformação seria nula. Contudo,

quando essa transformação ou destruição se exerce sobre um objeto real,

pode-se qualificar essa ação como violenta, realizadas através de atos

violentos. Essa violência se manifesta na situação em que o natural ou o

humano resiste ao homem, o que oportuniza afirmar que a violência é um

atributo exclusivamente humano, na medida em que é o único ser que, para

manter a integralidade de sua condição, precisa violar uma ordem exterior a ele

(no caso, a natureza). Adiante com a afirmação acima, a violência apenas pode

27

ser encontrada nos homens, pois esta se ampara na quebra de uma legalidade

até então estável, necessidade imprescindível para que os homens sobrevivam

enquanto espécie, tendo em vista que não possuem um elo natural na cadeia

de reprodução da vida, ou seja, diferente dos animais que se inserem numa

ordem natural estabelecida sem alterá-la, o homem imprime à natureza formas

que lhe são úteis, mediante a alteração de sua ordem, portanto, regidos pela

violência.

Ao entender a violência como um atributo humano, Sánchez Vasquez

(ibidem, p.375) salienta que a mesma não se mostra apenas pela presença da

força, já que a natureza também possui forças próprias. Assim, “a violência não

é a força em si, ou em ação, mas sim o uso da força. Na natureza, as forças

atuam, mas não se usam; só o homem usa a força e pode usar a si mesmo

como força”. Por isso, a força em si, não é violência, mas aquela usada pelo

homem. Daí o caráter exclusivamente humano da violência.

Até aqui, foi tratado o papel do homem enquanto sujeito ativo da

violência, mas, na práxis social, o homem também pode ser o objeto a ser

impingido por uma ação violenta. Nesse caso, a ação humana é o modo pelo

qual se pretende transformar ou que se resistir à transformação de uma

determinada forma de produção e organização da vida.

No campo da práxis social, a ação violenta, apesar de se exercer contra

sujeitos concretos, dotados de uma estrutura corpórea, não se dirige ao ser

físico, mas ao ser social, à sua condição de sujeitos imersos em determinadas

relações sociais que encarnam um modo de organização da sociedade

existente. Portanto, a práxis social esbarra em limites oferecidos por outros

sujeitos isolados ou agregados em coletivos e a violência surge como

instrumento para quebrar a consciência resistente de outrem. Por isso, frisa

Sánchez Vasquez (1990, p. 380) “a violência que se exerce sobre o corpo não

se detém nele, e sim, em sua consciência; seu verdadeiro objeto não é o

homem como ser natural, físico, como mero ser corpóreo, mas sim como ser

humano e consciente”.

Nesse ínterim de produção e reprodução da vida, alguns autores

enxergam e fazem apologia da violência como a própria força motriz do

desenvolvimento histórico. Engen Dühring compreendia que a forma das

28

relações políticas é o fator historicamente fundamental e que as relações

econômicas são fatos de segunda ordem. Critica o pensamento socialista

(ligado às diretrizes de Marx e Engels) que tomam por princípio a relação

inversa. Dühring não nega que os efeitos decorrentes da segunda ordem

existam, mas que o principal é buscar na violência política imediata a

explicação para a conformação do sistema social. Como resposta a tais

formulações, Friedrich Engels publicou em 1877 a obra crítica Anti-Dühring.

Engels critica decisivamente a inconsistência teórica do sistema

formulado por Dühring. Ao apontar que este crê que os atos políticos dos

chefes de Estado são o fator decisivo da história, Engels (1975, p.194) ironiza

que esta crença já não encontrava nenhum respaldo, crença que “ha presidido

toda concepción pasada de la historia, hasta que vinieron a asestarle el primer

golpe los historiadores burgueses de Francia em la epoca de la Restauración;

lo único ‘original’ es que el señor Dühring nuevamente ignora todo esto”.

Com essa crítica mordaz, Engels expõe a fragilidade teórica que

sustenta a teoria de Dühring que, acaba por ver numa espécie de vontade

própria dos chefes de Estado contra outros povos, da burguesia contra o

proletariado e de Robinson Crusoé5 em relação à Sexta-Feira, a razão para a

iniciativa de atos violentos e de dominação contra outrem. Dessa forma,

negligencia o interesse da dominação sobre uma classe e, por conseguinte, o

interesse na extração de riquezas e acúmulo de capital.

Também Engels se detém na crítica de que a propriedade privada está

primariamente baseada na violência. Decerto, que a violência foi (e continua

sendo) um recurso para o aumento substancial do grau de espoliação nas

relações de classe e relações econômicas entre Estados. Contudo, nesses

casos, a razão para o uso da violência não pode ser encontrada em patologias

psíquicas, que, por si mesma, não gerará apropriação privada dos bens e

recursos socialmente produzidos, e sim, nos interesses econômicos advindos

da exploração do trabalho alheio. Daí chega-se a conclusão de que os bens e

riquezas acumuladas podem até ter sido conquistados por meio da violência,

contudo a explicação não se encerra aí, podendo também ser fruto do trabalho

(alheio), de uma transação comercial ou de um jogo lotérico. O que Engels 5 Menção do livro “Robinson Crusoé” que Dühring cita em sua obra e que Engels refuta seus exemplos.

29

(1975, p.197) quer salientar é que a violência por si mesma não pode explicar a

concentração da propriedade privada, pois, a própria existência da propriedade

implica em lembrar que lá existe trabalho materializado, ou seja, conforme

explica “para que algo pueda ser robado, es menester que alguien haya creado

antes con su trabajo lo que se roba” e ainda que “la violencia podrá,

indudablemente, transformar el estado posesorio, pero nunca engendrar la

propiedad privada como tal” (p.198).

Recapitulando, pode-se chegar a conclusão de que a violência se instala

na sociedade sob o propósito de determinadas relações sociais e que esta

violência provavelmente suscitará um ato em resposta, oposto ao ato original,

podendo ocorrer resistência por conta da propriedade da matéria ou, quando

ocorrido contra um homem, pela ação contrária deste. A violência investida

sobre as relações sociais estão ligadas a fatores objetivos que, de alguma

forma, tornam impossível a convivência pacífica das contradições fundamentais

que regem a sociedade vivida. Portanto, a violência como práxis social não

pode se limitar a ser taxada apenas como um ato rompante, pois esta também

existe na condição de violência organizada. E a sua maior expressão

atualmente é encontrada nos Estados que, em nome de um suposto

estabelecimento de uma democracia e de direitos, advoga pelo monopólio da

violência, apesar de, recorrentemente, negarem-se a reconhecer esse papel a

si mesmo atribuídos.

O uso da violência enquanto forma de dominação e conformação de

determinados princípios e estado de coisas coloca em evidência sua

inseparabilidade da política. Contudo, também ela é reconhecida e utilizada

como um recurso para a transformação histórica. Conforme as experiências do

passado, todas as sociedades que pretenderam engendrar mudanças

substanciais em sua forma de organização social, não puderam prescindir da

violência, tendo em vista só reconhecerem nela, o único meio para criar novas

relações de produção e reprodução social. A experiência vivida fez reconhecer

nos revolucionários de que os frutos de uma sociedade não-violenta advêm de

uma revolução violenta. E, para isso, os intelectuais e teóricos sociais, contra

ou favor da ordem social, se propuseram a refletir sobre seu papel.

30

2.2. Nicolau Maquiavel

O desenvolvimento do mercado moderno provocou uma dissociação

entre o poder político e econômico. A forma de governo predominante a partir

do Renascimento foi a monarquia absolutista que, conseqüentemente, minou a

organização social própria do feudalismo, ao desapropriar o poder dos

senhores feudais. A superação do feudalismo deu lugar a ascensão de uma

nova classe, a burguesia mercantil.

Maquiavel pretende n’O príncipe que a Itália se constitua num Estado

unificado para melhor se defender dos eventuais saques e pilhagens pelos

estrangeiros. É uma espécie de manifesto político em defesa de uma forma de

organização mais forte. O Príncipe é uma obra escrita para os príncipes e

que leve em consideração os interesses do povo, entendendo nisso, uma

facilitação para a unificação do Estado. Para isso, dedica extensas passagens

em analisar e recomendar formas de ação para manter a autoridade do poder

monarca nos principados, assumindo abertamente (e, por isso, sendo mal

afamado e tratado sob o adjetivo maquiavélico) que a violência é um método

para conservar a ordem existente.

Maquiavel (s/d, p.44) articula com habilidade a manutenção do poder

através do equilíbrio entre a coerção imposta pelas armas e o consenso das

leis. Para o caso de governar e conservar os principados hereditários, entende

que basta que não seja abandonada de todo a praxe dos antecessores e,

posteriormente, as situações particulares sejam contemporizadas, o que

denota uma maior disposição em conseguir o consenso dos cidadãos. Já em

situação de principados mistos (um membro ajuntado a um Estado hereditário),

prevê maior atenção contra a insatisfação dos descontentes com o novo

príncipe, classificando como inimigos todos aqueles que se sentirem ofendidos

por ocupar o principado e recomenda muita atenção aos “amigos”, pois estes

podem não estar muito satisfeitos como pensavam que seria. Ainda assim,

atenta para a dosagem na repressão, pois “Não poderás usar contra eles

remédios fortes, obrigado que estás para com eles, pois mesmo que sejas

fortíssimo nos exércitos, necessitas do favor dos habitantes para entrar numa

província”.

31

A violência se manifesta de maneira aberta quando se trata de

administrar um principado conquistado pelo crime, pois, diferente da fortuna ou

do mérito, nesse caso, a conquista se deu atentando contra as leis humanas e

divinas. Essa forma de absorção é extremamente suscetível a traições de

todas as partes, incluindo os inimigos externos, quanto as conspirações

internas para derrubar o príncipe. Maquiavel (ibidem, p.93-4) pondera que a

conservação do poder depende da aplicação bem ou mal praticada da

crueldade. Para ele, bem usadas são aquelas que são feitas de uma só vez,

pela necessidade de prover segurança. Mal usadas são aquelas que, em

princípio sejam poucas, mas ao longo do tempo, crescem e tornam a situação

inviável. Compreende que:

[...] ao apoderar-se dum Estado, o conquistador deve determinar as injúrias que precisa levar a efeito, e executá-las todas de uma só vez, para não ter que renova-las dia a dia. Deste modo, poderá incutir confiança nos homens e conquistar-lhes o apoio, beneficiando-os. Quem age por outra forma, ou por timidez ou por força de maus conselhos, tem sempre necessidade de estar com a faca na mão e não poderá nunca confiar em seus súditos, porque estes, por sua vez, não se podem fiar nele, mercê das suas recentes e contínuas injúrias. As injúrias devem ser feitas todas de uma vez, a fim de que, tomando-se-lhes menos o gosto, ofendam menos. E os benefícios devem ser realizados pouco a pouco, para que sejam melhor saboreados.

A citação supracitada sintetiza o “princípio maquiavélico” de que os fins

justificam os meios. Essa máxima pode ser interpretada sob o signo de que,

para Maquiavel, as leis que regem a política não necessariamente regem a

moral privada, ou seja, vale dizer que a política tem uma ética diferente da

moral privada.

Por mais controverso que possa ter sido o pensador florentino, pode-se

afirmar que Maquiavel contribuiu decisivamente para a consolidação da vitória

das leis humanas sobre a ética cristã dominante da Idade Média. Também se

destaca sua preocupação em pensar o domínio político pela conquista do

consenso entre os populares. Contudo, sua perspectiva de história deixa

transparecer que a história se repete continuamente, o que o faz defender que

as ações dos governantes se constituam em manter a qualquer custo um

32

Estado forte e unificado e o bem geral da comunidade. Daí não pondera que a

violência, seja aos seus cidadãos, seja a outros Estados, num determinado

momento histórico parecia adequado, agora pode se mostrar mau.

Por fim, pode-se atribuir a violência, para Maquiavel, um papel de

conservação da ordem existente.

2.3. Hobbes e Locke: a ascensão do contratualismo inglês no século XVII

O século XVII na Inglaterra foi marcado pela derrocada do poder

absoluto do monarca, o que culminou em duas grandes rebeliões civis, a

primeira entre os anos de 1642 e 1648 (conhecida como “Revolução Puritana”),

e a segunda, entre 1666 e 1689 (a Revolução Gloriosa). No caso da primeira,

os reis Jaime I e Carlos I (pai e filho, respectivamente) tentaram ampliar o

poder do rei para governar sem interferências do parlamento. Oliver Cronwell

liderou a cavalaria do parlamento, a burguesia mercantil e um exército formado

por pequenos e médios proprietários rurais contra Carlos I que, em 1649,

venceu a guerra, prendeu e decapitou o rei, fato político significativo por

representar a pena de morte a alguém dotado de “poderes divinos”; a

Revolução Gloriosa, ocorrida sem derramamento de sangue, foi a deposição

do rei Jaime II para o estabelecimento de uma monarquia constitucional após

um acordo entre as frações da monarquia liberal e a burguesia. Dessa forma, o

príncipe holandês e protestante Guilherme de Orange assumiu o trono sob a

forma de acordos e contratos, o mais importante deles o “Bill of Rights”, lei

limitou a autoridade do monarca, deu garantias ao Parlamento e assegurou os

direitos civis e as liberdades individuais aos cidadãos ingleses.

Essa época histórica do contratualismo pode ser associada à expansão

das sociedades mercantis. O pensamento parte do pressuposto de que é

necessário um contrato social em vigência para administrar o bem comum. No

entanto, os dois pensadores contratualistas ingleses (Thomas Hobbes e John

Locke) se diferem em alguns aspectos.

Para Hobbes, os homens seriam seres dotados de uma natureza ruim,

perversa e egoísta e isso geraria um clima de constante medo e tensão entre

todos, que, sem um poder comum capaz de mantê-los em respeito mútuo, faz

33

com que estes se encontrem em uma condição de guerra, uma guerra que é de

todos contra todos, na medida em que vivem em sob intensa competição,

desconfiança e busca pela glória (HOBBES, 2002).

A guerra de todos contra todos implica que os homens vivam sob o

estado de natureza, situação em que não há lei, governo constituído e somente

guiado por suas paixões que, eminentemente, acabam por materializar

disputas ferrenhas, sem que haja um poder com autoridade para julgá-las, ou

ainda, como cumprir os pactos e relações amistosas sem que haja

desconfiança de que a outra parte não vá cumprir o acordo. Afirma

categoricamente que é imprescindível alguma espécie de poder coercitivo,

capaz de obrigar os homens ao cumprimento de seus pactos. Nesse momento,

Hobbes está de fato preocupado é com a proteção da propriedade.

A forma encontrada por Hobbes (2002, p.131) em garantir um poder

forte, capaz de fazer os homens cumprir seus pactos e de protegê-los das

invasões de hordas e Estados estrangeiros, é conferir toda a força a um

soberano ou a uma assembleia de homens, capazes de reduzir as diversas

vontades individuais e egoísticas a uma só vontade, o que sintetizou na

seguinte frase: “Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este

homem ou a esta assembleia de homens, com a condição de que transfiras a

ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações”.

Sob a proteção do imponente Leviatã, a teoria hobbesiana busca criar

uma condição favorável à paz, pelo pavor que o homem sente à morte violenta.

Desta forma, todos os homens procuram a segurança e a estabilidade, mesmo

que, para isso, tenham de abrir mão de algumas liberdades. Atualmente,

percebe-se que a teoria hobbesiana vem se manifestando em justificativa para

o uso de torturas e métodos violentos para proteção interna das nações, em

especial nos Estados Unidos durante o período Bush (2000-2008).

Quando se comparam as formulações teóricas de Maquiavel e Hobbes,

percebe-se que o florentino fundamenta suas perspectivas a partir de

acontecimentos históricos, enquanto que o inglês faz uma caracterização a

partir do seu entendimento de como os homens devem agir, não havendo

fundamento empírico em seus estudos.

34

Passando para o pensamento de John Locke (2002, p.22), este começa

sua obra Segundo tratado sobre o governo, definindo o que entende por poder

político, o que, para ele se concretiza no

[...] direito de elaborar as leis, incluindo a pena de morte e, portanto, as demais penalidades menores, no intuito de regular e conservar a propriedade, e de utilizar a força da comunidade para a execução de tais leis e para protege-la de ofensas externas. E tudo isso visando só ao bem da comunidade.

Na citação supracitada, aparece uma das maiores preocupações da

teoria de Locke: a formação de uma comunidade que proteja a propriedade,

constituindo-se num árbitro a partir de regras fixas, impessoais e iguais para

todos e que, pela designação a alguns homens, a comunidade outorga o poder

para execução dessas regras.

Locke, apesar de construir um modelo de pensamento semelhante,

evidenciou algumas diferenças. Locke não é tão pessimista em relação à

natureza humana quanto seu predecessor, Hobbes (e também Maquiavel).

Enquanto em Hobbes, os homens se encontram naturalmente em estado de

guerra de todos contra todos, Locke entende que os indivíduos em estado de

natureza, na verdade evitam a guerra, pois são seres racionais. O estado de

natureza lockeano não é caracterizado por um conflito ou guerra permanente,

ele é baseado na harmonia e na aquiescência dos indivíduos.

Outra separação entre Hobbes e Locke é em relação à concepção de

Estado. Enquanto Hobbes propõe uma monarquia absoluta calcada na

capacidade do soberano em manter a paz e a convivência pacífica entre os

homens, para Locke (2002, p.71), o absolutismo se constitui no seu principal

inimigo. Isto porque, argumenta ele, no momento em que os homens saem de

seu estado de natureza para se adequarem a comunidade, estabelecendo um

juiz que possa julgar quaisquer demandas advindas dela, torna-se incompatível

a existência da monarquia absoluta, uma vez que o objetivo da sociedade é

escapar dos inconvenientes propiciados pelo estado de natureza,

frutos inevitáveis do fato de poder cada um ser juiz e executor em causa

própria, estabelecendo-se para tal uma autoridade reconhecida para a qual

todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano sofrido

35

ou controvérsia que possa surgir, e à qual todos os membros têm de se

submeter.

Por conseguinte, a discordância também se manifesta em suas posições

eqüidistantes quanto à legitimidade das rebeliões populares. O primeiro é

decididamente contrário a qualquer tentativa do povo de se insurgir contra seu

soberano, pois entende a revolta é contrária à razão dos homens e estes não

tem o direito de quebrar o pacto (de permanecerem como súditos), pois

estariam incorrendo contra uma lei da natureza. Locke, ao contrário, admite a

dissolução do governo (não do Estado) pela sociedade quando os seus

poderes instituídos (Legislativo e Executivo) não cumprirem ou cumprirem

apenas em causa própria a elaboração de leis sem consentimento do povo,

este fica desobrigado a obedecê-las, pois tais leis não têm autoridade moral

para legislar sobre o que lhe aprouver. Logo, um governo que não tenha a

capacidade de executar as leis e um legislativo que não possa formulá-las, são

passíveis de serem derrubados para constituição de novos poderes.

Locke defende que a razão básica que estimula a formação da

comunidade e seu respectivo governo, é o intuito de preservar a propriedade

dos membros da sociedade. Por isso, diante da usurpação do dinheiro da

comunidade, a expropriação ou destruição da propriedade do cidadão e a

tentativa de subjugação ao poder arbitrário do executivo e do legislativo são

motivos que isentam os cidadãos de obediência ao governo, deixando-os, à

mercê de Deus, que manifestem toda e qualquer forma de resistência, o que

inclui o uso da força e da violência, capacidades humanas oriundas d’Ele.

2.4. Marx: a virada para um pensamento social da maioria

Karl Marx foi herdeiro da filosofia alemã do final do século XVIII e início

do século XIX, em grande parte construída por nomes como Immanuel Kant e,

principalmente, G.W. Hegel, a quem foi bastante influenciado pela concepção

dialética hegeliana. Após se aproximar do grupo Jovens Hegelianos, reformular

ao avesso a dialética hegeliana e terminou por rompeu com estes. Apesar de

reconhecer a influência de Hegel na construção de suas ideias, passou a

compreender que a origem da realidade social não reside no pensamento e na

36

consciência que os homens têm dela, mas sim na ação concreta destes, ou

seja, a materialidade constitui a gênese do movimento histórico que constrói o

mundo.

No prefácio de Uma contribuição à crítica da economia política (1859),

Marx situa que a produção dos indivíduos é socialmente determinada e critica

que os intelectuais (cita Adam Smith, David Ricardo e Rousseau) até então os

viam como seres isolados, independentes e desligados de seus laços naturais,

tal como um dado da natureza. Contesta tal formulação ao contextualizar que

os indivíduos são um produto histórico do seu tempo. Nesse sentido, as

condições objetivas limitam a ação humana criadora, uma vez que o modo de

produção condiciona o processo da vida. Ou melhor, segundo Marx (2008,

p.45)

“[...] na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações sociais de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações converteram-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social”.

A formulação política de Marx será completada com toda precisão

quando precisa a correspondência entre as forças produtivas e as relações de

produção, que consolida sua dimensão histórico-social e sua concepção

materialista da história. Marx compreende que após se chegar a uma fase do

desenvolvimento, as forças de produção materiais se chocam com as relações

de produção, que nada mais são que a expressão jurídica das relações de

propriedade desenvolvidas até o presente momento. As relações que

sustentam as forças produtivas, outrora fator de desenvolvimento, acabam por

37

se transmutar em obstáculos a elas, abrindo caminho para uma época de

revolução social.

O que pode denotar uma utopia idealista é, na verdade, o grande

diferenciador de Marx em relação aos seus predecessores, pois fundamenta a

sua utopia em bases materiais e históricos. Um modo de organização social

não pode ser superado enquanto houver resquícios materiais da velha ordem.

Desse modo, se as condições objetivas não estiverem postas, a revolução

social não triunfará. Por isso, é que os homens só se propõem às tarefas que

possam resolver. E as tarefas só se colocam porque existem condições

objetivas que as materializam.

Na obra A Ideologia alemã (1845), Marx expõe que a sua concepção de

Estado caracteriza-o como um fenômeno de classe que medeia e materializa

uma forma política com o fim de representar os interesses em comum da

classe dominante, a burguesia. Em outro texto, O 18 Brumário de Luís

Bonaparte (1852), Marx (2007, p. 60-1) descreve como o Estado se arma como

uma máquina de guerra para intervir na vida social e garantir a continuidade

deste como comitê central dos negócios da burguesia.

“[...] em um país como a França, onde o Poder Executivo controla um exército de funcionários que conta mais de meio milhão de indivíduos e, portanto, mantém uma imensa massa de interesses e de existências na mais absoluta dependência; onde o Estado enfeixa, controla, regula, superintende e mantém sob tutela a sociedade civil, desde suas mais amplas manifestações da vida até suas vibrações mais insignificantes, desde suas formas mais gerais de comportamento até a vida privada dos indivíduos; onde, por meio da mais extraordinária centralização, esse corpo de parasitas adquire uma ubiqüidade, uma onisciência, uma capacidade de acelerada mobilidade e uma elasticidade que só encontram paralelo na dependência desamparada, no caráter caoticamente do próprio coro social”.

Em O manifesto comunista (1848), Marx (1998, p.9) leva a termo três

conceitos fundamentais: a luta de classes, o Estado e a revolução. Começa

pela célebre frase “a história de todas as sociedades que já existiram é a

história de luta de classes”. A burguesia, ao tomar o controle da sociedade,

revolucionou todas as relações sociais até então colocadas, sujeitou a natureza

aos desígnios do homem, expandiu o domínio do comércio por todo o globo e

38

liberou novas forças produtivas como nunca antes visto. Porém, em um certo

estágio do desenvolvimento, a sociedade burguesa moderna passou a provar

do seu próprio veneno, em decorrência das crises de produção que ameaçam

a sua reprodução. Assim, a burguesia não só forjou as armas contra ela

própria, como também forjou a classe que se levantará contra ela: o

proletariado. Atenta Marx (ibidem, p.32) que, tendo em vista que as condições

de vida da sociedade antiga foram destruídas, cabe aos trabalhadores abolir

todos os meios de apropriação que asseguram a propriedade individual; ou

ainda mais claro em suas palavras “a meta imediata dos comunistas é a

mesma de todos os partidos proletários: a formação do proletariado em uma

classe, a derrubada da supremacia burguesa, a conquista do poder político

pelo proletariado”. Entendendo que o Estado se mantinha a partir da coerção e

era o único sujeito político a ser disputado, ele só poderia ser tomado a partir

da revolução violenta do poder, pois a oposição ao Estado burguês só poderia

ocorrer em grupos “fora da lei”.

No último terço do século XIX, surgem instrumentos e instituições em

parte da Europa e Estados Unidos que tem incidência sobre a política, como os

partidos de massa e o reconhecimento legal dos sindicatos. Marx, embora

tenha insistido na tomada violenta do poder no texto Crítica ao programa de

Gotha (1875), em discurso durante a realização do I Congresso da Associação

Internacional dos Trabalhadores (1866), admitiu que os trabalhadores poderiam

ter conquistas, mesmo no interior do capitalismo (após conquistas dos

trabalhadores em favor do sufrágio universal e a redução da jornada de

trabalho).

É nesse horizonte de disputas que se deve visualizar a evolução do

pensamento de Marx a caminho de uma filosofia da práxis, entendida como

uma atividade real e capaz de transformar a realidade.

2.5. Gramsci: um ponto de inflexão na teoria marxista

A fonte de inspiração para Antonio Gramsci foi a vivência do movimento

operário e socialista na Itália até 1926, quando foi preso. Na prisão, buscou a

resposta sobre o porquê o movimento revolucionário na Itália e na Europa

39

Ocidental não repetiu o êxito da Rússia bolchevique. Após se deter na análise

da composição do Estado moderno, sua originalidade foi perceber que havia

determinações e condições distintas entre os países. O Estado na Rússia ainda

se caracterizava sob as descrições de Marx, Engels e Lênin como um “comitê

das classes dominantes”, em que os aparelhos repressivos exerciam forte

controle sobre quaisquer atividades civis, o que limitava a participação política

em organizações clandestinas e partidos de vanguarda. Contudo, Gramsci já

maneja a política num contexto social e geográfico que vivencia uma intensa

socialização da política que resultaram em algumas conquistas, como o

sufrágio universal, a criação de grandes partidos de massa e a ação efetiva de

numerosos sindicatos. Portanto, se na Rússia, o Estado ainda aparecia

fundado em bases mais “restritas”, a Europa Ocidental permite a Gramsci

afirmar que há um “Estado ampliado” (COUTINHO, 1996).

A partir da teoria gramsciana, o Estado ampliado é constituído em duas

esferas em seu interior: a sociedade política e a sociedade civil. A primeira

seria formada pelo conjunto de aparelhos que exercem o monopólio legal da

violência e da repressão, constituindo-se em aparelhos coercitivos do Estado,

como a polícia, o exército e o poder judiciário. Por sua vez, a sociedade civil

designa o conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão

das ideologias, o que compreende os partidos políticos, as escolas, as igrejas,

os veículos de comunicação, organizações não-governamentais, dentre outras.

A ampliação do conceito de Estado está circunscrita na contribuição que

Gramsci oferece para pensar o método revolucionário de ação prática. Nos

países em que não se desenvolveu uma sociedade civil autônoma e forte e a

esfera do ideológico ainda se encontra muito dependente dos ditames da

sociedade política, a luta de classes se trava de modo à tomada fulminante do

Estado. Essas sociedades seriam as “sociedades orientais”, como a Rússia. O

seu oposto seriam as sociedades ocidentais, como a Europa Ocidental, que já

apresentam uma relação equilibrada entre sociedade civil e sociedade política

e o movimento revolucionário dirige sua luta em boa medida ao controle sobre

os aparelhos privados de hegemonia (APH).

Os APH são organismos que possuem uma dimensão econômica, mas

também político-cultural, fator determinante na compreensão gramsciana para

40

a conquista da hegemonia. As classes buscam exercer sua hegemonia por

meio da direção e do consenso das atividades da sociedade civil, em que se

pode incluir estratégias como a formação de veículos de imprensa, disputas de

no projeto político-pedagógico nas instituições de ensino, a formulação de leis

no âmbito parlamentar ou a constituição de organizações não-governamentais

em comunidades populares.

Para o autor italiano, o Estado se incumbe da tarefa de criar e forjar

novos e mais elevados tipos de civilização, de modo que esta civilização e a

moralidade da sociedade estejam imbuídas de prestarem serviço às

necessidades da contínua reprodução e do desenvolvimento do modo de

produção. Conseqüentemente, o Estado também elabora novos tipos de

humanidade, o que orienta a formação de um novo ethos civilizatório.

Paralelamente a concepção de um outro patamar da sociedade, Gramsci

(2000) também problematiza como essa civilização opera em nível ideológico

sobre os homens e, principalmente, como os mobiliza em favor desse processo

social. A resposta a esse dilema pode ser encontrada em parte na formulação

de leis que atestem as mudanças provenientes dos novos tempos. Responde

que

“[A] Questão do ‘direito’, cujo conceito deverá ser ampliado, nele incluindo aquelas atividades que hoje são compreendidas na fórmula ‘indiferente jurídico’ e que são de domínio da sociedade civil, que atua sem ‘sanções’ e sem ‘obrigações’ taxativas, mas que nem por isso deixa de exercer uma pressão coletiva e de obter resultados objetivos de elaboração nos costumes, nos modos de pensar e de atuar, na moralidade, etc.” (p. 23-24)

Desse modo, para Gramsci (ibidem, p.28), o Direito joga um papel

decisivo para criar ou manter um certo tipo de civilização e de cidadão, pois

assim se definirão quais são os costumes e condutas aceitáveis socialmente.

Conclui que “o Direito é o aspecto repressivo e negativo de toda a atividade

positiva de educação cívica desenvolvida pelo Estado”.

41

CAPÍTULO III

VIOLÊNCIA, CULTURA DE PAZ E EDUCAÇÃO: UMA SÍNTESE QUESTIONADORA E PROPOSITIVA

A proposta deste capítulo é a problematização dos pressupostos

advogados em favor da educação e da cultura de paz, de modo que se busque

uma compreensão mais apurada sobre a potencialidade dessas propostas e,

principalmente, quanto aos limites expostos em ideais de tolerância,

solidariedade e não-violência. Se, por um lado, entendo que não há mal algum

em transmitir ao próximo ou a seus educandos tais valores, por outro, tais

propostas não oferecem respostas satisfatórias para uma leitura da realidade,

seja por incapacidade decorrente da opção teórica, seja por falseamento da

interpretação do mundo.

Um exemplo identificado de uma análise problemática da questão da

violência é a obra escrita por Jean-Marie Muller “Non-violence in Education”,

numa parceria da UNESCO e do Institut de Recherche sur La Résolution Non-

violente dês Conflits (IRNC).

O ponto de partida que Muller (2002, p.22) toma é a recusa em distinguir

caracterizações entre uma boa e uma má violência:

“It is essential to define violence in such a way that it cannot be qualified as “good”. The moment we claim to be able to distinguish “good” violence from “bad”, we lose the proper use of the word, and get into a muddle. Above all, as soon as we claim to be developing criteria by which to define a supposedly “good” violence, each of us will find it easy to make use of these in order to justify our own acts of violence”.

Contudo, conforme Zizek (2008) levanta a questão “Mas como

poderemos rejeitar por completo a violência se a luta e a agressão fazem parte

de vida?” (p.61). Por sua vez, a solução de Muller (2002, p.22) é realizar uma

distinção terminológica entre a agressão que corresponde efetivamente a uma

força de vida e a violência que é uma força de morte: a violência aqui não é a

agressão enquanto tal, mas o seu excesso que perturba o andamento normal

das coisas devido a um desejo que quer sempre cada vez mais.

42

“The exercise of aggressiveness, force and constraint makes it possible to move beyond conflict by looking for rules whereby each of the contending parties may be given what is their due. Violence, on the other hand, is characteristically an instant deregulation of conflict with the result that it can no longer fulfil its function of establishing justice between adversaries”.

Ainda assim, o intelectual da UNESCO não foi capaz de situar a

violência como uma manifestação humana dirigida a um fim específico que

viola a natureza ou outros seres sociais. Muller, ao longo de seu texto, trata a

violência como desvios de conduta e aponta a educação e a cultura como

panacéia para consertar os rumos seguidos pela humanidade.

O autor, ao optar por defender esses valores consagrados pelo sistema

ONU / UNESCO, elege o filósofo austríaco Karl Popper como baluarte para

defender conceitos como liberdade e democracia.

Popper foi fundador da Sociedade Mont Pèlerin, que reuniu no final da

década de 1940, nomes como Friedrich Hayek, Milton Friedman e Ludwig von

Mises, que buscavam revitalizar as diretrizes do pensamento liberal como

paradigma de governo, o que acabou se consolidando a partir dos anos 1970.

Ainda que não seja de interesse do trabalho em aprofundar o significado desta

reunião, ela ajuda a compreender qual o posicionamento político-ideológico do

filósofo.

Muller (2002, p.7) se baseia em Popper para afirmar que a civilização:

“essentially consists in reducing violence. This, in Popper’s view, should be the main aim of democracy. Individual liberty can only be guaranteed in society when every member gives up the use of violence: the rule of law calls for non-violence, which is one of its essential elements”.

A preocupação central de Popper se baseia em assegurar que os pilares

do liberalismo não sejam violados por conta de possíveis reações violentas

advindas da sociedade. A preocupação de Popper com a liberdade individual

se justifica, pois se associa diretamente a outro pilar do liberalismo, a

propriedade privada. Isto porque, na sociedade regida pelo liberalismo,

quebrou-se o princípio hereditário previsto na monarquia absoluta, que

restringia o acesso dos homens a posse da terra e dos meios de produção, sob

a tutela do Estado. Assim, sob os auspícios do liberalismo, o indivíduo

43

possuiria a liberdade para comprar aquilo que quisesse. Estes dizeres podem

ser encontrados em Locke (2002, p. 23), em sua clássica obra Segundo tratado

sobre o governo:

“Os homens se encontram num estado natural de liberdade para que se ordene o seu agir e regular-lhe as posses e as pessoas de acordo com a sua conveniência, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem”

Entretanto, essa liberdade não pode ser materializada de forma irrestrita,

porque assim os homens estariam abandonados a sua própria sorte, contando

apenas com a sua razão como instrumento de consulta para não invadir os

direitos alheios e que não mutuamente se molestem. Dessa forma, entende

que o governo civil seria a solução para abafar quaisquer incovenientes

decorrentes do estado de natureza, quando a própria razão dos homens falhar.

O governo civil tem por missão celebrar um contrato com a comunidade, em

que sejam designados os responsáveis em cumprir os acordos e promessas,

inclusive em decidir se os homens poderão entrar em estado de guerra, com o

objetivo de aniquilar aquilo que ameaça o bem-estar da comunidade. Diferente

do princípio da não-violência que é apregoado de forma cega por alguns

autores contemporâneos, os primórdios que regem a sociedade dita “liberal-

democrática” já previam que em certas ocasiões, a violência é um componente

constitutivo das sociedades, inclusive para defender a liberdade, como se

constata em Locke (2002, p.32):

“Escapar da opressão de estar subjugado a outrem é a única certeza de preservação da liberdade; e a razão nos diz para ter como inimigo da própria preservação aquele que tolher a alguém a liberdade que a garante, de sorte que quem tenta escravizar a outrem, põe-se com ele em estado de guerra”.

Ainda que Locke não tenha defendido em absoluto o direito à guerra

irrestrita, os defensores do liberalismo frequentemente se baseiam nos filósofos

contratualistas como o próprio Locke e Thomas Hobbes, para defender que,

em troca da segurança interna, promovam-se guerras preventivas a outros

povos e cassação das liberdades individuais, reavivando continuamente uma

ideologia colonialista. E o mais irônico é que a mesma é defendida por ninguém

mais que pelo filósofo “pacifista” de Muller, Karl Popper. Citado por Losurdo

(2004, p.284), Popper declarou em entrevista à revista alemã Der Spiegel,

44

sobre a ofensiva das Nações Unidas contra o Iraque em 1991, que: “Não

devemos ter medo de travar guerras pela paz. Nas atuais circunstâncias, é

inevitável. É triste, mas devemos fazê-lo se queremos salvar o mundo”. Nada

mais ilustrativo do que defender uma guerra colonialista em nome do petróleo

que abastece as nações ocidentais.

A concepção popperiana de democracia é meramente formal, bastando

que um governo seja levado ao poder sem o travamento de uma luta armada e

com respeito às regras do jogo estabelecido (LOSURDO, 2004). Ora, e desde

quando as regras do jogo (capitalista) foram estabelecidas por acordos

celebrados entre indivíduos e nações em igualdade de condições? Em que

época da história ocorreu iniciativas que visassem um comércio equânime

entre as nações, de modo que estas se complementassem, a partir de suas

potencialidades, evitando grandes disparidades de poder econômico e político?

Ao contrário, o estabelecimento da sociedade capitalista foi e até hoje é

marcado por seguidas expropriações por parte dos Estados e de suas classes

dominantes locais que se apossam das riquezas socialmente produzidas, em

nome do resguardo da nação.

Apesar da história das nações e das relações humanas em nada

atestarem suas proposições, Muller (2002, p.9) adota em sua obra um tom de

libelo, por meio do discurso em voga de rejeição contra todas as manifestações

que se subentendam como violência.

“All anti-democratic ideologies are associated with the ideology of violence. They never hesitate to declare that violence is necessary and legitimate whenever it serves to achieve their ends. So violence is a constant threat to democracy and, hence, efforts to defend democracy involve a constant struggle against violence”.

Seu discurso se enquadra na crítica feita por Slavoj Zizek de que há em

curso uma tentativa deliberada por parte dos liberais de se opor a todas as

formas de violência como uma estratégia para que se desviem as atenções da

raiz dos problemas, que é a violência objetiva e sistêmica do capital, que tem

como seu modus operandi, um impulso irrefreável no processo de valor,

alimentando-se dos recursos naturais e dos meios de produção como um

45

parasita que não reconhece medida alguma como limite, ainda que isto

acarrete abandonar a própria sorte populações inteiras (ZIZEK, 2008).

A crítica liberal ao entendimento de que as manifestações de violência

em nome de processos democráticos, quiçá revolucionários, revelam, por sua

vez, um caráter reacionário por trás do discurso samaritano da paz e da

tolerância. O célebre filósofo liberal italiano Norberto Bobbio estabelece uma

relação de causalidade entre a insurreição popular de 1848 na França6 e a

conseqüente reação do Estado em restaurar a ordem e o equilíbrio de poder

em favor das frações dominantes da burguesia. Ou seja, a tentativa de

dissolver o poder concentrado nas famílias dos Orleans e dos Bourbon,

politicamente localizados no Partido da Ordem, por meio de manifestações

violentas justificaria a instauração de um novo regime autocrático comandado

por Luís Bonaparte, o bonapartismo (BOBBIO, 1994).

Já Muller (2002, p. 22-3) recorre a uma psicologização das ações

humanas para explicar as reações agressivas e violentas dos indivíduos frente

a situações que lhe ponham em seu limite emocional. Este autor, associado a

UNESCO, pressupõe uma natureza humana que se manifesta numa

predisposição à agressividade e autodestruição, encarando a violência dos

homens como uma perversão em que se deseja a aniquilação dos seus

semelhantes.

“Every act of violence is an outrage perpetrated against the humanity of the object. To act with violence is to harm, to do harm; to make someone suffer. But to act with violence is also to harm oneself, to do oneself harm; to make oneself suffer, by denying oneself a relationship of mutual recognition which any person needs in order to exist. The desire to eliminate one’s adversaries – to get them out of the way, rule them out, shut them up, suppress them – becomes stronger than the will to come to an agreement with them. From insults to humiliation, from torture to murder, the forms of violence are many, and so are the forms of death”.

Pelo fato de não considerarem a violência como fruto proveniente das

próprias relações humanas para garantir a sua existência, a abordagem

ideológica predominante da violência pela UNESCO e seus intelectuais tende

de recorrer a uma interpretação de que se trata de uma espécie de patologia 6 É possível conferir uma outra interpretação do processo revolucionário de 1848 na França na obra de Karl Marx “O 18 brumário de Luís Bonaparte”.

46

social, uma doença que espontaneamente surge na mente de indivíduos ou

comunidades desamparadas e que o remédio para solucioná-las é a criação de

instituições ditas democráticas e um trabalho de base que envolva educação e

cultura por meio dos valores oficiais eleitos pela entidade como formadoras de

indivíduos que saberão lidar melhor com as adversidades surgidas em suas

vidas, ou seja, que não se rebelarão (violentamente ou não) contra as injustiças

e inequidades próprias da sociedade capitalista, ainda que estas lhes

impossibilitem uma condição digna e sustentável para sua sobrevivência.

No que tange a educação, o diagnóstico da UNESCO e dos defensores

da cultura de paz incidem em afirmar que a escola não tem dado conta de

saciar as demandas e inquietudes da juventude, na medida em que não

estariam priorizando o protagonismo juvenil e o sentimento de pertencimento

como prioridades para envolver os alunos em seus projetos escolares e extra-

escolares, sendo vista como uma instituição tediosa, chata e protocolar

(UNESCO, 2001).

Jean-Marie Muller (2002, p.8) compreende que a construção de novas

relações educacionais se daria junto à comunidade em torno de iniciativas que

tenham como perspectiva o fomento de valores democráticos, que não apenas

perpasse o interior da escola, mas que discutam o mundo em torno dela.

“The best educational methods for achieving that goal involve organizing the school community according to democratic values. Teaching human rights at school means tackling the whole problem of democracy in a human community. The democratic functioning of schools is a prerequisite for the genuineness and credibility of human rights education”.

O mesmo autor compreende que a intervenção do educador deve

procurar uma solução construtiva para os conflitos que surgiram, entendendo

que estes são iminentes nas relações humanas, e, por conseguinte, nas

relações pedagógicas em sala de aula. Assim, o educador, ao atuar como

mediador, buscaria nos próprios alunos a fonte para a resolução desses

conflitos, procurando estimular a criatividade e a autonomia, de modo a

fortalecer sentimento de autoconfiança para encarar e lidar com seus

problemas e dilemas (MULLER, 2002).

47

Xesús Jares vai além e desenvolveu uma metodologia didática própria

para trabalhar a educação para a paz, a qual denominou de método

socioafetivo. Essa metodologia procura se compatibilizar com a ideia de paz e

o conflito de forma positiva. A perspectiva de Jares é de que não apenas se

trata de inserir conteúdos que discutam os princípios da paz e da não-violência,

mas que o próprio processo de aprendizagem fomente novos patamares de

relacionamento sobre os alunos e os professores envolvidos. Nesse sentido, o

processo avaliativo dos alunos também seria objeto de reavaliação dos

critérios, pois se incluiria o grau de tolerância e respeito mútuo, os níveis de

compromisso com os valores consagrados pela educação e cultura de paz, o

nível de participação de atividades em grupo e o compromisso com as normas

de funcionamento e, sobretudo, as atitudes e formas com que lidam frente a

situações de conflito (JARES, 2007).

As proposições educativas de Muller e, especialmente, Jares,

demonstram uma maturidade teórica dos autores, tendo em vista que estão

dedicados ao tema da educação e da cultura de paz. As análises dessa

monografia, ainda que não se dediquem especificamente a se debruçarem

sobre a prática pedagógica, mas sobre os pressupostos teóricos que norteiam

a formulação do tema, não apresentarão nenhuma crítica específica. Contudo,

como foi exposto anteriormente, entende-se que a abordagem dos autores e da

própria UNESCO são insuficientes para interpretar a violência como um

fenômeno social. Desta forma, julgo ser necessária a exposição de outras

referências teóricas que possibilitam uma apurada análise de conjuntura e uma

rica contribuição para a educação.

Hoje é ponto quase pacífico de que os processos educacionais e os

processos sociohistóricos se correlacionam em esferas de troca, em que um,

por vezes está mais adiantado do que o outro em termos de forças ideológicas

progressivas que procuram transformar a realidade. Contudo, assim como

diversas revoluções sociais fracassaram porque não se tinha clareza sobre

qual o projeto a ser perseguido, a educação progressista também padece do

mesmo mal, na medida quando não há acordo sobre o modo de reprodução

social necessário para uma aplicar uma verdadeira mudança nas relações

sociais.

48

Instituições internacionais como a ONU / UNESCO foram criadas num

contexto de pós-2ª guerra mundial, em que havia uma intensa disputa entre

projetos antagônicos de sociedade (capitalismo X socialismo) e em nenhum

momento deixaram de refletir a conjuntura histórica, conforme o avanço da

guerra de movimento pela hegemonia política. Ainda que hoje essa disputa em

nível mundial não ocorra de maneira tão acirrada, a organização, como uma

entidade reguladora da governança mundial, ao propugnar os valores da

tolerância, não-violência, estímulo ao comunitarismo e a criação de instituições

educacionais democráticas, espelha procedimentos levados adiante nas

maiores decisões diplomáticas, como as ajudas humanitárias, as missões de

paz (militarizadas) e a permissão de invasões a países que supostamente

tenham agredido os acordos internacionais de paz. Por essa razão, é que seria

incorreto desvincular uma análise de conjuntura dos processos educacionais

vigentes. Pode-se ainda afirmar com mais contundência, como o faz Mészáros

(2007, p.202) que

“A educação que foi institucionalizada nos últimos 150 anos – no seu todo - serviu ao propósito, não apenas de fornecer os conhecimentos e subsídios necessários para a máquina produtiva em expansão do sistema do capital, mas também em gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através de uma dominação estrutural e uma subordinação hierárquica e implacavelmente impostas”.

Se, por um lado, a educação não é uma força suficientemente capaz de

fornecer elementos emancipadores radicais, também é verdadeiro que ela atua

no sentido de gerar conformismos para consolidar uma determinada forma de

organização social. O exercício político de produzir consensos está

intrinsecamente integrada na gestão dos processos sociais objetivos, não por

acaso, é que as determinações educacionais gerais, apesar de se constituírem

em um campo de disputa pela direção política, exprimem as características

próprias da totalidade da sociedade, o que inclui os valores e as internalizações

de processos subjetivos de cada sujeito.

Os educadores, caso queiram de fato fazer da educação um instrumento

de mudança concreta dos rumos da humanidade, precisariam empreender

49

esforços que rompam com a lógica mistificadora, própria do capital, que não

aborda os problemas e as questões da realidade de forma a esclarecer e

problematizar o mundo, mas que a tratam como meras anomalias sociais do

sistema ou como pequenos desvios que podem ser solucionados a partir de

intervenções dirigidas a determinado fim.

A educação para além do capital (MÉSZÁROS, 2007), além de negar o

capitalismo, tem em vista a realização de uma ordem social qualitativamente

distinta, em que a alienação do trabalho não seja uma condição de dominação

de uma fração de indivíduos constituídos numa classe sobre o restante da

população, diluídos em estratos mais ou menos bem posicionados socialmente

e a sustentabilidade dos processos de reprodução social, não mais baseados

na produção de valores de troca, materializados em mercadorias fetichizadas e

no consumo perdulário e autodestrutivo da humanidade, mas sob controle da

própria sociedade, baseado em suas necessidades vitais, realizando um

intercâmbio sustentável com a natureza.

A educação que se pretenda socialista não tem de desviá-la dos

problemas reais da sociedade. As causas sociais devem e podem ser

enfrentadas na estrutura educacional como causas historicamente originadas e

por determinações estruturais identificáveis e desafiáveis de serem

reorientadas. E porque o desafio de enfrentar as demandas da mudança social

são desejáveis, as forças educacionais devem ser ativadas para a realização

dos objetivos e valores adotados do desenvolvimento socialista da sociedade

(MÉSZÁROS, 2007).

Abertamente defendendo uma concepção crítico-dialética da educação

está em Dermeval Saviani (2005, p.88), em sua clássica obra “Pedagogia

histórico-crítica” que ele vai definir como:

“O empenho em compreender a questão educacional com base no desenvolvimento histórico objetivo. Portanto, a concepção pressuposta nesta visão da pedagogia histórico-crítica é o materialismo histórico, ou seja, a compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições materiais da existência humana”.

Essa concepção teórica para a educação vai compreender a educação

escolar como a manifestação de um longo processo de transformação

50

histórica, a qual caracterizará o homem como um ser natural peculiar, pois para

reproduzir sua existência, ele tem de entrar em uma relação de troca com a

natureza no sentido de humanizá-la, de modo a saciar as suas necessidades,

por meio da categoria central distintiva para os animais, o trabalho.

A partir do seu próprio desenvolvimento histórico, o homem, agindo

sobre a natureza, foi construindo um mundo “humano”. Se o próprio ato de

viver se confundia com o ato de se educar, gradativamente, percebeu-se a

necessidade de construir uma instituição que garantiria o processo de

transmissão e assimilação dos conteúdos historicamente desenvolvidos pela

própria humanidade.

Outrora, a escola era destinada somente a atender o surgimento de uma

classe ociosa que não precisava trabalhar pois a exploração do trabalho alheio

lhe garantia o sustento e portanto era uma forma secundária de educação.

Somente com o surgimento da sociedade industrial, comandada pela

burguesia, é que o conhecimento sistemático se generaliza e passa a ser

imprescindível para o desenvolvimento das funções próprias da sociedade.

Assim, a forma escolar de educação passa a primeiro plano.

A pedagogia histórico-crítica entenderá que a escola será a instituição

cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado. E socializar este

saber está intrinsecamente vinculado em socializar os meios de produção

concentrados como propriedade exclusiva da classe capitalista.

51

CONCLUSÃO

É preciso salientar que, do ponto de vista político, a violência está

sempre como uma possibilidade de ocorrência, especialmente quando existe

um alto nível de tensão social e o Estado, ao não prover adequadamente os

direitos dos cidadãos, amplia sua esfera de aparatos repressivos, como uma

forma de manter aquilo que chamam de ordem. Todavia, uma grande corrente

de intelectuais e, difundido entre o senso comum, parece entender que

violência e política constituem um par de oposição binária. Ou seja, quando e

onde uma se institui e desenvolve, a outra padece. Esta lógica precisa ser

repensada, uma vez que poderia ser entendida como um ideal que é, ao

mesmo tempo, marcado por uma contrafacticidade flagrante. Afinal, basta

lembrar que a formação dos Estados considerados atualmente como modelos

de regimes políticos democráticos foram construídos sob a associação da

acumulação de capital e o uso dos meios coercitivos sob um território.

A violência corrente é vista apenas como um problema que põe em risco

a confiança, a coesão e a cooperações sociais, os ditos valores sagrados da

liberdade individual, e, por isso, a violência deveria ser resolvida ou sanada.

Todavia, compreendida desse modo restrito, a violência perde o seu valor de

fenômeno social a ser estudado. Esta perspectiva reducionista de violência

merece ser investigada, à medida que a lógica que representa não oferece

saída possível a um ordenamento jurídico que seja, contraditoriamente, injusto,

parcial, preconceituoso, a não ser por meio dele mesmo. Entretanto, se o

mesmo “Estado democrático de direito” comete inúmeros crimes diariamente

contra a vida dos seus cidadãos, qual solução lhe resta? A resposta de senso

comum é que cabe ao bom cidadão recorrer ao poder judiciário para que a

justiça seja restaurada. Todavia, e esse argumento, apesar de sustentado em

fortes bases ideológicas, não parece o mais fidedigno, vide que o poder

judiciário também é parte da estrutura de poder do Estado, que nada tem de

neutro; ao contrário, que é ordenado de modo a manter os interesses da classe

dominante como predominantes. Esperar que o Estado julgue corretamente é

contar com um grau da dita maturidade democrática que ainda não foi

alcançado. O cidadão é conclamado a cooperar com o Estado para que esse

se torne plenamente democrático. Contudo, a título de observação, os meios

52

de cooperação aos quais os sujeitos têm acesso estão todos ou bem nas mãos

do Estado, ou bem sob sua tutela vigilante, com isso, não é qualquer ação ou

comportamento que será permitido para que se catalise o processo de

democratização.

Do ponto de vista do liberalismo político, que propugna uma organização

jurídica do Estado, todo indivíduo que aceita as leis do seu país se torna

signatário de um contrato social. De acordo com esse idealismo, é insuficiente

a aceitação tácita, pois há a necessidade de que todo indivíduo a revalide

constantemente através de seu comportamento. Conforme age, ratifica ou não

o contrato firmado. Quando age em desacordo com as leis, ele ‘rasga’ o

contrato, compromete sua manutenção, tornando-se uma ameaça à ordem

social.

Violência não é exatamente um conceito, mas um ato sobre e contra

alguém haja vista o significado pejorativo do termo. Essa atividade é prenhe de

intencionalidades, pois, ao definir alguém ou alguma coisa como violento(a),

toma obrigatória e imediatamente partido numa situação. Assim sendo,

denominar um sujeito, uma prática ou um campo de ação inteiro de violento é

assumir uma posição contrária ao que é por eles manifestado. Ou seja,

assume-se um juízo de valor acerca da própria ação e daquilo sobre o que ela

age, negativando a primeira e positivando esse.

Assim, parece-me que é fundamental resgatar a função eminentemente

política da ação violenta, problematizando a acepção restrita que o liberalismo

político impingiu a ela, o que pode ser fundamentado, entre outras coisas, no

fato de muitos dos nossos valores mais caros, tais como, os Direitos Humanos,

a liberdade, a democracia, terem sido ‘conquistados’, disseminados e

mantidos, justamente como resultado daquele tipo de ação. Além disso, à

semelhança de Adolfo Sánchez Vasquez, a retomada da violência como uma

dimensão incontornável da definição de humano, ao contrário do que alguns

críticos sugerem, não a naturaliza em todas as suas formas, mas, lado a lado

com outras dimensões, permite questioná-la, criticá-la, limitá-las, mas não,

absolutamente, desconsiderá-la como humana. Isto, assim pensamos,

colocaria em xeque o uso da expressão violento(a) ou violência como um

índice pejorativo e politicamente nefasto, ao mesmo tempo em que

questionaria a positividade absoluta da paz e, igualmente, a negatividade da

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violência. Em última análise, até mesmo a dicotomia paz-violência não faria

mais sentido.

No âmbito educacional, seria necessário desenvolver uma

contratendência ao paradigma hegemônico que desse conta em dirigir a

educação, inserida em um projeto alternativo de sociedade. Ainda que a

educação não possua poderes por si própria em transformar a realidade, ela

tem a capacidade de lançar inquietudes e dúvidas que outrora não estavam

postas para os sujeitos.

A educação é fruto do desenvolvimento histórico que os homens

construíram para si e assim, é também fonte de humanização das relações

sociais, que, por sua vez, apresentam-se atualmente de forma contraditória,

quando não, violenta. Por isso, é que o “homem novo” só nascerá da

superação da contradição, com a transformação da situação concreta

opressora que vive, cedendo lugar a um novo contexto, o da libertação

(FREIRE, 1987).

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BIBLIOGRAFIA

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ÍNDICE

Folha de rosto 2 Ficha de Avaliação 3 Agradecimento 4 Dedicatória 5 Resumo 6 Metodologia 7 Sumário 8 Introdução 9 Capítulo 1 – Fundamentos da educação e da cultura de paz 12 Capítulo 2 – Fundamentos conceituais sobre a violência 25 2.1. Práxis e violência 25 2.2. Nicolau Maquiavel 30 2.2. Hobbes e Locke: a ascensão do contratualismo inglês no século XVII 32 2.3. Marx: a virada para um pensamento social da maioria 35 2.4. Gramsci: um ponto de inflexão na teoria marxista 38 Capítulo 3 – Violência, cultura de paz e educação: Uma síntese questionadora e propositiva 41 Conclusão 51 Bibliografia 54 Webgrafia 56 Índice 57