do uso de expressões de causalidade como um elemento

21
DO USO DE EXPRESSÕES DE CAUSALIDADE COMO UM ELEMENTO CARACTERIZADOR DO GÊNERO TEXTUAL ARTIGO CIENTÍFICO Maria José Bocorny Finatto Docente do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, bolsista PQ/CNPq. (51) 3361 11 42 [email protected] Aline Evers Acadêmica de Letras – Tradução Português/Inglês Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (51) 9282 8375 [email protected] Cybele Margareth de Oliveira Alle Acadêmica de Letras – Tradução Português/Inglês Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS [email protected] RESUMO: Trazemos aqui resultados de um reconhecimento sobre o emprego de conectores causais em artigos de revistas de Química – Química Nova (2004) e Química Nova na Escola (2004) –, de Física – Física Aplicada e Instrumentação (2005) e Física na Escola (2007) – e de Pediatria – Jornal de Pediatria (2003, 2004 e 2007). Os conectores observados foram ASSIM, COMO, DEVIDO, ENTÃO, LOGO, POIS, PORQUE e PORTANTO. A metodologia do estudo incluiu: a) verificação do número de palavras e do número de palavras diferentes de cada texto; b) identificação dos conectores e de seus contextos; c) avaliação de cada contexto quanto ao emprego causal com dois testes. Os testes foram inspirados nas indicações de Maria Helena de Moura Neves sobre construções causais e envolveram: a) substituição dos conectores; b) topicalização de causalidade. Verificamos diferença expressiva entre os contextos de causalidade possível (809) e confirmada (257) e que os conectores descartados revelaram-se como articuladores de sentido pouco preciso. Vimos também maior presença proporcional desses conectores em Física, enquanto o texto de Pediatria exibe os menores escores, ficando a Química em posição intermediária. Por fim, comparamos os conectores mais empregados nos artigos de Pediatria com os mais presentes em um conjunto de artigos em inglês publicados na revista internacional Pediatrics (2007). O trabalho revelou que parece haver uma expressão de causalidade diferenciada em função da área de conhecimento, do tipo de artigo e que elementos causais mais utilizados no Brasil em Pediatria não correspondem aos seus equivalentes mais esperados em inglês utilizados na revista internacional. Assim, as especificidades desse gênero textual ultrapassam as suas terminologias, alcançam a sua tessitura coesiva e parecem também sofrer o feito do estatuto local ou internacional da publicação em que se inserem (apoio CNPq). PALAVRAS-CHAVE: Artigo científico.Gênero Textual. Coesão. Causalidade.

Upload: dolien

Post on 07-Jan-2017

215 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: do uso de expressões de causalidade como um elemento

DO USO DE EXPRESSÕES DE CAUSALIDADE COMO UM ELEMENTO CARACTERIZADOR DO GÊNERO TEXTUAL ARTIGO CIENTÍFICO

Maria José Bocorny Finatto Docente do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, bolsista PQ/CNPq. (51) 3361 11 42 [email protected] Aline Evers Acadêmica de Letras – Tradução Português/Inglês Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (51) 9282 8375 [email protected] Cybele Margareth de Oliveira Alle Acadêmica de Letras – Tradução Português/Inglês Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS [email protected] RESUMO: Trazemos aqui resultados de um reconhecimento sobre o emprego de conectores causais em artigos de revistas de Química – Química Nova (2004) e Química Nova na Escola (2004) –, de Física – Física Aplicada e Instrumentação (2005) e Física na Escola (2007) – e de Pediatria – Jornal de Pediatria (2003, 2004 e 2007). Os conectores observados foram ASSIM, COMO, DEVIDO, ENTÃO, LOGO, POIS, PORQUE e PORTANTO. A metodologia do estudo incluiu: a) verificação do número de palavras e do número de palavras diferentes de cada texto; b) identificação dos conectores e de seus contextos; c) avaliação de cada contexto quanto ao emprego causal com dois testes. Os testes foram inspirados nas indicações de Maria Helena de Moura Neves sobre construções causais e envolveram: a) substituição dos conectores; b) topicalização de causalidade. Verificamos diferença expressiva entre os contextos de causalidade possível (809) e confirmada (257) e que os conectores descartados revelaram-se como articuladores de sentido pouco preciso. Vimos também maior presença proporcional desses conectores em Física, enquanto o texto de Pediatria exibe os menores escores, ficando a Química em posição intermediária. Por fim, comparamos os conectores mais empregados nos artigos de Pediatria com os mais presentes em um conjunto de artigos em inglês publicados na revista internacional Pediatrics (2007). O trabalho revelou que parece haver uma expressão de causalidade diferenciada em função da área de conhecimento, do tipo de artigo e que elementos causais mais utilizados no Brasil em Pediatria não correspondem aos seus equivalentes mais esperados em inglês utilizados na revista internacional. Assim, as especificidades desse gênero textual ultrapassam as suas terminologias, alcançam a sua tessitura coesiva e parecem também sofrer o feito do estatuto local ou internacional da publicação em que se inserem (apoio CNPq). PALAVRAS-CHAVE: Artigo científico.Gênero Textual. Coesão. Causalidade.

Page 2: do uso de expressões de causalidade como um elemento

ABSTRACT: This study aims at recognizing the use and frequency of eight causal connectors in papers of Chemistry, Physics and Pediatrics published by the following Brazilian periodicals: Química Nova (2004) and Química Nova na Escola (2004); Física Aplicada e Instrumentação (2005) and Física na Escola (2007); Jornal de Pediatria (2003 e 2007) and Pediatrics (2007). The observed connectors were: ASSIM, COMO, DEVIDO, ENTÃO, LOGO, POIS, PORQUE and PORTANTO. The methodology that took place included: a) counting of tokens and types; b) recognition of causal connectors within their contexts of use; and c) analysis and testing of each context in regards to its causal function. The applied tests were based on Maria Helena de Moura Neves’ perspective on causal constructions, and were directed towards: a) connectors substitution; and b) topicalization of causality. Eight hundred and nine (809) contexts that indicated possible causal use were tested, but only 257 were confirmed; some of the discarded connectors showed imprecise use as far as their function is concerned. The results showed that: there is a higher frequency of the analyzed connectors in Physics in comparison to the other areas while the opposite happens in Pediatrics; Chemistry stays in second place. At the end, we compared the most frequent connectors in papers of Pediatrics translated from Portuguese into English with the most used connectors in papers originally written in English. The study showed that there seems to have different patterns in the use of causality according to the area of knowledge and type of paper analyzed. In addition, the most frequent connectors in translated papers of Pediatrics differ from those originally written in English. Therefore, the causal specificities in this textual genre go beyond the terminology, mark its cohesive pattern and seem to vary according to the local or international publication where it appears (research project supported by CNPq). KEYWORDS: Academic Writting. Textual Genres. Cohesion. Causality.

1. INTRODUÇÃO

A evolução da Lingüística Textual e a afirmação da Lingüística de Corpus no campo dos

estudos lingüísticos têm cada vez mais colocado o texto (ou conjuntos de textos) como um

objeto central de estudo. Em decorrência disso, estudos voltados para a identificação de

características micro e macroestruturais nos diferentes textos passaram as ser empreendidos

para mostrar que, para elém de aspectos formais mais pontuais, existem práticas discursivas,

verdadeiros “modos de dizer” que são particulares de determinadas comunidades discursivas

em determinados gêneros textuais. Esse assunto já foi extensivamente explorado por autores

tais como Bakhtin (1997), Swales (1990) e Marcuschi (2005), como exporemos no referencial

teórico que guiou este trabalho.

Dentre vários gêneros disponíveis para estudo, escolhemos o gênero artigo científico como

foco de estudo por três motivos principais: a) é notória a sua atual importância como “moeda

de troca” de conhecimento entre profissionais das áreas de especialidade; b) é ampla a sua

utilização como material didático no meio acadêmico; c) é vasta a sua publicação via internet,

Page 3: do uso de expressões de causalidade como um elemento

o que disponibiliza o gênero no formato digital, fazendo com que seja parte de um dos

gêneros de grande circulação e acesso da atualidade.

Com produção tão extensiva e ampla divulgação, esses textos, conforme Swales (1990), são

produzidos – ou traduzidos – massivamente em – ou para – a língua inglesa. Esse dado

importante nos levou ao questionamento sobre a relevância do reconhecimento das

particularidades do gênero para o processo tradutório e o auxílio que um tal reconhecimento

poderia trazer para o profissional que lida com esse gênero, quer seja ele tradutor ou revisor,

uma vez que a circulação do gênero movimenta o mercado de trabalho desses profissionais.

No entanto, observar o gênero artigo científico como um todo resultaria em uma observação

muito ampla e generalizada. Assim, restringimos o nosso foco de estudo e nos voltamos para

a observação de um elemento específico, microestrutural, que contribui para caraterizar, a

nosso ver, um gênero textual: a causalidade expressa por conectores.

O interesse pelo estudo de tal aspecto da textualidade pauta-se 1) em estudos anteriores sobre

a causalidade em textos de Química Geral (FINATTO e SIMIONI, 2007) que apontaram para

especificidades encontradas no uso de conectores causais em manuais de Química Geral; 2)

na consciência de que, nas linguagens científicas, o reconhecimento do modo como as

relações de causa se estabelecem é fundamental, pois é através do uso de encadeamentos

claros que as causas e os efeitos de procedimentos descritos, testados e validados serão

melhor entendidos pelo leitor. Assim, ao integrar a organização do texto científico e ao

constituir uma relação fundamental para a construção do conhecimento, a causalidade é não

só um tópico basilar para quem se propõe a descrever o funcionamento dos textos e das

linguagens científicas, mas também um elemento que auxilia a desenhar os formatos estáveis

que configuram o gênero artigo científico.

Ancoradas na contribuição que o estudo possa vir a trazer para profissionais do texto,

revisores e tradutores, procuramos demonstrar neste trabalho as particularidades de uso de

oito conectores causais (ASSIM, COMO, DEVIDO, ENTÃO, LOGO, POIS, PORQUE e

PORTANTO) em dois grupos de textos: o primeiro (corpus 1), composto de artigos

científicos de Física, Química e Pediatria escritos originalmente em português; o segundo

(corpus 2), composto de artigos da Pediatria produtos de versão do português para o inglês e

de artigos da Pediatria escritos originalmente em inglês.

Para tentarmos cumprir com o objetivo proposto, descrever a exressão de causalidade em

artigos científicos, o estudo foi organizado em duas fases (vide seção 4). A fase 1 iniciou-se

com artigos de Física, Química e Pediatria originalmente produzidos em língua portuguesa.

Já, na fase 2, voltamos nossa atenção para um corpus de Pediatria, analisamos quais foram as

Page 4: do uso de expressões de causalidade como um elemento

opções tradutórias dadas aos conectores sob análise e observamos se as opções tradutórias

preferenciais eram freqüentes em artigos científicos da mesma área originalmente produzidos

em língua inglesa.

No desenrolar de cada fase, apresentamos os resultados obtidos e mapeamos as

particularidades de expressão causal em cada grupo de texto (corpus em português e corpus

em inglês). Ao final, explicitamos como a identificação dessas particularidades parece marcar

o gênero textual artigo científico em determinadas áreas e comunidades discursivas e como a

identificação dessas particularidades se configura em ferramenta útil para a produção,

tradução e revisão desse gênero textual. 

2. DESCRIÇÃO DE CORPORA

2.1 Corpus 1 (Fase 1)

O corpus 1 é composto por 30 artigos do tipo original1 escritos em língua portuguesa:

5 artigos publicados em 2004 pela revista Química Nova, uma revista de

publicação bimestral, Qualis A nacional, voltada à publicação de artigos sobre

assuntos gerais da área de Química;

5 artigos publicados em 2004 pela revista Química Nova na Escola, uma revista

de publicação trimestral, Qualis B nacional, voltada para o ensino e aprendizagem

da área de Química;

5 artigos publicados em 2005 pela revista Física Aplicada e Instrumentação, uma

revista de publicação trimestral, Qualis B nacional, destinada à publicação de

artigos abordando temas experimentais e teóricos, oriundos de trabalhos originais

de pesquisa em Física e suas aplicações;

5 artigos publicados em 2007 pela revista Física na Escola, um suplemento

semestral da Revista Brasileira de Ensino de Física (RBEF) destinado a apoiar as

atividades de professores de Física do Ensino Médio e Fundamental. A revista não

possui classificação Qualis nacional nem internacional;

1 A tipologia dos artigos de revistas especializadas é um item a considerar na composição do nosso corpus. A tipologia não é exatamente a mesma entre periódicos de Ciências da Saúde e Ciências Exatas. Tentamos obter alguma homogeneidade utilizando artigos originais que tivessem os mesmos tipos de subdivisões macroestruturais: introdução, materiais e métodos, observação de dados, resultados, conclusões e bibliografia citada. Neste trabalho, nos centralizamos na observação de artigos originais em detrimento de outros tipos de artigos por serem mais complexos, mais numerosos e possuírem uma maior semelhança de área para área, no que diz respeito a sua estrutura macroestrutural.

Page 5: do uso de expressões de causalidade como um elemento

10 artigos publicados em 2003 e 2004 pela revista Jornal de Pediatria, uma

publicação bimestral da Sociedade Brasileira de Pediatria, Qualis A nacional,

voltada a profissionais, estudantes de graduação e pesquisadores da área.

O critério que guiou a coleta desse primeiro corpus foi a seleção de publicações com textos

mais ou menos didáticos em cada área selecionada. Devido a sua função de apoio ao professor

que atua no Ensino Médio e Fundamental, enquadram-se no grupo das mais didáticas as

revistas Química Nova na Escola e Física na Escola. Por corresponderem a revistas que

relatam pesquisas técnico-científicas destinadas a profissionais da área, pesquisadores e

estudantes de graduação, enquadram-se no grupo das menos didáticas as revistas Química

Nova e Física Aplicada e Instrumentação e Jornal de Pediatria (publicação menos didática

sem um par correspondente do mesmo gênero que se prestasse a observação proposta).

2.2 Corpus 2 (Fase 2)

O corpus 2 é composto por 94 artigos da Pediatria:

20 artigos publicados em 2003 e 2004 pelo Jornal de Pediatria (JPED): 10

artigos escritos em português utilizados na fase anterior e suas respectivas versões

para o inglês, todos publicados pelo Jornal de Pediatria. O jornal, já utilizado no

corpus 1, é uma publicação Qualis A nacional e C internacional que vem

disponibilizando a versão completa da revista em inglês desde 2000;

37 artigos produtos de versão para o inglês publicados em 2007 pelo Jornal de

Pediatria;

37 artigos publicados em 2007 pelo Pediatrics the Official Journal of the

American Academy, publicação mensal da Stanford University High Press desde

1948. O jornal, Qualis A internacional, é considerado o mais citado e mais

acessado pelo Journal Citation Reports 2006 e o Thompson Journal Citation

Reports 2007.

O critério que guiou a coleta desse primeiro corpus foi a seleção de artigos produtos de versão

do português para o inglês em renomada revista brasileira e seleção de artigos escritos

originalmente em inglês em revista reconhecida internacionalmente. A seleção de ambos os

jornais para essa fase do estudo foi guiada pela orientação do Prof. Danilo Blank, Prof.

Adjunto do Departamento de Pediatria e Puericultura da Faculdade de Medicina da UFRGS,

consultor do nosso Projeto de Pesquisa.

Page 6: do uso de expressões de causalidade como um elemento

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: GÊNERO, COESÃO, CAUSALIDADE E

TRADUÇÃO

Os referenciais teóricos que tomamos para este estudo foram as concepções de: a) gênero de

Bakhtin (1997), Swales (1990) e Marcuschi (2005); b) coesão de Koch (2004); c) causalidade

de Maria Helena de Moura Neves (1999 e 2000); e d) tradução de Vermeer e Reiss (1996). A

seção 4 deste trabalho oferecerá uma visualização mais abrangente de como essas concepções

foram aproveitadas para a realização das observações a que nos propomos.

3.1 Gênero artigo científico

Dentro das teorias que envolvem a conceituação de gênero, as que mais se hramonizam com

nosso estudo são as abordadas por Bakhtin (1997), Swales (1990) e Marcuschi (2005).

De acordo com Bakhtin (1997), os gêneros seriam “entidades dinâmicas com certa

estabilidade” (p. 279), que se estabelecem em determinada situação discursiva e que possuem

determinados propósitos. Ainda conforme as idéias expostas pelo autor, é na constituição do

gênero que encontramos uma “seleção operada dos recursos da língua – recursos lexicais,

fraseológicos e gramaticais” (1997, p. 279), que nos oferecem uma estabilidade dinâmica da

linguagem, passível de ser mapeada. Nosso trabalho, que procurou mapear e descrever o uso

de conectores causais em artigos científicos, embasou-se nessa dita estabilidade dinâmica da

linguagem e buscou verificar a padronização do uso da causalidade no corpus selecionado.

Além disso, pesquisas recentes voltadas ao estudo de artigos científicos, como as de Possamai

(2004)2 e de Zilio (2009)3, têm demonstrado que o gênero artigo científico configura-se como

um macrogênero que possui características particulares que merecem atenção e que se tornam

ainda mais específicas quando observadas dentro de determinadas áreas do conhecimento.

De acordo com Possamai (2004), embora “[...] o artigo científico seja um gênero internacional

da grande comunidade científica, a maneira como seus elementos textuais prototípicos se

realizam no texto depende da língua em que ocorrem e da sua cultura de escrita” (p. 156).

Essa afirmação nos vez verificar, além da padronização do comportamento dos conectores

2 Possamai, em estudo contrastivo baseado em um corpus paralelo de artigos científicos de Informática inglês-português, estudou o uso de marcadores textuais, elementos do texto que lhe dão coesão, o organizam e o fazem ser um gênero textual. Nesse estudo, a autora fez uma comparação entre os marcadores textuais utilizados no artigo científico de Informática em português e os utilizados no artigo científico de Informática em inglês. 3 Leonardo Zílio, em dissertação defendida recentemente sobre colocações especializadas em textos de Cardiologia, estudou o gênero artigo científico de Cardiologia e encontrou especificidades desse gênero textual através da utilização de compostos nominais em língua alemã, os komposita.

Page 7: do uso de expressões de causalidade como um elemento

causais em língua portuguesa, como os conectores se comportavam em artigos produzidos em

outra língua.

No nosso caso, escolhemos o inglês para confirmar a padronização do comportamento de

conectores comparando com o português. O inglês com que trabalhamos se apresentou sob

duas variações: sendo fruto de tradução e sendo a língua original da produção de artigos

científicos, já que a produção de cada texto depende da língua e da cultura em que é

produzido.

Para Swales (1990), em estudo sobre o papel do inglês na produção massiva de artigos da área

das ciências, há diferenças lingüísticas de registro em diferentes línguas de especialidade,

portanto, exemplares de gêneros podem variar em sua prototipicidade, de acordo com os

objetivos comunicativos a que se propõem e de acordo com as comunidades discursivas que

os produzem:

[...] uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham um conjunto de propósitos

comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos membros da comunidade discursiva que trabalha com

eles e, portanto, constituem a lógica subjacente aos gêneros. Essa lógica molda a estrutura esquemática do

discurso e influencia e restringe a escolha do conteúdo e do estilo. Além do propósito, os exemplares de um

gênero exibem vários padrões de similaridade em termos de estrutura, estilo, conteúdo e público-alvo (p. 58).

Marcuschi corrobora essa idéia ao mencionar que “assim como a língua [...], os gêneros

também variam” (2005, p. 18).

Assim, para este trabalho, interessou-nos descrever em que medida a maior ou menor

presença de conectores causais contribuiria para caracterizar o gênero artigo científico em

artigos de Química, Física e Pediatria, visto que há um reconhecimento de que, conforme a

área de conhecimento, os textos possuem desenhos próprios que favorecem a diferenciação,

possibilitando o reconhecimento de diferentes gêneros textuais.

3.2 Coesão e seu papel no gênero textual artigo científico

Por se tratar de um trabalho que aborda conectores causais e seus usos dentro de diferentes

tipos de texto, consideramos que uma abordagem sobre coesão textual e seu papel no gênero

artigo científico devesse ser explorada. Seria de se esperar que o gênero artigo científico

apresentasse riqueza no uso desses elementos, uma vez que eles possibilitam uma melhor

compreensão das relações e ligações que se estabelecem no decorrer do texto e melhoram a

compreensão (a legibilidade) por parte do leitor.

Page 8: do uso de expressões de causalidade como um elemento

Dessa forma, elegemos os estudos de Koch (2004) sobre coesão textual os mais adequados

para o embasamento do trabalho. Segundo a autora:

[..] O uso de elementos coesivos dá ao texto maior legibilidade, explicitando os tipos de relações estabelecidas

entre os elementos lingüísticos que o compõem. Assim, em muitos tipos de textos – científicos, didáticos,

expositivos, opinativos, por exemplo – a coesão é altamente desejável (2004, p. 18, grifo nosso).

Para Koch, a coesão textual é o resultado da unidade formada pelos processos de

seqüencialização estabelecidos no texto, de forma a constituírem a tessitura entre as diferentes

partes que compõem a superfície textual, estabelecendo relações e ligações que provocam a

retomada de elementos mencionados e que impulsionam o andamento da argumentação do

texto, através da apresentação de novos elementos. Segundo a autora, "é por meio de

mecanismos como este [de coesão textual] que se vai tecendo o 'tecido' (tessitura) do texto"

(2004, p. 17). Assim, o estudo de conectores causais se inseriria nessa observação da tessitura

textual, já que uma observação extensiva em corpora é capaz de fornecer evidências sobre a

configuração textual e léxico-gramatical da linguagem científica.

Tendo em mente uma provável riqueza de elementos coesivos no gênero, acreditamos que

alguns, como os conectores causais, poderão vir a marcar o modus dicendi de determinadas

áreas em determinados gêneros textuais, como podemos inferir pela colocação de Finatto

(2007):

Primeiro, há um todo de texto; depois um modo de dizer que o faz específico. Nessa perspectiva, a dimensão de

um vocabulário mais ou menos marcado é apenas mais um dos vários integrantes de um modo de dizer: macro e

microestruturas, tipos de frases, adjetivação, fraseologias, padrões retóricos, adverbialização, combinatórias e

outras tantas características são também foco de atenção além da terminologia stricto sensu.

3.3 Causalidade

A causalidade é tema vasto e comporta diferentes pontos de vista em sua abordagem. É

possível estudá-la a partir da Lógica, da Filosofia, da Psicologia e também dos diferentes

enfoques dos estudos da linguagem. É possível, em nossa língua, expressar causa de

diferentes modos: através de verbos, de conectores, de conjunções, de justaposição de orações

etc. Optamos, aqui, por estudar apenas a causalidade expressa, especificamente, a causalidade

expressa via conectores.

Tomamos como referência para nosso entendimento da causalidade as concepções teóricas de

Neves (1999 e 2000) sobre as construções causais. Apesar de considerar as conjunções

subordinativas causais como elementos mais canônicos, a autora não descarta a possibilidade

Page 9: do uso de expressões de causalidade como um elemento

de que outras conjunções, tais como as explicativas, as conclusivas, as condicionais e as

temporais, possam também desempenhar tal função.

Essa perspectiva se filia a uma perspectiva funcionalista, da qual nos embuímos ao realizar

este trabalho. Essa perspectiva funcionalista considera o uso das palavras e suas funções

dentro dos seus contextos de uso, afirmando que as palavras ganham sentido pelo uso.

Assim, as palavras não são, mas estão dentro de um texto, ou seja, as palavras não têm um

sentido fixo, unilateral e imutável, mas são determinadas pelo contexto que as envolve. Foi o

que procuramos verificar analisando os contextos em que os conectores estudados ocorriam –

prescritos, de acordo com a gramática tradicional, como predominantemente causais –,

aplicando testes e procurando descrever uma gramática própria de cada um dos tipos de textos

estudados dentro das áreas de especialidade nas quais estavam inseridos.

Dessa forma, assumimos que há diferença nos usos dos conectores causais quando acionados

por diferentes áreas do conhecimento e, ainda, que esse uso configurar-se-á de maneira

particular se considerarmos um gradual de didatismo dos textos.

3.4 A tradução e a teoria do escopo: uma visão de tradução que objetiva a aceitabilidade

Dado que trataremos de textos originais e traduzidos, importa situar nossas concepções sobre

tradução. Dentre as várias abordagens teóricas da tradução, elegemos a de Vermeer e Reiss

(1996), por essa harmonizar-se com a abordagem funcionalista e pragmática estabelecida para

este trabalho.

De acordo com a teoria do escopo (Skopos Theory), proposta pelos autores, a tradução não é

vista como um processo de transcodificação, mas sim como um ato de comunicação, de

reescrita orientada pela função (objetivo: “para que” e finalidade: “para quem”) do texto-alvo

mais do que pelas prescrições do texto-fonte:

A produção de um texto é uma ação que [...] visa a um objetivo: que o texto "funcione" da melhor forma

possível na situação e nas condições previstas. Quando alguém traduz ou interpreta, produz um texto. A

tradução/interpretação também deve funcionar de forma ótima para a finalidade prevista. Eis aqui o princípio

fundamental de nossa teoria da translação. (REISS e VERMEER, 1996, p.5, grifo nosso).

Trazendo tal visão de tradução para este trabalho, entendemos que o objetivo de se traduzir

artigos científicos de uma mesma área e gênero textual para outra língua seja o de oferecer

textos e conhecimentos antes inacessíveis aos leitores da língua de chegada; ou seja, efetuar

intercâmbio de informações entre profissionais da mesma área utilizando-se de um mesmo

Page 10: do uso de expressões de causalidade como um elemento

gênero. Já, quanto à finalidade, entendemos que os artigos traduzidos possuem a finalidade de

serem lidos e aceitos pelos leitores da comunidade à qual se destinam.

Para atingir o quesito aceitabilidade, no entanto, acreditamos que o tradutor deverá,

preferencialmente, valer-se de operações transvalorativas que considerem os diversos fatores

representativos da coletividade dessa comunidade – entre eles, o modo de falar e de escrever

utilizado na comunicação entre seus membros – procurando, sempre que possível, transferi-

los para o texto que está sendo traduzido. Afinal, os artigos originais foram concebidos em

outras condições, “para outra situação e para "usuários" distintos dos do texto final”, como

bem nos lembra Reiss e Vermeer (Ibidem). Desconsiderar tais fatos no fazer tradutório pode

levar ao estranhamento e até à rejeição do texto traduzido.

4. EXPLORAÇÃO DE CORPORA, RESULTADOS E REFLEXÕES

Nossa exploração se deu de forma complexa e passou por várias etapas, de forma que

julgamos útil expô-las com maior clareza apresentando-a em duas partes.

A fase inicial focou-se na observação dos conectores em estudo (ASSIM, COMO, DEVIDO,

ENTÃO, LOGO, POIS, PORQUE e PORTANTO) em corpora de artigos de três áreas

(Química, Física e Pediatria). Objetivamos verificar se haveria uma relação entre a maior ou

menor quantidade desses conectores em função dos tipos de textos (em tese, mais ou menos

didáticos) e as diferentes áreas de conhecimento envolvidas.

Já, a segunda fase, focou-se primeiramente na identificação dos conectores preferenciais em

artigos da Pediatria produtos de versão para o inglês e, depois, na comparação desses

conectores com os conectores mais freqüentes em artigos escritos originalmente em inglês. O

objetivo dessa fase foi identificar padrões de causalidade via conectores nos dois tipos de

textos.

Antes de apresentarmos os dados de cada fase, é importante salientar que, quando tratamos da

presença da causalidade, referimo-nos, neste trabalho, aos conectores em análise empregados

em uma frase ou segmento de texto com sentido causal.

4.1 Fase 1 Causalidade em Química, Física e Pediatria

4.1.1 Materiais e Métodos

Page 11: do uso de expressões de causalidade como um elemento

Como mencionado na seção 2 deste trabalho, nesta fase de estudo foram utilizados 05 artigos

de cada uma das revistas de Física e Química, anteriormente mencionadas, e 10 artigos do

Jornal de Pediatria, totalizando um conjunto de 30 artigos científicos. Objetivamos verificar

se as expressões de causalidade antes examinadas em materiais didáticos de Química Geral

ocorreriam de igual modo ao longo desse novo corpus. Pretendemos verificar, também, se

havia uma relação entre a maior ou menor quantidade desses conectores em função dos tipos

de textos (em tese, mais ou menos didáticos) e as diferentes áreas de conhecimento

envolvidas.

A descrição procedeu-se em quatro etapas. Na primeira etapa, com o software WordSmith

Tools®4, verificamos o número de tokens (número de palavras) e types (número de palavras

diferentes) dos artigos de cada revista. Na segunda etapa, com o auxílio da ferramenta

gerador de contextos disponível no site do projeto TEXTQUIM5, identificamos cada uma das

ocorrências dos conectores sob exame em cada um dos artigos e em cada uma das revistas.

Essa ferramenta possibilitou que extraíssemos os contextos de ocorrências dos conectores e os

examinássemos.

Portanto, na terceira etapa da descrição, procedemos à leitura de cada um dos contextos e ao

julgamento subjetivo sobre o uso do conector com sentido de causalidade. Esse julgamento

foi realizado a partir da leitura dos contextos por quatro leitoras do curso de Letras6.

A quarta etapa do trabalho foi de confirmação ou refutação do sentido de causalidade,

realizada a partir de dois testes. Essa etapa foi inserida no estudo, pois houve divergências de

leitura da causalidade entre as quatro leitoras, algumas apontando o sentido causal em

determinados contextos e outras não. Dessa forma, encontramos testes que puderam confirmar

o sentido causal dos contextos.

O primeiro teste7 para verificação de sentido de causalidade constituiu-se na substituição dos

conectores examinados por expressões que ajudassem a evidenciar a causalidade, tais como

POR CAUSA DISSO, POR ISSO, EM FUNÇÃO DISSO. O segundo teste8 foi baseado na

4 Versão 3.0. Esse software possui três ferramentas de tratamento textual, das quais utilizamos a Wordlist. 5 http://www6.ufrgs.br/textquim/ 6 Grupo de leitoras formado pelas autoras deste trabalho e a aluna do curso de Letras-Tradução da UFRGS, Paula Marcolin. 7 Nosso teste de substituição foi inspirado no trabalho de tipologização de FREITAS e RAMILO (2005), autores que remetem a Lopes (2001). Freitas e Ramilo trataram do uso atual do conector PORTANTO e verificaram seus empregos causais entre outros. 8 Esse procedimento é também conhecido como teste de clivagem, embora o que utilizamos na pesquisa não seja o processo de clivagem stricto sensu. Neves (2000), aliás, não sugere o teste de clivagem. A autora, ao mencionar a ordem nas construções causais, afirma que quando o enunciador coloca um PORQUE no início da sentença o faz para focalizar a causalidade. Neves (2008, p. 808) chama esse procedimento, entre outros citados, de clivagem (Verbo Ser + Porque).

Page 12: do uso de expressões de causalidade como um elemento

focalização da causalidade por meio de um procedimento de topicalização sobre o contexto.

Esse procedimento, inspirado em Neves (2000), consistiu em modificar a ordem dos eventos,

trazendo a causa para o início da sentença e levando a conseqüência para o final. A

reformulação das sentenças resultava em uma estrutura que segue o seguinte padrão: É POR

CAUSA DE (causa)...QUE (efeito) ou É PORQUE (causa)...QUE (efeito). Esse

procedimento, de focalização da causalidade, é citado pela autora como um dos mecanismos

que o enunciador utiliza quando quer enfatizar a causa, movendo-a, portanto, para o começo

da sentença. Examinamos, assim, 809 contextos para chegar àqueles em que os conectores

estavam sendo usados com sentido causal.

Nos exemplos abaixo vemos os dois testes aplicados em um contexto de uso do conector

ASSIM na revista Química Nova na Escola:

SEGMENTO: Na maior parte dos livros didáticos de Ensino Médio, o modelo atômico de Dalton é apresentado

apenas através dos seus postulados, e pouca ou nenhuma relação é feita com as leis ponderais das reações

químicas. Importantes correlações entre o universo macroscópico e o universo atômico, tais como a

indestrutibilidade dos átomos ao longo de uma reação química, de um lado, e a lei da conservação da matéria de

Lavoisier, de outro, não são trazidas à tona. Perde-se, ASSIM, uma excelente oportunidade de discutir a própria

estrutura metodológica da Química, transitando entre modelos, fatos e sua descrição.

Teste 1 (substituição) – Perde-se POR CAUSA DISSO/ EM FUNÇÃO DISSO uma excelente oportunidade de

discutir a própria estrutura metodológica da Química, transitando entre modelos [...].

Teste 2 (topicalização) – É PORQUE na maior parte dos livros didáticos de Ensino Médio, o modelo atômico de

Dalton é apresentado apenas através dos seus postulados, e pouca ou nenhuma relação é feita com as leis

ponderais das reações químicas QUE perde-se uma excelente oportunidade de discutir a própria estrutura

metodológica da Química [...].

4.1.2 Resultados

Na revista Química Nova, em um universo de 19.994 tokens e de 3.111 types, a presença do

conjunto total dos conectores examinados representou 0,18% de elementos de causalidade em

relação ao número de palavras. Na revista Química Nova na Escola, com 11.457 tokens e

2.874 types, esse universo atingiu 0,21% em relação ao todo de palavras dos textos. Nos

textos de Pediatria, com 27.289 tokens e 4.091 types, verificamos que esse percentual foi de

0,17%. Isso nos dá, em um plano geral, um ranking da presença dessas expressões.

Embora restrito o exame a apenas esses itens, vemos que a Revista Química Nova na Escola é

a mais rica em causalidade no contraste Química/Pediatria. Prosseguindo a observação para as

revistas de Física, verificamos que o percentual na Revista Física Aplicada e Instrumentação

ficou em 0,20% em um universo de 18.010 tokens e 2.967 types. Por outro lado, na Revista de

Page 13: do uso de expressões de causalidade como um elemento

Física na Escola, tivemos 0,53% em um total de 19.060 tokens e 3.448 types. Essa última

revista mostrou-se como a que concentrou maior presença desses elementos entre todas as

examinadas. O gráfico abaixo mostra o contraste do total de causalidade, identificada através

da análise dos conectores observados, entre as revistas:

Figura 1: Gráfico de causalidade total por revista considerando.

Assim, em linhas gerais, vimos que Química e Física não divergem muito na freqüência de

uso desses conectores causais em revistas de valor menos didático, que não são voltadas a

temas de educação em ciências. Entretanto, quando observamos a Física na Escola,

publicação em tese mais didática, vemos que desponta como o corpus de maior presença

desses elementos. Isso ocorreu porque nela, dos 8 conectores examinados, todos tiveram

algum uso causal, sendo os extremos ASSIM, com 01 ocorrência, e POIS, com 36 casos.

Os gráficos abaixo informam os valores dos conectores por estilo de revista, sendo o caráter

mais pedagógico atribuído às revistas Química Nova na Escola e Física na Escola e o caráter

menos pedagógico atribuído às revistas Química Nova, JPED e Física Aplicada e

Instrumentação.

Page 14: do uso de expressões de causalidade como um elemento

A primeira etapa do trabalho, de exame dos 809 contextos, gerou um conjunto de 257

conectores com sentido de causalidade. Isso nos dá um percentual de 28% do universo de

possíveis sentidos causais.

Da descrição obtida, foram depreendidas duas conclusões parciais:

a primeira foi a de que as revistas cujo texto tem caráter mais didático

apresentaram um número maior de conectores causais do que as revistas cuja

temática é mais técnica ou procedimental. Assim, observamos que a maior

presença de causalidade poderia estar associada a um discurso mais didático;

a segunda foi a de que a causalidade, entendida de modo muito simplificado

apenas pelo uso dos conectores selecionados para este estudo, estaria também

relacionada com traços das diferentes áreas de conhecimento, tendo-nos

surpreendido que o corpus de Pediatria tenha sido o que menos exibiu esses

elementos.

É importante observar que, mesmo fazendo a soma dos valores dos conectores nas três

revistas, o grupo de textos caráter mais didático, que dialoga com professores e lhes apresenta

atividades de ensino, composto por apenas duas revistas, possui um valor total maior.

Assim, o primeiro grupo teria uma soma total de 0,76% e o segundo, de 0,56%, indicando,

claramente, a relação de causalidade entre conectores observados e o caráter pedagógico das

publicações.

Os dados acima são relevantes para os profissionais da língua que procuram especializar-se

em textos técnico-científicos, pois indicam a utilização de um padrão textual diferente - ligado

à causalidade expressa por conectores causais - não só entre áreas distintas, mas também entre

finalidades estabelecidas dentro de uma mesma área.

4.2 Fase 2 Pediatria em tradução e em artigos escritos originalmente em inglês

4.2.1 Materiais e Métodos

Como mencionado na seção 1 deste trabalho, nesta fase foram utilizados 94 artigos científicos

de Pediatria:

Page 15: do uso de expressões de causalidade como um elemento

1) 10 artigos do Jornal de Pediatria publicados em 2003/2004, utilizados na fase

anterior, e suas respectivas versões para o inglês;

2) 37 artigos do Jornal de Pediatria produtos de versão publicados em 2007 e 37

arquivos da revista Pediatrics escritos originalmente em inglês.

A descrição deu-se em duas etapas e o número de tokens e types de cada corpus foi obtido

através da utilização da ferramenta WordSmith Tools®.

Na primeira etapa, alinhamos9 o corpus da Pediatria em L1 (português) e L2 (inglês) e

localizamos as preferências tradutórias dadas aos conectores em L1 através de ferramenta

localizadora de contextos desenvolvida pelo projeto TextQuim10 .

Na segunda, utilizamos a ferramenta WordSmith Tools® para contabilização dos conectores

preferenciais nos 37 artigos produtos de versão e nos 37 artigos escritos originalmente em

inglês e efetuamos a leitura de 509 contextos para verificar se os conectores estavam

funcionando como causais. Depois, deduzimos o número dos conectores que não se

enquadraram em tal função do total aferido inicialmente pelo WordSmith Tools®. Ao final,

contrastamos os resultados obtidos para verificar se os conectores mais freqüentes nos artigos

vertidos para inglês eram, também, mais freqüentes nos artigos escritos originalmente em

inglês.

4.2.2 Resultados

Etapa 1

A contabilização das opções tradutórias dadas aos conectores em análise, após alinhamento do

corpus em L1 com corpus em L2, mostrou o seguinte panorama de preferências tradutórias

em um universo de 27.289 tokens e de 4.091 types do corpus em L1 e 26.161 tokens e de

3.154 types do corpus em L2:

9 Alinhado por JAMES ROBERT COULTHARD no seu mestrado em Tradução pela UFSC, em 2005: The application of Corpus Methodology to Translation: the JPED parallel corpus and the Pediatrics comparable corpus. Esse autor é merecedor dos nossos renovados agradecimentos pela cedência a nós do corpus que reuniu. 10 Desenvolvido pelo discente Adriano Zanetti, Ciência da Computação, UFRGS.

Page 16: do uso de expressões de causalidade como um elemento

Preferências Tradutórias

JPED L1

Conectores em análise

JPED L2

Preferencialmente vertido por

Assim (7) THUS (4)

Como (4) AS (4)

Devido (13) DUE TO (10)

Pois (13) SINCE (11)

Porque (6) BECAUSE (6)

Portanto (11) THEREFORE (11)

Então (0) _

Os resultados obtidos propiciaram a observação de que os conectores de maior freqüência no

corpus em L2 foram o DUE TO (10 ) e o SINCE (11) – conectores que, quando causais, são

sinônimos11 do “because” – sendo que o conector BECAUSE (7), conector prototípico de

causalidade no inglês, ocupou o 3º. lugar em freqüência no corpus analisado.

Movidas pela observação acima, passamos a nos questionar:

a) se o padrão que estava sendo observado em L2, de uma freqüência maior do

conector DUE TO e SINCE em relação ao BECAUSE, encontraria eco em artigos

escritos originalmente em inglês;

b) se o mesmo padrão se reconfirmaria em corpus maior da Pediatria em L2. Esses

questionamentos nos levaram a expandir o estudo para a etapa seguinte.

Etapa 2: conjunto de corpus 2

11 Partimos do pressuposto de que não existe sinonímia perfeita, mas sim uma proximidade grande de significado dos conectores DUE TO e SINCE com o conector BECAUSE, quando usados como causais. Tomando como exemplo um dos excertos coletados do corpus do JPED L2 com a presença do conector DUE TO, o mesmo poderia ser parafraseado das seguintes maneiras com os conectores BECAUSE e SINCE: “In the physical examination, we emphasized the following features, due to their relevance: fever […].” 1) In the physical examination, we emphasized the following features because of their relevance: fever, […]. 2) Because they are relevant, we emphasized the following features in the physical examination: fever [..]. 3) Since they are relevant to the physical examination, we emphasized the following features: fever, pallor […].

Page 17: do uso de expressões de causalidade como um elemento

A contabilização total e percentual dos conectores BECAUSE, DUE TO e SINCE mostrou o

seguinte panorama frequencial em um universo de 108.801 tokens e 7.059 types do novo

corpus do JPED e 183.104 tokens e 8.413 types do corpus do jornal norte-americano

Pediatrics: The Official Journal of the American Academy of Pediatrics:

Conector Pediatrics JPED L2

Because 286 49

Due to 2 74

Since 0 98

Tabela 1: Total numérico.

Figura 2: Total Percentual (no. de palavras/no. de conectores).

As observações dos resultados nos gráficos e tabela acima vieram apontar que:

o Pediatrics, Official Journal of the American Academy of Pediatrics, possui

um uso extremamente marcado do conector BECAUSE e uma freqüência

baixíssima dos conectores DUE TO e SINCE no corpus analisado;

o JPED em L2, nesse novo corpus, reconfirmou freqüência alta do conector

SINCE (conector de menor freqüência no Pediatrics) e DUE TO (conector que

teve freqüência extremamente baixa no Pediatrics), enquanto que o BECAUSE,

Page 18: do uso de expressões de causalidade como um elemento

conector de maior preferência nos jornais monolíngües analisados, , acabou,

novamente, ocupando um 3º lugar.

Foram realizadas, também, análises freqüenciais quantitativas e qualitativas (leitura) do

conector SINCE, conector mais freqüente no JPED L2, que mostraram o seguinte cenário:

Pediatrics Official Journal of the American Academy: 5 ocorrências, 5 vezes

como conector temporal (“desde”), 0 vezes como causal.

JPED L2: 112 ocorrências, 14 vezes conector temporal (desde), 98 vezes

causal.

Os resultados expostos acima propiciaram a visualização de que cada uma das comunidades

analisadas parece desenvolver tipos relativamente estáveis de expressões lingüísticas que

passam a ser comumente associados a elas no gênero que elegeram para efetuar sua

comunicação: o artigo científico de Pediatria em âmbito internacional.

A preferência do conector BECAUSE em relação aos conectores DUE TO e SINCE (quando

usados como causais) nos artigos científicos da revista monolíngüe de Pediatria, e de um

padrão inverso nos artigos do JPED L2 parece corroborar com tal afirmação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme vimos, a transferência direta de elementos que expressam causa no artigo de

Pediatria em português para a versão em inglês, elementos que não podem ser vistos por

“termos” e que parecem marcar um modo preferencial de expressar o sentido de causalidade

da Pediatria brasileira, pode indicar um rompimento de convenção em relação ao padrão de

um inglês internacional. Enquanto no Brasil pouco se usa PORQUE, preferindo-se formas

mais rebuscadas como DEVIDO A, nas revistas internacionais a expressão mais empregada é

o BECAUSE. Assim, as especificidades desse gênero textual ultrapassam as suas

terminologias, alcançam a sua tessitura coesiva e parecem também sofrer o feito do estatuto

local ou internacional da publicação em que se inserem.

A nova curiosidade seria a de saber se o sentido de causalidade, em tese desaparecido na

língua de chegada, teria sido mantido por algum outro elemento ou recurso na frase e se tal

apagamento seria mais comum em determinados gêneros textuais. Seria também válido

observar como repercute esse tipo de procedimento de apagamento sobre a compreensão de

leitura.

Page 19: do uso de expressões de causalidade como um elemento

Pelo que pudemos observar, a freqüência de certos conectores parece marcar um gênero mais

ou menos didático. Além disso, o conector BECAUSE parece marcar o gênero artigo

científico da Pediatria em artigos escritos originalmente em inglês, sendo seu equivalente

PORQUE pouco utilizado em textos produzidos no Brasil. No Brasil, a preferência do artigo

de Pediatria é por conectores causais “mais elegantes”, tal como EM VIRTUDE DE.

Ao examinar a expressão de causalidade em textos científicos em língua portuguesa, foi

possível verificar que os usos dos conectores causais apresentam peculiaridades e

particularidades em cada uma das áreas de conhecimento estudadas. Ao que parece, existem

preferências das diferentes ciências por determinados conectores de causa, como também

o grau de didatismo de um texto pode condicionar usos maiores ou menores de determinados

elementos coesivos do tipo causal.

Muito embora não sejam considerados termos, esses elementos possuem um padrão de uso

que pode ser levado em conta quando se descrevem práticas textuais técnico-científicas.

Quando um padrão de expressar causa entre revistas médicas brasileiras que se publicam

também em inglês é diferente de um padrão de causa em inglês internacional, torna-se

importante trazer esse dado para as aulas de tradução médica em favor de uma boa aceitação e

do não estranhamento do texto por parte do seu público-alvo.

Os dados obtidos nas nossas pequenas e sucessivas explorações, no seu conjunto e também

nas perguntas renovadas a cada etapa, revelam uma série de inter-relações de indícios.

Para o ensino de tradução, acreditamos que estudos desse tipo são especialmente úteis para

alertar sobre particularidades dos textos científicos. Particularidades que podem não ser tão

evidentes, e que só serão percebidas por meio de uma observação extensiva dos quadros de

usos das línguas em seus gêneros textuais. Elementos lingüísticos textuais comuns como

conectores, tão menos marcados em relação aos “termos técnicos”, podem ser, e usualmente

são, subestimados pelos tradutores que não têm ainda uma experiência grande no domínio

científico em que atuam.

A consideração desses “simples” elementos de conexão frasal estará abrigada em enfoques

descritivos que, tal como a Lingüística de Corpus e o enfoque estendido das Linguagens

Especializadas aqui apresentado, considerem a priori tudo importante nos textos-corpora.

A extensa vivência do tradutor experiente ou sua condição de expertise equivaleria a já ter

podido conhecer grandes corpora, acumulando um conhecimento igualmente extensivo sobre

as convenções das linguagens e das culturas de escrita com que lida. Mas, sem um acesso

prévio e real, direto ou indireto, a esses corpora especialmente reunidos, o tradutor somente

Page 20: do uso de expressões de causalidade como um elemento

teria tal “sabedoria” a partir de um ou mais textos, conhecidos aos poucos e a cada dia, ao

longo dos vários anos de sua prática diária.

Para além de um aproveitamento mais imediato do que buscamos exemplificar com as

explorações relatadas, elas têm, sem dúvida, uma boa capacidade para provocar inúmeras

novas curiosidades de pesquisa. Assim, como já afirmou Santos (2007), embora os corpora

não permitam responder a todos os problemas, são uma fonte de idéias e de hipóteses

incansável e abundante.

Agradecimentos

Este trabalho foi desenvolvido com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico do Brasil.

REFERÊNCIAS

Dos corpora Revista Química Nova. São Paulo: FAPESP, 2004. http://quimicanova.sbq.org.br/quimicanova.htm Revista Química Nova na Escola. São Paulo: FAPESP, 2004. http://quimicanova.sbq.org.br/quimicanova.htm Revista de Física Aplicada e Instrumentação, 2003 e 2005. http://www.sbfisica.org.br/rfai/ Revista Física na Escola. São Paulo: SBF, 2007. http://www.sbfisica.org.br Jornal de Pediatria (JPed). Porto Alegre, 2003. http://www.jped.com.br/ Outra fontes NEVES, M. H. M. 1999. As Construções Causais. In: Gramática do Português Falado. Volume VII: Novos estudos. São Paulo: Humanitas, FFLCH/USP. BAKHTIN, M. M. 1997. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes. FINATTO, M. J. B; SIMIONI, S. 2007. A causalidade no texto de Química: efeitos da tradução e estrutura coesiva. In: Calidoscópio: Revista de Lingüística Aplicada vol. 05. Unisinos. ISBN: 16798740. KOCH, I. G. V. 2004. A coesão textual. 19ª ed. São Paulo: Contexto. LOPES, A. C. M et al. 2001. As construções com portanto no PE e no PB. In: Scripta, volume 5, número 9. PUC Minas.

Page 21: do uso de expressões de causalidade como um elemento

MARCUSCHI, L. A. 2002. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: Dionísio A., Machado A. e Bezerra M. (orgs). Gêneros Textuais e Ensino. Rio de janeiro: Lucerna. NEVES, M. H. M. 2000. Gramática de usos do Português. São Paulo: Editora UNESP. POSSAMAI, V. 2004. Marcadores textuais do artigo científico em comparação português-inglês – um estudo sob a perspectiva da tradução. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. 121p. Dissertação de Mestrado. SCOTT, M. R. 1999. Wordsmith tools. Oxford: Oxford University Press. [software]. SWALES, J. M. 1990. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge University Press. ZILIO, L. 2009. Colococações especializadas e komposita: um estudo contrastivo alemão-português na área de Cardiologia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. 225p. Dissertação de Mestrado.