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Ana Rita Gil1
Sumário: 1. Introdução; 2. As resposta tradicionais do Direito Internacional Privado: o
mecanismo de ordem pública internacional; 3. As experiências de ordens jurídicas
europeias: 3.1. Razões contra o reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos, 3.2.
Razões a favor do reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos; 4. Análise
crítica das experiências europeias e proposta de decisão; 5. Conclusão
1. Introdução
Poder-se-ia julgar que no nosso tempo do mundo globalizado se podia assegurar a
universalidade do Direito. Mas a diversidade das ordens jurídicas permanece resistente
a este desafio. O Direito, como produto cultural2, continua a ser o reflexo das várias
civilizações3. E como afirmava MANCINI, é sobretudo nas relações de direito privado4,
e acrescentamos nós, nas relações de direito da família, que mais se revela o espírito e
carácter de cada povo.
Ora, as confrontações entre instituições jurídicas estrangeiras, tão antigas como a
própria humanidade, são hoje mais frequentes devido aos movimentos migratórios.
Nas palavras de PIERRE MERCIER, la diversité des mœurs et des coutumes est apparue avec
l’homme lui-même et (..) ce dernier a sans doute toujours appelé “barbarie ce qui n’est pas de son
usage”5. Porém, não obstante tais diversidades culturais, civilizacionais e, por isso,
também jurídicas, os Estados não se fecham em sistemas de territorialidade absoluta, e
1 Doutoranda da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. O presente trabalho corresponde ao Relatório apresentado no Seminário de Teoria do Direito, da 2ª fase lectiva do 7º Programa de Doutoramento, sob a regência do Professor José de Sousa Brito. 2 FERNANDO JOSÉ BRONZE, refere que o sentido último do Direito é produto de uma cultura, já que esta tem o seu núcleo num conjunto de valores que lhe determina a especificidade e lhe marca o sentido. Cfr. Apontamentos sumários de introdução ao direito : memória das aulas teóricas do ano lectivo de 1995-96, Coimbra, 1996, p. 463. 3 Da noção de civilização fazem parte elementos ideológicos, materiais, bem como níveis de evolução ou de estabilização. Para mais desenvolvimentos, v. PIERRE MERCIER, Conflits de Civilisations et Droit International Privé- Polygamie et Répudiation, Libraire Droz, Genève, 1972, p. 3. 4 A. FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, Coimbra, 2000, p. 121. 5Op. cit., p. 2.
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tradicionalmente tendem a aceitar a aplicação das normas jurídicas estrangeiras para
assegurar a continuidade das relações jurídicas que se deslocam internacionalmente. A
continuidade dessas relações pode assim implicar a confrontação de civilizações
profundamente diferentes.
O direito europeu ocidental – laico e secularizado – e o direito muçulmano –
religioso, manifestação da vontade divina – são um exemplo paradigmático de como
um conflito de normas pode desembocar num verdadeiro conflito de civilizações6, que
se fará sentir com toda a sua premência nas situações respeitantes ao direito da família.
Aí, o jurista ocidental pode vir a confrontar-se com determinadas instituições jurídicas
que lhe são estranhas, como é o caso do casamento poligâmico7.
O confronto da civilização ocidental com esta instituição teve lugar, inicialmente,
no contexto colonial. Apesar da modernização das instituições jurídicas tradicionais
desses países8, motivada e muitas vezes forçada pelo intercâmbio cultural com os
países colonizadores9, muitas instituições jurídicas dos países colonizados, em
particular no domínio do direito da família, puderam resistir até aos dias de hoje. A
poligamia, instituição secular e fortemente enraizada nessas sociedades, foi uma delas,
não obstante vir a diminuir de importância10.
6 FERNANDO JOSÉ BRONZE contrapõe a civilização greco-cristã à civilização islâmica e judaica. Na primeira, o Homem é visto como um sujeito com autonomia ética e valor trans-comunitário, enquanto a segunda é uma sociedade teocrática, pois não autonomizou o Direito. O autor realça a importância dos valores que advêm do Cristianismo para a compreensão actual do Homem no horizonte da nossa cultura jurídica. Cfr. op. cit., p. 129. 7 O casamento poligâmico é definido pela doutrina como sendo “um regime matrimonial monoândrico poligínico simultâneo” (ANNAMARIA GALOPPINI, “Problemi Familiari tra Diritto Italiano e Diritto Musulmano”, Revista Critica del Diritto Privato, Napoli, a.221, n.1 (Marzo 2003), p. 167). Trata-se da junção de duas noções: a poligamia e o casamento. A noção de “poligamia”, contudo, presta-se a alguns equívocos, já que abrange tanto a noção de poligenia – união de um homem com diversas mulheres, como a de poliandria – união de uma mulher e diversos homens. A expressão é geralmente usada para abranger apenas a primeira hipótese, e será esse o sentido que irá revestir no presente trabalho. Não obstante existirem no mundo alguns casos de poliandria, face à sua escassez e à inexistência de confronto dos ordenamentos jurídicos ocidentais com os mesmos, a sua questão não será objecto de estudo. Para mais desenvolvimentos sobre o fenómeno, v. BÉATRICE BOURDELOIS, Mariage Polygamique et Droit Positif Français, Joly Editions, Paris, 1993, p. 4 e ss. Por outro lado, teremos em conta principalmente a instituição do casamento poligâmico muçulmano, não só devido à acessibilidade de fontes, mas também devido à maior importância prática que essa instituição reveste na ordens jurídicas europeias, devido à origem dos movimentos migratórios. 8 A modernização do direito muçulmano neste domínio tem vindo a ser feita, a maior parte das vezes, através do estabelecimento de limites à celebração de casamentos poligâmicos. Neste sentido, várias têm sido as legislações que têm vindo, se não a eliminar o instituto, quanto muito a dificultar o mesmo, como é o caso da marroquina. Para uma análise da evolução das legislações nesta matéria, v. ANTÓNIO FRANCISCO DE SOUSA, « A posição jurídica da mulher na Sociedade Islâmica », Documentação e Direito Comparado, Lisboa, n.24, (1985), p. 200 e ss. 9 Para um estudo detalhado deste intercâmbio e consequente “ocidentalização” dos direitos das colónias, v. PIERRE MERCIER, op. cit., p. 16 ss. 10 BÉATRICE BOURDELOIS refere que a prática de poligamia, de origem predominantemente rural, tornou-se demasiado onerosa nas sociedades industrializadas, mantendo actualmente um certo relevo
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A questão do reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos é uma questão
com que os países receptores dos fluxos migratórios se têm de preocupar, tanto mais
que a maior parte dos países europeus submete a disciplina das relações matrimoniais à
lei nacional dos cônjuges11. Um instituto que era tradicionalmente referenciado como
uma figura exótica e dificilmente imaginável no nosso horizonte cultural reclama hoje,
pois, por reconhecimento nas sociedades ocidentais. Há que saber, por isso, se os
Estados que não conhecem a figura do casamento poligâmico devem reconhecê-la para
a atribuição de efeitos às uniões constituídas validamente sob a égide da ordem jurídica
tida como competente12.
2. As respostas tradicionais do Direito Internacional Privado: o
mecanismo de ordem pública internacional
2.1. A construção de SAVIGNY e de MANCINI
O ramo do direito competente para a problemática do reconhecimento de relações
jurídico-privadas estrangeiras é, como se sabe, o Direito Internacional Privado (DIP).
Ora, este ramo jurídico encontra-se construído tendo ainda por base a noção de
comunidade de direito internacional propugnada por SAVIGNY. O seu paradigma era a
existência de uma comunidade de nações civilizadas, que comerciavam entre si e
partilhavam de uma cultura cristã comum13. Tais nações deveriam reconhecer
mutuamente o seu direito devido a dois princípios essenciais: de um lado, o princípio
da paridade de tratamento das leis e de outro, o princípio da harmonia das relações
internacionais. O autor alemão previa já, porém, a existência de situações “anómalas”,
consideradas excepções ao funcionamento normal das regras de conflitos, em que, por
imperativos morais de salvaguarda da ordem jurídica do foro, não se poderia aplicar a
lei normalmente competente. Eram as chamadas leis de ordem pública (o.p.)14. O caso
nos países do Magreb (embora seja proibida na Tunísia), no Médio Oriente e nas etnias centro-africanas, onde tem uma origem costumeira. Para mais desenvolvimentos v., op. cit., p. 294 ss. 11 Assim é na França (cfr. PIERRE MERCIER, op. cit., p. 31), bem como na Itália (cfr. ANNAMARIA GALOPPINI, “Problemi Familiari…”, cit., p. 168). Em Portugal, v. art. 25º e 31º do CC. 12 O presente estudo visa apenas, pois, averiguar do reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos celebrados validamente no estrangeiro. 13 ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional Privado, Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2000, p. 107. 14 Private International Law, and Retrospective Operation of Statutes – A Treatise on the Conflicts of Laws, and the Limits of their Operation in respect of Place and Time, Trad. William Guthie, The Law Book Exchange ltd., New Jersey, 2003, p. 81. Não obstante, a criação do conceito a que corresponde actualmente a concepção de o.p. internacional remonta à Baixa Idade Média, com a criação, por BÁRTOLO, do conceito de “estatuto odioso”, que abrangia as normas manifestamente injustas ou discriminatórias e que, por isso, não se podiam aplicar a outras cidades. Cfr. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Direito…, cit., p. 80.
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que o autor usava para exemplificar estas situações era, precisamente, o das leis que
proibiam a poligamia15.
MANCINI defendia o respeito pelos direitos alheios por um dever de justiça
internacional, dando particular relevância às matérias de estado. Também este “dever
de justiça” possuía limites: as leis de o.p., garantes do respeito pela moral e bons
costumes, nas quais se incluía, uma vez mais, a proibição de casamentos poligâmicos16.
Estes limites eram encarados como decorrentes do princípio da soberania e da
independência políticas do Estado17.
O problema do reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos colocava já
em conflito vários valores defendidos por estes autores: para SAVIGNY, o princípio da
harmonia das relações internacionais, que propugnava a continuidade e a uniformidade de
valoração das situações plurilocalizadas18 com os imperativos morais de salvaguarda da
ordem jurídica do foro. Para MANCINI, o respeito pelo património privado de cada
indivíduo, dever de justiça internacional, com o respeito pelo limite da o.p.
internacional, decorrente da soberania e da independência política do Estado. Não
obstante, nenhum destes autores hesitou em defender que o valor da o.p. internacional
deveria prevalecer nos casos em que estava em causa a instituição do casamento
poligâmico. E de facto, esta questão tem vindo permanentemente a ser usada como
exemplo académico para demonstrar um caso inequívoco e indiscutível de aplicação do
mecanismo de excepção de o.p. internacional19. Ora, o que devemos começar por
questionar são os motivos que levam a poligamia seja referenciada como violando a
o.p., o que pressupõe, em primeiro lugar, saber o que se visa proteger com o instituto
da o.p., e em segundo lugar, quais os valores postos em causa pelo instituto do
casamento poligâmico.
2.2. Os valores que a o.p. internacional visa salvaguardar
A o.p. internacional pode ser definida como sendo composta pelo conjunto de
princípios que inspiram um ordenamento jurídico e que reflectem os valores essenciais 15 Defendia o autor: our judges must refuse the protection of the law to the polygamous marriages of foreigners, to whom they are permitted by the law of their own country. Cfr. op. cit., p. 78. 16 ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Direito..., cit., p. 126. 17 TITO BALLARINO, Diritto Internazionale Privato, CEDAM, Padova, 1999, p. 125. 18 A. FERRER CORREIA, A Codificação do Direito Internacional Privado – Alguns Problemas, Separata dos volumes LI, LII, LII e LIV do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1999, p. 111. 19 Entre nós, A. FERRER CORREIA, Lições..., cit., p. 413, em Espanha: AFONSO-LUIS CARAVACA E JAVIER GONZÁLEZ, Derecho Internacional Privado, vol. I, 3ª ed., Editorial Comares, Granada, 2002, p. 296, em França: BERNARD AUDIT, Droit International Privé, 2éme édition, Economica, Paris, 1997, p. 265, em Itália: TITO BALLARINO, op. cit., p. 308.
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de uma sociedade num dado momento20, i.e., as linhas de resistência e coordenadas
básicas de uma determinada ordem jurídica interna21 tidas como inderrogáveis. São
enfim, os valores de mais alto nível22 de uma ordem jurídica. A jurisprudência italiana
tem referido serem basi etiche della nostra convivenza civile, identificando-se com os
preceitos che non potrebbero essere derogati senza grave attentato all’ordinamento politico, economico
e moralle dello Stato, senza scandalo o turbamento dell’ordine sociale23. Por sua vez, o Supremo
Tribunal espanhol diz ser a o.p. constituída por principios jurídicos, públicos y privados,
políticos, económicos, morales e incluso religiosos, que son absolutamente obligatorios para la
conservación del orden social en un pueblo y en una época determinada24. Nas palavras do nosso
STJ, são interesses da maior dignidade e transcendência, compostos por um núcleo
historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não
pode prescindir25. Assim, vemos que se considera generalizadamente que os valores que
constituem a o.p. internacional podem consistir não só em interesses jurídicos estritos,
mas também em interesses económicos, ético-religiosos, morais e políticos da ordem
do foro26.
A doutrina francesa tem distinguido dois grandes grupos de valores que o conceito
de o.p. visa salvaguardar27. Por um lado, ela visa a defesa dos princípios de direito
“comuns às nações civilizadas”, ligados a uma tradição filosófica e religiosa de largos
séculos. Em segundo lugar, a o.p. apareceria na veste de protecção da vida jurídica
interna do Estado, visando a conservação das tendências sociais, políticas e económicas
e protegendo-a do efeito subversivo que poderia resultar da aplicação de leis que
20 JOSÉ CARLOS FÉRNANDEZ ROZAS e SIXTO SÁNCHEZ LORENZO, Derecho Internacional Privado, 2 edic., Civitas, Madrid, 2001, p. 227. 21 JOÃO BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, Coimbra, 1999, p. 254. De realçar que a o.p. internacional não se confunde com o conceito de o.p. interna, que diz respeito ao conjunto de todas as normas que, num sistema jurídico, revestem natureza imperativa, consistindo por isso um limite à autonomia das partes. O conceito de o.p. internacional é mais restrito que este, pois nem todas as leis de o.p. interna se podem considerar como sendo de o.p. internacional. Porém, não é possível imaginar uma regra de o.p. internacional que não seja também de o.p. interna. Cfr. YVON LOUSSOUARN e PIERRE BOUREL, Droit International Privé, Dalloz, Paris, 1999, p. 299. 22 RUI MOURA RAMOS, “L’Ordre Public International en Droit Portugais”, in Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 249. 23 Apud TITO BALLARINO, op. cit., p. 308. 24 Acórdão de 05.04.1966. Esta concepção é aplaudida por alguns autores por dar prevalência aos princípios de carácter jurídico, enumerando apenas em último lugar os de carácter religioso, contrariamente ao que era a prática. O uso da excepção de o.p. pela jurisprudência espanhola era criticado por ser feito em excesso, inclusivamente para se defender o carácter confessional do direito matrimonial. Cfr. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, As Normas de Aplicação Imediata no Direito Internacional Privado, I vol., Almedina, Coimbra, 1991, p. 201 e 211. 25 Ac. de 21.02.2006, proc. 05B4168, in http://www.dgsi.pt/. 26 BAPTISTA MACHADO, Lições… cit., p. 256 e A. FERRER CORREIA, Lições.... cit., p. 413. 27 YVON LOUSSOUARN e PIERRE BOUREL, op. cit., p. 307, BERNARD AUDIT, op. cit., p.269.
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tenham procedido a escolhas diversas28. Nestes casos é a precariedade da política
legislativa do foro que explicaria a evicção de uma lei estrangeira29.
Por fim, é necessário realçar que o que se censura com a excepção de o.p. não é o
conteúdo de uma norma estrangeira abstractamente considerado, mas sim o resultado
chocante para as concepções fundamentais do foro que resultaria da sua aplicação em
concreto30. Por outro lado, a sua intervenção deve ser encarada como excepcional, só
devendo ter lugar quando exista um atropelo grosseiro das concepções fundamentais da
ordem jurídica interna31.
2.3. Valores postos em causa pela instituição do casamento poligâmico
Desenhado o quadro de valores que o mecanismo de o.p. visa salvaguardar, há que
questionar agora que valores são postos em causa pelo instituto do casamento
poligâmico. Podemos identificar três valores que são violados por esta instituição e que
correspondem a valores de mais alto nível da nossa ordem jurídica.
2.3.1. O princípio monogâmico
O princípio monogâmico é uma regra milenar absoluta da sociedade ocidental32,
erigida inclusivamente em vários ordenamentos como um bem jurídico digno de tutela
penal33. Este princípio é um princípio fortemente enraizado na sociedade ocidental. De
facto, não obstante as revoluções e desenvolvimentos que se têm vindo a sentir no seio
28 Um exemplo era a interdição absoluta do divórcio, até 1884, e a proibição do divórcio por mútuo consentimento até 1975. 29 Outros autores franceses, como PIERRE MAYER (Droit International Privé, 6éme édition, Montchrestien, Paris, 1998, p. 133), distinguem um outro tipo de valores a salvaguardar pela o.p. internacional: valores da justiça absolutos, considerados pela Cour de Cassation como dotados de valor universal (Acórdão da Chambre Civil, de 25.05.1948, apud BERNARD AUDIT, op. cit., p. 270). 30 Assim o reafirmou recentemente o STJ: Com a reserva da ordem pública internacional portuguesa, nos termos mencionados, pretende-se somente evitar um resultado chocante e intolerável face à lei portuguesa e não emitir qualquer juízo de valor sobre a norma ou o ordenamento jurídico estrangeiro. Cfr. Ac. de 12-02-2008, proc. n. 06A4576 in http://www.dgsi.pt/. 31 Assim, o STJ : a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública (...) só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Ac. de 21.02.2006, proc. 05B4168, in http://www.dgsi.pt/. 32 JEAN DEPREZ, “Droit International Privé et Conflits de Civilisations: aspects méthodologiques : les relations entre systèmes d’Europe Occidentale et systèmes Islamiques em matière de statut personnel“, Recueil des Cours, Dordrecht, t.211, n.4 (1988), p. 158. 33 O crime de bigamia encontra-se previsto no art. 247º Código Penal Português. O bem jurídico que este tipo legal de crime visa proteger é, nas palavras de J.M. DAMIÃO DA CUNHA, a instituição da família monogâmica, assente num só casamento, base de toda a ordenação jurídico-familiar. É, por isso, um bem jurídico supra-individual. Refere o autor que só indirectamente se visa a protecção dos direitos pessoais e patrimoniais que decorrem do casamento. Cfr. AA.VV., Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Jorge de Figueiredo Dias (dir.), Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 603.
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do direito da família, este permanece um ponto em que não se sente nenhuma
aspiração social de mudança34.
2.3.2. O princípio da laicidade
A jurisprudência francesa refere que o instituto do casamento poligâmico revela-se
particularmente incompatível com os valores do sistema laico, um dos pilares da
sociedade ocidental europeia35. Não obstante, esta perspectiva não merece o nosso
acordo, já que o que se reconhece pela norma de conflito é o direito nacional das partes
que permite a celebração desse casamento, e não o direito religioso, pelo que o
reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos não implica necessariamente a
aplicação de uma norma religiosa e a violação do princípio da laicidade.
2.3.3. O princípio da igualdade
Por fim, o casamento poligâmico põe flagrantemente em causa, principalmente, o
princípio da igualdade dos cônjuges, reconhecido não só pela nossa Constituição nos
art. 36º, n.º3 e 13º, como também por inúmeras normas internacionais36.
Desde logo, permite que o homem possa desposar mais de uma mulher (podendo
por isso impor rivais à primeira), mas não permite o inverso. Mas não só. A
desigualdade encontra-se enraizada em toda a relação familiar, que repousa numa
forma de organização conjugal fundada no poder marital e na inferioridade da
mulher37. O marido possui, desde logo, na maior parte dos sistemas, a faculdade de
dissolver unilateralmente o matrimónio mediante o repúdio, sem necessitar de
fundamentar a sua decisão nem de recorrer ao juiz38. Por outro lado, os argumentos
invocados pelos defensores da poligamia, no sentido de que esta seria mais favorável
aos interesses da própria mulher, acabam por demonstrar a profunda desigualdade
enraizada no instituto. Senão vejamos: por um lado, refere-se que ela oferece a uma
34 ANNAMARIA GALOPPINI, “Ricongiungimento Familiare e Poligamia”, Il Diritto di Famiglia e delle Personne, Milano, v. 29, n.2 (Aprile – Giugno 2000), p.748. 35 Chambre Civil Cour de Cassation, Ac. de 01.03.1973, apud BEATRICE BOURDELOIS, op. cit., p. 11. 36 Desde logo, o art. 5º do 7º Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o art. 23º, n.4 do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas e o art. 16º, n.1, al. c) da Convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a Mulher de 1979. 37 Nesse sentido, entre nós, o princípio da igualdade dos cônjuges feriu de inconstitucionalidade as normas do nosso Código Civil que colocavam a mulher casada em situação de inferioridade em relação ao marido, sujeitando-as ao poder marital. A Reforma de 1977 adaptou o regime conjugal aos novos preceitos constitucionais. Cfr. FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, vol. I, 2ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 147. 38 O Tribunal da Relação de Lisboa referiu ser a instituição do repúdio violadora da nossa o.p., por violar, precisamente, o princípio da igualdade dos cônjuges. Cfr. Ac. de 18-10-2007, proc. 10602/2005-2 in http://www.dgsi.pt/.
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esposa mais velha a possibilidade de não ser repudiada a fim de ser substituída por uma
mulher mais jovem, sendo o repúdio social e humanamente mais grave do que viver no
quadro de uma união poligâmica39. Por outro lado, refere-se que a poligamia nem
sempre implica uma condição de inferioridade para as mulheres, que podem, graças ao
reforço das co-esposas, fazer frente ao marido. Como se pode constatar, estes dois
argumentos acabam por necessariamente reconhecer que as mulheres estão em posição
de inferioridade. Por fim, apesar de haver quem defenda que o instituto surgiu para
protecção da mulher, o que é facto é que hoje se admite que o seu espírito se
corrompeu40.
A inferioridade da mulher não se efectiva apenas quando o homem contrai um
segundo casamento. Mesmo que isso não suceda, o espectro dessa possibilidade
coloca-a numa situação de inegável desigualdade durante toda a relação41. Se tal
casamento se efectivar, constituirá sempre uma humilhação para ela. Nesta ordem de
ideias, a Espanha recorreu já à noção de “dignidade constitucional da mulher” para
impedir a celebração de um matrimónio entre uma espanhola e um marroquino já
casado42.
A instituição do casamento poligâmico põe verdadeiramente em causa uma
concepção de Homem e de sociedade democrática assentes no princípio da igualdade
das pessoas43. Trata-se de um instituto que assenta no tratamento injusto da mulher, e
que faz dessa injustiça e desigualdade a base e pilar da organização familiar,
justificando-as através do direito divino natural e dos diferentes papéis que este
reservaria ao homem e à mulher44.
39 MOHAMED M’SALHA, “Qu’en est-il aujourd’hui de la Polygamie et de la Répudiation en Droit Marocain?”, in Revue Internationale de Droit Comparé, Paris, a. 53, n.º1 (jan-mar. 2011), p. 175. 40 NICOLE COURBE COURTEMANCHE refere que o que levou à permissão da poligamia pelo Corão foi a protecção das mulheres desamparadas, já que o Livro teria sido escrito numa época de guerras incessantes, que produziram muitas situações de orfandade e viuvez. A autora refere que o instituto é hoje encarado como uma forma de demonstrar riqueza e poder. Cfr. “La nueva ley pakistani de la família musulmana”, Revista de Estudios Políticos, Madrid, n. 122 (Marzo – Abril 1962), p. 205. 41 MOHAMED M’SALHA, op. cit., p. 174. 42 Res. D.G.R.N. de 11 de Maio de 1994, apud JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ ROZAS e SIXTO SÁNCHEZ LORENZO, op. cit., p. 229. 43 Nesse sentido, referem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA que o princípio da igualdade dos cônjuges constitui uma expressão qualificada do princípio da Igualdade de direitos e deveres dos Homens e das Mulheres, sendo o seu fundamento último a igual dignidade social de todos os cidadãos. Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 564 e 337. 44 Este sistema enquadra-se na noção dada de “prática opressiva” por WILLIAM J. TALBOTT: existe um grupo oprimido e um grupo privilegiado, a cultura e as normas jurídicas negam determinadas oportunidades aos membros do grupo oprimido, e finalmente o grupo privilegiado justifica a sua dominação com uma determinada ideologia, destinada a explicar porque é que os membros do grupo oprimido não têm as mesmas oportunidades do grupo privilegiado. Cfr. Wich Rights should be Universal?, Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 87.
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2.4. A inadequação das respostas tradicionais num “conflito de civilizações”
Percebe-se que o problema do reconhecimento de efeitos a casamentos
poligâmicos seja usado como o exemplo académico por excelência que ilustra a
necessidade da existência de um mecanismo de o.p. internacional. De facto, nele não só
se confrontam duas civilizações profundamente diferentes, como se levantam questões
respeitantes ao direito da família, que encarna valores essenciais das ordens jurídicas e
repousa muitas vezes em considerações morais e religiosas. Mas por outro lado, este
problema, ao dizer respeito a matéria de estado das pessoas, situa-se num domínio em
que, mais do que nenhum outro, se reclama por estabilidade e reconhecimento
internacional45.
Ora, as respostas do DIP tradicional, pensado para as relações que se entreteciam
entre países pertencentes à mesma civilização, começam a demonstrar-se insuficientes
para a resolução desta problemática46. Não é por acaso que DICEY referia: the rules of (so-
called) private international law only apply among Christian States47. De facto, várias
perplexidades podem surgir devido à inexistência de uma verdadeira comunidade de direito
na questão em presença, e que podem levar à necessidade de se repensar o
funcionamento do mecanismo de o.p.
É certo que, no que toca à instituição do casamento poligâmico, se levanta com
toda a premência a necessidade de funcionamento da o.p. internacional, já que esse
instituto põe em causa vários princípios basilares da nossa ordem jurídica. Esse
mecanismo justificaria, pois, a negação de quaisquer efeitos aos casamentos
poligâmicos celebrados no estrangeiro. Porém, no actual contexto migratório e de
intercâmbio cultural, isso poderá sacrificar outros interesses, que poderão ser também
merecedores de protecção. Que interesses são esses? Quais devem prevalecer? Face ao
actual confronto de civilizações e culturas, a visão tradicional tem de dar lugar a uma
visão que olhe para lá da comunidade de direito das nações cristãs e identifique os
demais interesses coenvolvidos. Esta tarefa foi já levada a cabo por várias ordens
jurídicas europeias, pelo que terá todo o interesse a análise não só das soluções a que
elas têm chegado, mas, principalmente, das razões que as têm motivado.
45 YVON LOUSSOUARN e PIERRE BOUREL, op. cit., p. 305. 46 Há que referir que, mesmo os países que compõem a comunidade de nações cristãs não partilham mais, também eles, as mesmas concepções básicas de direito da família, devido ao surgimento de novas formas de uniões, reconhecidas por uns e negadas por outros. Assim, FRANÇOIS RIGAUX, “The Law Applicable to Non Traditional families”, in AA. VV., Private Law in the International Arena, Liber Amicorum Kurt Siehr, T.M.C. Asser Press, The Hague, 2000, p.648. 47 Citado por PIERRE MERCIER, op. cit., p.102.
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3. As experiências de ordens jurídicas europeias
Acreditamos que um bom método de análise das experiências de ordens jurídicas
europeias no confronto com a vexata quaestio seja, como refere JOSÉ DE SOUSA BRITO48,
a razão pública, i.e., a perspectivação dessas experiências através das razões em que as
mesmas se basearam. A razão pública, enquanto entendimento dos cidadãos no fórum
político acerca dos elementos constitucionais essenciais e das questões básicas de
Justiça, tem no discurso dos juízes o seu campo de excelência49. Não podendo estes
invocar a sua moralidade pessoal para decidir do problema em causa, mas sim os valores
políticos que pertencem ao mais razoável entendimento da concepção pública e dos respectivos valores de
Justiça e da razão pública50, há que questionar que razões têm vindo a ser por eles
avançadas. De facto, é seu dever explicar o modo como os princípios que advogam
podem ser sustentados por valores da razão pública, valores acerca dos quais eles terão
de acreditar que todos os cidadãos, enquanto pessoas razoáveis e racionais, poderiam subscrever51.
Vistos os valores que a instituição do casamento poligâmico põe em causa, vejamos
então quais as razões que têm vindo a ser usadas pela jurisprudência de países europeus
para, por um lado, negarem o reconhecimento de tais uniões e, por outro, para as
reconhecerem, e de que forma tais argumentos visam proteger tais valores.
3.1. Razões contra o reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos
Podemos considerar como sendo três, as grandes ordens de razões que a
jurisprudência tem usado para justificar a negação de efeitos a casamentos poligâmicos:
a harmonia jurídica do Estado de acolhimento, a identidade cultural desse Estado e a
protecção das mulheres de estatuto monogâmico.
3.1.1. A harmonia jurídica do Estado de acolhimento
O mecanismo de o.p. visa salvaguardar a harmonia da ordem jurídica do foro e a
coesão da sociedade em causa52. De facto, a ordem jurídica não pode por um lado
invocar determinados valores e defini-los como essenciais, e por outro reconhecer
48 “The ways of Public Reason – Comparative Constitutional Law and Pragmatics”, in International Journal for the Semiotics of Law, Liverpool, vol. IX, n.26, 1996, p. 175 ss. 49 JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, Trad. de João Sedas Nunes, Editorial Presença, Lisboa, 1996, p. 39. 50 JOHN RAWLS, A Lei dos Povos, Trad. de Luís Castro Gomes, Quarteto Editora, Coimbra, 2000, p. 145. 51 JOHN RAWLS, O Liberalismo Político, cit., p. 227 ss. 52 FREDERIC SUDRE, “Existe t-il un Ordre Public Européen ? “, in AA. VV., Quelle Europe pour les Droits de l’ Homme ?, Paul Tavernier (dir.), Bruylant, Bruxelles, 1996“Existe t-il un Ordre Public Européen ? “, in AA. VV., Quelle Europe pour les Droits de l’ Homme ?, Paul Tavernier (dir.), Bruylant, Bruxelles, 1996, p. 42.
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efeitos a instituições que os põem gravemente em causa. Toda a ordem jurídica
necessita de coerência no que toca aos valores que reconhece no seu seio, sob pena de
se negar a si própria. Este é, sem dúvida, um argumento defensivo da ordem jurídica
interna. Ora, a negação de efeitos ao instituto da poligamia é quase sempre levada a
cabo por se considerar que este instituto, ao não respeitar valores essenciais da ordem
jurídica, se pode traduzir num elemento perturbador desta, levando a perplexidades a
vários níveis.
Este argumento foi prevalentemente tido em conta nos primórdios da construção
jurisprudencial inglesa, alicerçada sobretudo nas dificuldades em compatibilizar as
normas internas com a instituição do casamento poligâmico. As primeiras decisões
sobre a matéria remontam a meados do séc. XIX, em que a poligamia foi encarada
como sendo um assunto para o qual os tribunais ingleses não possuíam competência.
No leading case, Hyde v. Hyde (1866), sobre um pedido de divórcio de um mórmon,
casado apenas com uma mulher, o tribunal declarou que o casamento em causa não
podia ser reconhecido por um tribunal inglês, já que a doutrina dos mórmons
reconhecia e praticava a poligamia. Ora, sendo a lei inglesa exclusivamente adaptada ao
casamento cristão, seria inaplicável a essa situação. Deste leading case derivaram duas
decorrências que marcaram toda a posterior jurisprudência na matéria: por um lado, a
convicção de que o casamento poligâmico não podia ser assimilável à instituição
matrimonial inglesa, e por isso, não podia ser objecto de decisão por parte dos
tribunais53. Por outro, a de que “casamento poligâmico” era uma noção que abrangia
os casamentos potencialmente poligâmicos, i.é., as uniões em que o marido tem o
direito, de acordo com a lei que rege o casamento54, de desposar simultaneamente
várias mulheres, embora apenas tenha desposado uma. Para se considerar um
determinado casamento como poligâmico não era necessário existir uma sequência de
matrimónios, podendo tratar-se apenas de um único, em relação ao qual os seguintes,
se se efectivassem, eram tidos como um simples desenvolvimento55.
Na base da negação de efeitos a casamentos poligâmicos pelos tribunais ingleses
estiveram apenas preocupações de ordem técnica, devidas à inadequação das leis 53 O tribunal estabeleceu claramente que o casamento poligâmico não era um “casamento” nem os cônjuges “marido” e “mulher” para os efeitos do Judicature Act de 1925. Cfr. W. E. BECKETT, “The Recognition of Polygamous Marriages under English Law”, The Law Quarterly Review, London, vol. 48, 1932, p. 341. 54 A lei que rege o casamento era a lex loci celebrationis, independentemente da religião professada pelos cônjuges, embora para efeitos de impedimentos, também a lei pessoal das partes. Cfr. W. E. BECKETT, op. cit., p. 352 ss. 55 CRISTINA CAMPIGLIO, “La Famiglia Islamica nel Diritto Internazionale Privato Italiano”, Rivista di Diritto Internazionale Privato e Processuale, Padova, anno XXXVI, n.1, gennaio-marzo 1999, p. 29.
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internas para regerem situações estranhas àquelas para as quais estavam pensadas.
Considerações relativas à compatibilidade da instituição com a o.p. do foro por
violação de valores fundamentais não foram, pois, tecidas. Não obstante, alguns
autores vêm nesta corrente uma expressão genérica de contrariedade do instituto à o.p.
internacional do foro56.
Uma mudança na orientação inglesa fez-se sentir com o Matrimonial Proceedings Act
de 1972, adoptado após o relatório da Law Commission. A partir de então, um pedido
não pode ser rejeitado pelos tribunais ingleses pela simples razão de que o casamento
foi realizado sob o império de uma lei que autoriza a poligamia.
Apesar de não se poder justificar hoje a posição absolutista dos tribunais ingleses,
há que referir que as dificuldades por estes apontadas são um importante factor a ter
em conta na vexata quaestio. Elas demonstram as perplexidades que o reconhecimento
de efeitos a casamentos poligâmicos pode fazer surgir na nossa ordem jurídica, pela
introdução de uma instituição em muito incompatível com regras e institutos vigentes e
sedimentados. Várias são as incoerências internas que tal reconhecimento provocaria.
Senão, vejamos: desde logo, como conciliar o reconhecimento de efeitos a casamentos
poligâmicos com a previsão, pela maior parte dos sistemas jurídicos europeus, de um
crime de bigamia? A sociedade dificilmente compreenderá que o mesmo
comportamento, se cometido por um nacional do foro seja sancionado penalmente,
mas se cometido por um nacional de estatuto poligâmico possa produzir efeitos no
território. Nesse sentido, refere DEVLIN, que o que justifica verdadeiramente a previsão
do crime de bigamia é a coesão social57, pelo que a permissão de tal comportamento
nuns casos e a sua punição noutros a poderá colocar gravemente em causa. Não
obstante, há que relativizar esta incoerência. Por um lado, há que ter em conta que
apenas as uniões contraídas no território podem gerar a prática de um crime de
bigamia, situação que não se coloca para a questão objecto de estudo do presente
trabalho, respeitante apenas às uniões celebradas validamente no estrangeiro58. Mais
longe vai BÉATRICE BOURDELOIS, que defende que, visando este crime salvaguardar o
56 CRISTINA CAMPIGLIO, “Matrimonio Poligamico e Ripudio nell’Experienza Giuridica dell’Occidente Europeo”, in Rivista di Diritto Internazionale Privato e Processuale, Padova, anno XXVI, n.1, gennaio-marzo 1990, p. 897 57 Apud ROBERT P. GEORGE, Making Men Moral, Clarendon Press, Oxford, 1996, p. 55. 58 Assim, J.J. DAMIÃO DA CUNHA: Não comete o crime de bigamia quem se tenha casado mais que uma vez no estrangeiro, caso a ordem jurídica desse Estado consinta na bigamia; sendo todavia certo que, casando em território nacional, já o cometerá. Cfr. op. cit., p. 604.
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bem jurídico “princípio monogâmico”59, ele apenas se aplicaria às pessoas que estão
submetidas aos princípios fundamentais dessa estrutura familiar, não podendo, por isso
sancionar um indivíduo a quem não se dirijam esses princípios. Assim, a autora
defende que, se um homem de estatuto pessoal poligâmico contrair em França um
segundo casamento, este será por certo nulo, mas a pessoa em causa não cometerá um
crime de bigamia60.
Outro domínio em que se poderão levantar perplexidades é o do regime dos
deveres pessoais dos cônjuges. Em Inglaterra, a Law Comission considerou que as
relações que o marido mantém com cada uma das suas mulheres não podiam ser
consideradas adulterinas em relação às outras. Também os tribunais franceses
consideraram que um marido de estatuto poligâmico não cometia adultério ao casar
segunda vez61. Não obstante, se a primeira mulher tiver estatuto monogâmico,
considerou-se que o marido, ao contrair uma segunda união, violava os seus deveres
conjugais para com esta, não obstante não cometer adultério62. Esta solução não deixa
de levantar perplexidade e demonstra as dificuldades que o reconhecimento de efeitos a
casamentos poligâmicos pode implicar no seio de uma ordem jurídica que não
reconhece a instituição e cujas normas estão orientadas para uma concepção de
casamento enquanto contrato exclusivo entre duas pessoas. Daí que a jurisprudência
francesa tenha muitas reticências no que toca ao reconhecimento de efeitos pessoais a
casamentos poligâmicos, contrariamente ao que se passa em relação aos efeitos
patrimoniais, em que estes argumentos não revestem o mesmo peso.
3.1.2. A identidade cultural do Estado de acolhimento
Para além da harmonia da ordem jurídica estadual, posta em causa pelas
contradições provocadas pelo reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos, a
jurisprudência tem invocado um outro argumento defensivo da ordem interna: a defesa
da identidade cultural do Estado. Esta pode ser ameaçada com a introdução de um
modelo familiar distinto, e mesmo antinómico em relação ao vigente no seu seio, quer
no que toca à condição feminina, quer no que toca às relações entre os cônjuges na
vida matrimonial.
59 A Cour de Cassation definiu-o como crime qui porte atteinte à l’ordre des familles et à la moralité publique. Apud CRISTINA CAMPIGLIO, “Matrimonio Poligamico…”, cit., p. 876. 60 Op. cit., p. 6. 61 Tribunal de Grande Instance de la Seine, 12.11.1965, apud PIERRE MERCIER, op. cit., p. 37. 62 Attendu qu’en privant sa première épouse du bénéfice de ce union, Scialom a volontairement commis envers la dame Krief une injure grave, constituant une violation manifeste et durable des devoirs et obligations résultant du mariage, de nature à rendre intolérable le maintien du lien conjugal. Cfr. op. ult. cit., p. 37.
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Este tem sido um argumento prevalentemente tido em conta no que toca ao
reconhecimento de variados efeitos de direito público.
Nesse sentido, o facto de um indivíduo manter um casamento poligâmico foi
considerado, pelas autoridades e jurisprudência francesa, como demonstrando que o
mesmo não se encontrava assimilado à comunidade francesa, e por isso, constituiu motivo
para se recusar um pedido de aquisição da nacionalidade. Ultimamente, a
jurisprudência francesa começou a alargar essas recusas às situações de casamentos
potencialmente poligâmicos. Outra coisa não o fez o Tribunal Administratif de Paris, em
23.05.199063, que rejeitou tal pedido a uma mulher, única esposa de um homem que
possuía estatuto poligâmico e que não havia optado por conferir carácter monogâmico
ao casamento, como lhe era permitido pela sua lei nacional. Foi a primeira vez que o
direito francês assimilou, à semelhança do que se passava na Inglaterra, um casamento
potencialmente poligâmico a um casamento poligâmico de facto64.
A protecção da identidade cultural do Estado tem sido também invocada em
matéria de imigração, um dos domínios mais polémicos no que toca ao
reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos.
A Alemanha e a França começaram por adoptar posições bastante permissivas. Na
Alemanha, o Verwaltungsgericht65 e o Bundesverwaltungsgericht66 consideraram que a o.p.
não se opunha ao reagrupamento familiar de uma segunda mulher, pois a permanência
no território de uma união poligâmica constituída validamente no estrangeiro e de
acordo com a lei pessoal dos cônjuges, não podia ser considerada em si prejudicial para
a comunidade social alemã. Também a jurisprudência francesa começou por seguir esta
linha de raciocínio. Assim, contrariamente à abordagem literal da Administração, que
havia negado o reagrupamento familiar de uma segunda mulher por considerar que a
lei só se aplicava a um cônjuge, o Conseil d’État defendeu que a lei se devia interpretar
de acordo com o princípio que visava salvaguardar – o direito a levar a cabo uma vida
63 RCDIP, a.1990, tome 79, p. 678 (nota de PAUL LAGARDE). 64 Esta equiparação foi criticada por PAUL LAGARDE na nota à decisão. Refere o autor que a natureza potencialmente poligâmica do casamento passaria a monogâmica pela aquisição da nacionalidade francesa e consequente mudança de estatuto pessoal, pelo que um segundo casamento seria nulo face ao direito francês. De facto, assim decidiu a Cour de Cassation, a propósito de um muçulmano com dupla nacionalidade, v. Ac. de 09.11.1993, in RCDIP, a.1993, tome 83, p. 644-651 (nota de ERIK KERCKOVE). Por outro lado, não podemos deixar de concordar com o autor quando refere que a requerente, esposa única do estrangeiro em causa, fica dependente, no que toca à aquisição da nacionalidade francesa, de uma vontade alheia: a de o marido conferir carácter monogâmico ao casamento. Cfr. op. cit., p. 680 ss. 65 Decisão de 18.07.1974. 66 Decisão de 30.04.1985.
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familiar normal67. Tal direito deveria ser concretizado em relação ao estrangeiro visado,
de acordo com a sua lei pessoal. Assim, se essa lei previa a poligamia, então a poligamia
faria parte da vida familiar normal de que o estrangeiro tinha direito de levar a cabo no
território. Nesse sentido, a coabitação de um polígamo com uma multiplicidade de
esposas não obstava à atribuição de uma autorização de permanência no território à
segunda mulher e respectivos filhos menores68.
Não obstante, um passo atrás veio a ser dado com as leis de 24.08.1993 e de
11.05.1998, que vieram excluir a carta de residente e a autorização de permanência
temporária a título de “vida privada e familiar” ao estrangeiro e cônjuges que vivem em
estado de poligamia, bem como o direito ao reagrupamento familiar de segundos
cônjuges e filhos. Assim, o estrangeiro que viva em França com uma das esposas não
pode invocar esse benefício em proveito de outros cônjuges e filhos69. Se os mesmos
vierem, não obstante, juntar-se a este, o seu visto ser-lhes-á retirado, bem como o do
próprio polígamo70. Confrontado com a possível inconstitucionalidade deste regime,
por violação do direito a levar a cabo uma vida familiar, o Conseil Constitutionnel afastou
essa possibilidade, afirmando agora: les conditions d’une vie familiale normale sont celles qui
prévalent en France, pays d’accueil, lesquelles excluent la polygamie (...) les restrictions apportées par la
loi au regroupement familial des polygames et les sanctions dont celles-ci sont assorties ne sont pas
contraires à la Constitution71. Tratou-se, sem dúvida, de um claro sinal de que a França
pretendia restringir a convivência poligâmica no seu território, em defesa de um
modelo familiar monogâmico.
Em Itália, o único caso respeitante ao reconhecimento de efeitos a casamentos
poligâmicos disse respeito, precisamente, a um pedido de reagrupamento familiar de
uma segunda mulher. A decisão de recusa desse pedido por parte da Administração foi
suspensa pelo tribunal administrativo regional, devido a profili di gravità e irreparabilità
67 O Conseil d’État francês reconheceu o direito de o estrangeiro levar a cabo uma vida familiar normal como um princípio geral de direito (decisão de 09.12.1978, Gisti e outros), do qual decorre o reagrupamento familiar. O Conseil Constitutionnel deu posteriormente a este direito um valor constitucional, retirando-o do art. 10 do Preâmbulo da Constituição de 1946 (Décision n. 93-325 DC, de 13-08-1993, in http://www.conseil-constitutionnel.fr/). 68 Por outro lado, o Conseil d’ État invocou que o reagrupamento familiar era um direito do estrangeiro, a ser concedido salvo se se verificassem as excepções previstas na lei. De entre elas contava-se a contrariedade à o.p., mas esta devia ser entendida como a o.p. de polícia, que em nada se considerava posta em causa com a coabitação de uma família poligâmica no território. Conseil d’État, 11.07.1980, in RCDIP, a. 1981. tome LXX, p. 658 (nota de BISCHOFF). 69Os filhos nascidos de um segundo casamento poderão beneficiar do reagrupamento apenas se a respectiva mãe tiver falecido ou sido inibida do poder paternal. 70 PIERRE MAYER, op. cit., p. 960. 71 Décision n. 93-325 DC, de 13-08-1993, in http://www.conseil-constitutionnel.fr/.
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sotto l’aspetto sociale, economico e familiare72. A decisão final, porém, foi negativa para o
particular, tendo o tribunal considerado ser o reagrupamento inadmissível, por ser
contrário à o.p. e aos bons costumes73. Para tal, invocou que a convivência poligâmica
em solo italiano era contrastante com o modelo familiar monogâmico e com o
princípio constitucional da igualdade dos cônjuges.
Em Itália, pois, contrariamente ao que se passou inicialmente com a jurisprudência
francesa, considerou-se não ser possível conciliar o acolhimento de outras formas de
família com as exigências de o.p. internacional.
Também a Comissão Europeia dos Direitos do Homem teve já oportunidade de se
pronunciar sobre o direito ao reagrupamento de famílias poligâmicas. O primeiro caso,
Alilouch el Abasse. v. The Netherlands74, data de 06.01.1992, e disse respeito a um cidadão
marroquino residente na Holanda com a segunda mulher, que requereu o
reagrupamento de um filho, fruto do primeiro casamento. O segundo caso, Bibi v. The
United Kingdom, data de 29.06.199275, e disse respeito a um pedido de reagrupamento de
uma esposa de um polígamo que já residia no território com outra mulher. Ambos os
pedidos foram rejeitados nos Estados, devido à política de reagrupamento de famílias
poligâmicas, que apenas o autorizava para uma esposa e respectivos filhos. Os
particulares recorreram para os órgãos de controlo da CEDH, alegando não só uma
violação por parte do Estado do art. 8º, por ter havido uma ingerência ilegítima na vida
familiar, como ainda do art. 14º. No que toca a este último, no primeiro caso, o
recorrente alegava a existência de uma discriminação entre os filhos dos vários
casamentos, já que nem todos podiam residir no território. No segundo caso, alegava-
se uma discriminação fundada no sexo, já que se permitia ao homem escolher a mulher
que se podia juntar a ele no país de acolhimento.
A Comissão começou por referir o velho princípio que tem pautado as suas
decisões em matéria de imigração: o de que a CEDH não garante o direito de entrar ou
residir num determinado território. Porém, considerou que existia nestes casos uma
72 TAR Emilia-Romagna, sede du Bologna, sez. I, ord. 10.01.1989, n. 15, apud ANNAMARIA GALOPPINI, “Ricongiungimento...”, cit., p. 745. 73 TAR Emilia-Romagna, sede du Bologna, sez. I, ord. 14.12.1994, n. 926, apud ANNAMARIA GALOPPINI, “Ricongiungimento...”, cit., p. 745. Tal decisão foi consentânea com uma nota do Ministro do Interior, datada de 01.10.1988, que vetava a permissão de permanência “per coesione familiar” a uniões poligâmicas, por contrastar com as normas imperativas de o.p. Cfr. FERRUCCIO PASTORE, “Famiglie Immigrate e Diritti Occidentali: Il Diritto di Famiglia Musulmano in Francia e in Italia”, in Rivista di Diritto Internazionale, Milano, anno 1993, vol. LXXVI, p. 110. 74 Queixa n. 14501/89, in http://www.echr.coe.int/ECHR/. 75 Queixa n. 19628/92, in http://www.echr.coe.int/ECHR/.
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ingerência na vida familiar dos recorrentes76. Tal ingerência seria, contudo, justificada
de acordo com o n.2 do art. 8º, pois, além de estar de acordo com a lei, visava fins
legítimos: no primeiro caso, o bem-estar económico do país, e no segundo, por um
lado, a prevenção de formação de lares poligâmicos, considerados inaceitáveis para a
sociedade inglesa, e por outro, a preservação da cultura cristã monogâmica dominante
no país, o que se inseriria na cláusula de protecção de direitos e liberdades de terceiros
prevista no normativo. A ingerência dos Estados na vida familiar era, pois, legítima.
Não basta, porém, que a ingerência na vida familiar seja legítima, para poder ser
lícita à luz do art. 8º da CEDH. É ainda necessário que tal ingerência seja necessária
numa sociedade democrática, o que convoca a sua análise à luz do princípio da
proporcionalidade. Ora, em ambos os casos, a Comissão considerou que a ingerência
em causa cumpria esta última exigência. Para tal, invocou a já sedimentada ideia de que
os Estados têm uma ampla margem de apreciação no domínio da política de
imigração77, pelo que, por maioria de razão não se podia impor a aceitação de
reagrupamento do famílias poligâmicos, que podem ser consideradas violadoras da o.p.
destes. Por outro lado, nas situações em causa, os existentes laços familiares foram
considerados muito ténues, pelo que as considerações ligadas à sua protecção não
pesariam mais do que as ligadas a uma política de imigração que rejeita a poligamia e
visa a manutenção da identidade cultural do país.
Estas considerações demonstram-nos que a Comissão não visou impor aos
Estados nenhuma orientação vinculativa quanto ao reconhecimento do reagrupamento
de famílias poligâmicas, mas sim reconhecer-lhes liberdade de decisão. Porém, não
podemos deixar de notar que foi determinante, para se considerar tal margem de
apreciação, o facto de se considerar que os laços familiares em presença não eram
suficientemente fortes para prevalecerem face aos interesses dos Estados. Talvez se
venha a decidir em sentido diverso quando o forem, o que poderá fazer com que a
margem de apreciação dos Estados diminua e, por isso, uma ingerência deixe de poder
ser justificada como necessária nos termos do art. 8º, n.2 da CEDH.
No que toca à discriminação entre vários filhos, a Comissão admitiu que as
políticas de imigração podiam criar diferenças de tratamento em razão do nascimento,
mas considerou ser essa uma diferenciação justificável por prosseguir um fim legítimo,
já que, sendo o Estado soberano no que toca a limitar a entrada de imigrantes no seu 76 De sublinhar, pois, que estes laços foram considerados como vida familiar por parte da Comissão. 77 Cfr. inter alia, Ac. de 28-05-1985, Abdulaziz, Cabales Y Balkandi c. Reino Unido, queixas n. 9214/80; 9473/81; 9474/81, in http://www.echr.coe.int/ECHR/, §67, Ac. de 19-02-1996, Gül c. Suíça, queixa n. 53/1995/559/645, in http://www.echr.coe.int/ECHR/, §38.
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território, isso podia implicar ele ter o poder de dar prioridade a determinados
membros da família. No que diz respeito à discriminação entre as várias mulheres, a
Comissão considerou tratar-se de uma decorrência da própria prática da poligamia e
não das decisões do Estado de acolhimento.
Com uma orientação restritiva no que toca à aceitação do reagrupamento de
famílias poligâmicas vai também a política da União Europeia, como se denota na
recente Directiva relativa ao direito ao reagrupamento familiar78.
3.1.3. A protecção de mulheres de estatuto monogâmico
Algumas decisões da jurisprudência francesa que negaram efeitos a casamentos
poligâmicos visaram, por sua vez, a defesa de mulheres de estatuto monogâmico,
protegendo-as da possibilidade de se envolverem numa união poligâmica. Assim, não
obstante os efeitos que se tem reconhecido noutros casos, defendeu-se que quando
está em causa uma cidadã francesa, mulher de um polígamo, o reconhecimento de
efeitos a um segundo casamento pode violar a o.p., pelo que nenhum efeito lhe deve
ser atribuído79.
Alguns autores criticam esta jurisprudência, referindo que o conceito de o.p. não
tem por função servir os interesses dos nacionais do país. Defendem estar em causa,
nesses casos, como que uma o.p. do estatuto pessoal dos franceses80. Nós não consideramos,
porém, que se trate aqui da uma o.p. nacionalista. O que se visa é proteger uma primeira
mulher de estatuto monogâmico, permitindo-lhe beneficiar dos princípios
fundamentais que regem o seu estatuto pessoal, entre eles o princípio monogâmico. De
facto, seria difícil compreender que uma mulher tivesse de partilhar o mesmo marido
com outra esposa, quando a sua lei pessoal lhe impõe o dever conjugal de fidelidade…
Nestes casos, o conflito de civilizações leva a contradições, não só a nível do
ordenamento jurídico interno, mas no seio da própria família. Para evitar estas
dificuldades, a jurisprudência inglesa proibiu durante vários anos a celebração de
78 Directiva 2003/86/CE do Conselho, de 22 de Setembro de 2003, art. 4, n.º4: “Em caso de casamento poligâmico, se o requerente do reagrupamento já tiver um cônjuge que com ele viva no território de um Estado-Membro, o Estado-Membro em causa não autorizará o reagrupamento familiar de outro cônjuge”. Os Estados-Membros podem, porém, autorizar o reagrupamento dos filhos menores desse cônjuge à guarda e cargo do requerente. 79 Ac. Baaziz, da Cour de Cassation, de 17.02.1982, in RCDIP, a. 1983, tome LXXII, p. 275, e o Ac. da Cour de Cassation de 06.07.1988, in RCDIP, a. 1989. tome 78, p. 71 (nota de IVES LEQUETTE). Referiu este último: la conception française de l’ordre public international s’oppose à ce que le mariage polygamique contracté à l’étranger par celui qui este encore l’époux d’une Française produise ses efets à l’encontre de celle-ci. 80 PIERRE MAYER, op. cit., p. 139.
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casamentos entre inglesas e homens de estatuto poligâmico81, solução que não se pode
adoptar por ser obviamente excessiva, discriminatória e violadora do princípio
constitucional da liberdade de constituição de família.
Por outro lado, na base do raciocínio usado pelos tribunais franceses está a
convicção de que a o.p. intervém de forma mais exigente quando os laços da situação
com a ordem jurídica do foro são mais estreitos, por se colocar em causa, de forma
mais premente, a coesão desta última. É a aplicação da doutrina alemã da
Inlandsbeziehung82, nos termos da qual, quanto mais forte for a ligação entre uma
situação e a ordem jurídica do foro, mais exigente deverá ser a intervenção da o.p.
internacional. A nacionalidade de uma das mulheres representa, pois, nestes casos, o
nexo forte entre a situação e a ordem jurídica que exige uma intervenção mais exigente
da o.p.83.
3.2. Razões a favor do reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos
Tendo em consideração apenas as razões atrás expostas, forçados seríamos a
concluir que a o.p. deveria intervir, excluindo sempre a possibilidade de se reconhecer
quaisquer efeitos a casamentos poligâmicos. Não obstante, existem outras razões que
clamam, em sentido contrário, para um reconhecimento de determinados efeitos a
essas uniões.
3.2.1. O respeito pela identidade cultural das pessoas de estatuto poligâmico
Um dos valores que pode reclamar para uma maior tolerância das nossas ordens
jurídicas para o reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos é o respeito pela
identidade cultural e religiosa dos muçulmanos residentes no território.
Se em tempos o factor integração era favorecido, hoje prevalece a protecção da
identidade cultural da pessoa84. O direito internacional reconhece em vários textos a
necessidade de protecção das minorias, no sentido de que o Estado de acolhimento
81 YVES LEQUETTE, nota à decisão da Cour d’appel de Paris de 08.11.1983, cit., p. 482. 82 PAUL LAGARDE“La Théorie de L’Ordre Public International face à la Polygamie et à la Rèpudiation», in AA. VV., Nouveaux Itinéraires en Droit- Hommage a François Rigaux, Bruylant, Bruxelles, 1993, p. 271. 83 Nessa ordem de ideias, JEAN DÉPREZ defende que se devem negar também efeitos às uniões entre estrangeiros constituídas no estrangeiro, mas em que estes estabeleceram laços com o país de acolhimento. Cfr. “Droit International Privé...”, cit., p. 266. 84 ERIK JAYME, “Diritto di Famiglia: Società Multiculturale e Nuovi Sviluppi del Diritto Internazionale Privato”, in Rivista di Diritto Internazionale Privato e Processuale, Padova, anno XXIX, n.2, apr.-guin. 1993, p. 297.
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lhes deve garantir uma certa autonomia cultural85. Ora, o que se tem em vista com a
protecção da identidade cultural é a protecção da própria identidade pessoal. Trata-se,
por isso, de um valor que tem de ter um espaço no debate que travamos, em especial
porque está em causa um dos núcleos em que ele mais se manifesta: a vida familiar86.
Defende parte da doutrina francesa que a diferença de culturas não deveria levar a
um agravamento da intervenção da o.p., mas sim a uma moderação da mesma, já que o
fosso cultural permitiria a afastar o choque da opinião pública em relação a esta
instituição, sendo possível uma coexistência cultural discreta e separada entre os
modelos de família poligâmico e monogâmico 87.
Este argumento tem, a suportá-lo, duas experiências jurídicas. A primeira diz
respeito ao contexto colonial, onde se deram as primeiras confrontações com a
instituição. Via de regra, estabelecia-se uma separação entre o direito aplicável às
colónias e seus nacionais e o direito aplicável aos nacionais do país colonizador88. A
uma dualidade de organização judiciária correspondia, portanto, uma dualidade de
estatutos89. Alguns autores vêm neste facto um precedente que incentiva o
reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos no actual conflito de leis90.
Porém, já nessa época, alguns costumes foram considerados pelos juízes como
contrários à o.p., o que demonstra que a tolerância em relação aos institutos
estrangeiros não era cega e se fazia no respeito dos princípios fundamentais vigentes na
metrópole.
Também o direito muçulmano, por sua vez, oferece um curioso ponto de
referência. É certo que aquilo que é considerado como violador da o.p. dos países
ocidentais, constitui, para alguns países muçulmanos, a sua própria o.p91. Não obstante,
85 Este é um valor que começa também a ser já protegido no seio da União Europeia. O preâmbulo da convenção-quadro de 1995, sobre protecção de minorias nacionais consagrava o valor do pluralismo, referindo que uma sociedade pluralista e verdadeiramente democrática devia não apenas respeitar a identidade étnica, cultural, linguística e religiosa de todas as pessoas pertencentes a uma minoria nacional, mas também criar as condições que permitissem exprimir, preservar e desenvolver essa identidade. 86 Assim também a doutrina espanhola. Cfr. JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ ROZAS e SIXTO SÁNCHEZ LORENZO, op. cit., p. 37. 87 JEAN DEPREZ, “Droit International Privé... », cit., p. 279. 88 Refere PIERRE MERCIER, que os portugueses sujeitaram os povos asiáticos aos seus próprios direitos, e também os holandeses aplicavam o direito holandês apenas aos holandeses. Cfr. op. cit., p. 6. 89 Em França, a manutenção da dualidade de estatutos foi um valor protegido a nível constitucional. Referia a Constituição francesa de 1946, art. 82º: les citoyens qui n’ont pas le staut civil français conservent un statut personnel tant qu’ils n’y ont pás renoncé. Cfr. BEATRICE BOURDELOIS, op. cit., p. 12. 90 BEATRICE BOURDELOIS, op. cit., p. 13. 91 Neste seguimento, fala-se de uma o.p. islâmica, que é constituída por aquele conjunto de normas que são regras essenciais para o Islão, não em função do seu conteúdo, mas sim da sua fonte (the closer the rule is to its divine source, the more the rule is considered right and just). Visa-se com este conceito proteger regras substantivas do Islão, fundadas nos textos que possuem uma ampla autoridade. A poligamia, prevista no Corão, é uma dessas regras. Assim, uma lei que proíba um muçulmano de contrair um segundo
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tal mecanismo é muito menos activo no direito muçulmano em relação às instituições
ocidentais que aí se desconhecem92. De facto, a o.p. muçulmana intervém
atenuadamente quando nenhum muçulmano está em causa. O juiz muçulmano, à
partida, não impõe as suas concepções aos não muçulmanos, pois o seu direito não tem
por vocação reger relações destes93. O estrangeiro estabelecido no Islão é
compreendido como pertencendo a um mundo distinto, pelo que a sociedade não se
sente directamente tocada pelo tratamento que lhe é reservado. Neste caso, pois, a
diferença cultural não tem como efeito agravar a intervenção da o.p., funcionando
antes, em sentido contrário, como um factor de moderação.
Não obstante, o sistema islâmico fecha-se às leis estrangeiras quando está em causa
uma relação familiar envolvendo uma pessoa de estatuto muçulmano. Esta regra deriva
de um princípio clássico, de acordo com o qual uma relação familiar com um
muçulmano não pode ser regida por outra lei que não a do Islão. A o.p. do Islão, pois,
tem como objectivo a protecção da comunidade muçulmana94. Fora desses casos, o
sistema islâmico deixa, em princípio, o caminho livre para que as leis estrangeiras
possam produzir efeitos.
JEAN DÉPREZ recomenda às sociedades ocidentais o exemplo dado pelo direito
muçulmano95. O autor aplaude a concepção de direito limitado que este perfilha, ao
contrário das ordens jurídicas laicas, que, no seu entender, pretenderam ter edificado
um modelo universal. Assim, numa espécie de princípio da reciprocidade, seríamos
chamados a tratar o direito muçulmano com a mesma tolerância com que este trata o
direito ocidental. Não podemos deixar de referir desde já a nossa discordância com
estes argumentos. Desde logo, as concepções do direito muçulmano, ao invés de se
fundamentarem na tolerância, baseiam-se, sim em considerações discriminatórias, pois
encaram a aplicação das suas normas como um privilégio de que só os muçulmanos
são merecedores, deixando os estrangeiros no espaço do não direito. Ora, esta demissão
em relação aos residentes de outra cultura não é a adequada para um Estado de direito,
casamento pode ser considerada em violação da o.p islâmica. Cfr. MAURITS S. BERGER, “Conflicts Law and Public Policy in Egyptian Family Law: Islamic Law through the backdoor”, The American Journal of Comparative Law, Berkeley, v. 50, n.3 (summer 2002), p. 566 e 574. 92 Assim, a igualdade dos cônjuges ou a eliminação da qualidade de chefe de família não ofendem a o.p. do Islão. Já as relações fora do casamento podem, de facto, oferecer ao direito muçulmano um vasto campo de aplicação. Cfr. JEAN DEPREZ, “Droit International Privé … », cit., p. 92 93 Refere ilustrativamente JEAN DEPREZ : Etendre le droit musulman à des non-musulmans, même à travers l’appel occasionnel à l’ordre public, ce serait le faire sortir de son rôle, l’appliquer à d’autres que ses destinataires naturels. Cfr. « Droit International Privé…. », cit., p. 84. 94 MAURITZ S. BERGER, op. cit., p. 569. Uma das suas particularidades é erigir como factor de conexão a religião, independentemente da nacionalidade dos visados. 95 Droit International Privé…., cit., p. 274.
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que pretende que todas as pessoas vivam no seu solo em respeito dos princípios que
tem como fundamentais. Debaixo do tecto de uma ordem de direito, todos os cidadãos
merecem o mesmo tratamento, de acordo com os princípios que se consideram
basilares, pelo que, também face a estrangeiros se devem aplicar tais princípios. De
facto, não é por determinados comportamentos decorrerem nos bairros de culturas
distintas que deverá haver uma demissão dos valores que se consideram essenciais para
a nossa ordem jurídica. A nossa concepção vai de encontro, de resto, ao entendimento
de grande parte da doutrina no sentido de que quando estejam em causa fundamentos
essenciais a toda a comunidade humana, a o.p. do foro deverá intervir, mesmo que não
tenha grande ligação com a situação96. FERRER CORREIA conta entre esses casos a
instituição do casamento poligâmico97.
Por outro lado, não devemos sobrevalorizar o argumento da identidade cultural das
pessoas de estatuto poligâmico como baluarte para o reconhecimento de efeitos a tais
uniões no nosso solo. Se não há dúvida que a tolerância e o respeito pela identidade
cultural são valores fundamentais a ter em conta, há que atender também à relevância
que a instituição em causa reveste no seio da civilização islâmica. Ora, alguns autores
defendem que a poligamia não é uma regra essencial para essa civilização, não sendo
necessária para um recto comportamento muçulmano, mas apenas uma tolerância do
Corão, e não uma das suas prescrições ou imposições98. Se assim for, por um lado, o
princípio da identidade cultural não imporá o respeito desta prática. Por outro lado, e
pelos mesmos motivos, a reivindicação do reconhecimento de tais uniões não se
poderá fundar no princípio da liberdade religiosa99.
A tudo isto acresce o facto de esta instituição ser hoje amplamente discutida pela
doutrina muçulmana100. Neste sentido, pergunta YVES LEQUETTE se será oportuno
96 Entre nós, FERRER CORREIA, Lições ..., cit., p. 413 e BAPTISTA MACHADO, Lições… cit., p. 264. Em Espanha, JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ ROZAS e SIXTO SÁNCHEZ LORENZO, op. cit., p. 217, em França, YVON LOUSSOUARN e PIERRE BOUREL, op. cit., p. 311. 97 Lições..., cit., p. 413. 98 PAUL LAGARDE, “La Théorie... », cit., p. 282. 99 FERRUCIO PASTORE, op. cit., p. 115. Por outro lado, lembremo-nos de que um dos limites à liberdade religiosa mais invocados e sublinhados é, precisamente, o da o.p.. Assim, PAULO PULIDO ADRAGÃO, A Liberdade Religiosa e o Estado, Almedina, Coimbra, 2002, p. 411 ss. 100 De facto, existe uma profunda divergência no que toca à interpretação de dois versículos do Corão respeitantes à poligamia. Refere o primeiro (Corão 4;3): Et si vous craignez de n’être pás juste envers les orphelins… Épousez deux, trois ou quatre parmi les femmes qui vous plaisent, mais si vous craingnez de n´ être pas juste avec celles-ci, alors une seule, ou des esclaves que vous possédez. Cela afin de ne pas faire d’injustice. Refere, por sua vez, o versículo 4; 129: Vous ne pouvez jamais être équitable entre vos femmmes, même si vous en êtes soucieux. Alguma doutrina interpreta esta última disposição como uma proibição da poligamia pelo próprio Corão, que considerava, na primeira, uma condição indispensável para a mesma ser-se equitativo entre as várias mulheres. Finalmente, alguma doutrina relembra que a poligamia era compreendida pelo Corão como uma solução de excepção. Para mais desenvolvimentos sobre este debate, v. IMEN GALLALA, « Homme,
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acolher nas nossas ordens jurídicas uma instituição estrangeira num momento em que,
nos seus países de origem, se desenrola um debate sobre a sua legitimidade101.
3.2.2. A paridade de tratamento das leis
O princípio da paridade reclama que as leis sejam tratadas todas com a mesma
dignidade. Este é um dos fundamentos gerais do DIP, que deve colocar os diferentes
sistemas jurídicos em pé de igualdade. Refere FERRER CORREIA: os Estados formam uma
comunidade, e o reconhecimento e o respeito que mutuamente se devem tributar bem poderão abranger
as respectivas instituições civis (…) cada povo sabe que há mais coisas justas sobre a terra, além das
que cabem na sua filosofia102. Assim, este argumento reclama por um tratamento equitativo
entre as várias soluções legais, pelo que nenhuma se poderá considerar como
plasmando as únicas soluções justas. Ele pugna, pois, por tolerância face a instituições
provenientes de civilizações diferentes e desconhecidas do Estado do foro.
3.2.3. O respeito pelos direitos adquiridos e a continuidade das relações
privadas
O respeito pelos direitos adquiridos é um dos princípios mais importantes a ter em
conta na vexata quaestio. As partes de um casamento poligâmico celebrado no
estrangeiro fundaram a sua relação sob o império de uma lei que a considerou válida, e
geraram assim, legitimamente, expectativas de que a sua relação seria tratada
permanentemente como tal.
O respeito das situações jurídicas preexistentes ou dos direitos adquiridos é um dos
pilares do direito de conflitos, a par da ideia de limite imanente a qualquer ordem
jurídica103. Tal como o direito transitório postula não só que a lei nova não se aplica a
factos passados, mas também que devem ser reconhecidos efeitos às situações
constituídas sob a égide da lei antiga, também o DIP postula não só que a lei do foro
não se deve aplicar a factos totalmente desligados do seu campo de aplicação, mas
também que se deve reconhecer que esses factos são juridicamente modelados pelo
ordenamento que com eles se acha em contacto, devendo, pois, ser tratados pelos
Nature et Droit dans la Philosophie Juridique Musulmane », in AA. VV., Direito Natural, Religiões e Culturas, Paulo Ferreira da Cunha (org.), Coimbra Editora, Porto, 2004, p. 112 ss. 101 Nota ao Ac. de 08.11.1983 da Cour d’appel de Paris, cit., p. 483. 102 Lições…, cit., p. 17. 103 Isto, contrariamente ao que afirmava KELSEN, no sentido de que, sendo a priori ilimitados os momentos espaço e tempo da norma, esta valia em toda a parte e sempre, na medida em que ela própria não estabelecesse limitações espaciais ou temporais. Apud BAPTISTA MACHADO, Lições…, cit., p. 6.
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outros como factos já valorados104. Este princípio é justificado por uma exigência
profunda de justiça, que reclama o respeito pelas expectativas das partes105.
Ora, este valor reclama uma protecção acrescida na questão em presença, já que o
direito adquirido em causa é um direito fundamental – o direito à família. O que os
estrangeiros reclamam neste caso é que a nova ordem jurídica respeite a comunidade
afectiva que eles criaram. É certo que se trata de um modelo familiar distinto do
reconhecido entre nós, mas, na perspectiva dos indivíduos em questão, é a sua família, a
família na qual fundaram toda uma vida de comunidade. Esses particulares acreditam-
se membros da mesma família, e tal crença deve ser tida em conta, já que está em causa
um dos direitos humanos mais básicos. O Bundesverwaltungsgericht referiu, nesta ordem
de ideias, que o art. 6 da Lei Fundamental de Bona, se não tutelava em si o matrimónio
poligâmico, tutelava porém a família em todas as suas formas106. Também a
jurisprudência francesa começou por seguir essa linha de raciocínio. Assim, como se
viu, o Conseil d’État defendeu que o direito a levar a cabo uma vida familiar normal devia ser
perspectivado através do estrangeiro visado, podendo, por isso, a poligamia fazer parte
dele107. Por outro lado, exceptuando as matérias de imigração, aceitou-se sempre, ao
contrário da jurisprudência inglesa, alargar as categorias jurídicas do foro de forma a
poderem abranger a instituição do casamento poligâmico, e a noção de “cônjuge” de
forma a abranger uma segunda e posteriores mulheres de um polígamo. Para tal, teve-
se em conta não a estrutura da instituição poligâmica, mas sim o facto de as funções
sociais desempenhadas por esta serem em tudo semelhantes às da instituição
matrimonial vigente no país.
A estabilidade e continuidade das relações privadas é outro interesse merecedor de
protecção, intimamente ligado ao respeito pelos direitos adquiridos, e aos valores da
segurança e certeza jurídicas108. Este interesse visa proteger não só as partes do
104 Cfr. BAPTISTA MACHADO, Âmbito de Eficácia e Âmbito de Competência das Leis, Almedina, Coimbra, 1998, p. 16. 105 Alguns autores fundam o princípio do respeito pelos direitos adquiridos nos textos que proclamam a equiparação do estrangeiro ao nacional e lhe reconhecem personalidade, base do respeito pelos direitos adquiridos (HAROLDO VALLADÃO, apud RUI MOURA RAMOS, “Dos Direitos Adquiridos em Direito Internacional Privado”, in Das Relações Privadas Internacionais – Estudos de Direito Internacional Privado, Coimbra Editora, 1995, p. 21). 106 Decisão de 30.04.1985. Apud CRISTINA CAMPIGLIO, “Matrimonio Poligâmico…”, cit., p. 881. 107 É certo que, mais tarde, na sequência das analisadas políticas restritivas de imigração, o Conseil Constitutionnel (13.08.1993) defendeu que as condições de uma vida familiar normal eram as que prevaleciam em França, país de acolhimento, que excluíam a poligamia. Não obstante, tal raciocínio dizia apenas respeito às questões relativas à imigração, não representando uma definição geral de família no interior da ordem jurídica francesa. 108 Para FERRER CORREIA, estes são os valores primordiais do DIP. Cfr. A Codificação…, cit.,, p. 109.
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casamento, mas também terceiros109. Ora, tal estabilidade é ainda mais premente
quando se está em presença de matérias de estado da pessoa. Nesse sentido, para rever
as posições iniciais da jurisprudência, a Law Comission inglesa baseou-se precisamente
no argumento de que não seria desejável que as mesmas pessoas fossem consideradas
como casadas para uns efeitos e não casadas para outros, pelo que as relações
matrimoniais criadas no estrangeiro deveriam ser reconhecidas em Inglaterra, desde
que a isso não se opusesse a o.p.
Por sua vez, a jurisprudência francesa teve como prevalente nas suas decisões o
princípio da protecção dos direitos adquiridos, o que lhe permitiu chegar a soluções
bastante favoráveis ao reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos. Para a
salvaguarda deste princípio, criou a teoria do “efeito atenuado da ordem pública”. Esta
teoria parte da consideração de que a excepção de o.p. pode intervir em dois estados da
vida de uma relação jurídica: logo no momento do seu nascimento, ou apenas no
momento do seu reconhecimento, após esta ter sido validamente constituída no
estrangeiro. Ora, este mecanismo reveste uma intensidade menor no segundo caso110.
Nesta ordem de ideias, o direito francês opõe-se de forma absoluta à constituição
de um casamento poligâmico em França111, mas pode aceitar o reconhecimento de
efeitos a um casamento validamente celebrado no estrangeiro. Esta teoria abriu, pois, a
possibilidade do reconhecimento de efeitos a uniões poligâmicas, desde que tenham
sido constituídas no estrangeiro e o tenham sido validamente, i.é., sob a égide de uma
ordem jurídica que autorize tal união e seja eleita pela regra de conflitos como a
competente112.
Deve-se a PILLET o mérito de ter criado as bases desta doutrina. O autor defendia:
il sera fort possible qu’un acte, qui en lui-même serait contraire à l’ordre public local, soit sanctionné
par lui dans telle ou telle de ses conséquences, si toutefois cette conséquence est en elle-même compatible
avec ledit ordre public. E, nessa sequência : Il n’est pas douteux que les mariages polygamiques sont
contraires à notre ordre public. Est-ce à dire qu’un juge français doive refuser systématiquement toute 109 Como refere BAPTISTA MACHADO, constituindo as situações jurídicas muitas vezes entidades orgânicas duradouras, é preciso velar pela conservação, continuidade e unidade das mesmas situações jurídicas, pois doutro modo os próprios quadros de experiência jurídica seriam perturbados, originando-se com isso uma desorientação geral. Cfr. Âmbito de Eficácia…, cit., p. 23. Alertando para um perigo de violação deste valor com o recurso excessivo à o.p., v. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, As normas de aplicação imediata…, cit., p. 224. 110 Esta teoria foi consagrada no Ac. Rivière (Cour de Cassation, 17.04.1953, in RCDIP, a. 1953. Tome XLII, p. 412: la réaction à l’encontre d’une disposition d’ordre public n’est pas la même suivant qu’elle met obstacle à l’acquisition d’un droit en France où suivant qu’il s’agit de laisser se produire en France les effets d’un droit acquis, sans fraude, à l’étranger et en conformité de la loi ayant compétence en vertu du droit international privé français). 111 BERNARD AUDIT, op. cit., p. 527. 112 Cour de Cassation (Ch. Social), Ac. de 01.03.1973, in RCDIP, a. 1975, tome 64, p. 59 (nota de P. GRAULICH).
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sanction à un semblable mariage contracté valablement à l’étranger ? Nous ne le pensons pas. Tout
dépendra ici de l’objet du proces113.
Porém, não é suficiente afirmar que se celebrou validamente um casamento no
estrangeiro para daí se retirar a admissibilidade de todo e qualquer efeito desse
casamento. De facto, o princípio do respeito pelos direitos adquiridos não é absoluto.
Desde sempre se reconheceu como um limite ao mesmo a defesa da sociedade em que
esses direitos se visam inserir114. Há que perguntar, pois da conformidade com a o.p.,
não do casamento poligâmico em si, mas sim do efeito que esse casamento pretende
produzir no ordenamento jurídico. Desenrolando-se tais efeitos em solo nacional, eles
trazem o risco de violar as concepções fundamentais do foro. Assim, no momento de
seleccionar os efeitos que se podem reconhecer, a o.p. intervém em toda a sua
potência, para examinar a compatibilidade de cada um deles com os princípios que visa
salvaguardar. Um primeiro controlo mais atenuado é, pois, feito sob reserva de um
controlo mais rígido in concreto do efeito que a relação jurídica constituída visa
produzir115.
Para seleccionar os efeitos que, em concreto, os casamentos poligâmicos podem
produzir no país, a jurisprudência francesa tem vindo a defender que a intervenção da
o.p. depende da perturbação ou impacto que estes podem implicar na ordem jurídica
do foro, de encontro à ideia de que os princípios fundamentais se encontram na
consciência social vigente. Tal perturbação tem sido averiguada com base no choque
para a opinião pública que resulta do reconhecimento desses efeitos. Nesse sentido,
referiu a Cour de Cassation: La définition de l’ordre public national dépend dans une large mesure de
l’opinion qui prévaut à chaque moment en France116.
Podemos encontrar um exemplo desta abordagem nas reticências da jurisprudência
francesa em admitir o direito de várias esposas de um polígamo poderem beneficiar de
prestações sociais. A Cour de Cassation decidiu que um muçulmano não podia reivindicar
o benefício de pensão de doença para uma segunda mulher, por a primeira mulher já
113 Apud P. GRAULICH, op. cit., p. 59. Os fundamentos invocados por PILLET para defender o efeito atenuado da o.p., eram, porém, baseados numa diferente concepção deste instituto, de acordo com a qual ele se interessaria por tudo o que se passasse no território francês, sendo completamente desinteressado do resto. 114 Relembrando esse limite, RUI MOURA RAMOS, “Dos Direitos Adquiridos…”, p. 26. 115 A expressão « efeito atenuado » é criticada por parte da doutrina, que defende que, nos casos em presença, a o.p. não se limita a intervir menos, mas pura e simplesmente é totalmente descartada. Cfr. TITO BALLARINO, op. cit., p. 307 e PIERRE MAYER, op. cit., p. 138. Ora, como vemos, tal crítica não tem sentido, pois no que toca ao reconhecimento de efeitos, o mecanismo de o.p. desempenha um papel determinante. 116 Ac. Sirey, de 1945. Apud FREDERIC SUDRE, op. cit., p. 41.
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ser beneficiária de uma pensão similar117. Apenas uma mulher - aquela que o requeresse
em primeiro lugar – teria, pois, esse direito118. Na base destas reticências estão não só
considerações ligadas à saúde financeira do Estado, mas também preocupações com a
reacção por parte da opinião pública. De facto, a multiplicação de beneficiários da
segurança social poderia chocar a mesma, sempre pronta a denunciar a existência de
demasiados imigrantes, e que estaria atenta no que toca a uma subida das cargas
financeiras do país.
Mais tarde, no ano de 1990, a Cour de Cassation veio reconhecer o direito de uma
segunda esposa adquirir a qualidade de beneficiária da segurança social do marido,
mesmo que anteriormente uma primeira mulher tivesse tido o mesmo benefício119.
Não obstante, esta decisão teve como factor determinante o regresso da primeira
mulher ao país de origem. Assim, também não consagra a coexistência de dois direitos,
não se demarcando da jurisprudência tímida já existente na matéria.
A jurisprudência francesa no que toca a este aspecto contrasta claramente com a
abertura existente quando se tratam de efeitos meramente civis ou familiares dos
casamentos, que, por serem ignorados do grande público, deixam indiferentes a
opinião pública. Isto levou alguns autores a referir que no domínio das prestações de
segurança social existe uma das raras aplicações da o.p. pelos tribunais120. Não
obstante, não podemos deixar de referir que se trata de uma o.p. já muito distante da
defesa de valores essenciais do foro.
3.2.4. A protecção das mulheres e filhos dos casamentos poligâmicos
Finalmente, várias das soluções a que a jurisprudência foi chegando visam a
protecção das mulheres e filhos dos casamentos poligâmicos, acreditando que a
negação de qualquer efeito a tais uniões se pode reverter em seu desfavor.
A jurisprudência inglesa assim o demonstrou. De facto, não obstante declararem-se
inicialmente incompetentes para este assunto, os tribunais ingleses consideraram que
isso não obstava à possibilidade de, em abstracto, ser possível o reconhecimento de 117 Ac. de 01.03.1973, Cour de Cassation (Ch. Social), in RCDIP, a. 1975, tome 64, p. 59 (nota de P. GRAULICH). 118 Esta decisão foi criticada pela doutrina. Por um lado, P. GRAULICH considera que haveria possibilidade de conceder esse direito à segunda mulher, já que a lei francesa permite que uma segunda mulher de um divorciado tenha direito a essas mesmas prestações, mesmo que a primeira ex-mulher já o tenha (cfr. op. cit., p. 619). Por sua vez, YVES LEQUETTE refere que esta decisão vai contra a evolução do direito social, que tende a não subordinar o benefício das prestações à legitimidade das relações, mas sim ao facto de determinadas pessoas viverem a cargo de outras (cfr. nota ao Ac. de 08.11.1983 da Cour d’Appel de Paris, p. 479). 119 Ac. de 08.03.1990, in RCDIP, a.1990, tome 80, p. 706 (nota de JEAN DEPREZ). 120 JEAN DEPREZ, “Droit International Privé... », cit., p. 164.
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efeitos a casamentos poligâmicos. Nesse seguimento, a doutrina inglesa defendia a
possibilidade de reconhecimento de efeitos a nível de imigração, de sucessões e de
legitimidade dos filhos. Claro está, estes efeitos só poderiam ser reconhecidos fora dos
tribunais. Este falso equilíbrio entre a possibilidade de reconhecimento de efeitos a
casamentos poligâmicos e a incompetência dos tribunais ingleses levou a várias
soluções incoerentes na prática. Exemplos disso foram os arestos Lim v. Lim (1948) e
Sowa v. Sowa (1961). Em ambos, a mulher requeria uma pensão de alimentos, e em
ambos tal pedido foi negado, devido ao precedente da incompetência dos tribunais. O
juiz COADY, a propósito do primeiro caso, que tratava de um casamento apenas
potencialmente poligâmico, demonstra essa incoerência: The implications arising from
refusal to recognise the plaintiff’s status for the purpose in question are so many and so repellent to
one’s sense of justice that it is with regret that I come to the conclusion wich I am on the authorities as I
read them forced to arrive at121. Claramente o juiz chegou à conclusão de que a negação de
qualquer efeito a casamentos poligâmicos prejudicava as mulheres deste tipo de uniões,
o que era tanto mais chocante quando em causa estava um direito basilar para
sobrevivência como o direito a alimentos.
Foi esse o direito primeiramente reconhecido em França, pelo Ac. Chemouni122, em
que a Cour de Cassation condenou um marido polígamo a prestar alimentos a uma
segunda esposa deixada ao abandono. Usando o seu raciocínio de “efeito a efeito”, o
tribunal chegou à conclusão que o direito a alimentos em nada violava a o.p. do foro,
tratando-se, sim de uma elementar obrigação de justiça. Como refere JAMBU-MERLIN,
na sua nota ao Ac.: en quoi pourrait-on être choqué par le fait qu’un individu va être obligé
d’accomplir un devoir d’humanité?123 De facto, os Tribunais franceses sempre consideraram
que o direito a alimentos nunca poderia violar a o.p. francesa, por ser, até pelo
contrário, um direito humano, comum a todas as nações civilizadas124.
Outro efeito de casamentos poligâmicos reconhecido por visar a protecção das
várias mulheres foi o de indemnização por morte do marido. De acordo com critérios
de justiça, esse direito deve ser reconhecido às várias co-esposas, já que o dano é
121 Citado por PIERRE MERCIER, op. cit., p. 54. 122 Cour de Cassation, 28.01.1958, in RCDIP, a. 1958, Tome LXX, p. 110-116 (nota de JAMBU-MERLIN). 123 Op. cit., p. 114. 124 É óbvio que a pluralidade de obrigações de alimentos cria uma situação que não é prevista pela lei interna. A doutrina propõe uma cumulação da obrigação de prestar alimentos às várias esposas, e não uma repartição entre elas (IBRAHIM FADLALLAH, nota ao Ac. de 17.06.1972, Tribunal de Grande Instance de Paris, in RCDIP, a. 1975, tome 64, p. 71). De facto, outra coisa não faz o juiz quando atribui várias pensões de alimentos a ex-cônjuges sucessivos.
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idêntico125. A jurisprudência belga teve ocasião de se pronunciar sobre esta questão,
reconhecendo a existência de um direito de indemnização em relação a duas viúvas de
um homem polígamo vítima mortal de um acidente rodoviário126.
No que toca ao direito a suceder, inicialmente a jurisprudência francesa começou
por considerar contrária à o.p. a sucessão de uma segunda mulher em concurso com a
primeira na herança do de cujus polígamo127. Para tal invocou: son caractère choquant au
regard des moers françaises et de la législation française, laquelle sur le plain successoral définit les
droits du conjoint survivant, ce conjoint ne pouvant être qu’unique128. Tal decisão foi criticada por
não estar em causa nenhum efeito em si chocante, já que o direito de suceder tem uma
função alimentar, e é um direito que pode ser regido pela vontade do de cujus, não
sendo, por isso, sequer, de ordem pública interna129.
Mais tarde, a jurisprudência francesa reconheceu que a segunda esposa podia
invocar, tanto como a primeira, os direitos sucessórios reconhecidos ao cônjuge
sobrevivo. Nessa qualidade, ela teria direito à repartição da herança com as restantes
esposas130. Esse direito foi inclusivamente reconhecido numa situação em que a lei
pessoal da segunda esposa não lhe atribuía o mesmo, num aresto que é considerado
por alguns autores como “o ponto máximo de abertura” à instituição do casamento
poligâmico131.
Por fim, desde cedo a jurisprudência francesa tratou os filhos nascidos de
casamentos poligâmicos como filhos legítimos, e não adulterinos. A mesma solução foi
também adoptada em Itália132 e na Alemanha133.
4. Análise crítica das experiências europeias e proposta de decisão 125 BÉATRICE BOURDELOIS aponta várias dificuldades derivadas do concurso das esposas como lesadas. Se, por princípio, o seu direito a reparação não deve ser posto em causa, o âmbito do mesmo pode ser discutido, já que cada esposa pode pretender uma reparação integral do prejuízo sofrido. A autora defende que a evolução do direito da responsabilidade civil aponta para a necessidade de se conciliar o direito ao ressarcimento dos lesados com o equilíbrio financeiro do lesante. Cfr. op. cit, p. 330. Não nos parece ser este um obstáculo inultrapassável, devido à existência de outras hipóteses em que existe face a um só lesante pluralidade de credores de indemnização por morte. 126 Cour d’Appel de Liège, 23 de Abril de 1970, apud BEATRICE BOURDELOIS, op. cit., p. 326. 127 Ac. de 17.06.1972, (nota de IBRAHIM FADLALLAH), cit., p. 62. 128 A argumentação do tribunal neste caso lembra a usada pelos tribunais ingleses para recusar a sua competência em relação aos casamentos poligâmicos, por ter por base considerações de carácter técnico, ligadas à inadequação das normas francesas para reger a instituição em causa. 129 IBRAHIM FADLALLAH, op. cit., p. 69. 130 Cour d’Appel de Paris (2e Ch., sect.B), 08.11.1983, in RCDIP, a.1984, tome 73, p. 479, que afirmou: le second conjoint et ses enfants legitimes peuvent prétendre, en ces qualités, concurrement avec le premier conjoint et ses propres enfants, exercer les droits reconnus para la loi successorale française. 131 CRISTINA CAMPIGLIO, “Matrimonio Poligamico...”, cit., p. 868. 132 CRISTINA CAMPIGLIO, “La Familia Islamica...”, cit., p. 27. 133 Decisão do Landgericht de Frankfurt, que considerou como válido um segundo casamento para efeitos de legitimidade do filho. Cfr.CRISTINA CAMPIGLIO, “Matrimonio Poligamico...”, cit., p. 882.
29
4.1. A necessidade de se reconhecer efeitos a casamentos poligâmicos
É inquestionável que a instituição do casamento poligâmico viola princípios tidos
como fundamentais para as concepções básicas das ordens jurídicas ocidentais. Porém,
não podemos, com isto, negar de forma genérica a possibilidade de se reconhecer
qualquer efeito a essa instituição.
Os primórdios da jurisprudência inglesa demonstram os perigos de uma
abordagem absolutista. A recusa total da instituição do casamento poligâmico teve
efeitos perversos e virou-se contra as mulheres e filhos, as vítimas desta instituição. De
facto, com a negação de qualquer efeito a tais uniões, não se suprime o casamento
enquanto facto, mas priva-se o mesmo do seu quadro jurídico e dos direitos e
obrigações que daí derivam. Assim, às mulheres negar-se-ão direitos básicos, como o
direito a alimentos ou a suceder por morte do marido. Por outro lado, há situações em
que a aplicação de princípios do foro a estas uniões constituirá uma verdadeira
oportunidade de libertação para estas.
Uma abordagem geral e abstracta, em nome da defesa dos valores protegidos pela
o.p. do foro, leva a que se desatendam outros que são também dignos de ter em conta,
e inclusivamente até os próprios valores que se visavam salvaguardar, e não deve, por
isso, ser a adoptada. Julgamos que o método utilizado pela jurisprudência francesa é de
aplaudir134. Tal concepção toma como primordial o valor dos direitos adquiridos e a
protecção das mulheres e filhos dos casamentos poligâmicos. Nesse sentido, reserva
um tratamento distinto entre, por um lado, a celebração de casamentos poligâmicos e,
por outro, o reconhecimento de efeitos a casamentos celebrados validamente no
estrangeiro. Não questionando da admissibilidade do casamento em si, selecciona, sim,
os efeitos que o mesmo pode produzir na ordem jurídica. Assim, o que se deverá ter
em consideração serão os efeitos que essa instituição visa produzir, tratando de saber se
da produção desses efeitos em concreto resultará violação das concepções fundamentais
do foro. Tal abordagem permite a adopção de uma visão realista da o.p, dando à
mesma dimensões humanas e sociais, sem as quais ela pode cair no contra-senso135.
134 Em sentido contrário, parte da doutrina tece-lhe várias críticas. A primeira diz respeito à confusão, sob o nome de “direitos adquiridos” de dois fenómenos diversos: por um lado, o da admissão de uma situação jurídica criada no estrangeiro, e, por outro, o da criação na ordem jurídica do foro de direitos novos a partir dessa situação jurídica. Uma coisa seria considerar uma mulher de um polígamo como um “cônjuge”. Reconhecer-lhe um direito, a partir dessa situação, de obter uma pensão de alimentos, seria criar algo de novo. Assim, IBRAHIM FADLALLAH, op. cit., p. 68. 135 JEAN DEPREZ, “Droit International Privé...”, cit, p. 253.
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E nem se diga que se trata de uma solução hipócrita. Uma coisa é o reconhecimento
de efeitos a tais uniões em casos de “necessidade” e atendendo aos valores em conflito
no caso concreto, outro, bem diferente, é a institucionalização da poligamia na nossa
sociedade, quando ela coloca em causa princípios que se consideram fundamentais136.
Outra coisa não se faz também quando se reconhecem efeitos a casamentos putativos.
Como assinala inclusivamente FERRER CORREIA, o reconhecimento de determinados
efeitos a casamentos poligâmicos não significa que se esteja a reconhecer directamente
esse instituto, mas tão-só efeitos que a lei reguladora atribui a determinados indivíduos,
tendo em conta a posição em que se encontravam uns perante os outros137.
Só uma abordagem em concreto, face aos efeitos que se visam produzir e aos
resultados que daí advenham para os valores do Estado de acolhimento é que poderá
atender aos vários valores em presença. O reconhecimento ad hoc de efeitos a
casamentos poligâmicos é, parece-nos a nós, a forma de equilibrar os valores
“colectivos” com os valores “individuais” em presença.
4.2. Selecção dos efeitos a reconhecer : método e aspectos a ter em conta
Já no que toca aos factores a atender na selecção dos efeitos que se devem
reconhecer a casamentos poligâmicos, não nos merece acordo a experiência francesa.
Guiada, como vimos, pelo impacto social dos mesmos, perde-se em considerações
respeitantes à “opinião pública” em geral, ou a considerações acessórias, como a saúde
financeira estadual, nada ligadas aos valores postos em causa pela instituição. No que
toca a estas últimas, tomemos como exemplo o acórdão da Cour de Cassation que
recusou a possibilidade de uma segunda mulher ter acesso a pensões da segurança
social. Essa recusa não se fundamentou na violação de princípios da ordem jurídico do
foro, em nada postos em causa na situação... Muito pelo contrário, o princípio da
dignidade humana e o da igualdade das várias esposas reclamariam, isso sim, o
reconhecimento desse direito para todas elas. Nesse sentido, refere JEAN DEPREZ na
nota à decisão: les arrêts ne se réfèrent pas à l’ordre public (…) a travers le refus des prestations
n’apparaît aucun rejet de la polygamie pour incompatibilité avec les conceptions familiales
monogamiques de la civilisation française. Les connotations morales, culturelles, sociologiques qui
136 Parte da doutrina francesa defende a celebração de casamentos poligâmicos no seio da própria ordem jurídica, referindo que sua proibição se torna uma hipocrisia. Assim, JEAN DÉPREZ, que refere que a proibição da celebração destes casamentos de nada serviria, já que o estrangeiro poderia sempre deslocar-se ao seu país de origem para celebrar o mesmo e sujeitar a primeira mulher a um facto consumado. Cfr. nota…, cit., p. 709. 137 Lições..., p. 415.
31
accompagnet habituellement l’ordre public, liées à la difficulté pour le for d’accueillir une instituition
contraire à ses propres fondements, font ici totalement défaut. Si ordre public il y a (…) il repose sur
des motivations beaucoup plus prosaïques, purement matérielles(…)138. Na base destas
resistências esteve sim, como se viu, a tomada em consideração do “alarme social” que
adviria da atribuição desse direito a várias esposas, já que a opinião pública não
compreenderia tal esforço do sistema público francês. Daí que o autor refira : on peut
caractériser globalement le système français en disant qu’il rejette la polygamie lorqu’elle est censée
côuteuse pour la collectivité mais en admet aisément les effets lorsqu’elle n’entraîne qu’une nuisance
privée139.
Julgamos que a raiz da incoerência denunciada pelo autor está no critério usado
para a selecção dos efeitos a reconhecer a tais uniões, que podemos qualificar de teoria
sociológica da o.p. Esta teoria visa relativizar o valor de “verdade jurídica” face ao de
“verdade sociológica”. Assim, afirma que se deve apreciar, face às circunstâncias do
caso, de que forma o reconhecimento de efeitos à instituição estrangeira é susceptível
de produzir um resultado chocante para a opinião pública. O juiz deve, na sua decisão,
analisar o meio social, as correntes de opinião e as reacções a certos problemas.
É certo que uma o.p. desligada da sociedade será uma o.p. meramente “moral”.
Como refere JEAN DEPREZ, Il arrive un moment où l’évolution des moeurs de la societé du for
rend obsolètes les réactions de rejet pratiquées à l’encontre d’instituitions étrangères au nom d’une
conception moralisatrice des rapports sexueles et familiaux qui este de moins en moins partagée par les
citoyens. La persistance de l’ordre public official sur le plan du droit n’est autre que la conservation
d’un « ordre moral » en porte à faux par rapport à la société réelle140. Por isso, esta concepção
começa já a penetrar nas doutrinas de outros países. Assim, a doutrina espanhola
defende que, para se identificar os princípios jurídicos que compõem o conceito de
o.p., se deve realizar uma operação complexa de análise do direito espanhol e do estado
138 Nota…, cit., p. 699. 139 É claro que não cabe aqui a discussão sobre a eventual capacidade do sistema de segurança social estadual para suportar os encargos das várias mulheres de um polígamo. Em Inglaterra, a Law Commission defendeu a extensão dessa protecção aos casamentos monogâmicos de facto. No que toca aos casamentos de facto poligâmicos no momento em que o subsídio é pedido, a Comissão considerou que a negação de todo o subsídio era injusta, mas não propôs nenhuma solução concreta, já que todas se consideraram injustas ou irrealizáveis. Assim foi o caso da proposta de o marido polígamo pagar quotizações mais elevadas, ou de pagar as mesmas quotizações mas serem estas divididas pelas várias mulheres, bem como a de declarar como beneficiária uma única mulher, com todas as objecções a nível de equidade a assinalar. Em França, alguns autores defendem que às prestações da segurança social se deve aplicar o regime da cumulação, devendo ser atribuídas, por inteiro, a ambas as mulheres, já que, devido à marginalidade do fenómeno, o sistema francês de segurança social não seria gravemente afectado. 140 Droit International..., cit., p. 257.
32
de sensibilidade e consenso social sobre o mesmo141. Também entre nós, FERRER
CORREIA defende que, para a intervenção do mecanismo da o.p. num caso concreto,
tem de se ter em mente o sentimento jurídico dominante na colectividade e as reacções desse
sentimento à constituição ou reconhecimento do efeito jurídico que se tem em vista142.
Não obstante, o sentir social não deve ser um factor exclusivo. Um alinhamento
puro e simples sobre a realidade sociológica conduziria a seguir sistematicamente a
opinião pública, e portanto, os seus pré-juízos e seus eventuais excessos, tanto de
laxismo como de rigor, motivados muitas vezes por factores passionais e irracionais ou
irrelevantes143. Como refere JOHN RAWLS, uma decisão baseada na cultura da sociedade
civil é uma decisão que se ancora em considerações demasiado alargadas para poder
servir os propósitos da razão pública – razões que possam ser partilhadas por todos os
cidadãos enquanto livres e iguais144. Por outro lado, a opinião pública pode não ter
verdadeiramente em conta todos os princípios e valores fundamentais que se levantam
no que toca a uma instituição como a do casamento poligâmico. Tudo isso poderá
conduzir à permissão de efeitos em si violadores da o.p., mas que, desenrolando-se no
desconhecimento do público em geral o deixariam indiferente, bem como à negação de
efeitos que, em si, visariam proteger um bem digno de protecção, mas que o público
condenaria por se traduzir em cargas para a sociedade.
É necessário ter em conta na decisão da vexata quaestio, de forma inultrapassável, os
vários valores em conflito. Isto, mesmo que nenhuma necessidade emirja do corpo
social nesse sentido, e se vá, portanto, contra as mentalidades e práticas existentes. A
coesão da sociedade não se coloca apenas em causa quando não se segue a opinião
pública, mas sim e principalmente quando se perdem de vista os valores que a
justificam e identificam145.
Assim, a uma actuação sociológica da o.p. há que juntar, julgamos nós, o filtro dos
valores ético-jurídicos essenciais de uma determinada ordem jurídica. Estes podem-se
encontrar na Constituição, expressão do consenso razoável sobre os valores
fundamentais para a vida em sociedade. De facto, é na Constituição que se encontra o
acervo de valores que, em cada momento, são tidos como essenciais e que, por isso,
141 AFONSO-LUIS CARAVACA e JAVIER GONZÁLEZ, op. cit., p. 297. 142 A. FERRER CORREIA, Lições..., cit., p. 410. 143 Dizia KANT: a validade sem eficácia é inoperante; a eficácia sem validade é cega. Apud FERNANDO JOSÉ BRONZE, op. cit., p. 593. 144 A Lei dos Povos, cit., p. 146. 145 Recuperando as palavras de FERNANDO JOSÉ BRONZE, diríamos que só com a mobilização de valores é possível que o Direito cumpra a sua função de instância crítica que permite, numa sociedade plural, um ponto de encontro em que o Homem possa ajuizar da validade desse instituto. Cfr. op. cit., p. 293.
33
podem constituir a o.p. internacional146. A sua transcendência é particular no domínio
do direito da família147, que incorpora valores fundamentais, como o princípio da
igualdade dos cônjuges (art. 36º, n.º3) ou da dignidade da pessoa humana (art.1º). Para
além disso, também princípios não estatais devem concorrer para enformar o acervo de
valores constitutivos da o.p. internacional, como os constantes da Declaração Universal
dos Direitos do Homem das Nações Unidas de 10 de Dezembro de 1948, da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 4 de Novembro de 1950, ou ainda da
Convenção dos Direitos da Criança, de 20 de Novembro de 1989148.
Assim, a o.p. tem as suas fontes de inspiração em duas realidades: as raízes
sociológicas e os valores ético-jurídicos149. Só atendendo, por um lado, ao sentir social,
e por outro, ao acervo de valores fundamentais referidos se poderá seleccionar os
efeitos que, caso a caso, os casamentos poligâmicos poderão produzir na ordem
jurídica de forma a não violarem a o.p. internacional.
4.3. Ponderação dos vários valores em conflito
Para se aferir se um casamento poligâmico pode produzir determinado efeito na
ordem jurídica há que atender, dissemos nós, não só à consciência social vigente, mas
também ao acervo de valores fundamentais em causa. Ora, na vexata quaestio, vários
valores, princípios e interesses dignos de protecção são convocados, como pudemos ir
analisando ao longo destas páginas. Para se saber se um determinado efeito viola a o.p.
há que proceder à uma ponderação entre estes.
A jurisprudência belga oferece um bom exemplo de ponderação dos vários valores
em presença: diz a Cour d’Appel de Liège que ela deve ser guiada pela hierarquia que deve
ser estabelecida entre as várias exigências de o.p.. Num caso sobre atribuição de
indemnização por morte a várias mulheres de um polígamo, estava em causa, de um
lado, uma consideração geral de política social (princípio monogâmico) e de outro, uma
consideração de equidade. O tribunal deu clara prevalência a esta última, invocando a
ideia de que os direitos dos indivíduos prevalecem em relação a valores gerais150.
146 Nesse sentido, a doutrina espanhola. V. JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ ROZAS e SIXTO SÁNCHEZ LORENZO, op. cit., p. 229 e AFONSO-LUIS CARAVACA e JAVIER GONZÁLEZ, op. cit., p. 297. 147 JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ ROZAS e SIXTO SÁNCHEZ LORENZO, op. cit., p. 229 148 Assim também TITO BALLARINO, op. cit., p. 306. 149 Lembramo-nos agora das palavras de ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES, para ilustrar a síntese entre um conteúdo reconhecido como válido e sociologicamente eficaz que o direito vigente tem de cumprir: o direito é um deve-ser que é. Cfr. Curso de introdução ao estudo do direito: extractos: lições no ano lectivo de 1971-72, Coimbra, 1972, p. 148. JOSÉ FERNANDO BRONZE usa, precisamente, o carácter de actualidade da o.p. para ilustrar essa exigência. Cfr. op. cit., p. 152. 150 Ac. de 23.04.1970, apud CRISTINA CAMPIGLIO, “Matrimonio Poligamico...”, cit., p. 877.
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É necessário, de facto, circunscrever com prudência os interesses da comunidade
que recusam o reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos151. De alguns
princípios se poderá prescindir perante direitos dos indivíduos mais prementes. É o
caso de princípios intimamente ligados ao princípio da organização laica152 ou ao
princípio monogâmico, como a harmonia da ordem jurídica e a identidade cultural do
Estado de acolhimento.
Porém, inderrogável é o princípio da igualdade dos cônjuges, posto sempre em
causa pela instituição da poligamia. No mesmo sentido seria a resposta de JOHN
RAWLS, pelo valor primordial que dá ao princípio da igualdade153. De facto, o
casamento poligâmico não se limita a ser incompatível com o modelo familiar
predominante do foro, mas põe em causa uma concepção básica de igualdade, um dos
fundamentos inegociáveis da nossa sociedade democrática. Refere JOHN RAWLS: a
família, como parte da estrutura básica, não pode violar essas liberdades. Já que as esposas são iguais
cidadãos em conjunto com os maridos, possuem todos os direitos, liberdades e oportunidades que eles154.
Uma situação de poligamia é sempre contrária ao princípio da igualdade, e o facto de
ter sido constituída no estrangeiro e dizer respeito apenas a estrangeiros não o altera
nem atenua. Então como reconhecer efeitos a casamentos poligâmicos nestas
condições?
Tal impasse resolve-se, no nosso entender, se se tiver como referente o próprio
princípio da igualdade. É certo que o casamento poligâmico o viola sempre, mas de
acordo com a teoria do efeito atenuado, não será com a instituição em si que nos
teremos de preocupar, mas sim com o efeito concreto que ela visa produzir na nossa
ordem jurídica. E já se viu que, ao recusar-se todos os efeitos a casamentos poligâmicos
em nome do princípio da igualdade, se acaba por sacrificar esse próprio princípio,
penalizando-se quem está em posição de inferioridade.
Nesta ordem de ideias, salvaguardaremos e faremos prevalecer o princípio da
igualdade se dissermos que se deverão reconhecer aos casamentos poligâmicos aqueles
efeitos que se traduzirão na protecção de quem está em desigualdade. Já descartados
serão aqueles que visam efectivar a situação de desigualdade inerente à própria
instituição. Assim sendo, será, então, a protecção da parte em situação de desigualdade
que deve ser tida em vista na escolha dos efeitos a reconhecer a casamentos
151 FERRUCIO PASTORE op. cit., p. 115. 152 Assim, JEAN DEPREZ, “Droit International Privé... », cit., p. 270. 153 JOHN RAWLS, Liberalismo Político, cit., p. 233. 154 JOHN RAWLS, A Lei dos Povos, cit., p. 173.
35
poligâmicos155. É, enfim, uma ideia de Justiça que deve guiar o juiz quanto a saber se
deve ou não reconhecer tal união para determinado efeito156. Só assim se acabará, a
final, por salvaguardar o princípio da igualdade, evitando-se o paradoxal sacrifício de
valores em nome desses próprios valores.
Ora, existem, de facto, determinados efeitos de casamentos poligâmicos celebrados
no estrangeiro cujo reconhecimento efectivaria a situação de desigualdade imanente a
este instituto. Nesses casos, a simples permissão do seu desenrolar nas nossas ordens
jurídicas violaria as nossas concepções fundamentais. PILLET, um dos primeiros a
teorizar a possibilidade de se reconhecerem efeitos jurídicos a casamentos poligâmicos,
dizia que, se por exemplo, o marido polígamo pretesse exercitar em França o seu poder
marital face às mulheres, sem dúvida teria de se negar tal efeito em nome da o.p..
Porém, se se tratasse de uma matéria relativa à legitimidade dos filhos nascidos no
casamento, de sucessões ou do regime patrimonial dos cônjuges, razões não haveria
para negar o reconhecimento de semelhantes efeitos157.
Nessa ordem de ideias, deverão ser reconhecidos aqueles efeitos que protejam as
várias mulheres de um homem polígamo e lhe concedam direitos em relação a este,
contrabalançando, pois a desigualdade existente entre os cônjuges. Já o homem, por
sua vez, não se poderá prevalecer de um casamento poligâmico para requerer a tutela
dos tribunais do foro em relação a direitos derivados da sua posição de supremacia158.
Nesse sentido, a jurisprudência francesa considerou já que a obrigação de coabitação de
várias esposas violava a o.p., não podendo o marido impor à primeira mulher a
presença de uma segunda esposa no domicílio conjugal159. A o.p. deve intervir para
impedir a aplicação de normas que desconheçam direitos fundamentais da mulher, tais
como a liberdade de movimentos, o direito ao respeito pela sua vida privada e pela sua
correspondência, ou que imponham uma obediência absoluta ao marido em nome da
proeminência deste160. A o.p. conserva, pois, todo o seu funcionamento quando se
trate de normas que se revelem contrárias ao princípio da liberdade e igualdade dos
cônjuges.
155 Em sentido contrário, TITO BALLARINO considera que o critério determinante deverá ser o de saber em que medida o efeito pretendido abala o princípio monogâmico. (Cfr. op. cit., p. 400). 156 Também nesse sentido, PIERRE MERCIER, op. cit., p. 91. 157 Apud ANNAMARIA GALOPPINI, “Ricongiungimento...”, cit., p. 750. 158 De certa forma foi essa a solução do Ac. de 9.11.1993 da Cour de Cassation francesa, in RCDIP, a.1994, tome 83, p. 644-651 (nota de ERIK KERCKHOVE). 159 Tribunal de Grande Instance de Versailles, 31.03.1965, apud PIERRE MAYER, op. cit., p. 369. 160 CRISTINA CAMPIGLIO, “La Famiglia Islamica...”, cit., p. 34.
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Claro que a abordagem que propomos poderá provocar, na prática, algumas
incertezas e inseguranças, fazendo com que uma questão de estado não seja recebida
nas ordens jurídicas em toda a sua unidade e indivisibilidade. Refere, de facto,
FERRUCIO PASTORE que a inexistência de uma abordagem coerente do ordenamento
francês em relação ao matrimónio poligâmico leva a que as mesmas pessoas se possam
considerar marido e mulher perante uns efeitos e perfeitos estranhos perante outros161.
Julgamos, porém, que desde o momento em que determinados efeitos destas uniões
violam em si a o.p., a protecção dos valores por esta reclamados se deve sobrepor a
considerações ligadas à necessidade de estabilidade do estatuto pessoal dos visados.
Nem sempre as experiências jurídicas consideradas raciocinaram de acordo com a
nossa proposta de solução. Desde logo, é notória a disparidade de tratamento levada a
cabo pela jurisprudência francesa entre efeitos privados e públicos do casamento. De
facto, se olharmos para o sistema francês em toda a sua globalidade, vemos que, a nível
de entrada no território, uma segunda mulher é tratada de forma menos permissiva do
que a nível de efeitos civis do casamento: ela não pode entrar no território francês mas,
se entrar, poderá beneficiar da concessão de direitos civis. Ora, tal disparidade de
tratamento em nada é motivada por considerações ligadas à protecção das mulheres e
filhos de casamentos poligâmicos ou ao princípio da igualdade.
De facto, nos casos relativos à matéria de imigração, prevaleceu o respeito pelo
valor da identidade cultural do Estado, em detrimento dos direitos individuais. Ora,
uma não permissão tout court de reagrupamento familiar nestes casos poderá implicar
um grave prejuízo para os que carecem de maior protecção nos casos de poligamia – as
mulheres e os respectivos filhos menores162. É certo não se pode impor aos Estados
que aceitem no seu território um modelo de família em tudo contrastante com os seus
valores. Porém, o que é facto é que, por vezes, por imperativos de justiça e de
humanidade, o interesse dos indivíduos deverá prevalecer em relação a valores
abstractos dos Estados.
O valor da protecção das vítimas dos casamentos poligâmicos não prevaleceu
também quando em causa estava uma primeira mulher de estatuto monogâmico. Ora,
161 Op. cit., p. 96. Também nesse sentido, BATIFFOL refere que esta abordagem implica que se subordine a validade de uma instituição às consequências que se pretendem ligar à mesma, o que leva a soluções internamente pouco harmoniosas. O autor defende que se devia, pelo contrário, considerar absolutamente válido ou inválido um determinado casamento poligâmico (nota ao Ac. de 03.01.1980 da Cour de Cassation (1re Ch. Civ.), in BERTRAND ANCEL, YVES LEQUETTE, Grands Arrêts de la jurisprudence française de Droit International Privé, 3éme édition, Dalloz, Paris, 1998., p. 493). 162 PAUL LAGARDE, « La Théorie… » cit., p. 281.
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actuando a o.p. para reagir contra a aplicação no território de um modelo matrimonial
contrário ao princípio da igualdade, ela não se deve limitar à protecção exclusiva das
nacionais, já que as demais esposas, estrangeiras, são, elas também, vítimas da poligamia.
Nesse sentido, teria sido mais vantajoso considerar nulo o segundo casamento, o que
permitiria quer a protecção da mulher de estatuto monogâmico, quer das demais
através da instituição do casamento putativo. É essa a posição de parte da doutrina
francesa e da italiana163.
5. Conclusão
O problema do reconhecimento de efeitos a casamentos poligâmicos é um
problema complexo e que convoca vários valores dignos de protecção. A abordagem
de que partimos parte da distinção basilar entre criação de efeitos e reconhecimento de
efeitos a situações jurídicas constituídas no estrangeiro, com isso se visando proteger o
valor dos direitos adquiridos, aqui tão mais premente quando está em causa, não só o
estado civil das pessoas, mas também o direito fundamental à vida familiar. Assim, o
mecanismo da o.p. deve intervir, não para censurar a instituição em si do casamento
poligâmico, mas sim os efeitos que esta visa produzir em solo nacional.
Para a selecção desses efeitos há que ter em conta os valores essenciais em causa,
alicerçados na concepção ético-social vigente. Ora, só caso a caso se poderá dizer quais
os valores que devem prevalecer. Podemos, contudo, adiantar que a protecção dos
direitos das vítimas dos casamentos poligâmicos poderá reclamar a sua prevalência face
aos valores mais gerais da comunidade de acolhimento. Porém, tratar-se-á aí de uma
espécie de estado de necessidade, justificado por razões de justiça, e que pode reclamar do
Estado do foro que temporariamente feche os olhos aos seus interesses da harmonia
jurídica interna ou da identidade cultural, em ordem à protecção de direitos individuais
prementes. Ao princípio da igualdade, posto sempre em causa pelo instituto do
casamento poligâmico, é que não se poderá fechar os olhos, pelo que os efeitos a
163 YVES LEQUETTE, na nota ao Ac. de 06.07.1988 defende que se deveria exigir, para se considerar válido um matrimónio poligâmico celebrado no estrangeiro, o respeito da lei nacional de todos os interessados – do marido, da primeira e da segunda mulher. O impedimento matrimonial em causa deveria, pois, ser considerado como um impedimento trilateral, bastando apenas um dos interessados ter estatuto monogâmico para que o matrimónio fosse tratado como tal, já que a exigência de monogamia é sobretudo uma das características do primeiro casamento, destinada a proteger a primeira esposa. Assim, um segundo casamento contraído em desrespeito desta regra seria nulo, mas poder-se-ia proteger a segunda mulher através do reconhecimento de efeitos ao casamento putativo. Cfr. op. cit., p. 77 e 80. No mesmo sentido, a doutrina italiana. Cfr. TITO BALLARINO, op. cit., p. 400 e ANNAMARIA GALOPPINI, “Problemi Familiari…”, cit., p. 171.
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reconhecer serão precisamente aqueles que visem proteger as partes dessa relação
jurídica que se encontrem em posição de desigualdade. Esta solução, tendo embora
todos os inconvenientes de um case by case approach, é aquela que, no nosso entender,
consegue promover de melhor forma os interesses e valores – colectivos e individuais
– em presença.
Há que abandonar, pois, a tradicional aceitação de que “a poligamia viola a o.p.
internacional”, e ter consciência dos perigos que uma abordagem abstracta da questão
pode levantar. Uma atitude ponderada em que se tenha em consideração, caso a caso,
os valores em conflito, deverá ser a adequada. Não obstante, o futuro adivinha uma
abordagem restritiva por parte das várias ordens jurídicas, já inaugurada por novas
soluções legislativas respeitantes ao direito da imigração. A numerosa imigração
muçulmana e os fantasmas interligados ao fundamentalismo islâmico, fazem hoje com
que a consciência social esteja mais sensível às instituições provenientes dessa cultura, o
que leva à necessidade de se sublinhar a necessidade de uma abordagem fortemente
alicerçada nos valores postos em causa por elas.
BIBLIOGRAFIA
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