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Grupo de Pesquisa-Ação Violência, Criminalidade e Direitos Humanos
DO LADO DE FORA DO CÁRCERE
REFLEXÕES PRELIMINARES
Belo Horizonte
Novembro de 2010
Prof. Dr. Virgílio de Mattos1 - Coordenador
Prof. Dr. Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro2 - Professor Pesquisador Associado
Andreza Lima de Menezes3
Geraldo Ovídio de Oliveira Júnior.4
Ítalo Narciso Lima Ribeiro5
Rafhael Lima Ribeiro 6
Renata Miranda Jardim7
Ricardo Henrique de Carvalho Lara8
Vanessa de Maria Porfírio Vieira9
Wagner Luiz da Silva10
Willian de Araújo Costa11
1 - Doutor em direito pela Università Degli Studi di Lecce (IT), Mestre em Direito e Especialista em Ciências
Penais pela UFMG. Advogado criminalista. Coordenador do Grupo de Pesquisa-Ação Violência Criminalidade
de Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara.
2 - Doutor em Direito pela UFMG. Promotor de Justiça junto ao Ministério Público de Minas Gerais. Professor
da Escola Superior Dom Helder Câmara. Pesquisador Associado do Grupo de Pesquisa – Ação “Violência,
Criminalidade e Direitos Humanos” da Escola Superior Dom Helder Câmara.
3 - Especialista em Segurança Pública pelo Ministério de Justiça e pela Escola Superior Dom Helder Câmara.
Servidora pública do TJMG. Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade e
presidente da APAC feminina de Belo Horizonte.
4 - Bacharelando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Do Grupo de Pesquisa-Ação Violência,
Criminalidade e Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara. Concurso de 2010.
5 - Bacharelando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Do Grupo de Pesquisa- Ação “Violência
Criminalidade e Direitos Humanos” da Escola Superior Dom Helder Câmara. Concurso 2009.
6 - Bacharelando em Direito. Pesquisador Bolsista FUNADESP/Newton Paiva (concurso março 2010).
Pesquisador Associado do Grupo de Pesquisa-Ação “Criminalidade, Violência e Direitos Humanos” da Escola
Superior Dom Helder Câmara.). Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. 7 - Bacharelando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Do Grupo de Pesquisa-Ação “Violência,
Criminalidade e Direitos Humanos” da Escola Superior Dom Helder Câmara. Concurso de 2010.
8 - Advogado criminalista. Aluno do curso de Pós-Graduação, convênio Ministério da Justiça/ESDHC,
Segurança Pública e Complexidade.
9 Servidora Pública do TJMG – PAI –PJ (Programa de Assistência Integral ao Paciente Judiciário). Graduanda
em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Do Grupo de Pesquisa – Ação Violência, Criminalidade e
Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara. Concurso 2009.
10 - Advogado, pesquisador em Psicanálise e Criminologia Crítica no Grupo de Pesquisa – Violência,
Criminalidade e Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara.
APRESENTAÇÃO Prof. Dr. Virgílio de Mattos12
No ano de 2010 o Grupo de Pesquisa-Ação Criminalidade, Violência e
Direitos Humanos, seguiu na luta contra o encarceramento em massa, o
controle penal como panacéia de todos os males e o estado penal, para
reduzirmos bem nosso universo de pesquisa teórico e na tentativa de reduzir
esbarramos no mundo inteiro, a exceção do controle penal teocrático e o
sistema penal chinês, por dificuldades, neste momento intransponíveis,
quanto a compreensão13 da literatura e mesmo pela dificuldade de acesso
aos dados.
No ano de 2004 começamos a capacitar pesquisadores voltados para o
pensamento do poder punitivo que afastasse os modelos prisionalocêntricos,
seja cárcere ou manicômio. Já tivemos mais de uma centena de estudantes,
das mais diversas áreas e instituições de ensino superior e órgãos de classe
(sindicatos, conselhos, institutos, etc.) conosco.
De 2005 até 2007 fomos a campo na Penitenciária de Mulheres de Belo
Horizonte, onde realizamos surveys que culminaram na publicação, pela
Fundação Movimento Direito e Cidadania, mantenedora da Escola Superior
Dom Helder Câmara, dos livros: A LEGIBILIDADE DO ILEGÍVEL, A
VISIBILIDADE DO INVISÍVEL E DE UNIFORME DIFERENTE: O LIVRO DAS
AGENTES14.
Incontáveis as participações em congressos, seminários e eventos, que
renderam vários artigos, banners, intervenções, sempre com o objetivo de
capacitar pesquisadores e fazer com que avancem na luta, quando nada,
contra a mesmice do modelo penal atual, em especial o prisional, que
quando muito só pode ser modelo do que não queremos.
11 - Bacharelando em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Do Grupo de Pesquisa-Ação Violência, Criminalidade e Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara. Concurso 2009.
12 - Coordenador do Grupo. Pesquisador e professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação.
13 - Ainda que nossa proverbial boa sorte nos tenha trazido um Código Penal Chinês, em mandarim, e um
dicionário de Direito Penal Chinês/Inglês, pela cortesia do Prof. Dr. Fernando Oréfice, um pesquisador da
medicina em recente viagem àquele país continente. Pacientemente tentamos decifrar ideograma por ideograma,
o que desafia a paciência do Jó Bíblico. 14 - Pedidos pelo endereço eletrônico: [email protected].
No ano de 2010 restringimos nossas coordenadas de abrangência teórica
ao exercício do exame da Grã-Bretanha, Itália, Espanha, Portugal e França,
tentando enxergar o que há de comum na leitura europeia do
encarceramento em massa, do ódio ao imigrante e na criminalização do
estranho, do estrangeiro, do de fora. A origem permanece miseravelmente
estadunidense, em tudo de ruim que diga respeito também ao sistema
prisional.
Até aqui nenhuma novidade concreta. O chamado estado de emergência,
para dizermos com GARLAND, MELOSSI, PAVARINI, BATISTA, ZAFFARONI e
outros15 vem sendo implacavelmente construído desde o início dos anos
1980, com a destruição do estado de bem-estar social. Estado mínimo para a
garantia dos mais elementares direitos e estado penal máximo contra o
subproletariado, esta tem sido a fórmula. Tem quem ainda aplauda. Tem
quem ainda faça graça e ache pouco. O que surpreende verdadeiramente é
que isso seja vendido como novidade, passadas três décadas.
Desconstruir, lamentavelmente, não “está na moda”. Na “moda” continua
o encarceramento em massa dos pobres e miseráveis de todo o gênero, por
todo o mundo. Mas o capitalismo parece mesmo estar “com os séculos
contados”. O modelo neoliberal convulsiona seus estertores até mesmo na
insuspeita Alemanha que acena com as medidas de sempre: fechamento de
postos de trabalho público, arrocho salarial, pulverização das conquistas dos
trabalhadores... Já assistimos ao mesmo filme desde metade do século XIX e
as lições dali vindas nunca pareceram tão atuais. Seus teóricos, os
chamados pejorativamente de “teóricos do século XIX”, nunca estiveram tão
atuais, em especial Karl Marx e Friedrich Engels. Nas histórias da história a
luta de classes continua sendo a espinha dorsal.
No Brasil, e em Minas em especial, assistimos a um vertiginoso aumento
daqueles que foram alcançados pelo cárcere16 e quando dele saem só têm
como vetor possível aquele que aponta para a porta de entrada novamente.
Perverso continuum a gerar lucro, receita e discurso, talvez não nessa exata
15 - Sandro De Giorgi, Toni Negri, etc. 16 - São mais de 500 mil em outubro de 2010.
ordem. Um discurso patético de ampliação de tipos penais e endurecimento
das formas de cumprimento das penas privativas de liberdade. Em Minas a
política “social” para os pobres tem sido o encarceramento, sobretudo nesses
últimos anos. O pior é que ainda vendem esse discurso como “moderno”. O
pior do pior é que há quem nele creia.
Ao fazermos nosso nivelamento teórico, onde todos os participantes e os
recém-aprovados no concurso de 2010 apresentam suas motivações e as
ideias que pretendem desenvolver, resolvemos compartilhar nossas
inquietações e cada um dos novos participantes produziu um texto sobre o
que estava trabalhando. Esta nossa prática também na prática: construção
coletiva.
Assim, o professor Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro, pesquisador
associado, nos brinda com a defesa de um modelo ético de atuação na área
criminal, fazendo com que possamos enxergar, verdadeiramente, o
Ministério Público não só como fiscal da lei, mas também como um
instrumento de garantia das garantias constitucionais, tão vilipendiadas na
prática insalubre – para dizer elegantemente – do dia-a-dia forense.
Apresentamos o teaser do truque dos números, superficial análise de
recente instrumento de propaganda do governo do estado no que chama de
avanço da defesa social, que está no ataque.
Trazendo suas inquietações de estudo atual, sob tema bastante já
trabalhado e do qual ainda há muito que escrever, Ricardo Lara aponta
CRÍTICA DA SELETIVIDADE PENAL EM TEMPOS DE PRIVATIZAÇÃO,
observando a velha política das dangerous class apresentada como novidade
do modelo neoliberal. Afinal, a única “garantia” de pertencimento do
subproletariado é o cárcere.
Vanessa De Maria cuida do relato de seu local de trabalho no TJMG, o
premiado e reconhecido como paradigmática saída que é o Programa de
Atenção Integral ao Paciente Judiciário, o PAI-PJ, que desde 2001 tem
norteado em Minas a atenção e o cuidado ao portador de sofrimento mental
infrator.
Renata Miranda Jardim, que atualmente encontra-se empenhada no
cuidado de literal gestação de um novo ser que vem para um mundo melhor,
dependendo exclusivamente de nós mesmos, relaciona pena, punição e
vingança como sendo o pior do pior.
Andreza Lima de Menezes, nossa ex-aluna de pós-graduação em
segurança pública e complexidade, reflete sobre a oportunidade de uma
polícia penal e a pressão exercida no Congresso Nacional, em maio último,
sobre mais essa “saída” do estado penal.
Wagner Luiz da Silva, sempre atento à junção entre a psicanálise e o
direito, aponta a verdadeira anomia jurídica pela qual passa a execução da
pena em Minas.
William de Araújo Costa, nosso homem de visão, como ele mesmo
brinca com sua cegueira, secundado por seu ledor Wagner Luís, nos brinda
com algumas notas sobre o pensamento de Alessandro De Giorgi, a miséria é
governada pelo direito penal.
Geraldo Ovídio de Oliveira Júnior se ocupou da questão de gênero no
encarceramento, assunto muito pouco discutido na Academia, quem dirá
fora dela. O pior é que quando há discussão sobre este tema vem sempre ela
marcada pelo preconceito.
Ítalo Narciso Lima Ribeiro em emocionada e emocionante análise da
barbaridade da revista vexatória, observa a questão da distância dos
familiares, em seu comovente Revista Vexatória: Ter Saudades Não É Crime!
Enfim, o fim (?) dessas reflexões preliminares, com Rafhael Lima
Ribeiro apresentando uma madura reflexão sobre a privatização do cárcere
na qualidade de indicador da mercantilização das relações humanas. Se na
origem o cárcere era privado e não funcionava, não há de ser voltando à
origem que teremos qualquer arremedo de solução.
Mais do que servir como indicativo do que fazemos nós na capacitação
e no nivelamento, este conjunto de textos aponta para a percepção que o
Grupo tem da desnecessidade de respostas penais a algo que é, sobretudo,
uma questão social.
PELO FIM DAS PRISÕES E DOS MANICÔMIOS.
MINISTÉRIO PÚBLICO: A DEFESA DE UM MODELO ÉTICO DE ATUAÇÃO
NA ÁREA CRIMINAL17
Prof. Dr. Luiz Gustavo Gonçalves Ribeiro18
Se diversas são as vertentes de pesquisa que buscam conferir ao
Ministério Público o rótulo de instituição voltada para a acusação penal em
juízo, o certo é que os múltiplos papéis atribuídos a ele nos mais diversos
países dão mostras de sua relevância como órgão constituído de defesa do
Estado de Direito, sob o influxo da Revolução Francesa.
De mero defensor dos interesses do rei que remonta sua origem
próxima à Ordenance de Felipe IV, em 1302, na França, o Ministério Público
de hoje deve ser compreendido como instituição de funções ecléticas a quem
compete, especificamente na área penal, a titularidade da pretensão punitiva
estatal19, sem prejuízo da defesa dos direitos fundamentais do investigado,
acusado e, em sede de execução penal, do condenado.
O Estado pós-1988 não deve ignorar que a busca da punição
dos responsáveis pela prática de um fato-crime deve corresponder, em igual
17 Apresentação/justificativa ao trabalho de campo que se pretende no Grupo IV “Violência,
Criminalidade e Direitos Humanos”: entrevista com promotores de justiça com atuação na área criminal em capital da região sudeste do Brasil.
18 - Professor de graduação e pós-graduação da Escola Superior Dom Helder Câmara.
19 Como assevera Frederico Marques, o dever de punir não pertence ao Estado-Juiz, mas ao Estado-Administração. Segundo o autor, “cabendo ao Estado-Administração a tutela penal e o exercício do direito de punir, a seus órgãos é que a lei confere o exercício da pretensão punitiva. Da administração, portanto, é a titularidade da pretensão punitiva. Esta, segundo bem o disse Calamandrei, é pretensão administrativa, mas despida de autoexecutoriedade (ao reverso do que se dá com as outras pretensões administrativas), em razão do princípio do nulla poena sine iudicio. Portanto, para que a tutela penal e a pretensão punitiva possam ser exercidas, há órgãos estatais da Justiça Penal destinados a preparar a ação penal, a impulsionar a persecutio criminis e a participar dos procedimentos preliminares que compõem esta; e após a condenação do autor do crime, os órgãos destinados à execução penal. Funções se repartem, portanto, na Justiça Penal, entre os seus órgãos administrativos, para preparar-se a ação penal e fazer efetiva e concreta a pretensão de punir. Todavia, como a atividade preparatória da persecutio criminis vai levar à propositura da ação penal, com o pedido de julgamento favorável da pretensão punitiva por meio da acusação; e como o titular da ação penal é o Ministério Público, dúvida não há de que, ao formular a acusação, esse órgão está agindo como titular, também, da pretensão punitiva. A afirmativa de Giuliano Vassali e outros, de que o juiz penal é órgão do direito de punir e da pretensão punitiva, não tem o menor fundamento e não pode, por isso, ser aceita” (MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. São Paulo, Saraiva, 1980. v. 2, p. 63-64)
medida, à lisura de um processo que se paute pelo respeito à ordem
constitucional, de tal forma que se desigualdade houver entre acusação e
defesa no curso da persecução penal, ela deve ser marcada unicamente pela
intensidade da culpa do agente.
Segundo o artigo 127, da Constituição Federal de 1988, compete
ao Ministério Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e
dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, sendo essa uma diretriz
que deve nortear a compreensão de todas as demais funções ministeriais na
área penal.
Daí que o Ministério Público de hoje, embevecido pela matriz
Constitucional que assegura direitos e garantias e que o aponta como
ferrenho defensor deles tem por dever atuar como parte a quem
verdadeiramente interessa uma decisão justa, qual seja a que, conhecendo
as limitações do direito penal, busque a aplicação da norma incriminadora
somente quando ocorra uma infração penal que mereça a devida
retribuição20. Mas não é só, pois a indisponibilidade dos bens por ele
defendidos deve alcançar, por óbvio, a defesa dos direitos humanos e, assim,
aqueles dos condenados, de forma a que a execução penal não agrida o
fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana.
Investigações mendazes levam à propositura de ações penais
precipitadas e à inflação de processos, muitas vezes desnecessários, que
acabam assoberbando o Poder Judiciário com demandas falidas, não
enquadradas, do ponto de vista da tipicidade material, a qualquer norma
incriminadora. É preciso valorizar o processo, não apenas no sentido de que
seja ele o instrumento adequado para uma final punição do culpado, mas
também para que revele a justa punição, sem que haja, no entanto, qualquer
arrefecimento no exercício do jus puniendi. Daí a necessidade da propositura
de ações penais lastreadas em robustos elementos de convicção e de uma
20 “Interessando à comunidade jurídica não só a punição de todos os culpados, mas também – e sobretudo, dentro
de um verdadeiro Estado-de-direito – a punição só dos que sejam culpados, segue-se daí que ao MP, como
órgão de administração da justiça, há-de competir trazer à luz não só tudo aquilo que possa demonstrar a culpa
do argüido, mas também todos os indícios da sua inocência ou da sua menor culpa”. (DIAS, Jorge de
Figueiredo. Direito processual penal. Reimp. 1. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p 369)
precisa delimitação do fato típico, com todas as suas circunstâncias, sem
prejuízo da objetividade.
Como disserta Ferrajoli,
a acusação contestada deve ser formulada em termos unívocos e precisos, idôneos para denotar exatamente o fato atribuído e a vincular a ele, contra a indeterminação do antigo processo inquisitório, o objeto do juízo e da sentença que o conclui.21
Mas não basta a preocupação com a elaboração de uma
denúncia bem formulada. É preciso que cada ato processual seja
devidamente acompanhado, de forma a garantir a efetiva equidistância do
órgão julgador e a fazer com que ele, diante do espírito acusatório-
constitucional, seja verdadeiramente provocado, sendo-lhe vedado suprir a
prova ou corrigir, como se titular fosse da acusação, as falhas de uma
atuação ministerial açodada e descomprometida.
Compete, enfim, ao Ministério Público não se esquecer de pautar
sua conduta pela matriz constitucional que não apenas conferiu-lhe uma
imensa gama de atribuições, mas também depositou-lhe a confiança na
prestação de suas funções com denodo e responsabilidade. A sociedade
passa por profundas transformações, em cujos conflitos, outrora
intersubjetivos, cada vez mais complexos, caracterizam-se como
metaindividuais, e exigem condutas capazes de melhor adequar o direito às
novas demandas sociais, nunca antes tão relacionadas à defesa dos direitos
humanos como hoje.
Não basta, contudo, que o modelo de atuação limite-se apenas à
defesa da retórica constitucional de função essencial à justiça. É preciso
agir, colocar em prática o dever. Será, no entanto, que isso tem sido feito?
Estão os promotores de justiça preparados para o exercício de tão árdua
tarefa?
21 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 558.
Por isso, prestam-se as linhas anteriores a uma breve
introdução ao que se pretende: colacionar dados estatísticos sobre o perfil
dos promotores em atuação na área criminal em importante capital do
sudeste, de forma a colher deles dados referentes à idade de ingresso,
engajamento profissional e impressões acerca de questões tormentosas
relacionadas à persecução penal e à execução penal, mormente no tocante à
(im)prescindibilidade da pena e aos direitos humanos do condenado.
A DEFESA SOCIAL AVANÇA?
O TRUQUE DOS NÚMEROS –
Virgílio de Mattos
Divulgado com extremo estardalhaço - é na propaganda dos “feitos”
do governo do estado que Minas mais avança, mesmo que tenha que deixar
a verdade para trás - o recente Anuário de Informações Criminais de Minas
Gerais22 pode enganar aos incautos, servir para o aplauso entusiasta dos
apaniguados e áulicos, mas não resiste a uma análise crítica. Por superficial
que seja, como esta se pretende.
A Fundação João Pinheiro, onde localizada a intelligentzia da famosa
Escola de Governo, adverte que: “não tem acesso aos dados primários ou às
rotinas de produção ou registro destes dados e, portanto, não pode
responsabilizar-se pela sua factibilidade”23.
Mas isso talvez não passe de um excesso de zelo, de uma fórmula
utilizada para se garantir de alguma manipulação ou magia havida nos
dados primários, ou mesmo nas rotinas de produção ou registro dos
mesmos, a ela repassados.
Afinal, são ou não são factíveis os números? O que me diz você,
leitor? Está tudo calmo no seu bairro, com você e com os seus? Seus filhos e
netos andam tranquilos, seguros pelas cidades de Minas? Esse propalado
achatamento dos números da criminalidade violenta atingiu sua cidade, seu
bairro? O “bom mocismo” dos bons moços deixa sua família mais
confortável? Os agentes de repressão agem dentro dos parâmetros legais?
Você está satisfeito com eles?
Tivéssemos a enormidade de recursos, humanos, financeiros e
correlatos aportados na publicação e para a feitura da publicação,
sobretudo, por certo nossas perguntas seriam outras, ou estas feitas acima.
22 - Fundação João Pinheiro/ Secretaria de Estado de Defesa Social. 2008, ISSN 1983-3741. 23 - Op. cit., p. 49.
Pretendemos tratar desse truque numérico, na verdade alguma coisa
de muito simples.
A leitura do trabalho elaborado, com gráficos e tabelas coloridos,
coisa fina, disfarça a verdade numa tentativa canhestra de enganar a todos
nós.
Será que estão pensando que a opinião pública é ingênua?
Desde o primeiro momento o atual governo do estado disse que faria
a repressão como quem pulveriza inimigos: implacavelmente24. E que
construiria cadeias, presídios e penitenciárias. Que a polícia prenderia
bandidos e não produziria bandidos como em outros estados da Federação.
Que a sensação de insegurança seria extirpada da sociedade, era apenas
isso que faltava e, atentos todos, tranquilos, a defesa social estava no
ataque...
Com a tal gestão e modernidade que prometeram aos incautos
eleitores os sociais democratas, autointitulados tucanos, tivemos um festival
de barbaridades no controle do desvio.
Mas a própria Fundação João Pinheiro, órgão oficial da intelligentzia
do estado, ao apontar as definições metodológicas usadas no trabalho nos dá
algumas pistas interessantes do truque, observem:
“CRIMES VIOLENTOS: Ocorrências classificadas como Homicídio, Homicídio Tentado, Estupro, Roubo e Roubo a Mão Armada, segundo a caracterização determinada pelo Código Penal Brasileiro”
Na verdade o CP não trata de “roubo a mão armada”, quem faz isso é a
mídia. O CP trabalha com majoração da pena no caso de roubo (a subtração
violenta com emprego de grave ameaça ou violência real25) se há o emprego
24 - Disse também que zeraria o déficit público, que geraria empregos como cogumelos, que acabaria com a patifaria, com o medo, com o analfabetismo, com a fome. 25 - Diz o art. 157 do CP: Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência.
de arma, seja foice, faca ou facão, chave de fenda ou revólver, ou seja, não
há nem sequer um rigor técnico científico.
Outro fato interessante e que tenta nos fazer de palhaços é o fato da
medição ser feita a partir do número de ocorrências vezes cem mil
habitantes, pois já que a população cresce vertiginosamente é óbvio que os
índices diminuirão de um ano em relação aos anos subseqüentes, mais isto
analisaremos de maneira mais aprofundada futuramente. Este texto é só
mesmo para marcar que a propaganda só consegue iludir ao mais pacóvio
dos néscios.
O parágrafo 2º, inciso I, trata do aumento de pena para o caso do crime ser cometido com o emprego de arma.
CRÍTICA DA SELETIVIDADE PENAL EM TEMPOS DE PRIVATIZAÇÃO
Ricardo Lara26
Na alvorada do século XXI fica cada vez mais evidente todo o projeto
neoliberal de exclusão das chamadas “classes perigosas”, ou melhor, para
sermos mais francos, daqueles que excluídos do mercado de trabalho vivem
numa condição de miserabilidade tão grande que ficam à margem da
sociedade de consumo, restando-lhes somente a contenção via cárcere, via
direito penal.
Desigual por excelência o Direito Penal tende a criminalizar condutas
típicas das classes subalternas27 e acaba sendo usado como um poderoso
instrumento de neutralização seletiva dos “outros”, dos “não - pessoas”,
daqueles que foram escolhidos para serem os alvos da vez.
Isso se dá mediante políticas de Lei e Ordem elaboradas por
pensadores conservadores que acreditam no inabalável dogma da pena,
como se ela fosse capaz de resolver todos os nossos problemas sociais. Tais
políticas que acabam por seduzir políticos tanto da esquerda punitiva
quanto da direita penal são vendidas através do auxílio luxuoso da mídia
que ancorada no sensacionalismo, com brutais encenações em forma de
violência, e alto conteúdo simbólico, no melhor tom volkish28, difunde a
sensação de medo e insegurança.
Tomados por estes discursos sem nenhum tipo de lastro científico a
sociedade brasileira é compelida a optar por segurança ou liberdade,
esquecendo, como bem lembra Maria Lúcia Karam29, que quando se
consente em trocar a liberdade por uma acenada segurança, perde-se a
liberdade, não se conquista a segurança e acaba-se por trocar a democracia
26 Advogado Criminalista. Do Grupo de Pesquisa Violência Criminalidade e Direitos Humanos da Escola
Superior Dom Helder Câmara. Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Aluno
de Pós-Graduação SENASP/ESDHC. 27BARRATA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal: introdução à sociologia do direito
penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro. Revan, 2002 28 Cf. ZAFFARONI.Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal.Rio de Janeiro. Revan.2007 E
BAUMAN.Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro.Jorge Zahar.2002 29 KARAM.Maria Lúcia.Recuperar o Desejo da Liberdade e Conter o Poder Punitivo.Rio de Janeiro. Lumen
Juris. 2009
por um autoritarismo que só faz agigantar mais e mais o seletivo poder
punitivo. E assim estamos vivendo desde que o projeto capitalista
hegemônico foi implantado entre nós. Todos aqueles que forem de encontro
ao projeto hegemônico ou simplesmente não se adequarem a ele serão
demonizados e se tornarão alvos do controle social, controle esse que
funciona como uma estratégia de neutralização e disciplinamento de
determinadas classes do povo brasileiro.
Se outrora perseguíamos, encarcerávamos e matávamos escravos,
capoeiras e malandros hoje encarceramos nossa juventude pobre que sem
alternativa acaba vendo no tráfico de substancias ilícitas uma maneira de
obter renda. Enfim, nos vemos dirigindo toda nossa violência aos tidos como
“inimigos”, há aqueles que por algum motivo, seja econômico, social, político,
cultural ou qualquer outro, se expressa de maneira diferente e por isso são
excluídos e criminalizados sendo-lhes atribuída toda a culpa do caos,
desordem e de todos os problemas do país como se não fossem eles mesmos
os que mais sofrem com tais problemas.
Segundo Vera Malaguti30 estes “outros”, “estranhos” são comparados
à sujeira e à desordem e é por isso que as sociedades avançadas fazem de
tudo para segregá-los e aniquilá-los e, é importante que se diga, já foram
vários; já foram bruxas, hereges, comunistas, terroristas, etc.
Hoje são os chamados consumidores falhos, que não servem nem
mesmo para formar aquilo que Marx denominou de exército industrial de
reserva31 sendo capazes apenas de fazerem aumentar os lucros da indústria
do controle e do crime. São os invisíveis, os ninguéns, aqueles que
desprovidos de capital para consumir têm excluídos todos os direitos
fundamentais, toda sua cidadania, num claro projeto genocida dirigido as
classes mais pobres.
30
Cf.MALAGUITI. Vera Batista. O medo na cidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro.Revan. Rio de Janeiro. 2004.
31Cf. MELOSSI, Dario e PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (século
XVI – XIX). Revan, Rio de Janeiro: 2006.
Por isso se faz cada vez mais necessário lutarmos contra esse sistema
que só faz gerar mais dor e segregação.
Vejamos por exemplo a ideia de privatizar o sistema prisional. Nos
Estados Unidos da América isso não deu certo e só foi bom para os
investidores32. Por que então acharmos que aqui dará certo? A quem isso
interessa? Os objetivos declarados da ideia da privatização chamada
eufemicamente de parceria público-privada nós já sabemos, mas, quais são
os reais objetivos deste projeto nesses sombrios tempos onde só impera o
consumo e o lucro?
Marx dizia há tempos atrás que um sistema no qual a valorização do
mundo das coisas aumenta em proporção direta à desvalorização do mundo
dos seres humanos tudo se transforma em mercadoria e predomina o poder
perverso do dinheiro. Será que alguém ainda pode duvidar que isso seja
verdade? Assim convido você a pensar.
No passado a função do cárcere era disciplinar as classes subalternas
para as fábricas, no século XX sua função foi a de neutralizar seletivamente
algumas delas. Agora neste século que se inicia querem extrair lucro através
da dor e do sofrimento que o encarceramento provoca num projeto genocida
que ao mesmo tempo extermina as classes baixas e enriquece mais ainda os
poderosos, afinal, todas as empresas buscam o lucro e isso não será
diferente com a empresa que irá administrar o presídio, ou seja, quanto mais
cadeias nos fizermos mais nos vamos encher...
Hobsbawm33 já alertara que se a humanidade quer ter um futuro
reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente
pois, se tentarmos construir o terceiro milênio nesta base iremos fracassar e
o preço do fracasso é a escuridão.
E aí leitor é esta a humanidade que se quer?
32
Cf. WACQUANT. Loïc, As prisões da miséria. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2001.
33 Cf. HOBSBAWN. Eric J. Era dos extremos: o breve século XX 1914 -1991.Companhia das Letras. São Paulo.
2004
NO EMERGIR, O PAI-PJ
Vanessa De Maria34
Nascido em um contexto de pesquisa há exatos 10 anos, o Programa
de Assistência Integral ao Paciente Judiciário – o PAI-PJ, que de projeto
piloto passou a Programa depois de aprovado pelo nosso Tribunal de Justiça
do Estado, vivencia hoje representar um modelo reconhecido em âmbitos
nacional e internacional, e é demandado por muitos de seus admiradores do
poder legislativo para que ele ganhe status de política pública, tamanho o
otimismo revelado em seus resultados ao longo destes anos, motivo pelo qual
devemos voltar nossos olhos para o tempo do seu começo.
Fernanda Otoni de Barros-Brisset, Psicanalista, Psicóloga Judiciária,
idealizadora e Coordenadora Geral da Casa PAI-PJ, vislumbrou que o
acompanhamento integral por uma equipe interdisciplinar composta de
psicólogos, assistentes jurídicos e assistentes sociais, em processos
criminais onde o réu fosse ou tivesse indícios de ser portador de sofrimento
mental, poderia levar este cidadão a percorrer os primeiros passos no árduo
caminho do reconhecimento de seus direitos e garantias, aqueles mesmos
previstos para todos no texto de nossa Constituição, mas que não vinham
encontrando nem base e nem muros de encosta em nossa sociedade, e muito
menos no Estado, aquele que deveria proporcionar-lhes a garantia de tais
direitos, só não se sabe se por razões de desconhecimento de uns ou de
fingimento de outros.
Dito isso, o que se pode afirmar é que, de dez anos pra cá, o
preconceito não diminuiu, não devemos nos iludir. A sociedade evoluiu sim,
mas ainda é óbvio que para muitos, lugar de louco é no hospital psiquiátrico,
ou de preferência preso, mesmo se não perigosos.
34 - Servidora pública do TJMG, Fisioterapeuta. Graduanda em Direito pela Escola Superior Dom
Helder Câmara. Do Grupo de Pesquisa-Ação,Violência, Criminalidade e Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara. Concurso de 2009.
O convite aqui é de reflexão, se são estes cidadãos infratores doentes,
não deveriam estar recebendo obrigatoriamente um tratamento? Os crimes
cometidos por eles não são os mesmos em todos os casos, há uma
individualização, então, porque as medidas de segurança aplicadas em
substituição às penas têm, na prática, a mesma duração para todos aqueles
que estão internados em manicômios judiciais? Dito em outras palavras, não
seria uma prisão eterna enquanto não submetidos ao exame de cessação de
periculosidade regularmente, de acordo com a nossa lei? Atente-se, não
confunda: parece prisão perpétua, mas não é, visto que é defesa no Brasil. É
mesmo?
Com os resultados impressionantes do Programa PAI-PJ o que
podemos afirmar é que algo mudou, não o suficiente, mas mudou, e muito
há que se mudar. Certo é que promovendo a estes cidadãos a
responsabilização pelos seus atos e enfatizando ao mesmo tempo o retorno
aos seus laços sociais, o que pode até parecer aos menos avisados um modo
simples de solução, pôde-se provar, nestes 10 anos, que através do concreto
trabalho com estes agraciados pelo Programa, puderam os mesmos
usufruírem de um sentimento por eles desconhecido até então, a honra.
Se os dados atuais de resultado do programa apontaram que os
infratores com sofrimento mental que foram atendidos pela equipe do PAI-
PJ, 70% deles cumpriam medida de segurança em casa, junto aos seus
familiares, trabalhando ou estudando, 23% deles estavam em regime de
internação e 7% deles estavam internados na Rede Pública de Saúde, dados
somados ao índice de reincidência em crimes de menos de 2%, e os que
reincidiram cometeram infrações leves, há de se eleger este Programa como o
que há de mais completo hoje no Brasil em termos de medidas alternativas e
prevenção ao crime, ao lado do método APAC, programas que surgiram
dentro de um contexto de legislação defasada, obrigando a adoção de
práticas de caráter efetivo.
É trabalhando conjuntamente com os juízes das varas criminais, que
são aqueles que determinam o acompanhamento dos pacientes pelo
Programa via judicial, ou mesmo se espontaneamente procurados pelos
familiares dos pacientes ou por eles próprios, são nestes momentos em que a
Equipe do Programa apropria-se de fornecer a melhor orientação acerca da
medida judicial a ser aplicada a cada caso, visando obter,
consequentemente, o melhor tratamento para o paciente. E, com a parceria
fundamental da rede pública de saúde e de assistência social do Estado,
promove-se o acesso mais rápido a tratamentos na rede substitutiva,
evitando o velho modelo de internação manicomial.
Por certo, se este programa for disseminado por todo o país, um
grande passo há de se dar em direção ao começo, aquele mesmo expresso no
artigo 1º, parágrafo III da Constituição Federal, marcando o que se pode
entender como o verdadeiro princípio, através de um novo olhar sobre grave
questão que incomoda - loucos versus dignidade humana, e que acaba por
revelar insensatos todos nós, humanos “normais”, na forma de nossa
intolerância e preconceito.
Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!35
35 - Mário Quintana.
PENA, PUNIÇÃO E VINGANÇA: O PIOR DO PIOR.
Renata Miranda Jardim36
As penas impostas são justas? Ou queremos apenas nos vingar do
mal cometido contra nós? Por que tanto “desejo” em ver que o outro foi
“exemplarmente” punido pelo erro cometido? Afinal, o que é uma pena?
As origens da pena são controversas, levando muitos a pensarem que
estas se encontram na vingança privada - a justiça com as “próprias mãos”
dos grupos tribais e clãs - e outros, na vingança religiosa – ofensas sofridas e
vingadas pelos deuses através da penas – a qual evoluiu, juntamente com a
humanidade, para a punição de ofensas contra a sociedade e contra a mais
nova “divindade inaugurada, chamada Estado” 37 , ou seja, quem pune já
não é mais Deus, e sim o Estado que detém o poder de punir legitimado e
exige que as regras impostas para sua própria sobrevivência não sejam
quebradas e quando forem, sejam rigorosa e exemplarmente punidas.
Percebe-se, então, que a finalidade da pena é punir, castigar um indivíduo
que pratica um delito (que, mais especificamente, lesa um bem jurídico)
contra um membro da sociedade, pondo em “risco” a segurança e a
tranqüilidade social. O Estado tem o papel de manter a coesão, o controle
social, a fim de que possa haver, especificamente, uma sociedade e, para
isso, ele se utiliza da pena para obter esse controle.
Analisando a História, vê-se que o Estado, a fim de impor sua
soberania e temor aos indivíduos, fez com que, inicialmente, a punição
caísse diretamente sobre o corpo do condenado, com a sua exposição e
humilhação pública e com vários tipos de suplício, onde o supliciado era
“esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro,
exposto vivo ou morto, dado como espetáculo” 38 . Esse tipo de punição –
vários e seguidos suplícios até a morte do indivíduo, que Foucault nomeia de
“mil mortes” -, com o passar do tempo, foi dando lugar, primeiro, a uma
36 Graduanda em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Membro do Grupo de Pesquisa-Ação,Violência, Criminalidade e Direitos Humanos da Escola Superior Dom Helder Câmara. 37 Iserhard (2005). 38
Foucault (2009).
“única” e rápida morte, a da guilhotina, da forca, para, finalmente, chegar à
reclusão.
Como afirma Foucault (2009), no fim do século XVIII esses
“espetáculos punitivos” vão começar a desaparecer, deixando o “campo de
percepção quase diária” para a “consciência abstrata”. Dos suplícios passa-
se à reclusão, aos trabalhos forçados, à deportação, à interdição do
domicílio, ou seja, o espetáculo infamante contra o indivíduo dito
delinquente deixa de ser visto por todos em praça pública para agora ser
visto apenas por poucos, em um ambiente fechado, o mais distante possível
dos centros povoados (para evitar possíveis fugas ou para evitar que a
sociedade veja o que ela permite que seja feito com outros seres humanos
em nome da chamada defesa social? Alguma semelhança com a realidade de
hoje?) sem que isso, de maneira alguma significasse não sofrer, ou
diminuição do sofrimento do condenado. Isso porque, ainda conforme
Foucault (2009, p. 20), mesmo que a pena não se centralizasse mais no
corpo do condenado e sim na perda de bens, castigo a trabalhos forçados,
privação de liberdade, estes “nunca funcionaram sem certos complementos
punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação
física, masmorra”, ou seja, o castigo sempre esteve presente, seja física,
psicológica ou materialmente falando. E, mesmo com a mutação dos tipos de
pena para algo mais “humano”, esse castigo ainda se encontra presente nos
vários locais de detenção e reclusão do sistema prisional brasileiro - e
também mundo afora -, onde pessoas são segregadas, tratadas de forma
cruel, desumana em locais onde os chamados “direitos humanos” sequer
existem.
Os tempos mudaram. Não há mais em praça pública os espetáculos
dos suplícios, mas há, ainda, o espetáculo dos suplícios atrás dos muros
altos e quase inacessíveis de presídios e penitenciárias, de delegacias e
cadeias públicas (onde os “olhos” da sociedade não alcançam ou, como
afirma Virgílio de Mattos (2008), “o que os olhos não veem, a sociedade não
se revolta contra”); há inflição de dor, humilhações, redução alimentar,
privação sexual e até mesmo expiação física (veementemente negada pelas
instituições carcerárias) – complementos punitivos que existiam em
estabelecimentos punitivos do final do século XVIII, citados por Foucault.
Tantos anos se passaram e ainda tem-se em mente que infligir dor,
trazer sofrimento para um ser humano, se vingar de uma injúria sofrida,
mesmo que através do Estado, que é “representante e o fundamento do
direito de punir” 39 da sociedade, é uma forma pedagógica de transformação
e reinserção social do indivíduo delinqüente chega a ser cruel e ignóbil. Há
quantos anos e em quantos países isso tem sido feito e não se veem
resultados positivos, e sim o contrário, o aumento da criminalidade, da
violência, da reincidência? Até quando a sociedade vai fechar seus olhos
para esta realidade? A vingança, ou punição, como se queira chamar, da
forma como tem sido empregada hoje, não tem resolvido – e não vai resolver
- o problema do aumento da criminalidade e de reincidência na sociedade
brasileira, pelo contrário, o ciclo vai sempre se renovar: “violência sempre vai
gerar mais violência”.
39 Iserhard (2005).
QUEM PRECISA DE UMA POLÍCIA PENAL?
Andreza Lima de Menezes
“Parecido sempre/ com o machado/ que fere o sândalo/ e
ainda quer sair perfumado” (Tom Zé, em O Sândalo)
No último dia 03 de maio, os agentes penitenciários e os respectivos
sindicatos de todo Brasil foram convocados a se reunirem em Brasília nos
próximos dias 11 e 12 do mês. O ato visa pressionar os deputados a colocar
na ordem do dia para votação da Proposta de Emenda Constitucional nº
308, em trâmite no Congresso Nacional desde 2004, cujo objetivo é
transformar os agentes penitenciários em policiais. A princípio, imagina-se
que os agentes pretendem incorporar-se às carreiras policiais já existentes –
polícias militares e civis -, quando, em verdade, a categoria almeja a criação
de uma nova polícia, a já denominada Polícia Penal, incluindo-a no rol do
art. 144 da CF/88.
Em regra, os agentes policiais, exceto os federais, ressentem-se
das péssimas condições de trabalho que lhes são oferecidas pelos gestores
públicos (baixa remuneração, treinamento e equipamento deficitários),
sendo, aliás, uma queixa recorrente dos militares assumir a escolta dos
presos e, dos civis, a sua custódia (nos lugares em que os agentes
penitenciários não realizam ainda essas tarefas). Por que, então, o desejo de
criar mais um órgão policial?
Os agentes penitenciários paulistas, cujo sindicato assina a autoria
do projeto, querem brasão, farda, distintivo, arma de fogo e carreira (com ou
mesmo sem concurso público40). Sua pretensão é criar duas instituições,
uma federal e outra estadual, às quais incumbiriam a coordenação e
execução da segurança no interior dos estabelecimentos prisionais das
respectivas entidades federativas. Mas esses são desejos menores diante da
40 A PEC prevê a possibilidade de os atuais cargos de agentes penitenciários serem transformados em carreiras (POLÍCIA PENAL, 2010). Resta saber se isso teria validade para os milhares de contratados que exercem as atribuições de agentes penitenciários, a exemplo de Minas Gerais (MATTOS, 2010).
grandeza do propósito: eles declaram que, substituindo o “singelo
amadorismo” pelo “entusiástico profissionalismo”41, tornarão efetivo o
cumprimento da Lei de Execuções Penais, promovendo, assim, a
reintegração social dos condenados e, portanto, trazendo benefícios tanto
para os trabalhadores do cárcere quanto, sobretudo, para a sociedade.
Para tanto, será necessário que os agentes dessa nova corporação
sejam investidos do poder de exercer “atividades policiais de caráter
preventivo, investigativo e ostensivo”. Diante desse campo vasto, o próprio
texto da PEC parece sinalizar quais seriam, afinal, tais atividades ao listar
expressamente algumas hipóteses de atuação da futura Polícia Penal:
defender as instalações físicas dos estabelecimentos prisionais, incluindo a
guarda das suas “muralhas”, escoltar os presos, cooperar para recaptura
“imediata” dos foragidos e coibir o “narcotráfico direcionado às unidades
prisionais”42.
A menção expressa a tais ações só pode explicada pelo fato de serem
as mais noticiáveis e, portanto, as mais visíveis à população quando mal-
sucedidas (para os agentes). Daí porque a proposta de uma polícia parece
tentar, na prática, fazer com que estes acontecimentos não logrem mais
evadir-se “com êxito” das muralhas do cárcere, onde o sofrimento das
pessoas em privação de liberdade e dos seus familiares tem sido
historicamente condenado a permanecer calado. Ora, se são os próprios
agentes penitenciários pudessem investigar os crimes ocorridos na unidade
prisional, como ficariam os crimes deles, os agentes? E quais seriam essas
ações para coibir o tráfico de drogas nas prisões? Reforçando o vexame nas
revistas aos visitantes, afinal são os familiares que movimentam este
mercado, não é mesmo? Soa talvez mais assustador quando sugerem que a
Polícia Penal poderá também contribuir para a fiscalização do cumprimento
41 MEIRELES, Amauri. A Polícia Penal no contexto da segurança pública: apontamentos para a Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública. Brasília: FEBRASPEN, 2009. Disponível em < http://www.sindasp.org.br/cartilha.pdf>. Acesso em 07 mai. 2010. 42 POLÍCIA PENAL. PEC 308/04 – redação final comentada. Disponível em < http://www.policiapenal.com.br/site/modules/xt_conteudo/index.php?id=6>. Acesso em 07 mai. 2010.
de condições nos casos de regime semiaberto e aberto, saídas temporárias e
livramento condicional, bem como do sursis e das penas restritivas de
direitos43. Será que não se contentam em tomar conta do lado de dentro?
A Polícia Penal é apenas mais um fruto do discurso neodefensivista
que, de novo, traz apenas a idéia de que polícia não atua apenas na
prevenção, investigação e repressão dos crimes ou na prevenção de riscos
(controle do trânsito, do meio ambiente, etc.). Após o fracasso (simbólico) da
Ditadura Militar, e a busca de sentido de um Estado que se viu no dever de
ser democrático, não seria conveniente ter a polícia como responsável pela
manutenção da ordem apenas mediante a ameaça e o uso real da força. Daí
não se deve surpreender quando os agentes penitenciários hoje se declaram
vocacionados a solucionar as falhas do sistema prisional e propõem a
“civilização do sistema prisional”, tomando para si a iniciativa para
programas de ressocialização, amparo aos trabalhadores do cárcere
(incluindo os que não atuam diretamente na segurança), aos egressos e aos
seus familiares44. Para as forças de segurança interessa essa espécie de
revival do Estado de Polícia que agora veste a roupa da cidadania e dos
direitos humanos para manter-se o mesmo ou talvez ainda mais autoritário.
Será que eles pensam que ninguém vai perceber? Ou será que nem eles
mesmos percebem todo o esforço em dar outros nomes aos bois?
É, no mínimo, lamentável que os agentes penitenciários, quando
finalmente conseguem se organizar, façam uso do mesmo discurso que, de
forma não declarada, contribui para a falta de reconhecimento social de que
tanto reclamam. Eles perceberam que, ao tornarem-se policiais, terão à
disposição uma série de prerrogativas reais e simbólicas que legitimarão o
uso da força e da ameaça (da qual, diga-se de passagem, já fazem uso).
Contudo, talvez não se deem conta que estes signos advêm do mesmo poder
que os recrutam entre as camadas pobres da população para controlar e
43 MEIRELES, Amauri. A Polícia Penal no contexto da segurança pública: apontamentos para a Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública. Brasília: FEBRASPEN, 2009. Disponível em < http://www.sindasp.org.br/cartilha.pdf>. Acesso em 07 mai. 2010.
44 Idem.
punir os pobres que vestem o outro uniforme45. Por isso, ao declarar amor à
farda, os agentes penitenciários talvez não tentem enganar a ninguém, mas
só a si mesmos.
45 MATTOS, Virgílio de. De uniforme diferente: o livro das agentes. Belo Horizonte: Fundação MDC,
2010.
ANOMIA JURÍDICA NA EXECUÇÃO PENAL MINEIRA
Wagner Luiz da Silva
O Brasil no início do século XXI vive em um completo estado de
anomia46 jurídica na Execução Penal.
Atualmente, a maioria dos operadores de direito envolvidos em
demandas jurídicas agem de maneira atípica, o “olupionato” 47 jurídico48
mineiro se desconstrói e perde sua identidade. O que há são advogados
hedonistas sem consciência de classe, que se humilham cercando
funcionários pelos corredores do fórum, ou reconhecendo poderes em
pessoas que sequer são funcionários da Execução Penal e acabam exercendo
uma função de eminência parda na respectiva Vara.
Em média, a decisão de um juiz da Vara de Execução Criminal (VEC)
leva aproximadamente um mês para ser cumprida, o que demonstra um
total desrespeito ao juízo que ali se encontra. Não raro, o SETARIN49, sequer
obedece à decisão judicial. Faz retornar a decisão à Vara de Execução Penal
e pronto.
O que chama a atenção é que a progressão de regime de uma pessoa
em privação de liberdade, quando dada pelo juízo da VEC, tem caráter de
decisão e, nesse contexto, o SETARIN deveria obedecer à decisão judicial
produzindo o ofício para saídas temporárias e trabalho externo ou emitir o
respectivo alvará de soltura. Feito isso, caso houvesse algum impedimento, o
46 Anomia é um estado que retrata a falta de objetivos e perda de identidade, provocado pelas intensas
transformações ocorrentes no mundo social moderno. 47O presente termo é derivado da palavra germânica “lumpenproletariat”, utilizada por Marx em sua
obra a Ideologia alemã. Na terminologia marxista, seria parte do proletariado constituída por aqueles que não dispõem de recursos e é caracterizada pela ausência de consciência de classe.
48Categoria jurídica, formada por operadores do Direito que tem por característica aspectos hedonistas
e que tentam resolver problemas imediatos de seus clientes e não discutem maneiras de melhorar a qualidade da prestação jurisdicional para todos, são pessoas que não possuem sentimento e consciência de classe, diante de um contexto de advocacia neoliberal tal postura acaba por enfraquecer as instituições representativas de Classe, é o caso da OAB.
49 Setor de Arquivo e Informações Criminais.
correto seria comunicar ao Ministério Público e este pediria uma audiência
de justificação ou, dependendo do caso, agravaria da decisão judicial.
Na prática, a anomia jurídica na execução penal em Minas Gerais é
um fenômeno que transcende todo e qualquer bom senso e nesse contexto, a
pena se desvirtua perdendo seu caráter de ressocialização, adquirindo um
perfil de expiação.
O ser humano privado de sua liberdade se transforma em um
“lupencarcerário” 50, destituído de identidade própria, que é substituída pela
“letra escarlate nazista” reconhecida como INFOPEN51.
Pior e mais desumana é a quantidade cada vez maior de cidadãos que
acabam desenvolvendo problemas mentais durante o período em que se
encontram presos. Em sua maioria são transtornos do humor (irritabilidade
e agressividade) ou bipolaridade.
Os próprios familiares das pessoas em privação de liberdade são
humilhados quando vão fazer visitas aos presídios. As revistas vexatórias
causam grande constrangimento e trauma nas pessoas mais humildes.
Embora exista toda uma tecnologia que poderia ser usada para evitar tal
constrangimento, técnicas sublimadas de tortura, travestidas de revista, são
utilizadas como forma de macular toda pessoa que visita um parente preso.
A Execução Penal tem que ser refletida à luz da Constituição Federal
de 1988 e do reconhecimento aos Direitos Humanos - estes são
descaracterizados por uma mídia pouco qualificada e aquela é sequer
mencionada em sentenças, pareceres do Ministério público ou pedidos de
advogados.
50A população encarcerada se transforma em uma massa de excluídos sem forma e sem vontade, sendo esquecida e manipulada quando convém. 51 Sistema de Informações Penitenciárias.
Diante desse quadro, o procedimento e processamento nas VECs são
muito mais relacionais do que processuais, ou seja, o processo por si só não
anda se o defensor não acompanhar pessoalmente o andamento processual.
Muitas vezes o pedido do advogado vai mais de uma vez para as mãos
do Ministério Público e este, em regra, faz manifestação totalmente diversa
do pedido contido nos autos, o que demonstra pouca atenção ou
desconsideração com o advogado que atua na Execução Penal.
Dada a autorização para saídas temporárias e trabalho externo, o
SETARIN tem poder de vetar uma decisão judicial alegando que há
impedimento. Pesquisando a razão de não se cumprir uma decisão judicial,
chega-se à triste explicação de que o impedimento pode se relacionar a uma
provável condenação e que a pessoa em privação de liberdade pode
aproveitar para evadir-se, pode, pois, haver regressão ao seu regime.
A regressão da pena no Brasil deveria seguir a lógica constitucional
da dignidade da pessoa humana contida no art. 1º, inciso III do CF/8852.
A simples observância a esse princípio constitucional relacionada ao
fim ressocializador da pena e às péssimas condições de encarceramento
permitiriam que a grande parte da população carcerária assistisse o direito à
prisão domiciliar.
Não obstante, a regressão acaba tornando-se, para o cidadão que
busca o resgate de sua identidade, uma forma de expiação, que em alguns
casos, não é tolerada, levando o ser humano a buscar sua liberdade através
do legítimo direito da fuga53, pois, o que é a pena no Brasil, se não um
grande embuste para todo e qualquer tipo de malvadeza?
52 “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)III - a dignidade da pessoa humana;
53 Não se está aqui fazendo apoteose à fuga e sim reconhecendo que o sistema carcerário atual é um massacre a todo e qualquer tipo de ser humano, seja a pessoa em privação de liberdade, sejam os familiares, sejam os próprios agentes penitenciários, todos são massacrados pelo atual política de encarceramento, esta não respeita a Constituição Federal de 1988 ou os Direitos humanos.
A progressão da pena, bem como sua regressão, não se harmoniza no
sentido de uma ressocialização constitucional54. Esta se desenvolve de
maneira estanque e particularizada, ou seja, cada VEC é um feudo cujo
funcionamento é ditado por portarias e práticas de andamento processuais
muito próprias e há casos em que a LEP55 é um verniz que subsidia as ações
nas VECs de Minas Gerais, que têm desvios comportamentais próprios, por
outros termos, a praxe viciada nas Varas de Execução Penal está tão
institucionalizada que trabalhar a Lei de Execução Penal em um contexto
constitucional pode ser entendido como desvio de conduta.
54Será trabalhado em artigo cientifico próprio o que vem a ser uma ressocialização constitucional. 55Lei de Execução Penal.
A MISÉRIA GOVERNADA ATRAVÉS DO SISTEMA PENAL:
NOTAS SOBRE O PENSAMENTO DE ALESSANDRO DE GIORGI56
William de Araújo Costa
Wagner Luís da Silva
O Século XXI vem assistindo à transição57 de um modelo social
baseado na disciplina para um modelo que tem por fundamento o controle,
este identificado por Gilles Deleuze e aquele pensado por Foucault, ambos
contextualizados com o fenômeno da biopolítica do poder58. Observa-se que
esses dois modelos têm por fim demonstrar as tecnologias de controle social
exercida pelo Estado, onde a vigilância total tem por fim adestrar o cidadão
para o mercado de trabalho, explorando ao máximo sua mão de obra. É
nesse contexto que Alessandro de Giorgi lança seu olhar crítico, focando seu
estudo nos reflexos dessa política no sistema penal.
De Giorgi esclarece que o Sistema Penal atinge principalmente a
massa de pessoas que estão excluídas do modelo de produtividade vigente,
sendo rotuladas e criminalizadas em seu modo de ser e viver.
Fundamentando suas observações nos estudos de Foucault, o autor lembra
que o sistema Penal tem por fim legitimar as formas de controle vigente,
56 GIORGI, Alessandro De. A Miséria governada através do sistema penal. Ed. REVAN. Rio de Janeiro. 2006.
57http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/Sociedade%20de%20controle.htm, acesso em 04 de maio de 2010 as 09h45min.
58 A biopolítica é um campo que permite agregar, aproximar, associar setores da realidade relacionados com a vida, a natureza e o conhecimento, cujas mudanças ao longo do tempo foram provocadas pela indústria, pela ciência e pela tecnologia, que hoje disputam o campo político-econômico e mundial. Na obra de Michel Foucault, é o estilo de governo que regulamenta a população através do biopoder (a aplicação e impacto do poder político sobre todos os aspectos da vida humana). Nas obras de Michael Hardt e Antonio Negri, é a insurreição anticapitalista que usa a vida e o corpo como armas; entre os exemplos, estão os refugiados e o terrorismo suicida. Conceitualizado como o oposto do biopoder, o qual é visto como a prática da soberania em condições biopolíticas.Para mais informações vide: http://www.scielo.br/pdf/csc/v9n2/20398.pdf, acesso em 04 de maio de 2010 as 10h15min; http://www.philoterapia.com.br/Downloads/biopolitica.pdf, acesso em 04 de maio de 2010 as 10h35min .
sendo exercidas “fundamentalmente por três meios globais absolutos: o
medo, o julgamento e a destruição” 59.
Alessandro De Giorgi usa o termo pós-fordismo em uma concepção
de “processos de transformação do trabalho e da produção” 60, este e aquele
relacionadas às dinâmicas de conflitos relacionadas à produção.
A transição do fordismo ao pós-fordismo é caracterizada pela
passagem de uma cultura da carência e o controle desta para uma cultura
do excesso e seu respectivo monitoramento.
O regime de excesso pode ser tanto negativo quanto positivo, este e
aquele são reconhecidas pelo autor como formas características do pós-
fordismo.
O regime de excesso negativo é fruto de um desequilíbrio entre a
economia e as garantias sociais, estas conquistadas na primeira metade do
século XX estão sendo retiradas e o Direito do trabalho está sendo
substituído pela ideia de um direito ao trabalho. Nesse contexto pós-fordista
os direitos sociais conquistados perdem espaço para uma cultura do
trabalho globalizado e precarizado, sem garantias mínimas para o
proletariado.
O regime de excesso positivo se relaciona à mudança do fenômeno
econômico-social-trabalhista em fins do século XX e inicio do século XXI. A
atividade laboral deixa de ser exercida em espaços pré-definidos, quais
sejam, as fábricas, e passam a se expandir de forma radical, com o advento
dos meios virtuais, para outros meios estranhos a uma local de trabalho tido
como convencional61, sendo que o tempo de trabalho e descanso se
confunde, bem como a ideia de fábrica e casa.
59 Para mais informações Vide: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20disciplinar/Sociedade%20de%20controle.htm, acesso em 04 de maio de 2010 as 11h10min.
60 GIORGI, Alessandro De. Opu. cit., p. 64. 61 A idéia de trabalho convencional no presente texto, deve ser vista como sendo a atividade laboral
exercida em local pré-definido com funções determinadas, sendo que há uma clara cisão entre a fábrica e o domicilio, esta não se confunde com aquela.
De Giorgi explica que a passagem do regime de carência do fordismo
para um regime do excesso do pós-fordismo força os Estados soberanos a
refletirem sobre suas políticas de controle, pois as formas de controle postas
foram concebidas em um contexto de um proletariado convencional,
articulado internamente e não globalizado. O atual modelo de controle não
assiste mais a essa nova realidade de cidadão, reconhecida na presente obra
como multidão.
Multidão é a confusão posta nas relações de trabalho pós-fordista
onde não há distinção entre produção e reprodução, emprego e desemprego,
trabalho e linguagem. As relações de classe ficam prejudicadas, pois não há
mais uma clareza de quem é o operário e não há mais a figura da fábrica
para identificá-lo.
Diante da impossibilidade de um controle mais efetivo, o Estado
acaba por fazer o que se denomina Governo de excesso pós-fordista para
controlar a multidão. Tal controle não visa combater a criminalidade, ao
contrário, está mais ligado um modelo de política repressiva e estratégias de
controle.
O surplus62, excedentes da força de trabalho, em um contexto pós-
fordista acabam sendo regulados não mais por instrumentos de regulação
social baseadas em políticas publicas de qualidade, mas sim por dispositivos
de repressão social do desvio, ou seja, o Estado social transforma-se em um
Estado Penal63.
Por fim, o autor busca refletir formas de resistência contra o
surgimento desse Estado Penal. Entretanto, reconhece a dificuldade posta,
62 Entenda-se por surplus: “O excedente (surplus) ou produto liquido, é a parte da produção social
total que excede a reconstituição dos meios de produção e dos meios de subsistência necessários àqueles que com seu trabalho criaram a própria produção social”, para mais informações, ver “O Excedente econômico”, de Luiz Fernando Alcoba de Freitas, acesso em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/10774/000600121.pdf?sequence=1. Acesso em 09 de maio de 2010 às 12h15min.
63 Cabe ressaltar que em recente entrevista a um programa sensacionalista de extrema direita o pré-
candidato José Serra declarou que vai “engaiolar” e aumentar a repressão no Brasil. Tal fato demonstra de forma clara que De giorgi está correto em sua análise, pois o pré-candidato em questão pretende tornar o Brasil em um Estado Penal, criminalizando o excedente de mão de obra.
pois as formas de controle bem como a mudança da figura do proletariado
em multidão criam entrave para uma resistência mais homogênea. O que há
são ações difusas de embates contra a implantação dessas políticas que
transformam o Estado Social em um modelo de Estado Penal.
ELAS: O GÊNERO ENCARCERADO
Geraldo Ovídio de Oliveira Júnior
Muito se discute a situação dos presos no Brasil, mas poucos voltam
seu olhar à parcela feminina dessa população. Frequentemente verificam-se
notícias, artigos, seriados e filmes sobre o sistema penitenciário.
Edmundo Oliveira64 sabiamente ressalta que:
“A técnica deu aos países de Primeiro Mundo o conforto, o bem-estar e a abundância. Tudo isso é bom, mas não basta. Ela não evitou o aumento da violência, o choque das raças, o genocídio, a proliferação do narcotráfico, a engrenagem da corrupção, o desemprego, o gangsterismo, a miséria maior dos pobres, a mortalidade infantil e tantos outros males, como o desencadeamento de uma violência e de uma insegurança nunca dantes conhecidas”.
Percebe-se que a liberdade é um dos bens jurídicos mais importantes,
senão o mais importante, sendo que sua privação quando não leva a morte
física, certamente leva a morte moral, ficando o cidadão encarcerado
distante de possibilidade de recuperação.
A prisão, além de ser um ambiente de controle de poder nas mãos de
poucos, vem funcionando como reflexo de uma sociedade que reproduz
diversas formas de discriminação e exclusão de mulheres, onde os objetivos
de segurança e disciplina terminam sendo os fins prioritários das ações
institucionais.
São poucos os trabalhos que atualmente se debruçam sobre a
temática do sistema penitenciário. Voltar a atenção para a mulher é ainda
mais difícil e, um tema praticamente invisível dentro da agenda pública.
64 OLIVEIRA, Edmundo. Política criminal e alternativa à prisão. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.330 p. 01.
Sabe-se que o número de mulheres encarceradas é expressivamente
menor que o dos homens, apesar de também estar aumentando em relação
ao universo masculino, apesar de continuarem sendo escassos os estudos
dedicados à criminalidade feminina.
Um estudo coordenado pela socióloga e antropóloga Bárbara
Musumeci Soares e pela advogada Iara Ilgenfritz65, chama a atenção para a
miopia do poder público e da sociedade.
Bárbara e Iara vivenciaram situações diferentes para o cidadão
comum. As peregrinações no Presídio Nelson Hungria, no Instituto Romeiro
Neto, na Penitenciária Tavalera Bruce, no Manicômio Heitor Carrilho e no
Hospital Psiquiátrico Roberto Medeiros, todos do Estado do Rio de Janeiro,
renderam tanto um conhecimento das instalações e do funcionamento
dessas instituições, como muitas histórias dolorosas para contar.
De acordo com as autoras, “a trajetória das presas praticamente se
confunde com histórias de violência". Elas explicam que a relação entre
vitimização e entrada no Sistema de Justiça Criminal, freqüente entre os
detentos, é especialmente forte entre as mulheres. "Mais de 95% sofreram
violência em pelo menos um destas três ocasiões: na infância/adolescência,
no casamento ou nas mãos da polícia; 75% foram vitimadas em pelo menos
duas dessas ocasiões; e 35% em todas as três ocasiões”.
As detentas queixam-se de maus tratos, choques elétricos e ameaças
de morte por policiais; de pais alcoólatras; abusos sexuais sofridos na
infância; maridos violentos e agressores. Muitas têm pais, maridos e irmãos
assassinados.
Assim, constata-se a falta de esforço do Poder Público no sentido de
buscar esforços e colocar em prática ações que promovam a iniciação e a
qualificação profissional além da elevação da escolaridade. É necessário que
haja outras iniciativas, como a implementação de atividades produtivas, o
desenvolvimento da cultura empreendedora e a integração familiar e
65 SOARES Bárbara, Musumeci, ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras - vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro, Editora Garamond, 2002.
comunitária de mulheres presas e egressas, mas é preciso colocar em
“prática”, não deixar apenas no papel.
REVISTA VEXATÓRIA: TER SAUDADES NÃO É CRIME!
Ítalo Narciso Lima Ribeiro
A revista ou busca pessoal, de acordo com o art. 244 do Código de
Processo Penal é o meio utilizado pela autoridade competente, que sob
fundada suspeita de que uma pessoa esteja portando produtos ilícitos,
objetos ou papeis que constituem corpo de delito, possa interceptar o porte
ou utilização destes.
Esta busca é feita em qualquer lugar, entretanto quando se trata da
entrada de pessoas nas unidades prisionais, a revista tem sua regulação
própria. Por exemplo, o dispositivo legal que a estabelece nas unidades
prisionais do Estado de Minas Gerais é a Lei Estadual nº. 12.492/97.
A lei 12.492/97 prevê possibilidade de revista intima (art.4°, § 1º), de
modo que a disposição legislativa nesse sentido viola o princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR), pois transforma o ser humano
em mero objeto, ou instrumento de produção de ilícito, sendo, pois
inconstitucional.
A revista íntima é chamada de revista vexatória, pois como o próprio
nome indica, trata-se de um procedimento constrangedor e incompatível
com a afirmação da dignidade humana. No mesmo sentido, sabe-se que além
do descompasso da lei infraconstitucional com a Constituição, a revista é
praticada de modo abusivo é sem a fundada suspeita de que a própria lei
exige no seu art.4,§2°.
Assim, pergunta-se: Ser familiar de uma pessoa privada de liberdade
é crime? Obviamente, a Constituição da República em seu artigo 5°, Inciso
XLV66, afirma que não!
De outro lado, infelizmente a prática é bem diferente! Os visitantes
são penalizados visto que, devem submeter-se a uma revista constrangedora,
que transgride vários direitos individuais estabelecidos pela norma
66 Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.
normarum, entre os quais: (1) o princípio da dignidade da pessoa humana,
que prevê o respeito ao ser humano, como já dito, no sentido de que este não
seja considerado objeto e fique à mercê da arbitrariedade do Estado; (2) e, o
princípio da individualização da pena que estabelece que a pena deva ser
aplicado somente ao condenado não ao familiar ou qualquer outro.
Todo esse arcabouço de violações começa, antes mesmo, da chegada
do familiar ao estabelecimento prisional, com as privações impostas pelo
sistema de transporte que é precário e bastante caro, o que faz inclusive que
muitos deixem de visitar aqueles que se encontram privados de liberdade.
Depois de uma cansativa jornada de ônibus, o familiar permanece
em uma fila, por volta de 3 a 4 horas. Quando entra, passa por uma revista
que é feita de modo intimidatório. As pessoas tiram a roupa, quando mulher,
esta deve fazer força para que seja visto o canal vaginal. Se este não for visto,
pela agente prisional não poderá ser feita a visita. A presunção nesse caso é
de culpabilidade, isto é, de que portam objetos não permitidos à entrada, são
considerados criminosos também.
Se por um lado há uma não percepção do “problema prisional”, por
outro a percepção é a midiática que produz estereótipos lombrosianos de
“criminosos” como monstros. Na verdade, monstruosos são aqueles que
contribuem com esse sistema perverso, de criar controles e mais controles!
Assim, neste afã de controle social o familiar é rotulado de criminoso,
mesmo sem saber o porquê, aliás, alguns sabem que são rotulados, apenas
pelo simples fato de ser familiar ou amigo de alguma pessoa que cometeu
um fato lamentável que é definido como crime, por uma determinada classe
dominante de uma coordenada geográfica e tempo também determinados.
A PRIVATIZAÇÃO DO CÁRCERE E A MERCANTILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES HUMANAS
Rafhael Lima Ribeiro
No afã de uma solução definitiva para o “problema” da criminalidade,
a privatização do cárcere tem sido aclamada como marco de desenvolvimento
prisional. E, por conseguinte, de desenvolvimento social, visto que a questão
penitenciária é um dos problemas que mais inquieta o poder público.
Infelizmente a inquietação não tem sido a da impossibilidade de qualquer
desenvolvimento social com um desenvolvimento (entendido como
ampliação) penitenciário, esta tem sido unicamente a de que a sujeira que é
colocada para debaixo do tapete, comece a feder. O sistema prisional tem
cheirado mal! E as mazelas sociais que ele agrava, ou dele decorrem, cada
vez mais ficam evidentes.
O pior é que estas evidências, em qualquer latitude ou longitude são
demasiadamente mascaradas, com um reformismo que soa patético. As
soluções são nada mais que: mais do mesmo, mais do pior. Numa
circularidade hermenêutica em que ao controle só resta produzir mais
controle. Dito mais claramente: o sistema prisional privado é um modo de o
privado controlar o público e do publico achar que controla o privado. Em
Minas Gerais, já passada a primeira década do século XXI, o controle total
via cárcere ultrapassou o limite da imoralidade.
Cabe lembrar como se chega a esse limite da imoralidade, para tanto
Loïc Wacquant entende que a privatização do cárcere é utilizada
“quanto mais intensamente a política econômica e social implantada pelo governo do país considerado inspire-se em teorias neoliberais que levam a ‘mercantilização’ das relações sociais, e quanto menos protetor desde o início seja o Estado-providência em questão”. 67
Neste sentido o governo de Minas Gerais ao introduzir o modelo de
parceria público-privada no sistema prisional mineiro traduz bem o que o 67 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 141
mesmo autor chama de transformação do “Estado Social” em “Estado Penal”,
outro atributo do conservadorismo político da direita.
O que se observa é que a parceria público-privada no sistema
prisional mineiro é uma nova ideia velha de o Estado estatizar o prejuízo e
privatizar o lucro, inspirado no modelo neoliberal de privatizações
disseminado por Thatcher na Inglaterra e Reagan nos EUA. A lógica é
simples e sutil: quando uma empresa privada investe, deve ter garantias de
que terá o retorno do investimento. Quando ela constrói uma estrada, isso
pode ser garantido por um pedágio. Da mesma forma, quando ela constrói
uma cadeia, terá lucro pelo aprisionamento, ou dito de outro modo, pelo
objeto desse aprisionamento. Quanto mais passam carros, mais a empresa
privada ganha. Assim, quanto mais se prende seres humanos, mais a
empresa lucrará!
Essa engrenagem cruel de prender gente é parte de um controle das
relações sociais que pode ser feita melhor ainda com a transformação do ser
humano em mercadoria, em produto. Isso tudo é controle! Sobre o controle
via discurso, são úteis as palavras de Zaffaroni
“En la era de la revolución tecnológica, hasta ahora lo importante para el poder político no es asumir un discurso académicamente coherente, sino emitir discursos a la medida de la comunicación mediática, que tengan efecto tranquilizador (normalizante), aunque en la realidad produzcan efectos paradojales”.68
Sem mais palavras, o momento é oportuno para o deslumbramento.
É necessária uma reflexão mais transparente da privatização do cárcere e de
seus efeitos na sociedade, para que a aparência de progresso e
desenvolvimento não obscureça os reais efeitos do cárcere, e ainda mais
agora, de um cárcere com a inserção da vontade privada. Também, mais do
que a preocupação com os efeitos para a sociedade, devemos sempre
68 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En torno de La cuestión penal. Editorial B de F- Montevideo- Buenos Aires, 2005, p. 36