o câncer desafia a ciência

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Pesquisa FAPESP - Ed. 99

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Page 1: O câncer desafia a ciência
Page 2: O câncer desafia a ciência

Uma fêmea de camundongo nascida no Japão é o primeiro mamífero concebido a partir de duas células femininas, sem a contribuição de material genético masculino.

PESQUISA FAPESP 99 • MAIO DE 2004 • 3

Page 3: O câncer desafia a ciência

www. revistapesq u is a. fapesp . br

46 CAPA

Avanços na pesquisa do câncer salvam muitas vidas, mas a doença ainda desafia a ciência

10 HOMENAGEM

O adeus a Francisco Romeu Landi (1933-2004)

4 • MAIO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 99

REPORTAGENS

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

28 POLITICA INDUSTRIAL

Apoio à inovação tecnológica procura resgatar o papel da Finep e do BNDES

32 Governos federal e paulista têm planos de construir fábrica de hemoderivados

34 FOMENTO

Instituto U niemp cria agência para estimular a produção de fármacos

35 AGRONOMIA

Pesquisadores concluem primeira fase do seqüenciamento do genoma do café

36 POLITICA PUBLICA

Nogueira Neto, aos 82 anos, estuda manejo e gestão ambiental

CIÊNCIA

54 BIOQUIMICA

Descoberta nova função de triturador de moléculas no interior das células: criar novas proteínas

Page 4: O câncer desafia a ciência

REPORTAGENS

56 BIOLOGIA

Produção antecipada de enzimas reduz riscos de danos celulares causados pelo excesso de oxigênio no retorno da hibernação

59 AGRICULTURA

Pulgões podem espalhar vírus suspeito de causar a morte súbita dos citros

60 FISICA

Experimentos aprofundam o conhecimento sobre a estrutura dos núcleos dos átomos

TECNOLOGIA

70 ZOOTECNIA

Novas linhagens de rã-touro utilizadas em cativeiro asseguram maior produtividade

74 NOVOS MATERIAIS

Sensores ultra-sensíveis, em escala nanométrica, diferenciam nuances na composição de líquidos e gases

78 ENGENHARIA

Empresa domina ciclo completo de produção de painéis solares que fornecem energia para satélites artificiais

80 FARMACIA

Látex de pequeno mamão contém substâncias cicatrizantes para diferentes tipos de feridas da pele

HUMANIDADES

82 FESTIVAL

Alunos e professores de São Paulo se reúnem em Minas para celebrar a música barroca

86 MI DIA

Estudo avalia documentários sobre a natureza a partir de Amaral Netto, o Repórter e do Globo Ecologia

90 CULTURA

Estudo traz arqueologia da origem do debate sobre as artes no Brasil

93 PERSONALIDADE

A contribuição do sociólogo Octavio Ianni, morto no mês passado

94 LITERATURA

Editora carioca recupera com criatividade obras esquecidas no passado

16 ENTREVISTA

lván lzquierdo fala sobre a arte de lembrar e esquecer

SEÇÕES

IMAGEM DO MÊS ........... .. ... 3

CARTAS ........... . ....... ... . 6

CARTA DO EDITOR . .............. 9

MEMÓRIA .. . .. .. ......... . .. . 14

ESTRATÉGIAS . .... . .......... . 22

LABORATÓRIO ... . ...... .. ..... 42

SCIELO NOTÍCIAS . ........... .. 64

LINHA DE PRODUÇÃO .... .. ... .. 66

RESENHA .......... . .. .. .... . . 96

LIVROS ... .. .............. .. . . 97

Capa: Hélio de Almeida Foto: Miguel Boyayan Tratamento de imagem: José Roberto Medda

PESQUISA FAPESP 99 • MAIO DE 2004 • 5

Page 5: O câncer desafia a ciência

cartas@fapesp .br

Versão on line

Desculpem-me se a iniciativa já existe há algum tempo. Mas somente na edição no 98 tomei conhecimento da versão on line da revista Pesquisa FAPESP. Parabéns à FAPESP e à revis­ta por esta extraordinária iniciativa de disponibilizar na Internet (a to­dos, indistintamente) a íntegra de tão conceituada publicação. Hoje em dia, em uma sociedade na qual a ótica principal é o lucro máximo (não é errado ter lucro; ele é necessário para que a empresa possa crescer e melhorar seus serviços e produtos) em detrimento do bem-estar e do desenvol-vimento social e humano, é espantoso que uma publi-cação disponibilize na In-ternet, sem a tradicional co-brança da assinatura, seu rico conteúdo. Vale o exem-plo de vocês. Que um nú-mero cada vez maior de as-sinantes (que pagam por sua assinatura, como eu) con-tinue contribuindo para que a FAPESP e a Pesquisa FAPESP pos­sam continuar a desempenhar este inestimável serviço para toda a socie­dade. Se uma empresa age com cons­ciência é porque as pessoas que a fazem também têm bom nível de consciência. Parabéns à FAPESP e à revista pela qualidade e pelo compro­misso social e humano que seus ftm­cionários e colaboradores têm.

A NTONIO }OS" SAMPAIO C OUTO

São Paulo, SP

Revista

Estou no terceiro ano do ensino médio e no mês de março tornei-me assinante de Pesquisa FAPESP. Con­gratulações à equipe responsável pela publicação, pois os assuntos aborda­dos e as reportagens bem elaboradas vêm me auxiliando a compreender

6 • MAIO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 99

melhor as disciplinas escolares e me é possível adquirir informações além do que consta no material didático.

Sei ELO

LA!S ALVES RI CCI

São Sebastião do Paraíso, MG

Não sejam egoístas: nós também estamos comemorando a marca dos 120 periódicos disponíveis no SciE-

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

lJ) N OVART IS TroptNet.org

LO. Parabéns a todos: os que fazern.e os que usam o SciELO; com ele nos­so trabalho ficou melhor e mais fá­cil. A sociedade ganhou.

}ORG INO P OM PEU JúNIOR

Centro de Citricultura Sylvio Moreira Cordeirópolis, SP

Integração brasileira

Durante toda a minha vida, va­riadas vezes, tive de ver o nome de índio brasileiro escrito com as letras W, K e Y, letras estas que não existem em nosso alfabeto, como pode ates­tar qualquer aluno do curso primá­rio. É intuitivo: se não existe no alfa­beto, não pode ser empregado em nomes brasileiros. Alfabeto de índio brasileiro é o mesmo de meu netinho. Lendo a reportagem "A luz que o ho­mem branco apagou" (edição no 92),

sobre as sociedades indígenas com­plexas que existiram na região do Al­to Xingu (que foram dizimadas pelo branco dito civilizado), sou obriga­do a ler nome de brasileiro como "Afukaká Kuikuro" e "Urissapá Ta­bata Kuikuro". Estive no cartório e me informaram que aceitam nomes estrangeiros com W, K e Y. Será que índio brasileiro é estrangeiro? Um pro­fessor da Universidade de São Pau-

lo disse-me que se escreve nome indígena com W, K e Y baseado em uma con­venção da Sociedade Bra­sileira de Antropologia, ocorrida em 1953, na qual foi imposta a nós, brasilei­ros, essa norma, provavel­mente para agradar às pes­soas de língua inglesa e para tornar mais fácil para um norte-americano ler Kuiku­ro em vez de Cuicuro. Não sou contra norte-america­no, mas espera um pouco. Aprendi que, quando um país ou um povo começa a perder sua língua, seus cos­tumes, sua religião, sua mú-

sica, seu folclore, suas tradições, está começando a perder sua identidade e sua soberania está sendo solapada. Escrever o nome de brasileiro usan­do alfabeto alienígena, pondo de lado o nosso, significa que estamos come­çando a perder o alfabeto que herda­mos de nossos antepassados.

C ESÁRI O LANGE DA SILVA PI RES

São Paulo, SP

Febre reumática

Tomo a liberdade de apontar im­propriedades publicadas pela revista em sua edição no 98. No artigo intitu­lado "Cirurgia sem sangue" afirma-se que a febre reumática causa dor de garganta. Na verdade, o correto é o in­verso: a febre reumática costuma re­sultar de infecções de garganta (amig­dalites), quando estas são causadas

Page 6: O câncer desafia a ciência

pelo Streptococo do grupo B, em pes­soas com predisposição constitucio­nal, de base genética, para desenvolver uma resposta imunológica anômala a antígenos daquela bactéria. Em se­guida é afirmado que em estágios mais avançados a febre reumática pode atin­gir o sistema nervoso central, produ­zindo coréia de Sydenham. A coréia não ocorre em estágio mais avançado da febre reumática, mas é uma mani­festação tardia (em geral meses de­pois do surto de febre reumática), em geral de evolução benigna, mesmo que demorada. Não existe relação en­tre a gravidade da febre reumática e o aparecimento ou não de coréia. Tanto quanto se sabe, a coréia sara sem dei­xar seqüelas. Valho-me da oportuni­dade para cumprimentar a FAPESP e o corpo de redação da revista pela ha­bitual excelência da qualidade nas informações divulgadas.

Correções

E DER TREZZA

Faculdade de Medicina da Unesp

Botucatu, SP

Em 7 mil exemplares da edição no 98 foi suprimida uma linha na repor­tagem "Cirurgia sem sangue", à pági­na 55. A frase completa cuja linha não aparece é a seguinte: "No primeiro gru­po, quase metade das crianças sofria de TOCou apresentava sintomas ob­sessivo-compulsivos, mas ainda não intensos o bastante para caracterizar o quadro típico de TOC':

O nome científico correto do me­xilhão dourado é Limnoperna fortunei e não Limnoperma fortunei como consta na reportagem "Um estranho nas geleiras do sul" (edição no 96).

Cartas para esta revista devem ser enviadas para

o e-mail [email protected], pelo fax (ll) 3838-4181

ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP,

CEP 05468-901. As cartas poderão ser

resumidas por motivo de espaço e clareza.

PESQUISA FAPESP 99 • MAIO DE 2004 • 7

Page 7: O câncer desafia a ciência

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Page 8: O câncer desafia a ciência

Pesquisa CARLOSVOGT

PRESIDENTE

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO

CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI,

NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO

BRENTANI,VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCN1CO-ADM1NISTRAT1VO FRANCISCO ROMEU LANDI

DIRETOR PRESIDENTE

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

JOSÉ FERNANDOPEREZ DIRETOR CIENTIFICO

PESUUISA FAPESP

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO, EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA

COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ,

LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO.WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR-CHEFE NELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA

EDITORES CARLOS FIORAVANTI (tlÍKCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES),

CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACS.T), HEITOR SHIMIZU (VEBSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)

EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA

EDITORES-ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO

CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS

DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI

FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOVAYAN

COLABORADORES ANA MARIA FERRAZ, ANDRÉ SERRADAS, BRAZ,

EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FABRlCIO MARQUES, FRANCISCO BICUDO, LAURABEATRIZ, LILIANE NOGUEIRA,

MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MARGÔ NEGRO, MARILI RIBEIRO, MARISA LAJOLO, MAYUMI OKUYAMA, NEGREIROS, SAMUEL ANTENOR, SÍRIO J. B. CANÇADO, RENATA SARAIVA,

THIAGOROMERO (ON-LINE), YURI VASCONCELOS

ASSINATURAS TELETARGET

TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: [email protected]

APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA

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IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA

TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES

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TEL: (11) 3865-4949 [email protected]

GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP

FAPESP RUA PIO XI, N" 1.500, CEP 05468-901

ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

http://www.revistapesquisa.fapesp.br [email protected]

NÚMEROS ATRASADOS

TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL

DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

CURTA DO EDITOR

Reflexões sobre a morte e a vida A FAPESP viveu pela primeira vez,

em seus 42 anos de existência, b> a dura experiência da morte

inesperada de um dirigente da institui- ção em pleno exercício do mandato. Seu diretor-presidente, Francisco Ro- meu Landi, trabalhou normalmente ao longo da quinta-feira, 22 de abril, e quando voltava para casa no começo da noite, morreu, vítima de infarto. O pro- fessor Landi, como o chamavam todos na Fundação, jeito sempre afável, ale- gremente brincalhão com os mais pró- ximos, mas de uma obstinação a toda prova ainda que suave na defesa de seus pontos de vista, estava no cargo desde 1997, depois de ter sido entre 1995 e, 1996 presidente do Conselho Superior da FAPESP. Atravessava seu terceiro mandato, que só terminaria em agosto de 2005. Assim, entre perplexidade e tristeza, a Fundação faz agora a necessá- ria travessia do luto. E nela cabem inú- meras homenagens a quem se dedicou tanto aos problemas da ciência e tecno- logia no Brasil. Entre elas, alinhamos o texto que começa na página 10 desta edição de Pesquisa FAPESP- que, aliás, sob o comando do professor Landi, transitou de modesto boletim de notí- cias a revista de divulgação científica.

A reportagem de capa desta edição, a partir da página 46, também leva a inevitáveis reflexões sobre vida e morte. O editor especial, Marcos Pivetta, mer- gulhou profundamente no assunto e trata ali de circunscrever os limites dos atuais tratamentos do câncer, doença que é hoje a segunda grande causa de morte no país, já que dela decorrem nada menos que 13,2% de todos os óbi- tos. Procura verificar os avanços efeti- vos da pesquisa científica nesse campo, após algumas décadas de investigação transcorridas entre momentos de eu- foria e desesperança, e os desafios que estão postos para os pesquisadores, no Brasil inclusive, para que um diagnósti- co de câncer mais e mais deixe de soar para cada paciente como algo muito próximo de uma sentença de morte.

Nem só das revoluções sombrias do corpo humano, contudo, trata a edita-

ria de Ciência nesta edição. A entrevis- ta com o neurologista Ivan Izquierdo, a partir da página 16, caminha luminosa por entre as descobertas dos mecanis- mos de omissões, ocultamentos, esque- cimentos, lembranças e relembranças que vão compondo essa fascinante pro- priedade humana chamada memória. E é de extraordinário interesse o trecho em que o pesquisador se refere à recen- te retomada, no âmbito da neurociên- cia, do conceito, tão importante na teo- ria freudiana, de repressão ou memória reprimida, graças à constatação cientí- fica de sua veracidade.

Uma sensação luminosa, algo celes- tial, também pode resultar da leitura sobre o festival de música da pequena cidade mineira de Prados, realizado em meados de julho, há 26 anos. Idealiza- do pelo maestro Olivier Toni, profes- sor da Escola de Comunicações e Ar- tes da USP, hoje aposentado, trata-se de um festival muito singular, como rela- ta a partir da página 82 o editor-chefe da revista, Neldson Marcolin. Primei- ro, ele se desenvolve numa completa in- teração entre músicos de fora e popu- lação local e, segundo, está centrado em antigas e mal conhecidas peças sa- cras brasileiras, escritas por negros e mulatos. É bela a música do século 18 que ali se ouve e a cada ano podem vir à luz raridades que não são executadas há mais de 200 anos.

Para finalizar, a reportagem do edi- tor de Humanidades, Carlos Haag, a partir da página 86, a respeito de um estudo que avalia documentários sobre a natureza produzidos para a televisão brasileira, nos traz de volta e finca bem nossos pés no chão da cultura contem- porânea do espetáculo. E nela, esse estudo percebe, as questões ambientais tendem a ser tratadas com recursos bem mais próprios do campo ficcional que do jornalismo, os animais podem ser antropomorfizados até a náusea, a nar- rativa parece ganhar cores de relatos vi- vos de guerra. Vale conferir.

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 9

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OMENHGEM

Construtor obstinado Francisco Romeu Landi, diretor da FAPESP, era um especialista em reunir talentos para equacionar questões de C&T

Francisco Romeu Landi, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, morreu no dia 22 de abril, aos 71 anos. Deixou uma extensa e bem-suce- dida biografia, uma agenda ainda repleta de compromis- sos, e muitas saudades.

Landi foi fundador e era presidente do Fórum Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) e membro do Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A convite do minis- tro Eduardo Campos, da Ciência e Tecnologia, preparava-se para integrar a equipe responsável pela organização da 2a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia; negociava a representação das FAPs no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia; e acompanha- va de perto a produção e a edição dos Indicadores de Ciência Tec- nologia e Inovação no Estado de São Paulo 2003, que será lançado pela FAPESP nos próximos meses. Cuidava, pessoalmente, da ho- menagem que a FAPESP prestará a Alberto Carvalho da Silva, no dia 13 de maio, que, como Landi, foi diretor-presidente da Funda- ção. Em agosto, deveria abrir, em Londres, como convidado espe- cial, o congresso mundial da União Internacional das Instituições de Defesa Ambiental e Controle da Poluição (Iuappa).

Uma semana antes de sua morte, esteve no Chile, representando a Fundação na cerimônia de inauguração do telescópio Soar (sigla de Southern Observatory for Astrophysical Research), projeto que contou com o financiamento da FAPESP. Na tarde do dia 22, par- ticipou de uma reunião do Conselho Técnico-Administrativo da Fundação, em que se detalhou a portaria do Conselho Superior fle- xibilizando a dedicação exclusiva de bolsistas (ver nota à página 27). Deixou a FAPESP no começo da noite, comprou pão na padaria e morreu, vítima de infarto, a caminho de casa, onde vivia com a esposa Marísia. Sem tergiversar e discretamente, como sempre.

Seu corpo foi velado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), instituição na qual se formou e da qual foi pro- fessor titular e diretor. Centenas de amigos lhe prestaram a última de tantas homenagens que ele teve em vida. Em 2003, os seus 70 anos foram comemorados com um simpósio, organizado pelo Centro Interunidade de História da Ciência da USP, que tinha como tema uma de suas obsessões: Financiamento da pesquisa e desenvolvi- mento da nação brasileira, cujos anais serão, em breve, publicados

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 11

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pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), ins- tituição da qual Landi foi vice-presidente. Em 2000, recebeu o título de Eminente Engenheiro do Ano, do Instituto de Engenharia; em 1999, o de Chevalier dans TOrdres de Palmes Académiques, do Ministério da Educação Nacional da Pesquisa e da Tecnologia da França, além do prêmio Professor do Ano, conferido pela Poli; em 1998, recebeu o Troféu Personalidade de Pesquisa e Educação, do Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo; e em 1992, o de Cavaleiro da Ordem do Mérito Naval, da Marinha brasileira.

Engenheiro especializado nos aspectos da física das construções e da termodinâmica, Landi, paulistano nascido a 22 de março de 1933, dedicou mais de 50 anos de sua vida à Escola Politécnica. Educador, formou gerações de estudantes, inclusive seus três filhos, Paula, Fernando e Francisco, todos enge- nheiros. Sempre se pautou pelo princípio de que a tecnologia tem profunda repercussão na sociedade e é elemento crucial para as mudanças sociais. Reco- nhecia o papel indispensável do Estado na formula- ção de políticas públicas que estimulassem a ino- vação. E sonhava com a sociedade do conhecimento "sem fronteiras, dinâmico, democrático". "Será uma sociedade de sêniores e de juniores e não de chefes e subordinados", previu em sua palestra durante o se- minário que comemorou seus 70 anos, juntando suas idéias às de Peter Drucker. "Os engenheiros necessita- rão de uma visão de dupla ou até múltipla cultura", alertou. "Preocupa-me a formação do engenheiro em uma sociedade que se transforma tão rapida- mente. Como organizar um curso de engenharia no qual devemos ensinar tecnologias que ainda não fo- ram criadas? De que maneira devemos completar a formação do engenheiro com psicologia comporta- mental, criatividade, trabalho em equipe, empreen- dedorismo, cidadania, de maneira a poder enfrentar os novos desafios que se apresentam?", indagava-se. E foi atrás de resposta: mergulhou de cabeça no proje- to Poli 2015, que tem como meta transformar a Es- cola Politécnica para mantê-la como referência na- cional e internacional em ensino, pesquisa e extensão universitárias.

Landi, ele próprio, era um humanista. Fa- zia "uma espécie de ponte" entre as ciên- cias humanas e a engenharia, nas palavras de Shozo Motoyama, diretor do Centro Interunidade de História da Ciência da

USP. Projetava a educação no mesmo cenário da ciência e da tecnologia. Daí a sua agilidade de transi- tar em áreas aparentemente tão díspares.

"A história da consolidação das instituições de ensino superior no Brasil, e particularmente em São Paulo, está profundamente ligada à atuação de Lan- di", afirma Carlos Vogt, presidente da FAPESP. "Isso refletiu no seu trabalho como diretor da Poli e na sua presença em quase todas as funções de direção da FAPESP, onde teve papel destacado no cumprimento

dos objetivos sociais da instituição, ou seja, no apoio regular e sistemático ao desenvolvimento da ciência e tecnologia."

Sua determinação e extrema simpatia pautavam sua agenda de trabalho, dentro e fora da FAPESP. Landi era um obstinado. Em 1996, atendendo a um pleito da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), iniciou a organização do Fórum das Fundações de Amparo à Pesquisa. "Na época, eram dez FAPs em todo o país, hoje são 22. Só faltam Ro- raima, Rondônia, Amapá, Tocantins e Espírito Santo", contabilizou Landi, na última entrevista à revista Pesquisa FAPESP, em março. Ao mesmo tempo que implantava o sistema, lutava pela autonomia admi- nistrativa e financeira das fundações e pelo respeito aos repasses dos recursos previstos nas Constituições es- taduais. "É preciso respeitar a lei", indignava-se.

Para Jorge Bounassar Filho, presidente da Fundação Araucária (FAP do Paraná), a facilidade de relacionamento e de lideran- ça contribuiu para que ele organizasse as fundações em nível nacional. Landi era "o

homem certo, no lugar certo". Tanto que foi eleito por unanimidade para o seu segundo mandato no co- mando do Fórum das FAPs. "Landi era o grande líder. Tinha sensibilidade para agregar questões sociais e compreender as dificuldades do setor. Determinado, sempre vislumbrava resultados permanentes", afirma Acácio Salvador Veras e Silva, presidente da Funda- ção de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (Fape- pi). "Tinha o perfil de um engenheiro, mas era um humanista", completa José Geraldo de Freitas Dru- mond, presidente da Fundação de Amparo à Pesqui- sa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). "O nosso Fórum nunca mais será o mesmo", afirma Marcos Brasileiro, presidente da Fundação de Amparo à Pes- quisa do Estado da Paraíba.

Landi foi membro do Conselho Superior da FA- PESP por cinco anos e seu presidente, em 1995 e 1996, antes de assumir o cargo de diretor-presiden- te, naquele ano. "O cargo de diretor-presidente requer qualidades pessoais que eram dele: articulação e po- der de integração", diz José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP.

No período em que esteve na linha de frente da Fundação, Landi pautou a sua ação tendo por base duas das atribuições da instituição previstas em seus estatutos: a divulgação do conhecimento científico e a promoção periódica de estudos sobre o estado geral da pesquisa em São Paulo e no Brasil, bem como de estu- dos históricos e de avaliação do impacto das pesquisas na sociedade que pudessem servir como instrumento de formulação de política científica e tecnológica.

Um resultado da primeira dessas atribuições - divulgação do conhecimento científico - é a própria revista Pesquisa FAPESP. Iniciada em 1995 como o boletim Notícias FAPESP, com quatro páginas e ti- ragem de mil exemplares dirigidos a pesquisadores

12 ■ MAIO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 99

Page 12: O câncer desafia a ciência

paulistas, foi na gestão Landi na diretoria da presi- dência, à qual o setor de comunicação estava subor- dinado, que a publicação se transformou efetivamente e, como tal, começou a crescer. Nos quatro anos em que foi o Notícias FAPESP - antes que se constituís- se um conselho editorial e que a revista se tornasse projeto especial ligado à Diretoria Científica - era ele quem lia todas as edições do informativo. As repor- tagens, a seu ver, estariam boas quando ele fosse ca- paz de ler com gosto sobre qualquer assunto e sem nenhuma dificuldade de compreensão. Esse critério guiou os passos da revista no seu crescimento. Tam- bém coordenou a edição dos livros Vigor e inovação na pesquisa brasileira e Do laboratório à sociedade, tra- zendo reportagens sobre resultados de projetos te- máticos financiados pela FAPESP.

Também foi Landi quem incentivou estudos na área de história da ciência e promoveu a publica- ção de livros como FAPESP: uma história de política científica e tecnológica e FAPESP: marcos documen- tais, que reconstitui a criação e a atuação da Fundação até 1998. "...Documentar a história da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo" - escreveu ele no prefácio do li- vro - "é uma maneira de co- nhecer e preservar a memória dos homens que, desde o co- meço da década de 40, pen- saram e conceberam essa instituição - cientistas, en- genheiros, políticos, adminis- tradores públicos. É uma forma de rever as idéias que nortearam sua criação e con- solidação. É também uma for- ma de reflexão sobre um modelo

V

vitorioso de administração de política de ciência e tecnologia proposta pelos próprios cientistas."

Mas Landi pensava o Brasil. Os livros 50 anos do CNPq contados pelos seus presidentes, com depoi- mentos e entrevistas com dirigentes do Conselho Na- cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e Prelúdio para uma história: ciência e tecnologia no Brasil - a ser lançado em breve numa co-edição FA- PESP/Edusp - são exemplos disso.

"Editar os depoimentos de pessoas que estiveram no centro dos acontecimentos ajuda a entender o porquê dos objetivos definidos por aquelas institui- ções. Tem o sabor de entender as lutas internas e ex- ternas que se estabeleceram e, acima de tudo, perce- ber que essas lutas foram ganhas, ou melhor, por que foram ganhas", afirmou no prefácio do livro 50 anos do CNPq.

A implantação na FAPESP de um setor responsá- vel pela produção de indicadores paulistas de ciência e tecnologia também foi obra sua. Achava que a or- ganização de uma ampla base de dados sobre a situa-

ção da ciência e da tecnologia permitiria planejar as ações de política e de investimento. Coorde-

nou a produção e edição dos Indicadores de 1998 e de 2001 e acompanhava a edição de

2003. Coube a Landi, também, desenvol- ver e coordenar o Programa Biblioteca Eletrônica (ProBE), que deu origem ao Portal de Periódicos da Capes - Coordenadoria de Aperfeiçoamen- to de Pessoal de Nível Superior. Também foi ele quem coordenou o projeto de criação do Centro de Do- cumentação e Informação (CDI), in- formatizado e em implantação, que

reúne banco de dados contendo toda a memória da FAPESP. •

Landi sonhava com a sociedade do

conhecimento "sem fronteiras, dinâmico

e democrático"

Page 13: O câncer desafia a ciência

MEMóRIA

União pela ciência CERN completa 50 anos como um bem-sucedido exemplo de cooperação internacional

N NELDSON MARCOLIN

o final dos anos 1940, quem olhasse para a Europa

veria um cenário desolador. Mal saídos da Segunda Grande Guerra, os países europeus estavam em frangalhos, lutando pela própria reconstrução à sombra do esmagador poderio econômico e bélico de norte-americanos e soviéticos. Na ciência, a situação não era melhor. Os Estados Unidos atraíam alguns dos principais pesquisadores do mundo, seduzidos pelas excelentes condições de trabalho e perspectivas de realização de projetos importantes. Mas, como sonhar nunca foi proibido, um grupo de físicos que incluía Isidor

Isaac Rabi, Ugo Amaldi, Pierre Auger e Denis de Rougemont percebeu - e passou a pregar - que a cooperação entre as nações européias era o único caminho para se fazer pesquisa de ponta naquelas condições precárias. Nenhum país conseguiria, sozinho, bancar um grande programa de pesquisa nuclear, tema sobre o qual estavam voltadas as atenções. Sensibilizada, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) recomendou, em 1950, a instalação de um laboratório europeu e, três anos depois, uma convenção foi assinada por 12 países criando o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN, na sigla

em francês). Apenas um ano depois, em 1954, começaram as escavações em Genebra, na Suíça, para a construção da instituição, um laboratório de física debaixo da terra com gigantescos aceleradores de partículas, essas grandes máquinas circulares que provocam choques entre elas - o maior deles, o Large Hadron Collider, tem 27 quilômetros de circunferência. A colisão entre partículas serve a objetivos diversos: entender algo tão grandioso como a origem do Universo ou tão corriqueiro (nos dias de hoje) como desenvolver melhores equipamentos médicos, para pesquisa ou para a indústria. São as partículas atômicas que formam os átomos, que por

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Integrantes do CERN observam começo da escavação, em 1954 (esc/.). Acima, o círculo de 27 km mostra onde fica o túnel do acelerador LHC

sua vez compõem toda a matéria que se conhece. Algumas dessas partículas são estáveis e conhecidas. Outras vivem por frações de segundos e se transformam. De acordo com as teorias mais aceitas, todas elas conviveram por alguns instantes depois do Big Bang, a grande explosão que teria dado origem ao Universo. Somente uma enorme concentração de energia, como a que ocorreu naquele momento, poderia recriá-las. Um acelerador faz isso: simula condições semelhantes ao ambiente de cerca de 13,5 bilhões de anos atrás, quando tudo teria começado. É como se fosse possível voltar no tempo e estudar detidamente quais partículas existiram e como

Engenheiros em uma das câmaras do CERN (acima). Ao lado, a descoberta das partículas W e Z, que deram um Nobel a Rubbia eVan der Meer

foram geradas. Experimentos como esse deram o Nobel de Física de 1984 para Cario Rubbia, italiano, e Simon van der Meer, holandês, pela descoberta das partículas W e Z. O trabalho confirmou a unificação das forças eletromagnética e fraca, que regem o comportamento do átomo. Foi também no CERN que o inglês Tim Berners-Lee criou, em 1990, a World Wide Web, o www que possibilitou a Internet tornar-se algo muito fácil

de usar. O CERN cresceu e hoje tem 20 países integrando a instituição em caráter permanente: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Eslováquia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Noruega, Polônia, Portugal, Suécia, Suíça, Reino Unido e República Tcheca. Há também outros países, como o Brasil, que participam de programas do centro. O brasileiro Roberto Salmeron foi um

dos dez primeiros físicos experimentais contratados pelo CERN, poucos meses depois de ter sido fundado, onde trabalhou por 37 anos e meio entre idas e vindas. "O CERN é o mais bem-sucedido exemplo de colaboração internacional, não somente em ciências, mas em qualquer domínio", afirma Salmeron. "É um exemplo de sucesso e tem sido tomado como modelo para a organização de outras instituições internacionas e nacionais."

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ENTREVISTA: IVAN IZQUIERDO

Lembranças e omissões Neurocientista fala sobre a importância das memórias e também do esquecimento

MARCOS PIVETTA

Com um sotaque carregado que ainda trai a sua terra natal, a platina Buenos Ai- res, o médico e neurocien- tista Ivan Izquierdo, 66

anos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é um dos maio- res especialistas em fisiologia da memó- ria do mundo. Produtivo como poucos, dono de um currículo com mais de 500 artigos científicos, que já foram citados quase 8 mil vezes em trabalhos de outros pesquisadores, Izquierdo conduziu estu- dos que, nas últimas três décadas, aju- daram a entender o papel desempenha- do por substâncias químicas e estruturas cerebrais na formação, preservação e per- da das recordações e lembranças. Uma de suas contribuições mais importantes foi a demonstração de que existem duas divisões da memória, a de curta e a de longa duração, que se formam em pa- ralelo, mas de maneira diferente. "So- mos exatamente o que nos lembramos e também somos aquilo que não quere- mos lembrar", diz esse leitor assíduo de seu compatriota lorge Luis Borges.

Casado com uma gaúcha e com amigos deste lado da fronteira, Izquier-

do deixou a Argentina em 1973, "quan- do a situação política era muito amea- çadora", e rumou para pátria de sua mulher. Morou três anos em São Pau- lo, onde trabalhou na Escola Paulista de Medicina (hoje Universidade Fede- ral de São Paulo), antes de se fixar em Porto Alegre. Achava que o Brasil era apenas uma escala em sua vida, mas es- tava enganado. Acabou ficando por- que, entre outras razões, aqui a ditadu- ra militar acenava com a perspectiva de uma abertura lenta e gradual do re- gime. "E na Argentina veio um fecha- mento súbito e total", afirma. Em 1981, quando se sentiu "mais um da casa" no novo país, naturalizou-se brasileiro. Hoje, se define como um "Meligeni da ciência", numa referência ao tenista Fernando Meligeni, nascido na Argen- tina e também naturalizado brasileiro. Izquierdo, aliás, recorre com freqüên- cia a ídolos do esporte - e da literatura - para explicar conceitos das neuro- ciências, como o leitor verá nesta en- trevista. Formalmente aposentado des- de o ano passado, continua na ativa, à frente do Centro de Memória do Insti- tuto de Biociências da UFRGS.

■ Por que o senhor resolveu estudar os me- canismos da memória? — Porque achei - e acho ainda - que é um mecanismo que tem sempre algo de misterioso por trás, algo que diz res- peito a quem somos. Somos indivíduos porque temos memória. Somos exa- tamente aquilo que lembramos. Cada um de nós tem um certo acervo de me- mória que é peculiarmente nosso, que não compartilhamos com ninguém. Tudo isso me pareceu suficientemente interessante para eu me dedicar a esse tema para o resto da vida.

■ Hoje quanto ainda há de mistério para a ciência sobre a questão da memória? — Bem, sempre haverá um mistério, que é o fato de a memória envolver, de certa forma, transformações da realida- de que a gente enxerga, ou que a gente sente, em um código neuronal. E, de- pois, eventualmente esse código neuro- nal - que é elétrico e é químico, as duas coisas - se retransforma em expressões daquilo que nos lembramos, se trans- forma em lembranças, recordações. Sempre haverá algo que fará com que isso seja eternamente misterioso.

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■ Quais são as principais contribuições da- das pelo seu grupo de pesquisa para o melhor entendimento de como se forma a memória? — A primeira grande contribuição nos- sa, junto com outros grupos, foi a de- terminação dos grandes mecanismos cerebrais que modulam a memória, de diversos mecanismos mediados por neu- rotransmissores, como a serotonina, a dopamina e a noradrenalina, ou por hormônios, como a adrenalina, a beta- endorfina, a vasopressina e os corticói- des. Isso foi nos anos 1970. Nessa linha de trabalho, destacaria a descoberta dos mecanismos de ação da nicotina e da anfetamina e, mais tarde, da beta-en- dorfina sobre a memória. A modulação da memória por todas essas substân- cias faz com que a formação e a evoca- ção da memória sejam tão sensíveis às emoções e aos estados de ânimo. Mais recentemente identificamos sobre quais substratos moleculares das áreas cere- brais, que fazem e evocam memórias, atuam essas substâncias, e de que ma- neira (elas atuam). A segunda contribui- ção importante foi o estudo dos meca- nismos moleculares reais da memória,

sobretudo no hipocampo. Isto se ini- ciou em meados dos anos 1980, quan- do começou a haver modelos úteis so- bre os quais se podia trabalhar. Essa linha de pesquisa nos permitiu conhe- cer em detalhe a seqüência molecular dos processos de formação das memó- rias no hipocampo e em outras regiões cerebrais. A terceira grande contribui- ção foi a divisão da memória em me- mória de curta e de longa duração. Ao contrário do que se pensava, demons- tramos que as divisões da memória são dois processos paralelos e diferencia- dos. Demonstramos que a memória de curta duração não era a parte inicial da outra, a memória de longa duração. Isso é de grande importância na pato- logia da memória. As contribuições mais recentes nossas consistiram em identificar os mecanismos envolvidos na evocação, em várias regiões cerebrais, os mecanismos moleculares da extinção das memórias e, ultimamente, os me- canismos do que resultaram ser uma forma diferente de memória: a memó- ria de aprender novamente. É diferente da memória de aprender mais e dife- rente da evocação.

■ O senhor poderia explicar em mais de- talhes o funcionamento dessas duas divi- sões da memória, a memória de curta e a de longa duração? — São duas memórias que se disparam ao mesmo tempo, que se formam nas mesmas células nervosas, mas utilizam mecanismos moleculares separados. Você aprende algo e a memória defini- tiva dessa coisa que você (ou qualquer animal) aprendeu leva várias horas para ser formada. Ainda assim, en- quanto essa memória de longa duração não está construída, você consegue res- ponder (a uma questão que envolva esse aprendizado). Para podermos con- versar durante esta entrevista, você não tem por que esperar que se consolide a memória da frase anterior, que levará várias horas. Não é preciso fazer isso. Você na hora responde ao que eu digo e eu respondo ao que você diz. Para fa- zermos isso, utilizamos um sistema pa- ralelo à memória de longa duração, um sistema mais simples, um pouco mais elementar e menos estável, que se de- nomina memória de curta duração. Ela se parece com a memória de trabalho (RAM) dos computadores.

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■ Essa memória de curta duração subsis- te por quanto tempo? — Mais ou menos de três a seis horas. A melhor analogia que conheço para diferenciar essas duas memórias é a si- tuação de quando vamos morar num ho- tel enquanto constróem a nossa casa. O hotel é a memória de curta duração, pro- visória, e a casa será a de longa duração.

■ Hoje qual é a sua principal linha de pesquisa? — A partir da década de 1990, mais ou menos, começamos a trabalhar em co- laboração com o grupo de Jorge Me- dina, da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires, nos me- canismos que realmente participam da memória. Nessa época, começou a ficar claro no mundo que o principal neuro- transmissor não é nenhum dos que mencionei antes, mas sim o ácido glu- tâmico. A grande transmissão excita- tória do cérebro é glutamatérgica, e a grande transmissão inibitória é pelo aminoácido gama-amino-butírico. En- tão começamos a estudar os mecanis- mos que são promovidos ou postos em ação por esses compostos. Enquanto Eric Kandel (prêmio Nobel de Medicina em 2000), por exemplo, demonstrava os mecanismos moleculares da plasticida- de neuronal em moluscos, passamos a estudar os mesmos processos, ou outros parecidos, em memória de mamíferos.

■ Mais especificamente, qual é o tema de seus trabalhos mais recentes? — Ainda nem terminamos de escrever o trabalho, mas estamos demonstrando que, quando a gente aprende duas vezes, utiliza mecanismos diferentes dos usa- dos para aprender uma coisa uma vez. É diferente aprender em uma ou em duas lições. Você utiliza outro lugar do cére- bro. Para aprender duas vezes, você uti- liza o mesmo mecanismo que está en- volvido com os hábitos, localizado no corpo caudato. Para aprender uma vez, seja para aprender muito ou pouco, utiliza-se mais o hipocampo. Isso talvez seja muito importante, porque a maio- ria das coisas nós não aprendemos bem de cara, senão em várias sessões.

■ Essa distinção vale para o aprendizado de conceitos? — Não sei. Por enquanto, sabemos que essa diferença aparece no rato que apren- de a não descer uma plataforma para

não receber um choque. É o aprendi- zado de um comportamento induzido, de um reflexo condicionado. Mas, veja, todos os aprendizados são reduzíveis a comportamentos ou seqüências de comportamentos. Todos.

■ O senhor poderia explicar os dois gran- des tipos de memória, a declarativa e a de procedimentos? — Em geral, as memórias declarativas são aquelas que o humano pode ex- pressar, pode declarar que existem. Por exemplo, a memória da medicina. Eu posso dizer e demonstrar que me lem- bro das coisas da medicina. Em ani- mais é mais difícil identificar esse tipo de memória. Neles, a gente utiliza me- mórias que se assemelham àquelas que o humano pode declarar. As memórias declarativas podem ser semânticas ou episódicas. Nós nos lembramos de epi- sódios da própria vida, o animal tam- bém. Nós nos lembramos de conceitos de grandes coisas, como a medicina, e o animal também. Já as memórias de procedimentos são aquelas que envol- vem hábitos, por exemplo, saber tocar um teclado, saber nadar, andar de bici- cleta. Esses são procedimentos. É difícil explicar esse tipo de memória, declarar que existe; só se pode demonstrar atra- vés da prática de um procedimento: tocar um teclado, nadar efetivamente, andar mesmo de bicicleta.

■ Por que, com o tempo, a gente vai per- dendo as memórias, mesmo as de longa duração? — Há várias formas de perder memó- rias. Uma é a perda mesmo, que ocor- re quando uma sinapse se atrofia pela falta de uso, ou desaparece por dano ou morte celular. Esse é o esqueci- mento propriamente dito; nele, as me- mórias efetivamente desaparecem, porque desaparecem as células que as (con)tinham. Más há outras formas de perder memórias, pelo menos per- dê-las na aparência. Uma delas é a extinção, na qual as memórias não se perdem; são escanteadas para um lugar menos acessível do cérebro. Em algum canto, elas estão. Sua represen- tação existe, mas é anulada pela im- posição de um aprendizado novo em cima do anterior. O animal aprende li- teralmente a não responder como res- pondia, a não pensar como pensava, a não fazer o que fazia.

■ Quer dizer que as memórias extintas po- dem ser recuperadas? — Em tese, sim. Muitas vezes podem ser recuperadas, mas nem sempre. Su- ponha, por exemplo, que você está acostumado a ir todos os dias a um gui- chê para pegar dinheiro. Um dia vai e o guichê está fechado. Você, então, muda o comportamento. Em vez de ir pegar dinheiro, dá meia volta quando vê o guichê fechado. Faz isso três, quatro dias. Quando finalmente se dá conta de que o guichê continua fechado, deixa de ir lá. Extingue esse comportamento. Mas, se um dia, por acaso, você passa pelo guichê e nota que ele está aberto, você vai lá e pega o seu dinheiro. A ex- tinção é uma das formas de varrer para baixo do tapete uma memória. É útil, é necessária. Sem ela, a gente não teria espaço físico no cérebro para pensar. Não seria possível comparar as coisas, pois estaríamos sempre nos lembran- do de que são parecidas e nunca po- deríamos notar as diferenças. Ou de que são diferentes e nunca notaríamos as semelhanças.

■ Quais são as outras formas de perder memórias? — Outra forma interessante é a repres- são freudiana, da qual ninguém falou durante 70 ou 80 anos, fora os freudia- nos. Mas agora ela voltou à cena como um processo fundamental. Um grupo americano encontrou o mecanismo da repressão freudiana, que é diferente da extinção. O grupo de John Gabrieli (da Universidade Stanford) descobriu que a área pré-frontal do cérebro, bem na ponta do lobo frontal, manda inibir o hipocampo, que é a região mais envol- vida na evocação da memória. Manda frear a evocação de, por exemplo, uma certa palavra. Isso pode ser feito até que o hipocampo finalmente aprenda a não responder mais. Na prática, é como se a memória reprimida estivesse ausente, embora não esteja e possa sempre vol- tar. A repressão freudiana e a extinção da memória são duas armas fundamen- tais para podermos sobreviver. Acabo de escrever um livro chamado A arte de esquecer, em que digo que o esqueci- mento é uma coisa boa, necessária. Somos o que lembramos - e também aquilo que não queremos lembrar.

■ Mas nós não temos controle total sobre esse processo. Quer dizer, muitas vezes lem-

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bramos coisas que queríamos esquecer e es- quecemos outras que queríamos lembrar. — Não somos perfeitos. Na medida em que passam os anos, o número de me- mórias que temos se torna cada vez maior. Então, algumas a gente extingue ou reprime. A depressão é a causa mais freqüente, mas menos grave, de amné- sia, que é a falha ou falta em geral da memória declarativa. No esquecimento real, como vimos, as bases das memó- rias se perdem pela inatividade de cir- cuitos nervosos envolvidos em uma ou outra memória ou pela perda real de neurônios, que acontece com a idade, com as doenças degenerativas etc. No mal de Alzheimer, por exemplo, morrem neurônios, sinapses — e morrem as memórias que estavam contidas neles.

■ Hoje há algum tratamento eficaz con- tra problemas de memória? Por exemplo, contra o Alzheimer? — Ainda não há tratamento para Al- zheimer. Nessa situação, há morte neu- ronal, e os neurônios perdidos não podem ser repostos com a informação original.

■ A saída seria a reposição desses neurô- nios? — Para recuperar a função geral, sim; mas não para recuperar cada memória, é claro. Nos últimos anos, descobriu-se que alguns lugares do cérebro têm ca- pacidade de reposição neuronal, entre eles o hipocampo. Mas, pelo que se viu até agora, essa capacidade nunca vai rein- tegrar uma memória desaparecida. Po- derá permitir que a máquina se reinsta- le para poder fazer uma nova memória.

■ Epara perdas de memória mais leves e em pessoas mais jovens, há tratamentos? — Sim, mas não há remédios. O que há são formas de treinamento da memó- ria, baseadas geralmente na leitura. Os remédios não adiantam porque o cére- bro, em cada momento peculiar, já está fazendo tudo o que pode, dadas as cir- cunstâncias de sentimentos e de emo- ções inerentes a cada momento. E as memórias que tenha aprendido ou evo- cado nos momentos anteriores

■ Por que o senhor costuma dizer que o es- quecimento é necessário para o homem? — Fundamental, porque senão literal- mente não haveria lugar no cérebro (para tanta informação). Há vários es-

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1 Somos o que ![__ ^. í lembramos e

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tudos recentes aos quais se deu pouca importância, mas que são fundamentais para entender isso. Um grupo norue- guês, em colaboração com um pesqui- sador inglês, mostrou que o hipocam- po é a principal região do cérebro que faz e evoca as memórias declarativas. Um animal utiliza 40% da estrutura to- tal do hipocampo para aprender uma determinada noção espacial. Para evo- car esse aprendizado, usa 60% do hipo- campo. Durante o tempo em que está aprendendo, ou evocando esse apren- dizado espacial, o animal não pode fa- zer outra coisa. Ele, por exemplo, não po- de fazer uma boa potenciação de longa duração ou reconhecer uma novidade, que são outras coisas que o hipocampo faz. Então, isso quer dizer que a capaci- dade instalada no cérebro não é infini- ta, não é tão grande assim. Ela é rapida- mente saturada no rato e certamente no ser humano. Nós temos até experiên- cias físicas dessa saturação. Vamos a um congresso, assistimos a duas ou três palestras seguidas e ficamos com a im- pressão de que não cabe mais nada no cérebro. Realmente, naquele momento não cabe mais nada. Então, saímos (da sala de palestras), damos uma ventila- da, tomamos um cafezinho. Depois que baixou um pouco a poeira, que o hipo- campo voltou a ser um pouco menos utilizado, podemos voltar para a sala e ouvir mais uma palestra.

■ Não faz sentido, portanto, aquele ditado popular de que o saber não ocupa espaço? — Ocupa, sim. Adquirir o conheci-

mento e evocar o conhecimento ocupa muito espaço. Geralmente o cérebro tende a usar todos os recursos disponí- veis para essa tarefa.

■ Quer dizer que aquela história de que o ser humano só usa uma pequena porcen- tagem do cérebro é uma grande bobagem? — Na verdade, não dá para saber se isso é certo ou não. Isso porque não sa- bemos quantos neurônios e sinapses temos. Até vinte anos atrás, pensava-se que tínhamos, creio, 10 bilhões de neu- rônios. Hoje, sabemos que são pelo me- nos 200 bilhões, talvez 300 bilhões. E entre essas duas estimativas há uma di- ferença de 100 bilhões de neurônios.

■ É possível treinar o cérebro para esque- cer traumas ou passagens da vida que a gente não gostaria de evocar mais? — Às vezes, o cérebro faz isso automa- ticamente. Quando ele falha, temos o que se chama justamente estresse pós- traumático ou as fobias. Mas há tera- pias nas quais se utiliza precisamente a extinção e que são aplicadas para que um indivíduo extinga o estresse. O país onde isso foi mais estudado, por incrível que pareça, é a Turquia.

■ Turquia? — Sim. É que eles tiveram, em anos re- centes, dois terremotos tremendos lá. E, num deles, morreram dezenas de milhares de pessoas, um número mui- to elevado. Depois das catástrofes, os neurologistas e psiquiatras turcos vi- ram que havia um monte de pacientes

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com estresse pós-traumático, de pes- soas que tinham estado nos lugares dos terremotos, mas haviam sobrevivido. Eles, então, puseram em prática o que se podia fazer para tratá-los e viram que se podia utilizar a extinção desco- berta por Pavlov e prescrita por Freud. Alguns complementam as sessões de extinção com drogas ansiolíticas, mas geralmente isso não é necessário. De- pois do (atentado de) 11 de setembro de 2001, um pouco por influência dos turcos, os americanos passaram a utili- zar mais a técnica da extinção, que es- tava até um pouco esquecida nos Esta- dos Unidos.

■ Qual é a explicação para o chamado "branco de memória"? Esquecer-se, por exemplo, do telefone de casa? — Pode ser muitas coisas, mas geral- mente é por distração. Quando é um esquecimento mais sério, como o do aluno que estudou para o vestibular e não lembra nada no dia da prova, esse branco é causado pelo estresse. No es- tresse liberam-se grandes quantidades de corticóides secretados pela glându- la supra-renal; eles inibem a evocação, atuando no hipocampo e na amígdala. Comigo, ou com outras pessoas que de vez em quando são cercadas por alunos ou por repórteres, o branco acontece quando sou submetido a perguntas por muita gente ao mesmo tempo. Aí eu dou um branco. É um ato defensivo.

■ Por que algumas pessoas têm ou dizem ter uma memória melhor para rostos e ou- tras para nomes ou números? — Isso em geral se deve à prática. Os bancários são bons para números, os li- teratos são bons para palavras, os mé- dicos são bons para rostos, para nomes. Os músicos são bons para música. Isso sem contar a situação de pessoas que apresentam alguns defeitos congênitos. Quem nasce com uma visão não muito boa vai ser inferior para adquirir me- mórias visuais em relação a uma pessoa sem essa limitação. Mas existe um cer- to sistema de compensação nesses ca- sos. Desenvolve mais a memória olfati- va quem não tem visão, por exemplo.

■ Gostaria que o senhor falasse um pou- co sobre a questão de os mais velhos evo- carem as suas memórias de uma forma romanceada e, muitas vezes, centrada nos melhores anos na juventude

— Há várias pontos nessa questão. Os velhos vão perdendo memórias porque morrem neurônios com o passar dos anos — e morrem as memórias que eles carregavam. Mas, ao mesmo tempo, vão formando muitas memórias mais. Cada dia que uma pessoa permanece viva, mais memórias vai tentar ter. En- tão, ela vai perder muitas memórias, mas vai ganhar outras. Pode ocorrer uma confusão que é própria de quem tem muita informação para manusear, em alguns casos maior, em outros menor. Esse é um aspecto da questão. Outro é que a gente, no decorrer dos anos, co- meça a mudar as memórias, começa a falsificá-las. Tem um livro fantástico escrito por um grande psicólogo norte- americano, Daniel Schacter, que se cha- ma Os sete pecados capitais da memória. Ele conta como se falsifica a memória. A gente faz muito isso.

■ Mas quase sempre de forma incons- ciente? — Sim, sim, geralmente de forma in- consciente. Minha mãe me confundia com um irmão dela, que era vagamen- te parecido comigo. Os dois eram ho- mens na família, um era irmão, outro era filho... Então ela atribuía a mim coi- sas que meu tio tinha feito. Isso é muito comum nas pessoas em geral, e muito comum nas pessoas velhas em particu- lar. Na verdade todo mundo faz isso.

■ O senhor disse, numa entrevista, que o próprio evocar da memória acaba levan- do a uma certa perda de detalhes? — Talvez isso se deva ao fato de que a forma de extinguir memórias seja atra- vés da evocação. Evocando sem refor- çar a evocação. Volto àquela história do guichê e do dinheiro. Você evoca a situa- ção e vai lá, vai no guichê. Agora, quan- do você vai lá e não recebe o dinheiro, pois o guichê está fechado, é o momen- to em que você começa a extinguir essa memória. Para extinguir, precisa evocar.

■ É um paradoxo? — É. Você precisa evocar e ver que a in- formação que você tinha não presta. Sem fazer essa experiência, é difícil ex- tinguir a memória.

■ A leitura é a melhor forma de preservar a memória? — Disparada, é a melhor forma. Não tem nada que chegue perto. Lendo, vo-

cê exercita a memória visual, a memó- ria verbal, a memória de outras línguas que você porventura conheça, a memó- ria de sinônimos, a memória de imagens. Você lê a palavra árvore e passam infi- nitas imagens de árvores em sua cabe- ça. A leitura é a que evoca mais tipos de memória, mais formas de memória. Ler muito e ter bons níveis de escola- ridade também ajudam a prevenir ou minorar os sintomas do mal de Alzhei- mer. Para aqueles que não têm vista pa- ra ler, ouvir alguém contar uma história é ótimo para a memória. Famosos es- critores cegos fizeram isso e funcionou muito bem, como (o argentino Jorge Luis) Borges e o inglês John Milton.

■ O senhor deve ser um grande leitor de Borges, porque sempre o cita em suas en- trevistas. — Leio muito Borges. Ele chamava muito a atenção para a memória. Bor- ges escreveu um conto que é definitivo sobre a questão de que precisamos es- quecer para poder aprender. O conto de chama Funes, o memorioso. Funes era um indivíduo que tinha uma me- mória perfeita, decorrente provavel- mente de um acidente. Funes podia se lembrar de um dia inteiro de sua vida. Mas, para fazê-lo, precisava novamente de um dia inteiro de sua vida, durante o qual não podia fazer mais nada. Essa situação, claro, era uma impossibilida- de, uma demonstração, pelo absurdo, de que o cérebro se satura.

■ Qual é a avaliação que o senhor faz dos estudos sobre a memória feitos no Brasil e no exterior? — Aqui, há poucos grupos, mas os que existem são bons, de nível internacio- nal. Além do meu grupo que estuda a memória, talvez o maior do Brasil nes- se campo de trabalho, há vários outros em Curitiba, São Paulo, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Fortaleza etc. Há agora um novo núcleo se instalando em Na- tal. Esse grupo vai ser chefiado em par- te pelo pesquisador Sidarta Ribeiro (da Universidade de Duke), que, no mo- mento, está nos Estados Unidos, mas está voltando.

■ Recentemente ele publicou um artigo científico sobre a importância do sono pa- ra a formação da memória. — Se alguém formulou uma hipótese realmente interessante sobre esse tema,

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talvez tenha sido o Sidarta. Há ainda várias pessoas e muitos grupos nacio- nais, da psiquiatria ou neuropsicologia, que estudam a memória muito bem. Há 15 ou 20 anos, essa disciplina prati- camente não existia no Brasil. Agora, ca- da dia aparece um grupo novo. A quan- tidade e a qualidade desses grupos me surpreendem.

■ As outras áreas das neurociências tam- bém vão bem no Brasil? — Estão muito bem. Acho que, dentro das ciências no Brasil, as neurociências são um dos ramos que deram mais certo. Em São Paulo, há um grupo interessan- tíssimo no Instituto Ludwig de Pesqui- sa sobre Câncer, com o qual colabora- mos. Eles estudam neuroquímica. Nós fazemos (com eles) muita coisa em co- mum sobre a memória. Esse grupo co- meçou seus trabalhos muito depois dos demais, mas já é um dos grupos de ponta. Há vários grandes grupos de neuroquímica de primeiríssimo nível no Rio de Janeiro. O meu grupo mes- mo está se diversificando. Já há várias pessoas que são pesquisadores inde- pendentes. Tem o Frederico Graeff, da USP de Ribeirão Preto, que tem uma turma grande trabalhando com ansie- dade. Existem muitos grupos, eu não gostaria de comentar nomes, porque a lista é grande e correria o perigo de es- quecer alguns, já que são tantos.

■ Por que as neurociências deram certo? — Porque... Talvez porque (nós, neuro- cientistas) éramos muitos entusiasma- dos e demos muita corda uns aos ou- tros (risos). Eu, o Esper Cavalheiro, o Cícero Coimbra (ambos da Universi- dade Federal de São Paulo), o Roberto Lent, o Rafael Linden (ambos da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro), o Luiz Roberto Giorgetti de Britto, o Men- na Barreto (da Universidade de São Pau- lo) sempre nos demos muito bem.

■ O senhor mencionou Natal. O senhor é a favor do projeto do Instituto Internacio- nal de Neurociências na capital do Rio Grande do Norte? — Se conseguirem concretizar o insti- tuto, pode ser uma magnífica iniciativa. Vai trazer gente de excelente nível e vão estar todos juntos, o que seria muito bom. Agora, eu fico um pouco com o pé atrás porque o Brasil é o país dos grandes projetos que depois não têm

continuidade. Costumo dizer que a ciên- cia no Brasil é mais ou menos como o Ayrton Senna no início de sua carreira: saía na frente, deixava todo mundo para trás, mas não terminava a corrida. Nós tivemos grandes projetos no Brasil. O maior deles que não teve continui- dade é o Pronex. O Programa Nacional de Núcleos de Excelência durou dois editais. E ia ser anual. Teve dois editais no primeiro ano, depois nunca mais. Agora, o Pronex voltou, mas com uma forma extraordinariamente diminuída. Voltou com um décimo do valor ini- cial. E alguns estados estão de fora do edital, como o Rio Grande do Sul. O projeto do instituto de Natal é um de- safio. Acho que vão conseguir alguma coisa do que eles propõem. Mas não sei se tudo. Qualquer coisa que eles consi- gam vai ser mais do que bem-vinda, vai ser um acréscimo importante. Eles pro- põem integrar a iniciativa privada ao apoio das ciências. A iniciativa privada no Brasil não tem o hábito de contri- buir com a ciência.

■ Por que o senhor se naturalizou? — Por que me naturalizei? Porque me senti mais um da casa. Isso foi em 1981.

■ Mas o senhor se vê mais como argenti- no ou brasileiro? — É difícil definir porque as raízes nunca se perdem, mas elas se transfor- mam muito tempo depois, em conse- qüência do que cresceu em cima. Devo ser uma mistura, uma espécie de (rin- do) Meligeni da ciência (o ex-tenista Fer-

nando Meligeni nasceu na Argentina e se naturalizou brasileiro).

■ Voltando a falar de memória, mas num outro sentido, costuma-se dizer que o Brasil é um país sem memória, com am- nésia social? O senhor concorda com essa afirmação? — Isso é uma enorme característica brasileira, e um defeito grave. Ninguém se lembra do candidato em que votou para deputado estadual na eleição pas- sada. Ninguém. Isso foi há menos de dois anos e ninguém se lembra. É um traço que, eu acho, permite se levar uma vida mais ligeira, aparentemente mais fácil. Mas, na verdade, é mais difí- cil, porque se tende a incorrer nos mes- mos erros e a não dar importância a coisas devidas. O brasileiro tende a le- var tudo com um ar de superficialida- de, o que às vezes é bom. Durante uma festa, é bom. Mas na vida real... Veja, te- mos 33% de miseráveis no país, segun- do acaba de se tornar público. Gente que ganha menos de R$ 79 por mês. Pergunte o que tem de superficial e de divertido para esse pessoal? Nada. Na- da é alegre nem divertido na vida desse pessoal, porque não comem o suficien- te, não têm o suficiente para vestir. En- tão esse ar de leveza é muito bom para algumas coisas, mas não é bom para to- das. E, quando chega ao nível das coisas sérias, como fazer ciência e dar de co- mer ao povo, eu acho que é melhor ter seriedade que leveza. A leveza do ser, como disse (o escritor) Milan Kundera, acaba sendo insustentável. •

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I POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS MUNDO

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■ Os ecologistas do ano de 2004

O Prêmio Goldman, conce- dido todos os anos a ativistas da causa ecológica, destacou em sua edição de 2004 o tra- balho de Rudolf Amenga- Etego, um advogado de Gana que lidera uma campanha contra a privatização da dis- tribuição de água no país. Com a privatização, a água receberia um tratamento mais adequado e ganharia qualidade, mas seria comer-

Vigor argentino A ciência da Argentina come- ça a superar um longo perío- do de estagnação. Numa ini- ciativa audaciosa, o governo do presidente Néstor Kirchner lançou um programa voltado para aumentar o número de pesquisadores em atividade, melhorar seus salários e refor- çar os recursos para projetos re- gionais. A primeira instituição contemplada é a maior agên- cia argentina de pesquisas, o Conselho de Investigações Científicas e Técnicas (Coni- cet), que vai contratar 1.400 pesquisadores com nível de doutorado e pós-doutorado, além de 550 assistentes de pesquisa. Todos os atuais pes- quisadores do Conicet terão aumento salarial de 45% (doutores), 37% (pós-douto-

cializada a preços de merca- do, mais altos que os cobra- dos hoje. "Cerca de 70% da população de Gana não tem dinheiro para comprar água limpa. Cobrar mais caro seria desastroso", diz o laureado. O projeto foi suspenso em 2003, em meio a uma onda de pro- testos, mas o governo ganen- se está tentando resgatá-lo. A privatização é estimulada pe- lo Banco Mundial, que tra- tou de se defender quando soube da premiação. "Não é questão ideológica. O banco

res) e 42% (assistentes). Nos últimos anos, orçamentos ma- gros impediram a agência de renovar seus quadros, que fo- ram envelhecendo. A média de idade dos pesquisadores hoje é de 50 anos. Com as no- vas contratações, deve baixar para 32 anos. A mudança ra- dical é lastreada por um re- forço no orçamento (cerca de US$ 10 milhões), aprovado pelo Congresso argentino em 2003, e por outros US$ 2,4 milhões retirados de outras áreas. "Não vai resolver nossos problemas, mas certamente é um passo tremendo para a reconstrução da política cien- tífica nacional", disse a secre- tária de Pesquisa da Universi- dade de Quilmes, Anahí Ballot (SciDev.Net).

se preocupa em garantir a oferta de água limpa, e com preços acessíveis, para popu- lações pobres", informou um porta-voz da instituição. Tam- bém foram premiados as in- dianas Rashida Bee e Cham- pa Shukla, sobreviventes da explosão de gás em Bhopal que matou 20 mil pessoas em 1984; Demétrio de Carvalho, presidente da primeira enti- dade ambiental do recém- liberto Timor Leste; Libia Grueso, artífice de uma terra a comunidades negras da Co-

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lômbia; Manana Kochladze, da ONG Green Alternative, da Geórgia, antiga república soviética; e a norte-america- na Margie Eugene-Richard, ativista que obrigou a Shell a indenizar vítimas de vaza- mentos tóxicos na Califór- nia. Dois brasileiros já ganha- ram o Prêmio Goldman: a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em 1996, e Car- los Alberto Ricardo, funda- dor do Centro Ecumênico de Documentação e Informa- ção (Cedi), em 1992. •

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■ Alarmes falsos do bioterrorismo

Em setembro de 2001, depois dos ataques às torres do World Trade Center e ao Pen- tágono, o governo norte- americano colocou em uso kits para identificar ameaças de bioterrorismo, capazes de detectar substâncias perigo- sas, como o antraz. Os apa- relhos agora estão sob inves- tigação. Será gasto US$ 1,5 milhão para avaliar até que ponto os detectores são efica- zes. Os testes serão feitos pelo FBI e pelos Centros de Con- trole e Prevenção de Doen- ças de Atlanta. O alerta foi dado em julho de 2002 por John Marburger, chefe do Es- critório de Política de Ciência e Tecnologia da Casa Branca. Segundo ele, defeitos técnicos dos detectores levavam a fal- sos resultados positivos, pro- vocando gastos e a decretação de quarentenas totalmene desnecessárias. O anúncio ir- ritou os técnicos que utilizam os kits. Eles alegam que co- nhecem os limites do apare- lho. Por isso, associam outras técnicas para eliminar os ris- cos de falsos positivos. •

■ No buraco negro da Internet

Quem imaginava que a re- produção na Internet de um artigo científico garantisse sua perenidade pode ter más sur- presas. Jonathan Wren, do Centro Avançado de Tecnolo- gia Genômica da Universida- de de Oklahoma, constatou o que muitos já desconfiavam. A pesquisa começou quando o próprio cientista foi vítima do "buraco negro" da Internet.

Ao procurar um artigo de sua autoria que deveria estar no serviço de consulta do gover- no norte-americano, o Me- dline, Wren descobriu que o documento simplesmente ha- via desaparecido (Nature, 8 de abril). Wren foi investigar e descobriu que um quinto dos endereços da Medline es- tava no limbo. Robert Della- valle, da Universidade do Colorado, fez pesquisa seme- lhante e observou que 12% dos endereços mencionados

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em prestigiados órgãos de di- vulgação científica como The New England Journal of Me- dicine e Science viraram poei- ra dois anos após a publica- ção. Teme-se que o problema gere fraudes: com o buraco negro, fica difícil averiguar se uma citação de artigo cientí- fico é real ou não. •

■ Aliança contra a tuberculose

Uma grande operação de combate à tuberculose foi de- flagrada pela Comissão Euro- péia. A pesquisa de uma nova vacina contará com investi- mento de € 32 milhões. Se- rão mobilizadas 52 equipes de 15 países europeus e afri- canos. O esforço é mais do que justificado: a tuberculose mata 2 milhões de pessoas por ano e a maioria dos ca- sos fatais ocorre em países pobres. Acabar com a doença só será possível com o ad- vento de uma nova vacina. A que existe hoje, a BCG, já não evita a tuberculose contagiosa em adultos nem é segura para portadores do HIV, alvos da moléstia na forma de infec- ção oportunista. •

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ESTRATéGIAS MUNDO

■ O país em que a ciência não é notícia

A imprensa da África do Sul dá pouco destaque à ciência. Pesquisa feita pelo departa- mento de Jornalismo da Uni- versidade de Stellembosch chegou a um número desa- lentador: menos de 2% do es- paço editorial das principais publicações do país é dedi- cado a assuntos científicos e tecnológicos. O relaciona- mento precário entre mídia e ciência no mundo inteiro freqüenta o debate interna- cional desde a realização do Congresso Mundial de Co- municação Pública de Ciên- cia e Tecnologia, no início dos anos 1990. Mais de uma década se passou, constata a autora da pesquisa, Carine van Rooyen, e a situação per- manece a mesma. O estudo avaliou 15 publicações, entre jornais diários, comunitários e revistas. Aparentemente, crê a pesquisadora, a pouca co- bertura se deve à falta de jor- nalistas familiarizados com temas científicos. Nas poucas vezes em que a ciência ocu- pou as páginas dos jornais sul-africanos, a ênfase foi para

aspectos positivos (70%), con- trariando a tese de que a mí- dia privilegia o lado sensacio- nalista e bizarro da ciência. (Science in África, abril). •

■ Austrália repensa sua pesquisa

As políticas que norteiam a atividade científica na Aus- trália serão revistas. O gover- no deve gastar 500 milhões de dólares australianos (US$ 375 milhões) para aperfeiçoar o sistema, por meio de um co- mitê de alto nível. Um dos ob- jetivos é reavaliar a distribui- ção de 540 milhões de dólares australianos por ano em trei- namento de pesquisadores. É desse orçamento que sai a verba para os estudantes de pós-graduação. Existe a quei- xa de que os critérios de dis- tribuição de verbas são injus- tos e punem as universidades cujos alunos concluem suas pesquisas rapidamente. As mudanças nem começaram, mas críticas já despontam. Para cientistas como Snow Barlow, da Universidade de Melbourne, a mudança é tão complexa que pode criar mais burocracia (Nature). •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para

[email protected]

http://www.ib.unicamp.br/plant-aq-SP/ Guia de campo, com fotos e breves descrições, para ser utilizado tanto por botânicos como por leigos.

Opnenheimer Cenfeimial

at Berkeley

Oppenheimer: A Life

ohst.berkeley.edu/oppenheimer/exhibit/ Um bom site com vida e obra do físico Robert Oppenheimer, por ocasião dos 100 anos de seu nascimento.

dasàcs in the Hktory oi fsycnohgy

Jo«a9:.:fleC'iPí'Jcwr,.™(inmy

psychclassics.yorku.ca Alguns textos clássicos da história da psicologia (em inglês) de pioneiros como Freud, Skinner e W. James,

24 ■ MAIO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 99

Page 24: O câncer desafia a ciência

IttifiMIl _ 5^

■ Incompreendidos tubarões do Recife

Os tubarões que atacam sur- fistas nas praias da Região Metropolitana do Recife te- rão seu comportamento in- vestigado por pesquisadores da Universidade Federal Ru- ral de Pernambuco (UFRPE), graças a uma verba de R$ 200 mil da Financiadora de Es- tudos e Projetos (Finep). O projeto, batizado de Protuba, vai capturar tubarões no tre- cho entre o Porto de Suape e a Praia do Pina, onde ocor- reu a maioria dos 14 ataques com mortes registrados des- de 1992.0 objetivo é estudar os ciclos biológicos, os hábitos alimentares e os movimen- tos migratórios dos animais. Também serão analisados fa- tores ambientais que podem ter vínculo com os ataques, como a temperatura e a sali- nidade da água. O interesse primordial da pesquisa é o tubarão cabeça-chata, iden- tificado como o principal agressor dos surfistas. Não se conhece muita coisa sobre essa espécie, mas se acredita que os ataques estejam rela- cionados à entrada de fêmeas no estuário para dar cria. "Se

pudermos identificar quan- do ocorre essa fase, na qual as fêmeas se aproximam da praia e ficam mais agressivas, será mais fácil prevenir os ataques e proteger animais e surfistas", diz Fábio Hazin, diretor do Departamento de Pesca da UFRPE e coordena- dor do Protuba. Também é provável que a onda de ata- ques tenha a ver com a cons- trução do Porto de Suape, que mudou a configuração do estuário e pode ter empurra- do os tubarões em direção ao Recife. A pesquisa deve du- rar dois anos. A intenção do grupo, porém, é transformar a iniciativa num trabalho de monitoramento permanente da costa. •

■ 0 trauma nos tempos do cólera

O comportamento das víti- mas da epidemia do cólera em Belém, em 1991, desper- tou a curiosidade da antro- póloga Jane Felipe Beltrão, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Alguns dos doentes recusavam-se a deixar o hos- pital depois de curados, mes- mo correndo o risco de nova contaminação devido ao con-

tato com outras vítimas. Eles não acreditavam que, após al- gumas horas de hidratação e um tratamento com antibió- ticos, estavam livres do vi- brião. Alguns citavam relatos de antepassados sobre uma epidemia de cólera no século

19, que matou 10% da popu- lação de Belém. Jane saiu a campo e constatou que o fla- gelo de 1855 estava vivíssimo na memória coletiva. "Qua- se todas as famílias perde- ram alguém na epidemia, que matou até o presidente da Província, Ângelo Custódio", diz. A morte de Custódio, um dos líderes da Cabanagem, re- volta popular ocorrida na dé- cada de 1830, marcou o ima- ginário da população pobre, que viu na tragédia significa- dos profundos. O fenômeno não foi só brasileiro. Campo- neses russos achavam que o cólera era um artifício para eliminá-los. Trabalhadores in- gleses suspeitaram de enve- nenamento. A pesquisa da antropóloga transformou-se em tese de doutorado em 1999 e agora está sendo lan- çada no livro Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará, edita- do pelo Museu Emílio Goel- di. Jane traça um paralelo en- tre a Belém de 1855 e a de 1991. "Ambas as populações eram muito pobres. As con- dições de saneamento de al- guns bairros em 1991 pouco se diferenciavam daquelas em que viviam escravos e libertos do século 19", conta. •

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ESTRATéGIAS BRASIL

A mais-valia do Terceiro Mundo

Um levantamento feito pela revista Nature comprovou o que a maioria dos pesquisa- dores já sabia: os países po- bres chegam a pagar 70% mais caro por equipamen- tos e insumos importados, em relação aos preços co- brados em nações desen- volvidas. A revista científica comparou os preços prati- cados em dois países euro- peus com graus de desen- volvimento diferentes: a Alemanha e a Polônia. Fez a mesma coisa com aparelhos e matérias-primas vendidos no Brasil e nos Estados Uni- dos. Dos 12 produtos ava- liados, só um era mais ba- rato no Brasil - os outros 11 saíram mais caros que nos Estados Unidos. Segundo o levantemento, uma centrí- fuga 5415D Eppendorf, por exemplo, custa US$ 1.950 para um cientista norte- americano - e US$ 3.110

para um brasileiro. Um qui- lo de extrato de levedura da Sigma-Aldrich sai por US$ 202 nos Estados Unidos e US$ 340 no Brasil. Na com- paração entre Alemanha e Polônia, foram estudados 18 produtos. A Polônia pa- gava mais caro por 16 deles. As indústrias culpam as ta- rifas de importação dos paí- ses pobres como a causa da distorção, mas se sabe que isso não explica toda a di- ferença. Os laboratórios cobram mais porque o mer- cado dos países pobres é menor e não apresenta o mesmo ambiente de com- petitividade entre os fabri- cantes. "Tudo é tão caro na Polônia que precisamos ter 75% mais dinheiro", diz o microbiologista Jan Potem- pa, da Universidade Jage- loniana, de Cracóvia, e da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. •

■ Agruras de um centro de excelência

As crônicas dificuldades fi- nanceiras do Instituto Uni- versitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), mantido pela Universidade Cândido Mendes, tiveram um amargo desdobramento no início de abril. Os 18 pesquisadores da instituição aceitaram um corte nos salários para impe- dir que a instituição feche as portas. A redução vai de 15%, para quem ganha de R$ 3.161, a R$ 4.610, e alcança 50%,

para contracheques superiores a R$ 13.571. A crise do Iuperj é reflexo da crise que atinge sua mantenedora. A Cândi- do Mendes se ressente da con- corrência de universidades privadas criadas nos últimos tempos no Rio de Janeiro e já não tem fôlego para manter a folha salarial do Iuperj, compromisso que assumiu desde a criação do instituto, nos anos 1960. As dificulda- des começaram há três anos, mas, até agora, só haviam provocado atrasos no paga- mento de salários. •

■ Homenagem a Alberto Carvalho

A FAPESP vai homenagear Alberto Carvalho da Silva, ex- fundador e ex-diretor-presi- dente, com o lançamento de dois livros. O primeiro - Ati- vidades de fomento à pesqui- sa e formação de recursos humanos desenvolvidas pela FAPESP entre 1962 e 2001 -, obra póstuma do próprio Carvalho da Silva, faz uma revisão dos programas de investimento da Fundação. Nesse período, a FAPESP re-

cebeu 160 mil solicitações de apoio de pesquisadores e aprovou certa de 110 mil. O segundo livro - O crescimen- to da agricultura paulista e as instituições de ensino, pes- quisa e extensão numa pers- pectiva de longo prazo - reú- ne coletânea de artigos de vários autores e foi supervi- sionado pelo ex-diretor-pre- sidente da FAPESP. O lan- çamento dos livros será no dia 13 de maio. Na mesma data, será descerrada uma placa em homenagem a Car- valho da Silva. •

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■ Por que a floresta está ardendo

A divulgação dos dados sobre o desmatamento da Amazônia no ano 2003, o segundo maior de toda a his- tória, evidenciou os limites do governo federal na preser- vação da floresta. Uma audi- toria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) su- gere que a exploração ilegal de madeira pode estar sendo estimulada pela lerdeza dos órgãos ambientais em apro- var planos de manejo sus- tentável (variação sobre o mesmo tema da queixa dos pesquisadores que não conse- guem licença ambiental para estudar produtos genetica- mente modificados). "O des- matamento e a exploração ilegal de madeira são, de cer- ta forma, estimulados pelos órgãos ambientais à medida que o excesso de burocracia para aprovação dos planos de manejo e a falta de fiscaliza- ção não incentivam as empre- sas a investir no manejo flo- restal sustentável", informa o relatório do TCU. A análise dos planos de manejo deveria durar 60 dias, mas o Institu- to Nacional do Meio Ambien- te e dos Recursos Renováveis (Ibama) chega a demorar oito meses para dar um veredicto. Mas nem só de exploração de madeira se fez a devastação de 23.750 quilômetros quadra-

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dos de floresta em 2003. Os Estados de Mato Grosso, Rondônia e do Pará foram os campeões do desmata- mento, num efeito colateral

da abertura de novas fron- teiras agrícolas. Eis outro de- safio para a política ambien- tal: evitar a substituição da floresta por pastos e planta- ções num momento em que o país amarga uma recessão e aposta na lavoura como sal- vação da economia. •

■ Programa será reativado

A FAPESP vai reativar o Pro- grama de Equipamentos Mul- tiusuários, que tem o objeti- vo de financiar a aquisição de equipamentos de valor eleva- do e de uso compartilhado por pesquisadores e instituições. Os custos de manutenção dos equipamentos deverão ser co- bertos por outras fontes. As normas e formulários para a apresentação das propostas, bem como as informações so- bre os itens financiáveis, estão disponíveis na página da FA- PESP. As propostas deverão ser apresentadas até o dia 30 de julho de 2004 e serão sub- metidas a análise comparati- va. Os projetos aprovados en- trarão em vigência a partir de Io de novembro de 2004. Os recursos destinados ao programa são da ordem de R$ 60 milhões. •

■ FAPESP flexibiliza dedicação exclusiva

Atendendo a uma reivindi- cação dos pesquisadores, o Conselho Superior da FA- PESP decidiu flexibilizar a exigência de dedicação ex- clusiva na concessão de bol- sas. Segundo portaria de 22 de abril, os bolsistas de mes- trado, doutorado e pós-dou- torado poderão ser autori- zados pela FAPESP a dedicar um máximo de oito horas semanais a atividades cientí- ficas e profissionais, desde que sejam compatíveis com o projeto da bolsa. Um núme- ro crescente de pesquisado- res pedia a flexibilização, com o argumento de que a dedi- cação exclusiva podia preju- dicar a formação do bolsista e atrapalhar sua inserção fu- tura no mercado de trabalho. A autorização deve ser soli- citada por meio de carta, descrevendo as atividades a serem realizadas, justifican- do sua importância para a formação do pesquisador e garantindo que elas não cau- sarão prejuízo para o desen- volvimento do projeto da bolsa. Se quiser lecionar, o bolsista poderá ministrar no máximo quatro horas-aula semanais. Caso a autoriza- ção seja concedida, o relatório científico do bolsista deverá prestar informações sobre as atividades realizadas. •

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

POLíTICA INDUSTRIAL

De novo, na linha de frente

Apoio à inovação resgata papel da Finepedo BNDES

CLAUDIA IZIQUE

A aposta na inovação coloca na linha de t^L frente da política industrial, tecnológi-

L^L ca e de comércio exterior a Financia- i m dora de Estudos e Projetos (Finep) e

JL. .^^ o Banco Nacional de Desenvolvi- mento Econômico e Social (BNDES). Ao lado do Banco do Brasil, a Finep e o BNDES serão os prin- cipais agentes de fomento da nova política indus- trial. Juntos, deverão injetar R$ 14,5 bilhões na modernização do parque produtivo, na inovação e apoio à pesquisa e desenvolvimento em univer- sidades e empresas, por meio de linhas de crédito, financiamento de risco, parcerias, entre outros.

"A Finep foi essencial para o desenvolvimento da ciência e tecnologia no país nos anos 1970 e 1980, quando tinha apoio institucional", afirma Sérgio Machado Resende, presidente da Finep. "Na década de 1990, a situação complicou e as

verbas encolheram." Neste período, ele comenta, a Finep deixou de apoiar a infra-estrutura das uni- versidades e institutos de pesquisas e o estímulo à inovação na empresa também foi reduzido, não apenas em função da falta de recursos, mas tam- bém pela contração da demanda por parte dos in- teressados. "Agora, retomamos uma posição es- tratégica: a inovação é com a Finep, o que não ocorre há uma década", ele afirma. A proposta é não só fomentar pesquisas e a ligação com o setor produtivo, mas também atuar na formação de re- cursos humanos, via, inclusive, bolsas de estudo.

O BNDES, entre 1964 e 1974, também teve um papel histórico nos primeiros esforços na direção da inovação no país, por meio do Fundo Científico e Tecnológico, matriz do atual Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tec- nológico (FNDCT), que abriga os recursos dos

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fundos setorias, geridos pela Finep. "Entre 1971 e 1979, a Finep foi dirigi- da pelo pessoal egresso do BNDES. Estamos, agora, reorientando o banco para o desenvolvimento, já que o apoio à inovação não pode ficar de fora dos investimentos", diz Fábio Erber, dire- tor de política industrial do BNDES.

Investimentos de risco - A proposta de política industrial, anunciada pelo governo em 31 de março, é formada por um cardápio com 57 medidas com as quais se pretende dar início à recu- peração de um atraso histórico que comprometeu o desenvolvimento de novos produtos e processos, a geração de patentes e a competitividade do país.

Este conjunto de ações tem como foco quatro setores definidos como estraté- gicos por seu potencial de arraste so- bre as demais áreas de economia: bens de capital - traduzidos por máquinas e equipamentos -, semicondutores, soft- wares e fármacos. O programa prevê impulsionar também a biotecnologia, nanotecnologia e biomassa, áreas em que a pesquisa brasileira é competitiva e tem destaque internacional.

Os programas de inovação na área de semicondutores, softwares e fárma- cos foram formulados em 16 câmaras setoriais constituídas pela Finep no iní- cio deste ano, antes de serem aprovados pelo comitê de política industrial vin- culado ao Ministério do Desenvolvi-

mento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). "Na área de semicondutores, já identificamos um conjunto de cen- tros de pesquisa públicos e privados que deverão trabalhar em rede para apoiar o desenvolvimento industrial", adianta Resende. Ele cita o exemplo do Institu- to Genius, em Manaus - que tem como clientes a Siemens e a Gradiente, entre outros; o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (César); a Funda- ção CPQd, em Campinas; e o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), em Porto Alegre, es- te último voltado para a produção de chips de aplicações específicas.

Esses centros, que vão integrar o Programa Nacional de Microeletrôni-

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ca, contarão com financiamento direto da Finep. A agência já disponibilizou, por exemplo, uma linha de crédito de R$ 10 milhões, com prazo de financia- mento de 18 meses, para incentivar a produção de chips no Ceitec.

O apoio às empresas poderá ainda ser feito por meio de fundos de risco ou investimento na empresa, detalha Resende. No caso da participação di- reta, a Finep deverá adquirir debêntu- res da empresa e negociar sua venda com o BNDES. "No ano passado, ad- quirimos R$ 10 milhões de debêntu- res. Neste ano, serão R$ 30 milhões", aposta Resende.

A expectativa do presidente da Fi- nep é de conseguir, em 2004, um de- sempenho melhor que o do ano pas- sado, quando a agência realizou quase todo o orçamento: investiu R$ 630 milhões dos fundos setoriais - "do- bramos os investimentos, apesar do contingenciamento", sublinha Resen- de - e ainda emprestou R$ 150 milhões. "Ainda é pouco, mas já aponta uma retomada", ele diz.

Metas de exportação - Ao Programa para o Desenvolvimento da Indústria Nacional de Software e Serviços Cor- relatos (Prosoft), previsto na política industrial, serão destinados R$ 100

milhões do BNDES neste ano. O ob- jetivo é ampliar a participação das em- presas no mercado interno e promo- ver o crescimento das exportações. O Brasil conta com 5 mil empresas de software, quase todas pequenas. "As de porte médio não chegam a dez", contabiliza o ministro Eduardo Cam- pos. A pulverização inviabiliza a com-

petitividade e o cumprimento de me- tas de exportação. "Precisamos dar suporte para uma política de agluti- nação de empresas", avalia o ministro. A fusão de empresas será estimulada pelo banco.

As ações de suporte às empresas de base tecnológica contemplarão tam- bém empresas em fase de gestação. Em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e a Finep, o BNDES vai lançar, provavelmente neste mês, de acordo com Erber, o programa Cria- tec para financiar desde empresas ain- da incubadas até as de porte médio. "Esse apoio também pode ser feito por meio de empréstimos, mas o instru- mento mais eficaz, certamente, será o aporte de risco", diz Erber. Para facili- tar o acesso de empresas aos recursos e agilizar os procedimentos requeridos pelo banco, está prevista a criação de instâncias institucionais, em âmbito regional.

Outro programa patrocinado pelo BNDES é o Apoio ao Desenvolvimen- to da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma), que contará com uma li- nha de financiamento para a produ- ção de medicamentos e insumos, estí- mulo à pesquisa e fusão de empresas. "O Profarma está dividido em três sub- programas", detalha Erber. O primei-

A nova Lei de Inovação Algumas das medidas previstas na po- lítica industrial, tecnológica e de co- mércio exterior terão apoio legal na Lei de Inovação que, durante dois anos, tramitou no Congresso Nacional e que, agora, com novo formato, está sendo no- vamente enviada ao Legislativo. A nova lei prevê uma série de ações que têm como objetivo aproximar universida- des e institutos de pesquisa das empre- sas privadas, condição sem a qual não se incrementará o desenvolvimento da pequisa e de novos produtos no país.

Para tanto, a lei autoriza a partici- pação direta da União em empresas privadas para o desenvolvimento de projetos científicos ou tecnológicos e abre espaço para a transferência de tecnologia das universidades públicas para empresas, flexibilizando as regras

da Lei de Licitações n° 8.666/93, per- mitindo às instituições públicas de pes- quisa contratar pesquisadores e empre- sas, sem licitação. O governo também se beneficiará disso: poderá contratar empresas ou consórcios de empresas e entidades de pesquisa sem fins lucrati- vos, de reconhecida capacitação tecno- lógica no setor, para realizar atividades de pesquisa e desenvolvimento "que envolvam risco tecnológico, para solu- ção de problema técnico específico ou obtenção de produto por processo inovador".

"A lei é o primeiro passo. Ela é im- portante para criar um contexto que estimule uma relação mais intensa e produtiva entre universidades e em- presas, no que diz respeito à inova- ção", diz José Fernando Perez, diretor

científico da FAPESP. "O arcabouço institucional que ainda existe é inibi- dor, tornando muito difícil estabele- cer parcerias, seja para o desenvolvi- mento de projetos inovadores, seja para o licenciamento da inovação ou para a implementação da proprieda- de intelectual."

O projeto, em seu capítulo VI, auto- riza a instituição de fundos de inves- timentos em empresas inovadoras, "caracterizados pela comunhão de re- cursos captados por meio do sistema de distribuição de valores mobiliários", cuja regulamentação, funcionamento e administração será de responsabilida- de da Comissão de Valores Mobiliários. Também prevê, nas Disposições Finais, que no prazo de 90 dias após a publica- ção da lei o Executivo envie ao Con-

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ro financiará a compra de equipa- mentos, obras de infra-estrutura, soft- ware e as despesas necessárias para cumprir as exigências da Agência Na- cional de Vigilância Sanitária (Anvi- sa); o segundo tem como meta pro- mover a competitividade da empresa nacional e o terceiro - a ser lançado em breve - patrocinará a aquisição de equipamentos eletrônicos para uso médico. O Profarma vai operar priori- tariamente com investimentos de ris- co, explica Erber, já que as empresas brasileiras de fármacos são pequenas e têm dificuldades de investimentos substantivos em pesquisa, desenvolvi- mento ou marketing. "Se estas empre- sas desejarem se fundir, o banco vai apoiar", afirma. Também está previsto o financiamento de atividades em la- boratórios públicos e privados e o uso do poder de compra do Estado como forma de fomento. "Não há restrições", diz Erber. Entre as empresas que con- tarão com recursos do BNDES estará a Hemobrás, um fábrica de hemoderi- vados para a produção de albumina, imunoglobulina, entre outros (ver reportagem à página 32)

Erber garante que o orçamento do BNDES para as ações de política in- dustrial são "flexíveis". "Temos um or- çamento de desembolso de R$ 47,3 bi-

Programa Criatec, do BNDES, vai

financiar empresas incubadas

lhões neste ano. Os investimentos pre- vistos, considerando este total, são pequenos", diz. O problema, ele subli- nha, pode ser a falta de demanda.

Recursos contingenciados - Se há dis- ponibilidade de recursos do lado do BNDES, não se pode dizer o mesmo da Finep. A agência já tem em caixa

R$ 300 milhões para apoio a projetos no âmbito da política industrial, mas espera contar, neste ano, com R$ 640 milhões dos fundos setoriais. Outros R$ 800 milhões dos fundos estão con- tingenciados no orçamento da União para garantir superávit primário - a diferença entre receitas e despesas da União, estados e municípios, sem contar os juros - das contas públicas. Sua liberação depende da retomada do crescimento da economia, reco- nhece Resende.

Otimista, ele aposta no sucesso da mobilização da comunidade científica e tecnológica para resgatar esses recur- sos. No dia 2 de abril, 46 entidades en- caminharam manifesto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apoiando o pleito do Brasil no Fundo Monetário Internacional (FMI) e organismos bi- laterais - de que os investimentos em infra-estrutura não sejam contabiliza- dos como superávit primário - e pro- pondo que os gastos com ciência, tec- nologia e inovação sejam igualmente excluídos dessa conta e portanto pou- pados de contingenciamento. O mani- festo foi encabeçado pelo Fórum Na- cional de Secretários Estaduais de Ciência e Tecnologia e o Fórum Nacio- nal das Fundações de Amparo à Pes- quisa (FAPs). •

gresso projeto de lei estabelecendo cri- térios para o fomento à inovação na empresa nacional, "mediante regime fiscal favorável à consecução de objeti- vos estabelecidos em programas e ações governamentais".

O projeto de lei formaliza a parce- ria entre institutos públicos de pesqui- sa e empresas nacionais, permitindo, por exemplo, a utilização de laborató- rios públicos para a incubação de novos empreendimentos, mediante compen- sação, contrapartida ou participação nos resultados - desde que não interfi- ra diretamente na sua atividade-fim. O pesquisador envolvido nessa atividade de prestação de serviços poderá receber retribuição pecuniária, diretamente da instituição pública ou da empresa par- ceira, sempre sob a forma de adicional variável e desde que custeado exclusi- vamente com recursos arrecadados no âmbito dessa atividade.

Professores e pesquisadores vincu- lados a universidades e institutos de pesquisa que atuarem em projetos em parceria com empresas privadas pode- rão ser remunerados por seu trabalho. Eles estão autorizados, inclusive, a li- cenciar-se da instituição - por um pe- ríodo de três anos, renovável por mais três - para criar empresas com ativida- des relacionadas a projetos de inovação tecnológica.

Ainda de acordo com o projeto, a instituição científica e tecnológica po- derá ceder seus direitos sobre a criação, a título não oneroso, "para que o cria- dor os exerça em seu próprio nome". Assegura ao criador, "a título de incen- tivo e limitada a um terço do total", a participação nos ganhos econômicos auferidos pela instituição, resultantes de contratos de transferência de tecno- logia ou de exploração de criação pro- tegida, da qual tenha sido o inventor.

Algumas das medidas, na avalição de Perez, têm efeito prático e removem obstáculos para a transferência do co- nhecimento. Mas há aspectos que ele qualifica como "culturais" que são um conjunto de recomendações para a agenda de ciência e tecnologia no país e que possibilitarão a remoção de bar- reiras legais e entraves jurídicos ao desenvolvimento de novos produtos e processos.

"A lei atende ao desafio de fazer inovação no Brasil", avaliza o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Cam- pos. Mas o projeto de ampliação do po- der de compra do Estado - intervenção considerada fundamental para conso- lidar empreendimentos inovadores e garantir o mercado para novos produ- tos - está condicionado à revisão da Lei de Licitação n° 8.666/93, o que, se- gundo Campos, já está em curso no Ministério do Planejamento.

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

POLíTICA INDUSTRIAL

Os caminhos do sangue Governos federal e paulista planejam a instalação de fábrica de hemoderivados

O Brasil gasta, anualmen- te, US$ 150 milhões com a importação de hemo- derivados - proteínas obtidas a partir do plas-

ma, utilizadas no tratamento de doenças como a hemofilia A e B e como matéria- prima na produção de vacinas. A única fábrica brasileira, instalada em Pernam- buco, produz apenas a albumina huma- na e atende só 7% do mercado.

Desde 2000, o país faz planos de construir uma fábrica para substituir importações e atender a demanda do mercado. Dois projetos concorrentes - um da União e o outro de São Paulo - estão sendo arquitetados.

O primeiro deles - previsto na políti- ca industrial, tecnológica e de comércio exterior - é da Empresa Brasileira para o Fracionamento do Plasma, já batiza- da de Hemobrás, orçada em US$ 60 milhões. A futura empresa vai produzir albumina humana, imunoglobulina, complexo protombínico, fator VIII e fator IX - utilizando tecnologia de fra- cionamento do plasma sangüíneo - para atender parte da demanda do Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com Beatriz Macdowell, gerente-geral da área de sangue, outros tecidos, células e órgãos da Agência Nacional de Vigilân- cia Sanitária. "Estamos preparando edi- tal para a transferência de tecnologia de fracionamento de plasma no país. A fá- brica de hemoderivados deve estar em operação em três ou quatro anos", prevê.

O segundo projeto é do Instituto Butantan, em São Paulo. A fábrica pau-

lista utilizará a cromatografia para ob- ter hemoderivados, uma tecnologia dis- tinta da do fracionamento de plasma adotada pela Hemobrás. "Será a pri- meira fábrica a utilizar esse modelo em todo o mundo", garante Otávio Mer- cadante, diretor do Butantan. A pro- dução por cromatografia foi "adapta- da do exterior", como diz Mercadante, e "possibilita maior rendimento e com- petência tecnológica".

O projeto, no valor de R$ 100 mi- lhões, está previsto no Plano Pluria- nual do governo estadual e poderá es- tar pronto em dois anos. De acordo com o diretor do Butantan, este proje- to terá escala para suprir toda a de- manda nacional e deverá ser submeti- do ao Ministério da Saúde

Plasma descartado - O projeto da He- mobrás começou a ser arquitetado em 2000, quando o Ministério da Saúde realizou um levantamento e constatou que, no Brasil, se descartavam 160 mil litros de plasma por ano, um volume suficiente para justificar a produção lo- cal. Em 2002, foram contratadas duas empresas, selecionadas por concorrência internacional - uma francesa e outra aus- tríaca -, para fracionar o plasma recolhi- do em centros nacionais devidamente selecionados e transformá-lo em hemo- derivados. "Trata-se de uma exportação passiva para beneficiamento de maté- ria-prima com retorno do produto fi- nal, que fica mais barato", diz Beatriz.

Este intercâmbio atende toda a de- manda por imunoglobulina e fator IX

- utilizado em portadores da hemofilia tipo B - do SUS. "Mas só responde por 10% do fator VIII, destinado aos casos de hemofilia do tipo A", diz Beatriz. O que falta é importado.

A Hemobrás começou a ganhar for- ma em 2003, quando foi criado um gru- po de trabalho para analisar aspectos legais, para compatibilizar a produção de hemoderivados com a Constituição Federal, que impede a comercialização do sangue no país. O projeto de lei que cria a nova fábrica já está no Congresso e, segundo Beatriz, deve ser aprovado até novembro. A fábrica não cobrará do SUS pelo produto, mas pelo serviço de fracionamento do sangue.

Uma parte dos recursos para o em- preendimento - R$ 120 milhões ou US$ 40 milhões, em quatro anos - está ga- rantida no Plano Plurianual do Sangue, elaborado pelo governo federal. "Isso ga- rante dois terços da Hemobrás", calcu- la. "Mas o Banco Nacional de Desenvol- vimento Econômico e Social (BNDES) poderá entrar como sócio e completar o valor do negócio", diz Beatriz.

Há ainda uma terceira alternativa tecnológica - a biotecnologia - adota- da pela maioria dos países desenvolvi- dos para produção de hemoderivados. Por esse processo, a albumina, com- plexo protombínico, imunoglobulina e os fatores VIII e IX podem ser sinte- tizados a partir de fatores recombi- nantes, sem os riscos dos processos de contaminação que podem ocorrer no fracionamento do plasma. A nova tec- nologia está sendo desenvolvida pela

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O custo de produção de hemoderivados é semelhante, independentemente da tecnologia utilizada

Rede Brasileira para Clonagem e Ex- pressão de Fatores de Coagulação for- mada por quatro laboratórios públi- cos nacionais. As pesquisas, iniciadas em 2001, contaram com US$ 900 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). "Já atingimos os objetivos bá- sicos de clonagem e expressão dos genes dos fatores de coagulação VIII e IX e clones celulares que expressam quantidades razoáveis desses fatores", conta Dimas Covas, pesquisador do Laboratório de Clonagem e Expressão do Centro de Terapia Celular, diretor do Hemocentro de Ribeirão Preto, vin- culado à Universidade de São Paulo (USP), e coordenador da rede. Os pes- quisadores precisam de mais US$ 5 mil para realizar testes em outras linha- gens celulares e em células modifica- das em biorreatores e para desenvolver novos vetores. A construção da unida- de de produção está orçada em US$ 20 milhões e sua operação atenderia toda a demanda de hemoderivados no país, de acordo com Covas.

A produção do fator VIII por i^L tecnologia do DNA recom-

L^L binante, por exemplo, re- i M presenta, atualmente, 10%

.^L. -A. da demanda total mun- dial de 2 bilhões de unidades/ano. Mas a participação do produto obtido por biotecnologia é crescente. "A Baxter, da Suíça, está finalizando a construção de uma fábrica que vai atender toda a de- manda", diz ele. "O custo de produção da unidade obtida por fracionamento do plasma ou por fator recombinante é praticamente o mesmo, de US$ 0,5 por unidade", calcula Covas. Ele teme que o país esteja investindo US$ 60 milhões numa tecnologia - a do plasma - que corre o risco de ficar obsoleta em quatro ou cinco anos.

Integram a rede coordenada por Covas, além do Hemocentro de Ribei- rão Preto, os laboratórios de Biologia Celular e Molecular do Instituto de Química da USP; de Biologia Molecu- lar da Universidade de Brasília (UnB); e de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). .

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I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

FOMENTO

À procura do parceiro ideal Instituto Uniemp cria agência para agilizar produção de novos fármacos

A gra:

/\n

grande maioria das empresas brasilei- ras de fármacos e medicamentos tem porte mé-

dio, está capitalizada, mas in- veste pouco em pesquisa ca- paz de gerar uma inovação radical. Trabalham basica- mente com genéricos e na incrementação de produtos com patentes vencidas. As in- vestigações desenvolvidas nas universidades e institutos de pesquisa podem oferecer al- ternativas de inovação para as empresas nacionais

A Agência de Gestão e Inovação Farmacêutica (Agif) aposta na aproximação entre os dois setores. "Temos gru- pos de excelência nos institu- tos de pesquisa investigando moléculas interessantes que precisam se transformar em inovação e ir para o merca- do", diz Saul d' Ávila, coorde- nador da Agif.

Criada em 2002 como um núcleo temático do Instituto Uniemp — Fórum Permanente das Re- lações Universidade e Empresa -, a Agif busca estabelecer uma canal de comu- nicação entre a academia e a indústria, identificar oportunidades de inovações famarcêuticas, assessorar pesquisado- res nos processos de transferência de tecnologia ou registro de patentes, en- tre outros.

O primeiro projeto gerido pela Agif foi de desenvolvimento do Evasins, um protótipo molecular que será utilizado na produção de um fármaco com pro- priedades anti-hipertensivas. O novo

produto foi identificado pelo Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), no Insti- tuto Butantan — um dos dez Centros de Pequisa, Inovação e Difusão patrocina- dos pela FAPESP -, e está sendo desen- volvido pelo Consórcio Farmacêutico Nacional (Coinfarma), formado pelos laboratórios Biolab-Sanus, Biosintética e União Química. O projeto já tem duas patentes com a participação das indús- trias. "Identificamos o gene que produzia a molécula, constatamos que algumas de- las tinham propriedades anti-hiperten- sivas e que poderíamos entrar num ni-

cho de mercado com grande potencial. Mas pouco sabía- mos sobre Direito e Proprie- dade Intelectual", lembra An- tônio Martins de Camargo, diretor do CAT e da Agif. "Foi quando pensamos em criar a agência para apoiar o pesqui- sador e aproximá-lo das em- presas que se interessem pelo produto", conta.

A Agif também está pros- pectando mercado para pro- jetos como o do medicamen- to Lovap, um antitrombótico; um kit diagnóstico para mar- cação de desintegrinas que têm potencial para se tornar um marcador de células tu- morais; além do marcador de ECA em hipertensos.

Outro gargalo no proces- so de desenvolvimento de no- vas drogas são os testes pré-clí- nicos. "O Brasil já conta com equipes qualificadas para rea- lizar exames clínicos com pro- tocolos rigorosos, mas faltam laboratórios para os testes pré- clínicos", afirma Camargo.

Para suprir essa carência, a Agif de- cidiu organizar um laboratório que vai terceirizar o tipo de ensaio fundamen- tal para verificar a segurança e a formu- lação dos medicamentos. "O novo labo- ratório - batizado de Lachesis - será uma Contrate Research Organization (CRO), ou seja, um centro de investigação pré- clínica para pesquisas farmacêuticas", conta d'Ávila. O laboratório terá o apoio do Ministério da Saúde, R$ 3 milhões do Banco Mundial (Bird) e será insta- lado no Instituto de Pesquisas Energé- ticas e Nucleares (Ipen). •

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

Grãos de café: movimento de R$ 10 bilhões

AGRONOMIA

Hora do café Pesquisadores concluem primeira fase do seqüenciamento do genoma da planta

Chegou a vez do café. O agronegócio que movi- menta US$ 91 bilhões por ano em todo o mundo - R$ 10 bilhões só no Brasil

-, e é responsável por 2% das exporta- ções, teve parte de seu seqüenciamen- to concluído. O objetivo do trabalho é contribuir para ampliar a produtivi- dade do setor, com plantas mais re- sistentes a doenças e grãos com uma qualidade melhor. O projeto é um in- vestimento conjunto da FAPESP com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope- cuária (Embrapa Café), que começou em 2003 e acaba de ter a sua primeira fase encerrada.

O trabalho realizado pelos grupos ligados ao Agronomical and Environ- mental Genome (AEG), da FAPESP, e o Centro Nacional de Recursos Genéti- cos (Cenargen), da Embrapa, gerou 155 mil seqüências de genes. "São pratica- mente 25 mil genes com grande poten- cial", diz o cientista Carlos Colombo,

coordenador do Genoma Café em São Paulo e pesquisador do Instituto Agro- nômico de Campinas. Por enquanto, as 100 mil seqüências geradas em São Paulo e as 55 mil feitas pelos pesquisa- dores da Embrapa estão em bancos de dados separados. O próximo passo do projeto será unir todas essas informa- ções em um único lugar.

O banco de dados obtido pelos pes- quisadores brasileiros é o resultado do seqüenciamento de várias bibliotecas de cDNA, ou seja, seqüências de DNA correspondentes aos genes expressos nos vários tecidos da planta (folhas, raízes, frutos, flores e ramos sadios e submetidos a estresses bióticos e abióti- cos, pragas, doenças, frio, calor, seca) em diversos estágios de desenvolvimento. A equipe científica do genoma do café optou pelo seqüenciamento de Etique- tas de Seqüências Expressas (EST) - Expressed Sequence Tags -, onde ape- nas os genes expressos pelo organismo são seqüenciados.

"Agora, vamos convocar os inte- ressados em participar da fase de análise funcional das seqüências ge- radas", disse Colombo. Segundo o pes- quisador, os cientistas paulistas devem se reunir ainda em maio para discu- tir os resultados do seqüenciamento e preparar as próximas pesquisas que devem ser desencadeadas nas fases seguintes.

O café é um dos principais produ- tos da agricultura paulista, ao lado da laranja e da cana-de-açúcar. Segundo dados fornecidos pela Embrapa, a área do café no país hoje ocupa 2,7 milhões de hectares, com aproximadamente 6 bilhões de pés, e está presente em mais de 2 mil municípios de 16 estados bra- sileiros, do Paraná ao Amapá, o que possibilita uma diversificada disposi- ção espacial da produção. A cultura cafeeira também tem grande impor- tância em termos de geração de em- prego no Brasil: emprega 8 milhões de pessoas. •

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POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

POLÍTICA PÚBLICA

Em defesa da floresta Nogueira Neto, aos 82 anos, estuda manejo e gestão ambiental

MARILI RIBEIRO

sabor de descobertas ambientais como a inexplorada e possivelmente única "floresta de buritis" no mundo, locali- zada em sobrevôo na região amazôni- ca ocidental, segue causando emoção.

O empenho na elaboração até o final deste ano de um "dicionário das abelhas indígenas", tema que tem sido uma paixão desde os 18 anos quando teve o primeiro contato com o inseto, merece revisões e aprimora- mento a cada nova releitura. O acompanhamento da formulação de políticas públicas relacionadas à con- servação do patrimônio natural - caso do projeto apresentado à FAPESP, em parceria com a Fundação Florestal para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo, denominado Áreas espe- cialmente protegidas no Estado de São Paulo: le- vantamento c definição de parâmetros para administração e manejo como subsídio a políticas públicas de gestão ambienta - permanece dominando sua biogra Inquieto, ativo e participante. São 1 cetas da rica personalidade de Paul Nogueira Neto que, aos 82 anos, se orgulha de ter a própria vida emba- ralhada com a história do ambienta- lismo no Brasil.

Professor titular aposentado pela Universidade de São Paulo (USP), do departamento de Ecologia do Instituto de Biociências, Nogueira

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Neto dedicou-se com afinco às abelhas sem ferrão, produtoras de mel, e, para- lelamente, sempre cultivou as questões ambientais, então ainda sem foco defi- nido na produção científica e social no Brasil. Os dois temas vão ocupar lugar de destaque em sua carreira e em sua vida pessoal e familiar. O professor No- gueira Neto tornou-se responsável pela demarcação de áreas ambientais no país. Organizou e dirigiu por 12 anos conse- cutivos, até 1986, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), instalada no âmbito do Ministério do Interior. A frente da Sema, criou e estabeleceu 3,2 milhões de hectares em 26 estações e reservas ecológicas. Assumiu postos e mantém vínculos como membro de importantes entidades e associações re- lacionadas com o meio ambiente, entre as quais o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama); o Conselho Esta- dual do Meio Ambiente (Consema); o Conselho de Administração da Cetesb. Continua na vice-presidência da S.O.S - Mata Atlântica, da WWF-Brasil, e do International Bee Research Associati- on. Preside a Associação de Defesa do Meio Ambiente (Adema-SP) e a Funda- ção Florestal do Estado de São Paulo.

Quando assumiu a coor- denação do projeto de Políticas Públicas enca- minhado à Fapesp, No- gueira Neto apostou que a pesquisa pode-

ria oferecer elementos sólidos não só para tomadas de decisões das institui- ções responsáveis pela proteção de áreas naturais, mas também para pau- tar as ações de representantes do Exe- cutivo e do Legislativo. "Não se trata somente de como administrar melhor as unidades de conservação, mas tam- bém de como salvar os últimos frag- mentos florestais relevantes do Estado de São Paulo, ainda sem proteção am- biental", explica ele. "De Jundiaí a ser- ra do Japi, até o rio Paraná, temos cer- ca de 800 quilômetros de quase um vazio, uma imensa área devastada", sa- lienta. O Estado de São Paulo possui apenas cerca de 7% de sua cobertura vegetal preservada.

O trabalho pioneiro da equipe coor- denada pelo professor já mapeou e propõe a criação de novas áreas prote- gidas a partir da indicação de 109 frag- mentos prioritários, remanescentes de

ecossistemas. "O primeiro deles está em vias de virar realidade, na área de confluência do rio Tietê e Piracicaba, em Barreiro Rico", festeja. O tomba- mento dessas áreas, decretadas como Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie), determina o que pode e o que não pode se fazer nesses espaços. O maior problema está em estabelecer cooperação para o enriquecimento dessas áreas, oferecendo informações aos proprietários sobre o potencial de compensação ambiental.

Os fragmentos prioritários escolhi- dos, como esclarece a bióloga Lélia Ma- rino, da Fundação Florestal, envolvi- da no projeto, levam em consideração as condições de conectividade dos frag- mentos, ou seja, como eles se comuni- cam com os outros e também com a sua vizinhança. Trata-se de hierarqui- zar qual a importância de um fragmen- to em relação a outro selecionado, em questões como a preservação da fauna e flora. Uma área urbana é menos per- meável para fauna do que um pasto, porque tem trânsito de mamíferos. O mesmo ocorre em um canavial, exem- plifica Lélia. A conectividade permite aumentar a área ambiental preservada com melhor e maior qualidade. "Uma floresta isolada restringe geneticamente as espécies, o que não quer dizer que pequenas populações não possam re- sistir, apenas que fica bem mais difícil", acrescenta o professor.

Abelhas, no terraço do casarão - Nasci- da quase acidentalmente - um vez que a opção inicial de carreira de Nogueira Neto foi o curso de Direito concluído em 1945 na USP -, a vocação para as questões ambientais teve inicio duran- te as visitas à fazenda da família da esposa. "Meu sogro tinha uma caixa de abelhas indígenas no terraço do casa- rão. Fui ler a respeito e vi que era um inseto pouco estudado", relembra ele. "Nos últimos anos da faculdade de Di- reito já publicava artigos sobre abelhas em revistas científicas", acrescenta. Foi nesse período que o grande amigo Pau- lo Vanzolini (doutor em Zoologia, pro- fessor na USP) aconselhou-o a tornar a paixão objeto regular de estudos. Oito anos depois de formado, prestou novo vestibular, dessa vez para História Na- tural na Faculdade de Filosofia da USP, curso que concluiu em 1959. Nesse pe- ríodo, Nogueira Neto já havia fundado

talvez a primeira entidade conserva- cionista no país, a Defesa da Flora e da Fauna, hoje Associação de Defesa do Meio Ambiente.

A conceituação de meio am- g^L biente, percebido com a re- L^L levância que tem hoje para i ^ a qualidade de vida em

^L. ^^. geral, inexistia no Brasil. Havia uma compreensão da importân- cia da preservação dos parques nacio- nais, desde a criação do código flores- tal, em 1934. A concepção mais ampla viria com a divulgação dos grandes eventos internacionais, como a reunião sobre meio ambiente em Estocolmo, em 1972, da qual Nogueira Neto parti- cipou. Ainda no final do governo mili- tar, ele foi convidado a comandar um órgão federal que cuidasse do tema, que viria a ser a Sema. "Me deram três salas e cinco funcionários apesar das dimen- sões continentais do país", conta ele. "Engajei-me porque vi um grande futu- ro a ser construído nessa área tão ca- rente. Permaneci no cargo por quatro governos. Foram mais de 12 anos como secretário federal", acrescenta. Longe das disputas político-partidárias, No- gueira Neto conseguiu difundir a im- portância do ambientalismo no Brasil.

Durante diversos anos Nogueira Ne- to deu cursos sobre o comportamento dos animais sociais e sobre as mudan- ças climáticas e os ecossistemas terres- tres. Foi um dos fundadores do Depar- tamento de Ecologia Geral, no Instituto de Biociências da USP. Construiu uma carreira reconhecida interna e externa- mente. Pertenceu, entre 1983 e 1986, à Comissão Brundtland das Nações Unidas, sobre o Meio Ambiente e De- senvolvimento. Era um dos dois úni- cos representantes da América Latina. Chefiou e participou de várias delega- ções oficiais ao exterior, recebendo a Ordem de Rio Branco, primeiro como oficial e depois como comendador. Foi duas vezes eleito vice-presidente do programa O homem e a biosfera, da Unesco, órgão das Nações Unidas res- ponsável pela educação e cultura, com sede em Paris. Recebeu, em 1981, jun- tamente com Maria Thereza Jorge Pá- dua, o prêmio Paul Getty, a principal láurea mundial no campo da conserva- ção da natureza, e também o Prêmio Duke of Edinburgh, em 1997, da WWF Internacional. Foi distinguido com a

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Nogueira Neto, na sua chácara no bairro do Morumbi, brinca com seu labrador

comenda da Arca Dourada (1983), dos Países Baixos, também pela sua atuação conservacionista. Nogueira Neto conta com gosto descobertas como a da flo- resta de buritis, feita ainda na década de 1980 e até hoje impenetrável. "Nun- ca ninguém pôs os pés lá. Mandamos uma expedição, mas não foi possível chegar perto. Calculamos, em vôos ra- santes, que a área, no máximo a 40 qui- lômetros do rio Amazonas, tenha uns 30 mil hectares de palmeiras, o que so- maria cerca de 10 milhões de buritis. Não há nada similar no mundo", em- polga-se. O conhecimento sobre a bio- diversidade nacional é bastante razoá- vel nas regiões Sul e Sudeste do país.

Elaborou projetos para compatibi- lizar o desenvolvimento e a manuten- ção da floresta amazônica com a explo- ração do cupuaçu e para compatibilizar o trabalho dos seringueiros com outras técnicas. Acabou por patrocinar a cria- ção da reserva extrativista Nova Espe- rança, na região de Xapuri, no Acre. Criou vínculos pessoais com mora- dores da região, tornando-se o que ele mesmo define como uma "espécie de

conselheiro" de um grupo de 50 fa- mílias que estão fora da reserva Xico Mendes. Adquiriu uma pequena pro- priedade em que também mantém um apiário experimental. Outros similares, que visita regularmente com enorme satisfação, estão instalados no interior de São Paulo, em Campinas e em Ribei- rão Preto, assim como em Luziânia, em Goiás. São abelhas diferentes. As do Acre são típicas da região e diferentes das outras criações de Nogueira Neto. A observação dessas colônias está tra- zendo novas informações ao já vasto co- nhecimento do professor sobre o tema, afinal são três livros publicados e até o final do ano um dicionário.

Portinari e os mateiros - Na época em que era morador na região dos Jardins há quase 50 anos, em São Paulo, ad- quiriu uma área de cerca de 2 mil me- tros quadrados do outro lado do rio Pinheiros, hoje o bairro do Morumbi, onde cultivava seu prazer de observar a natureza. "Aqui era considerado 'fora da cidade', tanto que fiz uma chacri- nha, adubei as mudas, melhorei a qua-

lidade da terra. Animais, como vacas, passeavam soltos pelas ruas", ri da lem- brança de uma cidade que desapare- ceu em poucas décadas. Atualmente, reside ali, na ampla casa que construiu e onde gosta de receber seis netos e, por enquanto, o único bisneto. "Acho que quando se faz o que se gosta o tra- balho rende frutos e se multiplica em boas lembranças", pondera. A casa con- fortável e ampla reflete a paixão pri- mordial de seu proprietário. Logo no saguão de entrada, uma abelha estili- zada pelo artista plástico Aldemir Mar- tins em cerca de 5 metros de compri- mento domina o chão, montada em pastilhas de cerâmica. Numa das pare- des principais na passagem para as sa- las, um quadro de Portinari feito por encomenda retrata os mateiros reti- rando mel de abelhas indígenas. "Num rasgo de ousadia dei a ele umas fotos, já que desconhecia o tema, para que pintasse o quadro", lembra divertido. "Ainda bem que Portinari era acessível. Hoje é um exemplar raro, porque é o único quadro dele sobre o assunto". O óleo de Portinari é de 1958. •

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I CIÊNCIA

LABORATóRIO BRASIL

Risco de câncer no fogo dos canaviais

Hidrocarbonetos aromáticos: concentrações maiores do que em algumas metrópoles

Parece uma chuva de file- tes de carvão. No interior paulista, entre maio e no- vembro, o fogo nos cana- viais, adotado há séculos como forma de facilitar o corte da cana-de-açúcar, produz uma fuligem que fecha o céu, suja as roupas no varal e atormenta a vida de quem tem asma e bron- quite. Não bastassem esses problemas, as queimadas liberam material particula- do que contém compostos químicos conhecidos como hidrocarbonetos policícli- cos aromáticos (PAHs, si- gla em inglês), de acordo com um estudo realizado por pesquisadores da Uni- versidade de Antuérpia, na Bélgica, e do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. "Mesmo

em concentrações reduzi- das, a presença dos PAHs no ar preocupa, pois, além de agravar problemas res- piratórios, alguns deles são potencialmente cance- rígenos", comenta Ana Fla- via Godói, autora do estudo que identifica essas subs- tâncias, publicado no Jour- nal of Chromatography A, complementado por ou- tro, de Ricardo Godói, recém-publicado no Mi- krochimica Acta. A equipe belga, coordenada por René Van Grieken, na qual Ana Flavia trabalha há três anos, e a da Unesp, chefiada por Mary de Marchi, coletaram amostras de material par- ticulado durante dez dias em Araraquara, no centro da região produtora de cana em São Paulo. Por meio de uma nova técnica que re-

duz o tempo de análise em até dez vezes (o resul- tado sai em 40 minutos), encontraram quantidades expressivas de PAHs, co- mo fenantreno, fluorante- no e pireno, emitidos pela queima de cana. Segundo esse estudo, a concentração média de PAHs em Arara- quara durante a queimada é maior que a encontrada normalmente em capitais como Santiago, no Chile, e Seul, na Coréia do Sul, com uma população pelo menos cinco vezes maior e a poluição típica das me- trópoles. A concentração média de um deles, o ben- zo[a]pireno, composto com alto potencial de causar câncer, com um tempo de vida de 5 a 15 dias, é maior que a encontrada em Lon- dres, na Inglaterra. •

■ Calendários de pedra

No Brasil também há meni- res - os blocos de rocha que Obelix adorava carregar e atirar sobre os romanos que queriam conquistar a Gália. Estão em Florianópolis, ca- pital de Santa Catarina: são cerca de 40 colunas, de 2 a 9 metros de altura, apoiados por três pedras menores, es- palhadas a leste da ilha, algu- mas vezes à beira do mar. Os blocos fazem parte de dois observatórios astronômicos - um na planície e no outro no alto dos morros -, que eram usados para acompa- nhar o movimento do Sol, da Lua e das estrelas. Dois estudiosos dessas obras, Ad- nir Ramos, pesquisador das Faculdades Integradas da Associação de Ensino de Santa Catarina, e Germano Bruno, da Universidade Fe- deral do Paraná, descobri- ram que algumas pedras marcam o ponto onde nasce a constelação de Escorpião, que permanece no céu no- turno durante o inverno, en- quanto outras apontam para a de Órion, assídua nas noi- tes de verão. "Os povos anti- gos regulavam o cotidiano com essas pedras", diz Ra- mos. Os menires indicavam a melhor época de plantar, de pescar ou mesmo de ter filhos, para que os nasci- mentos coincidissem com os tempos de alimento farto. Mas quem os criou? Talvez os homens de sambaqui, que viveram há 3 mil anos nas proximidades da atual cida- de catarinense de Laguna, onde foi encontrado um re- lógio de sol semelhante, feito

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O prazer da gordura Agora se sabe por que um sorvete de chocolate ou uma fatia de picanha pare- cem mais apetitosos que um prato de ervilhas: ali- mentos ricos em gordura acionam a mesma área do cérebro ativada pelas sen- sações prazerosas como um toque carinhoso, um per- fume ou um gole de água gelada num momento de sede. Ivan de Araújo e o bri- tânico Edmund Rolls, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, chegaram a essa conclusão, que pode ajudar a aperfeiçoar as die- tas, com um teste com 12 pessoas com fome. Cada vo- luntário, deitado no inte- rior de um aparelho de res- sonância magnética nuclear, recebeu uma dose de cinco líquidos sem cor, cheiro ou sabor. Enquanto mapeavam

Equivalência: o mesmo que um carinho

a atividade do sistema ner- voso de cada participante, os pesquisadores pediam que eles classificassem as amostras com respeito à viscosidade e à presença ou ausência de gordura. Rolls e Araújo, que terminou este ano o doutorado em Ox- ford, viram que as amostras mais viscosas despertaram uma porção de uma área do cérebro ligada à percep-

ção de sabor - uma indi- cação de que viscosidade e sabor permitem ao cérebro descobrir o tipo de alimen- to consumido. Só o líquido rico em gordura (óleo de canola) acionou o córtex cingulado, região do cére- bro ligada à percepção de sensações prazerosas, reve- laram os pesquisadores em artigo no Journal ofNeuros- cience de 24 de março. •

de pedra. Ramos, em par- ceria com a prefeitura, luta para preservar os blocos de rocha, alguns situados em áreas residenciais. "Já acom- panhei a destruição de dois deles", diz ele, "e não conse- gui convencer os donos das casas da importância desses monumentos." •

■ Dinossauros nas dunas

Pesquisadores do Paraná, do Rio de Janeiro e de São Paulo encontraram pegadas de ma- míferos e de dinossauros do período conhecido como Cre- táceo Superior (90 milhões a 60 milhões de anos atrás) no Pontal do Paranapanema, às

margens do rio Paraná, na di- visa entre São Paulo e Mato Grosso do Sul. É a primeira vez que se vêem sinais de ani- mais dessa época por lá. A descoberta é ainda mais sur- preendente por se tratar do

centro do antigo deserto que ocupou essa região. "É muito difícil haver vida e mais difícil ainda encontrar vestígios em ambientes tão secos e áridos", comenta Luiz Fernandes, geó- logo da Universidade Federal

Na margem esquerda do Paraná: pegadas no antigo deserto

do Paraná (UFPR). Fernan- des e os paleontólogos Fer- nando Sedor, também da UFPR, e Rafael Silva, da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro, com apoio da Com- panhia Energética de São Paulo (Cesp), localizaram as pegadas no final de março em lajes de arenito que for- mavam grandes dunas. Até agora, haviam sido identifi- cados vestígios de animais do Cretáceo apenas nas bordas desse deserto, mais úmidas a ponto de abrigarem lagos, nas imediações das cidades de Presidente Prudente, ain- da à beira do Paraná, ou de Marília, noroeste paulista. •

■ Vírus novo no Brasil

Chegou ao país um tipo de vírus descoberto na Holanda há dois anos: o metapneu- movírus, que causa sintomas semelhantes aos de uma gripe e, algumas vezes, pneumonia. Pesquisadores da Universida- de de Liverpool, Inglaterra, e da Universidade Federal de Sergipe detectaram o meta- pneumovírus em 19 crianças com menos de 3 anos inter- nadas com problemas respi- ratórios em dois hospitais de Aracaju, capital de Sergipe. Das 111 examinadas, outras oito apresentavam esse mi- crorganismo associado com o vírus respiratório sincicial (RSV), também ligado a tos- se, chiado no peito e infec- ções nos pulmões, e 53 apenas o RSV, de acordo com o estu- do publicado na revista Emer- ging Infectious Diseases. Já en- contrado na Europa, na Ásia e na América do Norte, o me- tapneumovírus é considera- do em alguns países como uma das principais causas de internações hospitalares de crianças com menos de 5 anos de idade. •

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LABORATóRIO MUNDO

0 buraco negro mais próximo Que ele estava lá já se sabia, HBHHB | bork, na Holanda, integran- mas não que tem 22 mi- Bfl ,|^SH^K: te da equipe, que usou o lhões de quilômetros de ex- Vft^-J^^ ^ ' Hfl radiotelescópio do Observa- tensão e uma massa 4 mi- " B| tório Nacional de Radioas- lhões de vezes maior que a tronomia, dos Estados Uni- do Sol. Havia 30 anos que dos (Science Express). Já se os astrônomos tentavam sabe que a massa total do descobrir as dimensões do Sagitário A* é muito con- buraco negro mais próxi- centrada: ele ocupa o espa- mo da Terra, chamado Sa- ço equivalente ao da órbi- gitário A* (o asterisco sig- ta da Terra ao redor do Sol. nifica estrela). Ele está no Continua, porém, o misté- centro de nossa galáxia, a Hj rio sobre sua forma, que os Via Láctea, a quase 250 qua- JMfe. astrônomos pretendem des- trilhões de quilômetros de cobrir assim que possível. distância. O maior desafio Em2003, astrônomos nor- da equipe de físicos que fez te-americanos, examinan- essa descoberta foi enxer- : :\,. do as emissões de raios X gar além da poeira que tol- registradas pelo telescópio da a galáxia, algo como a 9 Chandra, verificaram que o bruma que confunde a vi- - Sagitário A* é bastante ati- são dos faróis em alto-mar. B RSj *:„ vo, com explosões que libe-

"Conseguimos afastar o fog H^SB^HBHEHI■'•- .--á!^£ ram jatos de gás a uma ve- e ver o que está acontecen- -- ^HHBSHBHBSG locidade próxima à da luz do", disse Heino Falcke, do T ■ e temperaturas de quase 20 Rádio Observatório Wester- Sagitário A*: além da neblina, no centro da Via Láctea milhões de graus. •

■ Churrasco de 1 milhão de anos

O primeiro churrasco da his- tória da humanidade pode ter ocorrido há 1 milhão de anos, na África, com carne de antí- lope. A suspeita de que os ho- minídeos habitantes das ca- vernas de Swartkrans, um dos sítios arqueológicos mais ri- cos do planeta, foram pio- neiros no uso controlado do fogo foi levantada por dois pesquisadores sul-africanos e dois norte-americanos (Scien- ce in África). Os exames feitos por meio da técnica de resso- nância de elétrons mostraram que os ossos queimados foram

submetidos a temperaturas que excederam 500 graus Celsius, o equivalente ao ca- lor produzido por fogo em áreas confinadas. Os restos do antílope que virou churrasco foram achados em 1984 por Bob Brain, então diretor do Museu Transvaal, da África do Sul, junto com outros 250 ossos queimados de animais. Brain trabalhou com o quí- mico Andy Sillen no labo- ratório de arquiometria da Universidade da Cidade do Cabo para detectar a tempe- ratura à qual os fósseis foram submetidos. A hipótese do fo- go era plausível, mas a idade dos ossos permanecia incerta

até o material ser reexami- nado. As equipes de Francis Thackeray, do Museu Trans- vaal, e de Anne Skinner, do Williams College, Estados Uni- dos, confirmaram as idéias de Brain de 20 anos atrás: os os- sos realmente foram subme- tidos a calor intenso. "Não es- tamos dizendo que parentes distantes do homem como o Homo ergaster ou o Homo erectus faziam fogueiras, mas que no mínimo provavelmen- te usavam o fogo de modo controlado", comentou Tha- ckeray. "Eles podem ter reco- lhido galhos em chamas de árvores atingidas por raios após invernos secos." •

■ Benefícios extras do açafrão

O açafrão é um tempero usa- do sem parcimônia na índia, para dar cor aos alimentos ou acrescentar sabor picante ao molho de curry. Agora o aça- frão - já recomendado para pessoas com Aids e câncer, por causa de suas propriedades antioxidantes e antiinflama- tórias - entrou na lista das substâncias que ajudam a evitar uma doença degene- rativa incurável, o Alzheimer (Science in África). O baixo índice de idosos vítimas da doença na índia, quando com- parado ao Ocidente, pode es-

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suir um dos maiores índices de biodiversidade do mun- do. Eles analisaram a diversi- dade de espécies em uma área abandonada após a ma- deira ter sido retirada em 1885, em outra onde a reti- rada de árvores foi seletiva, ocorrida em 1947, e em uma terceira, nunca desmatada, mas devastada por um ciclo- ne três anos antes do estu- do, além de lugares poupa- dos de retirada de madeira. A conclusão é que o estabe- lecimento de espécies inva- soras em florestas desmaia- das impede a recolonização de espécies nativas, mesmo após 150 anos. Ou seja, há perda de diversidade bioló- gica. Na área devastada natu- ralmente, há possibilidades de recuperação, o que não ocorre naquelas em que a

Madagascar: plantas invasoras avançam após desmatamento

tar associado à dieta à base de açafrão. Em um estudo rela- tado no Journal of Inorganic Biochemistry, Sheril Daniel, Santy Daya e Janice Limson, da Universidade Rhodes, da África do Sul, mostraram que o princípio ativo do açafrão, a curcuma, protegeu o cérebro de ratos contra danos oxida- tivos causados por cianeto e metais tóxicos como chum- bo e cádmio, aos quais estão associadas doenças degene- rativas como Parkinson e Alzheimer. O chumbo afeta o hipocampo, uma região do cérebro que controla o com- portamento e as atividades intelectuais, causando perda de memória e incapacidade motora. Os testes feitos com ratos mostraram que o prin- cípio ativo do açafrão prote- geu o hipocampo da ação deletéria do chumbo. Acredi- ta-se que sua propriedade an- tiinflamatória ajude a reduzir o inchaço observado nas cé- lulas neuronais. •

■ Espécies nativas perdem espaço

Desmatar uma área tem claras conseqüências ne- gativas para a biodiver- sidade, mas quais da- nos reais podem ocorrer quando essa prática se dá por longos perío- dos? As plantas invaso- ras que crescem com a retirada da madeira nas florestas tropi- cais persistem ou são substituídas ao longo do tempo por espé- cies nativas? Com essas perguntas, bió- logos da Universida- de de Stony Brook (EUA), percorre- ram o Parque Na- cional Ranoma- fana, a sudoeste de Madagascar, país insular pró- ximo à costa sul da África, esco- lhido por pos-

derrubada da vegetação é contínua. Segundo o estudo, publicado em 20 de abril no Proceedings National ofAca- demy of Science, as plantas in- vasoras permanecem longo período após a colonização inicial e alteram drastica- mente a sucessão de espécies de plantas na floresta. •

■ Equívocos na terra do Big Ben

Eles têm pose, pompa e uma rainha, além da famosa fleu- ma britânica, que tudo co- bre com um véu de distan- ciamento. Mas algo destoa nesse reino: o conhecimento científico da população do Reino Unido deixa muito a desejar. Pesquisa promovi- da pelo Instituto de Física (IoP) mostrou que 98% dos adultos britânicos ignoram do que é feito o núcleo de um átomo. Só 2% dos 504 entrevistados (232 homens e 272 mulheres) acertaram a resposta: os constituintes básicos de toda a matéria do Universo são os quarks. Para 31,3%, o núcleo atômico é formado por elétrons (par- tículas que, na verdade, orbi- tam o núcleo), 10,2% acre- ditam que é por prótons (sim, o núcleo é formado por prótons, mas há tam- bém os nêutrons). Dos en- trevistados, 1,2% simples- mente confundiu átomos com células e disse que o DNA é que ocupa o nú- cleo atômico. Os organi- zadores da pesquisa, con- duzida pela Nems Market Research, mostraram- se preocupados porque a energia nuclear gera quase um quarto da ele- tricidade utilizada no Reino Unido e fornece isótopos para cerca de 27 mil exames médicos diários. •

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Câncer, esperanças divididas

Avanços na pesquisa médica salvam muitas vidas, mas a doença ainda desafia a ciência

MARCOS PIVETTA

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No Brasil rural da dé- cada de 1930, um re- cém-nascido tinha uma expectativa mé- dia de vida de menos de 40 anos e quase

metade das mortes era causada por doenças infecto-parasitárias. De cada 37 óbitos, apenas um se devia ao câncer. No Brasil urbano do século 21, sete dé- cadas mais tarde, os bebês exibem uma esperança de vida de 70 anos e menos de 5% das mortes entram na conta das moléstias infecto-parasitárias. Um em cada oito óbitos é provocado por tu- mores malignos. Hoje, o câncer deixou para trás todas as causas de morte, a não ser os problemas cardiovasculares, ba- sicamente ataques do coração e derra- mes, que, desde a década de 1960, lide- ram as estatísticas de óbitos. Em 2002, cerca de 400 mil novos casos de câncer foram registrados e quase 130 mil bra- sileiros morreram em razão da doença. Quatro de cada cinco vítimas fatais ti- nham mais de 50 anos, com ligeiro pre- domínio de baixas entre os homens.

As mortes por câncer representa- ram 13,2% de todos os óbitos do país, quase a metade do percentual atingido pelas vítimas fatais de problemas no aparelho circulatório. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), ór- gão do Ministério da Saúde sediado no Rio de Janeiro, pouco mais de 2 milhões de brasileiros morreram da doença en- tre 1979 e 2002. Nesse período, as taxas ajustadas de mortalidade dos oito prin- cipais tipos de câncer no país - pulmão, estômago, mama, próstata, cólon e reto, esôfago, leucemias e colo do útero - mantiveram-se estáveis ou aumen- taram na maioria dos casos (veja gráfi- cos à página 51). Quedas significativas, em ambos os sexos, ocorreram somen- te com os índices de óbitos referentes ao câncer de estômago, tendência tam- bém verificada em outros países. "Estão em ascensão o câncer de mama, de pul- mão em mulheres e de próstata", afir- ma Guinar Mendonça, coordenadora de Prevenção e Vigilância do Inca.

A elevação no número de óbitos não significa que todo tipo de câncer permanece incurável, como muita gen- te ainda acredita. No Hospital do Cân- cer - A. C. Camargo, de São Paulo, um dos centros nacionais de referência no tratamento da doença, por exemplo, dois terços dos cerca de 5 mil pacientes

atendidos anualmente se curam. Isso sem se levar em conta idade, sexo, tipo de tumor ou estágio da doença que es- sas pessoas apresentavam no momento em que iniciaram o tratamento. índices semelhantes podem ser encontrados nos principais centros oncológicos do Brasil e de fora. Nos Estados Unidos, onde há muitas estatísticas, metade dos doentes de câncer vencia a doença 30 anos atrás. Hoje, a taxa média chega a 63%. Para alguns, foi um progresso pífio, perto de reduções da ordem de 60% no número de mortes por infarto e derrame no mesmo período. Para ou- tros, foi um avanço não desprezível. Um obstáculo na luta contra o câncer continua de pé: o processo de metásta- se, a disseminação das células anormais do tumor para outras partes do corpo além do local original em que elas apa- receram. "As metástases são um divisor de águas", afirma Ricardo Brentani, presidente do Hospital do Câncer e di- retor da filial paulista do Instituto Lud- wig de Pesquisa sobre o Câncer. Contra elas, os recursos terapêuticos ainda são limitados e os prognósticos para os pa- cientes, reservados.

Epidemia - O câncer é uma epidemia em praticamente todo o mundo, on- de encurta anualmente a existência de 6 milhões de indivíduos, provocando 12% das mortes. No Japão e na Austrá- lia, o câncer já responde pela maioria dos óbitos. Nos Estados Unidos, as mor- tes por problemas cardiovasculares ain- da ocupam o topo da lista, embora sua fatia de vítimas venha decaindo. A taxa de mortes por câncer, por sua vez, man- tém-se estável ou crescendo. Os anos de sobrevida aumentaram para os pa- cientes com tumores diagnosticados e tratados em seus estágios iniciais, mas o prognóstico para os casos em que a doença já se mostra disseminada pelo organismo praticamente não se alte- rou. As perspectivas para os doentes com metástases de câncer de pulmão, mama, próstata e cólon/reto - os que mais matam nos Estados Unidos - são quase as mesmas hoje e há três décadas. O melhor prognóstico é dos pacientes com câncer de próstata em estágio avan- çado: pouco mais de 30% se mantêm vivos por mais de cinco anos. No país que é a meca da ciência, é possível que em breve o câncer se transforme no principal matador de sua população.

O mesmo pode acontecer em boa parte do globo. A incidência de câncer cresce por várias razões, algumas, para- doxalmente, estão diretamente ligadas à melhoria das condições de saúde e hi- giene de grandes fatias da população mundial e ao progresso da ciência. As pessoas hoje vivem muito mais do que no passado. "Quanto mais velho e de- senvolvido um país, maior o seu núme- ro de óbitos por câncer", comenta a es- tatística Marceli de Oliveira Santos, da coordenação de Vigilância e Prevenção do Inca. Nas últimas décadas, a pesqui- sa médica acumulou um saber tremen- do sobre esse vasto e diversificado grupo de condições clínicas, originadas pelo crescimento descontrolado de células em alguma parte do corpo, que recebe o nome genérico de câncer. Tais avan- ços, somados à maior informação so- bre a doença entre os leigos, ajudaram no diagnóstico precoce de vários tipos de câncer. Tudo isso faz com que figu- rem nas estatísticas mais casos e mortes atribuídas à doença. Essas são, por assim dizer, as "boas" causas, os progressos da humanidade, que, infelizmente, fa- vorecem a incidência do câncer.

Agora vêm os motivos intrinseca- mente ruins. O estilo de vida do ho- mem moderno o expõe a muitos fato- res de risco que predispõem ao câncer, como fumar (o mais perigoso de to- dos), tomar sol em excesso, beber de- mais e ter contato prolongado com produtos químicos potencialmente carcinogênicos ou vírus. Há também a questão genética. "Cerca de 15% das causas de câncer são hereditárias", diz Brentani. E, para piorar ainda mais, surge uma questão que causa um certo desconforto e polêmica entre os pes- quisadores e oncologistas: nas últimas três décadas, os avanços realmente sig- nificativos para tratar o câncer foram mais lentos e localizados do que todo o talento, tempo e dinheiro investidos em estudos e testes clínicos sobre a doença poderia fazer supor. "Para os tipos de câncer mais comuns, que matam mui- to, como pulmão e mama, nosso pro- gresso foi praticamente zero. Ainda tratamos os doentes basicamente da mesma forma que fazíamos décadas atrás", afirma o bioquímico Andrew Simpson, do Instituto Ludwig em Nova York, que morou durante anos no Bra- sil, onde chefiou projetos de seqüencia- mento genético. "Houve, sim, avanços

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A ascensão do câncer

O peso proporcional das principais causas de morte no país

1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2002

Fonte: MS/SVS/DASIS/CGIAE/Sistema de Informação sobre Mortalidade - ENSP/Fiocruz Obs.: Os dados anteriores a 1980 referem-se às principais capitais brasileiras.

Distribuição proporcional das principais causas de morte

no Brasil - 2002

Grupos de causas Total % Aparelho circulatório 267.290 27,2

Câncer 129.850 13,2

Causas Externas 126.426 12,9

Aparelho Respiratório 94.672 9,6

Infec. Parasitárias 45.141 4,6

Digestivas 46.146 4,7

Outras 318.521 27,8

Total 981.900 100,00

Em 1930, de acordo com os parcos dados disponíveis, o câncer era responsável por 1 em cada 37 mortes no país. Hoje, sete décadas mais tarde, 1 em cada 8 óbitos se deve à doença.

significativos no tratamento de cânce- res pediátricos, de adolescentes, linfo- mas de Hodgkins, leucemias e algumas formas raras de tumor." Em algumas dessas condições, a taxa de cura - aí en- tendida como uma sobrevida de pelo menos cinco anos sem o retorno do tu- mor - supera os 90%.

Os céticos dirão que, nas últimas décadas, poucas novidades de peso se juntaram ao clássico arsenal terapêu- tico anticâncer. De fato, ainda hoje, o uso combinado ou não de cirurgia, ra- dioterapia e quimioterapia - o primei- ro procedimento tenta extirpar as célu- las do tumor do organismo enquanto os outros dois almejam matá-las - for- ma o alicerce de base sobre o qual se as- senta a quase totalidade dos tratamentos contra os mais variados tipos de câncer. Com certeza, não apareceu nenhuma bala de prata que fosse capaz de dar fim à maioria dos tumores, mas não se pode esquecer de que mesmo essas três

abordagens foram sendo aprimoradas, a fim de serem mais efetivas e menos agressivas. A adoção dos transplantes de células-tronco periféricas do sangue e de medula óssea possibilitou, por exem- plo, o emprego de doses mais elevadas de químio ou radioterapia contra al- guns casos graves de câncer. "Antes o tratamento era mais empírico", afirma o oncologista Gilberto Schwartsmann, da Faculdade de Medicina de Universi- dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Hoje podemos adotar abor- dagens mais refinadas."

Surgiram também novas famí- lias de tratamentos que, aos poucos, ganham espaço como terapias alternativas ou com- plementares. Esse é o caso da

imunoterapia, que, ao ministrar anti- corpos monoclonais ou vacinas nos pa- cientes, procura reforçar o sistema de defesa do próprio organismo e, assim,

minorar os efeitos colaterais das abor- dagens mais tradicionais ou mesmo combater diretamente os tumores. Já há anticorpos monoclonais, como o Her- ceptin, do laboratório Roche, sendo usa- dos contra alguns tipos agressivos de câncer de mama. No Hospital das Clí- nicas de São Paulo, uma vacina gênica desenvolvida no país, com DNA modi- ficado, está sendo testada em pacientes com tumores de cabeça e pescoço em es- tágio bastante avançado, contra os quais os recursos tradicionais da oncologia não deram resultado. Outras apostas da ciência contra o câncer são as drogas antiangiogênese. Esses compostos têm como objetivo cortar a fonte de nutrien- tes que, via vasos sangüíneos, abaste- cem os tumores. Esse tipo de fármaco funcionou bem em ratos, mas seu de- sempenho em humanos é, por ora, de- cepcionante. A compreensão dos me- canismos biológicos que fazem um câncer reincidir mesmo depois do em-

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prego de altas doses de quimioterapia é um dos objetivos mais perseguidos pela ciência. Trabalhos recentes, como os de Michael Clarke, da Universidade de Mi- chigan, sugerem que células-tronco tu- morais, de crescimento muito lento e di- fíceis de matar, seriam as responsáveis pelo reaparecimento de algumas for- mas de câncer e por parte dos insuces- sos dessa forma de tratamento.

uma visão pouco otimista sobre a si- tuação da doença em seu país, a revista nor- te-americana Fortu- ne, uma publicação

especializada em notícias de economia e negócios, dedicou sua capa de 22 de março ao tema "Por que estamos per- dendo a guerra contra o câncer (e como ganhá-la)". Entre os culpados por esse quadro aflitivo, a publicação reserva um lugar de destaque para a pesquisa cien- tífica feita nos Estados Unidos. Segun- do a Fortune, uma série de equívocos ou incompetências tem feito a pesquisa sobre câncer pedalar, pedalar, pedalar e quase não sair do lugar. A lista é real- mente grande: a ciência foi boa até aqui para gerar conhecimento aprofundado sobre o câncer, mas não soluções; os grupos de pesquisa trabalham de for- ma isolada, sem colaboração, e por vezes estudam aspectos extremamente específicos da doença; pouca gente es- tuda o processo de metástase, que, em última instância, é o responseavel pela morte dos doentes; o rato é um péssimo modelo animal para se estudar o cân- cer, induzindo os cientistas a conclusões precipitadas ou erradas; as candidatas a novas drogas são testadas em pacientes em estágio terminal, quando nenhum outro tratamento funciona mais, num tipo de experimento fadado a não pro- duzir bons resultados. A Fortune estima que foram canalizados US$ 200 bilhões em pesquisa sobre câncer nos Estados Unidos desde 1971 até hoje. Diante des- sa cifra e dos modestos resultados em termos de novos tratamentos, a revista sugere que o retorno do investimento para o contribuinte norte-americano não foi dos melhores.

No Brasil, não há estimativas sobre o tamanho da verba alocada para a pes- quisa de câncer. Com certeza, o valor total, seja qual for, é uma gota no ocea- no perto dos bilhões de dólares investi-

dos internacionalmente. Grande parte da pesquisa nacional em oncologia está centrada no Rio de Janeiro, em torno de projetos tocados ou apoiados pelo Inca, e em São Paulo, onde a FAPESP apoia algumas iniciativas de peso. Uma delas é o programa Genoma Clínico do Câncer, iniciado há dois anos. Essa ini- ciativa analisa o comportamento de 20 mil genes humanos em tecidos sadios e em nove diferentes tipos de tumo- res. Seu orçamento é de US$ 1 milhão, oriundo, em partes iguais, da FAPESP e do Instituto Ludwig. "A idéia é pro- duzir dados que possam gerar ferra- mentas para melhorar o diagnóstico ou tratamento dos tumores e ver como o ativamento dos genes altera parâme- tros como a sobrevida e a propensão a metástases dos doentes ", explica Marco Antônio Zago, da Faculdade de Me- dicina de Ribeirão Preto da Universi- dade de São Paulo (USP), coordena- dor do programa.

Teste de risco - O Genoma Clínico, aliás, é um desdobramento de outro progra- ma conjunto da FAPESP e do Instituto Ludwig, o Genoma Humano do Cân- cer, encerrado recentemente. O Geno- ma Humano do Câncer produziu 823 mil ESTs (etiquetas de seqüências ex- pressas) derivadas de tecidos huma- nos, sadios e com câncer. Cada EST é um fragmento de gene ativado num deter- minado tecido. A quantidade de ESTs produzida pelos pesquisadores brasilei- ros eqüivale a 40% de todas as seqüên- cias expressas extraídas de tecidos huma- nos e depositadas nos bancos de dados públicos. O feito merece destaque em dobro, pois foi obtido com o emprego de uma metodologia alternativa - e bra- sileira - para encontrar pedaços de ge- nes ativos, a técnica Orestes.

Além de ser um centro de referência no tratamento da doença, o Hospital do Câncer - A.C. Camargo também faz ciência de ponta na área oncológica, quase sempre em conjunto com o Ins- tituto Ludwig. Em 15 de fevereiro deste ano, a revista norte-americana Câncer Research deu destaque de capa para um trabalho feito por pesquisadores das duas instituições. A equipe do bioquí- mico Luiz Fernando Lima Reis, ligado tanto ao hospital quanto ao instituto, viu que a ocorrência de um tipo de le- são benigna no estômago, a metaplasia intestinal, pode ser um fator que pre-

dispõe à ocorrência de câncer do estô- mago. Não é que todas as lesões desse tipo vão virar câncer, mas algumas, aquelas com uma determinada assina- tura molecular (com um dado padrão de funcionamento de alguns genes), parecem ser um prenuncio da forma- ção de tumores malignos. "Se nossos resultados se confirmarem em estudos posteriores, talvez consigamos criar um teste para apontar a população com mais riscos de desenvolver câncer de estômago", afirma Lima Reis. Grande parte dos trabalhos científicos do Hos- pital do Câncer é financiada pelo pro- grama Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), da FAPESP.

Uma das ramificações mais interes- santes das pesquisas do Inca são os es- tudos em farmacogenômica. Nesse tipo de esforço científico, os pesquisadores procuram, no DNA de brasileiros, por mutações em genes que podem estar relacionados a uma melhor ou pior res- posta aos tratamentos contra o câncer. Outra linha da farmacogenômica é o estudo da prevalência de alterações ge- néticas que favoreçam o hábito de não fumar ou de fumar menos. Sabe-se, por exemplo, que certas mutações no gene CYP2A6 podem facilitar o aban- dono do cigarro. "De verbas próprias, investimos R$ 4 milhões em estudos e trabalhos científicos", afirma Guilher- me Kurtz, coordenador-geral do setor de pesquisas do Inca. "Mas o valor não inclui os financiamentos externos, das agências de fomento, que também ban- cam nossos trabalhos." Fora do eixo Rio-São Paulo, também produzem tra- balhos de ponta sobre o câncer a Uni- versidade Federal do Paraná (UFPR), sobretudo na área de leucemias e trans- plantes de medula óssea, e a UFRGS.

Apesar de todas essas notícias vin- das apenas da pesquisa sobre câncer feita num país periférico como o Bra- sil (imagine o que não deve estar sen- do feito agora mesmo nos laboratórios dos Estados Unidos e Europa), ainda faz sentido falar em "derrota para o cân- cer" como diz a Fortune'? Seria exagero? Pessimismo? Talvez. Ninguém que lida com doentes ou faz pesquisa concorda abertamente com esse veredicto, mas a maioria dos cientistas e médicos en- trevistados para esta reportagem ad- mite que os avanços na luta contra a doença se dão num ritmo mais vaga- roso do que se esperava. "Não acredito

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As vítimas de cada tumor

Taxa ajustada de mortalidade dos principais tipos de câncer por 100 mil homens

18

16

14

12

10

8

6

4

2

H— Pulmão

|1— Estômago

i"

H— Próstata

H— Esôfago

W— Colou e Reto

3 53 Leucemias -^

1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002

Taxa ajustada de mortalidade dos principais tipo de câncer por 100 mil mulheres

■—Mama

» Pulmão

Cólon e Reto

5,03 Colo do útero

H— Estômago

2,51 Leucemias

H— Esôfago

1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002

Fonte: Inca Otas.: Taxas ajustadas, descontado o efeito da distribuição etária da população ao longo do tempo

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Page 49: O câncer desafia a ciência

que estejamos perdendo a luta contra o câncer", afirma Carlos Gil Ferreira, chefe do setor de pesquisa clínica do Inca. "Na verdade, estamos fazendo progressos muito mais lentamente do que desejaríamos."

ambém há um consenso de que a ciência tem difi- culdades em transformar o conhecimento gerado no laboratório sobre os me-

canismos biológicos do câncer em novas práticas, testes e tratamentos que pos- sam efetivamente ser úteis aos pacien- tes. "Há muita pesquisa sobre câncer, mas falta enfoque. Precisamos produ- zir conhecimento para gerar novos tra- tamentos e alvos terapêuticos", comenta Zago. Falta o que, no jargão da ciência, se chama pesquisa translacional, aque- la que transforma a descoberta da aca- demia numa ferramenta de uso médi- co. Essa é uma das metas do Genoma Clínico do Câncer.

Mudar a forma de fazer pesquisa po- de acelerar a busca por tratamentos real- mente mais eficazes contra o câncer? Em tese, sim. Mas não é fácil promover essa revolução. Há dificuldades práticas, quase intransponíveis. Os críticos do modelo atual de gerar conhecimento so- bre a doença dizem que o roedor não é capaz de reproduzir toda a complexida- de de um câncer humano. Às vezes, um tumor só aparece numa pessoa após uma exposição prolongada, de anos, a um fator carcinogênico, como o cigar- ro. Como reproduzir essa situação num bicho que vive apenas dois anos? "OK, o rato é um mau modelo. Mas então vou estudar o quê?", pergunta Brentani. "Cabe ao pesquisador conhecer as limitações do modelo e fazer perguntas que esse modelo pode efetivamente responder." Sem o auxílio do rato, seria praticamen- te impossível fazer pesquisa nas áreas biológicas. Outro entrave, esse de ordem moral, é o processo de testes de novas drogas contra o câncer em humanos. É preciso encontrar algum jeito que não fira a ética e permita maior flexibilidade para fazer experimentos com compos- tos em pacientes em estágios iniciais da doença, quando as chances de cura são maiores. O problema é que ninguém sabe como e se isso pode ser feito. "To- do médico está obrigado eticamente a dar ao seu paciente o melhor tratamen- to disponível", comenta Lima Reis.

Se há uma droga de criação recente que entusiasma médicos e cientistas, e sempre é citada como uma prova de que a moderna pesquisa contra o cân- cer dá sim resultados práticos, esse fármaco é o Glivec, fabricado pela mul- tinacional Novartis. A droga foi espe- cialmente desenhada para neutralizar a causa molecular, o defeito genético, que causa a leucemia mielóide crônica (LMC), um tipo de câncer de sangue e da medula óssea que responde por 14% das leucemias em adultos e de 3% a 5% em crianças. Em 2001, seu uso contra essa forma de leucemia, cuja terapia

convencional consiste na realização de um transplante de medula óssea e, em alguns casos, com doses de quimiotera- pia, foi aprovado pela agência norte- americana que regula o uso de medica- mentos, o FDA. Dessa maneira, alguns pacientes conseguem hoje controlar a doença sem ter de fazer transplantes. O inconveniente é que o paciente tem de tomar a droga a vida inteira - o Glivec neutraliza o defeito molecular que leva à LMC, mas não o suprime. "Os resul- tados dessa droga são bons mesmo, mas ainda é cedo para sabermos se os benefícios vão se manter a longo pra-

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zo", pondera Zago. Em 2002, o Glivec deu outra prova de sua eficiência: seu emprego foi aprovado no tratamento de metástases de um tipo raro de tu- mor gastrointestinal, conhecido pela si- gla Gist. Em 80% dos casos, o remédio funciona.

Caso a ciência obtenha sucesso em desenhar compostos como o Glivec para combater outros tipos de tumores, sobretudo os mais comuns, o arsenal de tratamentos contra o câncer vai realmen- te se ampliar e se tornar mais eficiente no futuro. Mas, por enquanto, isso é ainda uma promessa. Não será fácil pro-

duzir um série de Glivecs de uso mais amplo, pois poucos tipos de câncer de- rivam de um único defeito genético, como acontece com a leucemia mielói- de crônica. Em geral, uma sucessão de mutações, para não mencionar os fa- tores ambientais, estão implicadas na gênese de muitos tumores. Para Andrew Simpson, do Instituto Ludwig de Nova York, os cientistas, sobretudo nos Esta- dos Unidos, que ditam a moda e os ru- mos da ciência, precisam aprender a trabalhar em grupo e a estabelecer ob- jetivos claros e práticos para seus estu- dos com câncer. "O excesso de com-

petitividade dos grupos de pesquisa nos Estado Unidos é bom para gerar descobertas, mas não é suficiente pa- ra gerar impacto na área clínica", diz Simpson. "É preciso um esforço coor- denado em busca de um objetivo co- mum. Mais ou menos como a Nasa fez quando resolveu viabilizar a ida do homem à Lua. Os brasileiros sabem trabalhar em equipe, como provaram no projeto Genoma Humano do Cân- cer e no seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa. Acho que o país pode ter um impacto na pes- quisa sobre o câncer." •

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1 CIÊNCIA

BIOQUÍMICA

Trabalho extra Triturador de moléculas dentro das células também cria proteínas que reduzem eficiência de vacinas

A natureza não pára de dar ã^k exemplos de que pode ser L^^ bem mais complicada do i M que parece. Dois artigos

^L. Jkk. recentes, um publicado na Nature e outro na Science, revelam um fenômeno que dificulta um pouco mais a já atribulada vida dos pesquisa- dores que estudam proteínas - no Bra- sil, há cerca de 300 grupos dedicados a essa área. Ao redor do núcleo da célula, na porção chamada citoplasma, há uma estrutura cilíndrica, formada por pro- teínas, que age como um triturador: des- faz as proteínas velhas e defeituosas em suas unidades, os aminoácidos.

Pensava-se que esses aminoácidos ficassem livres e fossem reaproveitados na produção de novas proteínas - que formam as células e os tecidos, enfim o organismo de plantas e animais - somente em outro compartimento ce- lular, o ribossomo, a partir de receitas contidas no material genético das célu- las, a molécula de ácido desoxirribonu- cleico (DNA). O que agora aparece cla- ramente é que as proteínas responsáveis por essa desmontagem também são ca- pazes de formar outras proteínas. Essa produção paralela identificada este ano mostra que as proteínas que se acredita- va fossem capazes apenas de cortar ou- tras proteínas por inteiro não executam o serviço completo. Algumas delas, além de cortar, também reagrupam trechos distantes da proteína parcialmente desmontada, modificando-a antes que entre em ação.

A recombinação ou splicing de pro- teínas, como é chamado o processo re- cém-descoberto, ajuda a entender por que algumas vacinas não funcionam co- mo deveriam. As vacinas são feitas a par- tir de antígenos, fragmentos de proteí- nas que acionam as células de defesa e preparam o organismo para enfrentar os vírus e as bactérias que os produ- zem. Mas, como é amplo o conjunto de possibilidades de recombinação dos trechos de proteínas, podem surgir an- tígenos contra os quais o organismo não está preparado. "Esse mecanismo exerce uma clara influência sobre os antígenos, cuja diversidade deve au- mentar de modo significativo", disse a Ricardo Zorzetto, de Pesquisa FAPESP, Benoit Van den Eynde, do Instituto Ludwig para Pesquisa do Câncer, em Bruxelas, Bélgica, coordenador do es- tudo publicado on-line pela Science em 4 de março e apresentado na versão im- pressa da revista em 23 de abril.

"Certamente esse não é um fenô- meno raro, uma vez que dois outros exemplos já foram descritos desde a publicação de nosso artigo", disse a Pes- quisa FAPESP James Yang, do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Uni- dos (NCI), o primeiro a identificar esse mecanismo no organismo humano. Depois de seu estudo, feito com células de tumores de rim e noticiado em 15 de janeiro na Nature, essa forma alternati- va de produção de proteínas foi obser- vada pela equipe de Van den Eynde em células de tumor de pele e por outro

grupo de pesquisadores do NCI, em um estudo a ser publicado em breve.

Descrito há quase 20 anos em célu- las de plantas e, mais tarde, em organis- mos unicelulares, só agora o splicing de proteínas foi observado em animais. É uma descoberta que ajuda a explicar por que o organismo humano produz cerca de 90 mil proteínas distintas, em- bora possua apenas cerca de 30 mil re- ceitas registradas no DNA. Mas, por ora, a identificação do splicing de pro- teínas gera mais dúvidas que respostas, afirma o imunologista Hans-Georg Rammensee, da Universidade de Tü- bingen, Alemanha, em comentário so- bre o trabalho de Yang, publicado tam- bém na Nature de janeiro.

Regra ou exceção? - "Ainda não sabe- mos se, em mamíferos, os peptídios (fragmentos de proteínas) produzidos dessa forma têm uma função diferente (daqueles fabricados a partir do DNA)", reconheceu Yang. Mesmo assim, Ram- mensee aponta outra possível conse- qüência do mecanismo recém-descrito: embora não se conheça a freqüência da produção de proteínas a partir da que- bra de uma molécula original e a ressol- dagem de suas partes, existe a possibili- dade de que essa recombinação ocorra não apenas com proteínas de células tumorais, mas também com as proteí- nas de células normais, de vírus e de bactérias que infectam o organismo, tornando mais difícil a obtenção de va- cinas contra algumas doenças.

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Representação do splicing: proteínas novas com retalhos das antigas

A descoberta desse mecanismo su- gere que as exceções ao modelo criado há 40 anos - a produção de proteínas a partir, tão-somente, do DNA - são mais comuns do que se poderia imagi- nar. Uma pista da complexidade da fabricação de proteínas surgiu há mais de duas décadas, com a identificação do splicing de RNA. Copiada do DNA, a molécula de RNA, ou ácido ribonu- cleico, transporta a receita de produção de proteínas do núcleo para o citoplas- ma. No caminho, pode perder alguns de seus segmentos internos. Como re- sultado, a proteína feita sob o comando desse RNA encurtado não poderia ter sido antecipada apenas pelo exame do trecho do DNA que lhe originou.

Foi por acaso que Yang che- gou ao splicing de proteínas. Há alguns anos, ele verificou que os linfócitos T, um tipo de célula do sistema imuno-

lógico, estavam bastante ativos em uma pessoa com câncer de rim. Os linfócitos T reconheciam um fragmento de uma proteína fabricada em quantidades ele- vadas pelas células cancerosas, o fator de crescimento de fibroblastos 5 (FGF-5). Com o objetivo de chegar a um medi- camento contra tumores, Yang decidiu investigar quais aminoácidos compu- nham esse fragmento do FGF-5. Ele constatou que esse trecho resultava da quebra e reorganização aleatória da molécula depois de pronta: de um seg- mento de 49 aminoácidos, 40 aminoá- cidos da porção intermediária foram excluídos e cinco de uma extremidade foram unidos a quatro da outra.

Pesquisadores do Instituto Ludwig, em Bruxelas, e da Universidade de Liè- ge, também na Bélgica, concluíram que essa recombinação ocorre no triturador de proteínas - o proteassomo. Van den Eynde observou esse fenômeno ao estu- dar um fragmento - peptídio - deriva- do de um antígeno produzido por célu- las de melanoma, o mais agressivo dos tumores de pele. Depois de prontos, só um em cada 10 mil peptídios sofre splicing, que aproveita a energia gerada na própria quebra das proteínas des- cartadas pelo organismo. •

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I CIÊNCIA

BIOLOGIA

Devolta à

Produção antecipada de enzimas reduz os perigos da saída da hibernação

Biólogos de Brasília conseguiram explicar como répteis e anfíbios resistem à brutal transformação por que passam ao sair da hibernação, após muitas semanas vi- vendo congelados. É um momento de-

licado. Os animais descongelam em poucas horas, acompanhando o aumento da temperatura, que so- be de alguns graus negativos para cerca de 20° Cel- sius (C). O oxigênio volta a circular pelo corpo, mas em quantidades elevadas, e gera formas muito reati- vas, os radicais livres, prejudiciais ao organismo.

Marcelo Hermes-Lima e sua equipe da Universi- dade de Brasília (UnB) descobriram que os animais se preparam durante a hibernação de modo a redu- zir os prejuízos causados pelo excesso momentâneo de radicais livres. Mesmo congelado, funcionando num ritmo lento, o organismo de algumas espécies de sapos, tartarugas, cobras e moluscos produz e armazena enzimas antioxidantes, em especial a cata- lase, o superóximo dismutase e a glutationa peroxi- dase, que desfazem compostos como o peróxido de hidrogênio (H2O2), formados em abundância em conseqüência da enxurrada de oxigênio. As pesqui- sas que explicam a tolerância ao frio extremo ou à falta de oxigênio estão ajudando a aperfeiçoar as técnicas de conservação de órgãos, que ainda têm de ser transplantados em poucas horas, após serem, re- tirados do doador, para evitar a morte dos tecidos.

Os seres humanos passam por uma situação se- melhante à de um sapo que descongela no fim da hibernação, quando a circulação sangüínea do cora-

ção ou do cérebro fica obstruída momentaneamen- te. Com a volta do oxigênio, há um risco alto de sur- girem radicais livres em excesso e danos graves durante um infarto ou um derrame. "O organismo humano faz o possível para se defender dos radicais livres, mas não contamos com uma resposta anteci- pada, como outros animais", diz Hermes-Lima.

Neve e deserto - Répteis, anfíbios e moluscos pro- duzem enzimas com antecedência quando passam com regularidade por três tipos de situações extre- mas, segundo Hermes-Lima. A primeira está ligada ao frio intenso, que leva os animais, em especial os do Hemisfério Norte, a hibernarem, como forma de economizar energia. A outra é o calor exagerado, na chamada estivação ou hibernação de verão: diante da falta de água, caramujos das terras semi-áridas do norte da África, entre elas algumas espécies co- mestíveis de escargot, escondem-se na concha - e lá ficam por até dois anos, com o organismo parcial- mente ressecado, até a chuva voltar. Por fim, alguns vertebrados como a tartaruga-da-orelha-vermelha (Trachemys scripta elegans) ou a rã-leoparda (Rana pipiens) enfrentam a escassez ou mesmo a falta com- pleta de oxigênio, juntamente com o inverno e a hi- bernação em lagoas congeladas. Répteis como os jacarés e mesmo mamíferos como focas e leões-ma- rinhos passam por uma situação mais corriqueira - a falta de oxigênio nos músculos e órgãos como rins e fígado - quando mergulham e ficam até uma hora sem respirar embaixo d'água.

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Page 54: O câncer desafia a ciência

Em resposta às temperatu- ras extremas e à falta de oxi- gênio, o organismo começa a funcionar em ritmo lento, um estado conhecido como depressão metabólica. Nessas horas, a síntese de proteínas, a queima de açúcares, a fre- qüência de batimentos car- díacos e o ritmo da respira- ção caem bastante: num caso extremo, o metabolismo do esquilo ártico (Spermophüus parryii) permanece em 5% e o consumo de oxigênio em 2% do habitual durante o in- verno. "Mesmo que quase tudo esteja parado, as enzimas antioxidantes são uma prioridade e continuam a ser pro- duzidas", diz Hermes-Lima. Essa ca- pacidade é resultado da evolução: só sobreviveram os animais que consegui- ram estocar enzimas capazes de deter a inundação de oxigênio.

"Descobrimos uma tendência na natureza", diz Hermes-Lima. Seus es- tudos - feitos em conjunto com o gru- po de Kenneth Storey, especialista em depressão metabólica da Universidade Carleton, no Canadá - mostraram que a enzima produzida em maior intensi-

dade antes de o oxigênio voltar é a glu- tationa peroxidase. A conclusão se apoia na análise dos mecanismos de defesa antioxidante desenvolvidos por animais como a cobra-garter (Thamnophis sir- talis parietalis), a rã-leoparda e a rã-da- floresta {Rana sylvatica), o peixe-dou- rado (Carassius auratus) e em dois tipos de escargots, os caramujos terrestres Ota- la latea e Helix aspersa.

Às vezes, algumas enzimas são pro- duzidas menos intensamente. Em um estudo publicado no ano passado no Ca- nadian Journal ofZoology, Hermes-Li- ma e seus alunos Marcus Ferreira e An-

il ma tartaruga do Canadá e a rã-da-floresta: enxurrada de oxigênio quando chega a primavera

tonieta Alencastro demons- tram que em uma espécie de caramujos de água doce, os Biomphalaria tenagophila, há uma produção menor da en- zima catalase quando os ani- mais ficam sem oxigênio por 24 horas, no fundo de um fras- co com água, e de superóxido dismutase quanto passam 15

dias em estivação, sob uma tempera- tura contínua de 26 °C. Em ambos os casos, houve um pequeno aumento da quantidade da enzima glutationa pe- roxidase. "Ninguém consegue explicar muito bem por que aumenta a produ- ção de algumas enzimas e a de outras cai", diz Hermes-Lima. "Mas uma delas subindo deve ser o bastante."

Cobras do gelo - Hermes-Lima come- çou a conviver com animais congelados no final de 1990. Foi quando visitou Storey em seu laboratório no Canadá, meses depois de o ter conhecido em

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Page 55: O câncer desafia a ciência

São Paulo, e lhe propôs a busca de me- canismos antioxidantes assoaciados ao congelamento e à falta de oxigênio, algo que o biólogo canadense ainda não ha- via estudado. Storey gostou da propos- ta. No ano seguinte, o pesquisador bra- sileiro desembarcava em Ottawa, a capital do país, para uma temporada de dois anos e meio. Começou trabalhan- do com as cobras-garter, encontradas em quase toda a América do Norte, até ao norte das províncias canadenses. São os primeiros répteis a acordarem da hibernação, no final do inverno. Só que, quando chega a primavera, os rios descongelam em poucos dias e muitas vezes cobrem os buracos em que as co- bras haviam se alojado. Mas elas po- dem ficar até dois dias sem oxigênio antes de saírem de suas tocas inunda- das. Também suportam algumas horas congeladas

Hermes-Lima imaginou que ha- veria enzimas antioxidantes em abun- dância nesses animais, como forma de evitar os danos do excesso de oxigênio. Mas não foi o que descobriu. As cobras tinham, na verdade, pequenas quanti- dades de enzimas antioxidantes, quan- do comparadas com os ratos, mas essas quantidades aumentavam, de acordo com a situação. A glutationa peroxida- se era a predominante sob um congela- mento de cinco horas a 2,5 °C, enquan-

0 PROJETO

Fisiologia Molecular de Radicais Livres em Sistemas-modelo

COORDENADOR MARCELO HERMES-LIMA- UnB

INVESTIMENTO R$97.000,00 (CNPq)

to no experimento seguinte, com as co- bras sob ausência de oxigênio durante dez horas a 5 °C, a enzima encontrada em maior quantidade era o superóxido dismutase.

Storey, no início, não acreditou. "Ele dizia 'Too cola, it's notpossible e passou meses sem me dar atenção, por achar que eu tinha feito tudo errado", recorda Hermes-Lima. Refeito o expe- rimento, emergiram os mesmos resul- tados. Finalmente convencido, mas ainda intrigado, por achar que toda cé- lula deveria ter uma quantidade menor dessas enzimas nessas condições extre- mas, Storey aceitou assinar com o bra- sileiro o artigo com essas descobertas, publicado em 1993 no American Jour- nal of Physiology.

Vinte minutos sem ar - Desde 2001 a equipe de Brasília estuda o estresse do

mergulho em animais da fauna brasi- leira. Em duas expedições ao Pantanal, os pesquisadores coletaram amostras de tecidos de embriões de jacarés-do- pantanal {Caiman yacare) e também de animais recém-nascidos, jovens e adultos. Quando mergulham e param de respirar, esses répteis priorizam a cir- culação do oxigênio, que se torna es- casso. O sangue deixa de ir para os músculos e órgãos como o fígado e se- gue para alvos prioritários como o co- ração e o cérebro, de modo a maximi- zar o tempo que ficam lá embaixo - até 20 minutos.

Impossibilitada de fazer experimen- tos com os jacarés em laboratório, já que se trata de animais um tanto maiores que os habituais camundongos, a equipe da Universidade de Brasília construiu um mapa dos danos causados pelo excesso de radicais livres em lipídeos (gordu- ras) e proteínas ao longo do desenvol- vimento desses répteis. "Os danos são maiores em tecidos com maior taxa me- tabólica, como cérebro, fígado e rim", informa Hermes-Lima. Sua equipe tra- balha ainda, desde o ano passado, com amostras de pele e da capa gordurosa de baleias jubarte {Megaptera novaen- gliae), que passam uma parte do ano ao longo do litoral do sul da Bahia e ficam embaixo d'água, sem respirar, por até 20 minutos. •

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1 CIÊNCIA

AGRICULTURA

As pernas dos vírus Pulgões podem espalhar o possível agente causador da morte súbita dos citros

Pesquisadores da Alellyx Genomics descobriram dois insetos conhecidos como pulgões que

transmitem vírus que eles acreditam ser o responsável pela morte súbita dos citrus, praga que motivou a elimi- nação de cerca de 400 mil pés de laranjas doentes no Estado de São Paulo - por en- quanto essa é a única forma de deter seu avanço. Em ex- perimentos realizados nas es- tufas do Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) pela equipe dessa empresa, os pulgões Aphis spiraecola e Aphis gossypii infectaram mi- cromudas e laranjeiras com o Citrus Suâden Death Virus ou Vírus da Morte Súbita dos Citros (CSDV), que a Alellyx apresentou em outubro do ano passado como o possível agente causador da morte súbita.

Os pesquisadores verificaram que uma terceira espécie, o Toxoptera citri- cida, como as outras duas, também pode carregar o vírus identificado pela empresa, mas os testes feitos até agora não indicaram que esse pulgão seja igualmente capaz de transmitir o mi- crorganismo. "Não descartamos a pos- sibilidade de o Toxoptera também trans- mitir o vírus que nós acreditamos que esteja associado à morte súbita", diz Ana Cláudia Rasera da Silva, pesquisa- dora da Alellyx. Ainda não há evidên- cias que permitam afirmar que seja real- mente esse o agente causador da morte súbita, mas nos últimos meses a equipe da empresa tem mostrado uma relação direta entre a doença e esse vírus, en-

Laranjeira com Aphis spiraecola: dois milhões de árvores infectadas

contrado apenas em árvores de regiões atingidas pela morte súbita, no norte de São Paulo e no Triângulo Mineiro.

Por enquanto, considera-se a possi- bilidade de o CSDV atuar em conjunto com o vírus responsável por outra do- ença, a tristeza dos citros, que há 60 anos quase dizimou os laranjais pau- listas e hoje, em versões mais atenua- das, tornou-se praticamente endêmica. Um dos transmissores do vírus da tris- teza são justamente os pulgões - insetos de corpo mole e sem asas, encontrados às dezenas sugando a seiva dos pés de al- godão, trigo, cana-de-açúcar e maçãs ou na folhagem de hortaliças como a couve.

Detectada pela primeira vez em 1999 no município mineiro de Comendador Gomes, a morte súbita consiste no en- tupimento gradativo do floema, vasos

que conduzem nutrientes e água da raiz para a copa, causando uma espécie de infarto. Seu avanço tem sido bastante rápido, de acordo com um levanta- mento do Fundecitrus. Em 2002, havia cerca de 22 mil plantas com sintomas da morte súbita em cinco municípios paulistas. Um ano depois, a área afe- tada expandiu-se 60 quilômetros e 44 mil laranjeiras de 18 municípios do estado apresentavam sinais dessa do- ença. Incluindo Minas, há cerca de 2 milhões de árvores infectadas em 30 municípios, com uma perda de pro- dutividade próxima a US$ 40 milhões. A doença se espalhou, muito provavel- mente, por meio de insetos como os pulgões, cuja erradicação é pratica- mente impossível, de tão abundantes que são. •

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Page 58: O câncer desafia a ciência

CIÊNCIA

FÍSICA

No cerne ,-do

Experimentos aprofundam o conhecimento sobre

trutura da matéria

>

&

Câmara onde as partículas colidem: detalhando a anatomia e o comportamento de núcleos instáveis

oi uma aposta de alto risco. A maquina capaz , de produzir núcleos atômicos exóticos - partí-

culas instáveis, que duram apenas 1 segundo e não existem na natureza - ainda não havia

_ sido testada. Os pesquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) não ti- nham certeza de que funcionaria. Mesmo apreensivos, sentindo um frio na barriga, decidiram manter a data de estréia, 2 de fevereiro. Era o início da 13a Escola de Verão de Física Nuclear Experimental e, na platéia, havia 50 es- tudantes de pós-graduação de nove estados do Brasil, da Argentina, Colômbia e Cuba. "Os alunos sabiam que aquela era a primeira vez que a máquina iria funcionar e estavam tão curiosos quanto nós", conta Alinka Lépine- Szily, uma das responsáveis pelo projeto.

Foram algumas horas checando os componentes da máquina de 7 metros de comprimento, cujas estruturas principais - dois grandes cilindros horizontais - lem- bram vagões de um trem. E alguns longos segundos até os computadores registrarem as primeiras informações sobre os núcleos exóticos gerados ali dentro. Funcionou!,

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comemoraram os pesquisa- dores. A tensão deu lugar à satisfação. Os resultados ob- tidos devem ajudar a com- preender com mais detalhes como surgiram os elementos químicos tanto no início do universo, minutos após o Big Bang, quanto nas explosões de estrelas supernovas, 1 bi- lhão de anos depois. Cada explosão de uma estrela gera milhares de núcleos exóti- cos, que atuam como faíscas e induzem à formação de to- dos elementos químicos es- táveis conhecidos.

O novo equipamento, chamado de Projeto Ribras (na sigla em inglês), ou Fei- xes de lons Radioativos, no Brasil, é único no Hemisfé- rio Sul - há outro, bastante semelhante, na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, construído há cerca de dez anos. Instalado em um enorme galpão blinda- do, o Ribras está acoplado ao acelerador de partículas ins- talado no instituto há cerca de 30 anos. No experimento do início de fevereiro, o ace- lerador gerou um feixe está- vel de lítio 7, um elemento químico na- tural, que se chocou contra um alvo fixo de berílio 9, também estável.

reação nuclear produziu uma série de partículas, estáveis e instáveis, que continuaram se propagando. A exceção ficou por conta do pró-

prio lítio 7, que, por ser o feixe primário de partículas, foi bloqueado por um an- teparo, chamado Copo de Faraday, co- locado à sua frente. As outras partículas produzidas na colisão inicial, antes do lítio parar no Copo de Faraday, por cau- sa de suas direções divergentes do feixe principal, escaparam desse bloqueio e entraram nos solenóides - bobinas com 1 metro de comprimento, localizadas dentro dos cilindros e imersas em hélio líquido. Os solenóides produzem um campo magnético bastante intenso, por meio do qual é possível selecionar os núcleos exóticos, que são identificados no detector final, um cristal de silício com 2 centímetros de diâmetro.

Recém-formados Os primeiros núcleos exóticos produzidos no Ribras

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Este gráfico simplificado representa a relação entre a energia (na horizontal) e a carga elétrica do núcleo (na vertical). As cores indicam a quantidade de núcleos de lítio 8 (elipses concêntricas do alto) e de hélio 6 resultantes das colisões entre as partículas.

mar a idéia de que é possível encontrar matéria nuclear com densidades diferentes", afirma Rubens Lichtenthaler Filho, membro da equipe do Ribras. "Poderemos ajudar a reformular e a aperfeiçoar antigos modelos sobre o nú- cleo atômico", completa.

No laboratório, a partir dos dados obtidos, o grupo de físicos procura detalhar a formação de elementos quí- micos no interior das estre- las. Foi nesse momento que, a partir dos gases leves — hi- drogênio, hélio e lítio -, ins- táveis e estáveis, começaram a se formar elementos mais pesados, como carbono, oxi- gênio e nitrogênio. É como se os pesquisadores estives- sem subindo uma escada cuja base é formada pelos elementos químicos primor- diais e o topo, pelos deriva- dos mais complexos.

Fonte: Grupo de Exóticos/USP

Na experiência de estréia, os pes- quisadores do Instituto de Física da USP produziram aproximadamente 10 mil partículas por segundo de hélio 6 - um núcleo exótico, com dois prótons e quatro nêutrons (o hélio normal tem dois prótons e dois nêutrons). Segundo Alinka, os dois nêutrons extras ficavam distantes do núcleo, formando um halo, uma espécie de anel que determi- na um raio atômico muito maior que no hélio comum.

Exóticos e rebeldes - Essa peculiarida- de chamou a atenção: núcleos estáveis, mesmo de elementos químicos diferen- tes, têm a mesma densidade no centro, uma superfície pouco difusa e contor- nos bem definidos. O hélio 6 apresen- tava uma extensa região - compreendi- da entre o núcleo e o anel -, na qual a densidade média era bastante baixa, além de uma superfície não definida. "Com os núcleos exóticos, ocorrem si- tuações que não se manifestam nos es- táveis. Nossos estudos poderão confir-

Apenas um segundo - Cada degrau que se avança faz surgir uma nova combina- ção de elementos que, aos poucos, torna mais nítido o complexo cenário do uni-

verso. Curiosamente, os físicos têm de ser bastante rápidos para entenderem o que se passou há bilhões de anos: o tempo de vida das partículas exóticas geradas em laboratório é muito curto - apenas um segundo. Mas eles não se preocupam. "Nesse caso, é muito tem- po, mais do que suficiente para que todas as informações cheguem ao computador e sejam analisadas", ga- rante Valdir Guimarães, pesquisador do projeto.

A idéia de construir o Ribras nasceu em julho de 1995, quando o físico teó- rico Mahir Saleh Hussein regressou de uma temporada de um ano e meio no Instituto de Tecnologia de Massachuset- ts (MIT) e na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Convicto de que o Brasil poderia ocupar lugar de destaque nos estudos sobre núcleos exóticos, Hussein organizou um encontro na USP que, em fevereiro de 1997, reuniu algumas das maiores autoridades cien- tíficas da área, como Richard Casten, da Universidade Yale, James Kolata, da

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Page 60: O câncer desafia a ciência

Ribras: equipamento único no Hemisfério Sul ajuda a entender as reações ocorridas há bilhões de anos nas estrelas supernovas

Universidade de Notre Dame, ambas dos Estados Unidos, e Antônio Villari, físico brasileiro que trabalha no Gran- de Acelerador Nacional de íons Pesa- dos (Ganil), da França.

Feito com a ajuda desses especia- listas, o projeto brasileiro, então sob a responsabilidade de Hussein, foi apro- vado ainda em 1997. Os solenóides, que formam o coração do equipamen-

to, chegaram só cinco anos depois, em abril de 2002, vindos dos Estados Uni- dos. Como a montagem só terminou em dezembro de 2003, não houve tempo de testar a máquina antes da Escola de Verão. "Resolvemos correr o risco e realizar o primeiro experimen- to científico como ele ocorre na vida real, sujeito a acertos e erros", reforça Lichtenthaler.

' OS PROJETOS

The Brazilian Rib Fácil the Pelletron-Linac Cot Paulo

ity Planned for nplex in São

Estudo de P com Feixes

ropriedades Nucleares 1e Núcleos Exóticos

MODALIDADE Projeto Temático MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa

COORDENADOR

RUBENS LICHTENTHALER FILHO - IF/USP

COORDENADOR MAHIR SALEH HUSSEIN - IF/USP

INVESTIMENTO R$ 1.082.150,75

INVESTIMENTO R$ 482.797,04

Ainda durante a Escola de Verão, que durou duas semanas, de 2 a 14 de fevereiro, a equipe da USP provocou a colisão entre o lítio 8, exótico, e o va- nádio 51, estável, com o propósito de analisar um fenômeno chamado espa- lhamento elástico. Trata-se de um tipo de choque entre partículas sem perda de energia, já conhecido com os nú- cleos estáveis. Com o Ribras, do mes- mo modo que está sendo feito em equipamentos similares nos Estados Unidos e na França, pretende-se ob- servar melhor detalhes do núcleo exó- tico - se é compacto ou nebuloso e se tem uma superfície difusa ou, ao con- trário, bem definida.

Nesse momento, os pesquisadores da USP, com o conforto de contarem com uma máquina que funcionou di- reito desde o primeiro dia, se preparam para comparar o choque do lítio 7, es- tável, com o vanádio, para analisar se ocorrem características e manifestações diferentes em relação ao que acontece com o lítio exótico. •

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Page 61: O câncer desafia a ciência

Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

■ Ambiente

Modelo teórico verde

Diante de questões como desmatamento, manejo sustentável e conservação das flo- restas, o setor florestal brasileiro tem procu- rado diferentes cami- nhos para garantir sua eficiência e, principal- mente, estar em con- formidade com as expectativas do campo organizacio- nal, que determinam a legitimidade das práticas empresariais e de seus produtos. O estudo Modelo teó- rico para compreensão do ambientalismo empresarial do setor florestal brasileiro, de Áurea Maria Nardelli, coor- denadora do Programa de Certificação Florestal SGS Qualifor, e James Jackson Griffith, do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Vi- çosa (UFV), foi desenvolvido com o objetivo de des- crever e interpretar os contextos nos quais vem sendo desenvolvido o "ambientalismo empresarial" do setor florestal brasileiro, considerando como uma de suas principais variáveis a certificação florestal. O artigo de Áurea buscou compreender a evolução do campo or- ganizacional, identificando os atores sociais que inte- ragem com as empresas florestais e exercem influência sobre elas, além de desenvolver um modelo teórico, utilizando a estrutura de sistemas abertos e técnicas do pensamento sistêmico para representar as inter-rela- ções entre a dinâmica institucional e organizacional do setor. A aplicação do modelo desenvolvido foi con- siderada apropriada para a compreensão das dinâmi- cas institucional e organizacional que afetam o desem- penho ambiental das empresas florestais no Brasil, permitindo descrever, identificar e inferir sobre o comportamento futuro do sistema, além de estabele- cer hipóteses para novos estudos. Entretanto, deve-se considerar que cada setor empresarial está sujeito a di- ferentes pressões, de acordo com os impactos e riscos potenciais e com a visibilidade de suas práticas, e, as- sim, irá apresentar dinâmicas institucionais e organi- zacionais próprias.

REVISTA ARVORE

2003 VOL. 27 - N° 6 - VIçOSA - NOV./DEZ.

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100- 67622003000600012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Adolescência

Impacto sobre os ossos

O estudo O esporte e suas implicações na saúde óssea de atletas adolescentes, realizado por três pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, Carla Cristiane da Sil- va, Altamir Teixeira e Tamara Goldberg, procurou in- vestigar o papel do treinamento esportivo vigoroso e precoce sobre a saúde óssea de adolescentes. Os auto- res justificam o estudo: "A adolescência é um período fundamental para a aquisição da massa óssea. Em ado- lescentes atletas, o pico de massa óssea pode apresen- tar maior incremento, em virtude do estresse mecâni- co imposto aos ossos pelo exercício físico praticado". A pesquisa se baseou na revisão da literatura científica, envolvendo adolescentes atletas de diferentes modali- dades e de ambos os sexos, para verificar se de fato a densidade mineral óssea dos atletas é potencializada pelos exercícios. O artigo alerta para a intensidade ade- quada da prescrição de exercício físico para a popula- ção adolescente, uma vez que, caso o treinamento se torne muito extenuante, os benefícios gerados pela ati- vidade sobre a saúde dos ossos podem ser minimiza- dos ou anulados. A conclusão dos autores é de que o grande desafio para quem orienta as atividades espor- tivas para jovens é convencê-los a assumir uma inten- sidade constante e adequada e não acima dos limites fisiológicos. "Independente do tipo de esporte pratica- do, o aumento do treinamento deve ser razoável e coe- rente com as metas, sendo enfatizado treinamento se- guro e eficaz para cada uma das faixas de idade e momentos da maturação biológica, independente dos calendários competitivos", dizem os autores.

REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA DO ESPORTE - N° 6 - NITERóI - NOV./DEZ. 2003

VOL. 9 •

www.scielo.bi7scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 86922003000600007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Zoologia

Corruptos à solta

O artigo A extração de corrupto Callichirus major (Say) (Crustácea, Thalassinidea),para uso como isca em praias do litoral do Paraná: as populações exploradas descreve as principais características da estrutura po-

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Page 62: O câncer desafia a ciência

pulacional dos crustáceos Thalassinidea, conhecidos vulgarmente com o nome de corruptos, bem como as variações das densidades populacionais antes e depois do período de extração anual de maior intensidade. O estudo é de autoria de José Souza, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e de Carlos Borzone, do Centro de Estudos do Mar, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisa mostra que os corruptos vêm sendo, há mais de 20 anos, capturados e utilizados como isca ao lon- go das praias oceânicas do litoral brasileiro, desde a costa nordeste até a costa sul. Essa atividade, praticada por pescadores amadores, ficou muito popularizada a partir do uso de uma bomba de sucção ma- nual de construção artesanal que permite a extração dos orga- nismos das suas gale- rias. A pesca desses or- ganismos cavadores pode ocasionar alte- rações, tanto na espé- cie-alvo como em outras espécies existentes no sedi- mento, devido à própria técnica de captura utilizada. "A estrutura populacional de Thalassinidea pode ter sido afetada pela pesca no litoral do Estado de São Paulo, onde foi registrada uma diminuição na média do tamanho dos indivíduos da população ao longo de seis anos de estudo", aponta o artigo. O autores citaram a ocorrência de 42 espécies de corruptos para a costa brasileira.

REVISTA BRASILEIRA DE ZOOLOGIA - VOL. 20 - N° 4 - CURITIBA - DEZ. 2003

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101- 81752003000400011 &lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Cardiologia

Perfil de qualidade

"As últimas décadas do século 20 foram palco de di- versas e profundas revoluções no ensino da cardiolo- gia." Esta foi a afirmação que serviu como pano de fundo para o artigo O ensino de cardiologia na gradua- ção médica: desafios atuais, de José Maia, do Centro de Desenvolvimento do Ensino em Saúde, da Univesida- de Federal de São Paulo (Unifesp). O objetivo do estu- do é focalizar os desafios no planejamento dos cursos, no sentido de atender as demandas de formação con- temporâneas no Brasil. Por conta disso, o artigo abor- da o perfil desejado do formando com vistas às ne- cessidades de saúde de nossa população. O estudo defende que o conhecimento científico explodiu, tan- to no conteúdo como no acesso às informações, "que se superam em velocidade impressionante". Para José Maia, esse crescimento científico se deve, em grande parte, à evolução do conhecimento das ciências da educação, refletido no campo da formação médica,

tanto nas práticas de ensino, aprendizagem e avaliação, quanto nos novos modelos curriculares, que abrem um extenso leque de possibilidades para aprimorar a qualidade da formação acadêmica. O pesquisador de- fende a necessidade de reformular a graduação médi- ca, no sentido de formar um profissional com compe- tência para atuar em um mundo de novas relações com o trabalho e com o conhecimento. Para ele, o gra- duando das escolas médicas brasileiras deve ter o per- fil de um profissional "com formação generalista, hu- manista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar pautado em princípios éticos no processo de saúde-doença, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano". Segundo Maia, em face dessa realidade, as escolas médicas já têm realizado mudanças em seus projetos pedagógicos, desde adaptações de grades e de conteúdos disciplinares até verdadeiras transforma- ções curriculares, rompendo com estruturas fragmen- tadas no sentido de uma formação global do estu- dante, inserido permanentemente na sociedade, em contato com a prática de sua futura profissão.

ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA - VOL. 82 - N° 3 - SãO PAULO - MAR. 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0066- 782X2004000300013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Saúde

Eliminando os riscos

Discutir as conseqüências culturais dos discursos e práticas voltados à capacitação dos sujeitos para a es- colha racional e informada de riscos, calculados com base no conhecimento científico. Este é o objetivo do artigo Ciência, técnica e cultura: relações entre risco e práticas de saúde, de Dina Czeresnia, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswal- do Cruz, no Rio de Janeiro. A autora promove uma abordagem do conceito de risco epidemiológico como um dos elementos centrais do estudo, especialmente no contexto das práticas de saúde: "Identificar e redu- zir riscos tornou-se um objetivo central da saúde pú- blica. A gestão de riscos é nuclear ao discurso de pro- moção da saúde, que busca reorientar as estratégias de intervenção". O estudo defende que a vida social é regu- lada pela confiança em sistemas abstratos que, basea- dos no conhecimento cientifico, orientam as escolhas por meio de cálculos de risco. "O conceito de risco epi- demiológico é um destes sistemas abstratos", diz Dina. Para a autora, a definição de estratégias de regulação de riscos no campo da saúde é tecnicamente viabiliza- da pelos avanços nas técnicas de cálculo estatístico.

CADERNOS DE SAúDE PúBLICA - VOL. 20 - N° 2 - Rio DE

JANEIRO - MAR./ABR. 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 311X2004000200012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 65

Page 63: O câncer desafia a ciência

ITECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO | MUNDO

Microvento para um micromundo À medida que os aparelhos eletrônicos encolhem, os sis- temas de refrigeração tam- bém são miniaturizados. A mais recente novidade para esse micromundo veio da norte-americana Universi- dade Purdue, de West Lafa- yette, no Estado de Indiana, onde pesquisadores desen- volveram um sistema de resfriamento - similar em conceito aos usados nos aparelhos de ar-condicio- nado caseiros. A diferença fica por conta do tamanho: alguns mícrons, ou mili- onésimos de metro. Por meio de voltagens diminu- tas, os aparelhos geram íons (átomos com perda de elé- trons) capazes de criar pe- quenas brisas, perfeitas pa- ra resfriar celulares, laptops e outros equipamentos pe- quenos. Os eletrodos usa- dos pelos pesquisadores são feitos de nanotubos de car-

Eletrodos distribuídos por

microcanais geram íons

que resfriam aparelhos portáteis

bono e medem apenas 5 nanômetros (1 nanômetro corresponde a 1 milímetro dividido por 1 milhão). "Conforme os chips dimi- nuem, as regiões de acú- mulo de calor são confina- das a lugares menores", diz Richard Smith, especialis- ta em energia térmica da Fundação Nacional de Ci- ência (NSF) que financia parte das pesquisas. Segun- do Smith, conseguir res- friar equipamentos com ar é uma "solução eficiente, porque o ar é fácil de obter, não precisa ser armazenado e não é um contaminante em potencial". As novas técnicas de microrresfria- mento podem se mostrar essenciais para a nova ge- ração de laptops, celulares, sistemas de sensoriamento remoto e muitos outros apa- relhos portáteis do mundo da eletrônica. •

■ Programa traça perfil das células

A assinatura molecular das células - a forma como os ge- nes se expressam diferente- mente de acordo com condi- ções como tipo de tecido e estágio de desenvolvimento - é uma informação crucial tan- to para o diagnóstico como para o prognóstico de certas doenças. A obtenção dessas assinaturas ficou mais fácil para os pesquisadores graças a um software que acaba de ser desenvolvido pelo Mas- sachusetts Institute of Tec- nology (MIT) em conjunto

com a Universidade Harvard, nos Estados Unidos. O pro- grama, batizado de GenePat- tern, permite aos pesquisa- dores analisar e compartilhar os inúmeros resultados dos experimentos de obtenção do perfil molecular das células, dispensando a necessidade de usar outras ferramentas para compartilhar metodo- logias e dados. Tudo isso uti- lizando uma só interface. "Ge- nePattern é um grande passo adiante", diz o professor Ge- orge Church, da Escola de Medicina de Harvard, da Di- visão de Ciências da Saúde e Tecnologia Harvard-MIT e da

Iniciativa de Sistemas Com- putacional e de Biologia do MIT. "Ele é muito mais flexí- vel que outros programas e permite um grande número de análises." O software pode ser acessado no endereço ele- trônico http://www.broad. mit. edu/cancer/software/ge- nepattern. •

■ Agulha monitora transplante

Uma pequena agulha de pou- co mais de 1 centímetro de comprimento e menos de 1 milímetro de espessura, cha- mada Microtrans, pode ser a

resposta que os cirurgiões aguardavam para aumentar as taxas de sucesso dos trans- plantes. Ela é feita de silício e dotada de múltiplos sensores, capazes de avaliar vários pa- râmetros durante uma cirur- gia, como temperatura, pH, potássio e a passagem de cor- rente elétrica no organismo humano. A sua utilidade será mais proveitosa nas isque- mias, quando ocorre uma in- terrupção da corrente sangüí- nea, um fator complicador nos casos de cirurgias e trans- plante de órgãos. Embora os cirurgiões monitorem os ba- timentos cardíacos por meio

66 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Page 64: O câncer desafia a ciência

do eletrocardiógrafo, quando têm de parar artificialmente o coração durante algum pro- cedimento, essa avaliação po- de ser paralisada por até 30 minutos. Com a agulha inse- rida no órgão, seu monitora- mento é constante, o que per- mite conhecer suas condições de saúde durante a cirurgia ou o transporte numa caixa de gelo, por até 24 horas. Para checar os efeitos da isquemia, os médicos costumam recor- rer a diversos métodos, ne- nhum muito eficaz ou preci- so. Assim, muitos cirurgiões acabam confiando na avalia- ção visual para saber se o ór- gão poderá ser transplanta- do com sucesso. "Microtrans é robusta e sensível", descreve Toni Ivorra, engenheiro ele- trônico da empresa espanho- la que coordenou o projeto, o Centro Nacional de Microe- letrônica, de Barcelona. Além da aplicação médica, a agulha poderá monitorar a qualida- de de produtos como carne, frutas e vegetais. •

■ UclaeIBM lideram patentes

Os Estados Unidos detêm o maior número de registro de patentes entre todos os países. A tradição de patentear pode

ser verificada no número de patentes registradas todo ano por empresas e universidades. Em 2003, não foi diferente. A Universidade da Califórnia (Ucla), pelo décimo ano con- secutivo, lidera o ranking das instituições de ensino superi- or que mais obtiveram paten- tes no ano passado, segundo o Departamento de Comér- cio, Patentes e Marcas Regis- tradas dos Estados Unidos (que possui a sigla Uspto, em inglês). No total, a universi- dade patenteou 439 experi- mentos (foram 431 em 2002). Em segundo lugar, com nú- mero bem menor, está o Ins- tituto de Tecnologia da Cali- fórnia, com 139 patentes (110 em 2002). Na terceira posi- ção, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), com 127 patentes (135 em 2002). Em quarto ficou a Universi- dade do Texas com 96 (93 em 2002) e em quinto a Univer- sidade de Stanford, 85 paten- tes em 2003 e 104 em 2002. Entre as empresas que obti- veram mais registros de pa- tentes, a líder pelo 11° ano consecutivo foi a IBM, que de- positou 3.415, seguida da Ca- non Kabushiki Kaisha, 1.992, Hitachi, 1.893, Matsushita Electric Industrial, 1.786, e Hewlett-Packard (1.759). •

BRHSIL

Material cerâmico substitui chumbada

Bolas cerâmicas no lugar de chumbo na vara de pescar

Argila, areia e pó de pedra são as matérias-primas utilizadas para fabricar a chumbada ce- râmica, uma pequena bola que mantém a linha de nái- lon da vara de pesca dentro da água. O novo produto, que já está no mercado, foi de- senvolvido com o objetivo de substituir a chumbada tradi- cional, feita de chumbo, me- tal pesado que quando se desprende vai para o fundo dos rios, lagos e represas, onde permanece durante dé- cadas. A idéia de desenvolver a chumbada cerâmica, tam- bém chamada de ecológica porque é feita com materiais que não agridem o ambiente, partiu de Luís Fernando Por- to, da empresa Tecnicer, de São Carlos (SP), especializada em produtos cerâmicos para fornos. Ao saber que em ou- tros países era proibido o uso de chumbo para caça e pesca, ele decidiu pesquisar um ma- terial alternativo. Para isso procurou o Laboratório In-

terdisciplinar de Eletroquími- ca e Cerâmica (Liec), integra- do por pesquisadores da Uni- versidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Institu- to de Química da Universida- de Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, com o qual já mantém parcerias. Depois de três anos de pesquisa, a chumbada cerâmica come- çou a ser produzida pela em- presa e vendida por quilo ou em cartelas com 150 a 200 gramas. Devido à diferença de densidade, ela é maior que a tradicional, com a vanta- gem de não enroscar tão fa- cilmente como as pequenas peças de chumbo. Por en- quanto, o preço ainda é o principal obstáculo para que a chumbada cerâmica se tor- ne popular entre os pescado- res. Um quilo de chumbada custa cerca de R$ 4,50 e de ce- râmica, R$ 6,00. Novas pes- quisas serão feitas pelo Liec para diminuir o preço das bo- las de cerâmica. •

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 67

Page 65: O câncer desafia a ciência

LINHH DE PRODUçãO BRASIL

Casa feita de garrafas usadas

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As garrafas de plástico, cha- madas PET, desde que surgi- ram no mercado têm susci- tado discussões e propostas sobre seu destino final. Den- tre as idéias divulgadas até aqui, talvez a mais inusitada foi concebida e patenteada pelo arquiteto Sérgio Prado. Ele quer usar garrafas usadas para compor casas popu- lares mais baratas e, de que- bra, alimentar uma família com verduras produzidas pelo processo de hidroponia.

projeto utiliza garrafas fixadas em telas de plástico para formar paredes e tetos. As garrafas das paredes le- vam água para evitar incên- dios. As do teto permane- cem vazias, para evitar o excesso de peso e o risco de desabamento. O sistema es- trutural pode ser o tradicio-

al, feito em concreto, ferro ou madeira. "Das paredes e do teto nascem plantas co-

estíveis, ornamentais e ervas medicinais", diz Pra- do. As "paredes vivas" se- guem um padrão geométri- co: a cada 20 garrafas, uma é usada como vaso para cul- tivo hidropônico, utilizan- do água de chuva guardada em caixas-d'água. • Garrafas plásticas, fixadas em telas, compõem as paredes da construção

■ Perdas reduzidas na distribuição de água

Desde as estações de trata- mento até chegar ao consu- midor, conduzida através de reservatórios e tubulações, parcela considerável da água tratada é perdida. Para mini- mizar essas perdas, um gru-

po de pesquisadores da Es- cola de Engenharia de São Carlos (Eesc), da Universi- dade de São Paulo, criou um software que simula o com- portamento das redes públi- cas de abastecimento. O mo- delo desenvolvido calcula as pressões na rede, levando em conta os vazamentos e a de-

manda. "O programa é apli- cado a setores da rede e só pode ser utilizado com apoio de dados de campo", explica a professora Luisa Fernanda Ribeiro Reis, que integra o Grupo de Estudos Avança- dos em Sistemas de Distri- buição de Água. Os dados coletados são basicamente

informações de pressão em alguns pontos e vazão em tre- chos da rede. "Os resultados obtidos apontam para con- siderável redução de vaza- mentos, com a instalação de válvulas redutoras de pres- são em pontos mais adequa- dos da rede de distribuição", relata Luisa. •

68 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Page 66: O câncer desafia a ciência

■ Luzes para mostrar a riqueza do Tietê

Diodos emissores de luz (LEDs) de cores diferencia- das distribuídos dentro de um ônibus cujo interior foi radi- calmente modificado mos- tram o papel biológico, físico e químico da água na bacia hidrográfica formada pelos rios Tietê e Jacaré. Logo na entrada, uma maquete ilumi- nada aponta as 34 cidades ba- nhadas pelos dois rios e outra simula uma estação de trata- mento de esgoto. Painéis ele- trônicos mostram cadeias ali- mentares que dependem do rio, tipos de solos, principais poluentes e até como funcio- na uma hidrelétrica. Toda a di- nâmica que envolve a vida de um rio está representada com luzes e equipamentos de ópti- ca, segundo Vanderlei Bag- nato, do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Ce- pof), do Instituto de Física de São Carlos da Universida- de de São Paulo, parceiro do projeto Educando sobre as Águas, idealizado pela Orga- nização Não Governamental (ONG) Mãe Natureza, de Barra Bonita (SP). Além dos LEDs, lentes de aumento, mi- croscópios e lupas serão usa- dos para enxergar as bacté- rias e os insetos que fazem parte do rio. "A proposta do Educando sobre as Águas, que tem como alvo cerca de 175 mil alunos distribuídos em 300 escolas de ensino fun- damental no âmbito da Uni- dade de Gerenciamento de Recursos Hídricos Tietê-Ja- caré, é conscientizá-los para que colaborem na tarefa de preservar os recursos hídri- cos", diz o engenheiro agrô- nomo Glauber José de Castro Gava, coordenador do proje- to, financiado pelo Fundo Es- tadual de Recursos Hídricos (Fehidro). •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento

de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: [email protected]

Avaliação de materiais para restauração dentária

■ Aparelho simplifica teste odontológico

Dispositivo para realizar testes de resistência a tra- ção, em que se avalia a ade- são entre as estruturas den- tais (esmalte ou dentina) e os diferentes materiais res- tauradores e suas composi- ções, como resinas e cerâmi- cas, permite obter resultados mais precisos e seguros em comparação com os apare- lhos usados atualmente. A estrutura principal do dis- positivo, desenvolvido na Faculdade de Odontologia de Piracicaba, da Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp), pode ser cons- truída tanto em aço inoxi- dável como em acrílico. No entanto, a matriz onde os materiais são fixados é fei- ta em acrílico, o que repre- senta vantagem porque não é um material tão rígido quanto o metal e reduz o risco de perda dos corpos-

de-prova durante o teste. Além disso, é possível rea- lizar testes subseqüentes sem precisar montar todo o aparato para cada corpo- de-prova a ser avaliado. O dispositivo proporciona ain- da maior facilidade de po- sicionamento correto das estruturas dentais para a realização do teste.

Título: Dispositivo para

Testes de Microtração (MT

Jig) em Materiais Restau-

radores Odontológicos

Inventor: Luiz André

Freire Pimenta

Titularidade: Unicamp/

FAPESP

" Levedura no preparo de droga anti-HIV

Uma linhagem de levedura (Trichosporon cutaneum CCT 1903) foi seleciona- da para transformar um composto químico, a 1,2-

indanodiona, em outro composto, o (1S,2R)-1, 2- indanodiol, com elevado rendimento, em um pro- cesso conhecido como bio- transformação (biocatálise). O (1S,2R)-1,2-indanodiol é um produto de grande interesse sintético na in- dústria farmacêutica por- que pode ser empregado como intermediário no preparo do Indinavir, po- tente inibidor de uma en- zima do HIV-I e, por isso mesmo, fármaco crucial na prevenção de infecção pelo vírus HIV e no trata- mento da Aids. O processo biocatalítico com as célu- las da levedura, desenvol- vido por pesquisadores da Unicamp, apresenta van- tagens em relação aos mé- todos convencionais, que envolvem metais pesados. Na transformação de com- postos químicos com mi- crorganismos, o reagente biológico é biodegradável e o processo tem, em geral, menor custo de produção, pois o solvente é a água

Título: Preparo do

(lS,2R)-l,2-indanodiol

através da Redução Assi-

métrica da 1,2-indanodiona

Mediada por Células em

Repouso de Trichosporon

Cutaneum CCT 1903

Inventores: José Augusto

Rosário Rodrigues, Gelson

José Andrade da Conceição

e Paulo Samenho Moran

Titularidade: Unicamp/

FAPESP

'

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 69

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TECNOLOGIA

ZOOTECNIA

O salto dara Novas linhagens asseguram maior produtividade e amenizam impactos ambientais

SAMUEL ANTENOR

A carne de rã, apreciada por seu sabor delicado t^L e qualidades nutricionais, figura progressi-

^^A vãmente entre as mais requisitadas da cu- /M linária internacional. Apesar de a iguaria

_JL JL. não ter alcançado ainda o mesmo nível de popularidade de outros tipos de carne no Brasil, a criação tem grande potencial, podendo ser alçada a um patamar mais profissional e produtivo com as novas técnicas desenvolvidas na Universidade Estadual Pau- lista (Unesp) de Botucatu. Entre as novidades estão a técnica de produção de lotes monossexo apenas com exemplares fêmeas. A escolha se dá porque elas não dis- putam território, ao contrário dos machos brigões que tornam o ambiente estressante, o que resulta em me- nor produtividade. Os trabalhos desenvolvidos até o momento também levaram à produção de uma linha- gem sem consangüinidade da população de rãs-touro

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{Rana catesbeiana), a espécie mais cria- da no Brasil, originária da América do Norte, e que aparece no topo da preferência dos principais mercados consumidores, como França e Esta- dos Unidos.

Impacto na ranicultura - Os pesqui- sadores, sob a coordenação de Cláudio Ângelo Agostinho, do Laboratório de Aquicultura do Departamento de Pro- dução e Exploração Animal da Faculda- de de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp, também desenvol- veram novos comedouros e alimenta- dores automáticos que estão em pro- cesso de patenteamento. São novidades

importantes para a criação de rãs no Brasil, embora esse setor tenha poucas estatísticas recentes sobre o seu impac- to econômico e social. Uma das últi- mas informações tabuladas foi realiza- da pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), que estimou, em 2001, cerca de 600 ranários e 15 indústrias de aba- te e processamento, responsáveis pela produção de 300 toneladas de carne anuais. Dados do Instituto de Pesca de São Paulo mostram que avaliação feita em 1998 pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) identificou para a ranicultura um movimento econômico de US$ 47,8 milhões por ano.

Apesar de atualmente somente a carne - rica em proteínas, cálcio, ferro, fósforo, magnésio e potássio, com bai- xo teor de colesterol - ter aproveita- mento comercial, o potencial de apro- veitamento da rã-touro é considerado excepcional. O fígado pode ser utiliza- do para a fabricação de patês. A pele curtida é usada na produção de cintos, pulseiras, bolsas e sapatos. E da gordu- ra é extraído óleo para a indústria cos- mética e até mesmo as partes não co- mestíveis podem ser aproveitadas na composição de ração animal.

Mesmo com todas as qualidades da rã-touro, o número de criadores vem caindo. "Na década de 1980 eram mais

Rã-touro: nativa da América do

Norte e adaptada ao Brasil

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Produção de girinos em criadou na Unesp: sem consangüinidade

que, apesar de possuírem característi- cas de adulto, ainda não são capazes de se reproduzir.

de 2 mil, agora esse número deve girar em torno de 600", afirma Agostinho. Isso aconte- ce em grande parte, segundo o pesquisador, devido ao uso de instalações e manejo inade- quados. Os ranários necessi- tam, além de condições climá- ticas apropriadas, de terrenos com topografia adequada, abundância de água, da qual a espécie é totalmente depen- dente, e medidas para evitar a disputa entre os animais.

Expansão total - A fim de me- lhorar os resultados para os criadores e expandir a ranicul- tura no país, os pesquisadores da Unesp desenvolveram mé- todos capazes de, ao mesmo tempo, aumentar a produção nos ranários e evitar a dissemi- nação dos espécimes que fo- gem, por descuido dos criado- res, para a natureza, trazendo problemas ecológicos, porque a rã-tou- ro disputa alimentação e pratica o cani- balismo com as espécies nativas.

A análise e o controle do potencial genético de exemplares da rã-touro de diversos ranários comerciais foi o pri- meiro trabalho científico do grupo de pesquisa da Unesp. O principal motivo para esse controle é a prática comum da endogamia (cruzamento entre pa- rentes) nos ranários, que já chegava a causar o aparecimento de defeitos congê- nitos e enfermidades, devido à falta de controle da origem do animal. Como resultado final, foi obtida uma linhagem sem consangüinidade a partir de rãs oriundas de diferentes regiões e acasa- ladas por fertilização artificial.

Agostinho coletou indivíduos em quatro grandes ranários - nas cidades de Brasília, Viçosa, em Minas Gerais, e nas paulistas Pirassununga e Franca -, cuja população de reprodutores era su- perior a 200 casais e com populações sem endogamia. A partir daí, novos aca- salamentos foram realizados e um exa- me de laparotomia (incisão abdominal) dos imagos (indivíduos com três meses de idade, ainda imaturos sexualmente) permitiu a identificação das fêmeas pe- la presença do ovário (estrutura alonga- da e lobulada, enquanto os testículos têm formato arredondado). Os imagos fêmeas podem ser masculinizados por- pelo Instituto de Pesca de São Paulo

u ma vez identificadas as fêmeas, o corte é fe- chado e elas passam a receber o hormônio me- tiltestosterona, que é

adicionado à alimentação na propor- ção de 30 microgramas para cada qui- lo de ração de peixe, durante 40 dias. Com esse tratamento, as fêmeas tor- nam-se machos fisiológicos, com testí- culos e produção regular de sêmen. São os machos que possuem a expressão da sexualidade controlada pelos cro- mossomos sexuais XX, que determi- nam o sexo fisiológico das fêmeas. Toda fêmea normal de rã-touro é XX, e os machos, XY. Portanto, os machos da li- nhagem monossexo possuem cromos- somos XX e não são inférteis. Eles são usados em acasalamentos com fêmeas originais XX. "Assim, as proles resul- tantes serão constituídas exclusivamen- te por fêmeas", explica Agostinho. "Com esses resultados, mostramos que a téc- nica de reversão do imago fêmea em macho é possível e inédita no Brasil e no exterior." Técnica semelhante, de transformação de matrizes machos em fêmeas, já é realizada há alguns anos

ros

na criação de trutas. Nesse caso, a trans- formação é feita na fase larval do peixe.

A linhagem monossexo fêmea de rãs deve interessar aos ranicultores, so- bretudo porque, em lotes mistos, ocor- rem prejuízos justamente na fase de abate, quando os machos chegam à ma- turação e começam a brigar, ocasionan- do problemas de disputas por territórios e por fêmeas. "A vantagem do método é que, sem a típica disputa, o plantei se desenvolve sem estresse, de forma mais rápida e homogênea", diz Agosti- nho. "Além disso, são utilizados apenas como matrizes para reprodução, e não para o abate." Elimina-se assim a possi- bilidade de ingestão de hormônio por parte dos consumidores.

Controle ambiental - A medida tam- bém procura sanar o problema da fuga de rãs dos criadouros para a natureza e os conseqüentes prejuízos para os nati- vos anuros - a ordem zoológica que en- globa rãs, sapos e pererecas -, que no Brasil é uma das mais ricas do mundo. As constantes fugas de rãs dos ranários comerciais podem causar a extinção lo- cal de algumas espécies, devido à com- petição por alimentos e pela predação. A rã-touro apresenta alta fecundidade, podendo produzir de 10 mil a 20 mil girinos por desova e se acasalar por até sete vezes ao ano.

72 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Page 70: O câncer desafia a ciência

Linhagem monossexo: filhotes fêmeas para uma criação mais produtiva

O perfil reprodutor da rã-touro faci- lita a sua disseminação na natureza, prin- cipalmente porque alguns produtores, ao desistirem da atividade por dificul- dades técnicas de manejo, abandonam os ranários e permitem a fuga dos ani- mais. "Para contornar esse problema, pensamos em impedir a reprodução des- ses animais por meio da linhagem mo- nossexo fêmea, porque, nesse caso, a fuga impossibilita futuros acasalamentos."

O repasse da linhagem monossexo aos criadores de rãs brasileiros já está previsto em um convênio entre a Em- presa Brasileira de Pesquisa Agropecuá- ria (Embrapa) e o Banco Mundial, no Projeto de Apoio ao Desenvolvimento de Tecnologia Agropecuária para o Brasil (Prodetab). As técnicas serão repassa- das a produtores selecionados de acor- do com o grau de experiência no setor e as condições técnicas dos ranários.

Temperatura e instalações - Os traba- lhos que levaram ao desenvolvimento da linhagem monossexo fêmea tiveram seqüência com os estudos da interação genótipo-ambiente em laboratório, para saber se a linhagem desenvolvida vai se adaptar em diferentes regiões do Brasil, dada a variação climática nos criadou- ros. Para esse estudo, o pesquisador uti- liza populações que não são monossexo. As proles foram testadas nos sistemas

de criação utilizados pelos ranicultores. "O desempenho foi semelhante para todas as proles. O próximo passo será verificar como as linhagens respondem a temperaturas diferentes", diz o pes- quisador. "Temos capacidade de moni- torar mais de 6 mil animais, que estão sendo marcados e que serão colocados, no mês de maio, em baias com tempe- ratura controlada a 25 °C, 28 °C e 31 °C. O desempenho de cada grupo será ve-

0 PROJETO

1 - Desenvolvimento de Linhagem Comercial de Rã-touro CRana CatesbeianaA' Produção de Plantei Monossexo

2 - Comedouro e Abrigo para Rãs em Recria

3 - Alimentador Automático de Ração para Rãs

MODALIDADE 1 - Linha Regular de Auxílio a Pesquisa 2 e 3 - Programa de Apoio à Propriedade Intelectual

COORDENADOR CLáUDIO ÂNGELO AGOSTINHO - Unesp

INVESTIMENTO

1 - R$ 19.820,00 2 e 3 - R$ 12.000,00

rificado num período de três meses, quando estarão prontos para o abate", afirma Agostinho.

A lém das pesquisas i^L em melhoramento

^^A genético, a equipe È ^ de Botucatu de-

-A~ -^L. senvolveu ainda dois equipamentos para oti- mizar a oferta de alimento nos ranários. Isso porque, após a metamorfose dos girinos, os imagos necessitam de alimen- tos que apresentem algum tipo de movimento. O artifício uti- lizado para treinar as rãs a in- gerir a ração granulada con- siste em servi-la dentro de um comedouro junto com uma pequena quantidade de lar- vas de moscas (parecidas com larvas do chamado "bicho da goiaba"), que tornam os grâ- nulos de ração atraentes para as rãs que, na natureza, se ali-

mentam de larvas, insetos, camundon- gos e pequenos pássaros. O equipamen- to tem capacidade de alimentar até 300 imagos. Após cerca de 15 dias de treinamento nesse comedouro, as rãs passam a consumir a ração granulada quando ela é jogada na água. O come- douro serve ainda como abrigo dentro da baia para reduzir o estresse duran- te o manejo diário, ajudando a acelerar o processo de crescimento e a dimi- nuir o índice de mortalidade.

Nesse momento, entra em cena o segundo equipamento, chamado pelos pesquisadores de alimentador automá- tico. O dispositivo consiste de um re- servatório contendo ração, provido de temporizadores, que libera pequenas porções de grânulos, de acordo com a programação baseada no tamanho e na quantidade dos animais na baia. "É uma idéia simples, mas que vai causar um bom impacto", diz Agostinho. "Ofe- recendo a ração mais vezes por dia, po- de-se diminuir a mão-de-obra e reduzir a competição por alimento, já que a rã saciada não briga por comida, dando oportunidade às outras." De acordo com Agostinho, não há registro de alimenta- dores automáticos aplicados à ranicul- tura, em nível internacional. Ainda como protótipos, esses equipamentos desper- taram o interesse de empresas, que já estudam sua industrialização. •

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i TECNOLOGIA

NOVOS MATERIAIS

Precisão molecular

Sensores em escala nanométrica detectam e diferenciam paladares, cheiros e poluentes

YURI VASCONCELOS

Uma nova geração de senso- res ultra-sensíveis capazes de diferenciar nuances na composição de líquidos e de gases deverá invadir o

mercado no futuro próximo no rastro dos avanços da nanociência e da nanotecnolo- gia. São áreas que investigam as proprie- dades dos materiais na escala de 1 a deze- nas de nanômetros, equivalente ao nível atômico ou molecular (1 nanômetro cor- responde a 1 milímetro dividido por 1 mi- lhão). No coração desses dispositivos estão películas finíssimas chamadas de filmes nanoestruturados, com apenas algumas moléculas de protéina, por exemplo. São produtos que estão no centro dos estudos de um grupo de pesquisadores do Institu- to de Física de São Carlos da Universida- de de São Paulo (IFSC-USP). "A perspec- tiva de uso desses dispositivos é ampla, vai de sensores para análise de paladar, de gás e de líquidos até dispositivos eletrolu- minescentes, como telas de computador e de televisão, memórias ópticas, mate- riais holográficos e nanorreatores, mini- equipamentos ideais para reações quí- micas em ambientes muito controlados, com poucas moléculas, e que podem ser usados, por exemplo, na produção de baterias de celulares", explica o físico Os- valdo Novais de Oliveira Júnior, coorde-

nador do Grupo de Polímeros do IFSC, que possui vários projetos nessa área, muitos em cooperação com instituições do país e do exterior.

O campo dos sensores dotados desses filmes nanométricos é extenso, mas ba- sicamente a maneira de seu funcionamen- to envolve a imobilização de uma deter- minada proteína (sobre um material sólido sem que perca as suas propriedades) utili- zada para detecção de substâncias que rea- gem especificamente com ela. O material sólido no caso é um polímero chamado de dendrímero, possuidor de estruturas glo- bulares e providas de poros que encapsu- lam as proteínas sem a perda de suas ativi- dades. Com essa técnica, uma das pesquisas do grupo, em associação com o Instituto de Química da USP, levou à produção de biossensores para detecção de glicose no sangue - o estudo foi aceito para publica- ção na revista Biosensors and Bioelectro- nics, da editora holandesa Elsevier. Outra inovação da equipe, realizada em conjun- to com o Grupo de Biofísica do Instituto de Física, poderá servir para uso no con- trole de poluentes. É um sensor baseado na proteína Cl-catecol 1,2 dioxigenase, que pode interagir especificamente com o catecol, substância organoclorada fre- qüentemente associada a inseticidas, pre- sente em águas poluídas.

74 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

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*

r

Ajustes para a produção e controle de

nanofilmes com espessuras de 1 a 2 nanômetros

Page 73: O câncer desafia a ciência

O grupo também avançou na fabri- cação de um sensor para detecção de paraoxon, substância tóxica que pode ser usada em armas químicas. "A rele- vância dessa pesquisa reside na alta sensibilidade do sensor, que só foi pos- sível devido à imobilização bem-suce- dida de uma enzima chamada hidrola- se organofosforada. O trabalho contou com a participação de pesquisadores da Universidade de Miami e do Departa- mento de Química da Universidade Fe- deral de São Carlos (UFSCar). Um arti- go sobre este estudo foi publicado em fevereiro do ano passado no Journal of the American Chemical Society, uma das mais importantes revistas internacio- nais de química.

Os sensores desenvolvidos em São Carlos também funcionam de uma ou- tra maneira, sem o reco- nhecimento celular en-

tre as moléculas do filme e das substâncias a serem detectadas. Dessa forma, o sensor funciona baseado nu- ma mudança das propriedades do fil- me a partir de uma interação física com a substância analisada e não na intera- ção específica entre determinadas mo- léculas. As propriedades que se alteram com a interação podem ser ópticas ou elétricas. É o caso da língua eletrônica, uma das mais notáveis inovações tec- nológicas surgidas a partir desses estu- dos. Nesse equipamento, as moléculas da substância a ser detectada não pre- cisam necessariamente reagir com as moléculas do filme. Basta alterar as propriedades elétricas da superfície do sensor, que é extremamente sensível devido à natureza ultrafina do filme. A língua eletrônica é um sensor de pala- dar construído com um filme nanoes- truturado de apenas uma camada de moléculas poliméricas (veja Pesquisa FAPESP n°s 73 e 90). O equipamento desempenha função semelhante à das papilas gustativas, mas com um grau de sensibilidade muito maior que o da lín- gua humana. O invento, produzido pela unidade de Instrumentação Agropecu- ária da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em São Car- los, recebeu colaboração do Grupo de Polímeros da USP e está em testes na Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic) para a diferenciação de sa- bores dessa bebida. Se já existe a língua

eletrônica, os pesquisadores agora pro- jetam nanofilmes para um futuro nariz eletrônico, capaz de detectar e diferen- ciar odores.

Produzidos a partir de materiais or- gânicos, os filmes nanoestruturados não são auto-sustentáveis, o que signi- fica que não podem ser manuseados. Por isso, eles são depositados sobre um substrato sólido, como um polímero, uma lâmina de vidro, de metal ou de semicondutor. A espessura desses fil- mes é altamente controlada e depende do número de camadas moleculares que o compõem, além do tamanho de cada molécula - em geral, elas medem de 1 a 2 nanômetros de espessura. Se- gundo Oliveira Júnior, o foco de sua equipe é fazer o desenvolvimento des- sas nanopelículas, sempre com a preocu- pação de possíveis aplicações e repasses de tecnologia. "Já mantivemos contato com empresas interessadas na aplica- ção de métodos de nanociência e nano- tecnologia para o aperfeiçoamento da produção de materiais, mas até o mo- mento não firmamos nenhum acordo", conta o pesquisador. A busca da inova- ção, no entanto, já tem rendido bons resultados. O grupo tem um pedido de patente em andamento sobre armaze- namento óptico de dados, em que um filme nanométrico poderá ser aplicado em um cartão de crédito, por exemplo, dificultando o roubo e a fraude.

Na área de armazenamento de da- dos, os pesquisadores do IFSC querem ir mais longe. Eles estão empenhados no desenvolvimento de um polímero capaz de armazenar dados digitais em três dimensões. O trabalho é feito em cooperação com o Grupo de Fotônica

OS PROJETOS

1- Filmes Ultra finos de Langmuir-Blodgett e Automontados

2- Filmes Langmuir-Blodgett e Automontados

MODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa

COORDENADOR OSVALDO IMOVAIS DE OLIVEIRA JúNIOR

-IFSC-USP

INVESTIMENTO 1- R$ 49.310,00 e US$ 56.050,00 2- R$ 82.621,70 e US$ 70.822,75

do Instituto de Física da USP de São Carlos. A idéia dos pesquisadores é desenvolver um bloco que receba da- dos em diferentes camadas, amplian- do a capacidade de armazenamento. "Esse é o grande sonho dos cientistas. A principal vantagem dessa tecnologia em comparação ao que existe hoje é proporcionar o aumento da capacida- de de memória", conta Oliveira Júnior. "Hoje, o armazenamento é feito apenas em duas dimensões. Já sabemos como produzir esse polímero e estamos pres- tes a submeter um artigo para uma re- vista internacional."

Apesar dessa amplitude de aplica- ção, os filmes nanoestruturados ainda não são empregados comercialmente em larga escala. "As películas são muito caras e, por enquanto, não há um siste- ma de produção industrial com custo acessível." Em parte, esse problema é devido ao grande número de matérias- primas usadas na produção desses fil- mes. O grupo de Oliveira Júnior trabalha principalmente com polímeros condu- tores eletrônicos e luminescentes, mo- léculas fotorreativas como os azopolí- meros (substâncias sintetizadas a partir do benzeno, da anilina e de outros com- postos derivados do petróleo). Vale res- saltar também a importância dos estudos do grupo com a quitosana, substância extraída da casca de crustáceos, como o camarão e o caranguejo. Essas molécu- las têm alto poder fungicida e bacteri- cida e grande capacidade de se ligar a metais e outras substâncias, o que po- tencializa seu uso como sensor.

Técnicas de fabricação - Existem duas técnicas principais para produção dos nanofilmes: a de Langmuir-Blodgett, conhecida simplesmente por LB, e a automontagem, ou layer-by-layer (LBL), que significa camada por camada. A primeira delas foi desenvolvida nos anos 1930 e tem esse nome em home- nagem a dois cientistas americanos que trabalharam na General Electric, nos Estados Unidos, no início do século 20, Irving Langmuir e Katharine Blod- gett. Os filmes LB são produzidos den- tro de um recipiente apropriado, cha- mado de Cuba de Langmuir. No início do processo, o material que dará ori- gem ao filme é dissolvido em solvente volátil, como o clorofórmio, e espalha- do na Cuba de Langmuir, que contém água. Após a evaporação do solvente,

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utilizam-se barreiras móveis para for- mar na superfície da água uma camada molecular denominada filme de Lang- muir. Ela é comprimida até atingir um estado condensado. Em seguida, a película é transferida para um substra- to sólido, formando o filme de Lang- muir-Blodgett.

A técnica de automontagem I^L (camada por camada), pro-

^^A posta pelo pesquisador ale- È % mão Gero Decher no iní-

■JL- J^. cio da década passada, usa o princípio de adsorção (fixação) física, na qual as moléculas aderem ao substrato pela atração de cargas elétri- cas opostas. A principal diferença entre os filmes LB e automontados é que es- tes são produzidos a partir de materiais solúveis em água, enquanto os filmes LB são feitos com materiais insolúveis em água. "A vantagem da técnica de au- tomontagem sobre a LB é a simplicida-

de experimental, pois não requer equi- pamentos sofisticados para a produção dos filmes", explica o físico da USP.

Rede de colaboração - O pesquisador faz questão de ressaltar que os avanços obtidos por sua equipe devem-se, em grande parte, ao trabalho cooperativo com outras instituições. "Nossas pes- quisas são feitas dentro de uma rede de colaboração no Brasil e no exterior, o que nos permite aproveitar a experiên- cia de outros pesquisadores, além do uso de várias técnicas experimentais para fabricação e estudo dos nanofilmes", diz ele. Entre as instituições que traba- lham com o Grupo de Polímeros desta- cam-se a Universidade Estadual Pau- lista (Unesp), Unicamp, Coppe (UFRJ), Universidade Federal de Uberlândia e Universidade Estadual de Ponta Gros- sa, entre outras. No plano internacio- nal, as pesquisas contam com o apoio das universidades de Leipzig, na Ale-

manha, de Bangor, no Reino Unido, de Cracóvia, na Polônia, de Windsor, no Canadá, de Nova de Lisboa, em Portu- gal, de Miami e de Massachusetts, nos Estados Unidos.

Segundo Oliveira Júnior, a FAPESP financiou boa parte da estrutura para fabricação dos filmes, inclusive a sala limpa (ambiente com mínima quanti- dade de partículas indesejadas no ar) do laboratório onde eles são proces- sados. "Estimo que, desde 1991, a FA- PESP investiu em torno de US$ 500 mil no nosso grupo, especificamente para filmes nanoestruturados", conta o fí- sico. O apoio tem sido recompensado com a formação de profissionais espe- cializados e de uma vasta produção científica. O Grupo de Polímeros já formou mais de 20 pesquisadores em nanofilmes e, nos últimos quatro anos, cerca de cem artigos foram produzidos para publicação em revistas indexadas internacionais. •

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 77

Page 75: O câncer desafia a ciência

■ TECNOLOGIA

ENGENHARIA AEROESPACIAL

Empresa de São José dos Campos desenvolve técnica para fabricar painéis solares utilizados em satélites artificiais

Célula solar: pequenas peças que, agrupadas,

formam os painéis solares

A fabricação de painéis solares I^k que captam energia do Sol

^^A para fornecer energia elé- i M trica para satélites que gi-

^L JL» ram ao redor do nosso planeta é a novidade tecnológica pro- duzido na cidade de São José dos Cam- pos. O mérito cabe à Orbital Engenha- ria, uma pequena empresa que desde o ano passado domina o ciclo completo de produção desses artefatos. "Além do Brasil, apenas países como Estados Uni- dos, França, Alemanha, Japão, Rússia e China têm capacidade para fabricar es- ses painéis", diz o engenheiro mecânico Célio Costa Vaz, diretor da Orbital. Para adquirir o conhecimento e ingressar no seleto grupo de produtores de painéis solares espaciais, a empresa contou com financiamento da FAPESP, por meio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE).

Também conhecidos como gerado- res fotovoltaicos, os painéis são a for- ma mais eficiente de geração de energia para satélites e balões estratosféricos. Eles transformam a radiação solar en- contrada no espaço em eletricidade, energia essencial para o funcionamen- to desses veículos espaciais. A explica- ção para que apenas um pequeno nú- mero de nações domine a tecnologia

de produção desses geradores está na dificuldade de montagem de sua uni- dade básica, uma peça chamada de So- lar Cell Assembly (SCA), ou célula so- lar montada, em uma tradução livre. "Se compararmos um painel a uma caixa de pilhas, cada célula seria uma pilha", conta Vaz. Ela é composta de três componentes: a célula solar, o inter- conector e uma cobertura de proteção, conhecida como cover glass, ou cober- tura de vidro.

As células solares podem ser feitas de vários materiais, entre eles o silício e o arseneto de gálio. Elas têm usualmen- te 0,2 milímetro (mm) de espessura e normalmente larguras que variam de 2 centímetros (cm) por 4 cm a 4 cm por 7 cm. Os interconectores são minúscu- las peças de prata, com 0,012 milímetro de espessura, usadas para fazer o conta- to elétrico entre as células. O cover glass, por sua vez, é um vidro bem fino (entre 0,1 mm e 0,2 mm de espessura), seme- lhante a uma lâmina de microscópio, dotado de uma camada anti-refletora. Ele é colado sobre a célula solar e a pro- tege das radiações existentes no espaço como prótons e elétrons.

Ferramentas essenciais - Esses três componentes - célula solar, intercone-

tor e cover glass - podem ser facilmen- te comprados, mas o problema é fazer a montagem da célula. "À primeira vis- ta, pode parecer um desafio simples, mas não é. Existem vários requisitos de qualidade que tornam essa montagem muito complexa. No passado, tentamos desenvolvê-la e qualificá-la, mas não conseguimos", afirma o engenheiro Cé- lio Vaz, que trabalhou durante 18 anos no Instituto Nacional de Pesquisas Es- paciais (Inpe), com sede em São José dos Campos. O complicador é o fato de o ferramental necessário para produção da SCA não ser encontrado no mercado, ao contrário dos componentes. "Tive- mos que fazer o desenvolvimento dos equipamentos, dispositivos e ferra- mentas para fabricar a Solar Cell As- sembly. Isso só foi possível com o finan- ciamento do PIPE."

Durante a primeira fase do projeto, o pesquisador desenhou os equipamen- tos para produção das células e do pai- nel solar, definiu os processos e pro- cedimentos de fabricação, esboçou o plano de garantia do produto, os pro- gramas de inspeção e testes de qualifi- cação. Esse trabalho, iniciado em abril de 2001, levou cerca de seis meses. Na segunda fase, com duração de dois anos, os equipamentos foram efetivamente

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Page 76: O câncer desafia a ciência

produzidos, os processos, desenvolvi- dos e os corpos-de-prova, fabricados e testados. "Os resultados obtidos de- monstram que dispomos de qualidade tecnológica e meios de fabricação qua- lificados para atender à demanda por equipamentos para o setor aeroespa- cial", afirma Célio Vaz. Segundo o en- genheiro, o domínio dessa tecnologia trará grandes benefícios ao país, como a substituição de importações, a gera- ção de empregos locais - a Orbital em- prega quatro pessoas, sendo duas de nível superior - e a possibilidade de ex- portar produtos e serviços com alto va- lor agregado.

Dois pedidos - Os clientes finais da Or- bital são a Agência Espacial Brasileira (AEB) e o Inpe, centro de pesquisa com o qual a empresa firmou seu primeiro contrato, em dezembro de 2001. A em- presa participou de uma concorrência pública e foi escolhida para fabricar qua- tro painéis solares para o Satélite Cien- tífico (Satec), cada um deles medindo 50 cm por 66 cm. Nesse projeto, foram utilizados 1.100 células importadas, porque até aquela data a Orbital ainda não produzia esses componentes. Cada célula, feita com silício monocristalino, media 20 mm por 40 mm. O Satec es-

tava programado para ser colocado em órbita pelo Veículo Lançador de Fogue- tes (VLS), que explodiu na base de lan- çamento de foguetes de Alcântara, no Maranhão, em agosto do ano passado.

Em setembro de 2002, a empresa foi subcontratada para participar de uma empreitada ainda mais ambiciosa: pro- jetar e fabricar os painéis solares que se- rão instalados num módulo de serviço comum a uma série de satélites denomi- nado Plataforma Multimissão (PMM), com capacidade de levar, em cada vôo, cargas úteis variáveis como câmeras para captar imagens da Terra, radares ou ex- perimentos científicos, por exemplo. Ela está sendo construída para a AEB e para

0 PROJETO

Geradores Fotovoltaicos para Aplicações Aeroespaciais

MODALIDADE Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE)

COORDENADOR CéLIO COSTA VAZ - Orbital

INVESTIMENTO R$ 236.700,00 e US$ 41.308,95

o Inpe por um consórcio de empresas nacionais: Atech, de São Paulo, Cenic, Fibraforte e Mectron, de São José dos Campos. A plataforma é dotada de equi- pamentos básicos (sistema de suprimen- to de energia, propulsão, telecomunica- ções etc.) que servem para manter em operação a carga útil do satélite, como câmeras de imageamento terrestre, ra- dares, sensores e experimentos científi- cos. "A plataforma encontra-se em fase de detalhamento do projeto. Iremos projetar, desenvolver e montar painéis solares para as duas asas da plataforma, cada uma deles com cerca de 80 cm por 130 cm e quase 1.500 células", explica o diretor da Orbital. A previsão é de que os painéis e a plataforma estejam pron- tos até o início de 2006.

Qualidade internacional - Como o mercado nacional de satélites é limitado e sazonal, a Orbital está mirando clien- tes no exterior para crescer. "Pretende- mos entrar em licitações internacionais e, para isso, estamos em processo para obter a certificação pela norma NBR 15100 Sistema de Qualidade Espacial, que corresponde à AS 9100A em nível internacional", afirma Célio Vaz. Se- gundo o engenheiro, os Estados Unidos fabricam algumas dezenas de satéli- tes científicos por ano e são um ótimo mercado. "Acredito que poderemos ser bem-sucedidos por lá se tivermos preço competitivo. Além disso, países como México, Chile e Argentina têm progra- mas espaciais e não dominam a tecno- logia de fabricação desses painéis." Outra alternativa para sobreviver nes- se mercado é diversificar a produção. "Pensamos em usar a tecnologia e os equipamentos desenvolvidos por nós para fabricar outros produtos, como sensores ópticos e equipamentos para armazenar e condicionar a energia cap- tada pelos painéis", diz Célio Vaz.

Os painéis solares espaciais, no en- tanto, não podem ser usados aqui na Terra, porque eles diferem bastante dos dispositivos similares de uso terrestre. Os painéis solares terrestres são pro- jetados para o tipo de luz que chega na superfície da Terra, com um espectro eletromagnético diferente do existente fora da atmosfera. Outra diferença está no encapsulamento do painel. O terres- tre tem que ser protegido contra umi- dade e choques físicos, provocados, por exemplo, por chuva de granizo. •

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Page 77: O câncer desafia a ciência

I TECNOLOGIA

FARMÁCIA

Mamão cicatrizante Látex de fruto existente no Chile contém substâncias curativas para diferentes tipos de feridas da pele

LILIANE NOGUEIRA

Em março deste ano, o pes- quisador Carlos Edmundo Salas Bravo, da Universida- de Federal de Minas Gerais (UFMG), teve, no Chile,

mais uma prova de que está no caminho certo em suas pesquisas com a planta Carica candamarcensis, uma espécie de mamoeiro nativo da costa oeste da América do Sul. Ele acompanhou os resultados de uma pomada feita com o látex do pequeno mamão que cicatri- zou a pele queimada de uma paciente diabética chilena que já havia tentado sem sucesso todos os tratamentos con- vencionais. Salas, chileno de nascimen- to, começou a pesquisar as proprieda- des cicatrizantes da planta no final da década de 1980. De lá para cá, junta- ram-se a ele a pesquisadora Míriam Teresa Paz Lopes, também da UFMG,

e o farmacêutico chileno Abrahan Schnaiderman.

Os três pesquisadores entraram em 2002 com um pedido de registro de patente nos Estados Unidos das pro- priedades terapêuticas das substâncias existentes no látex do mamoeiro. Os princípios ativos da planta estão em al- gumas proteases, um tipo de proteína que tem a função de quebrar outras pro- teínas com o objetivo de ativá-las ou desativá-las, favorecendo, nesses casos, os mecanismos de proliferação celular.

O produto já foi testado em ani- mais. Agora os pesquisadores esperam que alguma instituição ou empresa far- macêutica se interesse pela patente e em aplicar os testes em humanos. Os es- tudos mostram que as substâncias en- contradas no látex do fruto da C. can- damarcensis têm potencial de cura para

diferentes tipos de feridas cutâneas e podem ser extremamente eficazes nas crônicas ou de difícil cicatrização, como aquelas comuns em portadores de dia- betes, escaras (feridas que aparecem em pacientes que permanecem acamados ou na mesma posição por longos perío- dos) e as provocadas por queimaduras.

Lesões gástricas - As proteases tam- bém foram testadas em lesões gástri- cas e demonstraram mais eficácia con- tra as úlceras do que o Omeprazol e a Ranitidina, medicamentos utilizados para tratamento desse problema e das gastrites. Nas feridas da pele, os estudos foram feitos em camundongos Hairless (sem pêlos), e nos ferimentos gástricos, os ensaios foram feitos com ratos. Em humanos, por enquanto, os testes são isolados, e realizados apenas em casos

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como o da chilena que autorizou o uso da substância em suas feridas.

O interesse pelo alto teor de proteases presentes no látex de C. canda- marcensis fez Salas, com doutorado em Bioquí-

mica pelas Universidades do Chile e de Michigan, nos Estados Unidos, ini- ciar os estudos com o fruto em 1988. A presença dessas substâncias no ma- mão - conhecido como papaya no Chile - impede o consumo in natura como o do nosso papaia (Carica pa- paya) e o torna indigesto se não for cozido. Na continuação dos es- tudos, em 1991, na Faculda de de Medicina da Univer- sidade de São Paulo (USP), Salas conheceu a biomé- dica Míriam Lopes, pro- fessora no Laboratório de Oncologia Experi- mental que se dedicava às pesquisas na área de de- senvolvimento celular, em especial na proliferação de cé- lulas tumorais. Eles acabaram se casando e, em 1992, trans- feriram-se para a UFMG, em Belo Horizonte, on- de são professores do Instituto de Ciências Biológicas (ICB).

Com o desenvol- vimento dos estudos com as proteases, os pesquisadores passa- ram a estudar a ação do látex do C. canáamarcensis em feridas de animais, ini- ciando os ensaios em camun- dongos. "Passamos a observar como as enzimas agiam sobre as células de mamíferos por- que já tínhamos observado a coagulação que ocorre no fruto quando ele sofre um dano", conta Míriam.

Nos cerca de 50 camun- dongos com ferimentos na pele, eles observaram que frações desse látex promo- viam a cicatrização e in-

Mamoeiro Carica candamarcensis no Chile:

enzimas cicatrizantes

centivavam a divisão celular nas regiões vizinhas não atingidas pela ferida, além de promover a limpeza do tecido lesio- nado. Os pesquisadores já haviam ve- rificado em experimentos laboratoriais que as substâncias presentes no látex es- timulam a proliferação de fibroblastos (tecido mais profundo da pele) e de cé- lulas epiteliais (mais superficiais), fun- damentais no processo de cicatrização.

Míriam explica que o processo de cicatrização de um ferimento ocorre quando o tecido atingido é substituído

por outro. Parece simples, mas só as pessoas portadoras de feridas crônicas ou de difícil cicatrização sabem o sacri- fício a que são submetidas. Normalmen- te, as substâncias cicatrizantes atuam na limpeza do ferimento, favorecendo o trabalho de reprodução de novas cé- lulas pelo próprio organismo, que nem sempre consegue fazê-lo. "No caso da cicatrização com a protease da C. can- damarcensis, o processo é mais rápido que o convencional, mas o mais impor- tante é a boa qualidade da reconstru- ção do tecido lesionado", diz.

Estudo toxicológico - A pesquisa foi feita quase sem apoio financeiro de agências de fomento à pesquisa cientí- fica. "Estamos levando este projeto na velocidade em que temos condições. Na fase inicial, entre 1994 e 1996, ti- vemos apoio financeiro do Conselho

Nacional de Desenvolvimento Cien- tífico e Tecnológico (CNPq). Gran-

de parte do projeto foi realiza- da com recursos existentes nos laboratórios da UFMG", expli- ca Míriam. Além de Schnaider- man, o parceiro chileno, há ou- tro trabalhando na Espanha.

O pesquisador Arturo Anadón, da Universidade Compluten-

se de Madri, está realizando estudos toxicológicos em animais.

A expectativa de pro- dução do medicamento no Brasil esbarra na dificul-

dade de cultivo da planta, que não é típica do clima

brasileiro. "A solução seria en- contrar um microclima adequa-

do ao cultivo da C. candamarcen- sis ou produzir a substância em laboratório, por meio da clona- gem e expressão da protease em bactérias", explica Míriam. Os pesquisadores estão agora na ex-

pectativa de dar continui- dade ao trabalho, espe- cialmente a realização dos testes clínicos, em huma- nos. "Estamos abertos para negociações, inclusive com laboratórios farmacêuti- cos, porque um medica- mento com esse potencial certamente terá excelen- te aceitação no mercado", conclui Salas. •

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HUMANIDADES

FESTIVAL

usica pa/a | eus Alunos e professores de São Paulo se reúnem no interior de Minas para celebrar repertório barroco

NELDSON MARCOLIN

Page 80: O câncer desafia a ciência

Recitativo e ária, de 1759 (á esq.), e músicos de São Paulo no festival: interação real com a população

Em meados de julho, cerca de 30 músi- cos abandonarão suas férias da Escola de Comunicações e Artes da Universi- dade de São Paulo (ECA/USP) para internar-se em Prados, pequena cida-

de 500 quilômetros distante da capital paulista, no interior de Minas Gerais. Durante 16 dias, eles serão parte da localidade. Apresentarão reci- tais, tocarão com alguns dos 7.700 moradores e darão aulas de música para os interessados. Os eventos serão gratuitos, numa simbiótica intera- ção entre a população e os músicos forasteiros. Entre uma atividade e outra, eles trocarão infor- mações sobre antigas peças musicais sacras escri- tas por negros e mulatos, guardadas nos arquivos das velhas bandas mineiras. Ainda hoje é possí- vel achar raridades do século 18 que não são to- cadas há 200 anos. Em Prados, um parte do pas- sado colonial brasileiro voltará à vida.

Não será a primeira vez. O Festival de Mú- sica de Prados ocorre anualmente desde 1977, sempre com o mesmo espírito de integração entre visitantes e moradores. Nenhum dos mú- sicos ganha para participar. A FAPESP banca a

maior parte dos custos de viagem e hospedagem de alunos e professores, mas não há, nem de longe, a publicidade que outros festivais têm. Aliás, não há publicidade nenhuma. O evento é conhecido apenas entre poucos estudantes e do- centes da USP e em algumas cidades vizinhas de Prados, como São João del-Rei e Tiradentes. "Esse é talvez o único festival de música em que a população tem uma interação real com os músi- cos", diz o maestro Olivier Toni, professor titular (hoje aposentado) e um dos fundadores do De- partamento de Música da ECA (1970). Ele tam- bém ajudou a criar a Orquestra de Câmara de São Paulo (1956), a Orquestra Sinfônica Jovem Mu- nicipal de São Paulo (1968), a Escola Municipal de Música de São Paulo (1969), a Orquestra Sin- fônica da USP (1972) e a Orquestra de Câmara da USP (1995). Toni foi o idealizador do evento de Prados e é, ainda hoje, seu principal motor.

A descoberta da cidade mineira foi resultado da curiosidade do pesquisador. O maestro e al- guns alunos visitavam São João del-Rei em 1974 quando decidiram consultar o acervo da Socie- dade Lira Sanjoanense. A instituição tem um ar-

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Page 81: O câncer desafia a ciência

quivo musical com grande quantidade de originais e cópias de obras religio- sas antigas produzidas na região e até uma boa coleção de outras ci- dades do país do tempo do Brasil Colônia. Surpresos com a exce- lência do material encontrado, o grupo pediu autorização da instituição para microfilmar o que fosse possível. À época, a equipe de Toni sempre le- vava um aparelho portátil de microfilmagem no por- ta-malas do carro quando se embrenhava em missões exploratórias por Minas Ge- rais em busca de originais pouco conhecidos. Nunca se sabia o que encontrariam em igrejas e sociedades se- culares e convinha estar sem- pre preparados para não per- der a viagem.

A o perguntar onde havia /% mais músicas do século

L^L 18, como as encontradas M M na Lira Sanjoanense, foi-

JL -A. lhes indicada Prados, a 26 quilômetros dali. O pesquisador chegou na cidade com dez alunos e en- controu o maestro Ademar Campos Fi- lho, encarregado da banda e responsá- vel pelo arquivo. "Na Semana Santa, ele levava aquela música antiga para as procissões e tocava", conta Toni. Cam- pos lhes mostrou documentos e peças de José Joaquim Emerico Lobo de Mes- quita (1746-1805) e Manoel Dias de Oliveira (1764-1837), entre outras, e tudo foi microfilmado. Depois de três dias de conversas e pesquisas, Toni su- geriu a Campos a realização do festival, idéia prontamente aceita.

"Eu quis fazer um evento para que as pessoas participassem e não apenas assistissem pagando por isso", diz o maestro, ressaltando que é difícil encon- trar uma família em Prados que não tenha um músico entre ela. "O projeto é tocar para os moradores, tocar junto com eles e fazer com que eles toquem sozinhos." Toni e alunos dão aulas de harmonia e música, em geral, explicam particularidades dos instrumentos e no final do festival encenam uma pequena peça teatral. Este ano o tema deverá girar em torno dos 300 anos da cida-

Padre José Maurício pintado por um de seus filhos, José Maurício Nunes

Garcia Júnior: compositor de renome

de. No total, a cada ano os músicos paulistas trabalham com 200 morado- res, dos quais a metade é de crianças. São feitos dois concertos por semana. Todos preferem tocar em uma das duas igrejas da cidade, em especial na do Ro- sário, a antiga igreja dos escravos, do fi- nal do século 18. "É lá que fica o cravo e a acústica é excepcional, sem reverbe- ração", diz Toni. O encerramento é fei- to na Igreja Matriz de Santo Antônio. O programa do festival é quase sem- pre de música barroca, que inclui, com enorme freqüência, o repertório co- lonial brasileiro.

Nesses 26 anos de festival, foi possí- vel descobrir alguns jovens talentos, a maioria deles hoje tocando em orques- tras brasileiras. Músicos e pesquisado- res de destaque já estiveram em Prados com Toni, como Sílvio Ferraz, Willy Corrêa de Oliveira, Alex Klein, Rubens Ricciard, José Eduardo Martins e Ro- berto Mincvuk. A cidade é atraente

porque permite tocar, ensinar e fazer pesquisa. A equipe comandada por Toni microfilmou pela primeira vez

arquivos musicais de várias outras cidades mineiras, como Piranga, Aiuruoca e Itabira e de muni- cípios paulistas, como Pinda- monhangaba. Às vezes, desses estudos surgem descobertas

3 surpreendentes, que demo- = ram para ser aceitas. Uma das g mais importantes diz respei- I to ao período mais remoto ° em que se fez música sacra

no Brasil. Até os anos 1940, 1 tinha-se como certo que o \ padre José Maurício Nunes | Garcia (1767-1830) fora o £ primeiro compositor brasi-

leiro. De acordo com todos os especialistas, padre José Mau-

rício, carioca, mulato e pai de cinco fihos, era um grande com-

positor. Mário de Andrade consi- derava sua Missa de réquiem como

"a obra-prima da música religiosa brasileira".

"No século 18, quem fazia e execu- tava música eram escravos libertos", ex- plica Olivier Toni. Como, em geral, os brancos brasileiros e portugueses não faziam nada (e se orgulhavam disso), negros e mulatos arrumaram um modo de ganhar dinheiro ao tocar suas músi- cas sacras na igreja e eventos religiosos. Isso também era usado pelo negro na tentativa de ganhar uma certa conside- ração na sociedade (não havia condi- ções de se importar artistas o tempo todo da Europa). "Eles faziam uma mú- sica européia sui generis, muito carac- terística das colônias. Era mais simples, mas espontânea", observa o pesquisa- dor. "De qualquer modo, ela tinha de ser o mais parecida possível com a mú- sica européia, isto é, com a música de seus antigos donos." Se não fosse assim, ela não seria aceita.

0 primeiro compositor - Quem derru- bou o mito do padre José Maurício como o primeiro compositor brasileiro foi Francisco Curt Lange (1903-1997), pesquisador alemão naturalizado uru- guaio que realizou intenso trabalho pelo interior brasileiro. Em 1944, em uma de suas passagem pelo país, adqui- riu um pequeno lote de músicas em

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Pauta de Recítativo e ária: documento achado em São Paulo confirmou pesquisas de Curt Lange

Minas Gerais. Entre elas, deparou-se com Antífona de Nossa Senhora, de Lobo de Mesquita. Inicialmente, Curt Lange pensou se tratar da obra de algum au- tor português e decidiu investigar. An- tigamente, era comum as igrejas guar- darem os documentos dos que nasciam e morriam - e Lange acabou desco- brindo que Lobo de Mesquita havia sido batizado em uma igreja onde só eram registrados os pardos. "Graças a Curt Lange, a musicologia brasileira recuou 40 anos e ficou claro que houve outros compositores antes do padre José Mau- rício", conta Toni.

Mesmo com essa prova, o pesquisa- dor alemão foi muito contestado. Até que, em 1958, o historiador e musicó- logo Régis Duprat, hoje professor titu- lar da ECA, achou na coleção "Alberto Lamego", do Instituto de Estudos Bra- sileiros (IEB/USP), os manuscritos ori- ginais de Recitativo e ária, datados de 1759. Escrita na Bahia, de autor anôni-

mo, a obra era profana e, mais espanto- so, com texto cantado em português. Havia sido dedicada a uma autoridade enviada pelo Marquês de Pombal ao Brasil. "A obra é magnífica, escrita para voz, violino e baixo e talvez seu autor seja o padre Caetano Mello de Jesus", diz Toni, que a estreou em 1960. Com essa descoberta de Duprat, acabou-se de vez a polêmica. Recitativo e ária havia sido composta antes mesmo do nas- cimento do padre José Maurício.

A morte da música sacra - A música re- ligiosa começou a morrer com a Inde- pendência, em 1822. Com ela, se extin- gue a capela de música, uma função da Igreja para se produzir e tocar música sacra com o objetivo de acompanhar os ofícios religiosos. Com a Independên- cia, o músico teve de passar a viver cada vez mais com a música profana, aban- donando a prática da música religiosa. "A separação definitiva entre Estado e

Igreja alterou a concepção vigente até 1822. Esse é um fenômeno interessante que ocorreu após as independências de quase todas as nações latino-america- nas", diz Toni.

Se depender desse regente, profes- sor, pesquisador e músico (foi fagotis- ta), a obra sacra brasileira não será es- quecida. "Tenho enorme fascínio pela música religiosa porque ela permite ao compositor se identificar dentro de uma gama enorme de expressividade em uma mesma peça", afirma. Tanto a mis- sa como as obras religiosas musicadas propiciam grandes momentos: come- çam tranqüilas, ficam mais rápidas, tor- nam-se introspectivas e, no caso das missas, terminam doce, em paz com Deus. Tal paixão é motivo suficiente para fazer o ateu Olivier Toni amealhar alunos para continuar, aos 78 anos, to- dos os anos, a internar-se por 15 dias na colonial Prados para fazer e ouvir música dentro de suas igrejas. •

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I HUMANIDADES

MÍDIA

Eu vi um Brasil naTV Obra avalia documentários sobre a natureza a partir de Amaral Netto, o Repórter e do Globo Ecologia

CARLOS HAAG

Se você não tem pelo menos 40 anos, não tem idade para lembrar (não lamente o fato): ao som de Aquarela do Brasil, no arranjo hediondo de Ray Coniff, um he- licóptero sobrevoa, na Amazônia, o fe-

nômeno da pororoca, descrita pelo entusiasmado locutor como "o monstro das mil faces". Era o "show da natureza do Brasil Grande", tema recor- rente do (mal) afamado Amaral Netto, o Repórter, programa nascido em 1969, na Rede Globo, que, por anos, foi a fonte de conhecimento sobre o país para gerações de brasileiros. Muita coisa mudou, mas, curiosamente, a natureza na TV continua a ser tratada como um "show da vida", mistura de ficção e realidade, com direito a efeitos especiais, videoclipes e sabor de aventura.

"Belas imagens contam mais do que dados, boa colocação no sistema de estrelato propicia

Amaral Netto: olhar agressivo sobre a natureza brasileira, plenamente integrado ao momento político

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Filmagem do Globo Ecologia: preocupação com o "dar certo" e linguagem de videoclipe para atrair jovens

mais legitimidade do que a participa- ção comunitária e a proximidade social. O relacionamento com a problemática ambiental é mediado por aspectos mais próximos do campo íiccional e cada vez menos por ideários coletivos", avisa Tha- les de Andrade, autor de Ecológicas ma- nhãs de sábado: o espetáculo da nature- za na televisão brasileira, lançamento da Annablume/FAPESP, um estudo sobre como a telinha tratou o meio ambiente a partir de dois casos dessemelhantes na aparência, mas análogos no enga- no: Amaral Netto e o Globo Ecologia.

Os documentários sobre natureza são um dos principais filões das televi- sões em todo o planeta. Só o Discovery Channel, que exibe 24 horas de pro- gramação do gênero, está presente em mais de 145 países, um índice supera- do apenas pela MTV e pela CNN. Com uma linhagem que pode ser traçada dos primeiros exploradores, que faziam o público leitor tremer de pavor diante dos desenhos, nem sempre realistas, do mundo exótico a que a maioria não ti- nha acesso, os documentários ganha-

ram novas tecnologias, mas ainda guar- dam a mesma essência. O fotojornalis- mo ajudou a consolidar a necessidade de converter o natural em espetáculo para maior assimilação popular e a ciência nem sempre consegue livrar-se da ten- tação do sucesso comercial. Depois, vi- eram Robert Faherty e, é claro, o mun- do submarino de Jacques Cousteau, nos anos 1950 e 1960. Quem viu um docu- mentário viu todos?

Historinha a ser contada - Os prin- cípios básicos, seja na reconstituição computadorizada da vida na Terra nos tempos dos dinossauros, seja no valen- te caçador de crocodilos, ou, ainda, nos infindos filmes sobre tubarões, per- manecem inalterados: feitos para um público de classe média, uma audiência familiar, eles abusam da narrativa an- tropomórfica, ou seja, a imputação de qualidades humanas aos animais. As- sim, a perseguição de tubarões a uma baleia e seu filhote se converte numa luta da "mamãe" baleia para livrar seu "filho" da garra dos terríveis e cruéis

predadores. Há sempre a necessidade de uma historinha a ser contada, com personagens e até mesmo uma moral final que dá o clima geral de ambienta- lismo romântico. Nesses filmes, não há espaço para pessoas, já que a natureza, reproduzida como espetáculo, deve dar espaço apenas para a identificação emo- cional do público com os animais, ex- tintos ou vivos.

A tecnologia está a serviço do show: os efeitos especiais são o grande atrati- vo, seja nas câmeras especiais e onipo- tentes que nos colocam cara a cara com grandes animais, seja no computador que dá vida ao que não pode mais ser visto. Tudo é narrativa, beirando o íic- cional, um artifício agradável conse- guido por meio da narração em offe da edição das imagens: cenas filmadas em ocasiões diversas são reunidas a fim de dar a impressão de uma continuidade de ações. Dessa forma, "vemos" o leão olhar a presa, pensar como atacar e, pronto, começa a grande luta pela vida na savana. Tampouco o som é real, mas fruto de pós-produção. O efeito final é

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poderoso e convincente. Mudamos de canal crentes de que estamos mais ri- cos em conhecimento e ecologicamen- te conscientes.

Mas as questões são muitas: é certo reconstituir eventos naturais para a câ- mera? Será que os abusos de efeitos es- peciais não tira a atenção do principal, o saber, e a desvia para o acessório, para a mera diversão? Quais são os tópicos éticos que conduzem a produção de um documentário? Não podemos nos en- ganar sobre a força do mercado e dos índices de audiência que pautam boa parte dos documentários da mesma for- ma que outros programas da TV. O im- pacto visual e a presença cada vez mais forte da tecnologia podem estar tirando desses filmes a sua motivação real e apre- sentando uma visão distorcida do mun- do natural e, na contramão do perce- bido, deixando ainda mais distantes as fronteiras entre homens e animais.

A ven

i\ SU

IX ventura, perigos, homem ver- sus natureza, espetáculo, tu- do sob a roupagem do cien- tificamente aprovado (daí, os depoimentos dos "ho-

mens de ciência" que legitimam tudo o que se diz na TV: quem pode duvidar deles?), a transformação do fenômeno natural em ficcional, esses perigos são ainda maiores com a imensa capacida- de tecnológica atual. Pelos documentá- rios, parece mesmo muito difícil lidar com o mundo animal, quanto mais pre- servá-lo num contexto real. O prazer da diversão parece estar superando o do saber. "Há o perigo da infantilização, ou seja, transformar a realidade natu- ral num jogo e diversão, mas há que se perceber também que podemos, com os novos recursos tecnológicos, se usa- dos de forma criativa, desmistifícar o próprio processo do conhecimento, uma direção interessante e fecunda", avalia Thales de Andrade.

Mas esse não é um fenômeno novo ou mesmo internacional. Em janeiro de 1969, apenas um mês após o AI-5, estreava na Globo Amaral Netto, o Re- pórter. "Os seus documentários envia- vam para dentro das casas imagens de um Brasil quase lenda, uma terra mal conhecida e nem sequer concebida. De certo, sabemos apenas que o repórter esteve lá. Nos confins do imaginável, mostrando a verdadeira face de regiões que permaneciam envoltas em mistério

e fantasia", diz o texto de apresentação da série televisiva, como nos revela Tha- les de Andrade. O clima é bem próximo do que vemos ainda agora nos filmes de natureza, com uma mistura de sus- pense e heroísmo, iniciado mesmo an- tes da chegada ao objetivo do progra- ma, já nos percalços que esperam a equipe de Amaral ao longo de sua jor- nada ao mistério, com o perigo da pró- pria vida.

Amaral, porém, arrisca tudo, vence e "esteve lá". Ainda que com a ajuda de aviões da FAB, corvetas da marinha, a expertise de militares para dar a pala- vra "científica" final sobre o Brasil des- conhecido. E, é claro, Amaral chega lá

0 PROJETO

Ecológicas Manhãs de Sábado: o Espetáculo da Natureza na Televisão Brasileira

PESQUISADOR

THALES HADDAD NOVAES DE ANDRADE

- Faculdade de Ciências Sociais/PUCCamp

INVESTIMENTO R$ 2.509,50

com suas câmeras e aparato tecnoló- gico. "Todos esses elementos concate- nados instituíram um olhar agressivo sobre a natureza brasileira, plenamente integrado ao momento político e ao estágio de aprimoramento tecnológico que o país atravessava. Em suma, um narrador agressivo buscando tornar in- teligível um espaço hostil e exuberante, uma alegoria de Brasil forjada pelas eli- tes de então, também agressivas", nota Thales. "Essas elites acreditavam estar realizando um grande salto econômico e tecnológico, a grande modernização conservadora. Nesse ideário delirante, Amaral é quase um poeta embriagado, transmitindo informações e promessas inverossímeis e espetaculares", diz.

Nesse movimento de mostrar o país como em um permanente "estado de guerra" entre natural e civilizado, Ama- ral, nota o pesquisador, não apenas se liga ao ufanismo militarista do mo- mento, mas, importante, aproxima sua linguagem dos programas de auditó- rio, a estética popular vigente da TV de então. A natureza vira espetáculo, ainda que grotesco. E, para tanto, valia tudo, até mesmo "corporificar" o natural: a pororoca vira "o monstro das mil faces" e o Atol das Rocas uma inusitada "ilha do nada". "A hidrelétrica de Itaipu, a ponte Rio-Niterói seriam elementos 'cheios', plenos de racionalidade e fun-

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cionalidade, enquanto espaços como Rocas se definiriam pelo vazio, a des- peito de sua riqueza biótica." O exagero chegou mesmo a incomodar alas do re- gime militar, que odiavam o ufanismo sem consistência de Amaral, que acaba por funcionar contra a propaganda ofi- cial, cuidadosamente urdida.

Exigências diferentes - Vinte anos de- pois, em 1990, o quadro é outro, por- que as exigências do mercado e do público são diferentes. Saem de cena os perigos e as disformidades da natu- reza selvagem para dar lugar a uma nova consciência ecológica em que a sociedade gosta de se ver retratada na TV como agente de mudanças da cau-

sa ambiental. Como nota o autor, saem de cena os marinheiros e soldados e, em seu lugar, temos ambientalistas, cientistas, ribeirinhos e, pasmem, ar- tistas. É o Globo Ecologia, que preci- sa mostrar, para um público jovem (daí o uso da linguagem do videocli- pe e do rock, com programas apre- sentados por atores globais de nove- las) e ativo, que "as coisas podem dar certo". É um novo otimismo que inva- de a natureza por meio do discurso da sustentabilidade moderna.

"As soluções pontuais e comparti- lhadas, articulando setores próximos e distantes, compõem a nova condição do otimismo. 'Dar Certo' {nome de um quadro do programa) representa mais

Cenas de documentários do Discovery Channel: os efeitos especiais de computador dão vida ao que não pode mais ser visto ou nos deixam cara a cara com a natureza selvagem

do que um comportamento gerencial bem-sucedido, implica também esva- ziar o debate de aspectos político-ideo- lógicos, embates superados no cenário atual", observa Andrade. Tudo por meio da apologia da prática comunitária e do envolvimento, na maior parte das vezes anônimo, da sociedade civil nas causas ambientais. A elite não mais se interessa, como nos tempos de Amaral, em descobrir, com um misto de horror e admiração, o potencial monstruoso natural do Brasil. Agora é a vez das pe- quenas ações que dão certo.

"Os rumos que nossa cultura do es- petáculo vem adotando devem interfe- rir na alocação social dos problemas da degradação ecológica. A artificialização da realidade conduz ao reino da simu- lação, em que as carências ecossistê- micas podem adquirir várias feições, de acordo com as metas culturais predo- minantes", nota o pesquisador. "É viável testarem-se novas poéticas sobre a dis- cussão ambiental. Um olhar menos dis- tanciado e que não se renda de forma inconteste às preferências de consumo do mercado audiovisual é a eventual meta de uma produção televisiva que incorpore a temática ambiental com sua complexidade e plasticidade", su- gere. Só assim, apenas no cinema os dinossauros têm apelidos e as baleias gostam de criança. •

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I HUMANIDADES

CULTURA

A razão prática

critica Estudo traz arqueologia da origem do debate sobre as artes no Brasil

RENATA SARAIVA

Foram necessários quatro anos de pesquisas intensas, financia- das pela FAPESP, para que Luís Antônio Giron chegasse a uma verdadeira arqueologia de sua

profissão, a crítica musical. Obstinado em preencher a lacuna bibliográfica sobre a origem da crítica de artes no Brasil, o jorna- lista fez descansar a pena da escrita diária para se debruçar sobre livros, documentos e manuscritos de arquivos e bibliotecas na- cionais e internacionais. O trabalho realiza- do no Departamento de Musicologia da Escola da Comunicação e Artes da Uni- versidade de São Paulo (ECA/USP), resul- tou no recém-lançado Minoridade crítica - A ópera e o teatro nos folhetins da corte (415 páginas, R$ 49,00, Ediouro e Edusp).

"Literalmente, queimei pestana, lendo microfilmes e jornais de época e transcre- vendo documentos raros, vedados à repro-

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dução", diz o pesquisador sobre seu envolvimento com as fontes, que lhe permitiram algumas surpreendentes descobertas, como a de que o surgi- mento da crítica no Brasil ocorreu em 1826. A data era ignorada pelos pes- quisadores até então, todos crentes que a atividade teria se iniciado no Romantismo, por volta de 1840. Ou- tras boas descobertas foram os textos de crítica musical e teatral de alguns medalhões românticos como os escri- tores Gonçalves Dias, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e até Ma- chado de Assis. Para muitos deles, o es- paço nos jornais serviu como ponte para a carreira literária.

Ao estampar a origem e a evolução da crítica musical no período do Brasil independente, Giron acabou por re- tratar a corte no Rio de Janeiro em um tempo de transformações profundas, da Independência aos anos de D. Pe- dro II, cuja maioridade foi antecipada em 1840. Por meio do retrato dos es- petáculos operísticos e teatrais, diver- são da elite, e das críticas publicadas em jornais como Espelho Diamantino e O Espectador Brasileiro, o livro permite vis- lumbrar hábitos e costumes dessa so- ciedade palaciana, além da origem de alguns traços culturais nacionais extre- mamente fortes, como o Carnaval e a formação de torcidas.

A primeira crítica musical de que se tem notícia é do diário O Espectador Brasileiro, de 19 de junho de 1826, ano de inauguração do Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, cuja tempora- da operística foi aberta já respirando claramente os novos ares do império recém-emancipado. Anônimo, o críti- co discorria sobre o papel da crítica em um texto intitulado "Representação dAdelina". Nem sempre foi assim, já que muitas críticas desse período des- tinaram-se mais a descrever detalhes da cena, do enredo e dos bastidores (bri- gas entre os empresários, por exemplo) do que a promover grandes debates estéticos ou musicais. "O alvorecer da crítica se processa numa polêmica en- tre prima-donas, no bojo daquilo que os críticos literários consideram como literatura de frivolidade e folhetines- ca", escreve Giron.

Os textos refletiam gostos e atitudes do público. Foi assim que, em 1827, a chegada da soprano francesa Elisa Bar- bieri provocou alterações na ribalta e nas gráficas.

Barbieri veio rivalizar com o castrato Fasciotti e sua irmã e discípula, Maria Te- resa Fasciotti, representan- tes do "bel canto rococó",

apreciado pelos tradicionalistas e sau- dosos do tempo de D. João VI. A esses tradicionalistas opunham-se os recep- tivos às novidades parisienses, às in- terpretações velozes e inauditas das óperas de Rossini e às modulações re- volucionárias. A rivalidade se transfor- mou em um embate estético entre re- presentantes da sociedade colonial e a incipiente burguesia e aristocracia na- cionalista, situação retratada nas crí- ticas dos jornais. Era também mais um exemplo de circunstância que contri- buiu para o surgimento do hábito na- cional de formar torcidas.

Quando chegavam divas da ópera, do teatro e da dança, o público român- tico da corte imperial costumava as- sistir aos espetáculos dividindo-se em verdadeiras torcidas. "Era uma tradi- ção européia, que vinha das batalhas por este ou aquele castrato em Nápo- les, no início do século 18", diz Giron. "No Brasil, os partidos disputavam pelo sucesso deste ou daquele artista. Isso acontecia como espécie de vaias, apupos, pateadas e até batalhas de pa-

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tacões de cobre em cena aber- ta. Os partidos, com o passar do tempo, passaram a se organizar de acordo com as cores políticas (conservadores versus progres- sistas)", explica o crítico.

As mulheres tiveram papel importante no surgimento da crítica. Tinham tempo suficiente para se ocupar com as particu- laridades das apresentações, que aconteciam uma ou duas vezes por semana. E, como muitas ve- zes não tinham dinheiro sufi- ciente para freqüentar a platéia, liam tudo pelos jornais. O pri- meiro periódico dedicado a elas foi Espelho Diamantino, jornal quinzenal que surgiu também em 1826. Segundo seu editor-em- chefe, anônimo, a influência do público feminino sobre a vida pú- blica vinha se tornando tão gran- de que se fazia necessário publi- car uma revista para que elas se "informassem sobre todos os pro- blemas econômicos, os negócios e também as belas artes". Não demorou para que as publica- ções femininas se proliferassem, com ampla cobertura dos eventos cul- turais da cidade.

As críticas começaram a rarear quan- do a companhia italiana se dissolveu, em 1829, com as mortes do empresário Fernando José de Almeida e do baixo Fabrício Piaccentini. Elisa Barbieri tam- bém retornou à França e, em 1831, com a revolta popular e a abdicação e fuga de D. Pedro I, o Teatro São Pedro foi re- batizado como Constitucional Flumi- nense, tornando-se palco não mais da cena lírica, mas de lutas, conturbação e interferência policial. Sem uma corte e o país governado pela Regência, a ca- pital abdicou das óperas, as quais só vol- taram em 1844, bom tempo depois da maioridade de D. Pedro II.

A volta foi marcada pelo Romantis- mo, em que a crítica cultural se preten- dia bem mais sistematizada e voltada para o debate teórico, com o surgimen- to dos primeiros tratados e dicionários de música. Os primeiros indícios apa- receram em Paris, em 1836, com a Re- vista Nitheroy, em que Francisco de Salles Torres-Homem, Domingos José Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva e Manuel de Araújo Porto-Alegre queriam cultivar o que era "justo, san-

Cultura feminina: mui foram fundamentais no nascimento da crítica

to, belo e útil". Espécie de embrião dos segundos cadernos, Nitheroy se dedi- cava às ciências, às letras e às artes. Ti- nha uma tendência claramente nati- vista, a se perceber pelo lema: "Tudo pelo Brasil e para o Brasil".

Em 1842, Rafael Coelho Machado, crítico de origem portuguesa, fundou o primeiro periódico de partituras, O Ra- malhete das Damas, publicação mensal para canto e piano. Também publicou Dicionário musical, obra de divulgação do conhecimento e instrumento peda- gógico. Machado foi um exemplo de intelectual a fazer da crítica um objeto e constituir um método para levar o co- nhecimento adiante.

A sistematização desses "pensado- res" da música e da cultura, porém, não impediu que a cobertura da ópera, nos anos 1840, retornasse aos partidos e aos textos folhetinescos, agora com no- vos nomes. A cena foi registrada em al- gumas obras literárias, como em O moço loiro, de Joaquim Manuel de Ma- cedo. O primeiro capítulo, "Teatro ita- liano", retrata o ambiente carregado da cidade em agosto de 1844, no dia da apresentação de Anna Bolena, No tea- tro, os dois partidos teatrais se defron-

tavam, a direita versus a esquer- da, de acordo com a posição que seus membros ocupavam na pla- téia: a direita, candianista, contra a ala oposta, delmatrista - respec- tivamente partidários das canto- ras Candiani e Delmastro, estrelas da nova companhia italiana.

Entre os novos nomes do folhetim estavam os de Martins Pena, Gonçalves Dias, José de Alencar e, posteriormente, Ma- chado de Assis. Enquanto Mar- tins Pena revezava suas críticas musicais com romances nos pe- riódicos, Gonçalves Dias parecia dar a suas críticas uma impor- tância que a crítica literária não concedeu posteriormente. Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, encontram-se dois ca- dernos com cópias de 20 críticas suas, feitas em forma de manus- crito, com títulos e datas de pu- blicação bem evidentes.

Já José de Alencar deixou para a história lírica na- cional o primeiro libreto original escrito em portu- guês para a ópera A noite de São João, com música

de Elias Álvares Lobo. A ópera estreou em 14 de dezembro de 1860, mesmo ano de seus romances Cinco minutos e A viuvinha. Machado de Assis foi fo- lhetinista da revista semanal O Espe- lho, de setembro de 1859 a janeiro de 1860, ocupando-se da crônica teatral. Sua preferência se revelou pela drama- turgia, sem descuidar, no entanto, da vertente lírica.

Cada um a seu modo, os folhetinis- tas deixaram a herança da paixão para os críticos do século 20 e 21, de acor- do com Luís Antônio Giron. "Creio que, atualmente, somos tributários da pai- xão e da leviandade do período abor- dado no livro. O jornalismo literário deve muito ao folhetim", diz ele. Porém, aponta, os críticos do século 20 apoia- ram-se muito mais no empirismo po- sitivista que nos libelos românticos. "Em termos de influência direta, a crítica atual é mais positivista do que român- tica. Ela destila impressões, mas con- segue domesticá-las, lançando mão de método científico e de análise." Basta à sociedade de mercado dar à crítica o espaço que merece. •

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I HUMANIDADES

PERSONALIDADE

Paixão e rigor em doses iguais

Assim pode ser definido o trabalho do sociólogo Octavio Ianni, morto no mês passado

Ele começou analisando a questão racial em Floria- nópolis, uma dissertação que, em 1956, lhe deu o tí- tulo de mestre na FFCL da

Universidade de São Paulo, para ter- minar a vida dissecando a dinâmica global capitalista recente. Nessa cami- nhada do micro para o macro, algo nunca mudou: a paixão pela busca da "idéia de um Brasil moderno" e a cer- teza de que se deveria fazer sociologia com a precisão e rigor de um cientista, sem, no entanto, deixar de lado a pre- ocupação em analisar os problemas so- ciais imediatos do país. A mistura de cientista e militante foi a marca de Oc- tavio Ianni, morto no mês passado, em São Paulo, aos 77 anos.

Um dos responsáveis pela sistema- tização da sociologia no país, Ianni, natural de Itu, fez seus estudos na Fa- culdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde obteve o título de mestre com o estudo Raça e mobilidade social em Florianópolis. Ao lado de As meta- morfoses do escravo, o estudo marca o período do interesse de Ianni pelo le- gado da escravidão na formação da sociedade brasileira e de que forma se poderia inserir o recorte racial na análise dos processos de cons- tituição das sociedades. Ianni, com argúcia, percebeu como a sociedade de castas aos poucos se transformou na sociedade

Ianni: rigor científico e militância por um

capitalismo nacional

de classes e de que maneira a raça foi uma arma usada pelas elites nacionais com instrumento de exploração social.

Durante os anos 1960, ao lado de colegas, particou do chamado Semi- nário Marx, da USP, um ponto de in- flexão importante em sua ideologia pessoal e intelectual, levando-o a abra- çar, com vigor, o ideal do tempo sobre a necessidade do engajamento dos in- telectuais nos temas da atualidade. Daí, a sua guinada dos estudos raciais para a problemática do subdesenvolvimento, que gerou A industrialização e desen- volvimento social no Brasil, de 1963, e O Estado e o desenvolvimento econômi-

co no Brasil, de 1964. Ianni não via com olhos esperançosos a formação dos aparelhos de planejamento do Estado brasileiro que, para ele, estavam inti- mamente interligados ao capitalismo e, dessa forma, não seriam a forma de re- solução de problemas nacionais que afligiam o Brasil.

O Estado nacional ganhava um crí- tico severo e implacável. Em especial, o populismo, tema de seu O colapso do populismo no Brasil, de 1968, obra se- minal de avaliação das variadas formas políticas da América Latina, que exibia as mazelas dos modelos de desenvolvi- mento adotados pelos políticos nacio- nais até o golpe militar de 1964.

Os militares entenderam a mensa- gem e, em 1969, Ianni foi aposentado compulsoriamente da USP por causa do AI-5. Mais tarde, voltou a lecionar (e também a pesquisar no Cebrap), sua paixão, na PUC-SP e, depois, na Uni- versidade Estadual de Campinas, onde deu aulas até 15 dias antes de sua mor- te. Há dez anos, descobriu o seu inte-

resse final: a globalização e seus efei- tos sobre os países do Terceiro

Mundo. O professor defendia o retorno a um projeto de

capitalismo nacional, pois o Brasil se transformara, ra- pidamente, numa provín- cia do globalismo. "Todos

jogam com a hipótese de que, se o Brasil des- montar o seu pro- jeto nacional, en- trará no Primeiro Mundo. É um de- sastre", disse. •

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I HUMANIDADES

Por

LITERATURA

livros editados Editora carioca recupera com criatividade obras esquecidas no passado

nunca dantes

Enquanto os editores se acotovelam pa- ra tentar descobrir um novo título, a carioca Anna Paula Martins prefere olhar para o acervo de sua livraria, um sebo no Leblon, no Rio de Janeiro, espe-

cializado em obras raras, para descobrir o que vai editar em seguida. Esse pensar o futuro com olhos no passado dá o mote para o nome tanto da loja de livros como da sua editora, a Dantes, nascida em 1997 e já com 17 títulos em catálogo, muitos deles textos esquecidos no tempo, que ela vem re- velando para uma legião crescente de leitores fiéis. "Aqui as idéias surgem no balcão, no contato com o público e na pesquisa do nosso acervo, com mais de 10 mil livros e revistas", diz Anna.

A editora começou bem com a publicação, pela primeira vez em forma de livro, de um manuscrito esquecido de Lima Barreto, O subterrâneo do morro do castelo, que a editora rastreou na Biblioteca Na- cional, inspirada por uma entrevista de Francisco de Assis Barbosa que citava o texto, escrito em 1905 e levado aos leitores do jornal Correio da Manhã em uma série de artigos. Para manter o espírito folhe- tinesco do original, Anna optou por uma capa com características de pulp fiction, um achado ao mes- mo tempo criativo e também dessacralizador da obra literária. "Livros não foram escritos para ficar parados num pedestal", acredita.

Barreto marcou a estréia da coleção Babel, ape- lido borgiano que resgata livros e autores de estilo erótico, sensacionalista ou underground. Como, por exemplo, Fogo nas entranhas, do cineasta espa- nhol Pedro Almodóvar, escrito em 1981, com uma tiragem irrisória de mil exemplares. O romance, que reúne personagens como Diana, a indômita, Lupe, paz e amor, Mara, a cínica, entre outras, hoje é um hit da editora, com mais de 18 mil exempla- res vendidos.

"A angústia de ter um livro antigo sem vê-lo editado novamente é grande, mas, antes de esco- lher o que editar, sempre penso se aquele livro tem ainda algo a falar para o tempo presente. Se esse diálogo não existe, o texto não interessa", observa Anna Paula.

O trabalho de edição na Dantes é, assim, uma questão de paixão a ser consumada. Não existe um grupo de pessoas em tempo integral na editora e, para cada livro, Anna Paula chama um grupo de profissionais para cuidar dos vários aspectos da criação de um novo livro, com um cuidado todo especial na diagramação gráfica de cada novo lan- çamento. "Nem sempre as pessoas entendem o que a gente faz, mas a Dantes tem uma história e não queremos entrar no jogo do mercado e perder esse poder de experimentar", afirma. "Acho o mer- cado pouco criativo e muitos editores acreditam que a solução para vencer o mercado estreito é achar a qualquer custo um best-seller, comprando-o nu- ma feira internacional de livros", avalia. "Isso faz da edição algo parecido com um jogo de pôquer. Se fossem mais ousados, conseguiriam resultados mais ricos e interessantes para eles e para os leitores: to- dos sairiam ganhando."

Novela escandalosa - E interesse é o que não falta na escolha de títulos da Dantes. Como, por exem- plo, A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas (pseudônimo de Ariosto Palombo), uma novela es- candalosa escrita em 1934 cujos paralelos com os textos de Nelson Rodrigues encantam leitores e crí- ticos. Afinal, já no primeiro capítulo, a heroína, de 18 anos, é deflorada com um aparato mecânico e o resto do romance não é menos picante. Ao lado da pobre Angélica circulam tipos como o dr. Eu- sébio Cortes, "diretor do jornal A Honra Nacional, um barril de vômito social", ou Sebastião, dono de

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um "órgão genésico cavalarmente de- senvolvido".

Igualmente polêmico é Memórias de um ex-morfinómano, do Repórter X, em verdade, o jornalista português Rei- naldo Ferreira, um relato em primeira pessoa sobre o seu mergulho no vício, ou, em suas palavras, na sua intoxica- ção por alcalóides. Nem tudo, porém, são escândalos. Em seis problemas para don Isidro Parodi, temos um romance policial escrito a duas mãos e um pseu- dônimo (H. Bustos Domecq) por nin- guém menos que Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, escrito em 1942 e nunca antes traduzido no Brasil. Igual- mente charmoso é Praia de Ipanema, de Théo Filho, com prefácio de Ruy Castro, uma história romanceada, editada em 1927, sobre o projeto de se transformar a praia carioca numa Miami, plena de cassinos e hotéis. Um detalhe: Anna pre- cisou colocar um anúncio nos jornais para tentar encontrar descendentes de Théo Filho, pois o livro havia efetiva- mente se perdido no tempo e no sebo.

Como não se vive só de passado, a Dantes também possui uma coleção, chamada Sebastião, que passa o Rio atual em revista, da Zona Sul a Oeste, com textos de Nei Lopes, DJ Malbo- rough, Regina Case, entre outros, em 15 livros que pretendem dar conta das várias diferenças regionais da cidade maravilhosa. Enquanto isso, a Babel não pára: vem aí Um noivo a duas noi- vas, de Joaquim Manuel de Macedo, e Mistérios, reunião de contos policiais escritos alternadamente para um jor- nal por Coelho Neto e Viriato Correia, entre outros. A cada dia um escritor acrescentava sua palavra, remexia à von- tade na história criada pelo colega na edição anterior. O passado que nos di- verte hoje: o olhar para dantes nos traz o prazer do presente. •

X

Desenho de Reinaldo Ferreira, autor

de Memórias de um ex-morfinómano

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RESENHA

Um Bocage à flor do texto Biografia traz à luz o poeta português, incluindo a passagem pelo Brasil

MARISA LAJOLO

Biografias estão na moda. Quem foi à 18a Bienal do Livro em São Paulo tinha

escolha farta: livrões e livrinhos, biografados daqui e dali. De Ed- ward Said a Adoniran Barbosa, o gênero se oferecia para todos os gostos e para todos os bolsos.

Não deixa de ser curioso que esse interesse coincida com a tão apregoada morte do sujei- to. Será que - morto o sujeito - a biografia acena com sua ressureição?

Pode bem ser: ao contrário da ficção, no caso das personagens que povoam uma biografia, qualquer seme- lhança não é mera coincidência. Neste gênero, o pacto au- tor/leitor endossa a promessa de que a personagem de papel e tinta seja o duplo de uma figura de carne e osso. Mas também pode ser que, de tanto girar em torno de si mesma, a ficção contemporânea mais prezada pela crí- tica tenha enfastiado o leitor: consumidor habitual de aventuras, o respeitável público busca, na biografia, aqui- lo que a literatura lhe tem negado.

É no horizonte desse intrigante (e bem-vindo) flores- cimento do gênero biográfico,que Adelto Gonçalves pu- blica Bocage - O perfil perdido. Fruto de pesquisa univer- sitária, o texto traz esta marca de origem à flor da pele.

No caso, à flor do texto. O caso é que há vários Bocages: a começar pelo muito

conhecido do anedotário popular, pornográfico e grossei- rão. E tantos outros, como o êmulo de Camões, que segue as pegadas do mestre ao redor do mundo, ou ainda o sócio de agremiações poéticas convencionais e conservadoras.

Mas, qualquer que seja o Bocage de cada um de nós, ele convive com todos os outros na pessoa física de Ma- nuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), cidadão por- tuguês que viveu numa época em que seu país se atolava em contradições. O Portugal setecentista quase sempre fi- cava na contramão da modernização européia, ainda que às vezes partilhasse efemeramente da vertente iluminista. Medidas legais e episódios políticos evocados no livro ilus- tram o tímido vai-e-vem da modernização portuguesa, cujos retrocessos acabaram levando o poeta para a cadeia.

Com muita competência, Adelto Gonçalves mergu- lha seu leitor nesse clima de época, cuja reconstituição é, com certeza, verossímil. E da verossimilhança a enverga- dura de sua pesquisa garante sua veracidade. Contribui para esse efeito a farta bibliografia que salpica as páginas do livro com abundantes rodapés.

Bocage - 0 perfil perdido

Adelto Gonçalves

Caminho (editora de Portugal)

380 páginas/€ 29,93

Na tentativa de comprovar o per- fil prometido de seu biografado, o autor não poupa o leitor de deta- lhes, citações, referências cruzadas, digressões eruditas, polêmicas com outros pesquisadores. Mas o caso é que nem sempre o leitor aprecia este esforço. Entre tese e livro, en- tre o fim da pesquisa e a publicação dos resultados, abre-se um leque de opções sobre o qual o pesquisador precisa meditar profundamente. Pois nem tudo que ele garimpou

merece ser publicado, sobretudo quando o produto final da pesquisa é uma biografia cuja publicação comercial tem um olho no grande público. Num gênero narrativo como a biografia, o vai-e-vem exagerado entre fontes re- presenta digressões nem sempre bem-vindas. Num de seus belos sonetos, Olavo Bilac aconselha o jovem poeta que Não se mostre na fábrica o suplício/do mestre. E natu- ral, o efeito agradejsem lembrar os andaimes do edifício.

Talvez o conselho sirva também para o trabalho do pesquisador.

Não é, no entanto, apenas na formatação de sua bio- grafia que o livro de Adelto Gonçalves pode desencon- trar-se de um público menos cioso de minúcias. Ele tam- bém pode tropeçar em leitores que esperam uma relação menos ingênua e linear entre vida e obra de um poeta.

A perspectiva da qual esta biografia é escrita toma a obra de Bocage (e de alguns de seus contemporâneos) co- mo fiança biográfica e vice-versa. Por um lado, esta inter- pretação poderia sustentar-se por se tratar de um poeta (pré-romântico) para quem a poesia é (ainda) um gênero sujeito a uma escrita fortemente normatizada, e que não poucas vezes serve de capital social e moeda de prestígio. Mas não é por aí que envereda a pesquisa de que resulta este Bocage - O perfil perdido.

O caminho escolhido pelo pesquisador é distinto: o aporte de algumas informações novas, a retificação de outras e, para o leitor brasileiro, uma atração extra: de- talhes da passagem do poeta pelo Rio de Janeiro e a pre- sença de um antepassado de Bocage nas forças portu- guesas que lutaram contra os franceses no começo do século 18, quando estes invadiram a então colônia por- tuguesa que éramos.

MARISA LAJOLO é professora de Teoria Literária na Unicamp, onde coordena o projeto Memória de Leitura http://www.uni- camp. brliellmemória

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LlUROS

Flora fanerogâmica do Estado de São Paulo - volume 3 Maria das Graças Wanderley, George Shepherd, Ana Giulietti eTherezinha SanfAnna Melhem RiMa Editora/FAPESP 398 páginas / R$ 70,00

Lançado o terceiro volume da Flora fanerogâmica, que reúne 38 artigos de autores nacionais e internacionais, com detalhes da taxonomia vegetal do Estado de São Paulo em minúcias. Além do uso e distribuição geográfica, o novo volume traz descrições, muitas ilustrações e comentários sobre os vários táxons.

RiMa Editora: (16) 272-5269 www.rimaeditora.com.br

0 imaginário e as guerras da imprensa Orivaldo Leme Biagi Papel Virtual Editora 308 páginas / R$ 40,82

O IMAGINÁRIO E AS GUERRAS DA IMPRENSA

Fruto de pesquisa financiada pela FAPESP, este é um interesssante estudo sobre as coberturas jornalísticas realizadas pela imprensa

brasileira da Guerra da Coréia e da Guerra do Vietnã. No entanto, mais do que um estudo sobre os conflitos, a tese mostra de que forma a mídia da época se apropriou dos conflitos para defender seus pontos de vista, ligados à Guerra Fria. Assim, o que surge não é uma história do real, mas de como a imprensa pode recriar essa realidade para fins diversos.

Papel Virtual Editora: (21) 3329-2886 www.papelvirtual.com.br ou [email protected]

A vida quotidiana na Roma antiga Pedro Paulo Funari Annablume Editora 146 páginas / R$ 25,00

Resultado de um longo trabalho, que rendeu várias teses com apoio da FAPESP, essa Vida quotidiana na Roma antiga mostra a capital

do mundo antigo em toda a sua intimidade. Funari não se contenta com as informações de praxe, mas dá todo um sabor especial ao trazer à luz a vida romana das pichações, dos gladiadores, das campanhas eleitorais, dos bairros e da nobreza.

Annablume Editora (11) 3812-6764/3031-9727 www.annablume.com.br

Bartolomé de Las Casas José Alves de Freitas Neto Annablume Editora 234 páginas / R$ 33,00

Em meio ao entusiasmo sanguinário da conquista da América houve uma voz dissonante no século 16: o bispo espanhol Bartolomé de Las Casas, autor de História das índias e

da Brevíssima relação da destruição das índias, relatos notáveis de como se deu a trágica conquista do Novo Mundo. O autor, doutor em História Social, disseca o discurso lascasista usando elementos que engendraram, em seu tempo, esse texto de denúncia, pleno de ideais da tradição cristã. Um retrato notável cujas raízes ainda permeiam a nossa visão da história.

Annablume Editora (11) 3812-6764 / 3031-9727 www.annablume.com.br

Arte rupreste na Amazônia - Pará Edithe da Silva Pereira Editora Unesp 248 páginas / R$ 160,00

Este lançamento é obra de referência para pesquisas

arqueológicas, mas também serve a leigos que se interessam por pinturas e gravuras rupestres ou pelo mundo indígena. O livro traz figuras gravadas por povos primitivos que aparecem nas margens rochosas de rios e nos abrigos das serras da região amazônica, tudo ilustrado com desenhos, fotos, gráficos e mapas.

Editora Unesp: (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br ou [email protected]

Dia seguinte e outros dias Oswald de Andrade Filho Codex 312 páginas / R$ 30,00

Para quem se encantou com o Oswald de Andrade da minissérie da TV, essa é uma boa chance de descobrir a criatividade igualmente irrequieta do primeiro filho do poeta,

Oswald de Andrade Filho, ou Nonê. Ele acompanhou de perto as andanças do pai e sabe como poucos o que se passava na cabeça do modernista, sem deixar de nos mostrar, ao lado da amizade entre os dois, os pontos fracos de Oswald. Nonê deixou vários cadernos com essas lembranças, resgatados nos anos 1990 por seus filhos.

Editora Códex: (11) 3061-1446 www.editoracodex.com.br

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