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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação
U
Antônio Jorge Pantoja Gualberto
Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia
Belém 2009
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Dados Internacionais de catalogação-na-publicação (CIP), Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA, Belém- PA.
Gualberto, Antônio Jorge Pantoja
Embarcações, educação e saberes culturais em um estaleiro naval da Amazônia / Antônio Jorge Pantoja Gualberto; Orientadora Denise Simões Rodrigues. Belém: 2009.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém,
2009. 1. Trabalhadores – Educação. 2. Cultura e Educação. 3. Estaleiros. I Título
CDD: 21 ed. 370.1931
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Antônio Jorge Pantoja Gualberto
Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia
Texto de Dissertação apresentado à coordenação do Curso de Mestrado em Educação, Linha de pesquisa: Saberes Culturais e Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará. Orientadora: Profª. Drª. Denise Simões Rodrigues.
Belém 2009
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Antônio Jorge Pantoja Gualberto Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval
da Amazônia
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado do Pará, linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia.
Data de aprovação: _____ / _____ /_______ Banca Examinadora ____________________________________ - Orientadora Profª. Dra. Denise Simões Rodrigues Dra. em Sociologia Universidade do Estado do Pará ____________________________________ - Examinador Externo Prof. Dr. Aldrin Moura Figueiredo Dr. em História Universidade Federal do Pará ____________________________________ - Examinadora Interna Profª. Dra. Josebel Akel Fares Dra. em Comunicação e Semiótica Universidade do Estado do Pará ______________________________________________ - Examinadora Suplente
Profª. Dra. Nazaré Cristina Carvalho Dra. em Educação Física e Cultura Universidade do Estado do Pará
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A Edna Lemos, minha querida esposa e companheira de muitas lutas; aos filhos Beatriz Samara e Antônio Gabriel, que apesar de pequenos compreenderam e ajudaram com seus afetos nos momentos mais angustiantes desta caminhada.
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AGRADECIMENTOS
A Deus por me conceder sabedoria nesta caminhada.
A minha orientadora, professora doutora Denise Simões, por sua humanidade, carinho, sabedoria e competência, qualidades estas que me auxiliaram nesta caminhada.
Aos meus colegas de curso, Socorro Lima; Giza Bandeira; Viviane Otonelli; Fernando Otávio e Roseane Rabelo.
A todas as pessoas que mantive contato na Cidade de Vigia de Nazaré, sobretudo dos mestres carpinteiros Zuzinha, Joaquim, Dorival, Jacy, Ubiracy, Bolero e Albo, pois eles deram razão a esta pesquisa.
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Sem qualquer dúvida, as embarcações
utilizadas pela população de pescadores nas
regiões da Amazônia, se não são fabricadas
nas comunidades ou vilas onde residem os
componentes desse segmento social, o são em
outras próximas, basicamente com recursos
regionais, isto é, com madeiras nativas da
Amazônia, e o que é mais importante ainda,
com o saber e o savoir-faire de seus
construtores, herdados de seus antepassados.
Lourdes Gonçalves Furtado
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RESUMO
GUALBERTO, Antônio Jorge Pantoja. Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia. 149 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009. A presente pesquisa intitulada “Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia” está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado), da Universidade do Estado do Pará (UEPA), na Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Parte do seguinte problema: como se desenvolve a prática educativa em um estaleiro naval da Amazônia e como ocorre o processo de construção e transmissão dos saberes culturais que perpassam a construção de embarcações? Tem como objetivo geral analisar as práticas educativas desenvolvidas em um estaleiro e o processo de construção e transmissão dos saberes culturais. Trata-se de uma pesquisa de campo, dentro de uma abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, e também, documental e bibliográfica. O lócus da pesquisa é o Estaleiro Esperança, localizado na Cidade de Vigia de Nazaré, (Pará) cuja história e cultura são marcadas pela vocação naval. Os procedimentos de produção de dados se constituíram a partir de levantamento bibliográfico e documental; observação das práticas educativas realizadas no Estaleiro; entrevistas semi-estruturadas com os mestres artesãos e aprendizes. Teoricamente, a pesquisa situa-se no campo da educação em ambientes não escolares e estrutura-se a partir de categorias como educação (BRANDÃO, 2002, 2007; OLIVEIRA, 2007; FREIRE, 2001), e saberes (CHARLOT, 2007). Palavras-chave: Educação. Embarcações. Saberes Culturais. Educação não Escolar.
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RÉSUMÉ
GUALBERTO, António Jorge Pantoja. Bateaux, Éducation et Savoirs Culturels dans un Chantier naval Naval de l'Amazonie. 149 f. Travail de Dissertation (Diplôme d'études approfondies dans Éducation) - Université de l'État du Pará, de Belém, de 2009.
Présente recherche intitulée « Éducation et Savoirs Culturels dans un Chantier naval Naval de l'Amazonie » est attachée au Programme de Pós-Graduação dans Éducation (Diplôme d'études approfondies), de l'Université de l'État du Pará (UEPA), dans la Ligne de Recherche Savoirs Culturels et Éducation dans l'Amazonie. Partie du suivant problème : comment se développe la pratique éducative dans un chantier naval naval de l'Amazonie et comme il se produit le processus de construction et la transmission des savoirs culturels que perpassam la construction de bateaux ? Il a comme objectif général analyser les pratiques éducatives développées dans un chantier naval et le processus de construction et la transmission des savoirs culturels. Il s'agit d'une recherche de champ, à l'intérieur d'un abordage qualitatif, du type étude de cas. La lócus de la recherche est le Chantier naval Espoir, localisé dans la Ville de Garde de Nazaré (Pará), dont l'histoire et la culture sont marquées par la vocation navale. Les procédures de production de données se sont constituées à partir d'enquête bibliographique ; commentaire des pratiques éducatives réalisées dans le Chantier naval ; entrevues semi-estruturadas avec les maîtres artisans et apprentis. Théoriquement, la recherche se place dans le champ de l'éducation dans des environnements non scolaires et structure à partir de catégories je mange de l'éducation (BRANDÃO, 2002, 2007 ; OLIVEIRA, 2007; FREIRE, 2001), savoirs (CHARLOT, 2007).
Mots-clés: Bateaux. Savoirs Culturels. Éducation non Escolaire.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: Imagem de satélite de Vigia. ............................................................... 33
Ilustração 2: Diagrama da localização geográfica de Vigia. .................................... 33
Ilustração 3: Mapa rodo-fluvial de Vigia. .................................................................. 34
Ilustração 4: Mapa cartográfico econômico da Zona do Salgado. ........................... 37
Ilustração 5: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins.
........................................................................................................... 41
Ilustração 6: Fotografia da Capela Nosso Senhor dos Passos. .............................. 43
Ilustração 7: Fotografia do Muro frontal de Vigia na orla do Rio Guajará-Mirim ...... 43
Ilustração 8: Fotos do Msc Albo de boné azul e seus ajudantes nas margens do rio
Guajará-Mirim ..................................................................................... 49
Ilustração 9: Imagem da Ribeira das Naus em Lisboa ............................................ 53
Ilustração 10: Mapa de Alberto Cantino - Planisfério de 1502. .................................. 54
Ilustração 11: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins
........................................................................................................... 59
Ilustração 12: Imagem de satélite do município de Vigia de Nazaré. ........................ 61
Ilustração 13: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Tocantins ................... 63
Ilustração 14: Fotografia de uma ubá, registrada no Museu das Embarcações
localizado no Mangal das Garças – Belém do Pará ........................... 74
Ilustração 15: Imagem da confecção de uma canoa de um só tronco. ..................... 74
Ilustração 16: Imagem da construção de uma canoa de tábua ................................. 75
Ilustração 17: Registro fotográfico do corte de uma árvore para a construção de uma
canoa .................................................................................................. 76
Ilustração 18: Registro fotográfico de uma ubá construída e colocada em uso. ....... 77
Ilustração 19: Fotografia de uma réplica em miniatura de uma Vigilenga, registrada
no Museu das Embarcações localizadas no Mangal das Garças –
Belém do Pará. ................................................................................... 82
Ilustração 20: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. .................................... 87
Ilustração 21: Fotografia registrada na parte interior de um barco. ........................... 88
Ilustração 22: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. .................................... 89
Ilustração 23: Fotografia registrando o uso do sargento. .......................................... 97
Ilustração 24: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação...... 98
Ilustração 25: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação...... 98
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Ilustração 26: Fotografia do mestre Dorival encaixando uma peça numa em um
embarcação. ..................................................................................... 100
Ilustração 27: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Jacy. .................................. 114
Ilustração 28: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Juracy. ............................... 116
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
PROBLEMA E OBJETIVOS DA PESQUISA ............................................................. 15
PERSPECTIVAS TEÓRICAS ADOTADA .................................................................. 19
METODOLOGIA DA PESQUISA ............................................................................... 25
SEÇÃO I - EMBARCAÇÃO E PESCA: O PRESENTE E O PASSADO
IMBRICADOS NA CULTURA VIGIENSE ................................................................. 32
1.1 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ ...................................... 33
1.2 ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DE VIGIA DE NAZARÉ .............................. 42
1.2.1 Embarcações na Europa e no Brasil: A conquista e a colonização da
Amazônia ................................................................................................................. 50
1.2.2 A Cobiça de uma região ................................................................................. 55
1.2.3 Localização estratégica do aldeamento Uruitá na vigilância da capital do
Grâo-Pará ................................................................................................................. 60
SEÇÃO II - EMBARCAÇÃO A SERVIÇO DA EXPANSÃO COMERCIAL, POLÍTICA
E RELIGIOSA PORTUGUESA NA AMAZÔNIA: DAS UBÁ, IGARITÉ ÀS
VIGILENGAS ............................................................................................................ 70
2.1 A CONSTRUÇÃO DE UMA TRADIÇÃO AMAZÔNICA: AS VIGILENGAS .......... 71
SEÇÃO III - ESTALEIRO DE CARPINTARIA NAVAL: UM LOCAL DE
CIRCULAÇÃO DE SABERES .................................................................................. 84
3.1. ESTALEIRO ESPERANÇA: LICEU DE ARTES E DE OFÍCIOS DE
CARPINTARIA NAVAL EM VIGIA .............................................................................. 85
3.2 A CONSTRUÇÃO DE UM OFÍCIO: A DESCOBERTA DO TALENTO NATURAL
PARA A CARPINTARIA ............................................................................................. 91
3.3 O RECONHECIMENTO DE UM MESTRE ALÉM DE POMPÉ ......................... 100
3.4 O AMADURECIMENTO PROFISSIONAL DO MESTRE DORIVAL................... 106
3.5 PRÁTICAS EDUCATIVAS, TRANSMISSÃO DE SABERES E RELAÇÕES DE
TRABALHO: “SE PASSAR OU SE FALTAR ELA TEM DIFERENÇA, TUDO NESTE
MUNDO TEM UMA MEDIDA” ................................................................................. 110
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 120
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 123
GLOSSÁRIO ........................................................................................................... 127
APÊNDICES ........................................................................................................... 128
ANEXOS ................................................................................................................. 143
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INTRODUÇÃO
O interesse pelo estudo das embarcações é de longo tempo e prossegue até
os dias de hoje. Da infância guardo muitas recordações, principalmente daquilo que
expressa à cultura das pessoas que vivem nesta imensa região chamada Amazônia,
onde, geograficamente, é considerada a maior bacia hidrográfica do planeta,
composta por muitos rios, furos e igarapés.
A memória leva-me ao Círio de Nazaré em Belém, não a recordação de adulto
- a procissão per si - mas a de criança: o parque de diversão, os brinquedos de miriti,
entre os quais a cobra e o barco, que ainda me encantam. Quando ganhava esses
presentes minha imaginação dava vida aos mesmos dentro de uma pequena bacia
de madeira cheia de água. Viver nessa região é, portanto, sentir o que os versos do
compositor paraense Ruy Barata nos falam quando retrata a vida do amazônida e
sua relação com os rios: Esse rio é minha rua, minha rua mururé, piso no meio da
rua, deito no chão da maré.
Nesse ambiente de tantos rios, furos e igarapés que são percorridos todos os
dias pelos ribeirinhos como “ruas e avenidas”, num frenesi constante de barcos que
circulam a todo instante, o transporte fluvial revela-se de grande importância. Mais
ainda quando pensamos que, por essas mesmas vias aquosas, passam pessoas e
cargas, sonhos e desejos, imaginação e esperança dos moradores que utilizam
essas “ruas” em seu ir e vir, seja a passeio, seja a trabalho ou outros motivos.
Até os anos de 1980 cruzei muitas vezes essas “ruas” e “avenidas” dentro de
uma embarcação. Fosse apenas para meu entretenimento, seguir em direção a uma
taberna (pequeno comércio) na Ilha do Cumbú1, fosse para participar de festas
carnavalescas em Abaetetuba, Cametá, ou na da Ilha do Marajó onde, durante o
percurso entre as cidades de Soure e Salvaterra, podia-se ouvir um bom carimbó.
Um dia, em viagem pelo rio Tocantins com destino à cidade de Cametá,
sentado ao lado do comandante da embarcação, pude acompanhar de perto os
procedimentos básicos para a condução da mesma. O comandante, com detalhes,
professava seus conhecimentos acerca da navegação marítima e enfatizava com
veemência que os mesmos tinham sido adquiridos na “escola da vida” e não por
meio da “escola do homem” (a universidade). Com orgulho, mostrava-se conhecedor
1 Ilha fluvial que faz parte da cidade de Belém.
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dos rios da Amazônia e narrava com riqueza de detalhes uma de suas odisséias nas
águas turbulentas do Rio Tocantins, num trecho entre Marabá e Itupiranga, ao
atravessar o Lourenção2.
Para o Comandante Oscar da Costa e Silva, o Lourenção era o maior desafio
que a natureza pôs nas águas do Tocantins e o segredo do sucesso para uma
travessia segura era possuir uma embarcação forte, saber fazer a leitura do ritmo
das águas e mirar a pedra chamada de paredão, para desviar-se, logo em seguida,
desse obstáculo.
Coudreau (1980) em sua obra “Viagem a Itaboca e ao Itacaiúnas”, faz
comentários sobre as dificuldades dessa região dizendo:
Prosseguimos rumo à grande queda-d’água. [...] chegamos defronte a uma barragem de rochedos compactos que atravessa todo o rio, de leste para oeste. Essa espécie de muralha formando uma barragem valeu à cachoeira o nome que lhe demos de CACHOEIRA DO PAREDÃO. (COUDREAU, 1980, p. 69)
Atribuo a essas reminiscências da infância o gosto pelas embarcações e
pelos saberes que as envolvem. Na idade adulta, o contato bem de perto com um
estaleiro naval reacendeu meu interesse pelo tema.
Em 2000, atuando como professor de História na Escola Salesiano Nossa
Senhora do Carmo (Belém, PA), houve a oportunidade de visitar, com um grupo de
alunos, um estaleiro naval na cidade de Abaetetuba, município paraense conhecido
como grande produtor de barcos. Nesse local, nos deparamos com alguns mestres
carpinteiros e diversos tipos de embarcações, a maioria para serem reformadas e
uma na fase final de construção. Tanto eu quanto os alunos ficamos instigados em
querer saber sobre o trabalho desses artífices. A pergunta básica era: como se fazia
um barco e quais dificuldades existiam na profissão?
As respostas foram variadas, dependendo, por exemplo, do fim a que se
destinava a embarcação, se era para passageiro, carga ou para a pesca. Dependia,
também, da capacidade, do peso, e do comprimento do barco. Concluímos que as
respostas não eram tão simples como pensávamos, pois, construir uma embarcação
implicava em conhecimentos específicos ligados à geometria, à matemática, à física,
à química, enfim, conhecimentos diversos vivenciados no cotidiano desses mestres
carpinteiros, de acordo com o tipo de embarcação encomendada.
2 Cachoeira no rio Tocantins, próxima ao município de Itupiranga.
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Foi percebida, ainda que de modo informal, a complexidade dos
procedimentos utilizados na construção de um barco e a importância do ofício dos
mestres carpinteiros para a região. Explicando alguns procedimentos dessa
construção, os mestres enalteciam-se a si mesmos como os executores das obras
que ali se encontravam, e por serem os guardiões desses conhecimentos os quais,
com dificuldades, de geração a geração, chegaram até os dias de hoje. Dentre as
dificuldades, os carpinteiros ressaltaram a preocupação quanto à escassez de
encomendas de barcos que diminuem a cada ano, e a falta de aprendizes
interessados em aprender esse ofício.
Essas preocupações foram, posteriormente, confirmadas a partir do estudo de
Lucena (2002, p. 61) que, investigando o uso da etnomatemática na construção de
barcos, registrou a fala de um carpinteiro de Abaetetuba dizendo: “É uma pena que
nessa região ninguém mais queira aprender a fazer barcos”.
Em 2006, de passagem pelo porto de Santarém, foi observado o vai e vem
dos barcos e os detalhes que diferenciavam cada embarcação. Foi inevitável a
comparação das embarcações da Região Tapajônica (Santarém) com as da Região
do Nordeste do Pará (Abaetetuba, Vigia), e de Itupiranga no Sudeste paraense.
Desse modo, constatou-se a existência de uma diversidade de tipos de
embarcações e suas variadas especificidades de estilo e design, pois o ritmo das
águas de cada região da Amazônia apresenta peculiaridades (rios com cachoeiras,
rios próximos ao mar, baias, igarapés), que requerem determinados modelos navais.
Mas restaram algumas perguntas: Se a maioria dos carpinteiros fazia barcos
sem ter frequentado a “escola dos homens”, como foi que adquiriam todos os
conhecimentos necessários à construção de uma embarcação? Como repassavam
esses saberes para as gerações seguintes? E a partir dessas interrogações foi
construída uma possibilidade de obter tais respostas, foi então que surgiu esta
pesquisa que seria norteada pelas seguintes indagações: Que saberes emergem
das práticas cotidianas em um estaleiro naval? Quais os procedimentos utilizados
para a transmissão dos saberes culturais que envolvem as embarcações? Como
esses saberes foram construídos historicamente?
Com a formação de historiador buscou-se leituras de diversas fontes
históricas. A participação em eventos acadêmicos acerca das ações políticas e
religiosas lusitanas no processo de colonização da Amazônia, promovidos pelo
Departamento de História da Universidade Federal do Pará em parceria com o
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Arquivo Público do Pará, subsidiou a pesquisa. E neste último procurou-se a
localização de fontes relativas à história da construção de embarcações na
Amazônia.
A pesquisa acerca da expansão marítima européia no século XVI registra que
os lusitanos, ao se estabelecerem em núcleos de povoamento na região Nordeste
do Pará, ergueram bases para a vigilância dos caminhos que levariam à foz do Rio
Amazonas. A Igreja Católica, inicialmente por meio dos padres jesuítas e dos
capuchos, fundou aldeias missionárias que tinham, dentre seus objetivos, a
catequização dos indígenas habitantes da região (CRUZ, 1973).
O contato entre europeus e indígenas gerou trocas de conhecimentos acerca
dos costumes locais, da fauna e flora amazônica, sobretudo, no que concerne ao
uso da madeira para a construção de embarcações, já que era prática comum dos
nativos a utilização de canoas nos rios e igarapés que entrecortam a região. Tal fato
influenciou os portugueses que, “utilizando-se dos conhecimentos indígenas”
(RODRIGUES, 2000, p.94), passaram a construir pequenas embarcações para o
trabalho de reconhecimento das áreas não desbravadas, como também para a sua
ação catequética.
Os conhecimentos gerados a partir da fusão cultural ocorrida entre
portugueses e, em especial, os índios tupinambá, transformaram o barco em
símbolo de uma cultura miscigenada nesses séculos. E o resultado desse contato
vive-se nos estaleiros ou barracões, onde a despeito das dificuldades que vêm
atravessando ao longo do tempo, sobrevivem na atualidade como espaços
privilegiados onde são fabricados os barcos e canoas da Amazônia.
É dentro desses espaços que o saber fazer de uma embarcação é transmitido
de geração a geração a partir de narrativas orais que traduzem conhecimentos
ancestrais. Como locais de circulação de saberes, os estaleiros assumem, portanto,
a função de uma escola em que os mestres repassam aos ajudantes e aprendizes
os saberes acumulados historicamente. É, exatamente, para a educação que
acontece nos estaleiros ou barracões que se volta esta pesquisa, em especial para a
compreensão dos saberes culturais que perpassam a fabricação de embarcações e
os processos de transmissão desses saberes entre mestres e aprendizes.
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PROBLEMA E OBJETIVOS DA PESQUISA
Ao se adentrar em um estaleiro naval na cidade de Abaetetuba e se conhecer
um pouco do cotidiano vivido pelos carpinteiros, observa-se nos discursos dos
mestres a responsabilidade que se têm em transmitir os saberes adquiridos das
gerações passadas, assim como também as dificuldades de ordem econômica que
enfrentam para manter a atividade, entre estas a falta de encomenda de barcos.
Além disso, foi ressaltada, também, a carência de aprendizes interessados no ofício
de fazer barcos. A fala desses carpinteiros aponta os saberes da carpintaria naval se
restringindo cada vez mais à geração mais velha, que parece temer a perda dessa
tradição frente ao processo da industrialização naval.
O historiador Hobsbawam (1995) ao prefaciar a obra “Ideologia Alemã” de
Karl Marx já apontava para esses aspectos do capitalismo global, que ao adentrar
em setores tradicionais de produção, destrói as bases comunitárias produtivas,
quando diz: “O desenvolvimento definitivo do capitalismo exige, portanto, o mercado
mundial”.
O Brasil, como país integrante da atual ordem capitalista, se insere nas
previsões de Karl Marx. Quando os militares chegam ao poder em 1964
implementam uma política que garante as bases de uma economia de mercado, e
conseguem atrair investimentos estrangeiros para diversos setores da economia
nacional, à exemplo, na Amazônia, dos Grandes Projetos.
A política econômica do Estado brasileiro, a partir da década de 1970, foi
conduzida visando à inserção do Brasil no capitalismo mundial. Esse processo foi
consolidado com a abertura de mercado, na década de 1990, na gestão do então
presidente da república Fernando Collor de Melo, que abriu precedentes para a
entrada de empresas e do capital internacional em diversos setores da economia,
entre eles, a da pesca e a da construção naval.
No caso da Amazônia, essa mundialização tomou corpo a partir dos “Grandes
Projetos” implantados na década de 70 do século vinte pelos governos militares
apoiados pelo capital internacional.
Os investimentos nacionais e internacionais aplicados nos Grandes Projetos
como: a construção da Rodovia Mário Andreazza e estradas vicinais; a implantação
das Indústrias Jarí e Albrás; a construção da Barragem de Tucuruí, entre outras,
propiciaram mudanças na cultura amazônica.
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Esses projetos, além de abrirem a Amazônia à mundialização econômica,
trouxeram consigo novas tecnologias que acarretaram alterações significativas no
campo sócio-cultural dos amazônidas. Como exemplo, a construção da Barragem da
Hidrelétrica de Tucuruí, no final da década de 1970, que inviabilizou uma grande
porcentagem do transporte de passageiros via embarcações no trecho entre o Sul
do Pará e a capital Belém, por causa da barragem erguida no Rio Tocantins.
Em entrevista feita, em julho de 2008, com o Mestre Enoque (um dos poucos
carpinteiros navais da cidade de Itupiranga), ele enfatiza a diminuição da atividade
de construção de embarcações, sobretudo as de passageiros. Em sua fala
demonstra essa preocupação: “[...] de 1980 prá cá não aparece encomenda de
barco grande”.
Além da barragem de Tucuruí, as estradas construídas a partir dos Grandes
Projetos serviram de concorrência à navegação no que tange ao transporte de
passageiros e cargas, de modo que a construção de barcos foi drasticamente
reduzida na região do Sul do Pará.
Na região do nordeste paraense, onde se situa a cidade de Vigia, os impactos
atingiram também a construção de embarcações de atividades pesqueiras, para
Torres (2004):
As últimas três décadas também são apontadas como intensas transformações na atividade pesqueira tanto no mundo como no Brasil. No estado do Pará essa ação desenvolvimentista no setor pesqueiro teve um impacto enorme sobre as áreas tradicionais de pesca, principalmente por estimular o desenvolvimento de uma frota industrial voltada para a exportação internacional (TORRES, 2004, p. 93).
Nesse sentido, estando a Amazônia inserida na lógica do mundo globalizado,
a comunidade dos carpinteiros não passou incólume a esse processo, pois o
desenvolvimento econômico trouxe mudanças significativas nos hábitos locais. Tais
mudanças atingiram o setor da pesca e concomitantemente os estaleiros
estabelecidos na região do Salgado.
Torres (2004) afirma que:
Os pequenos barcos utilizados para a pesca na região não permitiram levar o pescado para mercados consumidores mais distantes, em função do produto ser perecível, também a estocagem de peixes dentro das embarcações era limitada (TORRES, 2004, p. 95).
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Os estaleiros dessa região, além de perderem encomendas devido à
concorrência com as grandes empresas construtoras de barcos de ferro, sofreram
também a concorrência com o transporte rodoviário, pois “a expansão do sistema
rodoviário que ocorre na década de 50, vai se constituir em outra opção para o
transporte do pescado, sobretudo no litoral paraense” (Ibidem).
Para Torres (2004), o sistema viário gerou melhorias para o setor pesqueiro:
Uma vez que são diminuídas as distâncias dos centros pesqueiros com a capital, principal consumidor, além dessa ligação com a capital devido a demanda do pescado, levou à introdução de produtos manufaturados ou industrializados (roupas, rádios de pilha etc.) para as localidades de pesca (TORRES, 2004, p. 95).
Apesar das melhorias ocorridas no setor pesqueiro, o setor naval ribeirinho foi
subestimado, porque assim como “o conhecimento dos pescadores da região
amazônica nesse período foi considerado “rudimentar” e inadequado aos objetivos
de modernização” (Ibidem), consequentemente os barcos construídos nos estaleiros
locais, por não serem “modernos”, também foram considerados inadequados,
gerando desaquecimento na produção de barcos, além da dificuldade de renovação
de mão-de-obra nesse setor.
Portanto, o “novo” traz: ”modernidade”, “dinamismo”, “desenvolvimento”. Essa
dinâmica oriunda do capitalismo, massificada atualmente pela televisão, induz os
mais jovens a viver a lógica do presente contínuo, levando-os a não terem ligação
alguma com o seu passado (HOBSBAWM, 1995):
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à de gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer reclamação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim desse segundo milênio (HOBSBAWM, 1995, p.13).
A população de jovens, uma vez cooptada pelo capitalismo, passa a “migrar
para os centros urbanos, em busca de empregos e educação” (TORRES, 2004,
p.36), deixando de lado ofícios artesanais praticados por muitas gerações, como é o
caso da fabricação de embarcações.
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A consequência disso é a permanência dos mais velhos no ofício e,
concomitantemente, o aumento das dificuldades de renovação dessa mão-de-obra
nos estaleiros, além da perda de uma tradição que é constituidora tanto da história
do Brasil quanto da Amazônia e, em particular, da cidade de Vigia, lócus desta
investigação.
O envelhecimento das gerações mais velhas acarreta, portanto, a perda
significativa dos saberes que perpassam a fabricação de embarcações, pois ao
morrerem, os mais velhos levam consigo tais saberes. Esses saberes não se
circunscrevem apenas às técnicas de construção de uma embarcação, mas estão
atrelados a valores culturais, que contribuem tanto para a perpetuação da tradição
quanto para a formação do cidadão.
Nessa perspectiva, esta pesquisa se voltou para uma análise dos processos
educativos vivenciados em um estaleiro naval da Amazônia, em especial para os
saberes que perpassam a fabricação de embarcações e a forma como são
transmitidos às gerações mais novas.
Ao partir da suposição de que no cotidiano de um estaleiro há educação,
compartilha-se da idéia de Brandão (2007), quando afirma que:
A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade (BRANDÃO, 2007, p. 10).
Em seu agir como educadores, os mestres carpinteiros têm um papel
significativo na sobrevivência dos saberes de construção de barco, pois ao
garantirem a transmissão desses saberes, educam os aprendizes garantindo a
perpetuação, ao menos à próxima geração, desse legado cultural amazônico.
Como base nessas considerações, esta pesquisa estrutura-se tendo como
norte as seguintes questões: Que saberes emergem das práticas educativas em um
estaleiro naval? Que procedimentos são utilizados na organização e transmissão
desses saberes? Que medidas estão sendo tomadas pelos sujeitos, herdeiros desse
legado cultural para a preservação desses saberes? Como contextualizar,
historicamente, a fabricação de embarcações na Amazônia?
A partir dessas questões, o objetivo geral desta pesquisa é analisar as
práticas educativas desenvolvidas em um estaleiro naval semi-artesanal da
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Amazônia, em especial, o Estaleiro Esperança localizado na cidade de Vigia (PA), e
o processo de construção e transmissão dos saberes culturais que perpassam a
construção de embarcações.
Como objetivos específicos a pesquisa propõe-se a:
• Identificar os saberes culturais construídos e repassados pelas gerações
mais velhas às mais novas, no processo de fabricação de embarcações.
• Analisar os procedimentos utilizados pelos carpinteiros na organização e
transmissão dos saberes.
• Verificar as medidas tomadas para a preservação da tradição de
construção de embarcações.
• Contextualizar, historicamente, a presença de embarcações na Amazônia.
O estudo pretende, ainda, verificar a educação que acontece nos estaleiros e
os saberes que são postos em circulação na feitura de embarcações, evidenciar a
existência de processos educativos nesses espaços e, com isso, ampliar a noção de
educação, em geral, circunscrita ao ambiente escolar não formal.
Ao contextualizar, historicamente, a presença de embarcações na Amazônia e
os saberes implicados nesse saber-fazer, esta pesquisa tem a intenção de contribuir
com a ampliação da produção teórica no campo da história da educação voltada
para o estudo dos processos educativos mais amplos, isto é, que ocorrem para além
dos muros da escola, processos esses ainda pouco conhecidos.
PERSPECTIVAS TEÓRICAS ADOTADA
A compreensão, nesta pesquisa, da educação existente no contexto de um
estaleiro naval da Amazônia, funda-se a partir da articulação entre determinados
domínios do conhecimento.
Do ponto de vista da educação, onde se insere prioritariamente esta pesquisa,
apropria-se das contribuições de autores como BRANDÃO (2007), FREIRE (2001),
OLIVEIRA (2007) e CHARLOT (2007).
Brandão (2007), em “O que é educação” e “Educação como Cultura”,
evidencia a importância do que é educação além dos muros escolares, pois para o
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autor, a educação acontece em diversos segmentos de uma sociedade
independentemente de uma instituição escolar.
Ao citar que em qualquer ambiente existe aprendizado, enfatiza a educação
como conhecimento prático do dia-a-dia, que além do aprimoramento dos sujeitos
para a vida, sedimenta a cultura de uma dada sociedade.
A contribuição dessas obras para o desenvolvimento desta pesquisa,
realizada no Estaleiro Esperança, refere-se na compreensão e análise das práticas
educativas oralizadas e transmitidas dentro desse estaleiro nas fases da produção
de um barco: a percepção de que há saberes no campo da matemática, da química,
da física, da geometria, da educação, da administração, da economia, da ética, da
arte e da história, que encontramos de forma sistematizada nas escolas, no entanto,
praticados com segurança na comunidade de carpinteiros.
Oliveira (2007), na obra “Cartografia de Saberes”, reúne uma coletânea de
pesquisas que expressa à vida cotidiana do caboclo amazônico, suas práticas,
educativas e seus saberes acerca da natureza, da culinária, da religiosidade, da
música, dos mitos. Elementos esses que compõem a cultura popular dos
amazônidas.
Na coletânea que compõe essa obra, é verificada a “cultura rural-ribeirinha, à
criatividade de seus habitantes e ao produto de acumulação de suas experiências
sociais” (OLIVEIRA, 2007, p. 31), seja nos saberes relacionados às ervas medicinais
que ajudam na cura de muitas doenças; seja da flora e na produção de artefatos
para o dia-a-dia ou da pajelança.
É na chamada “cultura de conversa” (OLIVEIRA, 2007) que acontece às
transmissões de saberes e que a partir de relações de solidariedade entre as
pessoas é que se garante a preservação de uma tradição cultural. O Estaleiro
Esperança faz parte dessa cultura ribeirinha, onde a oralidade de transmissão de
saberes é difundida e até então perpetuada.
É nessa obra onde encontro referências de saberes amazônidas já
cartografadas, que subsidiam a análise dos conhecimentos não escolares que
perpassam no Estaleiro Esperança. Também há o registro de como esses saberes
ribeirinhos, citados nesta obra, foram acumulados de geração a geração entre as
comunidades de carpinteiros.
Em Freire (2001), a importância de sua obra “Pedagogia da
Autonomia/Saberes necessários à prática educativa” reside na compreensão do
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sujeito inserido em uma sociedade que está em constante processo de
transformação cultural, pois por sermos sujeitos “inacabados” buscamos
constantemente o acabamento no aperfeiçoamento das práticas trabalhistas
vivenciadas no dia-a-dia, seja em um estaleiro naval ou em qualquer outra situação
que ocorra o aprendizado.
No campo do saber, é utilizada a obra “Da relação com o saber” de Charlot
(2007), como base para análise e compreensão dos saberes não escolares que
circulam no estaleiro investigado. Para Charlot (2007):
A relação com o saber é a relação com o tempo. A apropriação do mundo, a construção de si mesmo, a inscrição de uma rede de relações com os outros – “o aprender” – requerem tempo e jamais acabam. Esse tempo é o de uma história: a da espécie que transmite um patrimônio a cada geração; a do sujeito; a da linhagem que engendrou o sujeito e que ele engendrará. Esse tempo não é homogêneo, é ritmado por “momentos” significativos, por ocasiões, por rupturas. Esse tempo por fim, se desenvolve em três dimensões que se interpenetram e se supõe uma à outra: o presente, o passado, o futuro (CHARLOT, 2007, p. 79).
Faz-se a análise das relações sociais estabelecidas entre os sujeitos
envolvidos no ofício de construção de barcos em seu tempo histórico. Busco
também fazer análises das relações entre o saber e o aprender que foram tecidas
historicamente através da cultura de conversa (OLIVEIRA, 2007), entre mestres e
aprendizes.
Em outros campos do conhecimento, a Amazônia é descrita em prosa e verso
por muitos autores, que ao discorrerem em suas obras, seus cantos, poesias e
músicas, escrevem com riqueza de detalhes o movimento das águas dos rios e o vai
e vem dos barcos, expressando, assim, de forma poética as representações
simbólicas dessa cultura cabocla.
Contudo, quando se trata de encontrar obras que retratam especificamente os
estaleiros, no que tange a arte de ensinar e aprender, na construção de barcos,
entre mestres, ajudantes e aprendizes ribeirinhos, o número de obras é bem
reduzido.
Há a inclusão de algumas obras relacionadas à pesca, pois existe uma
relação bem próxima entre os construtores de barcos e as atividades pesqueiras.
Furtado apud Ximenes (1992, p. 32), em sua pesquisa intitulada de “Sem
barco, como pescar?” vem corroborar para análise de alguns pontos que já foram
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abordados acerca da fabricação de barcos, como: tipo de embarcação, se é para o
transporte de carga ou de passageiros; tipo de remo, se é para água salgada ou
para doce; tipo de vela, se é para águas interiores ou para o litoral. Esses exemplos
fornecem pistas para caminhos ainda a serem percorridos, na perspectiva de
mapear os saberes praticados na construção de barcos no Estaleiro Esperança.
As demais obras existentes retratam assuntos que envolvem as práticas do
fazer na pesca; da navegação fluvial; do barco na vida do ribeirinho; de situações
sócio-econômicas dos sujeitos envolvidos nesses setores produtivos da região, onde
a presença desse meio de transporte é vital.
Essas obras contribuem para as análises levantadas no campo pesquisado
com a finalidade de se chegar aos objetivos e responder as questões norteadoras
dessa pesquisa, as quais perpassam todo o processo da construção de uma
embarcação num estaleiro, em Vigia de Nazaré.
Isaac (2005), estudando o potencial pesqueiro do Pará, no litoral nordeste do
Estado, destaca a cidade de Vigia de Nazaré como uma região dotada de
conhecimentos específicos na arte de pescar e na construção de embarcações,
motivando a preservação dessa tradição na região. Para o autor, a atividade
pesqueira e os barcos caminham juntos, em uma simbiose, sustentando o
crescimento econômico do município de Vigia.
Torres (2004), em sua obra “Envelhecimento e pesca”, analisa o processo de
envelhecimento das comunidades pesqueiras na cidade de Curuçá (PA). O autor
aponta a falta de aprendizes como gerador do déficit na ampliação da mão-de-obra
pesqueira na região, e a consequente concentração e permanência desse ofício nas
mãos das gerações mais velhas.
Nesta obra, ao associar as dificuldades vividas pelos trabalhadores da pesca
com as dos construtores de barco, o autor fornece subsídios para a compreensão
das dificuldades enfrentadas também em estaleiros navais semi-artesanais da
Amazônia. Ao se utilizar dessa comparação, evidenciam-se as dificuldades que o
setor da carpintaria naval semi-artesanal apresenta na atualidade, tanto de ordem
econômica - como a falta de encomendas, quanto de ordem social - o
envelhecimento das gerações mais velhas e a falta de novos aprendizes. Tudo isso
como consequência da mundialização da economia.
Lucena (2002), em sua dissertação de mestrado intitulada “Carpinteiros
Navais de Abaetetuba: Etnomatemática navega pelos rios da Amazônia”, aborda
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especificamente as técnicas de construção de embarcações na cidade de
Abaetetuba-Pa. Sob a ótica da etnomatemática emergente, que procura estabelecer
um diálogo entre a ciência e os saberes da tradição, retrata o estado da arte da
carpintaria naval em Abaetetuba.
A importância dessa obra está na indicação dos caminhos percorridos pela
autora em sua investigação a qual, a partir da observação do cotidiano dos mestres
na construção de barcos, aponta para um estilo de pensar que envolve a utilização
de recursos matemáticos, com organização criteriosa de idéias, estimativas, códigos
próprios e rigor lógico, características que pertencem à Matemática desenvolvida na
academia. E esses recursos são, também, utilizados pelos trabalhadores do
Estaleiro Esperança a partir da cultura de conversa no ato de construir barcos.
Ximenes (1992), ao organizar a obra “Embarcações, Homens e Rios na
Amazônia”, apresenta uma coletânea de textos de pesquisas desenvolvidas por
estudantes ligados ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade
Federal do Pará (UFPA), em que são apresentadas as bases históricas da
importância do uso do barco na vida dos amazônidas e descrições de técnicas
utilizadas na construção dos mesmos.
Esses estudos têm corroborado para esclarecer o que já foi produzido em
obras científicas sobre embarcações, que apontam para os aspectos físicos (formas)
das embarcações das regiões estudadas.
Rodrigues (2000), em sua obra “500 anos de trânsito no Brasil: convite a uma
viagem”, destaca a história do Brasil, não sob aspectos políticos e econômicos, mas
enfocando o transporte de pessoas e cargas no continente brasileiro. Nessa obra,
desvela o deslocamento de pessoas durante o período pré-cabralino até a
construção de estradas de rodagens. Enfoca desde as pequenas embarcações
feitas pelos índios, até o aprimoramento das mesmas que gerou a construção de
diversos modelos de barcos relacionados culturalmente com uma dada região.
A importância desta obra revela-se no aprofundamento das noções de
transporte praticados no Brasil desde os tempos pré-cabralinos, como também por
ela fazer uso de iconografias que representam modelos de barcos de seu tempo
histórico, que contribuíram para devida análise e compreensão dos modelos de
barcos produzidos na atualidade, no Estaleiro Esperança, lócus da pesquisa.
Na medida em que esta pesquisa define como um de seus objetivos a
contextualização das embarcações na Amazônia e os saberes que perpassam sua
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fabricação, faz-se necessário, também, as fontes históricas sobre a Amazônia e o
Pará, especificamente.
A obra de Azevedo (1999), “Os Jesuítas no Grão-Pará suas Missões e a
Colonização” parte de documentos oficiais para discorrer sobre a história da
Amazônia no contexto da colonização. O autor enfoca as ações do Estado
Português e das Ordens Religiosas que aqui mantiveram contato com as diversas
tribos indígenas das margens dos rios, litoral e meio da floresta. Sua relevância está
no que tange a análise do contato cultural entre colonizador e colonizado que, ao
longo dos séculos, produziu uma cultura específica nessa região – a cultura cabocla
– sendo elemento dessa cultura, a fabricação de embarcações que ganharam
características específicas ao longo do tempo.
Raiol (1970), em “Obras de Domingos Antonio Raiol – Barão de Guajará”,
dedica um capítulo sobre a História Colonial do Pará desde as primeiras ações
políticas e religiosas envolvendo portugueses e índios tupinambá da Região do
Salgado. Em seu texto observa-se as expressões dos nativos que nominavam
lugares, árvores, frutas, animais, rios que ajudam a reconstruir o cenário histórico da
região de Vigia, para onde se volta esta pesquisa.
Em “História de Belém”, Cruz (1973) trata, basicamente, da história política e
econômica do Pará do período colonial, fornecendo bases para a investigação da
história das embarcações e seu processo de construção no passado a partir de
documentos oficiais que registram a solicitação de envio de carpinteiros para o Grão-
Pará, bem como a fundação do primeiro estaleiro da região.
Bettendorff (1627 – 1698), na obra “Crônica da Missão dos Padres da
Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”, tendo como consultor o historiador
paraense Vicente Sales, editada em 1990, enfoca as narrativas dos padres jesuítas
em suas missões de catequese na região do Nordeste Paraense.
Essa obra nos fornece uma boa dimensão da utilização de canoas entre os
índios da Amazônia. Um dos exemplos é a ajuda indireta de muitos índios na ação
missionária, que ao utilizarem suas canoas transportando os padres, serviam como
remadores, e auxiliavam indiretamente no processo de catequese.
A utilização das narrativas descritas pelo Padre Jesuíta João Daniel (1722-
1776) em sua obra “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, nos oferece
detalhes minuciosos da vida dos indígenas e caboclos na Amazônia em tempos da
colonização e sua relação com seu meio ambiente.
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Outra obra importante para a compreensão da realidade social dos
amazônidas é a de Veríssimo (1970), que enfatiza os aspectos econômicos,
ambientais e sociais como formadores de uma cultura cabocla – miscigenada.
E no desvelar da história de nosso passado que se pretende encontrar pistas
que nos conduzam a afirmar a tradição cultural de construção de barcos na atual
cidade de Vigia.
As obras citadas, ainda que não enfoquem diretamente a questão da
educação, possibilitam a compreensão dos saberes culturais que perpassam o
saber-fazer de uma embarcação, além de contribuírem para evidenciar os estaleiros
como espaços significativos de aprendizagem. Dentre as principais contribuições
teóricas trazidas por essas obras, destacam-se:
• A compreensão das práticas culturais desenvolvidas nos ofícios de
comunidades tradicionais, seja na pesca e, sobretudo, na carpintaria naval;
• A importância do diálogo e da tradição oral na transmissão dos saberes no
cotidiano dos construtores;
• O aprimoramento das técnicas de construção de embarcações;
• A contextualização das embarcações e o processo histórico da formação
dos saberes que envolvem sua fabricação;
METODOLOGIA DA PESQUISA
Esta pesquisa, de natureza qualitativa, caracteriza-se como de campo,
documental e bibliográfica. É de campo dado à necessidade de se coletar os dados
no ambiente natural em que ocorre o processo de construção de embarcações no
Estaleiro Naval Esperança, na cidade de Vigia.
Esta pesquisa possui um caráter qualitativo, em razão da subjetividade e
simbolismo presentes na feitura de uma embarcação. Saberes existentes entre os
sujeitos e sua relação com o mundo, com o objeto (embarcação), e consigo mesmo.
Charlot (2007), ao comentar a relação entre sujeito e o saber, diz:
Não há sujeito de saber e não há saber senão em uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também relação consigo mesmo e a relação com os outros. Implica uma forma de atividade e, acrescentarei, uma relação com a linguagem e uma relação com o tempo (CHARLOT, 2007, p. 63)
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Com isso foram analisados os saberes que são difundidos por uma educação
não escolar no estaleiro estudado como um fato construído historicamente.
Na obra de Minayo (2007), que ao descrever sobre a abordagem qualitativa
sustenta essa pesquisa, diz:
Ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. (MINAYO, 2007, p. 21)
Para essa pesquisa de campo, utiliza-se como técnica a observação, que
auxilia na coleta de dados visuais e dados verbais, sobre os procedimentos técnicos
utilizados pelos carpinteiros nas etapas na construção de barcos, que são difundidos
a partir da “cultura de conversa” (OLIVEIRA, 2007).
Durante essa etapa, foi utilizado um caderno de campo para o registro das
atividades desenvolvidas pelos trabalhadores no estaleiro; um gravador, para o
registro das falas dos mestres carpinteiros, dos trabalhadores da calafetagem,
ajudantes e do aprendiz. Esse recurso técnico facilita a coleta de informações não
visualizadas que são expressas e com denominações próprias na arte do fazer um
barco.
A máquina fotográfica permite a captação das ações durante a construção de
um barco, e com esse registro tem-se os dados coletados para análise. O uso das
fotografias nesse estudo se faz necessário para o registro mais abrangente das
atividades realizadas na construção de barcos, com o objetivo de captar a forma e o
jeito como essa construção está sendo desenvolvida pelos mestres, calafetes e
ajudantes no estaleiro. Logo, o registro fotográfico é importante, pois capta cenas
que muitas vezes escapam numa observação visual. Para Flick (2004):
Elas permitem gravações detalhadas de fatos, além de proporcionar uma apresentação mais abrangente e holística de estilos de vida e condições. Possibilitam o transporte de artefatos e a apresentação destes como retratos, e também a transgressão de limites de tempo e espaço. Podem captar fatos e processos que sejam muito rápidos ou complexos para o olho humano, por último, são menos seletivas do que as observações. (FLICK, 2004, p. 162)
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Utiliza-se também como técnica de coleta de dados as entrevistas abertas e
semi-estruturadas, que partem de um roteiro de perguntas abertas, que estimulam
respostas espontâneas. Como exemplo segue algumas perguntas realizadas com o
mestre Zuzinha, Dorival, Jacy, Juracy, que trabalham no Estaleiro Esperança:
Qual seu nome?
Qual a data do seu nascimento?
Qual sua escolaridade?
Com você aprendeu ofício de construir barcos?
Qual era o nome de seu pai?
Qual a escolaridade de seu pai?
Com que ele aprendeu o ofício de carpinteiro naval?
Você tem filho? Quantos?
Eles aprenderam o ofício de carpinteiro?
Como era o dia-a-dia no estaleiro de seu pai?
Existia alguma festa na entrega do barco?
Através das entrevistas passa-se a ter maior aproximação com os sujeitos da
pesquisa, penetrando no universo de valores e significados que fazem parte do seu
meio social no desenrolar do ofício.
O conjunto de respostas verbalizadas são gravadas e armazenadas em mini
fitas k7 de um aparelho portátil de gravação, para serem posteriormente descritas e
analisadas.
Esse tipo de técnica ajuda na aproximação entre os sujeitos investigados que
a partir de perguntas abertas relacionadas aos objetivos específicos e das questões
norteadoras desta pesquisa, desvelam-se os dados subjetivos que perpassam entre
os sujeitos envolvidos na construção de barcos.
Esses dados subjetivos que ocorrem no ato de construir uma embarcação,
não são possíveis de serem captados, somente pela técnica de observação, pois
apresentam valores, atitudes, opiniões, os quais estão na memória do mestre, e
muitas vezes são externados ou não, durante a construção do barco, que podem se
materializar no ato de uma entrevista.
Para a análise do material coletado os procedimentos da Análise Qualitativa
do Conteúdo priorizam as entrevistas e os registros fotográficos.
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Na concepção de Flick (2004), devemos:
Analisar a situação da coleta de dados (como foi produzido o material? Quem participou dessa produção? Quem estava presente na situação da entrevista? De onde vem os documentos que vão ser analisados? Etc.)”. (FLICK, 2004, p. 202)
Esta pesquisa também se caracteriza como documental, pois para
entendermos a tradição de uma sociedade, em especial a de Vigia, que se
especializou em construção de barcos de pesca, faz-se necessário revisitar
documentos históricos conservados em órgãos públicos que subsidiaram a análise
acerca desse legado cultural.
O revisitar desses documentos históricos teve como objetivo analisar o legado
histórico da tradição de construção de barcos e a relação dessa tradição na
formação da sociedade vigiense.
Esta pesquisa caracteriza-se também como uma pesquisa bibliográfica, dada
a contribuição de diversas obras, seja de relatos de viagens ou de estudos
científicos de autores que tratam de assuntos que envolvem as embarcações
ribeirinhas em seus aspectos gerais.
As obras citadas acima subsidiaram a análise do processo histórico que
sedimentou em Vigia a tradição de construção de barcos de pesca, como também
no tratamento dos dados coletados nessa pesquisa, realizada entre o ano de 2008 a
2009, no Estaleiro Esperança em Vigia.
O locus da pesquisa é o Estaleiro Naval Esperança, com característica de
produção semi-artesanal, que no processo de produção de uma embarcação utiliza-
se tanto de equipamentos modernos como: máquina de corte da madeira bruta;
motosserra; lixadeira elétrica, como também manual na utilização do gramíneo, que
mede a espessura da madeira a ser cortada; da plaina manual; de serrotes; do
cavalete que ajuda a posicionar a prancha de madeira para ser trabalhada; a queima
da madeira para ser curvada. Recursos esses utilizados para a fabricação de peças
que vão compor a estrutura de uma embarcação.
A escolha do Estaleiro Esperança teve como critério a situação de legalidade,
pois dos três estaleiros existentes na cidade é o único que possui autorização da
Capitania dos Portos do Pará para funcionar. É também o segundo estaleiro mais
antigo em funcionamento, onde a tradição ribeirinha de construção de barcos de
pesca ainda se preserva.
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A cidade de Vigia é considerada tradicional na construção de barcos. Na obra
de Furtado apud Ximenes (1992, p.32), que escreve sobre a prática pesqueira desta
cidade, no título de seu trabalho levanta uma questão: “Sem barco, como pescar?”,
ou seja, as relações entre a pesca e a construção de barcos estão imbricadas.
Portanto, barco e pesca fazem de Vigia um grande pólo pesqueiro do Estado do
Pará (ISSAC, 2005).
A cidade de Vigia, onde está localizado o Estaleiro Esperança, é um município
que compõe a Região do Nordeste do Pará, banhada pelo Rio Guajará-Mirim.
Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), coletado
em 2007, a população dessa cidade está estimada em 43.847 habitantes, sendo que
a maioria vive no meio urbano.
A escolha dessa cidade deve-se ao seu legado histórico iniciado com a
colonização portuguesa no século XVII, precisamente no ano de 1615, com a
fundação de um aldeamento chamado pelos Tupinambá de Uruitá
(LOUREIRO,1987, p. 51). No século XVIII, o governo construiu um posto com vigias,
para controlar a ação de contrabandista naquela região. Esse posto passou a ser
referência desse lugar, portanto, tornou-se conhecida com o nome de Vigia, devido à
função que lhe coube na História.
Além desse legado histórico, outro fator de destaque é seu caráter religioso,
pois a cidade primeiramente surgiu de um aldeamento missionário, como notificou a
pesquisadora Loureiro. A região vai ganhar maior proporção religiosa, devido às
narrativas orais difundidas no século XVIII sobre o naufrágio de uma embarcação
portuguesa, que por “intercessão de Nossa Senhora de Nazaré foram salvos seus
tripulantes (Ibidem, p.61).
Então, a relação histórica desenvolvida a partir do aldeamento, do posto
fiscal, da religião e da pesca, transformou a cidade de Vigia, com seus 393 anos de
existência, em um município de expressão religiosa, por ter o Círio mais antigo do
Norte do Brasil; de grande expressão pesqueira (o segundo maior do Estado), e de
construção de barcos.
Os sujeitos que fazem parte dessa pesquisa correspondem a 03 membros da
comunidade de carpinteiros que desenvolvem os serviços da carpintaria naval no
Estaleiro Esperança, são eles: O Sr. Dorival Dantas, marajoara 65 anos de idade,
conhecido por Bigaiu. Sua escolha deve-se por ser um dos mais velhos carpinteiros
ainda na ativa, como também seus filhos Jacy Dantas e Juracy Dantas, que se
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constituem como herdeiros dos saberes adquiridos de seu pai.
A partir da seleção desses sujeitos, foi possível observar a “cultura de
conversa” (OLIVEIRA, 2007) desenvolvida entre os trabalhadores do Estaleiro
Esperança na arte de fazer um barco, sobretudo, atentar para os saberes difundidos
entre aqueles que atuam neste local de trabalho
Charlot (2007):
Não há saber que não esteja inscrito em relações de saber. O saber é construído em uma história coletiva que é a da mente humana e das atividades do homem e está submetido a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão. Como tal, é o produto de relações epistemológicas entre os homens. Assim sendo, as relações de saber são, mais amplamente, relações sociais. Essas relações de saber são necessárias para constituir o saber, mas, também, para apoiá-lo após sua construção: um saber só continua válido enquanto a comunidade científica o reconhecer como tal, enquanto uma sociedade continuar considerando que se trata de um saber que tem valor e merece ser transmitido (CHARLOT, 2007, p. 63)
As observações e coleta de dados foram iniciadas e concluídas. Registrada
todas as etapas: o contrato da encomenda (barco); a preparação dos moldes; o
tempo a ser empregado nessa encomenda; as dificuldades que são apresentadas no
decorrer da construção, entre outras. E no dia-a-dia, na arte de fazer o barco, é que
se encontram pistas que levam a conhecimentos técnicos aplicados e verbalizados
em linguagem própria do senso comum, no estaleiro.
As observações e entrevistas, que foram realizadas até o esgotamento das
indagações, subsidiaram o texto.
Convém afirmar que ao se envolver a partir das observações e entrevistas no
dia-a-dia dos trabalhadores da carpintaria naval, é sentir um pouco a realidade vivida
pelos mestres, ajudantes, calafetes e aprendizes, quando desenvolvem seu ofício. A
dinâmica que lá existe provém de ações oriundas de práticas memorizadas por
décadas e reelaboradas a partir do tempo histórico vivido daqueles que
encomendam ou reformam o barco.
Portanto, o conjunto de técnicas aplicadas nesta pesquisa produziu uma
quantidade de dados orais, resultado das entrevistas e conversas realizadas com os
sujeitos da pesquisa. Também visuais, devido ao uso da fotografia, que permitiram
fazer análises do objeto investigado, o que é comum nas pesquisas qualitativas e
das leituras de documentos oficiais da época da colonização e das bibliografias
consultadas.
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A etapa final da pesquisa consistiu no mapeamento dos saberes que estão
presentes no estaleiro naval, os quais são oralizados e transmitidos no dia-a-dia dos
homens que constroem os barcos. Saberes esses que emergem das práticas
educativas cotidianas. Esse mapeamento identificou os saberes e práticas
educativas entre os sujeitos envolvidos na arte da carpintaria naval, que visa à
compreensão dos saberes produzidos e transmitidos no cotidiano do fazer uma
embarcação.
A partir do que foi exposto, a dissertação encontra-se organizada em três
seções a seguir:
A primeira seção intitulado de “Embarcações e Pesca: o presente e o
passado imbricados na cultura vigiense”, faz um levantamento histórico, geográfico
na formação da cultura da cidade de Vigia.
A segunda seção intitulada de: “Embarcações a serviço da expansão
comercial, política e religiosa portuguesa na Amazônia: ubá, igarité e vigilengas”,
analisa a utilização das embarcações indígenas e caboclas no processo de
conquista e colonização da Amazônia, como também a construção de uma tradição
voltada para a carpintaria naval.
A terceira seção intitulada de: “Estaleiro de carpintaria naval: um local de
circulação de saberes” discorre sobre o processo de construção de saberes voltados
para a arte da carpintaria naval iniciados pelo mestre Dorival Dantas na Ilha do
Marajó e sedimentados em Vigia de Nazaré.
Os resultados obtidos na pesquisa são de grande importância para estudos
acadêmicos no campo do saber e do registro da própria história da Amazônia.
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SEÇÃO I
EMBARCAÇÃO E PESCA: O PRESENTE E O PASSADO IMBRICADOS NA
CULTURA VIGIENSE
“A história é uma ciência, mas uma ciência que tem como
de suas características, o que pode significar sua
fraqueza mas também sua virtude, ser poética, pois não
pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas”
(BLOCH, 1997, p.19).
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Baia do Marajó Rio Açaí
Vigia
Rio Guajará Miri
01
02
1.1 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ
Vigia de Nazaré é um município localizado na Mesorregião do Nordeste
Paraense, e Microrregião do Salgado, banhada pelo Rio Guajará-Mirim. Limita-se ao
norte pela Baía do Marajó e o município de São Caetano de Odivelas, a leste pelos
municípios de São Caetano de Odivelas e Castanhal, ao sul pelo município de Santo
Antônio do Tauá e a oeste pelos municípios de Colares e da Baía do Marajó.
A imagem de satélite, o diagrama e o mapa abaixo nos oferecem a posição
geográfica exata da cidade de Vigia de Nazaré, no Estado do Pará. É nesta região
onde se desenvolve a pesquisa sobre os saberes práticos aplicada na construção
naval, precisamente no Estaleiro Esperança, um dos mais antigos na tradição de
construção e reparos de barcos de pesca dessa micro-região amazônica.
Ilustração 1: Imagem de satélite de Vigia. Ilustração 2: Diagrama da localização geográfica de Vigia. Fonte: CD Brasil, 2009.
A ilustração 1, fotografada por satélite nos permite verificar com fidelidade os
aspectos físicos do território vigiense. Observa-se sobretudo o principal rio dessa
região – o Guajará Mirim – e os igarapés que formam os braços fluviais e ajudam a
rasgar o continente. Esse rio e os igarapés exerceram no passado colonial, como
também em tempos atuais, uma importante via de acesso marítimo que ligava Vigia
a Belém, capital do Grão-Pará e para as demais cidades da Amazônia Ocidental.
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Ilustração 3: Mapa rodo-fluvial de Vigia. Fonte: CD Brasil, 2009.
Na ilustração 2, o diagrama fornecido pela Embrapa, expressa o
posicionamento geográfico do município de Vigia no mundo, com Latitude 0º52’30”
ao sul e Longitude 48º07’30” a oeste.
A ilustração 3, possibilita ter uma macro-visão do diagrama onde situa-se a
cidade de Vigia. A partir dele, observamos a divisão territorial-política de cada
município, sobretudo a rede rodoviária da Região Nordeste do Estado do Pará que
interliga os municípios por terra, como também os principais rios que compõem essa
região considerados pelos caboclos como ruas e avenidas, pois nelas transitam
costumeiramente os barcos num constante vai e vem, seja no transporte de carga ou
de pessoas.
Atualmente, o município é constituído pelos distrito de Vigia (sede), composta
por 08 bairros: Centro, Arapiranga, Castanheira, Vila Nova, Sol Nascente, Novo
Horizonte, Santa Rita, Amparo e por mais três vilas: Santa Rosa, Penhalonga e
Porto Salvo. As localidades mais afastadas da sede como Santa Rosa, Pelhalonga e
Porto Salvo, desenvolvem atividades econômicas voltadas mais para a agricultura,
cultivando culturas como a do mamão, maracujá, pimenta-do-reino, coco, mandioca,
hortaliças e legumes.
Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
coletado em 2007, a população dessa cidade está estimada em 43.847 habitantes,
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que estão subdivididas em diversos setores da economia local, sendo que 82%
desta população concentram-se no meio urbano, desenvolvendo atividades
trabalhistas, sobretudo em setores do comércio e de serviços gerais.
Apesar dos dados do IBGE indicarem que o principal setor da economia que
emprega a mão-de-obra local seja o de serviços e do comércio, a região onde se
localiza a cidade de Vigia tem tradição no setor da pesca, sobretudo a pesca
artesanal, que não é mencionado em detalhes por esse órgão.
Contudo, diversas pesquisas acadêmicas as quais estudam a ictologia
marítima da região, principalmente a microrregião onde deságua o Rio Amazonas, o
Rio Tocantins e o litoral leste paraense, apontam a importância da pesca artesanal
para a sociedade que vive nesse meio ambiente.
A obra de Veríssimo (1970), “A Pesca na Amazônia” é uma das pesquisas
pioneiras sobre o assunto da pesca e a relação entre o homem e o seu meio
ambiente. Ele comenta que:
O peixe foi sempre, então como hoje, mais ainda então que hoje, na Amazônia, o principal desse alimento. A sua abundância, a habilidade que os índios tinham em pescá-lo, foram parte nessa obra verdadeiramente admirável da fácil penetração portugueses sertões amazônicos adentro (VERÍSSIMO, 1970, pg. 90).
Estudos mais recentes apontam também para a relação existente entre a
pesca, barco e sociedade. O trabalho de Loureiro (1987), que através do “Inventário
Cultural e Turístico do Salgado”, destaca o legado histórico dessa região e sua
importância na pesca. Em Issac (2005), que ao pesquisar “Atividade pesqueira no
município de Augusto Correa” (na Região do Salgado), além de aprofundar nos
aspectos relacionados à pesca nesse município, enfatiza também a tradição que a
Cidade de Vigia tem em construção de barcos pesqueiros. E, finalmente Torres
(2004), em o “Envelhecimento e Pesca”, destaca a pesca e os pescadores na
desembocadura do Rio Amazonas.
Há também outros trabalhos sobre a atividade pesqueira que fazem análise
econômica do Estado do Pará, como órgão público SEPOF (Secretaria do Estado de
Planejamento, Orçamento e Finanças) que destaca a pesca artesanal na região de
Vigia, sua importância econômica e social para a sociedade local. Estes dados, de
2006, foram consultados e respaldaram as informações sobre pesca levantadas
neste trabalho.
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Em se tratando a área estudada, esse zoneamento ratifica os indicadores do
IBGE, destacando que a maioria da população economicamente ativa, que vive na
Região do Salgado, concentra-se no terceiro setor da economia. Entretanto, esse
órgão estadual evidencia a atividade pesqueira nessa região, e ainda ressalta que é
um dos principais segmentos econômicos que cresceram no âmbito da economia
local nos últimos tempos, vindo a corroborar com os dados apresentados por
Veríssimo no final do século XIX e por outros pesquisadores no século XX e XXI.
Em 2008, a SEPOF apresentou o mapeamento das atividades econômicas
dos municípios que congregam o Estado do Pará, subdivididos em zonas dentro das
microrregiões (Ilustração 4).
Na parte leste do Estado do Pará, encontramos nesse zoneamento
econômico dezoito municípios, e cada um com suas especificidades na economia
local, entre eles o município de Vigia.
A cidade de Vigia, além de fazer parte com os demais municípios que
congregam essa zona econômica, ancorada a uma economia, segundo o SEPOF,
ligada ao Terceiro Setor (Comércio e Serviços Gerais), aponta a grande
expressividade no setor da pesca.
Outro quesito importante mencionado pela SEPOF sobre as atividades
econômicas desenvolvidas em Vigia é a existência de estaleiros de produção naval,
ratificando a cidade de Vigia como produtora de barcos no Estado do Pará, que
dentre as demais cidades inseridas nesse zoneamento, somente Vigia e Colares
possuem produção naval.
Outros dados que mencionam a importância do setor pesqueiro em Vigia é do
Centro de Estudo em Economia e Meio Ambiente da Fundação Universidade do Rio
Grande, os quais destacam o município de Vigia com o terceiro maior número de
pescadores associados a Colônia de Pescadores, com 1.997 associados, abaixo
apenas de Belém, com 3.188 pescadores e Abaetetuba com 2.990.
Se a cultura da sociedade vigiense está alicerçada na pesca e produção
naval, um dos fatores para essa tradição cultural está na posição geográfica onde se
estruturou historicamente esse município. A cidade tem localização privilegiada, pois
está próxima a desembocadura de duas grandes bacias Hidrográficas do Brasil, a
Bacia Amazônica e a Araguaia-Tocantins, como também próximo ao litoral oceânico,
ou seja, faz parte de uma região que é rica em fauna ictiológica marítima
(VERISSÍMO, 1970, p. 05).
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Lavoura Temporária Lavoura Permanente Pecuária de pequeno porte Agroindústria animal Comércio Serviços de Educação e saúde Agricultura e pesca Construção Naval Oleiro
Ilustração 4: Mapa cartográfico econômico da Zona do Salgado. Fonte: SEPOF/DIEPI, 2009.
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Veríssimo (1970) já destacava em finais do século XIX essa riqueza marítima,
quando cita a geografia da região e o pescado que nela abunda, afirmando que a
costa chamada da Vigia e a fronteira, a leste de Marajó, entre Soure e o Cabo
Maguari, são o principal campo das pescarias de tainhas e na Contracosta, a da
gurijuba (VERÍSSIMO, 1970, p. 61).
Aponta também, além importância da pesca na vida dos amazônidas, a
cultura indígena da pesca, como elemento formador da cultura cabocla, quando diz:
A pesca e os produtos da pesca na Amazônia, desde os mais antigos tempos de que temos notícias, não serviram sòmente à alimentação, senão a usos da economia doméstica e industrial. Os processos culinários indígenas, adotados e naturalmente melhorados pelo conquistador, são fundamentalmente os mesmos hoje usados. (VERISSÍMO, 1970, p. 99)
Esses estudos que Veríssimo realizou no passado ainda são válidos, pois
muitos órgãos e instituições que estudam a pesca na atualidade manifestam a
importância do setor pesqueiro dessa região e a relação que a pesca tem com a
sociedade local, entre eles a SEAP (Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca).
Em seus relatórios, a SEAP ressalta o potencial pesqueiro do Norte do Brasil,
ratificando assim na atualidade o que Veríssimo escreveu em seus estudos sobre a
pesca na Amazônia nos finais do século XIX, quando destaca que a Região
Amazônica é rica em recursos ictológicos, sendo a pesca um dos elementos
constituidores da cultura dos amazônidas, quando diz:
A hidrologia da bacia Amazônica configura-se como um imenso complexo de rios, igarapés, lagos, canais furos nos quais abriga cerca de 20% de toda água doce da terra. A pesca é uma das atividades mais importantes nessa região, constituindo-se em fonte de alimento, comércio, renda e lazer para a grande parte de sua população (SANTOS apud SEAP, 2006).
Desta região onde a pesca artesanal tem destaque desde tempos remotos,
hoje são capturadas na desembocadura do Rio Amazonas, Rio Pará e do Rio
Tocantins, além das águas oceânicas, “toneladas e toneladas de espécies como a
pescada amarela, as sardas, cavalas e bonitos, os Bagres, a gurijuba, o bandeirado
Bagre, a curvina entre outros”3.
A quantidade de pescado, sobretudo de pescada amarela e gurijuba realizada
nessa região, historicamente é a base econômica da cidade de Vigia, transformado
3 CEEMA, 2009.
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em divisas econômicas através da venda do peixe in-natura que são
comercializados para a indústria de pesca localizada na própria cidade e, sobretudo
nas indústrias da capital do Estado, Belém do Pará.
Porém, não é somente a comercialização deste pescado em si que gira o
comércio em Vigia, mas um órgão extraído desses dois peixes, que é chamado
popularmente pelos pescadores de “a grude”4.
Esse órgão da gurijuba é retirado ainda em alto mar, que depois de esticado e
secado ao sol é comercializado, compondo assim, parte da economia do município,
movimentado mensalmente milhares de reais no comércio local. Essa atividade
econômica complementar da pesca começa com a contratação dos barcos feitos
pelos atravessadores que financiam a viagem pagando uma quantia estipulada
previamente com o dono do barco, que irão fornecer o produto.
A pesquisadora Rosália Cotrim, do Centro de Pesquisa e Extensão Pesqueira
do Norte (CEPNOR), afirma que “o emprego dessas membranas são tantos que
ainda não foi possível catalogar todos”5.
O conhecimento, a importância e utilização “da grude” desses peixes, como
produto de colagem, já era conhecido entre os pescadores de Vigia no final do
século XIX. Veríssimo (1970) ressalta em sua obra que:
A gurijuba, semelhante a um grande bagre, de pele amarelaça, cresce até 1 a 1,20 m. Fornece não só a carne para a alimentação das populações daquela orla marítima, e submarítima, até a cidade do Pará, onde encontra igualmente grande consumo, como principalmente o “grude”, ou cola, de exportação considerável e vantajosa. Nas grandes canoas chamadas vigilengas, talvez porque na ribeira da Vigia fossem de primeiro construídas, saem eles, canoeiros habilíssimos e ousados, ao alto-mar (VERISSÍMO, 1970, p. 61).
O Teatro da Paz construído no esplendor da Belle Époque, em finais do
século XIX, é um exemplo da utilização do “grude” da gurijuba como cola. Segundo
diz o conteúdo do site do Theatro: “O hall de entrada é composto por materiais
4 A Grude é um órgão interno dos peixes, mais precisamente a bexiga natatória, uma bolsa de mau
aspecto, com a textura semelhante à de uma lula. Esse órgão controla o nível de flutuação da gurijuba e da pescada. Cheia de ar, essa vesícula faz o peixe se aproximar da superfície. Vazia, permite que alcance as profundezas do oceano. [...] Um quilo de grude vale até 90 reais. Num exemplar de tamanho médio, o grude pesa 250 gramas. Ou seja, vale mais que o peixe. Em 2001, a exportação de grude atingiu mais de 200 toneladas pelos portos do Pará e Amapá. Esse negócio movimentou três vezes mais dinheiro que o comércio normal de gurijuba e pescada-amarela nesses portos. Nos grandes centros capitalistas, essa matéria-prima extraída da gurijuba e da pescada amarela, é processada e transformada em manufaturas, como: cola de grande resistência, em lâminas de gelatina, em cosméticos, em filmes fotográficos e instrumentos musicais. (REVISTA VEJA, 2002)
5 Revista Veja, 2002.
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decorativos importados da Europa. [...]. Pisos em pedras portuguesas formando
mosaicos e colados com o grude da gurijuba”.6
A imagem de satélite (Ilustração 5), nos dá um panorama aéreo desse
reservatório ictiológico, rico em fauna marítima que move economicamente a cidade
de Vigia, região essa que motivou os vigienses a criarem a vigilenga, que:
Apesar de constituírem barcos de pequenas proporções como poucos metros de comprimento, são relativamente muito superiores ao casco e a montaria, suportando em média 4 a 10 toneladas de peso. Este porte maior torna-se impositivo dado que a pesca dessas espécies se processa barra-fora, em direção ao litoral norte (LOUREIRO, 1985, p. 32).
Esse tipo de embarcação específica da região foi muito utilizada pelos
pescadores locais até aproximadamente a segunda metade do século XX, para irem
mar a fora em busca da gurijuba e tainha.
Em finais do século XX, esse tipo de embarcação entrou em desuso, pois a
introdução do motor nas novas embarcações construídas propiciou maior autonomia
na navegação como também na redução do tempo para o retorno e comercialização
do pescado, pois a vigilenga (barco composto por duas velas latinas - triangulares)
dependia do vento para sua locomoção, onerando por vezes algumas empreitadas.
Portanto, esse veículo passou a ser menos produtivo, não satisfazendo mais as
necessidades do mercado da pesca em constante crescimento nesse período.
As transformações técnicas, cujos estaleiros em Vigia passaram a
implementar, estão associadas a dinamização das forças capitalistas na região,
difundidas, sobretudo, entre as décadas de 1964 a 1985, transformando a vigilenga
símbolo cultural de Vigia em peça de museu.
Como consequência da dinâmica capitalista, a produção de barcos em Vigia
foi alterada, dada as exigências do desenvolvimento do mercado (MELLO, 2001, p.
34). A utilização do motor foi a maior dessas modificações, que ao atender as
exigências do mercado mundial, fez do município de “Vigia o segundo maior
produtor de pescado do Brasil” (IBAMA, 2006), que somado a outras microrregiões
do Estado, transforma o Pará importante produtor de pescado do Brasil.
6 Theatro da Paz, 2009.
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Ilustração 5: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins.
Fonte: CD Brasil, 2009.
A imagem de satélite acima destaca a localização espacial de Vigia.
Observamos que essa região é geograficamente estratégica para a pesca. Em
tempos passados, com os colonizadores portugueses do século XVII, ergueram essa
cidade para monitorar o trânsito de embarcações que vinham da Europa, em que
faziam escala marítima entre São Luiz, Bragança à Belém. E no presente, uma das
principais economias do pescado no Brasil.
Veríssimo (1970) já apontava em sua obra no século XIX (1895) a riqueza que
é essa região onde se encontram o Rio Amazonas, Rio Pará e o Rio Tocantins com o
Oceano Atlântico, ao dizer:
Ou são pròpriamente amazônicas, feitas nas águas do Amazonas e seus inumeráveis tributários, correntes ou lagos, ou marítimas ou submarítimas, conforme são feitas em pleno mar ou nas regiões das fozes do Amazonas e do Pará, até onde se faz sentir a influência da água salgada e até onde chegam os representantes da fauna pròpriamente marinha. Há aí uma região neutra, em que as espécies marinhas e fluviais se confundem, ou pelos menos se encontram, e os ribeirinhos das baías formadas pelo Rio Pará comem delas pescados o cumuri, que é do mar, e o tucunaré, que é do rio. A tainha representa bem esta neutralidade, vivendo tanto na costa marítima, como aqui nesta água semi-salgada e subindo mesmo as doces do Tocantins, até Cametá, a mais de 300 km do mar. (VERISSÍMO, 1970, p. 13)
Rio Amazonas
Rio Pará
Ilha do Marajó
Oceano Atlântico
Rio Tocantins
Vigia
Belém
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A localização de Vigia na convergência entre o Rio Pará e o Tocantins,
somado processo histórico cultural que constituiu essa cidade, de certa forma
condicionaram boa parte dos habitantes a desenvolverem a cultura da pesca em
seus diversos fins, seja para o consumo próprio ou comercial e até como moeda
corrente (Ibidem, p. 11).
Se hoje a cidade de Vigia tem um grande destaque na economia pesqueira no
Estado do Pará, é devido a sua localização geográfica e seu legado histórico-
cultural, que se remonta desde ao processo de colonização portuguesa do século
XVII.
1.2 ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DE VIGIA DE NAZARÉ
Visitar a cidade de Vigia no primeiro decênio do século XXI é voltar ao
passado caminhando por suas ruas estreitas, passando próximo aos prédios
públi