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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação U Antônio Jorge Pantoja Gualberto Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia Belém 2009

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  • Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação

    U

    Antônio Jorge Pantoja Gualberto

    Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia

    Belém 2009

  • Dados Internacionais de catalogação-na-publicação (CIP), Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA, Belém- PA.

    Gualberto, Antônio Jorge Pantoja

    Embarcações, educação e saberes culturais em um estaleiro naval da Amazônia / Antônio Jorge Pantoja Gualberto; Orientadora Denise Simões Rodrigues. Belém: 2009.

    Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém,

    2009. 1. Trabalhadores – Educação. 2. Cultura e Educação. 3. Estaleiros. I Título

    CDD: 21 ed. 370.1931

  • Antônio Jorge Pantoja Gualberto

    Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia

    Texto de Dissertação apresentado à coordenação do Curso de Mestrado em Educação, Linha de pesquisa: Saberes Culturais e Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Ciências Sociais e Educação da Universidade do Estado do Pará. Orientadora: Profª. Drª. Denise Simões Rodrigues.

    Belém 2009

  • Antônio Jorge Pantoja Gualberto Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval

    da Amazônia

    Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Estado do Pará, linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia.

    Data de aprovação: _____ / _____ /_______ Banca Examinadora ____________________________________ - Orientadora Profª. Dra. Denise Simões Rodrigues Dra. em Sociologia Universidade do Estado do Pará ____________________________________ - Examinador Externo Prof. Dr. Aldrin Moura Figueiredo Dr. em História Universidade Federal do Pará ____________________________________ - Examinadora Interna Profª. Dra. Josebel Akel Fares Dra. em Comunicação e Semiótica Universidade do Estado do Pará ______________________________________________ - Examinadora Suplente

    Profª. Dra. Nazaré Cristina Carvalho Dra. em Educação Física e Cultura Universidade do Estado do Pará

  • A Edna Lemos, minha querida esposa e companheira de muitas lutas; aos filhos Beatriz Samara e Antônio Gabriel, que apesar de pequenos compreenderam e ajudaram com seus afetos nos momentos mais angustiantes desta caminhada.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus por me conceder sabedoria nesta caminhada.

    A minha orientadora, professora doutora Denise Simões, por sua humanidade, carinho, sabedoria e competência, qualidades estas que me auxiliaram nesta caminhada.

    Aos meus colegas de curso, Socorro Lima; Giza Bandeira; Viviane Otonelli; Fernando Otávio e Roseane Rabelo.

    A todas as pessoas que mantive contato na Cidade de Vigia de Nazaré, sobretudo dos mestres carpinteiros Zuzinha, Joaquim, Dorival, Jacy, Ubiracy, Bolero e Albo, pois eles deram razão a esta pesquisa.

  • Sem qualquer dúvida, as embarcações

    utilizadas pela população de pescadores nas

    regiões da Amazônia, se não são fabricadas

    nas comunidades ou vilas onde residem os

    componentes desse segmento social, o são em

    outras próximas, basicamente com recursos

    regionais, isto é, com madeiras nativas da

    Amazônia, e o que é mais importante ainda,

    com o saber e o savoir-faire de seus

    construtores, herdados de seus antepassados.

    Lourdes Gonçalves Furtado

  • RESUMO

    GUALBERTO, Antônio Jorge Pantoja. Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia. 149 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009. A presente pesquisa intitulada “Embarcações, Educação e Saberes Culturais em um Estaleiro Naval da Amazônia” está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado), da Universidade do Estado do Pará (UEPA), na Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Parte do seguinte problema: como se desenvolve a prática educativa em um estaleiro naval da Amazônia e como ocorre o processo de construção e transmissão dos saberes culturais que perpassam a construção de embarcações? Tem como objetivo geral analisar as práticas educativas desenvolvidas em um estaleiro e o processo de construção e transmissão dos saberes culturais. Trata-se de uma pesquisa de campo, dentro de uma abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso, e também, documental e bibliográfica. O lócus da pesquisa é o Estaleiro Esperança, localizado na Cidade de Vigia de Nazaré, (Pará) cuja história e cultura são marcadas pela vocação naval. Os procedimentos de produção de dados se constituíram a partir de levantamento bibliográfico e documental; observação das práticas educativas realizadas no Estaleiro; entrevistas semi-estruturadas com os mestres artesãos e aprendizes. Teoricamente, a pesquisa situa-se no campo da educação em ambientes não escolares e estrutura-se a partir de categorias como educação (BRANDÃO, 2002, 2007; OLIVEIRA, 2007; FREIRE, 2001), e saberes (CHARLOT, 2007). Palavras-chave: Educação. Embarcações. Saberes Culturais. Educação não Escolar.

  • RÉSUMÉ

    GUALBERTO, António Jorge Pantoja. Bateaux, Éducation et Savoirs Culturels dans un Chantier naval Naval de l'Amazonie. 149 f. Travail de Dissertation (Diplôme d'études approfondies dans Éducation) - Université de l'État du Pará, de Belém, de 2009.

    Présente recherche intitulée « Éducation et Savoirs Culturels dans un Chantier naval Naval de l'Amazonie » est attachée au Programme de Pós-Graduação dans Éducation (Diplôme d'études approfondies), de l'Université de l'État du Pará (UEPA), dans la Ligne de Recherche Savoirs Culturels et Éducation dans l'Amazonie. Partie du suivant problème : comment se développe la pratique éducative dans un chantier naval naval de l'Amazonie et comme il se produit le processus de construction et la transmission des savoirs culturels que perpassam la construction de bateaux ? Il a comme objectif général analyser les pratiques éducatives développées dans un chantier naval et le processus de construction et la transmission des savoirs culturels. Il s'agit d'une recherche de champ, à l'intérieur d'un abordage qualitatif, du type étude de cas. La lócus de la recherche est le Chantier naval Espoir, localisé dans la Ville de Garde de Nazaré (Pará), dont l'histoire et la culture sont marquées par la vocation navale. Les procédures de production de données se sont constituées à partir d'enquête bibliographique ; commentaire des pratiques éducatives réalisées dans le Chantier naval ; entrevues semi-estruturadas avec les maîtres artisans et apprentis. Théoriquement, la recherche se place dans le champ de l'éducation dans des environnements non scolaires et structure à partir de catégories je mange de l'éducation (BRANDÃO, 2002, 2007 ; OLIVEIRA, 2007; FREIRE, 2001), savoirs (CHARLOT, 2007).

    Mots-clés: Bateaux. Savoirs Culturels. Éducation non Escolaire.

  • LISTA DE ILUSTRAÇÕES

    Ilustração 1: Imagem de satélite de Vigia. ............................................................... 33

    Ilustração 2: Diagrama da localização geográfica de Vigia. .................................... 33

    Ilustração 3: Mapa rodo-fluvial de Vigia. .................................................................. 34

    Ilustração 4: Mapa cartográfico econômico da Zona do Salgado. ........................... 37

    Ilustração 5: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins.

    ........................................................................................................... 41

    Ilustração 6: Fotografia da Capela Nosso Senhor dos Passos. .............................. 43

    Ilustração 7: Fotografia do Muro frontal de Vigia na orla do Rio Guajará-Mirim ...... 43

    Ilustração 8: Fotos do Msc Albo de boné azul e seus ajudantes nas margens do rio

    Guajará-Mirim ..................................................................................... 49

    Ilustração 9: Imagem da Ribeira das Naus em Lisboa ............................................ 53

    Ilustração 10: Mapa de Alberto Cantino - Planisfério de 1502. .................................. 54

    Ilustração 11: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins

    ........................................................................................................... 59

    Ilustração 12: Imagem de satélite do município de Vigia de Nazaré. ........................ 61

    Ilustração 13: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Tocantins ................... 63

    Ilustração 14: Fotografia de uma ubá, registrada no Museu das Embarcações

    localizado no Mangal das Garças – Belém do Pará ........................... 74

    Ilustração 15: Imagem da confecção de uma canoa de um só tronco. ..................... 74

    Ilustração 16: Imagem da construção de uma canoa de tábua ................................. 75

    Ilustração 17: Registro fotográfico do corte de uma árvore para a construção de uma

    canoa .................................................................................................. 76

    Ilustração 18: Registro fotográfico de uma ubá construída e colocada em uso. ....... 77

    Ilustração 19: Fotografia de uma réplica em miniatura de uma Vigilenga, registrada

    no Museu das Embarcações localizadas no Mangal das Garças –

    Belém do Pará. ................................................................................... 82

    Ilustração 20: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. .................................... 87

    Ilustração 21: Fotografia registrada na parte interior de um barco. ........................... 88

    Ilustração 22: Fotografia registrada no Estaleiro Esperança. .................................... 89

    Ilustração 23: Fotografia registrando o uso do sargento. .......................................... 97

    Ilustração 24: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação...... 98

    Ilustração 25: Registro fotográfico do início da construção de uma embarcação...... 98

  • Ilustração 26: Fotografia do mestre Dorival encaixando uma peça numa em um

    embarcação. ..................................................................................... 100

    Ilustração 27: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Jacy. .................................. 114

    Ilustração 28: Fotografia do mestre Dorival e seu filho Juracy. ............................... 116

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

    PROBLEMA E OBJETIVOS DA PESQUISA ............................................................. 15

    PERSPECTIVAS TEÓRICAS ADOTADA .................................................................. 19

    METODOLOGIA DA PESQUISA ............................................................................... 25

    SEÇÃO I - EMBARCAÇÃO E PESCA: O PRESENTE E O PASSADO

    IMBRICADOS NA CULTURA VIGIENSE ................................................................. 32

    1.1 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ ...................................... 33

    1.2 ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DE VIGIA DE NAZARÉ .............................. 42

    1.2.1 Embarcações na Europa e no Brasil: A conquista e a colonização da

    Amazônia ................................................................................................................. 50

    1.2.2 A Cobiça de uma região ................................................................................. 55

    1.2.3 Localização estratégica do aldeamento Uruitá na vigilância da capital do

    Grâo-Pará ................................................................................................................. 60

    SEÇÃO II - EMBARCAÇÃO A SERVIÇO DA EXPANSÃO COMERCIAL, POLÍTICA

    E RELIGIOSA PORTUGUESA NA AMAZÔNIA: DAS UBÁ, IGARITÉ ÀS

    VIGILENGAS ............................................................................................................ 70

    2.1 A CONSTRUÇÃO DE UMA TRADIÇÃO AMAZÔNICA: AS VIGILENGAS .......... 71

    SEÇÃO III - ESTALEIRO DE CARPINTARIA NAVAL: UM LOCAL DE

    CIRCULAÇÃO DE SABERES .................................................................................. 84

    3.1. ESTALEIRO ESPERANÇA: LICEU DE ARTES E DE OFÍCIOS DE

    CARPINTARIA NAVAL EM VIGIA .............................................................................. 85

    3.2 A CONSTRUÇÃO DE UM OFÍCIO: A DESCOBERTA DO TALENTO NATURAL

    PARA A CARPINTARIA ............................................................................................. 91

    3.3 O RECONHECIMENTO DE UM MESTRE ALÉM DE POMPÉ ......................... 100

    3.4 O AMADURECIMENTO PROFISSIONAL DO MESTRE DORIVAL................... 106

    3.5 PRÁTICAS EDUCATIVAS, TRANSMISSÃO DE SABERES E RELAÇÕES DE

    TRABALHO: “SE PASSAR OU SE FALTAR ELA TEM DIFERENÇA, TUDO NESTE

    MUNDO TEM UMA MEDIDA” ................................................................................. 110

    CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 120

    REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 123

    GLOSSÁRIO ........................................................................................................... 127

    APÊNDICES ........................................................................................................... 128

    ANEXOS ................................................................................................................. 143

  • 11

    INTRODUÇÃO

    O interesse pelo estudo das embarcações é de longo tempo e prossegue até

    os dias de hoje. Da infância guardo muitas recordações, principalmente daquilo que

    expressa à cultura das pessoas que vivem nesta imensa região chamada Amazônia,

    onde, geograficamente, é considerada a maior bacia hidrográfica do planeta,

    composta por muitos rios, furos e igarapés.

    A memória leva-me ao Círio de Nazaré em Belém, não a recordação de adulto

    - a procissão per si - mas a de criança: o parque de diversão, os brinquedos de miriti,

    entre os quais a cobra e o barco, que ainda me encantam. Quando ganhava esses

    presentes minha imaginação dava vida aos mesmos dentro de uma pequena bacia

    de madeira cheia de água. Viver nessa região é, portanto, sentir o que os versos do

    compositor paraense Ruy Barata nos falam quando retrata a vida do amazônida e

    sua relação com os rios: Esse rio é minha rua, minha rua mururé, piso no meio da

    rua, deito no chão da maré.

    Nesse ambiente de tantos rios, furos e igarapés que são percorridos todos os

    dias pelos ribeirinhos como “ruas e avenidas”, num frenesi constante de barcos que

    circulam a todo instante, o transporte fluvial revela-se de grande importância. Mais

    ainda quando pensamos que, por essas mesmas vias aquosas, passam pessoas e

    cargas, sonhos e desejos, imaginação e esperança dos moradores que utilizam

    essas “ruas” em seu ir e vir, seja a passeio, seja a trabalho ou outros motivos.

    Até os anos de 1980 cruzei muitas vezes essas “ruas” e “avenidas” dentro de

    uma embarcação. Fosse apenas para meu entretenimento, seguir em direção a uma

    taberna (pequeno comércio) na Ilha do Cumbú1, fosse para participar de festas

    carnavalescas em Abaetetuba, Cametá, ou na da Ilha do Marajó onde, durante o

    percurso entre as cidades de Soure e Salvaterra, podia-se ouvir um bom carimbó.

    Um dia, em viagem pelo rio Tocantins com destino à cidade de Cametá,

    sentado ao lado do comandante da embarcação, pude acompanhar de perto os

    procedimentos básicos para a condução da mesma. O comandante, com detalhes,

    professava seus conhecimentos acerca da navegação marítima e enfatizava com

    veemência que os mesmos tinham sido adquiridos na “escola da vida” e não por

    meio da “escola do homem” (a universidade). Com orgulho, mostrava-se conhecedor

    1 Ilha fluvial que faz parte da cidade de Belém.

  • 12

    dos rios da Amazônia e narrava com riqueza de detalhes uma de suas odisséias nas

    águas turbulentas do Rio Tocantins, num trecho entre Marabá e Itupiranga, ao

    atravessar o Lourenção2.

    Para o Comandante Oscar da Costa e Silva, o Lourenção era o maior desafio

    que a natureza pôs nas águas do Tocantins e o segredo do sucesso para uma

    travessia segura era possuir uma embarcação forte, saber fazer a leitura do ritmo

    das águas e mirar a pedra chamada de paredão, para desviar-se, logo em seguida,

    desse obstáculo.

    Coudreau (1980) em sua obra “Viagem a Itaboca e ao Itacaiúnas”, faz

    comentários sobre as dificuldades dessa região dizendo:

    Prosseguimos rumo à grande queda-d’água. [...] chegamos defronte a uma barragem de rochedos compactos que atravessa todo o rio, de leste para oeste. Essa espécie de muralha formando uma barragem valeu à cachoeira o nome que lhe demos de CACHOEIRA DO PAREDÃO. (COUDREAU, 1980, p. 69)

    Atribuo a essas reminiscências da infância o gosto pelas embarcações e

    pelos saberes que as envolvem. Na idade adulta, o contato bem de perto com um

    estaleiro naval reacendeu meu interesse pelo tema.

    Em 2000, atuando como professor de História na Escola Salesiano Nossa

    Senhora do Carmo (Belém, PA), houve a oportunidade de visitar, com um grupo de

    alunos, um estaleiro naval na cidade de Abaetetuba, município paraense conhecido

    como grande produtor de barcos. Nesse local, nos deparamos com alguns mestres

    carpinteiros e diversos tipos de embarcações, a maioria para serem reformadas e

    uma na fase final de construção. Tanto eu quanto os alunos ficamos instigados em

    querer saber sobre o trabalho desses artífices. A pergunta básica era: como se fazia

    um barco e quais dificuldades existiam na profissão?

    As respostas foram variadas, dependendo, por exemplo, do fim a que se

    destinava a embarcação, se era para passageiro, carga ou para a pesca. Dependia,

    também, da capacidade, do peso, e do comprimento do barco. Concluímos que as

    respostas não eram tão simples como pensávamos, pois, construir uma embarcação

    implicava em conhecimentos específicos ligados à geometria, à matemática, à física,

    à química, enfim, conhecimentos diversos vivenciados no cotidiano desses mestres

    carpinteiros, de acordo com o tipo de embarcação encomendada.

    2 Cachoeira no rio Tocantins, próxima ao município de Itupiranga.

  • 13

    Foi percebida, ainda que de modo informal, a complexidade dos

    procedimentos utilizados na construção de um barco e a importância do ofício dos

    mestres carpinteiros para a região. Explicando alguns procedimentos dessa

    construção, os mestres enalteciam-se a si mesmos como os executores das obras

    que ali se encontravam, e por serem os guardiões desses conhecimentos os quais,

    com dificuldades, de geração a geração, chegaram até os dias de hoje. Dentre as

    dificuldades, os carpinteiros ressaltaram a preocupação quanto à escassez de

    encomendas de barcos que diminuem a cada ano, e a falta de aprendizes

    interessados em aprender esse ofício.

    Essas preocupações foram, posteriormente, confirmadas a partir do estudo de

    Lucena (2002, p. 61) que, investigando o uso da etnomatemática na construção de

    barcos, registrou a fala de um carpinteiro de Abaetetuba dizendo: “É uma pena que

    nessa região ninguém mais queira aprender a fazer barcos”.

    Em 2006, de passagem pelo porto de Santarém, foi observado o vai e vem

    dos barcos e os detalhes que diferenciavam cada embarcação. Foi inevitável a

    comparação das embarcações da Região Tapajônica (Santarém) com as da Região

    do Nordeste do Pará (Abaetetuba, Vigia), e de Itupiranga no Sudeste paraense.

    Desse modo, constatou-se a existência de uma diversidade de tipos de

    embarcações e suas variadas especificidades de estilo e design, pois o ritmo das

    águas de cada região da Amazônia apresenta peculiaridades (rios com cachoeiras,

    rios próximos ao mar, baias, igarapés), que requerem determinados modelos navais.

    Mas restaram algumas perguntas: Se a maioria dos carpinteiros fazia barcos

    sem ter frequentado a “escola dos homens”, como foi que adquiriam todos os

    conhecimentos necessários à construção de uma embarcação? Como repassavam

    esses saberes para as gerações seguintes? E a partir dessas interrogações foi

    construída uma possibilidade de obter tais respostas, foi então que surgiu esta

    pesquisa que seria norteada pelas seguintes indagações: Que saberes emergem

    das práticas cotidianas em um estaleiro naval? Quais os procedimentos utilizados

    para a transmissão dos saberes culturais que envolvem as embarcações? Como

    esses saberes foram construídos historicamente?

    Com a formação de historiador buscou-se leituras de diversas fontes

    históricas. A participação em eventos acadêmicos acerca das ações políticas e

    religiosas lusitanas no processo de colonização da Amazônia, promovidos pelo

    Departamento de História da Universidade Federal do Pará em parceria com o

  • 14

    Arquivo Público do Pará, subsidiou a pesquisa. E neste último procurou-se a

    localização de fontes relativas à história da construção de embarcações na

    Amazônia.

    A pesquisa acerca da expansão marítima européia no século XVI registra que

    os lusitanos, ao se estabelecerem em núcleos de povoamento na região Nordeste

    do Pará, ergueram bases para a vigilância dos caminhos que levariam à foz do Rio

    Amazonas. A Igreja Católica, inicialmente por meio dos padres jesuítas e dos

    capuchos, fundou aldeias missionárias que tinham, dentre seus objetivos, a

    catequização dos indígenas habitantes da região (CRUZ, 1973).

    O contato entre europeus e indígenas gerou trocas de conhecimentos acerca

    dos costumes locais, da fauna e flora amazônica, sobretudo, no que concerne ao

    uso da madeira para a construção de embarcações, já que era prática comum dos

    nativos a utilização de canoas nos rios e igarapés que entrecortam a região. Tal fato

    influenciou os portugueses que, “utilizando-se dos conhecimentos indígenas”

    (RODRIGUES, 2000, p.94), passaram a construir pequenas embarcações para o

    trabalho de reconhecimento das áreas não desbravadas, como também para a sua

    ação catequética.

    Os conhecimentos gerados a partir da fusão cultural ocorrida entre

    portugueses e, em especial, os índios tupinambá, transformaram o barco em

    símbolo de uma cultura miscigenada nesses séculos. E o resultado desse contato

    vive-se nos estaleiros ou barracões, onde a despeito das dificuldades que vêm

    atravessando ao longo do tempo, sobrevivem na atualidade como espaços

    privilegiados onde são fabricados os barcos e canoas da Amazônia.

    É dentro desses espaços que o saber fazer de uma embarcação é transmitido

    de geração a geração a partir de narrativas orais que traduzem conhecimentos

    ancestrais. Como locais de circulação de saberes, os estaleiros assumem, portanto,

    a função de uma escola em que os mestres repassam aos ajudantes e aprendizes

    os saberes acumulados historicamente. É, exatamente, para a educação que

    acontece nos estaleiros ou barracões que se volta esta pesquisa, em especial para a

    compreensão dos saberes culturais que perpassam a fabricação de embarcações e

    os processos de transmissão desses saberes entre mestres e aprendizes.

  • 15

    PROBLEMA E OBJETIVOS DA PESQUISA

    Ao se adentrar em um estaleiro naval na cidade de Abaetetuba e se conhecer

    um pouco do cotidiano vivido pelos carpinteiros, observa-se nos discursos dos

    mestres a responsabilidade que se têm em transmitir os saberes adquiridos das

    gerações passadas, assim como também as dificuldades de ordem econômica que

    enfrentam para manter a atividade, entre estas a falta de encomenda de barcos.

    Além disso, foi ressaltada, também, a carência de aprendizes interessados no ofício

    de fazer barcos. A fala desses carpinteiros aponta os saberes da carpintaria naval se

    restringindo cada vez mais à geração mais velha, que parece temer a perda dessa

    tradição frente ao processo da industrialização naval.

    O historiador Hobsbawam (1995) ao prefaciar a obra “Ideologia Alemã” de

    Karl Marx já apontava para esses aspectos do capitalismo global, que ao adentrar

    em setores tradicionais de produção, destrói as bases comunitárias produtivas,

    quando diz: “O desenvolvimento definitivo do capitalismo exige, portanto, o mercado

    mundial”.

    O Brasil, como país integrante da atual ordem capitalista, se insere nas

    previsões de Karl Marx. Quando os militares chegam ao poder em 1964

    implementam uma política que garante as bases de uma economia de mercado, e

    conseguem atrair investimentos estrangeiros para diversos setores da economia

    nacional, à exemplo, na Amazônia, dos Grandes Projetos.

    A política econômica do Estado brasileiro, a partir da década de 1970, foi

    conduzida visando à inserção do Brasil no capitalismo mundial. Esse processo foi

    consolidado com a abertura de mercado, na década de 1990, na gestão do então

    presidente da república Fernando Collor de Melo, que abriu precedentes para a

    entrada de empresas e do capital internacional em diversos setores da economia,

    entre eles, a da pesca e a da construção naval.

    No caso da Amazônia, essa mundialização tomou corpo a partir dos “Grandes

    Projetos” implantados na década de 70 do século vinte pelos governos militares

    apoiados pelo capital internacional.

    Os investimentos nacionais e internacionais aplicados nos Grandes Projetos

    como: a construção da Rodovia Mário Andreazza e estradas vicinais; a implantação

    das Indústrias Jarí e Albrás; a construção da Barragem de Tucuruí, entre outras,

    propiciaram mudanças na cultura amazônica.

  • 16

    Esses projetos, além de abrirem a Amazônia à mundialização econômica,

    trouxeram consigo novas tecnologias que acarretaram alterações significativas no

    campo sócio-cultural dos amazônidas. Como exemplo, a construção da Barragem da

    Hidrelétrica de Tucuruí, no final da década de 1970, que inviabilizou uma grande

    porcentagem do transporte de passageiros via embarcações no trecho entre o Sul

    do Pará e a capital Belém, por causa da barragem erguida no Rio Tocantins.

    Em entrevista feita, em julho de 2008, com o Mestre Enoque (um dos poucos

    carpinteiros navais da cidade de Itupiranga), ele enfatiza a diminuição da atividade

    de construção de embarcações, sobretudo as de passageiros. Em sua fala

    demonstra essa preocupação: “[...] de 1980 prá cá não aparece encomenda de

    barco grande”.

    Além da barragem de Tucuruí, as estradas construídas a partir dos Grandes

    Projetos serviram de concorrência à navegação no que tange ao transporte de

    passageiros e cargas, de modo que a construção de barcos foi drasticamente

    reduzida na região do Sul do Pará.

    Na região do nordeste paraense, onde se situa a cidade de Vigia, os impactos

    atingiram também a construção de embarcações de atividades pesqueiras, para

    Torres (2004):

    As últimas três décadas também são apontadas como intensas transformações na atividade pesqueira tanto no mundo como no Brasil. No estado do Pará essa ação desenvolvimentista no setor pesqueiro teve um impacto enorme sobre as áreas tradicionais de pesca, principalmente por estimular o desenvolvimento de uma frota industrial voltada para a exportação internacional (TORRES, 2004, p. 93).

    Nesse sentido, estando a Amazônia inserida na lógica do mundo globalizado,

    a comunidade dos carpinteiros não passou incólume a esse processo, pois o

    desenvolvimento econômico trouxe mudanças significativas nos hábitos locais. Tais

    mudanças atingiram o setor da pesca e concomitantemente os estaleiros

    estabelecidos na região do Salgado.

    Torres (2004) afirma que:

    Os pequenos barcos utilizados para a pesca na região não permitiram levar o pescado para mercados consumidores mais distantes, em função do produto ser perecível, também a estocagem de peixes dentro das embarcações era limitada (TORRES, 2004, p. 95).

  • 17

    Os estaleiros dessa região, além de perderem encomendas devido à

    concorrência com as grandes empresas construtoras de barcos de ferro, sofreram

    também a concorrência com o transporte rodoviário, pois “a expansão do sistema

    rodoviário que ocorre na década de 50, vai se constituir em outra opção para o

    transporte do pescado, sobretudo no litoral paraense” (Ibidem).

    Para Torres (2004), o sistema viário gerou melhorias para o setor pesqueiro:

    Uma vez que são diminuídas as distâncias dos centros pesqueiros com a capital, principal consumidor, além dessa ligação com a capital devido a demanda do pescado, levou à introdução de produtos manufaturados ou industrializados (roupas, rádios de pilha etc.) para as localidades de pesca (TORRES, 2004, p. 95).

    Apesar das melhorias ocorridas no setor pesqueiro, o setor naval ribeirinho foi

    subestimado, porque assim como “o conhecimento dos pescadores da região

    amazônica nesse período foi considerado “rudimentar” e inadequado aos objetivos

    de modernização” (Ibidem), consequentemente os barcos construídos nos estaleiros

    locais, por não serem “modernos”, também foram considerados inadequados,

    gerando desaquecimento na produção de barcos, além da dificuldade de renovação

    de mão-de-obra nesse setor.

    Portanto, o “novo” traz: ”modernidade”, “dinamismo”, “desenvolvimento”. Essa

    dinâmica oriunda do capitalismo, massificada atualmente pela televisão, induz os

    mais jovens a viver a lógica do presente contínuo, levando-os a não terem ligação

    alguma com o seu passado (HOBSBAWM, 1995):

    A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à de gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer reclamação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim desse segundo milênio (HOBSBAWM, 1995, p.13).

    A população de jovens, uma vez cooptada pelo capitalismo, passa a “migrar

    para os centros urbanos, em busca de empregos e educação” (TORRES, 2004,

    p.36), deixando de lado ofícios artesanais praticados por muitas gerações, como é o

    caso da fabricação de embarcações.

  • 18

    A consequência disso é a permanência dos mais velhos no ofício e,

    concomitantemente, o aumento das dificuldades de renovação dessa mão-de-obra

    nos estaleiros, além da perda de uma tradição que é constituidora tanto da história

    do Brasil quanto da Amazônia e, em particular, da cidade de Vigia, lócus desta

    investigação.

    O envelhecimento das gerações mais velhas acarreta, portanto, a perda

    significativa dos saberes que perpassam a fabricação de embarcações, pois ao

    morrerem, os mais velhos levam consigo tais saberes. Esses saberes não se

    circunscrevem apenas às técnicas de construção de uma embarcação, mas estão

    atrelados a valores culturais, que contribuem tanto para a perpetuação da tradição

    quanto para a formação do cidadão.

    Nessa perspectiva, esta pesquisa se voltou para uma análise dos processos

    educativos vivenciados em um estaleiro naval da Amazônia, em especial para os

    saberes que perpassam a fabricação de embarcações e a forma como são

    transmitidos às gerações mais novas.

    Ao partir da suposição de que no cotidiano de um estaleiro há educação,

    compartilha-se da idéia de Brandão (2007), quando afirma que:

    A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade (BRANDÃO, 2007, p. 10).

    Em seu agir como educadores, os mestres carpinteiros têm um papel

    significativo na sobrevivência dos saberes de construção de barco, pois ao

    garantirem a transmissão desses saberes, educam os aprendizes garantindo a

    perpetuação, ao menos à próxima geração, desse legado cultural amazônico.

    Como base nessas considerações, esta pesquisa estrutura-se tendo como

    norte as seguintes questões: Que saberes emergem das práticas educativas em um

    estaleiro naval? Que procedimentos são utilizados na organização e transmissão

    desses saberes? Que medidas estão sendo tomadas pelos sujeitos, herdeiros desse

    legado cultural para a preservação desses saberes? Como contextualizar,

    historicamente, a fabricação de embarcações na Amazônia?

    A partir dessas questões, o objetivo geral desta pesquisa é analisar as

    práticas educativas desenvolvidas em um estaleiro naval semi-artesanal da

  • 19

    Amazônia, em especial, o Estaleiro Esperança localizado na cidade de Vigia (PA), e

    o processo de construção e transmissão dos saberes culturais que perpassam a

    construção de embarcações.

    Como objetivos específicos a pesquisa propõe-se a:

    • Identificar os saberes culturais construídos e repassados pelas gerações

    mais velhas às mais novas, no processo de fabricação de embarcações.

    • Analisar os procedimentos utilizados pelos carpinteiros na organização e

    transmissão dos saberes.

    • Verificar as medidas tomadas para a preservação da tradição de

    construção de embarcações.

    • Contextualizar, historicamente, a presença de embarcações na Amazônia.

    O estudo pretende, ainda, verificar a educação que acontece nos estaleiros e

    os saberes que são postos em circulação na feitura de embarcações, evidenciar a

    existência de processos educativos nesses espaços e, com isso, ampliar a noção de

    educação, em geral, circunscrita ao ambiente escolar não formal.

    Ao contextualizar, historicamente, a presença de embarcações na Amazônia e

    os saberes implicados nesse saber-fazer, esta pesquisa tem a intenção de contribuir

    com a ampliação da produção teórica no campo da história da educação voltada

    para o estudo dos processos educativos mais amplos, isto é, que ocorrem para além

    dos muros da escola, processos esses ainda pouco conhecidos.

    PERSPECTIVAS TEÓRICAS ADOTADA

    A compreensão, nesta pesquisa, da educação existente no contexto de um

    estaleiro naval da Amazônia, funda-se a partir da articulação entre determinados

    domínios do conhecimento.

    Do ponto de vista da educação, onde se insere prioritariamente esta pesquisa,

    apropria-se das contribuições de autores como BRANDÃO (2007), FREIRE (2001),

    OLIVEIRA (2007) e CHARLOT (2007).

    Brandão (2007), em “O que é educação” e “Educação como Cultura”,

    evidencia a importância do que é educação além dos muros escolares, pois para o

  • 20

    autor, a educação acontece em diversos segmentos de uma sociedade

    independentemente de uma instituição escolar.

    Ao citar que em qualquer ambiente existe aprendizado, enfatiza a educação

    como conhecimento prático do dia-a-dia, que além do aprimoramento dos sujeitos

    para a vida, sedimenta a cultura de uma dada sociedade.

    A contribuição dessas obras para o desenvolvimento desta pesquisa,

    realizada no Estaleiro Esperança, refere-se na compreensão e análise das práticas

    educativas oralizadas e transmitidas dentro desse estaleiro nas fases da produção

    de um barco: a percepção de que há saberes no campo da matemática, da química,

    da física, da geometria, da educação, da administração, da economia, da ética, da

    arte e da história, que encontramos de forma sistematizada nas escolas, no entanto,

    praticados com segurança na comunidade de carpinteiros.

    Oliveira (2007), na obra “Cartografia de Saberes”, reúne uma coletânea de

    pesquisas que expressa à vida cotidiana do caboclo amazônico, suas práticas,

    educativas e seus saberes acerca da natureza, da culinária, da religiosidade, da

    música, dos mitos. Elementos esses que compõem a cultura popular dos

    amazônidas.

    Na coletânea que compõe essa obra, é verificada a “cultura rural-ribeirinha, à

    criatividade de seus habitantes e ao produto de acumulação de suas experiências

    sociais” (OLIVEIRA, 2007, p. 31), seja nos saberes relacionados às ervas medicinais

    que ajudam na cura de muitas doenças; seja da flora e na produção de artefatos

    para o dia-a-dia ou da pajelança.

    É na chamada “cultura de conversa” (OLIVEIRA, 2007) que acontece às

    transmissões de saberes e que a partir de relações de solidariedade entre as

    pessoas é que se garante a preservação de uma tradição cultural. O Estaleiro

    Esperança faz parte dessa cultura ribeirinha, onde a oralidade de transmissão de

    saberes é difundida e até então perpetuada.

    É nessa obra onde encontro referências de saberes amazônidas já

    cartografadas, que subsidiam a análise dos conhecimentos não escolares que

    perpassam no Estaleiro Esperança. Também há o registro de como esses saberes

    ribeirinhos, citados nesta obra, foram acumulados de geração a geração entre as

    comunidades de carpinteiros.

    Em Freire (2001), a importância de sua obra “Pedagogia da

    Autonomia/Saberes necessários à prática educativa” reside na compreensão do

  • 21

    sujeito inserido em uma sociedade que está em constante processo de

    transformação cultural, pois por sermos sujeitos “inacabados” buscamos

    constantemente o acabamento no aperfeiçoamento das práticas trabalhistas

    vivenciadas no dia-a-dia, seja em um estaleiro naval ou em qualquer outra situação

    que ocorra o aprendizado.

    No campo do saber, é utilizada a obra “Da relação com o saber” de Charlot

    (2007), como base para análise e compreensão dos saberes não escolares que

    circulam no estaleiro investigado. Para Charlot (2007):

    A relação com o saber é a relação com o tempo. A apropriação do mundo, a construção de si mesmo, a inscrição de uma rede de relações com os outros – “o aprender” – requerem tempo e jamais acabam. Esse tempo é o de uma história: a da espécie que transmite um patrimônio a cada geração; a do sujeito; a da linhagem que engendrou o sujeito e que ele engendrará. Esse tempo não é homogêneo, é ritmado por “momentos” significativos, por ocasiões, por rupturas. Esse tempo por fim, se desenvolve em três dimensões que se interpenetram e se supõe uma à outra: o presente, o passado, o futuro (CHARLOT, 2007, p. 79).

    Faz-se a análise das relações sociais estabelecidas entre os sujeitos

    envolvidos no ofício de construção de barcos em seu tempo histórico. Busco

    também fazer análises das relações entre o saber e o aprender que foram tecidas

    historicamente através da cultura de conversa (OLIVEIRA, 2007), entre mestres e

    aprendizes.

    Em outros campos do conhecimento, a Amazônia é descrita em prosa e verso

    por muitos autores, que ao discorrerem em suas obras, seus cantos, poesias e

    músicas, escrevem com riqueza de detalhes o movimento das águas dos rios e o vai

    e vem dos barcos, expressando, assim, de forma poética as representações

    simbólicas dessa cultura cabocla.

    Contudo, quando se trata de encontrar obras que retratam especificamente os

    estaleiros, no que tange a arte de ensinar e aprender, na construção de barcos,

    entre mestres, ajudantes e aprendizes ribeirinhos, o número de obras é bem

    reduzido.

    Há a inclusão de algumas obras relacionadas à pesca, pois existe uma

    relação bem próxima entre os construtores de barcos e as atividades pesqueiras.

    Furtado apud Ximenes (1992, p. 32), em sua pesquisa intitulada de “Sem

    barco, como pescar?” vem corroborar para análise de alguns pontos que já foram

  • 22

    abordados acerca da fabricação de barcos, como: tipo de embarcação, se é para o

    transporte de carga ou de passageiros; tipo de remo, se é para água salgada ou

    para doce; tipo de vela, se é para águas interiores ou para o litoral. Esses exemplos

    fornecem pistas para caminhos ainda a serem percorridos, na perspectiva de

    mapear os saberes praticados na construção de barcos no Estaleiro Esperança.

    As demais obras existentes retratam assuntos que envolvem as práticas do

    fazer na pesca; da navegação fluvial; do barco na vida do ribeirinho; de situações

    sócio-econômicas dos sujeitos envolvidos nesses setores produtivos da região, onde

    a presença desse meio de transporte é vital.

    Essas obras contribuem para as análises levantadas no campo pesquisado

    com a finalidade de se chegar aos objetivos e responder as questões norteadoras

    dessa pesquisa, as quais perpassam todo o processo da construção de uma

    embarcação num estaleiro, em Vigia de Nazaré.

    Isaac (2005), estudando o potencial pesqueiro do Pará, no litoral nordeste do

    Estado, destaca a cidade de Vigia de Nazaré como uma região dotada de

    conhecimentos específicos na arte de pescar e na construção de embarcações,

    motivando a preservação dessa tradição na região. Para o autor, a atividade

    pesqueira e os barcos caminham juntos, em uma simbiose, sustentando o

    crescimento econômico do município de Vigia.

    Torres (2004), em sua obra “Envelhecimento e pesca”, analisa o processo de

    envelhecimento das comunidades pesqueiras na cidade de Curuçá (PA). O autor

    aponta a falta de aprendizes como gerador do déficit na ampliação da mão-de-obra

    pesqueira na região, e a consequente concentração e permanência desse ofício nas

    mãos das gerações mais velhas.

    Nesta obra, ao associar as dificuldades vividas pelos trabalhadores da pesca

    com as dos construtores de barco, o autor fornece subsídios para a compreensão

    das dificuldades enfrentadas também em estaleiros navais semi-artesanais da

    Amazônia. Ao se utilizar dessa comparação, evidenciam-se as dificuldades que o

    setor da carpintaria naval semi-artesanal apresenta na atualidade, tanto de ordem

    econômica - como a falta de encomendas, quanto de ordem social - o

    envelhecimento das gerações mais velhas e a falta de novos aprendizes. Tudo isso

    como consequência da mundialização da economia.

    Lucena (2002), em sua dissertação de mestrado intitulada “Carpinteiros

    Navais de Abaetetuba: Etnomatemática navega pelos rios da Amazônia”, aborda

  • 23

    especificamente as técnicas de construção de embarcações na cidade de

    Abaetetuba-Pa. Sob a ótica da etnomatemática emergente, que procura estabelecer

    um diálogo entre a ciência e os saberes da tradição, retrata o estado da arte da

    carpintaria naval em Abaetetuba.

    A importância dessa obra está na indicação dos caminhos percorridos pela

    autora em sua investigação a qual, a partir da observação do cotidiano dos mestres

    na construção de barcos, aponta para um estilo de pensar que envolve a utilização

    de recursos matemáticos, com organização criteriosa de idéias, estimativas, códigos

    próprios e rigor lógico, características que pertencem à Matemática desenvolvida na

    academia. E esses recursos são, também, utilizados pelos trabalhadores do

    Estaleiro Esperança a partir da cultura de conversa no ato de construir barcos.

    Ximenes (1992), ao organizar a obra “Embarcações, Homens e Rios na

    Amazônia”, apresenta uma coletânea de textos de pesquisas desenvolvidas por

    estudantes ligados ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade

    Federal do Pará (UFPA), em que são apresentadas as bases históricas da

    importância do uso do barco na vida dos amazônidas e descrições de técnicas

    utilizadas na construção dos mesmos.

    Esses estudos têm corroborado para esclarecer o que já foi produzido em

    obras científicas sobre embarcações, que apontam para os aspectos físicos (formas)

    das embarcações das regiões estudadas.

    Rodrigues (2000), em sua obra “500 anos de trânsito no Brasil: convite a uma

    viagem”, destaca a história do Brasil, não sob aspectos políticos e econômicos, mas

    enfocando o transporte de pessoas e cargas no continente brasileiro. Nessa obra,

    desvela o deslocamento de pessoas durante o período pré-cabralino até a

    construção de estradas de rodagens. Enfoca desde as pequenas embarcações

    feitas pelos índios, até o aprimoramento das mesmas que gerou a construção de

    diversos modelos de barcos relacionados culturalmente com uma dada região.

    A importância desta obra revela-se no aprofundamento das noções de

    transporte praticados no Brasil desde os tempos pré-cabralinos, como também por

    ela fazer uso de iconografias que representam modelos de barcos de seu tempo

    histórico, que contribuíram para devida análise e compreensão dos modelos de

    barcos produzidos na atualidade, no Estaleiro Esperança, lócus da pesquisa.

    Na medida em que esta pesquisa define como um de seus objetivos a

    contextualização das embarcações na Amazônia e os saberes que perpassam sua

  • 24

    fabricação, faz-se necessário, também, as fontes históricas sobre a Amazônia e o

    Pará, especificamente.

    A obra de Azevedo (1999), “Os Jesuítas no Grão-Pará suas Missões e a

    Colonização” parte de documentos oficiais para discorrer sobre a história da

    Amazônia no contexto da colonização. O autor enfoca as ações do Estado

    Português e das Ordens Religiosas que aqui mantiveram contato com as diversas

    tribos indígenas das margens dos rios, litoral e meio da floresta. Sua relevância está

    no que tange a análise do contato cultural entre colonizador e colonizado que, ao

    longo dos séculos, produziu uma cultura específica nessa região – a cultura cabocla

    – sendo elemento dessa cultura, a fabricação de embarcações que ganharam

    características específicas ao longo do tempo.

    Raiol (1970), em “Obras de Domingos Antonio Raiol – Barão de Guajará”,

    dedica um capítulo sobre a História Colonial do Pará desde as primeiras ações

    políticas e religiosas envolvendo portugueses e índios tupinambá da Região do

    Salgado. Em seu texto observa-se as expressões dos nativos que nominavam

    lugares, árvores, frutas, animais, rios que ajudam a reconstruir o cenário histórico da

    região de Vigia, para onde se volta esta pesquisa.

    Em “História de Belém”, Cruz (1973) trata, basicamente, da história política e

    econômica do Pará do período colonial, fornecendo bases para a investigação da

    história das embarcações e seu processo de construção no passado a partir de

    documentos oficiais que registram a solicitação de envio de carpinteiros para o Grão-

    Pará, bem como a fundação do primeiro estaleiro da região.

    Bettendorff (1627 – 1698), na obra “Crônica da Missão dos Padres da

    Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”, tendo como consultor o historiador

    paraense Vicente Sales, editada em 1990, enfoca as narrativas dos padres jesuítas

    em suas missões de catequese na região do Nordeste Paraense.

    Essa obra nos fornece uma boa dimensão da utilização de canoas entre os

    índios da Amazônia. Um dos exemplos é a ajuda indireta de muitos índios na ação

    missionária, que ao utilizarem suas canoas transportando os padres, serviam como

    remadores, e auxiliavam indiretamente no processo de catequese.

    A utilização das narrativas descritas pelo Padre Jesuíta João Daniel (1722-

    1776) em sua obra “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, nos oferece

    detalhes minuciosos da vida dos indígenas e caboclos na Amazônia em tempos da

    colonização e sua relação com seu meio ambiente.

  • 25

    Outra obra importante para a compreensão da realidade social dos

    amazônidas é a de Veríssimo (1970), que enfatiza os aspectos econômicos,

    ambientais e sociais como formadores de uma cultura cabocla – miscigenada.

    E no desvelar da história de nosso passado que se pretende encontrar pistas

    que nos conduzam a afirmar a tradição cultural de construção de barcos na atual

    cidade de Vigia.

    As obras citadas, ainda que não enfoquem diretamente a questão da

    educação, possibilitam a compreensão dos saberes culturais que perpassam o

    saber-fazer de uma embarcação, além de contribuírem para evidenciar os estaleiros

    como espaços significativos de aprendizagem. Dentre as principais contribuições

    teóricas trazidas por essas obras, destacam-se:

    • A compreensão das práticas culturais desenvolvidas nos ofícios de

    comunidades tradicionais, seja na pesca e, sobretudo, na carpintaria naval;

    • A importância do diálogo e da tradição oral na transmissão dos saberes no

    cotidiano dos construtores;

    • O aprimoramento das técnicas de construção de embarcações;

    • A contextualização das embarcações e o processo histórico da formação

    dos saberes que envolvem sua fabricação;

    METODOLOGIA DA PESQUISA

    Esta pesquisa, de natureza qualitativa, caracteriza-se como de campo,

    documental e bibliográfica. É de campo dado à necessidade de se coletar os dados

    no ambiente natural em que ocorre o processo de construção de embarcações no

    Estaleiro Naval Esperança, na cidade de Vigia.

    Esta pesquisa possui um caráter qualitativo, em razão da subjetividade e

    simbolismo presentes na feitura de uma embarcação. Saberes existentes entre os

    sujeitos e sua relação com o mundo, com o objeto (embarcação), e consigo mesmo.

    Charlot (2007), ao comentar a relação entre sujeito e o saber, diz:

    Não há sujeito de saber e não há saber senão em uma certa relação com o mundo, que vem a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma relação com o saber. Essa relação com o mundo é também relação consigo mesmo e a relação com os outros. Implica uma forma de atividade e, acrescentarei, uma relação com a linguagem e uma relação com o tempo (CHARLOT, 2007, p. 63)

  • 26

    Com isso foram analisados os saberes que são difundidos por uma educação

    não escolar no estaleiro estudado como um fato construído historicamente.

    Na obra de Minayo (2007), que ao descrever sobre a abordagem qualitativa

    sustenta essa pesquisa, diz:

    Ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. (MINAYO, 2007, p. 21)

    Para essa pesquisa de campo, utiliza-se como técnica a observação, que

    auxilia na coleta de dados visuais e dados verbais, sobre os procedimentos técnicos

    utilizados pelos carpinteiros nas etapas na construção de barcos, que são difundidos

    a partir da “cultura de conversa” (OLIVEIRA, 2007).

    Durante essa etapa, foi utilizado um caderno de campo para o registro das

    atividades desenvolvidas pelos trabalhadores no estaleiro; um gravador, para o

    registro das falas dos mestres carpinteiros, dos trabalhadores da calafetagem,

    ajudantes e do aprendiz. Esse recurso técnico facilita a coleta de informações não

    visualizadas que são expressas e com denominações próprias na arte do fazer um

    barco.

    A máquina fotográfica permite a captação das ações durante a construção de

    um barco, e com esse registro tem-se os dados coletados para análise. O uso das

    fotografias nesse estudo se faz necessário para o registro mais abrangente das

    atividades realizadas na construção de barcos, com o objetivo de captar a forma e o

    jeito como essa construção está sendo desenvolvida pelos mestres, calafetes e

    ajudantes no estaleiro. Logo, o registro fotográfico é importante, pois capta cenas

    que muitas vezes escapam numa observação visual. Para Flick (2004):

    Elas permitem gravações detalhadas de fatos, além de proporcionar uma apresentação mais abrangente e holística de estilos de vida e condições. Possibilitam o transporte de artefatos e a apresentação destes como retratos, e também a transgressão de limites de tempo e espaço. Podem captar fatos e processos que sejam muito rápidos ou complexos para o olho humano, por último, são menos seletivas do que as observações. (FLICK, 2004, p. 162)

  • 27

    Utiliza-se também como técnica de coleta de dados as entrevistas abertas e

    semi-estruturadas, que partem de um roteiro de perguntas abertas, que estimulam

    respostas espontâneas. Como exemplo segue algumas perguntas realizadas com o

    mestre Zuzinha, Dorival, Jacy, Juracy, que trabalham no Estaleiro Esperança:

    Qual seu nome?

    Qual a data do seu nascimento?

    Qual sua escolaridade?

    Com você aprendeu ofício de construir barcos?

    Qual era o nome de seu pai?

    Qual a escolaridade de seu pai?

    Com que ele aprendeu o ofício de carpinteiro naval?

    Você tem filho? Quantos?

    Eles aprenderam o ofício de carpinteiro?

    Como era o dia-a-dia no estaleiro de seu pai?

    Existia alguma festa na entrega do barco?

    Através das entrevistas passa-se a ter maior aproximação com os sujeitos da

    pesquisa, penetrando no universo de valores e significados que fazem parte do seu

    meio social no desenrolar do ofício.

    O conjunto de respostas verbalizadas são gravadas e armazenadas em mini

    fitas k7 de um aparelho portátil de gravação, para serem posteriormente descritas e

    analisadas.

    Esse tipo de técnica ajuda na aproximação entre os sujeitos investigados que

    a partir de perguntas abertas relacionadas aos objetivos específicos e das questões

    norteadoras desta pesquisa, desvelam-se os dados subjetivos que perpassam entre

    os sujeitos envolvidos na construção de barcos.

    Esses dados subjetivos que ocorrem no ato de construir uma embarcação,

    não são possíveis de serem captados, somente pela técnica de observação, pois

    apresentam valores, atitudes, opiniões, os quais estão na memória do mestre, e

    muitas vezes são externados ou não, durante a construção do barco, que podem se

    materializar no ato de uma entrevista.

    Para a análise do material coletado os procedimentos da Análise Qualitativa

    do Conteúdo priorizam as entrevistas e os registros fotográficos.

  • 28

    Na concepção de Flick (2004), devemos:

    Analisar a situação da coleta de dados (como foi produzido o material? Quem participou dessa produção? Quem estava presente na situação da entrevista? De onde vem os documentos que vão ser analisados? Etc.)”. (FLICK, 2004, p. 202)

    Esta pesquisa também se caracteriza como documental, pois para

    entendermos a tradição de uma sociedade, em especial a de Vigia, que se

    especializou em construção de barcos de pesca, faz-se necessário revisitar

    documentos históricos conservados em órgãos públicos que subsidiaram a análise

    acerca desse legado cultural.

    O revisitar desses documentos históricos teve como objetivo analisar o legado

    histórico da tradição de construção de barcos e a relação dessa tradição na

    formação da sociedade vigiense.

    Esta pesquisa caracteriza-se também como uma pesquisa bibliográfica, dada

    a contribuição de diversas obras, seja de relatos de viagens ou de estudos

    científicos de autores que tratam de assuntos que envolvem as embarcações

    ribeirinhas em seus aspectos gerais.

    As obras citadas acima subsidiaram a análise do processo histórico que

    sedimentou em Vigia a tradição de construção de barcos de pesca, como também

    no tratamento dos dados coletados nessa pesquisa, realizada entre o ano de 2008 a

    2009, no Estaleiro Esperança em Vigia.

    O locus da pesquisa é o Estaleiro Naval Esperança, com característica de

    produção semi-artesanal, que no processo de produção de uma embarcação utiliza-

    se tanto de equipamentos modernos como: máquina de corte da madeira bruta;

    motosserra; lixadeira elétrica, como também manual na utilização do gramíneo, que

    mede a espessura da madeira a ser cortada; da plaina manual; de serrotes; do

    cavalete que ajuda a posicionar a prancha de madeira para ser trabalhada; a queima

    da madeira para ser curvada. Recursos esses utilizados para a fabricação de peças

    que vão compor a estrutura de uma embarcação.

    A escolha do Estaleiro Esperança teve como critério a situação de legalidade,

    pois dos três estaleiros existentes na cidade é o único que possui autorização da

    Capitania dos Portos do Pará para funcionar. É também o segundo estaleiro mais

    antigo em funcionamento, onde a tradição ribeirinha de construção de barcos de

    pesca ainda se preserva.

  • 29

    A cidade de Vigia é considerada tradicional na construção de barcos. Na obra

    de Furtado apud Ximenes (1992, p.32), que escreve sobre a prática pesqueira desta

    cidade, no título de seu trabalho levanta uma questão: “Sem barco, como pescar?”,

    ou seja, as relações entre a pesca e a construção de barcos estão imbricadas.

    Portanto, barco e pesca fazem de Vigia um grande pólo pesqueiro do Estado do

    Pará (ISSAC, 2005).

    A cidade de Vigia, onde está localizado o Estaleiro Esperança, é um município

    que compõe a Região do Nordeste do Pará, banhada pelo Rio Guajará-Mirim.

    Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), coletado

    em 2007, a população dessa cidade está estimada em 43.847 habitantes, sendo que

    a maioria vive no meio urbano.

    A escolha dessa cidade deve-se ao seu legado histórico iniciado com a

    colonização portuguesa no século XVII, precisamente no ano de 1615, com a

    fundação de um aldeamento chamado pelos Tupinambá de Uruitá

    (LOUREIRO,1987, p. 51). No século XVIII, o governo construiu um posto com vigias,

    para controlar a ação de contrabandista naquela região. Esse posto passou a ser

    referência desse lugar, portanto, tornou-se conhecida com o nome de Vigia, devido à

    função que lhe coube na História.

    Além desse legado histórico, outro fator de destaque é seu caráter religioso,

    pois a cidade primeiramente surgiu de um aldeamento missionário, como notificou a

    pesquisadora Loureiro. A região vai ganhar maior proporção religiosa, devido às

    narrativas orais difundidas no século XVIII sobre o naufrágio de uma embarcação

    portuguesa, que por “intercessão de Nossa Senhora de Nazaré foram salvos seus

    tripulantes (Ibidem, p.61).

    Então, a relação histórica desenvolvida a partir do aldeamento, do posto

    fiscal, da religião e da pesca, transformou a cidade de Vigia, com seus 393 anos de

    existência, em um município de expressão religiosa, por ter o Círio mais antigo do

    Norte do Brasil; de grande expressão pesqueira (o segundo maior do Estado), e de

    construção de barcos.

    Os sujeitos que fazem parte dessa pesquisa correspondem a 03 membros da

    comunidade de carpinteiros que desenvolvem os serviços da carpintaria naval no

    Estaleiro Esperança, são eles: O Sr. Dorival Dantas, marajoara 65 anos de idade,

    conhecido por Bigaiu. Sua escolha deve-se por ser um dos mais velhos carpinteiros

    ainda na ativa, como também seus filhos Jacy Dantas e Juracy Dantas, que se

  • 30

    constituem como herdeiros dos saberes adquiridos de seu pai.

    A partir da seleção desses sujeitos, foi possível observar a “cultura de

    conversa” (OLIVEIRA, 2007) desenvolvida entre os trabalhadores do Estaleiro

    Esperança na arte de fazer um barco, sobretudo, atentar para os saberes difundidos

    entre aqueles que atuam neste local de trabalho

    Charlot (2007):

    Não há saber que não esteja inscrito em relações de saber. O saber é construído em uma história coletiva que é a da mente humana e das atividades do homem e está submetido a processos coletivos de validação, capitalização e transmissão. Como tal, é o produto de relações epistemológicas entre os homens. Assim sendo, as relações de saber são, mais amplamente, relações sociais. Essas relações de saber são necessárias para constituir o saber, mas, também, para apoiá-lo após sua construção: um saber só continua válido enquanto a comunidade científica o reconhecer como tal, enquanto uma sociedade continuar considerando que se trata de um saber que tem valor e merece ser transmitido (CHARLOT, 2007, p. 63)

    As observações e coleta de dados foram iniciadas e concluídas. Registrada

    todas as etapas: o contrato da encomenda (barco); a preparação dos moldes; o

    tempo a ser empregado nessa encomenda; as dificuldades que são apresentadas no

    decorrer da construção, entre outras. E no dia-a-dia, na arte de fazer o barco, é que

    se encontram pistas que levam a conhecimentos técnicos aplicados e verbalizados

    em linguagem própria do senso comum, no estaleiro.

    As observações e entrevistas, que foram realizadas até o esgotamento das

    indagações, subsidiaram o texto.

    Convém afirmar que ao se envolver a partir das observações e entrevistas no

    dia-a-dia dos trabalhadores da carpintaria naval, é sentir um pouco a realidade vivida

    pelos mestres, ajudantes, calafetes e aprendizes, quando desenvolvem seu ofício. A

    dinâmica que lá existe provém de ações oriundas de práticas memorizadas por

    décadas e reelaboradas a partir do tempo histórico vivido daqueles que

    encomendam ou reformam o barco.

    Portanto, o conjunto de técnicas aplicadas nesta pesquisa produziu uma

    quantidade de dados orais, resultado das entrevistas e conversas realizadas com os

    sujeitos da pesquisa. Também visuais, devido ao uso da fotografia, que permitiram

    fazer análises do objeto investigado, o que é comum nas pesquisas qualitativas e

    das leituras de documentos oficiais da época da colonização e das bibliografias

    consultadas.

  • 31

    A etapa final da pesquisa consistiu no mapeamento dos saberes que estão

    presentes no estaleiro naval, os quais são oralizados e transmitidos no dia-a-dia dos

    homens que constroem os barcos. Saberes esses que emergem das práticas

    educativas cotidianas. Esse mapeamento identificou os saberes e práticas

    educativas entre os sujeitos envolvidos na arte da carpintaria naval, que visa à

    compreensão dos saberes produzidos e transmitidos no cotidiano do fazer uma

    embarcação.

    A partir do que foi exposto, a dissertação encontra-se organizada em três

    seções a seguir:

    A primeira seção intitulado de “Embarcações e Pesca: o presente e o

    passado imbricados na cultura vigiense”, faz um levantamento histórico, geográfico

    na formação da cultura da cidade de Vigia.

    A segunda seção intitulada de: “Embarcações a serviço da expansão

    comercial, política e religiosa portuguesa na Amazônia: ubá, igarité e vigilengas”,

    analisa a utilização das embarcações indígenas e caboclas no processo de

    conquista e colonização da Amazônia, como também a construção de uma tradição

    voltada para a carpintaria naval.

    A terceira seção intitulada de: “Estaleiro de carpintaria naval: um local de

    circulação de saberes” discorre sobre o processo de construção de saberes voltados

    para a arte da carpintaria naval iniciados pelo mestre Dorival Dantas na Ilha do

    Marajó e sedimentados em Vigia de Nazaré.

    Os resultados obtidos na pesquisa são de grande importância para estudos

    acadêmicos no campo do saber e do registro da própria história da Amazônia.

  • 32

    SEÇÃO I

    EMBARCAÇÃO E PESCA: O PRESENTE E O PASSADO IMBRICADOS NA

    CULTURA VIGIENSE

    “A história é uma ciência, mas uma ciência que tem como

    de suas características, o que pode significar sua

    fraqueza mas também sua virtude, ser poética, pois não

    pode ser reduzida a abstrações, a leis, a estruturas”

    (BLOCH, 1997, p.19).

  • 33

    Baia do Marajó Rio Açaí

    Vigia

    Rio Guajará Miri

    01

    02

    1.1 ASPECTOS GEOPOLÍTICOS DE VIGIA DE NAZARÉ

    Vigia de Nazaré é um município localizado na Mesorregião do Nordeste

    Paraense, e Microrregião do Salgado, banhada pelo Rio Guajará-Mirim. Limita-se ao

    norte pela Baía do Marajó e o município de São Caetano de Odivelas, a leste pelos

    municípios de São Caetano de Odivelas e Castanhal, ao sul pelo município de Santo

    Antônio do Tauá e a oeste pelos municípios de Colares e da Baía do Marajó.

    A imagem de satélite, o diagrama e o mapa abaixo nos oferecem a posição

    geográfica exata da cidade de Vigia de Nazaré, no Estado do Pará. É nesta região

    onde se desenvolve a pesquisa sobre os saberes práticos aplicada na construção

    naval, precisamente no Estaleiro Esperança, um dos mais antigos na tradição de

    construção e reparos de barcos de pesca dessa micro-região amazônica.

    Ilustração 1: Imagem de satélite de Vigia. Ilustração 2: Diagrama da localização geográfica de Vigia. Fonte: CD Brasil, 2009.

    A ilustração 1, fotografada por satélite nos permite verificar com fidelidade os

    aspectos físicos do território vigiense. Observa-se sobretudo o principal rio dessa

    região – o Guajará Mirim – e os igarapés que formam os braços fluviais e ajudam a

    rasgar o continente. Esse rio e os igarapés exerceram no passado colonial, como

    também em tempos atuais, uma importante via de acesso marítimo que ligava Vigia

    a Belém, capital do Grão-Pará e para as demais cidades da Amazônia Ocidental.

  • 34

    Ilustração 3: Mapa rodo-fluvial de Vigia. Fonte: CD Brasil, 2009.

    Na ilustração 2, o diagrama fornecido pela Embrapa, expressa o

    posicionamento geográfico do município de Vigia no mundo, com Latitude 0º52’30”

    ao sul e Longitude 48º07’30” a oeste.

    A ilustração 3, possibilita ter uma macro-visão do diagrama onde situa-se a

    cidade de Vigia. A partir dele, observamos a divisão territorial-política de cada

    município, sobretudo a rede rodoviária da Região Nordeste do Estado do Pará que

    interliga os municípios por terra, como também os principais rios que compõem essa

    região considerados pelos caboclos como ruas e avenidas, pois nelas transitam

    costumeiramente os barcos num constante vai e vem, seja no transporte de carga ou

    de pessoas.

    Atualmente, o município é constituído pelos distrito de Vigia (sede), composta

    por 08 bairros: Centro, Arapiranga, Castanheira, Vila Nova, Sol Nascente, Novo

    Horizonte, Santa Rita, Amparo e por mais três vilas: Santa Rosa, Penhalonga e

    Porto Salvo. As localidades mais afastadas da sede como Santa Rosa, Pelhalonga e

    Porto Salvo, desenvolvem atividades econômicas voltadas mais para a agricultura,

    cultivando culturas como a do mamão, maracujá, pimenta-do-reino, coco, mandioca,

    hortaliças e legumes.

    Segundo o censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),

    coletado em 2007, a população dessa cidade está estimada em 43.847 habitantes,

  • 35

    que estão subdivididas em diversos setores da economia local, sendo que 82%

    desta população concentram-se no meio urbano, desenvolvendo atividades

    trabalhistas, sobretudo em setores do comércio e de serviços gerais.

    Apesar dos dados do IBGE indicarem que o principal setor da economia que

    emprega a mão-de-obra local seja o de serviços e do comércio, a região onde se

    localiza a cidade de Vigia tem tradição no setor da pesca, sobretudo a pesca

    artesanal, que não é mencionado em detalhes por esse órgão.

    Contudo, diversas pesquisas acadêmicas as quais estudam a ictologia

    marítima da região, principalmente a microrregião onde deságua o Rio Amazonas, o

    Rio Tocantins e o litoral leste paraense, apontam a importância da pesca artesanal

    para a sociedade que vive nesse meio ambiente.

    A obra de Veríssimo (1970), “A Pesca na Amazônia” é uma das pesquisas

    pioneiras sobre o assunto da pesca e a relação entre o homem e o seu meio

    ambiente. Ele comenta que:

    O peixe foi sempre, então como hoje, mais ainda então que hoje, na Amazônia, o principal desse alimento. A sua abundância, a habilidade que os índios tinham em pescá-lo, foram parte nessa obra verdadeiramente admirável da fácil penetração portugueses sertões amazônicos adentro (VERÍSSIMO, 1970, pg. 90).

    Estudos mais recentes apontam também para a relação existente entre a

    pesca, barco e sociedade. O trabalho de Loureiro (1987), que através do “Inventário

    Cultural e Turístico do Salgado”, destaca o legado histórico dessa região e sua

    importância na pesca. Em Issac (2005), que ao pesquisar “Atividade pesqueira no

    município de Augusto Correa” (na Região do Salgado), além de aprofundar nos

    aspectos relacionados à pesca nesse município, enfatiza também a tradição que a

    Cidade de Vigia tem em construção de barcos pesqueiros. E, finalmente Torres

    (2004), em o “Envelhecimento e Pesca”, destaca a pesca e os pescadores na

    desembocadura do Rio Amazonas.

    Há também outros trabalhos sobre a atividade pesqueira que fazem análise

    econômica do Estado do Pará, como órgão público SEPOF (Secretaria do Estado de

    Planejamento, Orçamento e Finanças) que destaca a pesca artesanal na região de

    Vigia, sua importância econômica e social para a sociedade local. Estes dados, de

    2006, foram consultados e respaldaram as informações sobre pesca levantadas

    neste trabalho.

  • 36

    Em se tratando a área estudada, esse zoneamento ratifica os indicadores do

    IBGE, destacando que a maioria da população economicamente ativa, que vive na

    Região do Salgado, concentra-se no terceiro setor da economia. Entretanto, esse

    órgão estadual evidencia a atividade pesqueira nessa região, e ainda ressalta que é

    um dos principais segmentos econômicos que cresceram no âmbito da economia

    local nos últimos tempos, vindo a corroborar com os dados apresentados por

    Veríssimo no final do século XIX e por outros pesquisadores no século XX e XXI.

    Em 2008, a SEPOF apresentou o mapeamento das atividades econômicas

    dos municípios que congregam o Estado do Pará, subdivididos em zonas dentro das

    microrregiões (Ilustração 4).

    Na parte leste do Estado do Pará, encontramos nesse zoneamento

    econômico dezoito municípios, e cada um com suas especificidades na economia

    local, entre eles o município de Vigia.

    A cidade de Vigia, além de fazer parte com os demais municípios que

    congregam essa zona econômica, ancorada a uma economia, segundo o SEPOF,

    ligada ao Terceiro Setor (Comércio e Serviços Gerais), aponta a grande

    expressividade no setor da pesca.

    Outro quesito importante mencionado pela SEPOF sobre as atividades

    econômicas desenvolvidas em Vigia é a existência de estaleiros de produção naval,

    ratificando a cidade de Vigia como produtora de barcos no Estado do Pará, que

    dentre as demais cidades inseridas nesse zoneamento, somente Vigia e Colares

    possuem produção naval.

    Outros dados que mencionam a importância do setor pesqueiro em Vigia é do

    Centro de Estudo em Economia e Meio Ambiente da Fundação Universidade do Rio

    Grande, os quais destacam o município de Vigia com o terceiro maior número de

    pescadores associados a Colônia de Pescadores, com 1.997 associados, abaixo

    apenas de Belém, com 3.188 pescadores e Abaetetuba com 2.990.

    Se a cultura da sociedade vigiense está alicerçada na pesca e produção

    naval, um dos fatores para essa tradição cultural está na posição geográfica onde se

    estruturou historicamente esse município. A cidade tem localização privilegiada, pois

    está próxima a desembocadura de duas grandes bacias Hidrográficas do Brasil, a

    Bacia Amazônica e a Araguaia-Tocantins, como também próximo ao litoral oceânico,

    ou seja, faz parte de uma região que é rica em fauna ictiológica marítima

    (VERISSÍMO, 1970, p. 05).

  • 37

    Lavoura Temporária Lavoura Permanente Pecuária de pequeno porte Agroindústria animal Comércio Serviços de Educação e saúde Agricultura e pesca Construção Naval Oleiro

    Ilustração 4: Mapa cartográfico econômico da Zona do Salgado. Fonte: SEPOF/DIEPI, 2009.

  • 38

    Veríssimo (1970) já destacava em finais do século XIX essa riqueza marítima,

    quando cita a geografia da região e o pescado que nela abunda, afirmando que a

    costa chamada da Vigia e a fronteira, a leste de Marajó, entre Soure e o Cabo

    Maguari, são o principal campo das pescarias de tainhas e na Contracosta, a da

    gurijuba (VERÍSSIMO, 1970, p. 61).

    Aponta também, além importância da pesca na vida dos amazônidas, a

    cultura indígena da pesca, como elemento formador da cultura cabocla, quando diz:

    A pesca e os produtos da pesca na Amazônia, desde os mais antigos tempos de que temos notícias, não serviram sòmente à alimentação, senão a usos da economia doméstica e industrial. Os processos culinários indígenas, adotados e naturalmente melhorados pelo conquistador, são fundamentalmente os mesmos hoje usados. (VERISSÍMO, 1970, p. 99)

    Esses estudos que Veríssimo realizou no passado ainda são válidos, pois

    muitos órgãos e instituições que estudam a pesca na atualidade manifestam a

    importância do setor pesqueiro dessa região e a relação que a pesca tem com a

    sociedade local, entre eles a SEAP (Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca).

    Em seus relatórios, a SEAP ressalta o potencial pesqueiro do Norte do Brasil,

    ratificando assim na atualidade o que Veríssimo escreveu em seus estudos sobre a

    pesca na Amazônia nos finais do século XIX, quando destaca que a Região

    Amazônica é rica em recursos ictológicos, sendo a pesca um dos elementos

    constituidores da cultura dos amazônidas, quando diz:

    A hidrologia da bacia Amazônica configura-se como um imenso complexo de rios, igarapés, lagos, canais furos nos quais abriga cerca de 20% de toda água doce da terra. A pesca é uma das atividades mais importantes nessa região, constituindo-se em fonte de alimento, comércio, renda e lazer para a grande parte de sua população (SANTOS apud SEAP, 2006).

    Desta região onde a pesca artesanal tem destaque desde tempos remotos,

    hoje são capturadas na desembocadura do Rio Amazonas, Rio Pará e do Rio

    Tocantins, além das águas oceânicas, “toneladas e toneladas de espécies como a

    pescada amarela, as sardas, cavalas e bonitos, os Bagres, a gurijuba, o bandeirado

    Bagre, a curvina entre outros”3.

    A quantidade de pescado, sobretudo de pescada amarela e gurijuba realizada

    nessa região, historicamente é a base econômica da cidade de Vigia, transformado

    3 CEEMA, 2009.

  • 39

    em divisas econômicas através da venda do peixe in-natura que são

    comercializados para a indústria de pesca localizada na própria cidade e, sobretudo

    nas indústrias da capital do Estado, Belém do Pará.

    Porém, não é somente a comercialização deste pescado em si que gira o

    comércio em Vigia, mas um órgão extraído desses dois peixes, que é chamado

    popularmente pelos pescadores de “a grude”4.

    Esse órgão da gurijuba é retirado ainda em alto mar, que depois de esticado e

    secado ao sol é comercializado, compondo assim, parte da economia do município,

    movimentado mensalmente milhares de reais no comércio local. Essa atividade

    econômica complementar da pesca começa com a contratação dos barcos feitos

    pelos atravessadores que financiam a viagem pagando uma quantia estipulada

    previamente com o dono do barco, que irão fornecer o produto.

    A pesquisadora Rosália Cotrim, do Centro de Pesquisa e Extensão Pesqueira

    do Norte (CEPNOR), afirma que “o emprego dessas membranas são tantos que

    ainda não foi possível catalogar todos”5.

    O conhecimento, a importância e utilização “da grude” desses peixes, como

    produto de colagem, já era conhecido entre os pescadores de Vigia no final do

    século XIX. Veríssimo (1970) ressalta em sua obra que:

    A gurijuba, semelhante a um grande bagre, de pele amarelaça, cresce até 1 a 1,20 m. Fornece não só a carne para a alimentação das populações daquela orla marítima, e submarítima, até a cidade do Pará, onde encontra igualmente grande consumo, como principalmente o “grude”, ou cola, de exportação considerável e vantajosa. Nas grandes canoas chamadas vigilengas, talvez porque na ribeira da Vigia fossem de primeiro construídas, saem eles, canoeiros habilíssimos e ousados, ao alto-mar (VERISSÍMO, 1970, p. 61).

    O Teatro da Paz construído no esplendor da Belle Époque, em finais do

    século XIX, é um exemplo da utilização do “grude” da gurijuba como cola. Segundo

    diz o conteúdo do site do Theatro: “O hall de entrada é composto por materiais

    4 A Grude é um órgão interno dos peixes, mais precisamente a bexiga natatória, uma bolsa de mau

    aspecto, com a textura semelhante à de uma lula. Esse órgão controla o nível de flutuação da gurijuba e da pescada. Cheia de ar, essa vesícula faz o peixe se aproximar da superfície. Vazia, permite que alcance as profundezas do oceano. [...] Um quilo de grude vale até 90 reais. Num exemplar de tamanho médio, o grude pesa 250 gramas. Ou seja, vale mais que o peixe. Em 2001, a exportação de grude atingiu mais de 200 toneladas pelos portos do Pará e Amapá. Esse negócio movimentou três vezes mais dinheiro que o comércio normal de gurijuba e pescada-amarela nesses portos. Nos grandes centros capitalistas, essa matéria-prima extraída da gurijuba e da pescada amarela, é processada e transformada em manufaturas, como: cola de grande resistência, em lâminas de gelatina, em cosméticos, em filmes fotográficos e instrumentos musicais. (REVISTA VEJA, 2002)

    5 Revista Veja, 2002.

  • 40

    decorativos importados da Europa. [...]. Pisos em pedras portuguesas formando

    mosaicos e colados com o grude da gurijuba”.6

    A imagem de satélite (Ilustração 5), nos dá um panorama aéreo desse

    reservatório ictiológico, rico em fauna marítima que move economicamente a cidade

    de Vigia, região essa que motivou os vigienses a criarem a vigilenga, que:

    Apesar de constituírem barcos de pequenas proporções como poucos metros de comprimento, são relativamente muito superiores ao casco e a montaria, suportando em média 4 a 10 toneladas de peso. Este porte maior torna-se impositivo dado que a pesca dessas espécies se processa barra-fora, em direção ao litoral norte (LOUREIRO, 1985, p. 32).

    Esse tipo de embarcação específica da região foi muito utilizada pelos

    pescadores locais até aproximadamente a segunda metade do século XX, para irem

    mar a fora em busca da gurijuba e tainha.

    Em finais do século XX, esse tipo de embarcação entrou em desuso, pois a

    introdução do motor nas novas embarcações construídas propiciou maior autonomia

    na navegação como também na redução do tempo para o retorno e comercialização

    do pescado, pois a vigilenga (barco composto por duas velas latinas - triangulares)

    dependia do vento para sua locomoção, onerando por vezes algumas empreitadas.

    Portanto, esse veículo passou a ser menos produtivo, não satisfazendo mais as

    necessidades do mercado da pesca em constante crescimento nesse período.

    As transformações técnicas, cujos estaleiros em Vigia passaram a

    implementar, estão associadas a dinamização das forças capitalistas na região,

    difundidas, sobretudo, entre as décadas de 1964 a 1985, transformando a vigilenga

    símbolo cultural de Vigia em peça de museu.

    Como consequência da dinâmica capitalista, a produção de barcos em Vigia

    foi alterada, dada as exigências do desenvolvimento do mercado (MELLO, 2001, p.

    34). A utilização do motor foi a maior dessas modificações, que ao atender as

    exigências do mercado mundial, fez do município de “Vigia o segundo maior

    produtor de pescado do Brasil” (IBAMA, 2006), que somado a outras microrregiões

    do Estado, transforma o Pará importante produtor de pescado do Brasil.

    6 Theatro da Paz, 2009.

  • 41

    Ilustração 5: Imagem de satélite da desembocadura do Rio Amazonas e Tocantins.

    Fonte: CD Brasil, 2009.

    A imagem de satélite acima destaca a localização espacial de Vigia.

    Observamos que essa região é geograficamente estratégica para a pesca. Em

    tempos passados, com os colonizadores portugueses do século XVII, ergueram essa

    cidade para monitorar o trânsito de embarcações que vinham da Europa, em que

    faziam escala marítima entre São Luiz, Bragança à Belém. E no presente, uma das

    principais economias do pescado no Brasil.

    Veríssimo (1970) já apontava em sua obra no século XIX (1895) a riqueza que

    é essa região onde se encontram o Rio Amazonas, Rio Pará e o Rio Tocantins com o

    Oceano Atlântico, ao dizer:

    Ou são pròpriamente amazônicas, feitas nas águas do Amazonas e seus inumeráveis tributários, correntes ou lagos, ou marítimas ou submarítimas, conforme são feitas em pleno mar ou nas regiões das fozes do Amazonas e do Pará, até onde se faz sentir a influência da água salgada e até onde chegam os representantes da fauna pròpriamente marinha. Há aí uma região neutra, em que as espécies marinhas e fluviais se confundem, ou pelos menos se encontram, e os ribeirinhos das baías formadas pelo Rio Pará comem delas pescados o cumuri, que é do mar, e o tucunaré, que é do rio. A tainha representa bem esta neutralidade, vivendo tanto na costa marítima, como aqui nesta água semi-salgada e subindo mesmo as doces do Tocantins, até Cametá, a mais de 300 km do mar. (VERISSÍMO, 1970, p. 13)

    Rio Amazonas

    Rio Pará

    Ilha do Marajó

    Oceano Atlântico

    Rio Tocantins

    Vigia

    Belém

  • 42

    A localização de Vigia na convergência entre o Rio Pará e o Tocantins,

    somado processo histórico cultural que constituiu essa cidade, de certa forma

    condicionaram boa parte dos habitantes a desenvolverem a cultura da pesca em

    seus diversos fins, seja para o consumo próprio ou comercial e até como moeda

    corrente (Ibidem, p. 11).

    Se hoje a cidade de Vigia tem um grande destaque na economia pesqueira no

    Estado do Pará, é devido a sua localização geográfica e seu legado histórico-

    cultural, que se remonta desde ao processo de colonização portuguesa do século

    XVII.

    1.2 ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS DE VIGIA DE NAZARÉ

    Visitar a cidade de Vigia no primeiro decênio do século XXI é voltar ao

    passado caminhando por suas ruas estreitas, passando próximo aos prédios

    públi