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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Línguas, Literaturas e Culturas, realizada sob a orientação científica de Professora Doutora Ana Paiva Morais

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do

grau de Mestre em Línguas, Literaturas e Culturas, realizada sob a orientação científica

de Professora Doutora Ana Paiva Morais

AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Ana Paiva Morais, pelo acompanhamento e apoio

prestados.

À Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, pela comparticipação financeira a

este trabalho.

À minha família (em especial à minha mulher [o meu duplo complementar], e

aos meus filhos), pelo amor e dedicação em todos os momentos, e a Deus pela

presença constante da sua orientação espiritual.

HERÓI E ANTI-HERÓI: A CONFIGURAÇÃO DO DUPLO NA CANÇÃO

DE GESTA. ANÁLISE DE LA CHANSON DE ROLAND E LA CHANSON DE

GUILLAUME

José Manuel Lopes Casquilho

RESUMO

PALAVRAS-CHAVE: herói; anti-herói; duplo; canção de gesta; La Chanson de Roland; La

Chanson de Guillaume.

Este trabalho tem como principal objetivo o estudo da construção do herói medieval em duas canções de gesta representativas deste género literário, La Chanson de Roland e La Chanson de Guillaume, em inter-relação com o seu duplo e com a figura do anti-herói. Pretende-se estabelecer de que forma estas duas figuras se associam ao herói e contribuem para a construção da sua identidade, tendo como ponto de partida uma análise comparativa entre diferentes personagens das duas obras em estudo e o contexto social e cultural em que estas se inserem. Partindo do pressuposto de que a figura heroica medieval está associada ao arquétipo do ideal e da transcendentalidade e de que o seu percurso literário se estabelece numa linha ascendente de procura de perfeição, procurar-se-á ainda compreender de que forma se estabelece este percurso e como contribuem o duplo e o anti-herói para a sua consecução.

HERO AND ANTI-HERO: A CONFIGURATION OF THE DOUBLE IN THE

CHANSON DE GESTE (HEROIC POEM). ANALYSIS OF LA CHANSON DE

ROLAND AND LA CHANSON DE GUILLAUME

José Manuel Lopes Casquilho

ABSTRACT

KEY WORDS: hero; anti-hero; double; chansons de geste (heroic poems); La Chanson de Roland; La Chanson de Guillaume.

The main goal of this paper is the to study the construction of the medieval hero in two heroic poems representative of this literary genre, La Chanson de Roland and La Chanson de Guillaume, in interrelation with its double and the character of the anti-hero.

It is intended to establish the ways these two characters associate with the hero and contribute to the construction of his identity starting with a comparative analysis between different characters of the two literary works in study and their social and cultural context.

Assuming the medieval heroic character is associated with the archetype of the ideal and the transcendental and its literary path is established in an ascendant line of search for perfection, it is also intended to understand the ways in which that path is established and how the double and the anti-hero contribute to its achievement.

ÍNDICE

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 1

1 A IMPORTÂNCIA DO DUPLO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO HERÓI ........................ 5

2 A QUESTÃO DO DUPLO: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS EM LA CHANSON DE ROLAND E LA

CHANSON DE GUILLAUME .......................................................................................................... 11

3 LA CHANSON DE ROLAND E LA CHANSON DE GUILLAUME: A OPOSIÇÃO IDEOLÓGICA NA

FUNDADAMENTAÇÃO DO HERÓI ................................................................................................ 15

4 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE ROLAND ......................................................... 20

4.1 CARLES, MARSILIE E BALIGANT ................................................................................... 20

4.2 OS SONHOS PREMONITÓRIOS DE CARLES E A SUA RELAÇÃO COM O DIVINO ........... 25

4.3 ROLLANT, GANELON E OLIVIER ................................................................................... 29

5 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE GUILLAUME ................................................... 34

5.1 WILLAME ..................................................................................................................... 34

5.2 WILLAME E OS SEUS MÚLTIPLOS ................................................................................ 36

5.3 GUIBURC E WILLAME .................................................................................................. 38

5.4 VIVIËN E WILLAME ...................................................................................................... 40

5.5 GUI(OT) E WILLAME .................................................................................................... 42

5.6 GIRARD E WILLAME ..................................................................................................... 44

5.7 RENEWARD, GUIBURC, GUISCHARD E WILLAME ........................................................ 46

5.8 TEDBALD, VIVIËN E WILLAME ...................................................................................... 52

6 CASOS COMPARÁVEIS ENTRE AS DUAS OBRAS .................................................................. 58

6.1 OLIVIER E VIVIËN ......................................................................................................... 58

6.2 TEDBALD E GANELON .................................................................................................. 61

CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 66

BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................................. 68

CORPUS ................................................................................................................................... 68

BIBLIOGRAFIA CRÍTICA ............................................................................................................ 68

BIBLIOGRAFIA GERAL .............................................................................................................. 70

1

INTRODUÇÃO

O herói apresenta-se na Literatura e na História do pensamento europeu como

uma construção arquétipa do ser ideal, transcendental, que constitui um modelo a

seguir, pois faz parte do imaginário de todas as sociedades, como aquele que aceita o

desafio e, de forma exemplar, restaura a harmonia necessária. A figura do herói nasce,

nas sociedades ancestrais, da necessidade espiritual, enquanto forma de proteção

contra o medo do desconhecido.

Considerando este facto, a Literatura apresenta-se como um campo propício à

proliferação da figura heroica, como intermediária entre o real e o subjetivo, o

humano e o divino. O herói assume, assim, uma condição ambígua. Por um lado

representa a condição humana, na sua complexidade psicológica, física e social, por

outro, transcende essa mesma condição, ao conseguir feitos que não estão ao alcance

do Homem comum. Nesta perspetiva, é oportuno ver o herói, tal como refere Georges

Gusdorf (1963), como uma conceção simbólica do conhecimento primordial do

Homem sobre si próprio, conhecimento que advem do contacto com o mundo em que

se insere e da interpretação que faz do divino e do seu papel, enquanto força motora e

regeneradora.

Ao restringirmos no tempo esta análise, podemos verificar que a figura heroica

surge no contexto literário medieval francês, nomeadamente nas canções de gesta,

como um exemplo social e cavaleiresco, que contribui, através do seu exemplo, da sua

elevação espiritual e do seu altruísmo, para a cimentação da causa social e religiosa

que serve. Verifica-se, assim, durante o período medieval, uma intensificação da

fundamentação e legitimação da doutrina cristã, à qual a Literatura não é indiferente.

A este propósito, Le Goff cita Santo Agostinho:

“Se os filósofos (pagãos) exprimiram, por acaso, verdades úteis à nossa fé – em especial os filósofos platónicos -, não só não há que recear tais verdades como é preciso arrancá-las, para nosso serviço, a esses seus detentores ilegítimos”. (Santo Agostinho, apud Le Goff: 1988, vol. I, 150)

2

Este processo de legitimação do cristianismo, a que se assiste durante o

período medieval, favorece a produção literária e o surgimento de configurações

heroicas ao serviço do ideal religioso, tal como constata Helder Godinho, a este

propósito:

“O refazer do mundo político e cultural que o surgimento de uma nova época implica favoreceu a organização deste espaço textual [medieval] em torno do mitologema do Herói”. (Godinho, 1989: 8)

Compreende-se, nesta linha de análise, que a canção de gesta medieval se

centre na figura do herói e no seu percurso, já que este aspeto lhe incute a grandeza

pretendida pelos seus autores e permite identificar o conteúdo narrativo com o

estereótipo social. Compreende-se ainda que o cavaleiro e o cruzado sejam, acima de

tudo, exemplos de espiritualidade, de rigor, de força intrínseca, os quais se

apresentam através de um percurso por vezes sinuoso, mas que se traduz, regra geral,

numa linha ascendente, no sentido da conquista de um espaço transcendental só

acessível àqueles que se destacam pelo exemplo.

Nas canções de gesta La Chanson de Roland e La Chanson de Guillaume, o herói

parece construir-se a partir do sacrifício individual em prol do bem social, o que lhe

permite, aliás, adquirir, em alguns casos, elevação espiritual e reconhecimento divino.

Este facto tem permitido à crítica literária abordar estas duas obras numa linha

de análise sobejamente direcionada para o papel da figura heroica enquanto elemento

axiológico da narrativa. Por outro lado, e de certa forma relacionado com este aspeto,

tem-se assistido igualmente a uma tentativa de justificação das origens e do sentido

destes textos, ora numa perspetiva literária, ora tendo em conta uma análise mais

histórica ou cultural. Parece-nos, porém, que importa analisar, de uma forma mais

direcionada, o papel do herói em inter-relação com os seus duplos ou com a figura do

anti-herói (designação que adotaremos ao longo deste trabalho e que exploraremos

mais adiante), com o objetivo de se compreender de que forma a construção da

imagem do herói, coletivo ou individual, está diretamente ligada a outras personagens

que funcionam como um desdobramento deste, quer numa perspetiva de

complementaridade, quer enquanto imagens antagónicas do modelo heroico.

3

Segundo cremos, a definição de uma análise que incida sobre a relação que se

estabelece entre estes modelos de personagens poderá contribuir para uma

compreensão do papel do herói nas obras que nos propomos estudar. Por outro lado,

a opção pelo corpus de trabalho em questão justifica-se por se considerar que a

canção de gesta constitui um espaço literário profícuo à análise do tema proposto,

visto que a figura heroica se constitui, nesta tipologia textual, como uma construção

literária fragmentada, cuja unidade se apresenta como uma meta a atingir. Para que se

cumpra este objetivo, o herói deverá, de forma geral, exorcizar as suas figuras ou

projeções paralelas, que consigo competem pela ocupação do espaço literário.

As duas canções de gesta que constituem o corpus deste trabalho apresentam

as façanhas idealizadas dos heróis lendários Rolland e Willame1, cujas qualidades

assentam em valores sociais, políticos e culturais dos períodos literários a que

correspondem, enfatizando sempre a supremacia e a ideologia daqueles que detinham

a superioridade, não só geográfica, bélica, mas também a razão religiosa. Este aspeto

parece ser fundamental na compreensão do papel do herói e dos seus duplos nestes

textos. A fé cristã medieval, que se reflete de forma transversal nos textos em estudo,

baseada na superioridade de Deus sobre o Diabo, do Bem sobre o Mal, influencia

também o surgimento destas configurações heroicas, por oposição a outras

personagens, cuja inter-relação nos propomos analisar. Da mesma forma, partindo do

pressuposto que as canções de gesta exerceram uma influência significativa na

produção literária medieval, com repercussões, por exemplo, no romance e na

Literatura Tradicional e Oral e que estas influências se estenderam, para além do

período medieval, a toda a literatura e folclore europeus, parece-nos justificável

analisar a questão do herói e dos seus duplos, a partir do estudo de La Chanson de

Roland e La Chanson de Guillaume, textos que se estruturam, também eles, numa

perspetiva conceptual, na oposição entre dois vetores, um positivo, o dos cristãos, e

outro negativo, o dos pagãos.

1 Relativamente ao nome dos protagonistas das duas obras em estudo, optámos por duas grafias

distintas: Roland e Guillaume, quando inseridas na transcrição dos títulos das obras, pois são estas as grafias utilizadas na bibliografia de referência – La Chanson de Roland/ La Chanson de Guillaume- e Rollant/ Willame, quando menciononamos as personagens, no seu contexto narrativo, tendo em conta que estas são as grafias utilizadas pelos autores, nos textos originais.

4

Tendo em conta os aspetos referidos, estruturaremos este trabalho numa

análise comparativa entre o percurso e a caracterização das diferentes configurações

heroicas, associadas aos seus duplos, com o objetivo de se definir semelhanças e

diferenças nos processos de construção de personagens, tendo em conta o contexto

social, cultural e o imaginário da época em que se inserem.

Numa primeira análise, pretendemos explorar a questão da importância do

duplo na construção da identidade das diferentes figuras heroicas, tendo em conta as

várias formas que este pode assumir no contexto literário em análise. Relacionado

com este aspeto, focaremos ainda a importância que a oposição ideológica entre Bem

e Mal (transversal às duas obras) assume na construção e legitimação do herói,

enquanto instrumento ao serviço do princípio cristão. Posteriormente, faremos uma

análise das figuras heroicas comparáveis em cada obra e, por fim, apresentaremos

alguns casos de personagens análogas aos dois textos em análise, tomando como

exemplo um herói e um anti-herói de cada obra, que constituam casos paradigmáticos

do processo literário inerente à construção destes dois tipos de personagens e à

relação que se estabelece entre si.

5

1 A IMPORTÂNCIA DO DUPLO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO

HERÓI

A temática da dualidade do sujeito textual, associada a processos de mimese

literária, é um recurso frequente na literatura universal, constituindo o tema do duplo,

cujas origens datam de um passado remoto, um reflexo da crença e tradição

populares.

Ainda que o tema do duplo surja já na Antiguidade Clássica, através da

Literatura ou da Mitologia2, é sobretudo a partir do final do século XVIII que este

termo se difunde, maioritariamente devido ao Romantismo, o qual se inspira, de certa

forma, na tradição literária e, com grande incidência, no período medieval. De facto, o

termo alemão utilizado pelo movimento romântico para designar “o duplo”,

Doppelgänger, doppel (duplo, réplica ou duplicata) e gänger (andante, ambulante ou

aquele que vagueia) designa, na sua origem, aquele que caminha, numa perspetiva

paralela, ao lado do outro, o companheiro de percurso. O duplo está, nesta perspetiva,

associado a uma interpretação subjetiva do real, na medida em que pressupõe o

confronto entre o EU e o TU, não um TU autónomo ao sujeito (EU), mas uma espécie

de reflexo, de uma segunda perspetiva da sua própria existência.

De acordo com Juan Bargalló Carraté (1994), o duplo constitui uma metáfora da

inter-relação de contrários, em que cada um encontra no outro a sua

complementaridade. Este desdobramento é uma forma de compensação do vazio que

o ser humano sente perante a sua existência fragmentada. Jean Chevalier e Alain

Gheerbrant acrescentam ainda o seguinte, a esta perspetiva de confronto entre o

sujeito e o seu duplo:

“O romantismo alemão deu ao Duplo (Doppelgänger) uma ressonância trágica e fatal… Ele pode ser o complementar, mas, mais frequentemente, o adversário que nos chama para o combate…”. (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, 2010: 275)

2 Relativamente a este aspeto, tenha-se em consideração, como exemplo, o mito de Narciso ou o mito

de Édipo.

6

Por outro lado, a imagem do duplo está também profundamente enraizada nas

religiões dualistas, como mencionam os mesmos autores:

“As religiões tradicionais concebem geralmente a alma como um duplo do ser vivo, que pode separar-se do corpo na altura da morte deste, ou no sonho, ou por uma operação mágica, e reencarnar no mesmo ou noutro corpo. A representação que o homem faz, assim, de si mesmo é desdobrada.” (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, 2010: 275)

Esta perspetiva encontra-se também, segundo cremos, nas duas obras em

estudo. A análise de La Chanson de Roland e de La Chanson de Guillaume leva-nos a

constatar que estes textos se estruturam através de um conjunto de configurações de

personagens opostas, que se inter-relacionam entre si, o que tem repercussões

narrativas a vários níveis. O duplo surge, assim, como uma figura recorrente, associado

ao herói, enquanto representação da sua existência fragmentada, levando-o à

necessidade de consolidação da sua identidade, dividida entre o Eu consciente e o Eu

inconsciente. O herói não é, pois, de forma geral, uma figura isolada, não se justifica a

si próprio. A construção do herói estrutura-se na oposição entre si e o seu duplo,

geralmente uma figura que funciona como um reflexo complementar ou oposto, de

uma forma mais ou menos acentuada, daquilo que o herói representa.

Tal como referem Pierre Jourde e Paolo Tortonese, tendo como referência a

análise que Mircea Eliade faz das origens literárias da figura do duplo, a recorrência a

esta imagem relaciona-se com a tradição judaico-cristã, segundo a qual Deus cria o

Homem à sua imagem, numa perspetiva de duplicação de si próprio:

“En admettant que tout mythe, si l’on en croit Mircea Eliade, a trait aux origines, on peut dire aussi que le double est present dès l’origine. Dieu, dans la création judéo-chrétienne, fait le monde à son image, et l’homme à sa ressemblance”. (Jourde e Tortonese, 2005: 7)

Ainda tendo em conta este aspeto, tenhamos em consideração, numa

perspetiva mais alargada, a visão cosmológica do Homem medieval, mencionada por

Jacques le Goff:

“Este mundo fechado na Terra, esta Cristandade encerrada cá em baixo abria-se largamente para cima, para o Céu. Material e espiritualmente, não havia divisões estanques entre o mundo terrestre e o além. Mas também a

7

cosmografia ou a ascese mística punham de manifesto que, por sucessivas tiradas ao longo de uma estrada – a grande estrada da peregrinação da alma -, havia, para usar a mesma palavra que S. Boaventura, um itinerário que conduzia a Deus”. (Le Goff, 1983, Vol I: 192)

Esta correspondência entre Homem medieval e Deus aponta para uma

conceção cosmológica e religiosa estruturada em dois polos, o positivo e o negativo.

Jacques le Goff refere o seguinte, sobre esta questão:

“O Diabo e o “bom Deus” – eis o par que domina a vida da Cristandade medieval e cuja luta explica, aos olhos da Idade Média, todos os pormenores dos acontecimentos.” (Le Goff, 1983, vol. I: 200)

Tendo em conta a base cristã inerente às narrativas dos textos em análise,

poder-se-á compreender, nesta perspetiva, que a questão do duplo seja um tema

recorrente em La Chanson de Rollant e La Chanson de Guillaume. Nestes textos, o

herói, coletivo ou individual, está associado ao seu duplo, uma espécie de alter-ego

que é necessário superar para que o herói o seja de facto, numa procura de afirmação

de algumas personagens em detrimento de outras, como menciona Helder Godinho, a

propósito do primeiro texto:

“Le texte de la Chanson se construit depuis le début jusqu’à la fin comme un jeu de doubles qu’il faut éliminer pour conquérir son espace grâce à leur espace”. (Godinho, 1989: 57)

No entanto, o duplo, enquanto recurso literário, não surge de uma forma linear

mas, pelo contrário, tem repercussões a diferentes níveis. Akkari (2004) refere que a

questão do duplo está presente na maior parte das canções de gesta. Segundo este

autor, o percurso do herói e do seu duplo estrutura-se tendo em conta três níveis

distintos: a família, o país e o Oriente. Nesta linha de análise, dir-se-á que o duplo

contribui para repor a unidade perdida do herói, através do restabelecimento da

harmonia perturbada. Nesta perspetiva, o duplo surge como uma parte complementar

do herói, uma espécie de reflexo de si, que contribui para a unificação da personagem

e, em muitos casos, para um processo quase de divinização, possível através da

recuperação da unidade e do alcance da perfeição. Ainda de acordo com o mesmo

autor, o duplo revela-se de três formas diferentes: pode ser perfeito, imperfeito e

divergente ou complementar.

8

Tendo em conta o contexto narrativo das obras em estudo, é o terceiro caso

aquele que fará mais sentido ao longo da análise que se pretende realizar, pois, tanto

em La Chanson de Roland como em La Chanson de Guillaume, o herói está

frequentemente associado ao seu duplo que, consoante os exemplos, desempenha um

papel que poderá ser de complementaridade (tal como se verifica, por exemplo, entre

Rollant e Olivier ou entre Willame e os seus sobrinhos), ou de antítese das suas

qualidades morais, sociais e cavaleirescas (como acontece com Vivien e Tedbald).

Neste caso, o duplo desenvolve-se também na qualidade de anti-herói.

É nesta perspetiva que se deve compreender a referência à figura do anti–herói

ao longo deste trabalho. O anti–herói, mencionado a propósito dos textos em análise,

distingue-se do herói, na medida em que tendo, na maioria dos casos, uma imagem

heroica que é apresentada inicialmente, acaba por corrompê-la através de uma falha

crucial. Assim, ao longo desta dissertação, dever-se-á compreender o anti-herói como

aquele que, sendo de forma geral um duplo do herói, na medida em que contracena

com ele e partilha as suas características ou o completa, cometeu uma falha capital

que se sobrepõe às qualidades que possa ter vindo a evidenciar inicialmente. O

percurso do anti-herói é, frequentemente nas obras em estudo, um percurso contrário

ao do herói. Enquanto este se constrói numa perspetiva ascendente, do material para

o espiritual, numa lógica de purificação das suas incapacidades ou imperfeições, a fim

de atingir um estado de perfeição, de unidade, o anti-herói realiza um trajeto de

desconstrução, de corrupção da sua identidade. Por outro lado, verificam-se outras

personagens que surgem simplesmente como duplos do herói. Trata-se de figuras

também elas heroicas que o completam e que contribuem, nesta perspetiva, para esse

percurso de aperfeiçoamento e purificação a que o herói se deve sujeitar para o ser de

facto. Assim, considerar-se-ão, nesta lógica de raciocínio, os seguintes tipos de

personagens: o herói e o seu duplo, que pode ser complementar ou divergente. Neste

último caso, falar-se-á também em anti-herói. Tomemos alguns exemplos breves: Em

La Chanson de Roland, Ganelon3 é apresentado como um verdadeiro cavaleiro, mas

acaba por cometer um erro crasso (atraiçoa Rollant, Carles e a causa cavaleiresca), o

que contribuirá para o seu declínio ao longo da narrativa e para que, aos olhos do

3 Optamos pela utilização do nome Ganelon, relativamente a esta personagem, visto ser a grafia

utilizada mais frequentemente pela generalidade da crítica literária.

9

leitor/ ouvinte, constitua o oposto da imagem criada acerca do herói. Ganelon é um

traidor, um anti-herói. O mesmo acontece com Tedbald, em La Chanson de Guillaume,

que apesar de ser considerado inicialmente pelos seus pares como um verdadeiro

cavaleiro, abandona o campo de batalha, colocando os seus receios acima da causa

que deveria defender. Tanto num caso como no outro, existe um final trágico,

humilhante, que contribui para uma marginalização das personagens, como uma

espécie de purgação do desvio à regra. Independentemente do tipo de duplo em

questão, este contribui sempre para a fundamentação do herói, quer através de uma

perspetiva de complementaridade, que poderá resultar em aprendizagem, quer

através da comparação entre o comportamento do herói e a atitude desviante do

outro. O anti–herói, enquanto antítese do herói, revela-se, de forma geral, por se opor

ao cânone positivo da beleza, da força física e espiritual, do altruísmo, da liderança.

Complementarmente ao que se referiu anteriormente, verificam-se alguns

casos em que o herói reserva em si uma espécie de personalidade dupla,

apresentando, por vezes, um comportamento desviante ou marginal em relação à sua

regra de heroicidade. Neste caso, referimo-nos a outro tipo de duplicação da

personagem heroica, não através do outro, mas de si mesmo, analogicamente

associado ao mito de Narciso, em que o herói se dá a conhecer e se conhece através

de um reflexo de si próprio, numa perspetiva contrária, que a própria personagem

deverá exorcizar através de uma aprendizagem pessoal. Neste caso, verifica-se a

existência de um confronto interior, em que o herói se debate entre a emoção e a

razão, o dever e a vontade pessoal. A este propósito, Pierre Jourde e Paolo Tortonese

referem:

“(…) le reflet montre la subjectivité mêlée au monde des choses, inscrite dans la dureté polie des objets réfléchissants. Il ne constitue pas seulement une découverte de soi mais, simultanément, une expérience du monde et de l’altérité. Le sens des histoires de reflet se jouera bien solvente entre le maintien d’une identité, d’une intégrité de l’image, et l’évolution ou l’indépendance de celle-ci”. (Jourde e Tortonese, 2005: 9)

Este caso está também presente em algumas das personagens dos dois textos

em análise. Em La Chanson de Roland, por exemplo, Rollant parece ser paradigmático

deste confronto interior que referimos, pois hesita entre o seu orgulho pessoal, de não

10

querer solicitar a ajuda do imperador, e o dever de o fazer. Em La Chanson de

Guillaume, também Willame, no seu percurso cavaleiresco, vacila após a morte dos

seus sobrinhos e pensa em desistir, o que não se concretiza graças à influência de

Guiburc.

Em conclusão, poder-se-á referir que a construção da figura do herói implica

sempre uma aprendizagem e um aperfeiçoamento das suas qualidades cavaleirescas,

sociais e morais e que este processo depende do seu confronto com o(s) outro(s),

seja(m) ele(s) intrínseco(s) ou extrínseco(s) a si. A purificação do herói exige a

purificação do seu espaço envolvente e daqueles que o povoam. É deste processo de

expurgação que o herói conquista a sua unidade, a sua identidade heroica.

11

2 A QUESTÃO DO DUPLO: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS EM LA

CHANSON DE ROLAND E LA CHANSON DE GUILLAUME

Como temos vindo a analisar, a figura do duplo está presente nas duas obras

em estudo e está diretamente relacionada com o percurso heroico de cada um dos

protagonistas. No entanto, enquanto em La Chanson de Roland a questão do duplo

parece ser transversal a toda a obra, já que a narrativa dos factos e a caracterização

das várias personagens, coletivas ou individuais, se estruturam numa lógica dualista,

no caso de La Chanson de Guillaume a problemática do duplo parece incidir

maioritariamente sobre o paralelismo que se estabelece entre Willame e os seus

sobrinhos. Com isto, não excluímos o facto de se observarem, nesta obra, outros casos

que merecem, a este nível, destaque. Porém, como a narrativa está centrada

sobretudo no protagonista e nos seus múltiplos, este aspeto não adquire a amplitude

de La Chanson de Roland. A este propósito, atentemos nos seguintes casos: as duas

personagens coletivas, cristãos e pagãos, parecem adquirir, neste texto, um destaque

maior do que aquele que se observa em La Chanson de Guillaume, cuja tónica se

coloca sobretudo na personagem principal, Willame, e nos seus sobrinhos, tal como já

referimos. Efetivamente, enquanto no primeiro caso se compreende claramente que a

causa que desencadeia o problema é uma questão que serve o bem coletivo,

implicando, por isso, uma enfatização maior de todas as personagens que contribuem

para a consecução do objetivo comum, a propagação da fé e o extermínio do inimigo,

no segundo caso é sobre Willame e a sua família que parece ser colocado o principal

enfoque da ação. Este aspeto pode justificar o facto de, em La Chanson de Roland,

Carles, enquanto representante máximo dos franceses, ter um destaque tão

significativo, enquanto em La Chanson de Guillaume são poucas as referências feitas a

Lowis. Também se verifica uma diferença, da primeira para a segunda obra, a nível da

caracterização e desempenho das personagens coletivas. No caso de La Chanson de

Roland, existe uma grande simetria na descrição de cristãos e pagãos. Por outro lado,

ainda que em La Chanson de Guillaume se verifiquem várias referências aos franceses

e à sua capacidade bélica, tendo em conta a desproporção verificável entre estes e o

12

inimigo, não se observa uma descrição individualizada daqueles que constituem o

exército francês, à exceção de Willame ou dos seus sobrinhos, como se se tratassem

de uma massa impessoal. Desta forma, ficamos com a noção de que, à exceção do

protagonista e dos seus duplos, a maioria das personagens que intervêm na batalha

são figurantes a quem não é dada a possibilidade de alterar o decurso da narrativa.

Ainda que se possa observar (raramente) um enfoque mais individualizado sobre

algumas personagens que constituem o exército francês, como acontece na laisse XLII,

não existe, por parte do narrador, a necessidade de as nomear ou de lhes atribuir

características que as separem do grupo em que se inserem:

“Del munt u furent sunt aval avalé; Franceis descendent sur le herbe al pré, Virent des lur les morz e les nafrez. Qui donc veïst les danceals enseignez Colpat sa hanste qui al braz fu nafrez, Dunc but del vin qui l’ad el chanp trove, E saïns homes en donent as nafrez; Qui n’ad seignur si done a sun per. Dunc laissent les vifs, si vont les morz visiter”. (Guillaume, XLII, v. 517-528)

Contrariamente ao que se verifica em La Chanson de Guillaume, em La Chanson

de Roland o paralelismo, numa perspetiva de oposição do Bem contra o Mal, é uma

questão que está na base de todos os factos descritos. A questão do duplo ou da

duplicação de imagens sustenta a comparação que se estabelece entre cristãos e

pagãos, numa perspetiva geral ou particular. A ação desenrola-se através de um

conjunto de quadros paralelos que permitem estabelecer uma comparação entre os

dois lados do conflito.

Logo de início, nas duas primeiras laisses, o narrador estabelece, como veremos

mais detalhadamente no próximo capítulo, um paralelismo entre Carles e Marsilie,

baseado na diferença existente entre a religião cristã e a pagã, entre um e outro

exército. Da segunda à décima laisse, o narrador descreve os dois conselhos, em

primeiro lugar o do rei pagão e, de seguida, o de Carles. Não se verificam diferenças

significativas entre estas duas assembleias, relativamente à sua organização ou

objetivos. A diferença entre pagãos e cristãos parece residir sobretudo no facto de uns

estarem associados ao Mal e outros ao Bem. Da mesma forma, aos doze pares de

França, o narrador faz equivaler doze pagãos que lutarão contra estes. Este facto

13

permitirá, mais uma vez, através da descrição da luta que se estabelece entre ambos,

enaltecer a causa cristã. Verifica-se uma preocupação em descrever aquilo que opõe

uns aos outros, numa perspetiva de imagens paralelas, em que os pagãos funcionam

como reflexos ou duplos dos cristãos. Os primeiros são descritos como defensores de

uma causa justa, da verdadeira doutrina, os segundos adquirem uma condição

marginal, em algumas situações, grotesca.

No caso de La Chanson de Guillaume, ainda que, nos primeiros versos, o

narrador interpele o leitor/ ouvinte, referindo que tratará, ao longo da obra, da guerra

que se verificou entre Deramed e Lowis, rapidamente afasta o enfoque narrativo

destas personagens para se referir a Willame como o principal responsável pela

resolução do problema que constitui o cerne narrativo:

“Plaist vus oïr de granz batailles e de forz esturs, De Deramed, uns reis sarazinurs, Cun il prist guere vers Lowis, nostre empereür? Mais dan Willame la prist vers lui forçur, Tant qu’il ocist el Larchamp par Grant onur Mais sovent se cunbati a la gent paienur”. (Guillaume, I, v. 1-6)

De facto, de Lowis pouco sabemos, visto que a sua intervenção é muito

reduzida na narrativa. Também a nível da caracterização dos dois soberanos,

relativamente à sua dedicação à causa cristã de luta contra o inimigo, se verificam

diferenças significativas. Carles situa-se no centro da ação e chora a morte dos seus

homens, reconhecendo neles o valor e a coragem que colocaram na batalha (“Carles

se gist, mais doel ad de Rollant,/ E d’Oliver li peiset mult forment,/ Des duze pers, de la

franceise gente”, Roland, 184, v. 2513-2515), Lowis parece ter uma postura

distanciada relativamente ao problema e, quando é procurado por Willame, que lhe

solicita apoio e ajuda, recusa-lhe o seu auxílio. Enquanto Carles é prudente e parece

desenvolver uma postura paternal em relação aos seus homens, Lowis assume um

comportamento completamente inverso, pois nega inicialmente ajuda, ao ponto de

ser o próprio Willame quem o chama à razão e o adverte para a necessidade de

cumprir o seu dever de soberano:

Lowis, sire, mult ai esté pené, En plusurs esturs ai esté travaillé.

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Sole est Guiburc en Orenge le seé: Pur Deu vus mande que socurs li facez!” Ço dist li reis: “N’en sui ore aisez; A ceste feiz n’i porterai mês piez.” Dist Willame: “Qui enchet ait cinc cenz dehez!” Dunc traist sun guant qui a or fu entaillez.” (Guillaume, CLIV, 2526-2532)

Por que razão se verifica esta discrepância de protagonismo tão grande, de

uma obra para a outra, entre Carles e Lowis? Consideramos que este facto se justifica

tendo em conta que, em La Chanson de Roland, o enfoque coloca-se na vitória dos

franceses, enquanto defensores da fé cristã, sobre os pagãos, que professam uma

religião profana. Este facto está, aliás, referenciado várias vezes ao longo da narrativa,

como acontece, por exemplo, na primeira laisse, em que o narrador antecipa o

desfecho da narrativa referindo que Marsilie está condenado à derrota, por servir

Mahumet e Apollin. Carles adquire especial destaque enquanto símbolo de um povo,

de um conjunto de homens que se sacrificam em prol de uma causa comum, o que

permite que o imperador assuma uma posição transcendental de intermediário entre

os franceses e Deus. No caso de La Chanson de Guillaume, o movimento de cruzada

parece ser um mero pano de fundo para o enaltecimento das qualidades de Willame, o

que justifica, segundo cremos, o facto de não haver, por parte do narrador, uma

preocupação em destacar outras personagens que não contribuam, direta ou

indiretamente, para o processo de consolidação da imagem heroica do protagonista.

Em conclusão, dir-se-á que no caso de La Chanson de Roland a incidência da

temática do duplo tem repercussões a vários níveis, espacial, temporal e de

caracterização de personagens, enquanto em La Chanson de Guillaume este aspeto

não está tão amplamente refletido, na medida em que incide sobretudo na inter-

relação de algumas personagens, maioritariamente no que concerne ao protagonista.

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3 LA CHANSON DE ROLAND E LA CHANSON DE GUILLAUME: A

OPOSIÇÃO IDEOLÓGICA NA FUNDADAMENTAÇÃO DO HERÓI

As duas primeiras laisses de La Chanson de Roland situam o leitor, desde o

início da obra, não só espacialmente e temporalmente, mas também a nível dos dois

lados do conflito e daqueles que o encabeçam: “Carles li rieis, nostre emperere

magnes,/ Set anz tuz pleins ad estet en Espaigne” (Roland, 1, v. 1-2)4, “Li reis Marsilie

esteit en Sarraguce./ Ale zen este en un verger suz l’ umbre” (Roland, 2, v. 10-11). Por

outro lado, não deixa de ser curiosa também a associação que é feita, ainda nestas

laisses, de Carles ao mundo superior, positivo e de Marsile ao inframundo, das trevas:

“[Carles] Tresqu’en la mer cunquist la tere altaigne/ (…) Li reis Marsilie la tient, ki Deu

nen aimet./(…) Ne s’ poet guarder que mals ne l’i ateignet” (Roland, 1, v. 3-9); “Li reis

Marsilie esteit en Sarraguce/ Ale zen este n un verger suz l’umbre” (Roland, 2, v. 10-

11). Também na primeira laisse, o narrador coloca em oposição a capacidade das duas

forças divinas, cristã e pagã, na resolução do conflito, ao referir que Marsilie não

escapará à morte, por ser inimigo de Deus, não obstante o facto de servir Apollin e

Mahumet: “Li reis Marsilie la tient, ki Deu nen aimet./ Mahumet sert e Appollin

recleimet:/ Nes poet guarder que mals ne l’i ateignet” (Roland, 2, v. 7-9). A

fundamentação do herói coletivo passa, frequentemente, pela desconstrução do seu

duplo, seja através do narrador, do desenvolvimento da narrativa ou até mesmo das

próprias personagens.

Parece existir, desde o início, uma antevisão do desfecho da narrativa, através

de uma distinção clara entre o Bem e o Mal e a certeza de que o Bem triunfará, apesar

da dificuldade apresentada pelo inimigo: “Mur ne citét n’i est remés a fraindre,/ Fors

Sarraguce, k’ est en une muntaigne./ Li reis Marsilie la tient, ki Deu nen aimet”

(Roland, 1, v. 5-7). Ao falar com os seus duques e condes, na laisse 2, Marsilie assume,

desde logo, a sua derrota, anulando-se a si e ao seu exército, a favor de “Li empereres

4 Relativamente às citações de La Chanson de Roland e de La Chanson de Guillaume, utilizar-se-á, ao

longo deste trabalho, uma referência bibliográfica simplificada, que consistirá numa alusão abreviada do título, Roland ou Guillaume, respetivamente, e a referência à laisse e versos citados.

16

Carles de France dulce” (Roland, 2, v. 16) e dos seus homens: “Jo nen ai ost qui bataille

i dunne,/ Nen ai tel gent ki la sue derumpet” (Roland, 2, v. 18-19).

A diferença de território dominado pelos dois reis é também metáfora da

grandiosidade de Carles em relação a Marsilie: o primeiro, “Tresqu’en la mer cunquist

la tere altaigne./ N’i ad castel ki devant lui remaigne;/ Mur ne citet n’i est remés a

fraindre”(Roland, 1, v. 3-5), o segundo, “(…) esteit en Sarraguce” (Roland, 2, v. 10).

Ao longo da narrativa, constatamos várias alusões, muito claras, ao papel dos

cristãos enquanto atacantes e ao dos pagãos, de defesa, numa perspetiva de

superioridade dos primeiros em relação aos segundos: “Franc e paien merveilus colps i

rendent./ Fierent li un, li altre se defendente” (Roland, 109, v. 1397-1398). Por outro

lado, este aspeto também está presente na própria consciência que os cristãos têm

sobre a sua missão, tal como foi apresentado inicialmente. Quando Olivier refere a

Rollant o facto do número dos inimigos exceder, em muito, o seu exército, este

responde-lhe “Paien unt tort e chestiens unt dreit” (Roland, 79, v. 105). Também

Carles, na iminência do combate com o emir Baligant, encoraja os franceses, referindo

“Ja savez vos cuntre paiens ai dreit” (Roland, 245, v. 3413).

Esta posição de superioridade bélica dos cristãos sobre os pagãos assume ainda

uma dimensão institucional, quando o Arcevesque, representante eclesiástico, apela

aos franceses para que combatam em nome de Deus: “Seignurs baruns, Carles nus

laissat ci/ Pur nostre rei devum nus bem murir./ Chrestïentét aidez a sustenir!”

(Roland, 89, v. 1127-1129). A este propósito, refere Robert Lafont o seguinte: “Par sa

voix [Arcevesque] l’ Eglise donne au combattant le droit de tuer sans limite” (Lafont,

1992: 85). Como é sabido, a igreja tem um papel fundamental no encorajamento do

movimento das cruzadas, pois, citando Jacques le Goff:

“(…) A Igreja e o papado calculavam que, graças à cruzada cuja direção espiritual assumiam, iriam dar-se meios para dominar no próprio Ocidente aquela Respublica christiana (…)”. (le Goff, 1983, vol. I, 100-101)

O dualismo Bem/ Mal e a vantagem heroica dos franceses sobre os pagãos está

também muito claramente presente na descrição feita dos doze homens, recrutados

por Aelroth, sobrinho de Marsilie, que enfrentarão os doze pares de França, e na

comparação que se estabelece entre estes e os cavaleiros franceses. Tomemos como

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exemplo alguns casos: Falsaron, irmão de Marsilie, é caracterizado, pelo narrador,

como o pior traidor do mundo. Quando se apercebe que o seu sobrinho foi morto,

explode de dor e de revolta e, saindo da multidão, profere terríveis injúrias aos

franceses, comportamento que contrasta com a atitude de Olivier que, de forma

nobre, quase heroica, o ataca e mata (“Enquoi perdrat France dulce s’onur!/ (…) Ot

l’Olivier, si n’ad mult Grant irur./ (…) Vait le ferir en guise de baron (…)”, Roland, 94, v.

1223/1225); ou o caso do rei Corsablis que chama a si outros sarracenos e lhes diz que

os franceses estão em minoria e que nenhum será salvo por Carles, facto que leva o

Arcevesque a matá-lo, chamando-o mentiroso e apelando aos franceses para que

combatam em nome da causa cristã:

“Culvert paien, vos i avez mentit:

Carles, mi sire, nus est talento de fuïr.

(…) Ferez, Franceis, nul de vus ne s’ublit!

Cist premer colp est nostre, Deu mercit!” (Roland, 95,v. 1253-1259)

Por outro lado, os doze cavaleiros pagãos permitem, não só compreender que

“Paien unt tort e chestiens unt dreit” (Roland, 79, v. 1015), mas também enaltecer as

capacidades bélicas e heroicas dos franceses. Quando “l’almaçour” (Roland, 98, v.

1275) é morto pelo duque Sansun, o Arcevesque refere “Cist colp est de baron!”

(Roland, 99, v. 1280) e quando Anseïs mata Turgis de Turteluse, Rollant menciona “Un

vrai coup de preux!” (Roland, 99, v. 1288). Através de algumas personagens individuais

de La Chanson de Roland, ou da narrativa dos factos associados a estas, o anti-herói

tem também um papel importante na construção do herói enquanto ideal social e

religioso. A título de exemplo, consideremos os seguintes casos, através dos quais a

oposição Mal/ Bem, Satanás/ Deus é notória: Na laisse 96, é referido, pelo narrador,

que a alma de Malprimis de Brigant, ao ser morto por Gerins, é levada por Satanás (“E

Gerins fiert Malprimis de Brigal/ (…) L’anme de lui en portet Sathanas”, Roland, 96, v.

1262 - (…) 1268). Ao compreender que o Arcevesque morrera, Rollant confessa os seus

pecados, ergue as mãos juntas para o céu e reza a Deus para que lhe conceda o

Paraíso:

“Ç’ est l’ arcevesque, que Deus mist en sun num.

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(…) Cuntre le ciel amsdous ses mains ad juinz,

Si priet Deu que pareïs li duinst.

Morz est Turpin, le guerreier Charlun”. (Roland, 166, v. 2238-2242)

Podemos verificar também uma oposição marcada entre Bem e Mal, na

vertente de cristãos e pagãos, em La Chanson de Guillaume, ainda que, neste caso, a

valorização não recaia tanto na personagem coletiva franceses, em detrimento dos

pagãos, mas no enaltecimento de várias personagens individuais, com incidência em

Willame e nos seus sobrinhos (tal como explorámos anteriormente), que estão na

origem da vitória dos cristãos sobre os pagãos. Neste caso, e ao contrário do que se

verifica em La Chanson de Roland, em que parece existir uma oposição clara entre as

duas personagens coletivas, cristãos (que estão do lado do Bem) e pagãos (associados

ao Mal), em La Chanson de Guillaume a diferença numérica existente entre o exército

francês e o pagão, num primeiro momento da batalha, põe em evidência a

desvantagem do primeiro sobre o segundo, o que parece apontar para um desfecho

favorável ao exército de Deramed, facto que só terá um revés positivo graças à

intervenção de algumas personagens individuais, nomeadamente Willame e

Reneward, já perto do final da narrativa.

Não obstante o que referimos, é de notar, tal como se verifica em La Chanson

de Roland, por um lado, que existe, em La Chanson de Guillaume, uma valorização

daqueles cavaleiros franceses (anónimos) que persistindo em combater, apesar da

diferença numérica, se salientam, num primeiro momento da batalha, pela sua

coragem e valentia (“Li couart s’en vont od Tedbald fuiant,/ Od Vivien remistrent tut li

chevaler vaillant:/ Al chef devant fierent cunmunalment” (Guillaume, XXVIII, v. 330-

332) e, por outro, uma caracterização muito pejorativa dos pagãos: “Les Sarazins de

Saraguce terre,/ Cent mile furent de la pute geste” (Guillaume, XIX, v. 219-220);

“Aincui morrunt li cuart en Larchamp”, Guillaume, XXI, v. 245; “En icel li une poënt

choisir terre/ Ne seit coverte de pute gente adverse” (Guillaume, XLIX, v. 608-609). Na

sequência do que temos vindo a apresentar, podemos concluir que em ambas as obras

predomina uma perspetiva dualística, que se reflete num paralelismo literário entre

diferentes duplos, personagens coletivas ou individuais, cuja essência se traduz numa

oposição entre um polo positivo e outro negativo. Como pudemos constatar também,

19

este facto contribui para uma complementaridade de cada personagem, através da

apresentação do seu oposto, o qual permite uma avaliação mais incisiva dos vários

intervenientes, por parte do leitor, através da consciencialização do seu contrário.

Adiante, tentaremos estabelecer, de forma mais individualizada, uma análise

relacional entre várias personagens, num primeiro momento, por texto e,

posteriormente, numa perspetiva de análise comparada a partir das duas obras em

estudo.

20

4 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE ROLAND

4.1 CARLES, MARSILIE E BALIGANT

Ainda que, inicialmente, Marsilie surja como o opositor de Carles, o que nos

poderá levar a pensar que se trata do seu duplo, de facto, segundo cremos, não o é.

Marsilie está, desde o início, como já foi referido anteriormente, em desvantagem

geográfica, bélica e religiosa em relação a Carles. Não obstante, Marsilie, ferido por

Rollant, refugia-se em Saragoça e, apoiado por vinte mil dos seus homens e pela sua

mulher Bramimunde, comete um erro crasso ao renegar os seus deuses, culpando-os

do seu infortúnio: “E! malvais deus, por quei nus fais tel hunte?” (Roland, 187, v.

2582). Ainda nesta laisse, os pagãos destroem os seus deuses: à estátua de Apolo é

retirada a coroa e o cetro. É amarrada, lançada ao chão e despedaçado à bastonada. À

estátua de Tervagant é retirado o seu “escarbuncle” (Roland, 187, v. 2589), símbolo da

sua identidade deítica, e a de Maomé é atirada para um fosso, onde será mordido por

cães e porcos5. Este aspeto adquire uma carga simbólica muito forte, na medida em

que se trata de uma atitude quase amoral, vergonhosa e pouco digna de um rei. Ao

contrário do que seria de esperar de um líder e de um verdadeiro cavaleiro, Marsilie

não enfrenta os seus medos, não luta até ao fim das suas forças e, por isso, não é um

adversário à altura de Carles que, como refere o próprio Marsilie, tem mais de

duzentos anos, conquistou vários países e matou vários reis poderosos no campo de

5 De acordo com Gilbert Durand, a mordidela de um animal poderá estar associado a uma justiça

alquímica, renovadora, o que no contexto preciso fará sentido, na medida em que a negação das entidades divinas, por parte dos pagãos, e a sua redução a fragmentos, constitui, antes de mais, na vitória do Bem sobre o Mal, do verdadeiro Deus sobre imagens que, de acordo com o que nos é apresentado, não são mais do que isso: “Souvent en effet, dans le rêve ou la rêverie enfantine, l’animal dévorant se métamorphose en justicier. Mais la plupart du temps l’animalité, aprés avoir été le symbole de l’agitation et du changement, endosse plus simplement le symbolisme de l’agressivité, de la cruauté”. (Gilbert Durand, 1984: 90) O facto, por exemplo, de as imagens de Apolo e Maomé serem lançadas ao chão, num caso, e a um fosso, no outro, permitem esta renovação alquímica, enviando para o inframundo o que a ele pertence. O recurso ao desmembramento aparece ainda na obra, de forma significativa, associada a outra personagem, Ganelon, condenado a esta execução devido à sua traição. Neste caso, o narrador refere que esta personagem morre como deve morrer um traidor: “Ganelon est mort cume fel recreant” (verso 3973). Tanto num caso como no outro, o desmembramento é utilizado como uma forma de anulação total da personagem.

21

batalha: “De Carlemagne, ki est canuz e blancs!/ Mien escientre plus ad de. II. C. anz./

Par tantes teres est alet cunquerant,/ Tanz colps ad pris de bons espiez trenchanz,/

Tanz riches reis morz e vencuz en champ” (Roland, 42, v. 554-555). Marsilie é então

um homem destruído, comporta-se como um derrotado. Bramimunde, a rainha pagã,

resume, na laisse 188, a situação em que se encontram, Marsilie e o seu povo, sem

defesa, sem rei e sem proteção divina: “E! Sarraguce, cum ies oi desguarnie/ Del gentil

rei ki t’aveit en baillie!/ Li nostre deu i unt fait felonie,/ Ki en bataille oi matin li

faillirent” (Roland, 188, v. 2595-2601). Analisando esta passagem, concluímos que, de

uma forma direta ou indireta, os problemas apresentados estão dependentes da ação

ou inércia do rei pagão, na medida em que se anulou do seu papel de líder e renegou

os seus deuses. Marsilie tem uma reação contrária à de Carles que tem sempre

presente os deveres religiosos (“Li empereres est par matin levet;/ Messe e matines ad

li reis escultet”, Roland, 54, v. 669) e, como refere Bramimunde, não foge se for

atacado (“Li emperere od la barbe flurie/ Vasselage ad e mult grant estultie;/ S’il ad

bataille, il ne s’en fuirat mie”, Roland, 188, v. 2605-2607). A este propósito, Helder

Godinho acrescenta ainda um aspeto importante, ao justificar o facto de Carles não

procurar confrontar Marsilie em Saragoça por este não constituir o seu verdadeiro

adversário: “Charles ne va pas jusqu’à Saragosse parce que l’ennemi auquel il veut se

mesurer n’est pas là – elle est donc une ville symboliquement vide”. (Helder Godinho,

1989: 54).

Como refere o autor, o duplo de Carles é o emir Baligant que, como ele, tem

uma idade secular, pois já viveu mais do que Virgílio e Homero, “Ç’ est l’amiraill, le viel

d’antiquitét,/ Tut survesquiet e Virgilie e Omer” (Roland, 189, v. 2615-2616). Numa

análise retrospetiva, este aspeto pode justificar o facto de, na carta que Carles envia a

Marsilie, o imperador mencionar que deseja confrontar-se com o tio de Marsilie e não

com ele: ”Se de mun cors voeil aquiter la vie,/ Dunc li envei mun uncle l’ algalife”

(Roland, 37, v. 492-493).

Por outro lado, a chegada de Baligant a Espanha é, também ela, significativa de

uma previsão da alteração da narrativa. Baligant chega ao fim de sete anos, num dia

22

claro, cheio de sol6. Todo o ritual que se desenvolve à volta desta personagem mostra

o caráter de destaque que o narrador lhe parece querer atribuir. Na laisse 192,

Baligant é acompanhado, à direita, por Espaneliz e escoltado por dezassete7 reis.

Baligant senta-se num trono de marfim, enquanto os restantes permanecem de pé.

Anuncia que combaterá Carles em França, que este não poderá comer8 sem que ele o

ordene e, para sublinhar as suas palavras, corta o seu joelho esquerdo:

“Carles li reis l’emperere des Francs,

Ne deit manger se jo ne li cumant.

(…) En France dulce le voeil aler querant,

Ne finerai en trestut mun vivant

Josqu’il seit mort u tut vif recreant”. (Roland, 192, v. 2658-2663)

Ao contrário de Marsilie, Baligant faz do combate a Carles o seu principal

objetivo, uma coragem que se equipara à do seu homólogo. Também existem

semelhanças a nível físico e psicológico entre ambos: Baligant tem o porte de um

verdadeiro cavaleiro, cabelos encaracolados e brancos como as flores da primavera

(“Fier le visage, le chef recercelét,/ Tant par ert blancs cume flur en estét”, Roland,

228, v. 3161-3162) e a sua barba tem a brancura de uma flor. É erudito no que respeita

a sua religião e ardil na batalha (“Blanche ad la barbe ensement cume fkur,/ E de sa lei

mult par est saives hom,/ E en bataille est fiers e orgoillus”, Roland, 229, v. 3172-3175).

Carles tem a barba branca (“De Carlemagne, ki est canuz e blancs”, Roland, 42, v. 551),

“flurie” (Roland, 188, 2605), é valente, cheio de honra e qualidades que, segundo

refere Ganelon, ninguém consegue descrever. Prefere morrer a abandonar os seus

6 Ainda que pareça curioso, a nível simbólico, o facto de Baligant estar associado à luz, ao contrário de

Marsilie, como vimos anteriormente, este aspeto poder-se-á justificar, segundo cremos, na perspetiva da transformação alquímica que esta personagem vem incutir ao desenvolvimento da narrativa. Esta análise parece ter ainda mais sentido, se tivermos em conta a simbologia do número sete que se relaciona com a conclusão de um ciclo (associação simbólica com os sete dias da semana, os sete planetas, etc.). 7 O número sete surge, mais uma vez, associado à mudança de um ciclo.

8 Gilbert Durad, citando Bachelard, refere-se à alimentação e à gulodice como uma forma de aplicação

do princípio de identidade, o que neste caso faz sentido, na medida em que Baligant pretende a anulação de Carles, da sua identidade enquanto imperador e líder. Impedir que ele coma será, neste sentido, uma forma de o anular: “La gloutonnerie est une application du principe d’identité”; disons mieux: le principe d’identité, de perpetuation des vertus substantielles, reçoit sa première impulsion d’une méditation de l’assimilation alimentaire, assimilation surdéterminée par le caractère secret, intime d’une opération qui s’effectue intégralement dans les ténèbres viscérales”. (Bachelard, apud Gilbert Durand: 294)

23

barões: “De tel barnage l’ad Deus enluminét,/ Meilz voelt murir que guerpir sun

barnét” (Roland, 40, 535-536).

Ainda que existam claras semelhanças entre as duas personagens, existem

também diferenças que nos permitem compreender que Baligant está associado ao

Mal: ainda que seja erudito, é-o relativamente à sua religião (“E de sa lei mult par est

saives hom”, Roland, 229, v. 3174), uma religião que não vale um denar (“Tute lor leis

un dener ne lur valt”, Roland, 239, v. 3338), falsa e infundada, negada por Deus (“De

false lei, que Deus nen amat unkes”, Roland, 264, v. 3638).

Em conclusão, a condição de duplo exige, assim, que este se equipare ao seu

homólogo, pois só desta forma poderá contribuir para o reconhecimento do herói e

para a sua afirmação enquanto tal. Assim se justifica, acreditamos, que no caso

concreto, a anulação do duplo (polo negativo) tenha de ser realizada pelo herói (polo

positivo). Marsilie é ferido por Rollant, não por Carles, mas Baligant morre através das

mãos de Carles, depois de um combate de igual para igual, que só tem um desfecho

favorável ao imperador dos franceses, por intervenção de Deus que, como é referido,

não quer que ele seja vencido ou morto e lhe envia S. Gabriel, que intercede por ele,

questionando-o (o que produz, no imperador, um efeito catártico). A vitória de Carles

sobre Baligant não se deve a razões de destreza ou de capacidade bélicas, tão pouco

de liderança. Carles vence para cumprir o destino a que está obrigado, a destruição do

Mal, a propagação da fé cristã.

Numa outra perspetiva, a anulação de Baligant implica a anulação do confronto

de Carles com o seu duplo, tendo em conta que Baligant representa uma outra

perspetiva do imperador francês, um lado negativo que é necessário eliminar. Este

aspeto está claramente relacionado com a teoria de Pierre Jourde e Paolo Tortonese,

relativamente à luta que se estabelece frequentemente entre o herói e o seu duplo:

“Éliminer purement et simplement le double revient en fait à éviter le conflit, l’épreuve que représente le double. Si l’on admet l’hypothèse que le double représente dans le sujet la partie exclue, non réalisée, celui qui fait disparaître le double veut se défaire à la fois de la vie et de la mort. En éliminant la vie, le désir incarné par le double, il se figure qu’il ne peut plus mourir (puisqu’il ne vit plus et ne désire plus, ne fait plus partie du monde). Comme le dit Otto Rank, ce suicide symbolique représente une manière

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paradoxale de refuser la mort, de rester un sujet absolu idéalisé”. (Pierre Jourde e Paolo Tortonese, 2005: 114-115)

O combate entre Carles e o seu duplo permite colocá-los em contacto direto,

através de uma simbiose corporal que leva também ao questionamento da identidade

do imperador e de Baligant que, até ao momento, se apresentam como personagens

autónomas, independentemente das semelhanças e relações verificáveis entre ambos.

Neste caso, as identidades das duas personagens entram em conflito e é o duelo que

permite a resolução do problema:

“Lutter avec le double ne revient ni à le refuser, ni à se laisser prendre à sa séduction gluante. Dans le combat, les deux adversaires s’opposent, et en même temps ils entrent enfim directement en contact. Ce n’est plus la seduction purement visuelle, la distance fascinante qui caractérise souvent les relations du sujet et de son double, mais la définition même du double est mise en cause dans la lutte, et qui tend à s’inverser: l’identité devient conflictuelle, la différence se trouve compromise dans l’indifférenciation de la mêlée corporelle. On ne sait plus qui est qui, l’opposition figée et la réitération obsessionnelles tourne à l’échange, meme si ce sont des coups qui sont échangés”. (Pierre Jourde e Paolo Tortonese, 2005: 115)

Tendo em linha de conta os aspetos referidos, poder-se-á concluir que a

eliminação de Baligant é um bem necessário para a unificação e glorificação de Carles

como único soberano. Baligant constitui o maior impedimento à unidade do

imperador. Por outro lado, e tal como refere Helder Godinho, Carles, ao conquistar o

espaço do inimigo, está a conquistar o seu espaço real que, até ao momento, se

apresentava fragmentado:

“La conquête de l’espace de l’ennemi est, dans ce contexte, la conquête de l’espace d’un Personnage royal “éparpillé” entre plusieurs actants, plus ou moins “equivalentes”. (Helder Godinho, 1989: 57)

25

4.2 OS SONHOS PREMONITÓRIOS DE CARLES E A SUA RELAÇÃO COM O

DIVINO

De acordo com Jacques le Goff, o sonho é, durante o período medieval, uma

forma de alienação em relação ao mundo real e também um mecanismo de

aproximação ao divino: “Sonhos premonitórios, sonhos reveladores, sonhos

instigadores, são eles a própria trama, os estimuladores da vida mental [medieval]” (le

Goff, 1983, vol. II: 107). Por outro lado, o sonho, e sobretudo o sonho premonitório,

está associado à tradição judaico-cristã, através do texto bíblico, sinal de revelação que

é dado a conhecer aos eleitos. Ao longo do Antigo e Novo Testamentos, existem

inúmeras alusões ao sonho enquanto forma de providência cristã e de revelação do

futuro para evitar a catástrofe. No Evangelho de Mateus (2, 1:12), o sonho surge

associado à causa política, visto que os magos, enviados a Belém na qualidade de

espiões, são advertidos em sonhos para regressarem a casa por outro caminho, de

forma a evitarem o seu encontro com Herodes e facilitar a fuga, para o Egito, da

Sagrada Família, aspeto que também é revelado por sonho a São José. Por outro lado,

o sonho é também, no Texto Bíblico, uma forma de revelação de Deus, uma espécie de

facilitador da interpretação da vontade divina. Ainda no Evangelho de Mateus (1,

20:25), São José é advertido, através de um sonho, do nascimento de Cristo, de forma

a apaziguar os seus receios ou reações negativas a este facto.

Esta forma de utilização do sonho parece adequar-se ao que presenciamos em

La Chanson de Roland, relativamente ao imperador Carles. Esta personagem é

informada através do sonho da traição de Ganelon e das consequências catastróficas

que este aspeto terá no desenrolar dos factos futuros. Porém, e ao contrário do que se

verifica no Texto Bíblico, não se observa, por parte do imperador, uma correção

atempada dos factos, de forma a evitar o problema revelado9. Uma questão importa

então colocar: por que razão é revelado o futuro a Carles, se este aspeto não

contribuirá para que modifique o decurso dos factos? Segundo cremos, o objetivo

9 Na laisse 67, depois de receber uma visão de um Anjo, Carles refere que a França será destruída por

Ganelon: “E dit al rei: “De quei avez pesance?/ Carles respunt ai, ne puis müer n’en pleigne:/ Par Guenelun serat deserte France!”. (Roland, 67, v. 832-834)

26

literário dos sonhos do imperador não é a salvação de Rollant, pois, como

desenvolvemos anteriormente, esta personagem deve ser sacrificada para que se

concretize a purificação do espaço imperial de Carles. Os sonhos são uma forma de

reafirmar a imagem transcendental que se pretende transmitir do imperador,

enquanto único intermediário de Deus e da interpretação da sua vontade. Este facto

permite, assim, legitimar a campanha de cruzada, desenvolvida por Carles, ao serviço

da causa cristã. Por outro lado, se tivermos em consideração a interpretação de Helder

Godinho (1989) acerca da associação que se estabelece entre a morte de Ganelon e o

sacrifício de um urso (aspeto que desenvolveremos mais pormenorizadamente no

capítulo referente a esta personagem), facilmente relacionaremos a decisão de Carles,

relativamente à morte de Ganelon, a uma forma final de agradecimento e

comunicação com o divino.

Com o objetivo de compreender, mais pormenorizadamente, a importância do

sonho na caracterização de Carles, tenhamos em conta o seguinte: ao longo da obra,

observamos uma caracterização bastante positiva à volta da personagem do

imperador, a qual aponta para a sua elevação enquanto cavaleiro, líder e exemplo de

cristandade, o que, em algumas passagens, nos leva a crer que Carles está no limiar do

terrestre e do etéreo. Esta condição que se coaduna, aliás, com a conceção de herói

clássico, associada aos seus sonhos premonitórios, aponta para a divinização da

personagem pois, tal como referimos inicialmente, aproxima-a do elemento divino, ao

lhe ser revelado o futuro, através do símbolo10. Da mesma forma, a associação da

personagem a entidades divinas, como é o caso do Anjo Gabriel, para proteção do

imperador, é também significativa da caracterização transcendental que se pretende

traçar da personagem. Porém, tal como o herói clássico, Carles vive uma condição

dupla, pois parece hesitar, por vezes, no seu percurso de divinização. A consolidação

da personagem, enquanto herói, está alicerçada na necessidade de exorcizar os

sentimentos que o ligam à sua condição humana. Ainda que o seu lado humano o

atraiçoe e, por vezes, o induza à incerteza ou à angústia, tal como é referido aquando

de um dos seus sonhos premonitórios (“Karles se dort cum hume traveillét”, Roland,

10

Numa perspetiva medieval, o símbolo é também revelador da condição deítica da personagem, na medida em que cada objeto remete para uma correspondência figurativa de qualquer coisa pertencente ao plano do transcendente: “O símbolo (…) é a referência a uma unidade perdida, recorda e evoca uma realidade superior e oculta” (Jacques le Goff, 1983, vol. II: 93).

27

185, v. 2525), o divino tem como função a reorientação, através do suporte e consolo

espirituais: “Seint Gabrïel li ad Deus enveiét,/ L’empereür li cumande a guarder”

(Roland, 185, v. 2525-2526). Este aspeto não só é exemplificativo da conceção

medieval sobre aquele que deve ser o percurso de um verdadeiro cavaleiro, como

também nos permite caracterizar esta personagem como um modelo heroico a seguir.

À legitimidade da autoridade ou da antiguidade, acresce, assim, a legitimidade da

personagem através do milagre, facto que está, tal como refere Jacques le Goff,

intimamente ligado à figura heroica:

“Evidentemente que os principais beneficiários de tais manifestações [milagres] eram os heróis. Na gesta de Girard de Vienne, um anjo vem pôr fim ao duelo entre Rollant e Olivier. Na Chanson de Rollant, Deus fez parar o Sol; na Peregrinação de Carles, confere aos valentes a força sobre-humana que lhe permite realizar proezas de que temerariamente se tinham gabado”. (le Goff, 1983, vol. II: 92)

Os sonhos e visões de Carles possibilitam-lhe a revelação do futuro, mas

também a sua orientação espiritual e política. Acima de tudo, estas revelações

permitem-lhe preparar-se para as vicissitudes que se avizinham, de forma a não

fracassar, nem hesitar no percurso que lhe está traçado:“Quant Carles ot la seinte voiz

de l’ange,/ Nen ad poür ne de murir dutance./ Repairet loi vigur e remembrance”

(Roland, 262, v. 3612-3614). Ainda que solicite o conselho dos seus pares, pois é

prudente e consulta frequentemente os franceses antes de decidir, a sua principal

inspiração reside na fé e na vontade de Deus. Antes de ouvir os seus homens, Carles

reza e ouve missas:

“Li empereres est par matin levét,

Messe e matines ad li reis escultét.

Desuz un pin ene st li reis alez,

Ses baruns mandet pur sun cunseill finer:

Par cels de France voelt il del tut errer.” (Roland, 11, v. 163-166)

Numa perspetiva histórica, dir-se-ia que a associação de Carles ao divino, em La

Chanson de Roland, não é senão um reflexo da repercussão lendária que as campanhas

28

bélicas de Carlos Magno11 desencadeiam durante o período medieval e que a

Literatura acaba por tratar de uma forma lendária, transcendental, de forma a

legitimá-lo. Como refere Jacques le Goff, Carlos Magno está na origem da tradição de

cruzada que ocupará uma parte significativa da História medieval e os seus feitos são

decisivos “na tentativa de organização Germânica” (expressão retirada do título do

Capítulo II, in Le Goff, 1983, vol. I: 65), nos séculos VIII-X:

“A leste, Carlos Magno inaugurou uma tradição de conquista em que se misturaram o morticídio e a conversão – a cristianização à força, que a Idade Média iria praticar durante longo tempo”. (Le Goff, vol. I, 1983: 66)

Em conclusão, podemos considerar que os sonhos premonitórios e visões de

Carles se desenvolvem nesta linha de legitimação do imperador, enquanto soberano

supremo, cuja tarefa de evangelização está ao serviço de uma causa maior, a causa

religiosa. Nesta perspetiva se compreenderá a inércia de Carles perante os avisos da

catástrofe iminente que recebe através dos sonhos ou das visões que lhe vão sendo

dados a conhecer ao longo do texto. A nível da economia da narrativa, estes sonhos ou

visões não têm qualquer função significativa, pois não contribuem, de forma direta,

para a alteração dos factos.

11

A utilização desta grafia justifica-se na medida em que nos referimos, neste contexto, à figura histórica e não à personagem literária.

29

4.3 ROLLANT, GANELON E OLIVIER

Da análise destas personagens não podemos dissociar o conceito medieval de

identidade cavaleiresca. A partir do século XII, ser cavaleiro torna-se um estilo de vida,

na defesa dos mais fracos, da honra, da justiça, da fé e da terra natal. O cavaleiro está,

na sua essência, fortemente ligado ao ato heroico, ainda que alguns episódios

históricos mostrem que, por vezes, outros valores se sobrepuseram aos ideais do

código cavaleiresco, como a luta por terras ou por afirmação social, tal como refere

Robert Lafont:

“ La chevalerie plaçant dans son ascension les vertus de risque et de dépense au-dessus de l’hoirie, de la terre et de la prudence, bouleverse la morale publique”. (Robert Lafont, 1064-1154: 8)

Não é de estranhar que esta realidade histórica se reflita na produção literária

medieval e que a coragem e idoneidade do herói sejam colocadas em paralelo com o

erro cometido pelo anti-herói.

Rollant e Ganelon destacam-se, desde o início, como figuras antagónicas, não

na valentia e capacidade bélica, mas na dedicação que colocam à questão essencial:

lealdade a França e ao imperador na luta pela erradicação do infiel. Efetivamente, a

rutura de Ganelon com a lealdade ao seu imperador é suscitada por uma questão

pessoal, de orgulho ferido, não é inerente à própria personagem, já que, na laisse 20,

Ganelon é considerado, pelos franceses, o mais sábio de entre eles. Efetivamente,

assistimos a uma espécie de inversão de papéis entre as duas personagens: Ganelon,

homem “saive” (“avisé”, Roland, 20, v. 280) recusa-se a servir de mensageiro,

enquanto Rollant, que tem um caráter intratável e violento, tal como refere Olivier

(“Vostre curages est mult pesmes e fiers”, Roland, 18, v. 256) é o primeiro a oferecer-

se para tal. Este aspeto poder-se-á compreender a vários níveis: efetivamente, é

Rollant quem apresenta uma perspetiva guerreira, de cruzada, em relação ao

problema, enquanto Ganelon tem uma atitude de passividade, de crença,

relativamente à veracidade da intenção de Marsilie, ao apresentar a sua rendição.

Ganelon desvirtua a lógica guerreira, pondo em causa o código cavaleiresco, pois, ao

30

contrário de Rollant, defende uma solução do problema através da palavra, como

refere o narrador: “Vindrent a Charles ki France ad en baillie;/ Ne s’poet guarder quë

alques ne l’engignent” (Roland, 7, 94-95). Ganelon surge como duplo de Rollant e a

partir do momento em que se coloca o problema, assistimos, tanto de uma parte

como de outra, a tentativas sucessivas para se eliminarem mutuamente: Rollant indica

Ganelon como mensageiro, sabendo que se trata de uma tarefa que lhe poderá custar

a vida; Ganelon acorda com Marsilie a traição contra o imperador Carles na condição

de que este o auxilie a eliminar Rollant e propõe que seja Rollant a comandar a

retaguarda do exército. Ao contrário do que se verifica entre Carles e Baligant, em que

o primeiro elimina o segundo, seu duplo, numa perspetiva de purificação do espaço

territorial e imperial, no caso de Rollant e Ganelon há uma dupla eliminação, numa

lógica de anulação total das duas personagens. Rollant morre devido à traição de

Ganelon e este é condenado à morte pois traiu para se vingar do primeiro. A morte de

Rollant coloca-nos uma questão, abordada, aliás, por vários autores: por que razão

Carles não impede que seja Rollant a comandar a retaguarda do exército, sabendo que

este correria risco de vida?

O sacrifício de Rollant é fundamental para que Carles não se anule e para que

se perpetue o seu império e domínio, tal como refere Helder Godinho:

“Il semble donc que La Chanson de Rollant est parcourue par une chaîne d’isomorphismes qui se rapporte à un contexte sacrificiel qui permet la purification de l’espace du Personnage royal, que Charlemagne assume en plenitude”. (Helder Godinho,1989: 61)

Por outro lado, a análise literária de Rollant leva-nos também a refletir sobre

Olivier e a sua função na narrativa. Olivier opõe-se a Rollant, na medida em que

apresenta, ao longo do seu percurso textual, uma perspetiva mais consciente sobre os

factos que Rollant. Dir-se-ia que Rollant assume uma postura mais irracional, enquanto

Olivier parece ter uma visão estratégica sobre os problemas que lhe vão sendo

apresentados. É cauteloso e prudente. Rollant age por emoção, enquanto Olivier

parece ser menos emocional e mais racional: “Rollant est proz e Oliver est sage”

(Roland, 87, v. 1093). Personagens duplas, um e outro parecem completar-se pois

31

reúnem, no seu conjunto, as características que um bom cavaleiro deve possuir: por

um lado a emoção, o coração, por outro a justiça e a prudência.

Noutra perspetiva, a postura de Olivier não deve também ser confundida com a

de Ganelon, que é ardiloso e propõe a resolução do problema através de um discurso

assente no interesse pessoal e no engano.

Olivier e Rollant parecem, assim, funcionar, ao longo da narrativa, como um só.

As construções literárias destas duas personagens interligam-se nos momentos mais

cruciais: quando, na laisse 18, Rollant se oferece como mensageiro de Carles, Olivier

contraria a sua opinião, referindo que a personalidade do amigo não se adequa a esta

função, mostrando-se sensato e ponderado sobre a importância e cautela necessárias

ao tratamento da questão. Por outro lado, Olivier também se opõe à recusa de Rollant

em tocar o olifante e pede-lhe três vezes12 que o faça, da laisse 83 à 85. Este aspeto é

bastante significativo, tendo em conta a perspetiva apresentada anteriormente. Na

laisse 131, Olivier refere a Rollant que a prudência vale mais do que bravura

desmedida, pondo em evidência a diferença existente entre as duas personagens:

“Mielz valt mesure que ne fait estultie” (Roland, 131, v. 1725). Rollant age por orgulho,

salientando o seu caráter bélico.

Ainda que saibamos, de acordo com a perspetiva de Helder Godinho, que a

morte de Rollant é necessária para que se cumpra a sua função sacrificial, “ce qui a

permis à Charlemagne de se débarrasser de Rollant pour “purifier” le personnage royal

français” (Helder Godinho, 1989: 55), o seu sacrifício e, por consequência, o de toda a

armada, ter-se-ia evitado caso Rollant tivesse tido em atenção as palavras de Olivier. A

este aspeto, acrescentem-se ainda as palavras de Rollant aquando da morte de Olivier,

que nos parecem elucidativas da inter-relação existente entre as duas personagens:

“Sire cumpaign, tant mar fuestes hardiz!

12

A propósito da referência ao número três, salientamos o facto da numerologia referida ao longo do texto estar, de forma geral, simbolicamente associada à tradição judaico-cristã, o que reforça o caráter religioso transversal a todo o texto e, como vimos noutros momentos, associado ao percurso de legitimação do herói. De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “O 3 como número, o primeiro ímpar, é o número do Céu, o 2 o número da Terra, porque o 1 é anterior à sua polarização. O 3, dizem os Chineses, é um número perfeito (tch’eng), a expressão da totalidade, da conclusão: nada lhe pode ser acrescentado. É o acabamento da manifestação: o homem, filho do Céu e da Terra, completa a Grande Tríade. É, aliás, para os cristãos, a perfeição da Unidade divina: Deus é Um em três Pessoas”. (Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: 654)

32

Ensemble avum estét e anz e dis;

Ne m’ fesis mal, ne jo ne l’ te forsfis.

Quand tu es morz, dulur est que jo vif!”. (Roland, 151, v. 29027-2030)

Olivier parece, assim, funcionar como o alter-ego de Rollant. Este aspeto

poderá justificar que, numa perspetiva de anulação da personagem de Rollant, Olivier

tenha também de ser eliminado. É curioso perceber que é o próprio Olivier quem,

ainda que por engano, atinge Rollant violentamente. Ferido de morte, com visão

desfocada, Olivier tem uma atitude que pouco se adequa à perspicácia e sensatez

referidas anteriormente, aspeto que, segundo cremos, só se poderá justificar nesta

perspetiva. Olivier surge como metáfora do erro cometido por Rollant, por não tocar o

olifante. Olivier, que sempre funcionou como a sua consciência, atinge-o enquanto

metáfora da culpa que o assola. Da mesma forma, o sacrifício de Rollant justifica-se a si

próprio, na medida em que a sua morte está intrinsecamente ligada à sua culpa. Ainda

que se verifique, ao longo da narrativa, uma evolução de Rollant no sentido do

material para o espiritual, o que lhe confere, aquando da sua morte, a condição

indubitável de herói, Rollant falha na sua função de defesa do interesse comum, em

prol do seu orgulho pessoal. A morte de Rollant justifica-se, não só pelo que já

referimos anteriormente, mas também porque é a única forma de reparar o seu erro,

já que ao cavaleiro compete suportar os piores sofrimentos pelo seu senhor, tal como

refere o próprio: “Pur sun seignur deit hom susfrir granz mals” (Roland, 88, v. 1117).

O sacrifício de Rollant, que leva à sua anulação enquanto personagem, é a

causa do desvio à regra, do erro que só ele pode corrigir, pois só ele é responsável por

tal, como refere Olivier: “Vostre olifan ne deignastes suner,/ Ne de Carlun mie vos

nena vez;/ Il n’en set mot, n’i ad culpes li bers” (Roland, 92, v. 1171-1173). Por outro

lado, é importante compreender que é também o erro de Rollant que desencadeará a

consolidação do seu processo de heroicidade. A partir do momento em que Rollant

erra ao não solicitar a ajuda de Carles, o seu percurso estabelecer-se-á no sentido da

desmaterialização, um trajeto que aponta para o crescimento espiritual enquanto

cavaleiro e herói. O primeiro sinal deste aspeto parece ser a assunção da própria culpa,

quando recua na sua decisão inicial e toca, mais tarde, o olifante. Por outro lado, no

momento em que combate já só, Rollant parece adquirir uma força transcendental, “Li

33

quens Rollant, quant il les [paien] voit venir, / tant se fait si fort, e fiers e maneviz”

(Roland, 158, v. 2124-2125), ao ponto dos pagãos referirem que não está ao alcance

de nenhum homem, na sua condição humana, vencer Rolland: “Li quens Rollant est de

tant Grant fiertét,/ Já n’ert vencut pur nul hume carnel” (Roland, 160, v. 2152-2154).

Os desmaios de Rollant, no total três, desde a laisse 148 à 164, são, segundo cremos,

também simbolicamente significativos neste contexto, na medida em que apontam

para um estado de inconsciência, de alienação do real, o que antecipa o desfecho do

percurso de desmaterialização da personagem. Mas é após a sua morte que este

aspeto atinge a sua plenitude. Deus envia os seus anjos para que levem a alma do

conde para o paraíso. A recompensa de Rollant é a que estaria prometida a todos os

cavaleiros que, como ele, lutassem pela afirmação da fé cristã e pela erradicação do

paganismo. Acrescente-se, a este aspeto, o facto deste estado transcendental, de

herói, advir da morte da personagem, o que nos permite também associá-la a uma

condição quase equiparada à do santo martirizado.

De acordo com Gilbert Durand, citando Bachelard, “Le schème de l’élévation et

les symboles verticalisants sont par excellence des “métaphores axiomatiques” (..)

“Toute valorisation n’est-elle pas verticalisation?” (Bachelard, apud Gilbert Durand,

1984: 138). A elevação da alma de Rollant consiste na elevação do estado humano ao

do herói, através da passagem da condição material à espiritual, etérea: “Il est donc

naturel que ces shèmes axiomatiques de la verticalisation sensibilisent et valorisent

positivement toutes les représentations de la verticalité, de l’ascension à l’élévation”.

(Gilbert Durand, 1984: 140)

34

5 CASOS COMPARÁVEIS EM LA CHANSON DE GUILLAUME

5.1 WILLAME

Esta personagem assume, em La Chanson de Guillaume, um destaque

semelhante ao de Carles em La Chanson de Rollant, na medida em que a narrativa o

elevará à condição de herói irrefutável, ainda que o processo literário pelo qual este

aspeto é levado a cabo seja, em alguns aspetos, divergente. Carles é, desde o princípio

da narrativa, um cavaleiro exemplar, com obra reconhecida, sendo que não sofre, ao

longo do seu percurso textual, variações psicológicas significativas, pois é desde o

início um herói amadurecido. O seu papel consistirá no reforço da legitimação deste

facto, junto dos seus pares e do inimigo, ainda que, para tal, seja necessário, à

semelhança do que verificámos, a eliminação do seu duplo, Rollant. No caso de

Willame, assistimos a um processo semelhante, tal como mostraremos adiante, mas,

neste caso, parece verificar-se um percurso que leva à maturação psicológica e

cavaleiresca, ao contrário do que se constata relativamente a Carles, cuja variação

psicológica não é tão significativa. Consideramos que a personagem Willame se

estrutura em torno de dois eixos cosmológicos que, parecendo destintos, se

completam: o familiar e o cavaleiresco. Na realidade, e ao contrário de Carles, Willame

parece encontrar no espaço familiar, e sobretudo na figura de Guiburc, a estabilidade

interior de que necessita para enfrentar o espaço exterior, o que poderá justificar a

sua demora em participar na batalha (que, como sabemos, só acontecerá tardiamente

e a pedido do seu sobrinho Vivien) ou o facto de necessitar de regressar a casa, após a

morte do seu sobrinho Guischard, para o devolver à família, ainda que o narrador seja

perentório em referir, por duas vezes, que Willame não abandona a batalha:

“N’en fuit mie Willame, ainz s’en vait;

Devant li aporte mort Guischar,

Joesdi al vespre,

N’en fuit mie li bons quons Willame”. (Guillaume, XCV, v. 1225-1228)

35

O eixo familiar parece contribuir para a humanização deste herói. O facto de

recolher o corpo de Guischard, que entrega a Guiburc, e de lhe anunciar a morte de

Vivien, é elucidativo do valor que a família tem na construção da personagem

enquanto herói pleno, numa evolução interior que acompanha o reconhecimento

social que possui: “Tien, dame Guiburc, ço est tun nevou Guischard./ Já Vivien le cunte

vif mês ne verras” (Guillaume, XCIX, v. 1218-1219). Este aspeto parece ainda mais claro

já que as mortes de Guischard e de Vivien são a principal razão para Willame se

considerar um homem destruído e fracassado:

“(…) Par Deu, Guiburc, tu as dreit que tu plurs,

Kar já diseient en la cur min seigbur

Que eres femme Willame, uns riche hom,

Un hardi cunte, un vaillant fereür;

Or estes femme a un malveis fuieur,

Un cuart cunte, un malveis tresturnur,

Qui de bataille n’ameine home un sul”. (Guillaume, C, v. 1303-1309)

Estes dois eixos contribuem para que Willame, aos olhos do leitor, seja um

modelo de altruísmo, pois chega a abdicar do seu estatuto social de nobre cavaleiro

em benefício da valorização e respeito pelo outro. Este facto verifica-se claramente,

por exemplo, quando ele se dirige à corte de Lowis, acompanhado por um escudeiro

muito novo e fisicamente incapaz de transportar os seus pertences bélicos.

Surpreendentemente, é Willame quem o faz, demonstrando não só uma grande

compaixão pelo rapaz, mas também respeito, pois não deixa que ele seja

envergonhado socialmente e, quando se cruzam com algum peregrino ou mercador ou

quando chegam a uma cidade, Willame devolve ao escudeiro as suas armas e recolhe-

as novamente quando já estão longe:

“Vait s’en Willame, Guiburc remist plorant.

Un esquier menant, ço fu un enfant,

Tant par fu joefnes, n’out uncore quinze anz.

La hanste fu grosse, si li pesad formanz,

E li escuz vers la terre trainant,

D’ures en altres fors des arçuns pendant.

36

Veit le Willame, merveillus duel l’en prent,

Totes les armes ad pris de l’enfant.

Quand il encontre rumiu u marchant,

U vient a chastel u a ville, errant

Totes ses armes rebaille a l’enfant”. (Guillaume, CLI, v. 254-2464)

Em conclusão, podemos constatar que Willame é um herói humanizado, pois

adequa o seu comportamento ao contexto social, moral e familiar em que se insere. O

seu crescimento e legitimação enquanto herói estruturam-se nesta base de atuação. O

seu equilíbrio interior advem do equilíbrio que consegue na interação com os seus

pares, do seu altruísmo e da sua dedicação à família e à causa social.

5.2 WILLAME E OS SEUS MÚLTIPLOS

Em La Chanson de Guillaume existe um conjunto de personagens, decalcadas

da personagem Willame, que se associam a esta, de forma direta, quer

semanticamente, pois têm nomes compostos a partir do seu, quer através dos laços

familiares que as unem ou ainda do caráter heroico, de correção e valentia, também

transversal a todas. Tal como refere Alain Corbellari, a tradição do recurso a esta

personagem, na canção de gesta, e não só13, tem grande representatividade durante o

período medieval, facto que se pode justificar pela conotação heroica que lhe é

atribuída:

“Willame d’Orange (le héros medieval, c’est de lui que nous parlerons désormais) a pourtant été quatre siècles durant l’un des piliers les moins contestés de l’immense matière épique du Moyen Âge: il est avec Rollant la plus anciennement attestée des “stars” de la chanson de geste (…)”. (Alain Corbellari, 2011: 10).

Este aspeto poderá justificar não só a significativa literatura produzida à volta

desta personagem, como também o recurso, bastante notório na obra em análise, a

13

De acordo com Alain Corbellari, Willame d’ Orange estará na origem de algumas tradições e nomes que perduram até aos nossos dias, como é o caso do nome atribuído a um rio da África do Sul (“Orange”) ou a designação de “Orangistes” atribuída aos “extrémistes protestants d’Ulster”. (Alain Corbellari, 2011: 7)

37

nomes compostos a partir deste, através da utilização da sílaba vi-/ gui: Guiburc,

mulher de Willame; Guischard, Gui(ot) , Girard e Viviën, sobrinhos de Guiburc e de

Willame. É curioso constatar, porém, que todas estas personagens, à exceção de

Guiburc, por razões óbvias que apresentaremos mais adiante, são eliminadas ao longo

da narrativa. Guischard, Girard e Viviën são mortos no campo de batalha e Gui(ot) é

feito prisioneiro.

Acerca da proliferação dos duplos nos textos literários, Pierre Jourde e Paolo

Tortonese fazem referência a um trecho da obra Le Passe-muraille, “Les Sabines”, de

Marcel Aymé, que relata a vida de uma mulher banal que tem a capacidade de se

multiplicar sem limites. Se inicialmente a vida dupla que mantém entre duas relações,

com o marido e com o amante, não passa de um caso simples de adultério, à medida

que vai utilizando a sua aptidão para multiplicar relações, vai também perdendo a sua

capacidade de gestão da situação e a sua identidade:

“En réalité, la plupart du temps, la prolifération apparaît comme le signe paradoxal d’une situation bloquée engendrant une fuite en avant”. (Pierre Jourde e Paolo Tortonese, 2005: 127)

Todas estas personagens associadas a Willame parecem, assim, contribuir, a

diferentes níveis, para a sua consolidação enquanto herói, mas devem ser eliminadas

para que se dê a unificação da sua identidade. Sem nos adiantarmos muito a este

nível, pois desenvolveremos esta questão mais à frente, através da análise de cada

uma destas personagens em relação com o protagonista, percebemos que existe um

elo de ligação entre todas elas e Willame, que ultrapassa a etimologia dos nomes ou o

laço geneaológica existente. Cada uma destas personagens contribuirá também, por

um lado, para a solidificação da sua imagem de herói e, por outro, para uma

aprendizagem evolutiva face ao mundo exterior e aos cânones cavaleirescos e sociais

que este pratica. Enquanto duplos de Willame, estas personagens cumprem a sua

função, mas é necessário que sejam eliminadas para que ele assuma o papel central na

ação e para que a fragmentação dê lugar à consolidação da personagem.

38

5.3 GUIBURC E WILLAME

Guiburc assume um papel fundamental ao longo da narrativa, pois apresenta-

se como um apoio imprescindível de Willame, enquanto homem e enquanto cavaleiro.

É sensata, prudente, aconselha o marido, mostrando-lhe perspetivas de resolução dos

seus problemas e antecipando a catástrofe. Guiburc é guiada pelo seu dever de esposa

fiel e pelo amor que surge, em várias passagens, como uma força incontornável, que

supera a dor. Guiburc reconforta o marido que, apesar de ser um cavaleiro notável, se

lamenta e se define como um vencido:

“Or estes femme a un malveis fuieur, [refere Willame]

(…) Plurad Willame, dunc lacrimat Guiburc.

La dame entend la plainte sun seignur,

Partie ubliad de la sue dolur;

Quant el parlad, si dist par Grant amur”. (Guillaume, C, v. 1307-1318)

Por outro lado, Guiburc relembra a Willame o seu papel enquanto líder,

adverte-o para o facto do seu comportamento derrotista não se coadunar com a sua

condição social nem com a sua linhagem:

“Marchis Willame, merci pur amur Dé!

Il est Grant doel que home deit plorer,

E fort demage k’il se deit dementer.

Il fu custume a tun riche parenté,

Quant altres terres alerent purchacer,

Tuz tens morurent en bataille chanpel”. (Guillaume, CI, v. 1319-1324)

Guiburc convoca um exército para apoiar Willame, no momento em que ele

mais necessita, permitindo-lhe voltar rapidamente ao combate (laisse XCVI); aconselha

o marido a pedir ajuda ao imperador quando a derrota parece ser inevitável (derrota

que é sobretudo interior, a qual Willame justifica devido à perda, na batalha, dos seus

parentes e, por isso, se acha só), referindo-lhe que, caso este não o apoie, que Willame

lhe deverá devolver o seu feudo (laisses CXLVIII e CXLIX), argumento que parece

39

irrefutável, tendo em conta os princípios de honra cavaleiresca. É ela também quem o

prepara depois para a batalha e lhe dá a sua espada (laisse CLXIV).

Por fim, Guiburc tem um papel decisivo no desfecho da narrativa e no

restabelecimento da harmonia, ao interceder junto de Reneward, reparando a falha

cometida pelo seu marido, de forma a dissuadi-lo da sua intenção de se aliar ao

inimigo, para se vingar de Willame que, segundo refere, cometeu contra si o erro

imperdoável de não o reconhecer como igual (laisse CLXXXI).

Há, no entanto, duas questões que se colocam inevitavelmente:

Por que razão é dada a uma mulher uma função tão importante como esta?

Como se justifica que Guiburc, sendo filha do principal inimigo de Willame, o rei

Deramed, tenha um papel tão decisivo na narrativa?

Como vimos, Guiburc tem uma participação inquestionável na construção da

imagem heroica de Willame, pois não só o acompanha e apoia enquanto esposa, como

é garante dos seus deveres cavaleirescos. A resposta a estas questões parece residir,

tal como referimos anteriormente, no poder do amor. Em suma, o projeto amoroso e

o projeto cavaleiresco parecem ser indissociáveis, o que explica também, segundo

cremos, o facto de Guiburc ser a única personagem dupla de Willame que não é

eliminada ao longo da narrativa, já que sem ela Willame não se poderia cumprir

enquanto herói. O amor14 funciona como uma força unificadora de Willame, pois

permite realizar a dinâmica das suas virtualidades e transformar a sua força vital em

força moral e em progresso espiritual.

14 Este aspeto parece estar associado à valorização que o amor adquire, no processo de construção do

herói, no romance cavaleiresco. De facto, La Chanson de Guillaume parece evidenciar algumas semelhanças com esse género literário, relativamente ao tratamento que é dado ao herói, enquanto indivíduo humanizado e à centralização que este adquire na narrativa.

40

5.4 VIVIËN E WILLAME

Viviën desenvolve um percurso de crescimento a nível social e espiritual, ao

longo da narrativa, que tem por base os ensinamentos que lhe foram transmitidos por

Willame. A própria personagem faz referência a este aspeto, permitindo-nos

compreender que um está claramente associado ao outro. Na laisse VII, Viviën afirma-

se como uma forma de decalcamento da figura de Willame, caracterizando-se como se

se tratasse de uma espécie de número dois, a nível da capacidade bélica, pois, segundo

refere, só Willame o supera neste aspeto:

“Dist Viviën: Ore avez vus mesdit,

Car il nen est nez ne de sa mere vis,

Deça la mer, ne dela la Rin,

N’en la cresti]enté, n’entre Arabiz,

Mielz de mei ose Grant bataille tenir,

Fors sul Willame al curt niés le marchis.

Il est mis uncles, vers li ne m’en atis,

(…) Jo nem met mie al pris Willame”. (Guillaume, VII, v. 80-88)

Viviën é, tal como refere, um cavaleiro notável, muito semelhante a Willame,

pois é corajoso, valente, altruísta e devoto, mas, mesmo assim, refere-se a este, tal

como podemos constatar através da transcrição textual apresentada, como uma

espécie de messias, de única esperança para a reposição da harmonia.

Por que razão, Viviën insiste, desde o início da narrativa, na importância do

envolvimento de Willame na resolução do conflito com os pagãos?

Por que não tomou ele próprio a iniciativa de liderar o exército contra o

inimigo, quando Tedbald decide enfrentá-lo sem Willame?

Parece que a resposta a estas questões pode estar no facto de Viviën precisar

de realizar o seu percurso iniciático antes de ser reconhecido como um verdadeiro

líder. Na verdade, constatamos, ao longo da narrativa, que Viviën é-nos apresentado

como um aspirante a cavaleiro que deverá pôr à prova o seu valor, transformando os

ensinamentos que recebeu em ações. De facto, o percurso desta personagem

41

estabelece-se no sentido de uma afirmação crescente, através do reconhecimento do

seu valor e papel social, até ao momento em que sucumbe no campo de batalha.

Viviën pertence a uma linhagem ilustre, é caracterizado como um homem prudente e

valente, mas é a participação na batalha contra o inimigo que permitirá o seu

reconhecimento (pelos pares) e, ao mesmo tempo, a introdução, na narrativa, da

personagem Willame. Na laisse XLV, Viviën é ferido, mas continua a lutar. Porém, é só

no momento em que Tedbald decide retirar-se, que se concretiza o verdadeiro

reconhecimento de Viviën: os homens de Tedbald juram-lhe vassalagem e lealdade.

Após isto, Viviën recupera o estandarte e repõe o ataque, aspeto bastante simbólico

do seu reconhecimento enquanto líder. A liderança de Viviën estrutura-se, aliás, por

um lado, na vontade do coletivo dos homens que o apoiam e, por outro, no desejo

pessoal de honrar o seu compromisso com Deus e com a sua pátria.

A morte de Viviën coincide com o culminar do seu percurso ascensional, na

medida em que a sua perda é reconhecida, pelo próprio Willame, como o resultado de

um ato de extrema valentia e de serviço à fé cristã:

“Viviën sire, mar fustes unques ber,

Tun vasselage que Deus t’aveit doné!

N’ad uncore gueres que tu fus adubé,

Que tu plevis e juras Dampnedeu

Que ne fuereis de bataille champel”. (Guillaume, CXXXIII, v. 2017-2021)

Viviën é uma personagem sacrificial. À semelhança do que acontece em La

Chanson de Roland, em que a morte de Rollant surge como uma forma de libertação

do espaço senhorial, fundamental na perpetuação da imagem de Carles, a morte de

Viviën contribuirá para que Willame assuma, a partir dai, o papel de destaque na

narrativa, o que levou vários autores a dividirem-na em dois momentos, um primero

centrado na personagem de Viviën e um segundo na de Willame. Este aspeto poderá

justificar o facto de, desde o início, ser em Willame que reside toda a esperança de

Viviën na resolução do conflito, como se este preparasse o caminho para o surgimento

do verdadeiro herói, Willame, cuja vinda é prometida desde o início da narrativa:

“Tedbalt demande: “Que feruns, sire Viviën?”

Dist li bers: “Nus ne frum et que bem.

42

Sire Tedbald, dist Viviën li ber,

(…) N’obliez mie Willame al cur niés:

Sages hom est mult en bataille chanpel,

Il la set ben maintenir e garder;

S’il vient, nus veintrums Deramed.” (Guillaume, V, v. 48-58)

5.5 GUI(OT) E WILLAME

À semelhança do que se verifica com Viviën, o percurso de Gui(ot) é também

construído segundo uma lógica de aprendizagem e maturação crescentes. No entanto,

e tal como em relação a Viviën, Gui(ot) evidencia, desde logo, a sua coragem, a sua

noção de responsabilidade e de dever na participação na batalha contra os sarracenos.

Gui(ot) parece ter, aliás, uma valentia e capacidade bélicas intrínsecas que se vão

desvendando pouco a pouco e que, em alguns casos, superam a experiência de

Willame,m enquanto cavaleiro, e o próprio código de cavalaria, na medida em que, por

vezes, Gui(ot) traz à cena uma visão que, não sendo tradicional, é pragmática e

funcional, tal como acontece na laisse CXXX, quando mata Deramed, já bastante

ferido, contrariamente às indicações de Willame e àquilo que seria o princípio

cavaleiresco. Fá-lo, não por crueldade ou vingança mas, como refere, para evitar que o

inimigo tenha descendência e, assim, quem o vingue. Desta forma, Gui(ot) erradica

totalmente o inimigo, não permitindo qualquer voltfast narrativo. Este facto consiste

num aspeto interessante, na medida em que se revelará numa aprendizagem para o

herói central, Willame, numa espécie de inversão de papéis:

“A, glut, lecchere, cum fus unc tant osé,

Que home maigné osas adeser!

En halte curt te serrad reprové.”

Ço respunt Guiot: “Unc mais n’oï tel!

S’il n’aveit pez dunt il peüst aler,

Il aveit oilz dunt il poeit veer,

Si aveit coilz pur enfanz engendrer;

En sun païs se fereit uncore porter,

Si en istereit eir Deramed

43

Qu’en ceste terre nus querreit malte.

(…) – Niés, dist Willame, sagement t’oi parler”. (Guillaume, CXXX, v. 1965-1976)

Este facto não é, no entanto, único na obra, já que anteriormente Gui(ot) tinha

conseguido, através da sua argumentação, reverter a opinião de Willame acerca da sua

capacidade para herdar e assumir o património do seu tio. Ainda que Willame

considere que não tem nenhum descendente que possa assumir o seu feudo, nem

ninguém que possa ocupa o papel que tem no espaço bélico, Gui(ot) impõe-se,

enfrenta o tio, e faz prevalecer a sua opinião, defendendo aquilo que considera

pertencer-lhe por direito. Ainda que muito jovem (só tem quinze anos) e muito frágil

fisicamente, Gui(ot) tem uma maturidade e uma visão sobre os problemas que lhe

permitirão impor-se socialmente. Este aspeto tem ainda uma importância maior, na

medida em que é esta argumentação que fará com que Willame volte ao campo de

batalha, já que, segundo justifica na laisse CIV, o seu regresso se deu ao facto de

considerar que se morrer em batalha não terá herdeiros que assumam aquilo que lhe

pertence. Desta forma, Gui(ot) contribuirá também, tal como Guiburc, ainda que

noutra perspetiva, para a consolidação de Willame enquanto herói, já que é ele quem

o auxilia a ultrapassar mais um patamar do seu percurso, o da perpetuação da

linhagem.

“O feudalismo é, em primeiro lugar, o conjunto dos laços pessoais que unem entre si, numa hierarquia, os membros das camadas dominantes da sociedade. Esses laços baseiam-se num fundamento “real”: o benefício que o senhor outorga ao vassalo em troca de um certo número de serviços e de um juramento de fidelidade. (…) O senhor e o vassalo aliam-se pelo contrato de vassalagem”. (Jacques le Goff, 1983, vol. I, 125)

Nesta perspetiva, compreende-se a preocupação de Willame, na medida em

que, não tendo descendentes, o seu espaço social e feudal, assim como a sua ligação

ao seu soberano, perder-se-iam. Na verdade, Gui(ot) é o único dos homens de Willame

que sobrevive ao ataque de Deramed (“Tuz sunt Franceis pris e morz al champ,/ Fors

sul Willame, qui ferement se combat,/ E Gui, ses niés, qui li vait adestrant”, Guillaume,

CXV, v. 1726-1729), contrariamente ao esperado, dada a sua idade e fraqueza física,

descritas inicialmente pelo narrador: “N’out uncore quinze anz, asez esteit petiz,/

44

N’out point de barbe ne sur li peil vif,/ Fors icel de sun chef dunt il nasqui.” (Guillaume,

CIII, v. 1441-1443).

Por outro lado, Gui(ot) revelar-se-á também um elemento fundamental no

auxílio de Willame na batalha. Também em relação a este aspeto, Gui(ot) contribuirá

para a alteração da opinião de Willame acerca do estereótipo que tem sobre aquilo

que deve ser um cavaleiro, pois inicialmente Willame amaldiçoa Guiburc por ter

permitido que Gui(ot) viesse ao seu encontro (laisse CXII) mas, na laisse CXIX, pede-lhe

auxílio, numa espécie de provação da sua capacidade enquanto cavaleiro, quase como

se se tratasse de um ato iniciático, de transição do estado juvenil ao de adulto e

cavaleiro: “Vien, Gui, bels niés!/ Securez mei, si unques fus chevalers!” (Guillaume,

CXIX, v. 1818-1819).

Em suma, o percurso desta personagem estabelece-se no sentido de uma

apropriação crescente do seu espaço social, feudal e cavaleiresco, o qual é

acompanhado de um reconhecimento por parte dos seus pares e do inimigo, ao ponto

de assumir um estado próximo do transcendental. Na laisse CXXI, quando Gui(ot)

mata, de forma violenta, um pagão, os adversários associam o seu golpe a um

relâmpago e confundem-no com Viviën, que julgam ter regressado dos mortos:

“Gui traist l’espee, dunc fu chevaler;

La mure en ad cuntremunt drescé,

Fert un paien sus en le halme de sun chef,

(…) De cel colp sunt paien esmaiez;

Dist li uns a l’autre: “ Ço est fuildre que cheit;

Revescuz est Viviën le guerreier!”. (Guillaume, CXXX, v. 1843-1854)

5.6 GIRARD E WILLAME

Apesar de ser muito jovem e um cavaleiro inexperiente, tal como é referido

pelo próprio, Girard é um homem forte e valente, à semelhança de Gui(ot) e, tal como

este ou Viviën, o seu percurso estabelecer-se-á também numa perspetiva evolutiva,

simbolicamente representada através da viagem que realiza para encontrar Willame.

45

Ao longo deste percurso, que é solitário, Girard é obrigado a enfrentar algumas

provações que o submetem a um despojamento, quase total, dos seus pertences

bélicos. Num primeiro momento, o seu cavalo morre e é obrigado a realizar o percurso

a pé. Posteriormente, a fome, a sede e o cansaço apoderam-se de si e é levado a

abandonar as suas armas, à exceção da espada que transporta na sua mão direita e

que utiliza como apoio. A situação descrita aponta para um percurso próximo de uma

provação iniciática que parece ser imprescindível à passagem de Girard a um estado de

espiritualidade, a qual contribuirá para a sua afirmação enquanto cavaleiro e herói. De

facto, após encontrar Willame e no momento em que está prestes a enfrentar a

morte, Girard pede-lhe que o ajude a montar e que lhe volte a vestir as suas vestes de

cavaleiro, para que possa cumprir o seu compromisso com Deus:

“Respunt Girard: “Sire, laissez ço ester!

(…) Mais qui tant me ferreit que jo fuisse munté,

E mun vert healme me fust rafermé,

Mesist mei al col mun Grant escu bocler,

E en mun poing mun espé adolé”. (Guillaume, XCII, 1150-1157)

Este desejo de Girard de morrer como um verdadeiro cavaleiro, após todo o

percurso de despojamento que sofreu, aponta para um renascimento simbólico da

personagem enquanto herói, como se tivesse sido necessário ter sido colocado à prova

para merecer montar a cavalo e transportar os artefactos bélicos.

Por outro lado, o percurso iniciático de Girard adquire uma importância

simbólica maior, se tivermos em conta que será este aspeto que permitirá a entrada

em cena de Willame e, consequentemente, a alteração dos factos narrativos. Girard

estabelece a ligação entre o primeiro momento da narrativa, em que Willame é

referido mas não participa, e o segundo momento em que terá um contributo real no

desenvolvimento dos acontecimentos. Na realidade, o percurso iniciático de Girard, na

sua afirmação enquanto cavaleiro, e o seu sacrifício contribuirão para a salvação de

França e do Cristianismo, o que não poderia ser mais enaltecedor desta personagem e,

ao mesmo tempo, legitimador de Willame enquanto figura messiânica, quase deítica,

que se espera que reponha a harmonia quebrada.

46

5.7 RENEWARD, GUIBURC, GUISCHARD E WILLAME

Segundo cremos, a análise de Reneward, Guischard e de Guiburc deverá ter em

linha de conta o contexto histórico medieval das cruzadas, em que se insere a obra em

análise. Como sabemos, o Cristianismo constitui-se, por quase toda a europa até aos

finais do século XIII, como uma religião sólida, facto que se deve, em grande parte, ao

movimento de evangelização das cruzadas, tal como refere Jacques le Goff:

“A Germânia ocidental, cristianizada mais ou menos pacificamente pelos missionários anglo-saxónicos, dos quais o mais ilustre foi S. Bonifácio, os carolíngios, a começar por Carles, cujo comportamento para com os Saxões é típico, inauguraram uma tradição de cristianização belicosa e forçada”. (Jacques le Goff, 1964, vol. I, 186)

Para o cavaleiro medieval, o combate ao paganismo, através da sua erradicação

ou evangelização, constituía o principal fundamento cristão. Como referimos, a

cristianização consistia num processo complexo, que não passava exclusivamente pela

erradicação do Mal mas, em muitos casos, pela sua conversão. A este princípio

religioso subjaz a noção de que o Mal pode ser transformado em Bem, através de um

processo de doutrinação, de “contágio” de fé. Citemos, ainda, a este propósito,

Jacques le Goff:

“Além desses “pagãos” especiais que são os muçulmanos e perante os quais a única atitude oficial dos cristãos era a guerra santa, havia outros pagãos que se apresentavam como muito diferentes: eram aqueles que, adorando ainda os ídolos, ainda podiam fazer-se cristãos”. (Jacques le Goff, 1964, vol. I, 186)

Neste sentido, Guiburc e Reneward, que têm uma origem pagã, representam

este outro lado do processo de evangelização, que consiste na conversão através da

remissão, da fé cristã, do amor (amor conjugal, num caso, e amor à família, noutro),

sentimento alquímico que, como já tivemos oportunidade de referir, tem uma função

importante na construção de algumas personagens (as últimas palavras de Reneward,

que correspondem também ao desfecho da narrativa, relacionam-se claramente com

este aspeto, pois ao saber que Willame é seu cunhado, refere que, se o soubesse em

47

Larchamt, tê-lo-ia ajudado de uma forma ainda mais empenhada: “Estes vus dunc mun

soruge, Willame?/ Se jol seusse en Larchamp,/ Bien vus valui, mais plus vus eusse esté

aidant”, Guillaume, CLXXXIX, v. 3553-3555) e no processo de socialização que, no caso

de Reneward, é bastante notório. Relativamente a isto, relembremos que Guiburc se

converte ao cristianismo, casando-se com Willame15 (ainda que, no verso 1422, refira-

se a Deus como a principal razão da sua conversão, o que, numa lógica medieval cristã,

é compreensível) e que Reneward exige ser batizado, facto que passa despercebido a

Willame e que só não tem um desfecho negativo, porque Reneward descobre que é

irmão de Guiburc e, a pedido desta, aceita a reconciliação com o protagonista.

Reneward e Guiburc, sua irmã, têm uma ascendência pagã, visto serem filhos

de Deramed, o rei inimigo de Willame. Estas duas personagens parecem, também elas,

se construírem numa perspetiva dualística, no sentido em que o Bem e o Mal, um

duplo do outro, coabitam em si, ainda que seja o Bem a prevalecer, ao ponto de

Guiburc, uma recém-conversa, ser, segundo refere o narrador, o expoente máximo da

esposa e da mulher cristã:

“Guiburc la franche l’i tastunad suef;

Il n’i out tele femme en la crestienté

Pur sun seignur servir e honorer,

Ne pur eshalcer sainte crestienté,

Ne pur lei maintenir e garder”. (Guillaume, CV, v. 1486-1490)

Debrucemo-nos, no entanto, de forma mais prolongada, no processo de

socialização a que está sujeito Reneward. Esta personagem assume um papel

fundamental no desfecho da narrativa, já que a sua ajuda será imprescindível para que

Willame consiga derrotar o inimigo. Não deixa de ser curioso, no entanto, que seja

atribuído a Reneward (uma personagem que foge ao paradigma do herói medieval,

pela sua figura burlesca, pela sua atitude desviante em relação aos princípios

cavaleirescos) um papel tão importante na resolução do problema central. O caso de

15

Este aspeto está também presente, por exemplo, em La Prise d’Orange, do ciclo Willame d’Orange, na qual Willame conquista a cidade de Orange, a fim de comprovar a beleza de Orable, a rainha pagã que dominava a cidade. Na sequência deste facto, Orable converte-se ao cristianismo sob o nome de Guiburc. Neste caso, a conversão de Orable à fé cristã é também impulsionada pelo fundamento amoroso.

48

Reneward não é singular, já que, tal como referimos anteriormente, existem outros

aspetos ao longo da narrativa que parecem apontar para uma visão desviante,

relativamente ao conceito medieval do cavaleiro e do código cavaleiresco. No entanto,

Reneward extravasa aquilo que parece ser aceitável a este nível, pois comporta-se

como um tolo, não adequa o seu comportamento às diversas situações a que é

submetido e é cruel, visto que utiliza a sua força de uma forma desmesurada,

vingando-se de todos os que o afrontam ou ridicularizam. Combate utilizando uma

tina, arma que, parecendo pouco adequada, se revela, mais tarde, aos olhos de todos,

um instrumento bélico imprescindível, facto assumido pelo próprio Willame.

Por que razão tem, então, Reneward uma importância tão significativa no

desfecho da narrativa, sendo La Chanson de Willame uma canção de gesta, o que, à

partida, deveria requerer uma “visão mais tradicionalista”16 sobre a análise dos factos?

O percurso de Reneward é construído no sentido ascensional, tanto a nível

espacial, como no que respeita o reconhecimento social. Reneward sai da cozinha,

espaço simbolicamente inferior, para ingressar no exército de Willame. No entanto,

este processo não é imediato e só parece consolidar-se no final da narrativa, quando

descobre as suas origens e se converte definitivamente ao cristianismo, através da

promessa de batismo que Willame lhe faz. O processo de transformação desta

personagem é relevante, no que respeita a evangelização cristã, visto que existe uma

aprendizagem recíproca, entre Reneward, Willame e os “Franceses”, sendo que estes

últimos são levados a reequacionar os seus princípios cavaleirescos (sublinhe-se que o

método de combate de Reneward, ainda que seja considerado pouco ortodoxo, é

assumido por todos como bastante eficaz), sociais (através da aceitação, por todos, de

Reneward enquanto par) e religiosos (pois é Reneward quem relembra a Willame a

importância de ser batizado, enquanto última etapa da sua conversão ao Cristianismo).

Assim, o facto de Reneward ser o principal responsável pela vitória sobre o inimigo

16

Tendo em conta a índole cristã e o cenário de cruzada inerente às duas canções de gesta em estudo, entenda-se, neste contexto, a utilização da expressão“visão tradicionalista”, no sentido em que, regra geral, são as personagens cristãs as que desempenham o papel de herói na ação, observando-se uma valorização preponderante destas em relação às personagens pagãs. A atribuição de uma função tão importante a Reneward, como a de contribuir para a vitória dos franceses sobre o inimigo, parece ser um desvio à visão mais comum que se encontra na canção de gesta, de enaltecimento dos cristãos e da religião cristã, em detrimento dos pagãos e das crenças que professam.

49

poderá indicar, simbolicamente, que o “Mal” pode ser convertido, em benefício

pessoal e social, num “Bem” imprescindível à subsistência da paz e da harmonia. Por

outro lado, o facto desta evangelização incidir em dois filhos de Deramed não é

também despiciendo. Jacques le Goff refere, a este propósito, o seguinte:

“A pregação cristã falhou quase sempre ao dirigir-se aos povos pagãos, procurando persuadir as massas. Em geral, só conseguia bom resultado quando ganhavam os chefes e os grupos sociais dominantes. (…) A nova “Cristandade” medieval – ao contrário da Cristandade primitiva (…) – foi uma Cristandade convertida de cima para baixo (…)”. (Le Goff, 1964, vol. I, 187-188)

A conversão destas duas personagens é uma forma de erradicação definitiva do

paganismo, eliminando-o das gerações futuras do rei inimigo. Esta parece ser uma

preocupação transversal a toda a obra: Deramed é morto por Gui(ot) para que não

tenha descendência, Guiburc e Reneward são convertidos à fé cristã, concluindo-se o

trabalho da cruzada de Willame: erradicar o “Mal” que não pode ser evangelizado e

cristianizar os que se predispõem a tal. No culminar da batalha, o narrador refere que

os franceses triunfaram e que os sarracenos foram aniquilados por completo: “Ore unt

Franceis l’estur esviguré,/ K’il ne trovent sarazin ne escler” (Guillaume, CLXXXI, v. 3343-

3344).

No final da narrativa, Willame parece atingir, desta forma, o auge do seu

percurso enquanto herói e cavaleiro, pois cumpre na íntegra o ideal de cristianização

inerente a toda a narrativa. Nesta perspetiva, refere ainda Jacques le Goff:

“ (…) Quase todos os heróis das canções de gesta são-nos apresentados como animados de um único desejo: bater-se com o sarraceno e derrota-lo. Doravante, reina toda uma mitologia que se resume no duelo do cavaleiro cristão com o muçulmano. A luta contra o infiel passa a ser o fim último do ideal cavaleiresco”. (Le Goff, 1964, vol. I, 185)

É de notar o papel decisivo que Willame tem no processo de conversão de

Reneward, já que é ele quem o retira da cozinha e o integra no exército, dando-lhe a

possibilidade de contribuir para o combate ao paganismo. Neste sentido, o papel de

50

Willame supera o do próprio rei Lowis, que limitou Reneward sete anos17 ao espaço da

cozinha, espaço simbolicamente inferior, como já referimos, sem que lhe tenha dado a

possibilidade de se integrar socialmente:

“Quant par la freire vint li reis chevalchant.

il me esgardeit, si me vit bel enfant,

Fist me lever suru n mul amblant,

Puis me menad a Paris lealmente.

(…) Si me comendat a son cu, Jaceram

E jurad Deu, pere omnipotent,

Mieldre mester n’avereie a mun vivant”. (Guillaume, CLXXXIX, v. 3532-3545).

Guiburc e Reneward contribuem, assim, para a afirmação de Willame

enquanto verdadeiro herói cristão. É, de facto, tal como observámos anteriormente,

graças a estas duas personagens que Willame concretiza o seu percurso de revalidação

social e cristã. Se, inicialmente, Willame é mencionado, nomeadamente por Viviën,

enquanto modelo cavaleiresco (“N’obliez mie Willame al cur niés/ Sages hom est mult

en bataille chanpel,/ Il la set bem maintenir e garder”, Guillaume, V, 55-57), no final da

narrativa, por intermédio de Guiburc e Reneward, Willame é, aos olhos do leitor/

puvinte, um herói com obra comprovada. Assim, o seu percurso não é, de forma

alguma, solitário. O reconhecimento de Willame está alicerçado num trabalho e

esforço conjuntos, já que várias personagens (que não se reduzem a estas duas, como

vimos) contribuem para o seu sucesso.

Há, no entanto, ao longo do percurso de Willame, uma personagem que

contraria esta tendência e que parece indicar um fracasso no seu processo de

evangelização, o seu sobrinho Guischard. De todos os sobrinhos de Willame, Guischard

é o único que tem um percurso contrário ao dos restantes, numa perspetiva

17 O número sete tem uma importância simbólica neste contexto, pois poder-se-á relacionar com a

conclusão de um ciclo de vida da personagem e a passagem ao mundo superior. O número sete está também associado às celebrações pagãs em honra de Apolo, que aconteceriam no sétimo dia de cada mês, e à tradição judaico-cristã, pois é frequentemente referenciado no texto bíblico. Estes dois aspetos associados poder-nos-ão levar a analisar a referência ao número sete como a transição do paganismo, mundo inferior da cozinha, ao cristianismo, mundo exterior.outro (transição entre o mundo inferior e o superior, entre o anonimato e o reconhecimento social)

51

cavaleiresca e religiosa descendente, pois decide abandonar a batalha, dadas as

dificuldades que encontra, acabando por renegar Deus:

“Puis m’en irreie a Cordres u fui né,

Nen crerreie meis en vostre Dampnedé,

Car ço que jo ne vei ne puis aorer.

Car si jo eusse Mahomet merciëz,

Já ne veïsse les plaies de mês costez”. (Guillaume, XCIV, v. 1196-1200)

Este revés surge de uma forma quase inesperada e enigmática: num primeiro

momento, quando Willame chega junto de Guischard, fala-lhe como estando iminente

a sua entrada no Céu (“Ami Guischard (…)/ (…) entereies já en ciel”, Guillaume, XCIV, v.

1186/ 1188), o que não permite antecipar uma reviravolta tão significativa no

comportamento da personagem. Este aspeto possibilitará, todavia, uma alteração na

narrativa dos factos. Guischard representa o fracasso da conversão cristã, que se

revela num momento de dificuldade e de cobardia da personagem. No entanto, este

aspeto reforçará também a imagem heroica de Willame, visto que coloca os deveres

morais e a defesa da fé cristã acima da família, renegando e amaldiçoando Guischard

pela sua atitude herética:

“Respunt Willame: “Glut, mar fuissez tu nez!

Tant cum aveies creance e buntez,

Retraisistes a la sainte crestienté;

Ore es ocis e de mort afolé;

N’en poez muer, tant as de lasseté,

Ja de cest champ ne serrez par mei porté”. (Guillaume, XCIV, v. 1202-1207)

Todavia, Willame evidencia alguma compaixão para com Guischard,

estendendo-lhe a mão, agarrando-lhe o braço direito (facto que não deixa de ser

simbolicamente significativo) e içando-o sobre a sua sela. Apesar de o amaldiçoar pela

sua decisão, Willame continua a pôr em prática a sua conduta cavaleiresca, não

desamparando Guischard, que se encontra ferido. Não se trata, segundo cremos, de

um perdão pela ofensa cometida, mas de uma atitude moral, adequada ao código

cavaleiresco, à semelhança da que tem com Deramed, o rei pagão, que quer poupar

por se encontrar ferido, de acordo com aqueles que seriam os preceitos do bom

52

cavaleiro. Porém, e de forma quase profética, Guischard é morto, de seguida, por um

pagão. Mais uma vez, Willame põe em prática a sua conduta moral e recolhe o corpo

de Guischard que entrega mais tarde a Guiburc, o que reforça o que temos vindo a

referir.

A morte desta personagem envolve ainda alguns aspetos que julgamos que

devem ser referidos, pela sua importância simbólica. Guischard é atacado por trinta

pagãos, número que poderá estar simbolicamente associado às trinta moedas pelas

quais Judas vendeu Jesus Cristo, já que Guischard renega Deus, na incapacidade de

converter o seu martírio em positividade cristã. À semelhança de Judas, Guischard

fraqueja e cede à provação que lhe é apresentada. As consequências da injúria de

Guischard refletir-se-ão mesmo após a sua morte, quando, na laisse XCIX, Guiburc

deixa cair o seu corpo violentamente no chão, o que faz com que a língua do cadáver

lhe salte da boca. Este aspeto não parece ocasional. Por ter renegado a fé cristã, o

corpo de Guischard acabará inevitavelmente por ser lançado ao chão, espaço inferior,

e a sua alma não ascenderá ao Paraíso, ao contrário do que lhe estaria prometido, tal

como referiu Willame, antes de este ter proferido a sua heresia. Não deixa também de

ser curioso o facto de perder a língua, já que foi esta que Guischard utilizou para

cometer o seu erro.

Em conclusão, poder-se-á considerar que o caso de Guischard parece ser

bastante significativo tendo em conta a visão do Homem medieval relativamente

àqueles que, como ele, renegavam os seus princípios cristãos, mediante as vicissitudes

com que se deparavam. Guischard personifica o desvio à regra no percurso de

cristandade do cavaleiro medieval e o fracasso na conversão do paganismo.

5.8 TEDBALD, VIVIËN E WILLAME

Ainda que pertença à nobreza e seja um cavaleiro reconhecido pelos seus

pares, Tedbald é, desde o início da narrativa, caracterizado como um anti-herói. De

facto, observamos, ao longo do seu percurso textual, uma incongruência permanente

entre a sua posição social e o comportamento que apresenta, ao contrário do que se

53

verifica em relação a Willame ou aos seus sobrinhos Viven e Girard. Tedbald é

responsável por um exército de setecentos cavaleiros (laisse III), veste-se como um

verdadeiro cavaleiro (laisse XII) e, tal como refere Viviën, todos os melhores cavaleiros

lhe prestam homenagem: “Sire Tedbald, dist ¨Viviën li ber,/ Vus estes cunte e si estes

mult honuré/ Des meillurs homes de rivage de mer” (Guillaume, V, v. 50-52. No

entanto, não parece estar à altura da sua posição social, pois, após receber a notícia de

que Deramed está a entrar nas suas terras, Tedbald encontra-se embriagado, mostra-

se inseguro e é incapaz de decidir como enfrentar o problema. Na verdade, é Viviën,

mais novo que Tedbald e menos experiente, quem apresenta a solução para a questão:

solicitar a intervenção dos seus pares, com especial destaque para Willame. Apesar da

proeminência da questão, e aconselhado por Esturmi, seu sobrinho, Tedbald decide

não apelar ao auxílio de Willame, temendo que as glórias da vitória recaiam sobre ele

e não sobre si. Tedbald coloca os seus interesses pessoais e orgulho próprio acima do

bem comum, o que contradiz o código cavaleiresco medieval. Este facto permitirá

também iniciar uma comparação entre Tedbald e Willame, visto que o segundo é

apontado por Viviën para resolver um conflito que Tedbald, apesar do seu estatuto

social, se mostra incapaz de solucionar: “ Pren tes messages, fait tesa mis mander;/

maintenir e garder;/ S’il vient, nus veintrums Deramed” (Guillaume, V, v. 54-58).

Na realidade, Tedbald e Willame não chegam a cruzar-se ao longo da narrativa,

mas esta distinção entre os dois ficará marcada desde o início, sobretudo graças a

Viviën, que a reforça várias vezes: “N’oubliez mie Willame al cur niés;/ Sages hom est

multe n bataille chanpel/ (…) S’il vient, nus veintrums Deramed” (Guillaume, V, v. 55-

58). Por outro lado, parece estabelecer-se também uma oposição entre Viviën/ Girard

e Tedbald/ Esturmi ao longo dos seus percursos narrativos, o que complementa o

aspeto referido anteriormente, se tivermos em conta que Viviën e Girard são uma

espécie de desdobramento, ou duplos, de Willame, tal como desenvolvemos

anteriormente, e Esturmi é sobrinho de Tedbald. De facto, existe uma oposição

marcada entre a família de Willame, que é enaltecida pela sua bravura e capacidade

heroicas e a de Tedbald que nos é apresentada numa perspetiva negativa.

Observemos, mais concretamente, como se estabelecem as oposições referidas

anteriormente. Até à laisse XXXIII, assistimos a uma desconstrução da personagem de

54

Tedbald, enquanto cavaleiro e enquanto líder, que contrasta, por oposição, com um

reconhecimento crescente de Viviën e de Willame, ainda que, no caso deste último,

este processo se desenvolva a partir das referências feitas pelo seu sobrinho.

Tedbald assume o medo perante o seu exército e refere que é melhor partir em

retirada do que morrer:

“Franches meisné, que purrun nus devenir?

Cuntre un des noz ad bem des lur mil.

Ki ore ne s’en fuit, tost i purrad mort gisir;

Alum nus ent tost pur noz viés garir”. (Guillaume, XV, v. 192-195)

A atitude desta personagem contrasta claramente com a de Viviën que não

abandona a batalha e, como se pode observar na laisse LXIV, combate só. Na laisse

XIV, Viviën, perante a constatação da desvantagem numérica das tropas de Tedbald

em relação ao inimigo, volta a confrontá-lo com a necessidade de apelar ao auxílio dos

seus amigos, enfatizando, mais uma vez, a importância de não se esquecer de Willame.

A questão não é, porém, colocada de forma impositiva. Viviën reconhece o facto de os

melhores cavaleiros que vivem nas terras próximas do mar prestarem homenagem a

Tedbald e coloca à sua consideração avançar para um pedido de auxílio, apelando para

que este reflita sobre a situação e que aja da melhor forma. Viviën confronta Tedbald

com a sua responsabilidade enquanto líder e incentiva-o a agir, sem que se verifique

qualquer efeito positvo. Na laisse XVIII, Tedbald deixa-se ver pelo exército inimigo e,

tal como lhe refere Viviën, a retirada, no momento, será vista, aos olhos deste, como

uma fuga, o que contribuirá para a desonra da Cristandade e a alegria do paganismo:

“Dist Viviën: “Malveis conseil ad ci;

Tu les as veuz, e il tei altresi;

Si tu t’en vas, ço ert tut del fuïr.

Crestiënté en ert tut did plus vils,

E paenisme en ert le plus esbaldi”. (Guillaume, XVII, v. 202-206)

Como vimos, a atitude de Tedbald, mais do que uma desonra pessoal,

comprometerá o principal fundamento da cruzada: a propagação da fé cristã,

enquanto religião preponderante e única credível. Viviën parece assumir várias vezes o

55

papel de consciência de Tedbald, mostrando-lhe qual deverá ser o seu papel perante o

problema e qual o caminho a seguir para o solucionar: apelar ao auxílio de Willame.

Na laisse XXIV, Tedbald apresenta outro indício da sua fragilidade, quando

inverte o estandarte para que não seja reconhecido pelo exército inimigo. Este aspeto

tem uma carga simbólica importante, na medida em que este objeto representa a

identidade do seu exército e a afirmação perante o inimigo. O culminar do declínio da

personagem verifica-se sobretudo a partir da laisse XXVIII, quando Tedbald cai do

cavalo e pede auxílio a Girard, acabando por fugir. Nesta passagem, é possível

estabelecer-se uma comparação entre Tedbald e Girard, nas suas capacidades

cavaleirescas:

“La fist Tedbald une folie pesme,

Quand pur Girard retirad andous ses resnes.

Quant cil l’ateint, del poing al col le dresce,

De l’altre part le botat de sa sele,

Desi qu’as laz l’en ferid le healme en terre.

Puis tendis sa main juste la Tedbald gule,

Si li toli sa Grant targe duble;

Si li toli sa Grant targe duble;

(…) Cil Viviën la toli a un Hungre

En la bataille as prez de Girunde,

(…) Si la donad a dan Willame sun uncle,

E il la donad a Tedbald le cuard cunte”. (Guillaume, XXX, v. 365-380)

De acordo com esta passagem, Girard reavê o escudo de Tedbald, que outrora

fora seu18. Este aspeto é bastante simbólico, tendo em conta a análise que se pretende

estabelecer, visto que o escudo, representação do ato heroico de Girard no seu

combate ao inimigo pagão, era pertença de Tedbald, que não se mostrou digno de tal

espólio. Nas laisses XXXII e XXXIII, Tedbald é ridicularizado enquanto homem e

cavaleiro, pois é perseguido por um carneiro cinzento que acaba por enfrentar por não

ter como lhe escapar. Dada a situação, o narrador ironiza este episódio, referindo que

18

Trata-se de um escudo que Girad conquistou ao pagão Alderufe e que deu a Willame. Este objeto foi posteriormente oferecido por Willame a Tedbald.

56

nunca nenhum cavaleiro teve um trofeu tão pobre: “Une tel preie ne portad mês

gentilz hom” (Guillaume, XXXII, v. 402).

Por outro lado, observamos que as caracterizações psicológicas e sociais de

Tedbald e de Esturmi estão claramente associada aos laços familiares existentes entre

si: Esturmi é sobrinho de Tedbald. Porém, estas duas personagens não se relacionam

só pelos laços familiar que as unem, mas também pelo facto de serem responsáveis

pela decisão que está na origem do principal problema que domina a primeira parte da

obra: a desvantagem dos cristãos sobre os pagãos, por não ter sido solicitada a ajuda

de Willame. De facto, é Esturmi quem convence Tedbald a não o fazer, apelando a

uma característica deste que parece, aliás, comum aos dois, a ânsia de glória, de

reconhecimento (o que poderia ser posto em causa, segundo refere, caso Willame

fosse chamado a intervir). Este aspeto leva Esturmi a sugerir que, mesmo que seja

Tedbald o responsável pela vitória, será sempre Willame a ser reconhecido por tal:

“Nel te penser, Tedbald, ço dist Esturmi;

En ceste terre al regne, u que arivent paen u Arabit,

Si mandent Willame le marchis;

Si de tes homes i meines vint mil,

Vienge Willame e des suens n’i ait que cinc,

Treis u quatre, que vienge a eschari,

Tu te combates e venques a eschari,

Tu te combates e venques Arabiz,

Si dist hom ço que dan Willame le fist”. (Guillaume, VI, v. 59-66)

Da mesma forma, tanto Esturmi como Tedbald parecem ter um

comportamento de clara afronta ao código cavaleiresco e ao dever de lealdade e

vassalagem. Na laisse XXIII, Esturmi, a pedido de Tedbald, lança sobre a lama o

estandarte de guerra, para que não sejam reconhecidos pelo inimigo. Esta passagem,

apresentada textualmente em discurso direto, o que incute um realismo maior à

questão, permite-nos compreender como as duas personagens se assemelham na

forma como superam a situação, preferindo a desonra, a enfrentarem o inimigo e

assumirem as consequências da sua decisão, enquanto cavaleiros:

57

“Esturmi, niés, derump cest gunfanun,

Ke en fuiant ne nus conuisse l’um,

Car a l’enseigne trarrunt paen felun”

E dist Esturmi: A la Deu beneiçun!

Encuntremunt li gluz presenta sa hanste,

Sur sun arçun devant mist la lance,

A ses dous poinz derunp l’ enseigne blanche,

Puis la folad enz el fanc a ses pez”. (Guillaume, XXIII, v. 262-269)

Este aspeto é reforçado quando, na laisse seguinte, Tedbald enfatiza a sua

decisão, referindo que prefere que a insígnia francesa seja consumida pelo fogo do

céu, a ser reconhecido no campo de batalha (“Mielz voil, enseigne, que flanbe te arde

del ciel/ Qu’en bataille me reconuissent paen”, Guillaume, XXIV, v. 275-276), o que nos

sugere que estas duas personagens têm uma prática que não se coaduna com a

ideologia de cruzada medieval, um comportamento que parece estar mais associado

ao do inimigo, muitas vezes acusado de infame e cobarde, do que ao do exército

cristão.

Perante as dificuldades da batalha, estas duas personagens decidem desertar.

Esta fuga contribuirá, mais do que para o fracasso de Tedbald e de Esturmi, para o

desastre coletivo, pois não só deixam a batalha, como abandonam os seus homens à

ferocidade do exército inimigo. Este facto não atinge o máximo do seu dramatismo

graças a Viviën que assume o comando, ainda que o resultado seja a dizimação total

do exército. Por outro lado, a fuga destas duas personagens é-nos descrita de uma

forma quase caricata, no decurso de um conjunto de peripécias que as expõem ao

ridículo. Tedbald é perseguido por um carneiro e Esturmi reduz o cavalo a um “triste

estado”, por exigir que ele corra à maior velocidade possível.

En conclusão, o culminar do percurso narrativo destas personagens confina-as

a uma imagem de ridicularidade cavaleiresca, que se justifica pela desvirtuação do

código de cavalaria, pela desonra à causa religiosa e pela traição ao seu soberano. A

situação final destas duas personagens remete para um ensinamento moral, através

do exemplo. A marginalização a que estão sujeitas advém do facto de terem

desertado, de terem colocado os seus interesses pessoais acima do bem comum.

58

6 CASOS COMPARÁVEIS ENTRE AS DUAS OBRAS

Neste capítulo, analisaremos comparativamente dois pares de personagens,

tomando como exemplos um herói e um anti-herói de cada obra, que constituam

paradigmas do processo literário subjacente à construção deste tipo de figuras, nas

obras em análise.

6.1 OLIVIER E VIVIËN

Olivier e Viviën são personagens muito semelhantes, não só a nível da sua

caracterização social e psicológica, como no que diz respeito ao papel que

desempenham a nível da narrativa.

Ambas as personagens se salientam pela sua capacidade bélica e são elogiadas

pelas suas proezas enquanto cavaleiros e defensores da causa cristã. No caso de

Olivier, este aspeto é referido, por Rollant, aquando da sua morte, o qual não só

menciona as suas origens nobres, como refere o importante papel da personagem na

preservação do Bem, em detrimento do Mal, facto que nos leva a associar Olivier a

uma espécie de zelador da harmonia social, de acordo com a conduta exigida a um

verdadeiro cavaleiro:

“Ço dit Rolland: “Bels cumpainz Oliver,

Vos fustes filz al riche duc Reiner

Ki tint la marche de cel val de Runers;

Pur hanste freindre, pur escuz peceier,

Pur orgoillos e veintre e esmaier

E pur prozdomes tenir e cunseiller,

E pur glutun e veintre e esmaier,

En nule tere n’ad meillor chevaler”. (Roland, 163, v. 2207-2214)

Relativamente a Viviën, este aspeto é referido várias vezes ao longo da

narrativa, quer por si, quando inicialmente propõe a Tedbald que solicite o apoio de

59

Willame na batalha aos pagãos (mencionando que, enquanto cavaleiro, só Willame o

supera), quer pelo próprio Willame, ao deparar-se com o corpo de Viviën no campo de

batalha:

“Viviën sire, mar fustes unques ber,

Tun vasselage que Deus t’aveit doné!

N’ad uncore gueres que tu fus adubé,

Que tu plevis e juras Dampnedeu

Que ne fuereies de bataille champel;

Puis covenant ne volsis mentir Deu

Pur ço iés ore mort, ocis e afolé”. (Guillaume, CXXXIII, 2001-2004)

De acordo com a passagem transcrita, Willame enaltece também a fidelidade

de Viviën à cruzada cristã. De facto, as mortes das duas personagens estão claramente

associadas à sua relação com o divino, para que as suas perdas, enquanto cavaleiros e

cruzados, não deixem de remeter para aquela que seria a promessa de salvação eterna

ao serviço da causa cristã. Perto do momento da morte, Olivier e Viviën confessam as

suas culpas e pedem a Deus que lhes dê entrada no Paraíso. No caso de Viviën, este

aspeto adquire uma conotação simbólica ainda maior, visto que a personagem só

morre após ter comungado:

“Ferut vos ai? Car le me pardunez!

Rollant respunt: “Jo n’ai nïent de mel;

Jo l’vos parduins ici e devant Deu”. (Roland, 149, v. 2005-2007)

”Merci! Criad, si li pardonad Deus.

Deus, mei colpe, des l’ore que fui nez,

Del mal que ai fait, des pecchez et dé lassetez!

Uncle Willame, un petit m’en donez!

A, dist le cunte, a bom hore fus nez!

Qui ço creit, já nen ert dampnez.”

Il curt a l’eve ses blanches mains a laver,

De s’almosnere ad trait le pain segré,

Ens en la boche l’en ad un poi done

60

(…) L’ame s’en vait, le cors I est remés”. (Guillaume, CXXXIII, v. 2042-2052)

Por outro lado, tanto Olivier como Viviën se apresentam, ao longo da narrativa,

como duplos dos dois protagonistas, Rollant e Willame. Em ambos os casos, tratam-se

de duplos que completam a figura heroica. Em relação a Olivier e Rollant, as duas

personagens agem frequentemente em conjunto, sendo que o primeiro se apresenta

como um complemento do segundo, acrescentando-lhe a poderação e a razão que lhe

parece faltar19. No segundo caso, Viviën ocupa, na primeira parte da obra20, o lugar de

Willame, assumindo a liderança na batalha, na impossibilidade da presença do

protagonista. A reação dos heróis, Rollant e Willame, perante a morte dos seus duplos,

carece também de uma atenção especial. O drama experienciado pelos protagonistas

perante a morte de Olivier e de Viviën assume uma condição trágica que ultrapassa a

reação expectável num cenário de morte de um ente querido. Trata-se, nos dois casos,

da perda de uma parte integrante do seu ser, como se Rollant e Willame perdessem

um elemento estruturante de si. O primeiro agarra Olivier nos seus braços, aperta-o

contra o seu coração e geme pela perda do seu amigo. O segundo lamenta a perda de

Viviën, da sua coragem, ardileza e sabedoria. Sofre por uma perda do amigo, ainda

muito jovem:

“Rollant s’en turnet, le camp vait recercer,

Sun cumpaigun ad truvét, Olivier.

Cuntre sun piz estreit l’ad enbracét”. (Rolland, 163, v. 2200-2202)

“Viviën sire, mar fu, juvente bele,

Tis gentil cors e ta teindre meissele!

Jo t’adubbai a mun paleis a Termes:

Pur tue amur donai a cent healmes,

E cent espees e cent targes novels”. (Guillaume, CXXXII, v. 2001-2005)

Em conclusão, podemos constatar que o percurso destas duas personagens

heroicas se estabelece numa lógica de crescimento espiritual, que passa pelo alcance

19

Ver subcapítulo 4.2. Rollant, Ganelon e Olivier.

20 Definimos como primeiro momento da obra, a ação que se desenrola sem a participação direta de

Willame.

61

da plenitude incorpórea, através do martírio, em prol da causa social e religiosa, o que

lhes permite cumprir a sua missão de cavaleiros e de cruzados. Ambos se apresentam

perseverantes na batalha, apesar das dificuldades sentidas relativamente à

desproporção do seu exército em relação ao do inimigo. No entanto, enquanto Viviën

morre para que se concretize a consolidação da identidade de Willame, a morte de

Olivier contribui para acentuar a culpa de Rollant, para que este se confronte com o

seu fracasso e exorcize o seu erro, aspeto que constitui, até ai, um entrave à sua

construção heroica.

6.2 TEDBALD E GANELON

Estas duas personagens têm em comum o facto de se desenvolverem

textualmente através de um processo de desvalorização social, moral e cavaleiresca.

Ambas são inicialmente reconhecidas pela sua condição social, de nobres e cavaleiros.

Todavia, este aspeto que, à partida, poderia ser indicador de um comportamento

adequado a tal condição, vai sendo posto em causa através de um conjunto de

peripécias e atitudes que permitem questionar as imagens inicialmente apresentadas.

Ganelon e Tedbald estão na origem do conflito desenvolvido nas duas obras e

fazem-no ambos através da traição à fé cristã e ao compromisso de vassalagem para

com o seu senhor.

Tendo em conta a análise realizada anteriormente destas duas personagens, no

contexto narrativo em que cada uma se insere, parece-nos interessante que o trabalho

comparativo entre Ganelon e Tedbald, neste capítulo, incida alguns aspetos

simbólicos, com incidência na dialética Luz/ Sombra, que parecem ser comuns ao

percurso das duas personagens.

Num caso e no outro, a descrição feita pelo narrador acerca da sua preparação

para o encontro com o inimigo dá-nos a imagem de verdadeiros cavaleiros, por todo o

ritual que se estabelece à sua volta e pela beleza e riqueza do equipamento bélico que

enveredam (associado à luz, através do ouro ou de pedras preciosas21), ainda que,

21

Em algumas passagens verifica-se também uma relação entre os pagãos e o campo simbólico da luz, através da descrição do seu armamento ou vestuário, o que está, de forma geral, associado ao

62

posteriormente, se verifique que as suas atitudes se mostram contrárias à simbologia

deste aparato, o que terá repercussões individuais e coletivas negativas.

Parece-nos, assim, interessante estabelecer uma análise comparativa do

percurso de Tedbald e Ganelon, tendo em conta várias analogias simbólicas à sua

passagem da luz às sombras, que apontam para a desconstrução da imagem social e

física destas personagens (que não é senão a consequência do erro cometido):

“ Ganelon li quens s’en vait a sun ostel,

De guarnemenz se prent a cunrëer,

De ses meillors quë il pout recuvrer:

Esperuns d’or ad en ses piez fermez,

Ceinte Murgleis s’espee a sun costéd.

En Tachebrun sun destrer est muntéd”. (Roland, l 27, v. 342-347)

“[Tedbal] Armes demande, l’em li vait aporter.

Dunc li vestent une broine mult bele,

E un vert healme li lacent en la teste;

Dunc ceint s’espee, le brant burni vers terre,

E une grant targe tint para manvele;

Espé trenchant out en sa main destre,

E blanche enseigne li lacent tresque a tere”. (Guillaume, XII, v. 132-138)

Em ambos os casos, é referido o caráter resplandecente do ouro do armamento

que envergam o que, de acordo com Gilbert Durand, se associa a uma pureza e

brancura que, como sabemos, será manchada ao longo do percurso literário destas

personagens:

“Essayons de ne prendre en considération que l’or en tant que reflet, et nous voyons qu’il constele avec la lumière et la hauteur et qu’il surdétermine le symbole solaire. C’est dans ce sens qu’il faut interpréter les nombreuses images de lumière dorée qui foisonnent dans La Chanson de Rollant (…). Le doré est donc synonyme de blancheur”. (Gilbert Durand, 1984: 166)

esplendor e riqueza inerentes à sua posição social e não tanto à simbologia Bem/ luz, Mal/ sombra, como acontece em relação às personagens em análise.

63

Verifica-se claramente uma transição das duas personagens do campo da luz

para o das sombras, através de vários indícios que vão mostrando que os seus

comportamentos, que constituem falhas inquestionáveis nas suas condições de nobres

cavaleiros, são acompanhados por referências cromáticas ao claro e ao escuro,

simbolicamente associados ao Bem e ao Mal, respetivamente.

No caso de Tedbald, o que referimos parece adquirir uma concretização mais

objetiva, através de três referências que remetem para esta passagem simbólica. Em

primeiro lugar, tenhamos em conta a constatação do narrador acerca da fuga de

Tedbald e de alguns dos seus homens, a qual analisa recorrendo a uma metáfora que

remete para a diferença entre ouro e prata e que parece contrastar com a descrição da

personagem transcrita inicialmente:

“Si cum li ors s’esmere fors de l’argent s’en turne,

Si s’en eslistrent tote la bone gent:

Li couart s’en vont od Tedbald fuiant”,

Od Vivien remistrent tut li chevalier vaillant”. (Guillaume, XXVIII, 328-331)

Não é menos interessante o facto de, na laisse XXX, Viviën reaver o escudo,

bordado a ouro, que até então pertencera ilegitimamente a Tedbald. O facto de ser

retirado à personagem este objeto, símbolo, por um lado, da vitória sobre o

paganismo e, por outro, da “pureza”, fidelidade cavaleiresca e cristã que Tedbald já

não possui, é um indício da desconstrução da personagem:

“Puis tendit sa main juste la Tedbald gule,

Si li toli sa Grant targe duble;

D’or fu urlé envirun a desmesure,

De l’or de Arabe out en mi li bocle”. (Guillaume, XXX, v. 370-373)

Por fim, Tedbald é perseguido por um carneiro cinzento: “Par mi la herbe l’en

avint a fuïr,/ En sun estriu se fert un motun gris” (Guillaume, XXXI, v. 395-397). Este

aspeto permite também observar o declínio da personagem e a sua associação ao

imaginário do Mal.

Relativamente a Ganelon, a sua transição da luz às sombras, do Bem ao Mal,

dá-se, num primeiro instante, no momento em que estabelece aliança com o rei

64

pagão, o que, só por si, se constitui como um aspeto bastante negativo a nível da

caracterização da personagem. A traição de Ganelon é realizada curiosamente à

sombra de um pinheiro, onde está sentado, num trono coberto de seda de Alexandria,

o rei Marsile, rodeado pelos seus homens. Este facto permite associar, mais uma vez, o

rei pagão e o seu exército à simbologia da escuridão e, por analogia, também Ganelon:

“Un faldestoet out suz l’umbre d’un pin,

Envolupét d’un palie alexandrin:

La fut reis ki tute Espaigne tint,

ut entur lui vint milie Sarrazins”. (Roland, 31, v. 407-410)

No entanto, a forma como Ganelon é, no final da narrativa, castigado pela sua

traição, parece ser também simbolicamente significativo neste contexto, tendo em

conta que a personagem é presa e torturada por um cozinheiro e pelos seus ajudantes,

numa cozinha, espaço simbolicamente associado ao inframundo. Por outro lado, o

facto de Ganelon ser sacrificado como um urso é também interessante, sobretudo se

tivermos em atenção aquilo que Helder Godinho refere a este propósito, citando

Walter:

“Le sacrífice de l’ours, chez les Giliaks comme chez les autres peuples sibériens, est rationalisé d’une manière diferente de celle qui est classique dans le reste du monde. Ce n’est pas une offrande faite aux dieux ou à Dieu, c’est un moyen de communication: l’ours est le porte – parole des hommes. Avant de le tuer ils disent ce qu’ils veulent faire savoir au Grand Dieu, puis l’âme de l’ours mort est censée transmettre leurs souhaits, ainsi que les offrandes et dons qui lui ont été confiés (les sacrífices druidiques eux aussi semblent avoir fait jouer à la victime un rôle de porte – parole plutôt que d’offrande). (…) Nous voyons ainsi que les ressemblances sont frappantes entre les divers rituels de l’ours et ce que les garçons de la cuisine font à Ganelon et que cette coutume populaire d’Arles-sur-Tech d’origine pré-historique, a pu arriver jusqu’à nos jours” (Walter, apud Godinho, 1989: 66, 67).

A morte de Ganelon, tal como nos é apresentada, remete para uma

reafirmação da união entre os cristãos e o seu Deus, a qual se estabelece

simbolicamente através da personagem que terá contribuído para a corrupção do laço

estabelecido entre uns e outro. Por outro lado, o ritual sacrificial da personagem

65

marca a conclusão de um ciclo e o início de outro, através da purificação e esconjuro

do Mal.

Em suma, tanto no caso de Tedbald como no de Ganelon, percebemos que o

afastamento das duas personagens parece ser a única forma de restabelecimento da

ordem quebrada por elas. O seu percurso culmina com a sua marginalização, como

forma de exemplo social e penalização pelos comportamentos desviantes ocorridos.

66

CONCLUSÃO

O termo “duplo”, utilizado para nos referirmos à questão literária sobre a qual

incide a nossa análise, é de complexa interpretação, na medida em que aponta para

um campo muito abstrato da construção textual. Porém, esta temática, tal como a

analisámos, numa perspetiva de duplicação do sujeito literário, duplicação essa

intrínseca ou extrínseca a cada personagem, complementar ou desviante22, é uma

questão que tem sido recorrente ao longo da História da Literatura e da História das

Mentalidades (e que se encontra já presente nos textos clássicos), ainda que só a partir

do século XVIII tenha ganhado maior destaque, nomeadamente através de Jean-Paul

Richter que avança, pela primeira vez, com o termo Doppelgänger23 (Jean-Paul Richter,

1796), o qual encerra em si a noção de Duplo Psicológico e de Duplo Fantástico:

“On pourrait parler de “doble psychologique”, puisqu’il concerne le moi, ou de “double fantastique”, puisque sa manifestation est perçue comme une anomalie dans l’ordre des choses”. (Pierre Jourde e Paolo Tortonese, 2005: 3)

Na canção de gesta, a inter-relação que se estabelece entre a figura do duplo e

a do herói (coletivo ou individual) está intimamente ligada à tradição judaico-cristã,

visto que se estrutura sobretudo no paralelismo dicotómico Bem/ Mal, Deus/ Diabo. O

herói é aquele que realiza o seu percurso de depuração, através do sacrifício, ao

serviço do ideal religioso e social, também numa perspetiva de penitência cristã. A

figura heroica está associada, assim, a uma condição inicial de imperfeição, de

fragmentação, que a personagem deve ultrapassar através do seu percurso de

heroicidade. É nesta perspetiva que o duplo adquire significado no processo de

construção da imagem heroica, na medida em que contribui sempre para a sua

aprendizagem e elevação, quer através de um processo de complementaridade, quer

porque permite estabelecer uma comparação entre si e o herói, num plano de

confrontação de opostos, o que leva o leitor-ouvinte a valorizar o herói por oposição

22

Ver Capítulo I, “A importância do duplo na construção da identidade do herói”.

23 Ver Capítulo I, “A importância do duplo na construção da identidade do herói”.

67

ao seu contrário. Outro aspeto a ter em conta é a figura do anti-herói. Os diferentes

casos de personagens enquadradas nesta tipologia, que referimos ao longo deste

trabalho, são exemplos de duplos do herói que, por terem assumido um

comportamento desviante, que resultou num erro crasso, se opõem ao herói, não

enquanto elementos complementares, mas como figuras antagónicas que contribuem,

através do seu comportamento desviante e da imagem social negativa que

desenvolvem, para a construção do arquétipo do herói, enquanto modelo positivo que

repõe a ordem quebrada pelo anti-herói.

As definições que adotámos relativamente ao herói, ao duplo e ao anti-herói

baseam-se na análise dos dois textos estudados e na dinâmica que estas figuras

incutem nas duas obras. Apesar de existirem ligeiras divergências no que diz respeito

ao tratamento dado, numa e noutra, a estes três tipos de personagens, verifica-se, no

geral, uma semelhança relativamente à situação de cada herói ter associada a si a

questão da duplicação de identidade. Não menos relevante é o facto de, em alguns

casos, herói, duplo e anti-herói coexistirem na mesma personagem. Trata-se, por

exemplo, do caso de Guischard, em La Chanson de Roland, o qual, apesar de

inicialmente estar associado ao paradigma da figura heroica, pelo seu comportamento,

bravura e ética moral, desenvolve, ao longo da texto, uma condição dupla, divergente,

que o coloca numa perspetiva descendente relativamente ao percurso de heroicidade

que iniciara e, por renegar a fé cristã, numa atitude desviante (por uma questão de

orgulho e revolta face às exigências dos objetivos que lhe tinham sido propostos),

acabará por corresponder à imagem do anti-herói, na medida em que o seu erro

crasso, de heresia, é irreversível e põe em causa o bem comum.

Este trabalho surge, assim, da necessidade encontrada em abordar, numa

perspetiva comparativa, a forma como estas figuras literárias se estruturam nos textos

analisados e definir pontos de convergência ou de oposição entre o tratamento que

cada obra lhes dá. Conscientes de que a riqueza do tema proposto não está esgotada,

acreditamos que a análise realizada avança com uma perspetiva crítica, que poderá

contribuir para o desenvolvimento de uma reflexão literária futura acerca das

questões abordadas por nós.

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