dissertação - chalini barros - radiodifusão e telecomunicações

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Dissertação apresentada por Chalini Barros ao Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Othon Fernando Jambeiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE COMUNICAOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS

RADIODIFUSO E TELECOMUNICAES:UM ESTUDO SOBRE O PARADOXO DA DESVINCULAO NORMATIVA NO BRASIL

Chalini Torquato Gonalves de Barros

Salvador 2009

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CHALINI TORQUATO GONALVES DE BARROS

RADIODIFUSO E TELECOMUNICAES:UM ESTUDO SOBRE O PARADOXO DA DESVINCULAO NORMATIVA NO BRASIL

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas, Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Comunicao. Orientador: Prof. Dr. Othon Fernando Jambeiro.

Salvador 2009

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B277

Barros, Chalini Torquato Gonalves. Radiodifuso e telecomunicaes: um estudo sobre o paradoxo da desvinculao normativa no Brasil / Chalini Torquato Gonalves de Barros. Salvador, 2009. 169 f.: il. color. Orientador: Prof. Dr. Othon Fernando Jambeiro. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicao, 2009. 1. Radiodifuso. 2. Telecomunicaes. 3. Regulamentao. I. Universidade Federal da Bahia. II. Jambeiro, Othon. III. Ttulo. CDU: 654

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RESUMOO presente estudo se dedica ao exame das razes que vo ocasionar a ciso normativa entre telecomunicaes e radiodifuso dentro das polticas de comunicao no Brasil. Considera-se aqui a contextualizao histrica de fatores polticos e econmicos como sendo fundamental para a compreenso do problema. A justificativa do trabalho baseia-se na importncia que este feito tem para o setor de radiodifuso, sobretudo porque contribui para a permanncia de um regimento normativo defasado e democraticamente nocivo para a sociedade. Como metodologia de anlise buscou-se o levantamento de informaes por meio de livros, artigos, revistas especializadas, bem como por entrevistas com autores e entidades envolvidas no processo de reformulao poltica dos ltimos dois anos. A contribuio da pesquisa se d atravs do levantamento de uma discusso que se faz to essencial para as polticas de comunicao no Brasil. Entre as concluses podemos destacar a impressionante influncia que o empresariado da radiodifuso teve na consagrao deste paradoxo de acordo com seus interesses privados e a necessidade de reforo da regulamentao para o setor.

Palavras-chave: Radiodifuso. Telecomunicaes. Regulamentao.

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ABSTRACTThis work is dedicated to examine the reasons that will cause division between telecommunications and broadcasting legislation within the policies of communication in Brazil. It is here the historical background of political and economic factors as being fundamental to understanding the problem. The work justification is based on the importance of this has done for the broadcasting industry, especially because it contributes to the permanence of a regiment normative low and democratically harmful to society. As a methodology of analysis was adopted a survey of information through books, articles, specialized journals, as well as interviews with authors and organizations involved in the process of political reform over the last two years. The contribution of the research is bringing a discussion that is so essential to the policies of communication in Brazil. Among the conclusions we can highlight the impressive influence that the broadcasting businessmen had in the establishment of this paradox according to their interests and the need to strengthen the rules to this sector.

Keywords: Broadcasting. Telecommunications. Regulation.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Receita das Privatizaes Federais por Setor Figura 2 A Comunicao Social de acordo com as definies constitucionais

57 76

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Comparando dois modelos de governana Quadro 2 - Companhias brasileiras privadas e no financeiras com maior faturamento em 2000 Quadro 3 - Principais marcos na legislao da Comunicao Social e das Telecomunicaes Quadro 4 - Distines entre servios de Telecomunicao e Radiodifuso Quadro 5 - Sntese dos elementos analisados

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57

79 80 145

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SUMRIO

1 2 2.1 2.1.2 2.1.3 2.2 2.3 2.3.1 2.4 3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 4

INTRODUO ESTADO: TEORIA E CONTEMPORANEIDADE DOUTRINA CLSSICA DO ESTADO Jusnaturalistas Doutrina liberal MARX, GRAMSCI E O ESTADO NEOLIBERALISMO Ajuste econmico UM MUNDO GLOBALIZADO O ESTADO REGULADOR REFORMA DO ESTADO ADMINISTRAO PBLICA GERENCIAL REFORMA DO ESTADO NO BRASIL ESTADO E REGULAO ESTADO REGULADOR E COMUNICAO ESTADO REGULADOR E CENRIO DE ANLISE BASES PARA COMPREENSO DA DISTINO NORMATIVA

11 17 17 17 19 20 25 29 34 47 48 50 55 62 65 68 71

4.1

EMENDA CONSTITUCIONAL E PRIVATIZAO DAS TELECOMUNICAES

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4.2 4.3 4.4 4.4.1 4.4.2 4.5 4.6 4.7

DEFINIES TCNICAS E REGULATRIAS DUAS EXPLICAES E UMA MESMA CAUSA CORONELISMO ELETRNICO E CLIENTELISMO POLTICO Coronelismo eletrnico Polticas de comunicao e clientelismo ABERT E REDE GLOBO MANUTENO DE UM MODELO VIGENTE CONVERGNCIA TECNOLGICA E CONTRAMO BRASILEIRA

76 81 83 83 85 92 94 97

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4.7.1 5

Fora poltica x fora econmica DISCUSSES NORMATIVAS NA ATUALIDADE: CONVERGNCIA E DIVERGNCIAS

98 101

5.1 5.2

SOB O CDIGO BRASILEIRO DE TELECOMUNICAES PROPOSTAS DE REVISO PARA O MARCO DAS COMUNICAES

102 105

5.3 5.3.1 5.3.2 5.3.3 5.4

OUTROS DEBATES RELEVANTES Ancinav Abertura ao capital estrangeiro Escolha do padro de TV digital O PROJETO DE LEI N29/2007 E DISCUSSES NAS TELECOMUNICAES

108 108 110 114 118

5.4.1 5.5 5.6

A disputa por contedo RADIODIFUSO E VENCIMENTO DE CONCESSES MOVIMENTOS RECENTES POR UMA REFORMULAO REGULATRIA

124 126 131

5.6.1 5.6.2 5.7 6

Movimentao Pr-Conferncia Nacional de Comunicao Um ano de TV digital no Brasil DISCUSSO CONCLUSO Referncias Apndice

133 139 140 148 156

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1 INTRODUO

A idia norteadora inicial desta pesquisa fora resultado das constataes obtidas num trabalho anterior, o de concluso de curso de graduao, o qual se dedicava a analisar os fatores que permeavam as circunstncias definidoras do modelo brasileiro de TV digital que estava sendo implementado. Naquele perodo foi observada a magnitude da influncia poltica que o empresariado da radiodifuso exercia para pressionar por uma deciso favorvel s suas expectativas e o quanto isso limava o debate histrico que estava sendo travado sob as novas possibilidades democrticas que a nova plataforma poderia oferecer. Saltava aos olhos o imperativo de uma ampla reformulao poltica na comunicao brasileira, uma vez que toda ela no comportava a estrutura do novo desafio que a digitalizao trazia consigo. Mais uma vez ficava delegado ao mercado desregulado a importante responsabilidade de orientar a forma como a TV digital seria feita no Brasil e nenhum dispositivo legal era tido como base para evitar que os riscos da orientao por regras de rentabilidade pudessem causar prejuzos ainda maiores para um setor que j estava problematicamente consolidado. A observncia da ausncia de polticas pblicas efetivas para o setor de radiodifuso no Brasil tornou-se, pois o ponto inicial do questionamento que se refinaria em seguida. Estudos realizados ao longo dos anos fundamentaram a constatao de que a ausncia de um marco legal eficiente para orientar as polticas empregadas no setor era o principal fator para sua degradao. A radiodifuso estava amarrada a um cdigo normativo que havia completado j seu 45 aniversrio e poucas mudanas apresentava em sua essncia e, o mais grave, abria brechas capazes de permitir aqueles que se tornaram ao longo dos anos problemas crnicos do setor. O mais interessante observar que mudanas legislativas de grande importncia tinham sido aplicadas comunicao social do Pas quando, na dcada de 1990 o governo de Fernando Henrique Cardoso deu impulso ao plano de reforma do aparelho do Estado, quando o setor de telecomunicaes foi privatizado, aliado a

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uma ampla reformulao normativa que atualizava as orientaes para o setor (uma lei geral foi criada assim como uma agncia reguladora que a fizesse valer). No entanto, foi como parte dessa reformulao legal que uma emenda constitucional, a mesma que oficializava a privatizao do setor, desvinculava os servios de radiodifuso daqueles de telecomunicao. Isso impediu que a regulamentao que estava sendo paralelamente criada englobasse as modalidades de telecomunicao caracterizadas pela transmisso se sons e imagens por radiofreqncia. Aquilo que inicialmente pde ser enquadrada como uma medida de carter meramente temporrio para agilizar um processo complexo que em seguida seria retomado, fincou-se como uma condio permanente que fragilizava o setor. Por conta disso, ficou determinado que o objetivo geral para a orientao deste trabalho seria entender porque a radiodifuso sofre esta desvinculao do rol dos servios de telecomunicao. Acerca dos objetivos especficos podemos elencar:

a) reunir elementos histricos que ajudem na compreenso das foras que orientam a dinmica poltica da comunicao no Brasil; b) entender como o Estado regulador e as polticas de cunho neoliberal se articulam com este processo; c) observar como esta questo se insere no cenrio atual de convergncia tecnolgica e rediscusso legislativa; d) contribuir com o debate acadmico acerca da necessidade de reviso legislativa para o setor.

Torna-se ainda relevante neste momento enfatizar que o objeto de pesquisa aqui estudado se constitui da desvinculao normativa em si, mas notando-se ainda que durante a trajetria certa prioridade analtica dada para a radiodifuso comercial aberta, por conta, especialmente, do acmulo de

conhecimento de pesquisas anteriores. As questes norteadoras a serem aqui trabalhadas so: por que a radiodifuso, um setor to estratgico para a comunicao social brasileira quanto s telecomunicaes, se manteve fora da reformulao poltica que marcou a dcada de 1990, com a aprovao da Lei Geral de Telecomunicaes? Que fatores histricos de ordem tcnica, poltica ou econmica seriam capazes de justificar a

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dissociao regulatria entre os servios de radiodifuso e os de telecomunicao no Brasil? A delimitao temporal do estudo apresenta uma espcie de tripartio que no explcita, mas que pode ser observada ao longo do texto. O levantamento histrico pea-chave para a o acompanhamento de fatores polticos e econmicos que interferem nas formulaes polticas da radiodifuso no Brasil, especialmente porque um dos elementos de maior relevncia para anlise o cdigo de telecomunicaes de 1962 que permanece vigente. Outro momento retomado com maior nfase o que corresponde aprovao da emenda constitucional que oficializa a ciso no ano de 1995, e todo o debate poltico que se assiste em seguida. O terceiro perodo a que se foi dedicado estudo mais delimitado, pois tem seu marco inicial na definio do padro de TV digital a ser adotado no Brasil, na metade do ano de 2006, e seu ponto final com o Encontro Preparatrio para a I Conferncia Nacional de Comunicao, ocorrido em dezembro de 2008, quando este trabalho foi finalizado. Este perodo se justifica por englobar o binio 2007/2008, de grande importncia para a radiodifuso nacional pelos grandes debates polticos que comportam, como ser visto mais adiante. No que se refere metodologia aplicada, optou-se por um levantamento bibliogrfico a partir de livros, artigos, trabalhos acadmicos em geral, revistas especializadas, jornais, boletins eletrnicos, especialmente para o levantamento de dados mais recentes, alm da anlise documental de leis, projetos de leis e estudos de consultoria. O levantamento de informaes foi ainda favorecido por entrevistas realizadas com acadmicos dedicados ao tema e representantes de entidades bastante atuantes neste processo. O trabalho desenvolve-se em seis captulos nos quais so mescladas abordagens tericas, analticas, histricas e contemporneas com o propsito de problematizar e contextualizar, dentro da relao entre Estado, comunicao e sociedade, o tema aqui proposto. O captulo 2 discorre acerca do Estado a partir de perspectivas clssicas jusnaturalistas e liberais em que uma viso sistmica se faz presente. Esta entidade vem ser encarada como um elemento fundamental para a manuteno da civilidade e da paz social, mas dentro de um limite que no prejudicasse a liberdade individual. As contribuies de Marx e Gramsci deslocam o centro de anlise do Estado para a sociedade civil que passa a t-lo como reflexo de suas relaes de

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poder materiais e sociais. A abordagem segue pelo neoliberalismo avanando at o momento mais contemporneo de globalizao das relaes sociais em que a dissoluo de barreiras entre pases faz questionar a autonomia dos Estados-nao, realocando-os em suas funes. Diante da proeminncia das relaes de mercado em escala global, como parte da soluo neoliberal, e da eminncia de uma Sociedade da Informao, cresce ainda a importncia das redes e dos meios de comunicao, assim como os impactos sociais causados por estarem a servio do mercado internacional. Mais uma vez, ento, questiona-se o papel do Estado entre sua dupla funo de garantir nveis estveis de segurana para investimentos e competio em seu territrio e, ao mesmo tempo, impedir que os impactos negativos dessa lgica acumulativa desencadeiem mazelas sociais em seu povo. O captulo 3 aborda justamente como a estrutura burocrtica tradicional afetada por novos desafios como estes. Especialmente por conta de crises mundiais de carter econmico e poltico - desde a Grande Depresso de 1929, at a crise do petrleo na dcada de 1970 e a queda do muro de Berlim, em 1989 o paradigma do Estado questionado. Um novo modelo de administrao passa a ganhar destaque no cenrio mundial e vem se refletir no Brasil. o Estado gerencial, menos burocrtico e mais dinmico, cuja estrutura de poder se torna mais distribuda entre entidades de carter autnomo que passam a servir mais adequadamente s exigncias da soluo neoliberal. A lgica administrativa empresarial adentra o poder pblico e altera suas formas de regulamentao. Privatizao e desregulamentao so os itens bsicos da agenda de ajuste econmico empregada por pases em desenvolvimento que procuram ser aceitos no cenrio internacional. Seu reflexo no Brasil se faz por uma poltica econmica que, na dcada de 1990, foi responsvel por intensas transformaes tambm no setor de comunicaes, especialmente com a privatizao das telecomunicaes e com a reformulao poltica decorrente. Foi o impulso que

resultou na desvinculao constitucional entre telecomunicaes e radiodifuso e que orientou a poltica econmica a ser adotada pela lei geral que viria em seguida. O captulo 4 se prope a aprofundar o debate que est envolvido neste objeto de estudo. Observa-se como ficam definidas as bases normativas de cada setor a partir do momento em que a ciso dada, orientaes regulatrias que vo marcar uma sensvel bifurcao de destinos entre estes que na prtica se constituem servios de uma mesma natureza. feito um breve histrico das polticas

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de comunicao no Brasil a fim de resgatar os conflitos e disputas que possam ajudar a entender o problema em questo, bem como a maneira como ele ainda se configura na atualidade. Buscam-se as possveis explicaes para este feito e discorre-se sobre a possvel interferncia do coronelismo eletrnico e clientelismo poltico no estabelecimento dessa separao. discutida ainda a influncia de interesses da Associao Brasileira de Rdio e Televiso (Abert) e da Rede Globo na formulao de polticas pblicas para o setor de radiodifuso por conta da manuteno de um modelo de mercado adequado s suas estratgias econmicas e polticas. O captulo 5 trata da situao no momento atual. Em quais condies se encontra a radiodifuso, uma vez que permanece regida pelo Cdigo Brasileiro de Telecomunicaes, e como esta legislao antiga d conta dos novos desafios da convergncia e da digitalizao. Na medida em que fica constatada sua defasagem so observadas as tentativas de reformulao desse marco atravs dos anteprojetos de uma lei geral que contemplasse o setor como um todo. Alm disso, feita ainda uma retomada das questes de reviso regulatria que alcanaram o setor nos anos seguintes ciso constitucional, como os debates sobre a criao de uma Agncia Nacional do Cinema e do Audiovisual, a entrada de capital estrangeiro nas aes das empresas de radiodifuso ou aquele acerca do modelo de TV digital que seria implantado no Brasil. Enfocando o momento mais recente, realizado um levantamento de informaes acerca das discusses ocorridas desde o segundo semestre de 2006 at o fim do ano de 2008. O Projeto de Lei n29 teve uma grande repercusso, especialmente por procurar oficializar entrada dos empresrios de telefonia na produo de contedo, o que desafiava os interesses dos tradicionais operadores de TVs por assinatura e levantava a discusso sobre a proteo ao contedo e a indstria nacionais. Apesar desse projeto no englobar a radiodifuso aberta, havia, bom lembrar, a promessa de que uma vez consolidada essa reformulao transitasse e passasse a valer tambm para ela. Outro acontecimento de grande importncia neste perodo foi o do vencimento das concesses de emissoras, o que levou a mobilizao da sociedade civil pelo debate acerca das normas que orientam essas concesses. Essa movimentao se faz presente ainda para pressionar o poder pblico pela realizao de uma Conferncia Nacional de Comunicao, a fim de que

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uma ampla discusso seja realizada com todos os interessados, claro, com a sociedade fortemente envolvida. Na verdade, o grande tema entre todas essas questes o constante desafio que as reformulaes normativas sempre representavam aos interesses da elite empresarial consolidada sobre a radiodifuso brasileira e como isso pode interferir para a permanncia da paradoxal separao entre telecomunicaes e radiodifuso em plena fase de convergncia tecnolgica. Esta dissertao de mestrado foi realizada como parte da pesquisa desenvolvida junto ao Grupo de Estudos de Polticas de Informao, Cultura e Comunicaes e ao Programa de Ps-graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas vinculado Faculdade de Comunicao da Universidade Federal da Bahia. O perodo de dedicao pesquisa foi viabilizado pela concesso de bolsa de estudos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). O presente estudo dever contribuir para o conhecimento acadmico na medida em que retoma discusses fundamentais para a comunicao no Brasil, mas particularmente por analisar um aspecto fundamental para a caracterizao da radiodifuso brasileira tal qual ela hoje: sua distino normativa do mbito das telecomunicaes, algo que, apesar da relevncia, no havia sido tratado com profundidade em outro trabalho acadmico, pelo que se tem conhecimento. Alm disso, a pesquisa procura oferecer informaes relevantes quanto ao estgio atual do processo de reformulao regulamentar para o setor, ponderando interesses e posicionamento dos diferentes atores envolvidos.

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2 ESTADO: TEORIA E CONTEMPORANEIDADE 2.1 DOUTRINA CLSSICA DO ESTADO

A teoria clssica do Estado teve incio na Europa do sculo XVII quando filsofos polticos sustentaram suas consideraes na anlise da natureza humana, especificamente no comportamento individual que surgia das relaes de poder entre sujeitos a partir das alteraes econmicas que se instauravam naquele perodo. Como o exerccio da coero dessas relaes no se adequava mais ao sentimento moralista de preceitos religiosos, ela passava a ser executada por uma instituio social capaz de controlar impulsos e paixes humanas, essencial como mecanismo civilizador. Neste momento histrico, a redefinio da condio natural do homem, marcada pela superao da lei divina, resulta na compreenso sistematizada de seus direitos individuais. Estas seriam, pois, as bases para o desenvolvimento da teoria liberal de Estado, fundamentada em direitos individuais e na ao do Estado para a garantia do funcionamento de um mercado livre e da defesa do bem comum. A razo toma lugar de destaque e os poderes econmico e poltico se desviam de antigas determinaes teolgicas para caber agora aos sujeitos racionais.

2.1.1 Jusnaturalistas

A racionalizao do Estado proposta pelos tericos jusnaturalistas contrape, essencialmente, o Estado como momento positivo sociedade prestatal - em seu estado de natureza ou sociedade natural - degradada ao momento negativo (BOBBIO, 1982). O instinto humano era algo nocivo ao convvio em sociedade e precisava ser urgentemente contido. O Estado era ento concebido como:

[...] o momento supremo e definitivo da vida comum e coletiva do homem, ser racional; como o resultado mais perfeito ou menos imperfeito daquele processo de racionalizao dos instintos ou das

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paixes ou dos interesses, mediante o qual o reino da fora degradada se transforma no reino da sociedade regulada (BOBBIO, 1982, p.19).

Na viso de Hobbes, por exemplo, o estado de natureza oferecia um ambiente catico na medida em que a liberdade dada aos indivduos estava sujeita s paixes humanas que traziam como conseqncias conflitos extremos e guerras. O Estado, para ele, seria fruto do desejo de garantia da ordem e da paz social. Seria a forma racional da existncia social do homem. Da adveio o conceito de contrato social, segundo o qual:

Os homens, em busca da paz, confiariam a um soberano o controle de suas paixes com o interesse de se refrearem a si prprios; desistiriam de seu poder individual para que nenhum deles pudesse reduzir o poder de qualquer outra pessoa atravs da fora (CARNOY, 1994, p. 27).

John Locke (apud BOBBIO, 2002) concorda com Hobbes quando afirma que, em virtude do perigo de guerras, os homens se unem numa sociedade poltica cedendo sua liberdade individual e seus direitos de auto-preservao a uma entidade protetora superior o Estado. Para Locke ele seria, portanto, o rbitro cuja imparcialidade, dirigida pelas leis da razo, impediria a degenerao de uma sociedade que naturalmente estaria condenada a conflitos permanentes e insolveis. esta renncia das liberdades individuais em favor de todas as outras que vai constituir o que Rousseau chamou de expresso da vontade geral, viabilizando o alcance da liberdade civil ou moral, a partir das quais o sujeito se torna mais livre do que era antes (CARNOY, 1994, p.33). O Estado de Rousseau, como reflexo da vontade geral, deveria agir na garantia da igualdade entre os cidados e conseqente compartilhamento dos benefcios gerados pela paz. Mas com Hegel que a tendncia de racionalizao do Estado dos pensadores jusnaturalistas se exaspera. Com ele, a viso positiva idealizada do Estado racional em si e para si - se consolida como uma realidade j dada, a superao da sociedade pr-estatal.A racionalizao do Estado celebra o seu prprio triunfo e, simultaneamente, representada no mais como proposta de um modelo ideal, porm como compreenso do movimento histrico real;

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a racionalidade do Estado no mais apenas uma exigncia, porm uma realidade; no mais apenas um ideal, mas um evento da histria (BOBBIO, 1982, p. 20).

2.1.2 Doutrina liberal

Uma nova vertente do pensamento racionalista vem ser apresentada, ento, por Adam Smith (apud CARNOY, 1994). a partir dele que os homens comeam a ser compreendidos como sendo inteiramente impulsionados pelo desejo de ascenso econmica, agindo, assim, de acordo com o seu prprio interesse em busca do ganho material. A conseqncia, segundo Smith, da propagao desta atitude entre a coletividade seria a maximizao do bem-estar coletivo. Desta forma, ao lutarem por seu enriquecimento pessoal, os indivduos, mesmo inconscientemente, contribuam para a prosperidade coletiva. Da se constitui o paradoxo da concepo liberal. Ao mesmo tempo em que essencialmente competitiva, ela defende que este o modo mais eficaz dos homens alcanarem sua condio mxima de auto-realizao, de onde adviriam, ainda, benefcios para toda a sociedade. Na viso de Smith o Estado deveria pr-se parte deste processo social, de modo que sua interferncia poderia consistir num fator prejudicial.

Para Smith o papel do Estado era o mais perifrico em relao dinmica social fundamental a mo invisvel do mercado livre uma dinmica que no somente no deveria sofrer interferncia, mas exigiria, ao contrrio, uma loucura humana extrema para fazer retroceder significativamente sua capacidade inexorvel de prover o ganho material coletivo (e, conseqentemente, uma melhoria social global) (CARNOY, 1994, p. 39).

O Estado, contudo, aqui no visto como uma instituio a ser descartada, mas limitada. Na verdade ele se torna pea fundamental para a prosperidade social quando age de maneira a garantir a liberdade individual diante do livre mercado, fornecendo, para este fim, uma base legal propcia. Sua funo legislativa deve se orientar pelo benefcio do maior nmero de cidados e em defesa do mximo de liberdade possvel, ou seja, uma medida que proteja o indivduo para agir sem obstculos do poder do Estado, mas evite o prejuzo do interesse coletivo.

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[...] trata-se, ento, de delimitar a esfera privada com respeito pblica de modo que o indivduo possa gozar de uma liberdade protegida contra a invaso por parte do poder do Estado, liberdade essa que dever ser a mais ampla possvel no necessrio ajustamento do interesse individual ao interesse coletivo (BOBBIO, 1988, p. 67).

Esta limitao mnima imposta ao comportamento dos sujeitos no pode ser confundida com paternalismo, ou seja, a doutrina em que o Estado protege o cidado dele prprio. Na verdade o liberalismo se consolida como uma doutrina antipaternalista por excelncia, tornando cada um responsvel e guardio de si (BOBBIO, 1988). A melhor maneira de impedir que a intromisso do governo na dinmica social competitiva prejudicasse os interesses dos cidados era torn-lo freqentemente suscetvel a alteraes de mandato, ou seja, sujeito as eleies peridicas. este raciocnio que cria uma ligao ntima entre liberalismo e democracia. John Stuart Mill viu o processo democrtico como uma contribuio fundamental na defesa da liberdade dos cidados perante o governo, e na busca de uma sociedade livre e equitativa (CARNOY, 1994). A concepo do Estado liberal burgus foi, ento, amparada pela idia de democracia representativa, atravs da qual era conferido aos cidados o poder de mudar o pequeno grupo de funcionrios dirigentes, agora sujeitos vontade geral. Mesmo ainda vista como superior, a entidade de governo apresentava, ento, certa vulnerabilidade, e era esta subordinao coletividade que tornava tal aparelho poltico adequado para o sistema competitivo de mercado.

2.2 MARX, GRAMSCI E O ESTADO

Opondo-se concepo positiva prpria do pensamento racionalista, Karl Marx condiciona sua teorizao acerca do Estado (no em sentido estrito, mas a partir da conjuno de vrios de seus fundamentos e escritos) essencialmente, crtica da filosofia poltica hegeliana atravs da obra Crtica da filosofia do direito pblico de Hegel (BOBBIO, 2002). Marx refuta o mtodo especulativo adotado por Hegel, principalmente, no que diz respeito a sua concepo de subordinao da sociedade civil em relao ao Estado. Ao contrrio desta viso, portanto, o Estado

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no seria a superao da sociedade civil, mas o simples reflexo dela: se a sociedade civil assim, assim o Estado (BOBBIO, 1982, p. 22). Em Marx e Engels o Estado passa a ser concebido no como superao, mas como conservao do estado da natureza, perpetuando a lei da fora no mais de todos contra todos [...] [mas] de uma parte contra outra parte (a luta de classes, da qual o Estado expresso e instrumento) (CARNOY, 1994, p. 66). A doutrina marxista e engelsiana do Estado (BOBBIO,1982) seria caracterizada primeiramente pela considerao de que o Estado moldado tomando como base a sua estrutura social correspondente. a soma total dessas relaes de produo que constitui a estrutura econmica da sociedade, a base concreta sobre a qual emerge uma superestrutura jurdica e poltica que no representa o bemcomum, mas a expresso poltica da estrutura de classes inerente produo (CARNOY, 1994). Estando, portanto, subordinado sociedade civil, o Estado seria uma expresso poltica da dominao de classes e consistiria num instrumento essencial para a legitimao e manuteno da classe burguesa dentro da sociedade capitalista.O Estado se torna uma entidade separada, ao lado e de fora da sociedade civil, mas no nada mais do que a forma de organizao que a burguesia necessariamente adota para fins internos e externos, para a garantia mtua da sua propriedade e interesses (MARX; ENGELS, 1964, p.78, apud CARNOY, 1994, p. 68).

Caracterizado como instrumento sujeito classe dominante, a ele no caberia resolver as desigualdades da sociedade civil, mas conserv-la tal qual ela , resultado historicamente determinado dessas relaes. Assim ela no s no se sente ameaada pelo Estado, como se utiliza dele para perpetuar suas determinaes. Carnoy (1994), entretanto, faz questo de enfatizar que este reflexo das relaes de domnio no deve ser observado atravs de uma concepo de compl de classe colocada por Marx e Engels. Na verdade, apesar de no ficar claro na obra dos dois autores at que ponto o Estado atuaria de acordo com os interesses da classe dominante, eles esclarecem que:

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[...] o Estado tem suas origens na necessidade de controlar os conflitos sociais entre os diferentes interesses econmicos e que esse controle realizado pela classe economicamente mais poderosa na sociedade. O Estado capitalista uma resposta necessidade de mediar o conflito de classes e manter a ordem, uma ordem que reproduz o domnio econmico da burguesia (CARNOY, 1994, p. 69).

Antes de um mero instrumento de compl da classe dominante, tal entidade apenas seria o reflexo de uma relao de dominao existente na sociedade que a condiciona. Seria, portanto, pelo cumprimento do seu papel como mantenedor da ordem que ela serviria de meio para a represso da classe oprimida, sufocada por conta de uma paz contrria s possibilidades de reestruturao social revolucionria.O condicionamento da superestrutura poltica por parte da estrutura econmica, isto , a dependncia do Estado e da sociedade civil o lugar onde se formam as classes sociais e se revelam seus antagonismos, e o Estado o aparelho, ou conjunto de aparelhos, dos quais o determinante o aparelho repressivo (o uso da fora monopolizada), cuja funo principal , pelo menos em geral e feitas algumas excees, de impedir que o antagonismo degenere em luta perptua [...] no tanto mediando os interesses das classes sociais mas reforando e contribuindo para manter o domnio de classe dominante sobre a classe dominada (BOBBIO, 2002, p. 741).

Este seria, ento, um terceiro elemento caracterizador do Estado marxista. Ele entendido como um aparelho coercitivo consolidando a dominao burguesa pela imposio de leis repressoras. Para Lnin esta seria, pois, a funo primordial do Estado burgus: a legitimao do poder, da represso, para reforar a reproduo da estrutura e das relaes de classe (CARNOY, 1994, p. 71). Segundo Bobbio (1982), trs elementos vo, portanto sintetizar a doutrina marxista e engelsiana do Estado:

a) trata-se de um aparelho coercitivo (oposto sua antiga concepo tica); b) um instrumento de dominao de classe; c) uma instituio de papel secundrio por estar subordinado sociedade civil (ele no condiciona a sociedade, como em Hegel, mas por ela condicionado).

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Tanto para Marx quanto para Gramsci (1949 apud BOBBIO, 1982), a sociedade civil torna-se fator fundamental na compreenso do desenvolvimento capitalista, no entanto, uma distino crucial marcar o raciocnio dos dois autores: enquanto para Marx a sociedade civil consiste na estrutura, como relaes de produo, para Gramsci, ela a superestrutura, incorporando sua reflexo analtica o complexo de representaes ideolgicas, culturais e polticas que a constitui.

A anlise sumria do conceito de sociedade civil, desde os jusnaturalistas at Marx, terminou com a identificao realizada por Marx entre sociedade civil e momento estrutural. Esta identificao pode ser considerada como ponto de partida da anlise do conceito de sociedade civil em Gramsci, j que [...] a teoria de Gramsci introduz uma profunda inovao em relao a toda tradio marxista. A sociedade civil em Gramsci, no pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura (BOBBIO, 1982 p. 32, grifo do autor).

Dessa forma, Gramsci e Marx realizam uma ruptura com o pensamento de Hegel e a tradio jusnaturalista deslocando o centro de anlise do Estado para a sociedade civil. Porm, contrapondo Marx que Gramsci flexibiliza a determinao da histria social apenas por fatores econmicos. A constituio poltica em que resulta a sociedade civil no mais se restringe s relaes materiais do conjunto da vida comercial e industrial, ela compreende toda a problematizao das relaes intelectuais e espirituais que nela interferem. A reavaliao da sociedade civil no o que liga [Gramsci] a Marx [...], mas precisamente o que o distingue dele. (BOBBIO, 1982 p. 32). E exatamente orientado por seu enfoque ideolgico que Gramsci desenvolve o conceito de hegemonia atravs da qual valores e normas burguesas eram disseminadas por entre as classes subalternas procurando conquistar o seu consentimento e assim legitimar o domnio. A fora da hegemonia repousava, portanto, no na fora coercitiva exercida pelo Estado como aparelho repressivo da burguesia, mas na aceitao negociada por parte dos dominados de conceitos de realidade, valores polticos e religiosos, moralidade e concepes de mundo de uma maneira geral pertencente aos seus dominadores. Em Gramsci (1949 apud BOBBIO, 1982) a relao entre instituies e ideologias aparece invertida de modo que as ideologias tornam-se o momento

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primrio da histria e as instituies, por sua vez, passam a ser o momento secundrio.[...] de modo mais sinttico e preciso: a teoria da hegemonia liga-se, em Gramsci no apenas a uma teoria do partido e do Estado, [...] mas engloba a nova e mais ampla concepo da sociedade civil, considerada em suas diversas articulaes e [...] considerada como momento superestrutural primrio. Com isso mais uma vez reconhecido o posto central que o momento da sociedade civil assume no sistema gramsciano: a funo resolutiva que Gramsci atribui hegemonia revela, com toda a fora, a posio preeminente da sociedade civil, ou seja, do momento mediador entre a estrutura e o elemento superestrutural secundrio (BOBBIO, 1982, p. 48).

Se para Gramsci nem fora nem a estrutura econmica da produo capitalista so responsveis diretas pelo consentimento e aceitao da dominao entre as classes subordinadas, sua explicao s poderia residir em aspectos ideolgicos de persuaso de conscincias. Gramsci (1949 apud BOBBIO, 1982) inverte a teoria marxista

especialmente por enfatizar a supremacia das superestruturas ideolgicas sobre a estrutura econmica e a da sociedade civil - na forma de consenso - sobre a sociedade poltica fora do Estado como aparelho repressivo. No entanto, a hegemonia no a oposio entre consentimento e coero, ela seria, antes disso, a sntese de consentimento e represso (CARNOY, 1994, p. 99).

[...] podem ser fixados, por enquanto, dois grandes planos superestruturais: o que pode ser chamado de sociedade civil, ou seja, o conjunto de organismos habitualmente ditos privados, e o da sociedade poltica ou Estado. E eles correspondem funo de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade; e do domnio direto ou de comando, que se expressa no Estado e no governo jurdico (GRAMSCI, 1949, p. 9 apud BOBBIO, 1982, p. 3233).

Haveria a uma relao de complementaridade, de maneira que o Estado torna-se um aparelho de hegemonia que abrange toda a sociedade, distinguindo-se dela, somente, pelo domnio dos aparelhos coercitivos atravs dos quais exerce o uso legtimo de sua fora. Segundo Coutinho (2000) o maior mrito de Gramsci consiste em ter ampliado a teoria marxista clssica do Estado e, alm disso, ter percebido o surgimento de:

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[...] uma esfera social nova, dotada de leis e de funes relativamente autnomas e especficas, e o que nem sempre observado de uma dimenso material prpria. essa esfera que ele vai chamar de sociedade civil, introduzindo uma novidade terminolgica com relao a Marx e Engels (para os quais sociedade civil sinnimo de relaes de produo econmicas), mas retomando alguns aspectos do conceito tal como aparece em Hegel (que introduzia na sociedade civil as corporaes, isto , associaes poltico-econmicas que, de certo modo, podem ser vistas como formas primitivas dos modernos sindicatos). Nessa nova situao, [...] o Estado os mecanismos de poder no se limita mais aos institutos de dominao direta, aos mecanismos de coero. [...] ao lado deles, Gramsci v a emergncia da sociedade civil. E o que especifica essa sociedade civil o fato de, atravs dela, ocorrerem relaes sociais de direo poltico-ideolgica, de hegemonia, que por assim dizer completam a dominao estatal, a coero, assegurando tambm o consenso dos dominados (ou assegurando tal consenso, ou hegemonia, para as foras que querem destruir a velha dominao) (COUTINHO, 2000, p. 15-16).

2.3 NEOLIBERALISMO

A anlise contempornea de fenmenos polticos, sociais e econmicos que englobam a redefinio capitalista no pode ser feita, pois, sem a observao de tais fundamentos bsicos dos tericos mencionados acima. Ao perodo estudado por Marx e, posteriormente, por Gramsci so dados novos contornos e novas propores, especialmente a partir da dcada de 1970, por movimentos estruturantes oriundos da chamada globalizao, expanso de capital, ento articulados dentro de uma roupagem mais recente da clssica teoria liberal, a poltica econmica neoliberal. Redes de conexo de alta velocidade em transmisso de dados remodelam as relaes sociais contemporneas e impulsionam a circulao de capital que, com o seu potencial multiplicado, fomenta o mercado financeiro numa lgica que transcende a esfera econmica repercutindo tambm nos mbitos poltico e cultural. Se a legitimao deste novo perodo dada pela doutrina neoliberal, seu estabelecimento s foi possvel devido ao declnio do Estado fordista e da crena na ideologia socialista. O cenrio poltico que se tem em mente aqui constitudo pela crise do Welfare State, a ascenso ao poder de Ronald Reagan, nos EUA, e de

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Margareth Thatcher, na Inglaterra, alm da queda do Estado socialista na Unio Sovitica. A interveno keynesiana do Estado na economia nacional, que havia se instaurado aps a crise de 1929 e aps a Segunda Guerra, foi desafiada pela crise do petrleo de 1974 e 1979, de modo que a orientao geral, emitida pelo FMI, Banco Mundial e Grupo dos 7 todos sob forte influncia dos Estados Unidos foi dura: profundos e permanentes cortes nos gastos pblicos. (JAMBEIRO, 2006). Na dcada de 1980, portanto, o Estado interventivo encontra-se espreitado e conhece o seu esgotamento intervencionista graas crise fiscal, uma vez que ele:

Se encontra perante dois limites: o primeiro representado pela natureza do objeto fiscal (em virtude da qual a imposio direta pode agravar mais a renda e o capital monoplico do que a empresa concorrencial) e pelos vnculos da manuteno de uma economia livre; o segundo constitudo pela possibilidade de um incremento incontrolvel da demanda de despesas pblicas, capaz de motivar um colapso do Estado fiscal (GOZZI, 1993, p. 404).

por conta dessa crise entre arrecadao e despesa que o Estado de Bem-Estar Social, at ento uma resposta liberal para o avano do socialismo na Europa, estava sendo apontado como um fator determinante no aumento do dficit das contas pblicas. Um descompasso bastante nocivo para a sade oramentria das naes por desviar recursos que deveriam, segundo o discurso pregado, ser destinados ao investimento industrial e comercial, tornando mais competitivas aquelas economias. Os gastos sociais como garantias trabalhistas, sade e previdncia eram, ento, combatidos veementemente pelos defensores do livre mercado, pois, alm de gerar inflao, truncar o desenvolvimento econmico dos Estados nacionais e a concorrncia, ainda seriam responsveis pelo estmulo do comodismo dos trabalhadores e funcionrios. A incumbncia sobre gastos sociais deveria, por seu turno, sair da responsabilidade estatal e passar para instituies do setor privado, pois elas investem os recursos arrecadados e cumprem suas obrigaes graas s rendas auferidas com as aplicaes. (PAIM, 2000, p. 258). Afora desconfianas advindas da instabilidade econmica, outro fator contribuiu no cultivo de um terreno mundial propcio para a difuso do

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neoliberalismo. Trata-se do declnio do socialismo como bandeira de luta, decorrente do distanciamento entre as promessas de bons tempos de uma sociedade de transio para o comunismo e a realidade da estatizao autoritria que se instaurou nos pases que o adotaram.

Assim, como nenhuma das sociedades ditas socialistas se comportava como Marx e a maioria dos marxistas pensavam que elas se comportariam as classes no tinham sido eliminadas, o Estado no s no desaparecera como se tornara a mais central e dominante estrutura da sociedade Sweezy concluiu que o resultado era uma profunda crise na teoria marxiana, ou no paradigma marxiano de construo das sociedades (RAMOS, 2000, p.33).

Assim, o colapso do socialismo marca um retrocesso no curso da histria que a mudana revolucionria como aquela de transio do feudalismo para o capitalismo - iria promover, segundo as previses de Marx, passando-se do capitalismo para o socialismo e por fim ao comunismo. O que ocorreu no cenrio contemporneo, portanto, foi uma reverso contra-revolucionria atravs da qual praticamente todos os pases que haviam alcanado o socialismo retornaram ao capitalismo (JAMBEIRO, 1997). O fim das experimentaes de naes com estados socialistas foi caracterizado por Habermas (apud RAMOS, 2000) como Revoluo Ratificadora concebida especialmente pelos projetos perestroika (de reestruturao econmica) e glasnost (poltica de transparncia de informaes). O mercado baseado na tradio liberal do laissez-faire se espalhava, portanto, pelos mais diversos pases do mundo de maneira desigual. Os pases perifricos que ainda no tivessem se inserido efetivamente na proposta liberal se viam obrigados a ceder s exigncias de organizaes internacionais sem as quais no conseguiriam recursos para sobreviverem no mercado globalizado, sobretudo porque muitos deles j se encontravam profundamente endividados.

A globalizao foi difundida, vendida e impingida a governos, partidos, sindicatos, em todos os pases, mas principalmente nos de economia perifrica, como a nica possibilidade, poltica e ideolgica, necessria e irrecusvel ao ingresso na modernidade capitalista. Fenmeno universal, inclusivo e homogeneizador, indispensvel aos Estados nacionais no acesso s transformaes tecnolgicas em curso em todo o mundo, foram tais as idias subsidirias na fabricao desta crena. E, por outro lado a ausncia de qualquer outra alternativa [...] (SIMIONATTO, 2003, p.277-278).

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De fato, como colocado por Paim (2000) diante dos resultados espetaculares alcanados pelo livre-cambismo ainda no sculo XIX, esperava-se que este novo regimento econmico fosse adotado por todos os pases do mundo uma vez que:Adotado este sistema de produo, seguir-se-iam o bem-estar da maioria e a instituio do sistema representativo. Esta hiptese foi turbada, desde logo, pelo empenho dos socialistas de valer-se do sistema produtivo moderno, instaurado sob a gide do Estado, para perpetuar estruturas polticas autoritrias e totalitrias. A par disso, mesmo no chamado campo democrtico, a democracia e o progresso pouco prosperaram, a exemplo da Amrica Latina. (PAIM, 2000, p. 253).

Mais adiante ele arremata:

De onde vem a riqueza das naes desenvolvidas? A suposio de que a nossa pobreza teria algo a ver com a histria absolutamente pueril. [...] optamos pela Contra-Reforma e a Inquisio, escolhemos a pobreza. Os Estados Unidos seguiram caminho diretamente oposto. Aqui fomentamos o dio riqueza, ali esta poderia consistir em indcio de predestinao. Enquanto ficarmos agarrados aos valores contra-reformistas, jamais encontraremos o caminho do desenvolvimento, que, sem dvida, corresponde hoje a uma aspirao da maioria. (PAIM, 2000, p. 260).

Diante deste tipo de afirmao, no parece exagero afirmar que a constituio de uma via de desenvolvimento determinada pela adoo de mtodos neoliberais como nica alternativa situao de atraso econmico de pases perifricos surge como uma apologia privatizao e supremacia do mercado, inserida, ainda, numa cultura antiestado. Sem dvida, a presso psicolgica de se atribuir a responsabilidade sobre seus fracassos econmicos s escolhas de cada pas, cria uma falsa expectativa de que a sada desta situao seria uma mera questo de opo. Se existe a possibilidade de ser includo no mercado mundial, e se somente assim as benesses democrticas e prosperidade podem ser alcanadas, os pases que escolherem outro caminho estariam, de acordo com este raciocnio, fadados ao fracasso. Por outro lado, o individualismo surgido aps o colapso das lutas socialistas e reforado pela reforma intelectual advinda da cultura da crise

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desencoraja o ativismo poltico coletivo e produz um desencantamento utpico, um conformismo que atravessa todo o tecido social, reforando a crena de que a realidade hoje e desde sempre foi assim, e para sempre assim ser. (SIMIONATTO, 2003, p. 278). Alm disso, o que se percebe o esmaecimento dos processos de luta coletiva, um esvaziamento da sociedade civil em busca de lutas particulares, concretizada atualmente sob a forma do chamado terceiro setor. A dinmica global passa, dessa maneira, a ser determinada pela expanso da hegemonia neoliberal assentada sobre a crise de legitimao do Estado e pela cristalizao de uma cultura antiestado. Especialmente em pases em desenvolvimento, a degradao da figura do Estado apresenta-se como solo frtil para o consentimento acerca da soluo liberal. A partir disso, as grandes corporaes tornam-se, para pases perifricos, uma indispensvel fonte de capital para investimento em desenvolvimento no mercado nacional. O grau de submisso destes Estados tanto que eles entram em verdadeira competio e aumentam a atratividade de seus mercados internos na tentativa de angariar mais recursos seguindo, para isso, os passos da cartilha neoliberal instituda pelas organizaes internacionais: privatizao e

desregulamentao.

2.3.1 Ajuste Econmico

A reformulao capitalista de que damos conta, expandida pela integrao global dos mercados, no poderia se efetivar sem uma poltica econmica neoliberal que garantisse a flexibilizao dos mercados nacionais. O livre fluxo de capital e a atuao ampliada das grandes corporaes passavam a exigir dos organismos internacionais a configurao de um ambiente propcio para as dinmicas da acumulao e a partir da que, para integrarem o mercado, as economias de pases perifricos teriam que oferecer em troca sua mxima abertura para esses capitais. A estratgia neoliberal havia exaurido determinados mercados de pases centrais e buscava, ento, expandir sua produtividade para alm de fronteiras ainda no alcanadas, sejam elas territoriais ou setoriais. Para isso os novos mercados

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teriam que se submeter a um ajuste econmico que assegurasse estabilidade de investimentos e a partir o qual a entrada do capital privado passasse a ser permitida em esferas as quais anteriormente apenas o Estado poderia gerir. Tomada sob a forma de uma nova ordem global, uma nova hegemonia impunha, como uma de suas premissas fundamentais de reforma, a privatizao das propriedades do Estado, com a superao do modelo patrimonial clssico. Entre as razes sobre as quais se baseiam os benefcios da privatizao estariam: o enxugamento das despesas do Estado, que resultaria numa possvel reduo de impostos; o estmulo competio do mercado interno, que seria responsvel pela melhora nos servios prestados e por maiores investimentos e rendimentos, possibilidades de progresso e conquistas individuais, que representariam menos custos sociais para os cofres pblicos (PAIM, 2000). De maneira geral, o carter imperativo da privatizao consiste na injeo de recursos no mercado interno, o que poderia oferecer maiores possibilidades de desenvolvimento se no fossem acompanhados de efeitos sociais to nocivos. O fato que a privatizao assistida nos pases em desenvolvimento caracterizada no pelo progresso de seu povo, mas pela submisso ao capital de bens e servios pblicos dos mais elementares, como sade, educao, previdncia, cultura, sob a justificativa da ineficincia do Estado e das promessas da livre concorrncia. No entanto, ao invs de reduzir, o investimento em atrativos para o capital externo acaba elevando as despesas pblicas. O setor rebocador do

desenvolvimento econmico o do capital monoplico exige crescentes investimentos infra-estruturais, dessa forma, o Estado fornece uma cota de capital constante, que contribui para frear a queda da taxa mdia de lucro, e assim provoca desvio da verba que inicialmente estava voltada para despesas de cunho social (GOZZI, 1993, p. 405). As novas formas de gesto empresarial concebidas por corporaes multinacionais em pases em desenvolvimento, integrando suas atividades em estruturas de interconexo global, fazem perceber que elas se tornam agora suficientemente grandes para competir com governos, e to desejadas como parceiras em projetos econmicos que, como antes colocado, podem ser motivo de fortes disputas entre estados nacionais (JAMBEIRO, 1997).

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Perseguindo uma densa e tensa agenda comum, a maioria dos pases procura, no momento, realinhar suas estruturas polticas na perspectiva de permitir, favorecer e acelerar a internacionalizao de suas economias e a atrao de capitais estrangeiros. Sob o comando de organismos internacionais, os estados nacionais dispendem suas energias buscando integrar-se no planejamento estratgico dos grandes conglomerados internacionais. Para os pases em desenvolvimento, em particular, a receita aplicar o conhecido Programa de Ajustamento Estrutural sugerido pelo FMI: isto , eles podem receber grandes e baratos emprstimos se adotarem as medidas indicadas pela viso ortodxica da cincia econmica, expressa na exigncia de equilibrados oramentos, desvalorizao da moeda, estado, e entusistica aceitao de capital estrangeiro (MORGAN, 1992 apud JAMBEIRO, 1997).

A penetrao de recursos financeiros de origem externa se traduz na necessidade de uma flexibilizao emergencial tambm no que se refere regulamentao. A existncia de um conjunto de regras estabelecidas pelo Estado interventor, caracterstico do perodo fordista1 de capitalismo, se tornava neste novo momento uma barreira burocrtica que implicava prejuzos significativos para a dinmica econmica da comunidade internacional. A cultura antiestado atua aqui tambm a favor da desregulamentao de atividades econmicas e da decomposio dos monoplios de servios pblicos. Os Estados nacionais eram, ento, redefinidos dentro da lgica liberal, permanecendo sua funo regulamentadora, no entanto, agora, ela estaria voltada para a manuteno de um sistema competitivo e segurana do fluxo de capitais.Na verdade, velhas idias sobre regulamentao podem no funcionar na nova era tecnolgica, na qual servios e mercados so cada vez mais integrados, sem respeito a fronteiras fsicas ou culturais. A tarefa de regular, entretanto, permanece sendo cumprida, mesmo mascarada pela proclamada forma de desregulamentao: desregulamentao, na verdade, ainda interveno estatal, usada ao menos como inteno - para estender racionalizao e eficincia empresarial em contextos onde agncias estatais reguladoras ou tecnocracias estabelecidas no interior do prprio governo emperram a expanso capitalista (JAMBEIRO, 1997).

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Esquema de produo econmica em massa instaurado inicialmente por Henry Ford, simbolicamente a partir de 1914, orientado por tcnicas de organizao Tayloristas, e que tornou-se smbolo da racionalizao da rotina produtiva baseada na diviso, controle e execuo do trabalho, baixa qualificao da mo-de-obra, na reduo do conhecimento do projeto completo pelo trabalhador que ficava coordenado a seguir um ritmo fabril de organizao do processo produtivo. O modo de regulao governamental desta fase centrado basicamente no controle, planejamento, propriedade e welfare state (HARVEY, 2003).

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A doutrina liberal contempornea confirma expressivamente as idias liberais do pensamento clssico segundo as quais o Estado visto como mal necessrio. Sua interveno deve permitir o mximo de liberdade possvel dentro das articulaes de mercado, evitando, portanto, que seus atores cometam aes exageradas e indesejveis para o bom funcionamento do sistema. A nova relao Estado/economia criou a noo de Estado-mnimo que, atravs do seu recuo interventivo e limitao funo administrativa, atua para a recriao de um mercado estvel, alm de investir em infra-estrutura (mo-de-obra especializada atravs da educao e programas profissionalizantes), operando, assim, mais ativamente na valorizao do capital.

Na formulao hoje mais corrente, o liberalismo a doutrina do Estado mnimo (o minimal state dos anglo-saxes). Ao contrrio dos anarquistas, para quem o Estado absoluto e deve, pois, ser eliminado, para o liberal o Estado sempre um mal, mas necessrio, devendo, portanto, ser conservado dentro de limites os mais restritos possveis. (BOBBIO, 1988, p. 89).

A liberdade de iniciativa econmica, portanto, reclamava uma interveno legislativa reformada para a necessidade de sua expanso. As premissas de privatizao e re-regulamentao davam abertura para a internalizao de valores neoliberais na formulao de polticas de interesse nacional, contribuindo, dessa forma para uma deslegitimao do Estado e enfraquecimento da autoridade nacional. Fragilidade esta que o torna instrumento adequado e primordial para assegurar a manuteno da ordem estabelecida.Destitudo de seu carter pblico, o Estado vem sendo cada vez mais substitudo por fraes da sociedade civil, articuladas em torno de uma oligarquia financeira globalizada que busca garantir seus interesses ampliando os canais e as instituies capazes de aglutinar seus projetos, o que lhe confere uma hegemonia poltico-econmica assegurada pela organizao atual do capitalismo (SIMIONATTO, 2003, p. 279).

Fica evidente aqui a realocao progressiva que o Estado sofre diante da lgica de valorizao econmica do seu mercado interno. Ele passa a assumir um carter cada vez mais administrativo, distanciando-se da regulao direta de diversos setores agora geridos por agncias reguladoras de carter eminentemente autnomo. Elas resultam exatamente da eliminao das instituies que do

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materialidade ao Estado, reestruturando-o sobre rgos tcnicos impermeveis s oscilaes conjunturais da poltica e instabilidade eleitoral, fruto da

instrumentalizao democrtica do Estado liberal (RAMOS, 2005). A conseqncia deste processo seria o esvaziamento da funo legislativa e a reorganizao do comando poltico de maneira a desviar-se para outros ncleos distanciados do aparelho estatal.

Agncias reguladoras so [...] elementos centrais de processos de liberalizaes e privatizaes de operadoras de servios pblicos, tanto em pases centrais quanto perifricos. Trata-se de entes administrativos capazes de, em tese, como reza a expectativa terica dos mercados perfeitos da economia neoclssica, regular os mercados privatizados de modo equilibrado, autnomo e eqidistante das influncias do Estado, dos interesses privados, e dos consumidores. Um dado singular desses processos a despreocupao terica e prtica com a categoria governo. Essa ausncia, porm, parte objetiva dos modelos [defendidos pelo] Banco Mundial (RAMOS, 2005, p. 20).

Mais adiante, Ramos completa:Um ente que, por sua inventiva natureza poltica, jurdica e administrativa, seria capaz de oferecer aos mercados a segurana de que eles no seriam atropelados pela excessiva ingerncia do aparelho governamental. Da a idia de independncia, poltica e administrativa, avocada a esse ente que somaria competncia e atribuies de natureza legislativa, executiva e judicial at hoje inaplicveis a qualquer outro cenrio nacional (RAMOS, 2005, p. 23, grifo do autor).

As entidades tcnicas reguladoras seriam, pois, a soluo para o alcance de uma legitimidade reguladora desprovida do pesado encargo poltico-burocrtico das instituies estatais tradicionais. A autonomia seria pea chave na

desvinculao de poltica e economia, o que torna as agncias tcnicas figuras centrais na consolidao do neoliberalismo na atualidade. No se pode tomar por verdade, porm, que o resultado deste novo momento seria uma degenerao do Estado quando se trata, antes, de seu reposicionamento, de modo a se tornar um piv poltico-estratgico do

estabelecimento da ordem competitiva.

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2.4 UM MUNDO GLOBALIZADO

A reorientao funcional que ir configurar o Estado contemporneo deve ser compreendida, ento, em meio a uma srie de fatores estruturantes que o formulam diante do que se convencionou chamar de globalizao. Tal fenmeno colocado (GIDDENS, 1991, p. 69) a partir da intensificao das relaes sociais em escala mundial no que compe uma estratgia financeira de ordem internacional entoada por uma filosofia de empresa global (interdependncia dos sistemas produtivos nacionais). Segundo Mattelart (2000, p. 125) a globalizao , primeiramente, um modelo de administrao de empresas que procede na criao e explorao de competncias em nvel mundial, objetivando maximizar o lucro e consolidar suas fatias de mercado. Aqui, portanto, se faz valer a integrao como palavra de ordem para a concretizao de uma estrutura orgnica mundial, uma unidade funcionalmente sistematizada que vai consolidar a empresa global. O termo globalizao mais freqentemente utilizado por tericos anglo-saxes que entendem a expanso dos princpios de mercado para todo o planeta como oriunda do salto tecnolgico das ltimas dcadas. A idia aqui entusiasta e se identifica com os propsitos neoliberais da construo do mercado de intercmbio global. O termo correlato mundializao, muito embora referente ao mesmo conjunto de aspectos que configuram a atualidade, mais utilizado por tericos seguidores da tradio sociolgica francesa que no compreendem tais fenmenos como sendo recentes, mas provenientes de um conjunto de processos que integram a transformao do sistema capitalista.2 Assim, de acordo com a uma teorizao mais alinhada com a primeira perspectiva, o que se estaria vivenciando atualmente, seria o processo de estabelecimento temporal de uma economia de Terceira Onda que configuraria uma Era da Informao.

In a First Wave economy, land and farm labor are the main factors of production. In a Second Wave economy, the land remains valuableA proposio aqui apresentada no objetiva estabelecer uma distino entre estas duas denominaes. De fato, o que se tem em mente uma diferenciao ideolgica que marca a escolha efetuada entre os tericos que, de uma maneira geral, optam por um termo ou pelo outro.2

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while the labor, becomes massified around machines and larger industries. In a Third Wave economy, the central resource a single word broadly encompassing data, information, images, symbols, culture, ideology, and values is actionable knowledge. [] The meaning of freedom, structures of self-government, definition of property, nature of competition, conditions for cooperation, sense of community and nature of progress will each be defined for de Knowledge Age just as they were redefined for a new age of industry some 250 years ago (DYSON et. al., 1994).

Esta terceira fase que ora estaria se instaurando, seria o resultado de uma integrao mundial dos mercados para a prosperidade da sociedade global numa clara releitura do discurso liberal de que falamos anteriormente. Segundo os defensores desta viso, portanto, o mal estar que ainda se faz presente na civilizao atualmente seria conseqncia de uma adaptao fase de transio para a Terceira Onda, redefinies essenciais para o alcance dos louros das novas conquistas. Foi num raciocnio similar que o ento vice-presidente norte-americano Albert Gore utilizou a expresso nova ordem numa conferncia do ainda G7 em Bruxelas, em 1995, sobre as novas Tecnologias da Informao e da Comunicao (TICs), quando com a sua interveno intitulada Toward a global information infrastructure: The promise of a new world information order defendia a liberalizao das redes de comunicao dois anos aps o anncio do Plano Gore para a construo de auto-estradas (superhighways) da informao (MATTELART, 2000). A nova ordem, no entanto, como uma expresso cunhada pelos pases mais industrializados foi uma adaptao realizada da Nova Ordem da Informao e da Comunicao (NOMIC) da dcada de 1970, fundada nas aes progressistas que lutavam pela superao de desigualdades inerentes aos fluxos de informao ao redor do mundo (MATTELART, 2006). Por trs dela estaria a estruturao de uma terceira fase do capitalismo a partir da qual suas antigas desigualdades estariam longe de demonstrar sinais de sucumbncia. A globalizao das sociedades que ocorre na atualidade, de acordo com Ianni (1993), dentro de uma lgica prpria da expanso do capital que no se configura em algo novo:Desde as grandes navegaes iniciadas no sculo XV, at o presente, em fins do sculo XX, o capitalismo provoca constantes e peridicos surtos de expanso, de tal maneira que se revela

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simultaneamente nacional e internacional, ou propriamente global. [...] o desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo, em escala mundial, implica simultnea concentrao e centralizao do capital, tambm em escala mundial. [...] a rigor, a histria do capitalismo pode ser vista como a histria da mundializao, da globalizao do mundo. Um processo histrico de larga durao, com ciclos de expanso e retrao, ruptura e reorientao (IANNI, 1993, p.54-55).

O que se presencia atualmente seria, ento, uma terceira fase do modo capitalista de produo. Num primeiro momento ele se organizava em moldes nacionais, revolucionando formas de trabalho feudais, tribais ou pr-capitalistas e, posteriormente, numa segunda fase, passa a transcender fronteiras nacionais, mares e oceanos, indo em busca de matria-prima, novos mercados consumidores, desenvolvimento de foras produtivas e novas fontes de lucro segundo as quais se instituiu colonialismos, imperialismos, sistemas econmicos, economias-mundo, sistemas mundiais (IANNI (1993, p. 37). A terceira fase, por fim, se d quando esse sistema alcana escala propriamente global dando impulso a processos de concentrao e centralizao do capital assim como se reconhece atualmente. O mundo moderno tal qual est caracterizado hoje tem suas razes num conjunto de transformaes institucionais que ocorreram na Europa, iniciadas no ltimo perodo da Idade Mdia e que logo se espalharam para outros continentes. Thompson (2001) coloca trs linhas principais para caracterizar tais transformaes:

a) a primeira de ordem econmica (segundo a qual o sistema feudal europeu transformou-se em capitalista); b) a segunda de ordem poltica (reformulao de unidades polticas e formao de um sistema entrelaado de Estados-Naes) e; c) uma terceira, de ordem militar (quando o poder militar se concentra nas mos de determinados Estados-Naes que reivindicavam o uso legtimo da fora).

Giddens (1991) por sua vez, compreende ainda um quarto aspecto dentre estes que iro caracterizar as dimenses institucionais de modernidade, trata-se da diviso internacional do trabalho que confere materialidade estrutura sistmica de que damos conta.

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De fato, so transformaes deste porte que servem de base para os acontecimentos histricos que afetaram a sociedade mundial em sua fase de maior integrao, como a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, a Grande Depresso Econmica Mundial, em 1929, a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, e posteriormente, a Guerra Fria e a queda do muro de Berlim. A reconfigurao por que passava a sociedade mundial no sculo XX foi composta, portanto, de constantes crises na busca de um modelo de crescimento e de uma governabilidade para democracias ocidentais - abalando as economias e legitimidades polticas dos Estados que, estarrecidos, passaram a procurar definies capazes de lhes oferecer alguma estabilidade ou possibilidade de progresso. Por conta disso, no princpio dos anos 1970, a informatizao se transforma para as potncias industriais em uma ferramenta oficial de sada da crise, de modo que a crena na virtude teraputica das Tecnologias da Informao e de suas redes inspira polticas de reindustrializao tanto dos governos nacionais quanto no plano das instituies internacionais (MATTELART, 2006, p. 234). A partir dos anos 1980 ocorre a emergncia de algumas das novas tecnologias que iro iniciar a transformao do ambiente miditico. quando acontece a evoluo nos sistemas de impresso de jornais, revistas e livros, se disseminam aparelhos portteis como o walkman, e aparelhos domsticos como o videocassete. D-se, ento, o incio de uma segmentao do pblico que passa a cultivar novos hbitos de consumo,3 mais adaptveis s suas necessidades e disponibilidades (CASTELLS, 1999). A multiplicao de canais de TV vem ser possibilitada posteriormente graas s redes de cabeamento coaxial e de fibra tica, transmisso via satlite e digitalizao que tambm impulsiona o surgimento de uma gama de servios de transmisso de voz e dados. No entanto, a tecnologia mais marcante no fim do sculo sem dvida a Internet. A ferramenta de conexo de redes em escala global (atravs da World Wide Web) torna-se a espinha dorsal da comunicao mediada por computador (CMC), e vai simbolizar a reestruturao tecnolgica que altera definitivamente o cenrio mundial das comunicaes (CASTELLS, 1999).

Com o videocassete e a possibilidade de gravar a programao da TV para ser assistida em momentos mais convenientes ao usurio pode-se notar o surgimento de certa autonomia de consumo.

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H uma complexificao do mercado aliada redefinio do pblico que torna obsoleta a expresso massa, como originalmente era reconhecida, devido a uma reconfigurao no modelo tradicional de produo e transmisso centralizadas de contedo informativo de alguns poucos plos de emisso para o grande pblico. Tais condies so modificadas na atualidade juntamente com a convergncia tecnolgica via distribuio de produtos de voz, vdeo e impressos num canal eletrnico comum, muitas vezes em formatos interativos bidirecionais que do aos consumidores maior controle sobre os servios que recebem sobre como obt-los e sob que forma (DIZARD JNIOR, 2000, p. 23). Trata-se de uma

dinmica favorvel segmentao do pblico que passa a ganhar uma autonomia cada vez maior como consumidor, ditando as novas formas de produo de contedo. A segmentao do pblico exige customizao, investimentos em contedo diferenciado e promove um acirramento da concorrncia no setor. Os empreendedores que conseguem se destacar no novo ambiente so aqueles capazes de desenvolver estratgias de sucesso para a explorao dos recursos da rede como a sinergia da produo cultural configurada pela escala de produtos ramificados segundo a qual cada um dos produtos das diversas mdias filmes, livros, programas de televiso [...] passam a fazer parte de uma cadeia de distribuio e comercializao (DIZARD JNIOR, 2000, p. 33). A segunda metade da dcada de 1990 passa a ser marcada por um novo sistema de comunicaes que conjuga a mdia de massa personalizada com a comunicao mediada por computadores, a multimdia, como o novo sistema de recursos passaria a ser chamado, se configura pela integrao de diferentes veculos de comunicao e seu potencial interativo (CASTELLS, 1999, p. 387).Em meados dos anos 90, governos e empresas do mundo inteiro empenhavam-se em uma corrida frentica para a instalao do novo sistema, considerado uma ferramenta de poder, fonte potencial de altos lucros e smbolo da hipermodernidade (CASTELLS, 1999, p. 387).

A transio para uma ambiente de mdias interativas passava a exigir das empresas altos investimentos tanto para a aquisio de novas tecnologias quanto para a criao e disponibilizao de novos produtos, especialmente por se constituir uma fase de alto risco de retorno de investimentos. As novas exigncias estratgias

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corporativas ficaram voltadas para as fuses, inclusive dos j grandes e consolidados grupos de comunicao, unindo diversos servios. Foi o caso, por exemplo, da empresa norte-americana Time Inc., que atuava principalmente na publicao de revistas, com a Warner Communications em 1989 criando a Time Warner Inc. e, assim, ampliando suas atividades para cinema, publicaes e TV aberta e a cabo4 (DIZARD JNIOR, 2000). As fuses no mercado norte-americano foram o impulso inicial para o que se tornaria um modelo para o setor em escala mundial. Para Dizard Jnior combinar informao multimdia e produo de entretenimento sob o teto de uma nica empresa foi primeira parte da nova estratgia. Mas uma integrao vertical completa ainda est por vir. Aps a fase de fuses que marcou a dcada de 1990, as companhias de comunicao passaram a buscar o controle dos canais de distribuio eletrnica a fim de melhor disponibilizar o acesso de seus produtos aos consumidores. Esta tambm foi a estratgia das empresas de telecomunicao que, na busca de novos investimentos e da reduo de riscos, encontram a soluo na expanso de suas atividades convergindo os servios que oferecem.[...] as indstrias da mdia e de telecomunicaes optaram por estratgias que invadem o tradicional territrio empresarial umas das outras. Numa impressionante inverso de papis as companhias telefnicas e demais redes esto se tornando fornecedoras de mdia e as companhias de mdia se tornam cada vez mais fornecedoras de telecomunicaes. [...] companhias telefnicas recentemente liberadas usariam sua liberdade para comear a se deslocar para os negcios da informao, freqentemente em concorrncia direta com empresas de mdia. Simultaneamente, e ainda mais surpreendentemente, as companhias do setor de mdia comearam a admitir mudanas dentro do negcio das telecomunicaes, no apenas para controlar a distribuio de seus prprios produtos, mas tambm para competir diretamente nos servios de telecomunicaes. Isso o que de fato est acontecendo e de uma forma que est transformando ambas as indstrias (DIZARD JNIOR, 2000, p. 36).

A convergncia de servios de mdia e telecomunicaes leva a uma nova relao entre estas indstrias que passam a disputar os mesmos interesses. Nos Estados Unidos a Lei de Telecomunicaes de 1996 (MATTELART, 2000)Posteriormente, em 1996, a empresa voltou a fundir-se, desta vez com a empresa Turner Broadcasting System e em 2000 com o provedor Amrica Online.4

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suspendia grande parte das restries que impediam os dois setores de competir, o que tornou o setor ainda mais disputado e estimulou uma nova rodada de fuses. Este investimento em redes foi acentuado ainda mais dentro da integrao do comrcio mundial, pelo gerenciamento global de riscos, e a complexificao do mercado financeiro a volatilidade do ambiente internacional, ampliada pela interdependncia entre naes, reforou a imprevisibilidade econmica que passava a se sustentar fundamentalmente nestes canais de transmisso e transformava a comunicao numa importante ferramenta estratgica. A funo econmica das indstrias de informao e de comunicao consiste em tornar possvel o funcionamento do mercado pelo fato de implementarem uma atividade de coordenao entre os diferentes agentes (HERSCOVICI, 1999, p. 165). Deteno, tratamento e distribuio do conhecimento mercadolgico e cientfico, no cenrio configurado a partir das novas tecnologias, definem, no capitalismo contemporneo, o posicionamento hierrquico dos agentes econmicos (HERSCOVICI, 1999). Segundo Mattelart (2000, p. 130) o quadro movedio e imprevisvel da globalizao das trocas transformou o papel da informao econmica e da pesquisa e do tratamento da informao cientfica e tecnolgica na definio da estratgia das empresas e dos atores pblicos e parapblicos. Como conseqncia observa-se tambm uma maior penetrao de investimentos na produo acadmica de modo que ela passa a incorporar o carter funcional de produtora de conhecimento para a produo de lucro. A eficincia do sistema de preos na Era do Conhecimento surge atrelada sua capacidade de se tornar um mecanismo de captura, apreenso e comunicao de informaes (MELODY, 1993). Melody (1993, p. 65) entende a comunicao como um aspecto central para o estudo do funcionamento de sistemas econmicos como o ar para o estudo do funcionamento do corpo humano. No mesmo momento em que a informao passa a ser sinnimo de ferramenta estratgica de marketing, ela tambm se torna assunto de engenheiros de maneira que seu principal problema consiste em encontrar a codificao mais eficaz (em velocidade e custo) para transmitir uma mensagem telegrfica entre emissores e destinatrios. O que importa o canal. A produo de sentido no est includa no programa (MATTELART, 2006, p. 234).

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Trata-se de uma ntida mecanizao do sistema de comunicao de maneira a torn-lo mais funcional s novas perspectivas de progresso. O que se sucede neste momento um aprofundamento e expanso do processo de valorizao mercadolgica da informao e dos meios de gerenciamento social. Uma caracterstica notvel no desenvolvimento contemporneo no simplesmente a automao da produo de bens, mas a mudana de foco para a fabricao de bens atravs da produo comercial de conhecimento. A absoro da lgica acumulativa na produo cultural pode ser observada pelas novas formas de monitoramento de uso do contedo a ser comercializado, uma vez que parte do conhecimento vendvel desprovida de suporte fsico (como verso impressa ou em CD e DVD) capaz de ser trocado, como o caso de canais pay-per-view e venda de livros eletrnicos.

There is nothing new or revolutionary in the production of information for commodities. Markets for such information products as books and news papers, including legal property right protections embodied in copyright, are centuries old. Rather we can observe a deepening and extension of the information commodity, make possible by application of technologies that improve on the ability to measure and monitor information transactions, and to package and repackage information products in marketable form (MOSCO, 1993).

Os meios de comunicao exerceriam tambm um papel importante na disseminao de um ambiente propcio ao desenvolvimento. Como Ianni (1993, p. 59) afirma, se o capitalismo um modo de produo no s material, mas tambm espiritual, a indstria cultural contribui fundamentalmente para o seu processo civilizatrio revolucionando continuamente as condies de vida e trabalho, os modos de ser de indivduos e coletividades, em todos os cantos do mundo. A atuao da indstria cultural estaria na criao do esprito de aldeia global necessria para a integrao dos povos criando um simulacro da realidade, da vida social [...] a indstria cultural pode ser vista como uma tcnica social, por meio da qual trabalham-se mentes e coraes (IANNI, 1993, p. 136-137). Golding (1979) apresenta um raciocnio similar ao afirmar que o papel dos meios de comunicao no desenvolvimento estaria associado criao de uma empatia segundo a qual os valores tidos como apropriados para culturas adiantadas so disseminados para a promoo de atitudes adequadas

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modernidade e a uma atividade construtiva que contaminaria os pases de economia aptica. A considerao da difuso de valores deste tipo parece se tornar mais plausvel quando se coloca o padro comportamental predominante nas sociedades urbanas, segundo o qual o consumo de mdia a segunda maior categoria de atividade depois do trabalho e, certamente, a atividade predominante nas casas (CASTELLS, 1999, p. 358). Atualmente esta proporo deve ter sido alterada ao se levar em conta a penetrao das novas Tecnologias de Informao e Comunicao no ambiente de trabalho. A alterao das estruturas de trabalho seria, inclusive, uma das caractersticas mais marcantes do que se convencionou chamar de Sociedade da Informao (SI). Trata-se de adaptaes ocupacionais que assimilam aspectos de uma fase ps-industrial, decorrente do declnio de empregos de manufatura e um aumento progressivo dos cargos de colarinho branco - predominncia de empregos em que a matria-prima a informao (WEBSTER, 2001). Outros aspectos chave, de acordo com Webster (2001), vo sintetizar os traos tomados como definidores de uma SI. A tecnologia, inicialmente, seria o elemento mais evidente dos novos tempos a partir da qual seus impactos causariam uma reconstruo do mundo social capaz inclusive, segundo entusiastas, de promover a resoluo de antigos problemas sociais atravs de uma nova ordem. atravs da tecnologia, com as redes de transmisso de dados, que se alcana tambm a superao de limites de interao espaciais e temporais. Outra forma de se identificar a classificao de uma sociedade como sendo pertinente a esta nova fase, seria a constatao de que o aumento do valor das atividades da informao foi capaz de proporcionar uma elevao no PIB relativo a negcios da informao. Ou seja, quando o peso econmico da informao realoca setores tradicionais como agricultura de subsistncia e indstrias de manufatura (WEBSTER, 2001). Na verdade ao analisar o termo Sociedade da Informao o que Webster nos apresenta uma crtica a uma classificao que seja baseada eminentemente em medidas de carter quantitativo. Ele considera a conceituao inadequada por partir de propsitos inconsistentes de argumentao.

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The claim that the information society marks a profound transformation in our ways of life cannot be supported on the basis of the quantitative indices that are typically advanced. [] the idea that all such might signal the shift towards a new society, an information society, is mistaken. Indeed, what is most striking are the continuities of the present age with previous social and economics arrangements, informational developments being heavily influenced by familiar constraints and priorities. [] the imperatives of profit, power and control seem as predominant now as they have ever been in the history of capitalist industrialism. The difference lies in the greater range and intensity of their applications not in any change in the principles themselves (WEBSTER, 2001).

Dessa maneira, ento, diferente da resoluo de problemas que se coloca como promessa para uma nova ordem, o que se observa com o processo de globalizao o lanamento de desigualdades sociais econmicas, polticas e culturais em escala mundial.O mesmo processo de globalizao com que se desenvolve a interdependncia, a integrao e a dinamizao das sociedades nacionais, produz desigualdades, tenses e antagonismos. O mesmo processo de globalizao que debilita o Estado-Nao, ou redefine as condies de sua soberania, provoca o desenvolvimento de desigualdades e contradies em escala nacional e mundial (IANNI, 1993, p. 50).

Sendo fruto da lgica de acumulao que lhe d impulso, a globalizao apenas repercute caractersticas que lhe so intrnsecas. O mercado que havia sido colocado como a soluo para questes inerentes ao subdesenvolvimento de sociedades perifricas pela superao de sua apatia econmica provou que sua integrao acabou conduzindo no apenas ao reforo de desigualdades j bastante familiares, mas tambm ao surgimento de novas disparidades. O tamanho dessas disparidades agora toma a mesma proporo da grandiosidade global que se pretende cultivar. Agora ela se d no nvel, por exemplo, da diviso internacional do trabalho, segundo a qual se observa uma ntida distino entre o centro condensador de conhecimento tecnolgico e a periferia que atua no oferecimento de mo-de-obra de baixo custo permanecendo fadada margem da economia mundial (MATTELART, 2000).

A concentrao em torno de plos e a organizao da economia mundial em redes de plo a plo, em detrimento dos espaos intermedirios menos favorecidos e, portanto, expostos ao risco de

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marginalizao e desertificao, so portadores de risco de dualizao da economia mundial e de uma geografia social de duas velocidades (MATTELART, 2000, p. 151).

Outras formas mais recentes de excluso tambm viro se mostrar ao longo dos anos como aquela referente a quem tem ou no acesso domstico web (sob total disponibilidade de uso), habilidades tcnicas para lidar com as modernas interfaces, uso de banda larga ou disponibilidade de pagar pelo contedo de melhor qualidade que oferecido pela Internet (GARNHAM, 1998; CASTELLS, 2003; MURDOCK; GOLDING, 2004).

The impact of technology on politics is exaggerated. The technology is not determinant, but interlaced with political and economic processes. The mains barrier to democracy is, again, education and information technology is not going to make a significant difference to that problem. The major impact of information technology and new communications systems take place within the economy as a part the productive system. So, the arguments about the economic impact of the new technology are about their impact on the economy as a productive enterprise, not their impact on the public sphere or the domestic consumption of information (GARNHAM, 1998).

O que se comprova, portanto, que a consolidao da comunicao global ao longo dos ltimos anos apresenta carter empresarial e no tem oferecido grandes colaboraes para superar problemas mais estruturais, tais como a recuperao do atraso de pases em desenvolvimento em relao ao peloto de frente do mundo industrial (MATTELART, 2000, p. 158), simplesmente por que este no o seu propsito. As profecias entusiastas da tecnologia perdem-se em seus argumentos, pois ainda no parecem se concretizar. Em seu lugar, o que se assiste uma consolidao gradativa de um nmero cada vez mais reduzido de grandes grupos de comunicao no mercado mundial que tampouco esto inclinados a resoluo de problemas de desigualdades scio-econmicas. A funo do Estado que ora se reformula tem sido anunciada por defensores neoliberais como a morte do paradigma central da vida moderna, a organizao burocrtica uma vez que a complexidade da sociedade da Terceira Onda grande demais para qualquer burocracia centralmente planejada administrar (DYSON et. al., 1994, traduo nossa).

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Retoma-se aqui, pois, aquela proposio de que se ao Estado cabe algum papel, ele deve circular, segundo Dyson et. al. (1994), dentro de basicamente cinco propsitos: afastando-se do mercado, deixando-o coordenar-se pela livre iniciativa; atuando na promoo da competio dinmica, pelo estmulo a superao de monoplios naturais do passado; definindo direitos de propriedade, protegendo direitos individuais; criando taxaes para investir-se no desenvolvimento, e redefinindo, de uma maneira geral, sua relao com a sociedade. Como colocado anteriormente, a ao de estados nacionais,

especialmente naqueles pases com economias em desenvolvimento, tem se caracterizado, ento, por um ajuste que compreende essencialmente formulaes em prol da privatizao e desregulamentao dos mercados nacionais.

Em sntese, os processos de concepo e execuo de polticas de informao e comunicaes enfrentam, hoje, entre outros, dois fatores condicionantes de natureza tanto conceitual quanto contextual: em primeiro lugar, a tendncia de retirada progressiva do Estado, em benefcio do interesse privado e mercantil, facilitando a mercantilizao de produtos e processos informacionais e comunicacionais; em segundo lugar, a tentativa crescente de instrumentalizao direta das aes pblicas em favor de grupos empresariais, em prejuzo do interesse pblico e da democratizao dos servios informativo-culturais (JAMBEIRO, 2007, p. 124).

Um dos maiores desafios das polticas pblicas no cenrio colocado por uma suposta Sociedade da Informao a busca de mtodos capazes de garantir que os desenvolvimentos no setor da comunicao e informao no reforcem excluses na sociedade e que seus benefcios sejam expandidos por todos os setores e classes. Isto requer novas concepes e definies operacionais de interesse pblico, diferente da concepo neoliberal que o enquadra especialmente sobre o ponto de vista do consumo, e de servios pblicos, novas interpretaes das necessidades de poltica pblica, e o delineamento de novas estruturas institucionais para sua efetiva implementao (MELODY, 1993, p. 80, traduo nossa). Um projeto eficaz de nova ordem tecnolgica comunicacional, segundo Mattelart (2006, p. 240-245), no poderia deixar de passar pela resoluo de desafios tais quais: o questionamento do lxico da Sociedade da Informao, to carregado de valorao de benefcios do ultraliberalismo; a superao do discurso messinico do que seria uma nova fase caracterizada pela nova gora ateniense;

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a busca de uma resposta para os novos mecanismos de hegemonia cultural; a proteo da diversidade cultural e o questionamento do domnio da circulao de conhecimentos na sociedade atual pelo capital. No presente captulo buscou-se sintetizar uma retomada histrica de conceitos bsicos para tratar do Estado enquanto elemento fundamental de anlise das relaes de poder que se estabelecem na sociedade, no por definirem-se como ponto de reflexo exaustiva deste trabalho, pois esta no a inteno, mas por combinarem-se a outros aspectos fundamentais de observao e conformarem o impulso terico do debate a ser proposto no captulo seguinte, em que o Estado examinado em seu papel regulador.

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3 O ESTADO REGULADOR

O cenrio que ora se coloca no pode ser compreendido seno dentro desta contextualizao histrica, notadamente a que se refere ao momento contemporneo da globalizao. Torna-se necessrio relembrar que no bojo da disseminao da poltica econmica neoliberal, como promessa de desenvolvimento dos diversos pases, que se cristaliza uma cultura antiestado de deslegitimao do intervencionismo deselvolvimentista. As foras de mercado chamam para si a responsabilidade de crescimento econmico, acusando o Estado de ter sido incapaz de faz-lo. Isto se deu principalmente, como visto, graas descrena gradativa no ideal socialista, considerado, inclusive, como causa de atrasos desmedidos, e crise fiscal pela qual foi acusado o modelo de Welfare State. Como possibilidade de reao, as economias que no haviam conseguido deslanchar seu desenvolvimento,

enxergavam na cartilha neoliberal de ajuste econmico a possibilidade de reerguerem-se, baseando-se essencialmente na abertura de mercados internos via privatizao e desregulamentao.5 No enlaamento de uma rede de relaes econmicas em escala mundial, realizada como parte da reconfigurao posterior a um perodo de crtico de instabilidade, os Estados nacionais se viam questionados em sua soberania administrativa, uma vez que pareciam inaptos a oferecer a propulso competitiva necessria neste novo ambiente.

O movimento mundial em curso, impulsionador da reforma das funes econmicas e sociais do Estado, objetiva superar os impactos da crise do longo ciclo de crescimento industrial, nascido na onda inovativa tecno-econmica e social da segunda metade do sculo XIX. Este movimento, catalisado por acentuada restrio fiscal dos governos, compeliu o capital privado a invadir todos os espaos econmicos conquistveis para sua valorizao, avanando sobre aAcerca de questes conceituais que diferenciam os termos regulao e regulamentao, compreende-se aqui que regulao corresponde expresso em ingls regulation, que de fato pode ser traduzida como regulao ou regulamentao, mas que, na abordagem aqui adotada compreendida como a forma de orientao adotada pelas agncias reguladoras com vias a manter o equilbrio e o funcionamento de um sistema. Regulamentao, por seu turno, deriva de rulemaking em ingls e se relaciona s formas de gesto tipicamente poltico-institucionais de Estado e que, portanto, tendem a ser mais burocrticas.5

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esfera de bens e servios anteriormente providos pelo canal pblico (ALVEAL, 2003, p. 13).

3.1 REFORMA DO ESTADO

Exigncias por alteraes nas engrenagens administrativas dos aparelhos estatais denunciavam sua adaptao s influncias da lgica competitiva e ao poder econmico externo via entidades internacionais, como a Organizao Mundial do Comrcio, o Fundo Monetrio Internacional e o Banco Mundial que, juntamente com foras econmicas do capital privado nacional e multinacional, passavam a demandar tais reformas. O Estado fortemente interventor, ou keynesiano, havia sido visto como soluo para a reconstruo econmica de diversos pases aps o perodo de grande depresso mundial na dcada de 1930 (como a americana de 1929 e a do petrleo), em que se mostrou fundamental a sua ao para corrigir problemas ocasionados por falhas de mercado. No Brasil este processo ganha destaque desde o primeiro governo de Vargas, quando se forma uma nova burocracia estatal que passa a adotar mecanismos de proteo setorial e a oferecer investimentos produtivos essenciais industrializao nacional. quando surge uma srie de rgos federais de coordenao e planejamento econmico que voltavam suas aes para o investimento na produo, sob direo estatal. O setor produtivo nacional passou, portanto, a se desenvolver estreitamente enlaado com o Estado, atravs de tcnicas de administrao fiscal e monetria bastante centralizadas numa coordenao mtua entre empresas estatais e privadas (MATTOS, 2006). Desse modo, o desenvolvimento daquele perodo ocorreu centrado essencialmente no Estado, dentro de uma articulao entre capital estatal e privado. Tratava-se de uma estrutura patrimonialista de Estado forte e centralizado, fruto do pensamento autoritrio vigente, que resultou numa fuso dos seus papis de regulador e proprietrio, e acarretou seu distanciamento da funo reguladora (VELASCO JNIOR, 1997). O modelo de organizao patrimonialista da economia refletia o que, desde as sociedades pr-capitalistas