dissertação 2006_eder -estenio 21-10-2006 em pdf (1)

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Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Filosofia e Cincias Humanas Departamento de Cincias Sociais Programa de Ps Graduao em Sociologia Poltica

PSIQUIATRIZAO/DESPSIQUIATRIZAO

DO

SOCIAL:

Balano

da

Produo Acadmica Brasileira no Campo da Sade Mental no Perodo 1990 1997

Eder Braulio Leone

Florianpolis 1999

Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Filosofia e Cincias Humanas Departamento de Cincias Sociais Programa de Ps Graduao em Sociologia Poltica

PSIQUIATRIZAO/DESPSIQUIATRIZAO

DO

SOCIAL:

Balano

da

Produo Acadmica Brasileira no Campo da Sade Mental no Perodo 1990 1997

Eder Braulio Leone

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Sociologia Poltica . Orientadora: Profa. Dra. Luzinete Minella Co-orientador: Prof. Ms. Pedro Bertolino

Florianpolis 1999

RESUMO

A presente dissertao elabora um balano da produo acadmica brasileira no campo da sade mental, no perodo de 1990 a 1997, sob a tica da psiquiatrizao do social. O fenmeno da psiquiatrizao do social tratado nesta pesquisa, a partir de uma perspectiva dialtica, proposta por BERTOLINO (1991), que aborda seu desenvolvimento scio-histrico recorrendo s noes tese psiquiatrizante, anttese despsiquiatrizante e sntese ps-psiquiatrizante. Atravs deste enfoque dialtico foi construda a ferramenta de anlise, por meio da qual distingueu-se as produes de tendncia psiquiatrizante das de tendncia despsiquiatrizante. Os resultados apontam que na academia brasileira, o embate dialtico entre tese psiquiatrizante e anttese despsiquiatrizante desenvolve-se eqitativamente em termos quantitativos, guardadas certas diferenas qualitativas; e que a produo de tendncia despsiquiatrizante ocupa-se de temticas muito prximas s elaboradas pelos agentes da Reforma Psiquitrica Italiana. Palavras-chave: psiquiatrizao; despsiquiatrizao; reforma psiquitrica e desinstitucionalizao.

ABSTRACT

This dissertation presents a review of the Brazilian scholarly production in the field of mental health over the period from 1990 to 1997, analysing the psychiatrization of the social life. This phenomenon is examined in a dialectical perspective, proposed by BERTOLINO (1991), who approaches its sociohistorical development adopting the notions of the psychiatrizing thesis, the dispsychiatrizing antithesis and the post-psychiatrizing synthesis. With this dialectical focus, the analytic tool was constructed for distinguishing the psychiatrizing tendencies from the dispsychiatrizing ones. The findings show that, among the Brazilian scholars, the dialectical debate between the psychiatrizing thesis and the dispsychiatrizing antithesis develop equitatively in quantitative terms, with certain qualitative differences; and that the production of dispsychiatrizing tendencies deals with themes closely related to those elaborated by the agents of Italian Psychiatric Reform. Keywords: psychiatrization; dispsychiatrization; psychiatric reform and disinstitutionalization.

AGRADECIMENTOS

minha companheira Gladir, por me ajudar a manter a importncia e o sentido de fazer este trabalho. Pela leitura e discusso crtica de todas as suas etapas. Pelo seu carinho e amor. Luzinete Minella, pela maneira doce, otimista e competente com que orientou o trabalho. Ao Pedro Bertolino, pela co-orientao, companheirismo, generosidade e genialidade intelectuais. Ao Ary Minella e Paulo Vieira, pelas significativas sugestes metodolgicas. Ao Ramiro, por me ensinar os segredos do Excel. Ao Srgio Dias, pela assessoria no plano existencial. Ao Paulo Roberto, pela pacincia em ajudar nas emergncias eletrnicas. Ao pessoal da 1 JCJ de Florianpolis (Justia do Trabalho), pelo apoio e tolerncia. Ao pessoal do Ncleo de Estudos Polticos-Sociais em Sade (Fundao Oswaldo Cruz), particularmente ao Paulo Amarante e ao Alexandre Magno, que com muita disponibilidade e simpatia sempre atenderam minhas solicitaes. Ao Almiro Backes, pelas sugestes na redao. Ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia Poltica da UFSC, pela mediao. s secretrias Ftima e Albertina, nossos anjos da guarda no Programa de Mestrado. Beatriz Roisman, pelo incentivo que me deu, enquanto a vida lhe permitiu. Aos meus pais, Joo e Maria Leone, pelo amor dedicado aos filhos.

Desde el siglo XIX nos hemos convertidos en psiquiatrizables; la ms racionalizante de las sociedades, se ha colocado bajo el signo, valorizado y temido, de una locura posible. La psiquiatizacon no es algo que acontece a los ms extrans, a los mas excntricos ; puede sorpreendernos a todos y en todas partes, en las relaciones familiares, pedaggicas, profissionales .Michel Foucault

SUMRIO

INTRODUO i CAPTULO I - Dialtica da Psiquiatrizao/Despsiquiatrizao do Social ____________ 11.1 - Tese Psiquiatrizante ________________________________________________________ 2 1.2 - Anttese Despiquiatrizante___________________________________________________ 8 1.3 - Processo Brasileiro: Contradio Dialtica entre Tese Psiquiatrizante e Anttese Despsiquiatrizante_____________________________________________________________ 11 1.4 Referncias Bibliogrficas__________________________________________________ 19

CAPTULO II - Construo da Grade Analtica ________________________________ 212.1- Metodologia ______________________________________________________________ 22 2.2 - Subsdios Para a Construo da Ferramenta de Anlise _________________________ 252.2.1 - Vertente Britnica ____________________________________________________________ 25 2.2.1.1 - Principais Teses e Propostas de Ao da Vertente Britnica ________________________ 33 2.2.1.2 Referncias Bibliogrficas__________________________________________________ 35 2.2.2 - Vertente Italiana ______________________________________________________________ 36 2.2.2.1 - Principais Teses e Propostas de Ao da Vertente Italiana _________________________ 49 2.2.2.2 Referncias Bibliogrficas__________________________________________________ 51 2.2.3 - Vertente Americana ___________________________________________________________ 52 2.2.3.1 - Principais Teses e Propostas de Ao da Vertente Americana ______________________ 61 2.2.3.2 Referncias Bibliogrficas__________________________________________________ 62 2.2.4 - Da Pluralidade Disciplinar Constituio da Grade Analtica: Continuidades e Descontinuidades entre as Trs Vertentes _________________________________________________________ 63

CAPTULO III - Tendncias do Pensamento Acadmico Brasileiro no Campo da Sade Mental___________________________________________________ 733.1 - Introduo _______________________________________________________________ 74 3.2 - Metodologia ______________________________________________________________ 753.2.1 - Procedimentos de Coleta dos Dados ______________________________________________ 75 3.2.2 - Tratamento Preliminar dos Dados ________________________________________________ 77 3.2.3 - Limites da Grade Analtica _____________________________________________________ 79

3.3 - Descrio das Tendncias __________________________________________________ 813.3.1 - Aspectos Gerais ______________________________________________________________ 81 3.3.2 - Aspectos Relativos Psiquiatrizao e Despsiquiatrizao do Social _____________________ 83

3.4 - Principais Temas e Questes Norteadoras das Produes Acadmicas Brasileiras no Campo da Sade Mental _______________________________________________________ 883.4.1 - Estudos de Tendncia Psiquiatrizante _____________________________________________ 88 3.4.1.1 - Diagnstico _____________________________________________________________ 88 3.4.1.2 - Epidemiolgico __________________________________________________________ 90 3.4.1.3 - Nosolgico ______________________________________________________________ 91 3.4.1.4 - Etiolgico_______________________________________________________________ 92 3.4.1.5 - Tratamento Qumico ______________________________________________________ 93 3.4.1.6 - Prognstico _____________________________________________________________ 94 3.4.1.7 - Outros__________________________________________________________________ 94 3.4.1.8 Concentrao das Principais Temticas Pesquisadas _____________________________ 95 3.4.2 - Estudos de Tendncia Despsiquiatrizante __________________________________________ 97

3.4.2.1 - Identidade da Enfermagem Psiquitrica________________________________________ 97 3.4.2.2 - Institucionalizao da Psiquiatria_____________________________________________ 98 3.4.2.3 - Polticas Pblicas de Sade Mental ___________________________________________ 99 3.4.2.4 - Representao Social e Reforma Psiquitrica ___________________________________ 99 3.4.2.5 - Reforma Psiquitrica Italiana _______________________________________________ 100 3.4.2.6 - Compreenso da Esquizofrenia _____________________________________________ 100 3.4.2.7 - Crtica Terica Psiquiatria Tradicional ______________________________________ 101 3.4.2.8 - Internao Psiquitrica ____________________________________________________ 101 3.4.2.9 - Servios Alternativos em Contexto de Reforma Psiquitrica ______________________ 102 3.4.2.10 - Outros________________________________________________________________ 103 3.4.2.11 - Concentrao das Principais Temticas Pesquisadas ____________________________ 104

3.5 - Apropriao e Recriao Brasileira: Relao entre a Produo Crtica Brasileira e a Internacional ________________________________________________________________ 106

BALANO DO BALANO: CONSIDERAES SOBRE OS RESULTADOS ______ 114 BIBLIOGRAFIA________________________________________________________ 120 ANEXOS_______________________________________________________________ 123

ii

INTRODUO

Este trabalho trata da Psiquiatrizao do Social. Por este termo designamos o fenmeno histrico referente ao deslocamento de significativos problemas de ordem poltica, tica, social e existencial para uma questo de ordem mdico-psiquitrica, traduzida em termos de sanidade/insanidade1 instalada no indivduo. Na base deste deslocamento est a manuteno da tica e da ordem econmica dominantes, j que tudo que a elas escapa passvel de psiquiatrizao. A gnese deste fenmeno2 pode ser demarcada a partir da perseguio e enclausuramento dos desviantes da ordem racionalista e mercantilista emergente no sculo XVII. Progride rapidamente no sculo XVIII a partir da medicalizao da loucura, chegando ao amadurecimento na segunda metade do sculo XIX. Desde ento, (...) a psiquiatria (conjuntamente com suas duas

disciplinas irms, psicologia e psicanlise) tem reivindicado reas cada vez mais amplas da conduta pessoal e das relaes sociais(SZASZ, 1970: 11).

No final da

primeira metade do sculo XX comeam a se desenvolver - tanto em disciplinas como Sociologia, Cincia Poltica, Filosofia, Direito, Histria, como no interior da prpria Psiquiatria - crticas contundentes teoria e prtica psiquitricas, o que levou tanto problematizao crescente dos seus fundamentos epistemolgicos, tericos, metodolgicos e institucionais, quanto ao desvelamento de sua funo social e poltica de violncia, controle social e segregao. BERTOLINO(1991)

aborda

este

processo

de

gnese,

desenvolvimento e crtica, recorrendo s noes dialticas tese , anttese e sntese . Tal abordagem nos pareceu tecnicamente adequada, uma vez que, ao1

Esta dicotomia tambm pode ser expressa de outras formas, dependendo da abordagem epistemolgica: normal/patolgico, sade/doena, razo/desrazo. 2 Para evitarmos certos anacronismos histricos, convm notar aqui que estamos tratando de processos ocorridos na Europa.

i

mesmo tempo em que apreende o fenmeno em tela de modo no maniquesta, permite observar as duas racionalidades e prticas psiquitricas que se contrapem dialeticamente no tecido social , onde uma emerge no horizonte engendrado pela outra. Dito de outro modo, a anttese despsiquiatrizante encontra suas condies de possibilidade na tese psiquiatrizante que nega (no sentido dialtico). Ainda de acordo com BERTOLINO(1991),

o embate dialtico entre tese psiquiatrizante e anttese

despsiquiatrizante contm um campo de possibilidades para o desenvolvimento de uma racionalidade e prtica ps-psiquiatrizante. Tal como na Europa, o recolhimento dos vadios (desocupados, mendigos, rfos, loucos , etc.) na primeira metade do sculo XIX, marca o incio do processo de psiquiatriazao do social no Brasil. Este processo desenvolve-se aceleradamente j nos primeiros anos da Repblica com o estabelecimento da medicalizao da loucura, e chega plenitude durante a Nova Repblica. As iniciativas crticas em relao psiquiatrizao aparecem com maior contundncia somente em meados da dcada de 80, no bojo do processo de redemocratizao da sociedade brasileira, momento em que a questo da cidadania ocupa lugar privilegiado. em torno da cidadania como um dos valores fundamentais que um conjunto de iniciativas (tericas, polticas, culturais, metodolgicas, etc.) articulam e do curso a um processo irreversvel de transformao no campo da sade mental no Brasil. Este processo tem sido frequentemente designado de Reforma Psiquitrica. Mais adiante retornaremos a este processo com maiores detalhes. As consideraes anteriores tiveram por finalidade apenas estabelecer o quadro geral no interior do qual desenvolveu-se o trabalho que ora apresentamos. O objetivo primordial deste trabalho justamente contribuir com o processo de Reforma Psiquitrica Brasileira, chamando ateno para um agente quase annimo: a Instituio Universitria. Falamos em anonimato para indicar a pouca relevncia que se tem dado Universidade no processo deii

psiquiatrizao/despsiquiatrizao do social. Especificamente, empreendemos um mapeamento crtico das tendncias da produo acadmica brasileira no campo da sade mental. Embora rica e plural (tanto disciplinarmente como

epistemologicamente), tal produo no tem sido ainda objeto de anlise sistemtica. Trata-se, portanto, de um estudo bibliogrfico que elabora um balano descritivo da produo acadmica brasileira no campo da sade mental, localizando-a nos plos da contradio dialtica entre tese psiquiatrizante e anttese despsiquiatrizante, nos termos propostos por BERTOLINO(1991).

Ocupa-se tambm

de um balano da relao entre a produo crtica brasileira e a produo crtica internacional. Este estudo, embora se apoie em quantidades para estabelecer o mapeamento das tendncias, fundamenta-se num enfoque predominantemente qualitativo. Considerando a viabilizao temporal e material da pesquisa, recortamos para anlise a produo acadmica desenvolvida nos programas de psgraduao (dissertaes de mestrado, teses de doutorado e teses de livre docncia) no perodo entre 1990 e 1997, que tematizaram questes relativas sade mental. Dado o volume de material a ser analisado (95 dissertaes de mestrado, 4 teses de livre docncia e 44 teses de doutorado) optomos por trabalhar com os resumos, uma vez que, tratar com o corpo inteiro das teses e dissertaes tornar-se-ia uma tarefa invivel, no tempo disponvel para a realizao da pesquisa. A deciso metodolgica de fixar para anlise apenas as produes dos programas de ps-graduo foi subsidiada pelo entendimento de que as mesmas fornecem um quadro muito prximo da produo acadmica em sua totalidade. Para o recorte temporal, consideramos que a primeira dcada aps as primeiras iniciativas reformistas no final dos anos 80 constitui o perodo mais relevante para anlises que pretendam refletir sobre tendncias contemporneas no campo da sade mental no Brasil, j que a partir da que a dialetizao do processo brasileiro de psiquiatizao do social se estabelece de modo mais contundente.iii

A exposio do contedo do presente trabalho est dividida em trs captulos: No primeiro captulo buscamos demarcar diacronicamente o fenmeno da psiquiatizao do social utilizando-nos da perspectiva dialtica proposta por BERTOLINO(1991).

Num primeiro momento nos dedicamos

psiquiatrizao da sociedade ocidental, para em seguida tratarmos da psiquiatrizao da sociedade brasileira em particular, destacando seus principais momentos. O segundo captulo trata da metodologia, critrios e instrumentos tericos que orientaram a construo da ferramenta atravs da qual pudemos distiguir os estudos de tendncia psiquiatrizante daqueles de tendncia despsiquiatrizante, bem como as aproximaes destes ltimos com a produo crtica internacional. O terceiro captulo est dedicado a apresentao das tendncias do pensamento acadmico brasileiro no campo da sade mental. O mapeamento precedido da descrio da metodologia de coleta e tratamento dos dados, como tambm de uma discusso dos limites encontrados no uso do instrumento de anlise construdo. Ao final deste captulo, elaboramos uma compreenso da relao entre a produo crtica nacional e a internacional. Por fim, a partir de cenrios hipotticos sugeridos pela anlise dos resultados, enunciamos algumas consideraes e sugestes para a continuidade dos debates.

iv

CAPTULO I - Dialtica da Psiquiatrizao/Despsiquiatrizao do Social

1

1 - Dialtica da Psiquiatrizao/Despsiquiatrizao do Social

A exposio que segue no pretende ser uma descrio exaustiva da histria da Psiquiatria. Objetivando a demarcao socio-histrica, em termos gerais, do objeto de investigao desta dissertao, ocupa-se de uma tentativa de abordagem dialtica do fenmeno da psiquiatrizao do social tal como proposto por BERTOLINO (1991). Num primeiro momento descreve a gnese e o desenvolvimento da tese psiquiatrizante, em seguida, aborda a anttese despsiquiatrizante, e por fim, trata do processo de psiquiatrizao do social no Brasil, destacando seus principais momentos.

1.1 - Tese Psiquiatrizante

FOUCAUT

(1961)

relata como o dilogo entre a loucura e sociedade

durante a Idade Mdia e o Renascimento rompido para dar lugar perseguio ao desviante j no incio do sculo XVII. A partir da comea o processo de enclausuramento da irracionalidade como uma realizao do racionalismo e

mercantilismo emergentes. As freqentes crises econmicas e sociais, bem como as transformaes de valores e costumes na Sociedade Mercantilista, engendraram o aparecimento crescente dos insanos , pobres, mendigos, prostitutas, desocupados, filhos ilegtimos, delinqentes, sifilticos, etc., cuja irracionalidade posta em evidncia, encarou-se como perigosa e ameaadora da ordem e da estabilidade social(DURO, 1978: 13).

A soluo encontrada pelas autoridades absolutistas contra tal(1961: 38-64)

perigo constituiu-se no que FOUCAULT

chamou de

o grande

enclausuramento , qual seja, o recolhimento macio de todos os irracionais . Esta2

atitude varreu toda a Europa, atravs da institucionalizao nos Hospitais Gerais na Frana, Workhouses na Inglaterra3, Casas de Correo e Casas de Trabalho nos Estados Alemes, Hospitais de Insanos em Moscou, Narrenthurn em Viena, etc. Sob o pressuposto da converso do trabalho em dever moral, a provocadora populao irracional ficaria, deste modo, marginalizada e invisvel. Pretendeu-se que esses locais de clausura, cujo manejo interno se fundamentava no trabalho forado, se tornassem centros promotores do ethos do trabalho. Porm, tal estratgia fracassava com os loucos que, enfurecidos, negavamse ao trabalho, razo pela qual foram levados a celas especiais ou masmorras. Atirados ali, nus e acorrentados, eram exibidos ao pblico que pagava para v-los em suas jaulas. Para alm do entretenimento , a funo destes espetculos mrbidos era uma pedagogia poltico-moral obstinada em demonstrar o destino dos que escapassem ordem da Razo : [...] nunca ms concretamente que aqu fue el pblico objeto de la razn administrativa, objeto de su intencin educadora y creadora de ordem sobre un fondo de constriccin.(DRNER, 1974: 32).

Na primeira metade do sculo XVIII eclode em vrios pases europeus o processo de Industrializao e o Capitalismo, o que levar queda do Estado Absolutista e ascenso da Burguesia. no plasma das transformaes polticas, econmicas, ideolgicas, culturais e sociais deste perodo que nasce a Psiquiatria enquanto saber mdico cientfico , que justifica sociedade, agora laica e liberal, o enclausuramento do louco. Inspirado por ideais da Revoluo Francesa, pouco a pouco foram se firmando posies contrrias marginalizao dos irracionais , pedindo a sua libertao e integrao na sociedade, que se beneficiaria com a fora de trabalho liberada. Entretanto, nem todos faziam parte deste apelo liberal: os loucos e os criminosos permaneceriam enclausurados.

3

certo que a Casa de Loucos surgira na Inglaterra um sculo antes, mas ali o significado institucional estava relacionado caridade e proteo do desvalido e no ao controle social.

3

Pinel4, dando curso a um decreto da Assemblia Constituinte Francesa de 1790 (que em seu artigo 9 abolia as lettres de cachet5 ), reforma os hospitais, liberta os enclausurados, retira os loucos das masmorras e os liberta de seus grilhes. Sua liberao e reintegrao na sociedade, porm, passa a depender de tratamento mdico em hospitais especiais. Era a manuteno da Instituio Total, para usar uma expresso de GOFFMAN (1961), originada no antigo regime6. Processos semelhantes passaram-se na Inglaterra - Battie foi seu grande reformador - e mais tarde na Alemanha, tendo Griessinger como articulador principal(DURO, 1978: 16-19).

Guardadas as especificidades de cada realidade, as

reformas no manejo com a loucura nos pases europeus no final do sculo XVIII mantm um ncleo comum: (1) em primeiro lugar a loucura concebida como doena que deve ser tratada e curada, j que oferece perigo tanto ao seu portador quanto sociedade em geral7; (2) em segundo lugar impe-se a necessidade de uma instituio especial destinada ao tratamento mdico involuntrio do louco1980: 14-15). (CASTEL,

A medicalizao da loucura no significou um simples confisco da loucura pela Medicina. Sua institucionalizao mdica implicou la definicin de un nuevo estatuto jurdico, social y civil del loco: el alienado [..]. El elemento determinante que condiciona este estatuto es el internamiento en estabelecimiento especial(ibid 63, grifos do autor).

O autor pretende marcar que a implicao mais

importante da medicalizao da loucura foi o desenvolvimento de uma tecnologia hospitalar e o desdobramento de um novo tipo de poder institucional, poder este articulado pela aquisio de um novo mandato social a partir de prticas centradas na fortaleza manicomial.

4

Mdico participante da Revoluo Francesa, cujos trabalhos representam um marco na Institucionalizao da Psiquiatria como um ramo da Medicina. 5 Cartas fechadas, lacradas com selo real, e que exigiam o enclausuramento de uma pessoa. 6 A deciso da Assemblia Constituinte em 27 de maro de 1790, bem como os trabalhos do Mdico Pinel, delimitam, de acordo com CASTEL (1980), toda a problemtica moderna da loucura. 7 Este trao constituiu, e em muitos lugares ainda constitui (como o caso brasileiro) nas razes da tutela por parte do Estado, do indivduo diagnosticado como doente mental , particularmente os rotulados de esquizofrnicos .

4

Considerando a loucura um desvio da natureza imanente do indivduo, ou ainda, uma perturbao do seu autodomnio e perda da vontade racional, os mdicos passaram aplicao da teraputica moral, que fora desenvolvida e sistematizada por Pinel. Este tratamento, utilizado pela maioria dos psiquiatras at meados do sculo XIX, visava combater a loucura atravs de uma ordenao interna nos manicmios, isto , o estabelecimento de uma ordem rgida e policial no interior do asilo(DURO, 1978: 23).

CASTEL

(1980: 100)

ir enxergar nesta

teraputica o primeiro paradigma das relaes teraputicas em Medicina Mental: o paradigma da violncia e da soberania. As sucessivas crises do sistema burgus ao longo do sculo XIX buscaram uma resposta ideolgica no positivismo cientificista . Associada ao positivismo, a Psiquiatria desembocar numa Psiquiatria Somaticista, para quem a loucura ser, em hiptese, uma doena orgnico-cerebral. Limitando-se ao modelo mdico no estudo da loucura, os psiquiatras iniciam um intenso processo de investigao em torno das causas corporais , etiologia8, nosologia9 e teraputicas baseadas nas cincias naturais; a maior parte delas orientadas para medidas higinicas na Instituio, com vistas a proporcionar um ambiente adequado a uma reorganizao do organismo perturbado. A Psiquiatria demarca-se, ento, como uma especialidade mdica, que considera o louco como doente entre doentes, e abandona as prticas moralizantes do perodo anterior (DURO, 1978: 26-27). Na Alemanha, no final do sculo XIX comeo do sculo XX, Kraepelin realiza o que DURO(ibid: 29)

chama de sntese integrativa e unitria da

psiquiatria oficial e acadmica . Trata-se de uma elaborao sinttica do idealismo alemo com o cientificismo organicista positivista. Como resultado, produz-se uma Psiquiatria descritiva e nosogrfica, apta a classificar qualquer conduta considerada anmala socialmente. Esta Psiquiatria partia do dualismo corpo-alma, de acordo com o qual todas as disposies e aptides do carter humano emanariam da alma, e

8 9

Parte da Medicina que estuda a origem das doenas. Parte da Medicina que se preocupa com a descrio e classificao sistemtica das doenas.

5

portanto, qualquer alterao psquica deveria ter uma origem corporal, j que a imaterialidade do esprito no poderia adoecer. Kraepelin formula as bases para as grandes classificaes psiquitricas, e estabelece a catatonia e a hebefrenia como demncia precoce . Mais tarde Breuler absorve e amplia a nosologia de Kraepelin, e altera o termo demncia precoce para esquizofrenia . Tanto Kraepelin como Breuler entendiam que os transtornos psquicos so enfermidades do encfalo, e esperavam que a anatomopatologia descobrisse as leses causadoras dos sintomas(SZASZ, 1970; 1976; 1994).

Paralelamente aos trabalhos de Kraepelin e Breuler, e em reao s intenes mecanicistas do psicofisiologista Wundt de fazer da Psicologia uma cincia pura, nascem duas correntes psicolgicas (FBREGAS & CALAFAT, 1978: 75-77): (1) A primeira de autoria de Freud que, na esteira das pesquisas de Charcot a respeito da histeria, formula no comeo do sculo XX uma Teoria Geral do Psiquismo Humano (Psicanlise), compatvel com o dualismo cartesiano, mas em moldes distintos dos de Kraepelin, j que agora a doena localizar-se-ia no dinamismo de um suposto aparelho mental . Isto abriu o caminho para, alm da aceitao da doena mental como uma efetiva doena mdica e a Psicanlise como tratamento mdico pertinente, o desenvolvimento de uma nosologia psicopatolgica (SZASZ, 1974; 1976). A Psiquiatria associada ao movimento psicanaltico deu origem Psiquiatria Dinmica, que recebeu um grande impulso durante a Segunda Guerra Mundial (SANTOS, 1994: 19). (2) Fenomenolgica de Karl A Jasper segunda, que, a Psicologia Compreensiva e

fundida

Psiquiatria

Organicista,

instrumentaliza uma psicopatologia coerente com uma estrita causalidade biolgica e individual. Em sua obra Psicopatologia Geral Jasper distingue as manifestaes psquicas entre compreensveis (neurticas) e incompreensveis (psicticas). As primeiras seriam transtornos passageiros, cuja teraputica poderia se dar por meio de antidepressivos e orientao moral. As segundas seriam causadas por desarranjos cerebrais, a teraputica, neste caso, deveria ser mais incisiva: por tratar-se de uma6

doena incurvel e progressiva deveria seu possuidor ser trancafiado em manicmio(FBREGAS & CALAFAT, 1978: 76).

O desenvolvimento, ideologizao e materializao deste paradigma psiquitrico promoveu uma invaso constante no terreno da conduta humana, psiquiatrizando em ritmo crescente as diversas esferas das relaes sociais concretas (familiar, escolar, comunitria, laboral, etc).

7

1.2 - Anttese Despiquiatrizante

O avano da Psiquiatrizao do Social comea a encontrar resistncia a partir dos estudos socio-histricos da loucura, da psiquiatria e dos desviantes , entre o final da dcada de 50 e o incio da dcada de 6010 (Foucault, Bastide,Goffman, Castel, Drner, dentre outros),

bem como a partir das teorias e prticas da

Antipsiquiatria. A Antipsiquiatria11 estabeleceu-se como um movimento terico e prtico no interior da prpria Psiquiatria. Os diferentes matizes do movimento interseccionam-se quanto crtica, em aspectos distintos, de situaes e ideologias da Psiquiatria Clssica. FFREGAS & CALAFAT (1978: 95-120), desde um ponto de vista ttico-ideolgico, distinguem trs correntes antipsiquitricas: (1) DinmicoExistencial; (2) Poltico-Social; e (3) tico-Sociolgica. 1- A primeira corrente destacada, chamada de corrente Dinmico-Existencial, foi desenvolvida por R. D. Laing e seus colaboradores D. Cooper e A. Esterson, na Inglaterra, no final dos anos 50 incio dos anos 60. 2- A vertente tico-Sociolgica tem como sua maior expresso o psiquiatra norte-americano Thomas S. Szasz, cujo pensamento se estrutura em bases sociolgicas e ticas. 3- A ltima corrente antipsiquitrica destacada por FBREGAS & CALAFAT, a vertente Poltico-Social, de forte tradio marxista, caracteriza-se por pretender aproximar e ligar plos que freqentemente aparecem como distantes: o individual e o social. Para os autores desta corrente, a doena10

Houve no comeo deste sculo, no mbito da literatura, manifestaes crticas contundentes contra a psiquiatrizao, cuja expresso mais significativa representada por Antonin Artaud. 11 Termo cunhado por David Cooper em Psiquiatria e Antipsiquiatria , 1967. Em verdade, um termo ambguo e que se presta a confuses. No mbito de nossas discusses, consideraremos como Antipsiquitrica toda formulao terico/ prtica que se ope Psiquiatria Clssica e suas Instituies segregadoras.

8

deixa de ser uma situao ou produto individual, passando a converter-se em fruto das contradies internas do sistema social em que surgem. Assim, estabelecem como sinnimos da alienao mental , a alienao social , a alienao poltica e a alienao econmica . Dentro da corrente Poltico-Social os autores destacam as contribuies de Cooper (Inglaterra), Basaglia (Itlia), Deleuze e Guattari (Frana), e tambm as experincias do SPK alemo (Socialistisches Patientem Kollektiv) e do Radical Therapist americano. Mais adiante retornaremos a estas contribuies (particularmente s que tiveram repercusses no Brasil) para destacarmos suas vertentes temticas. Tanto nos Estados Unidos como na Europa, impulsionados pelo intuito de renovar a capacidade teraputica da Psiquiatria, liberando-a de suas funes de controle social, coao e segregao, foi empreendido um conjunto de reformas que muitas vezes significou transformaes em vrios aspectos nos sistemas de sade mental . Preocupados com o deslocamento do centro de atendimento ao doente mental do Manicmio para servios localizados no seio das comunidades, criaram-se redes assistenciais alternativas (Psiquiatria Comunitria, Psiquiatria de Setor, Centros Comunitrios de Sade, etc.). Longe da superao da psiquiatrizao, estas reformas representaram, em muitos casos, sistemas paralelos ao Manicmio, que permaneceu hegemnico. Pode-se mesmo dizer que produziram certa desospitalizao12, ou seja, um deslocamento do Hospital Psiquitrico do centro para a periferia do sistema de ateno psiquitrico clssico. Sintetizando este processo, nos termos em que prope BERTOLINO(1991),

sade mental , mantendo o paradigma

tem-se os seguintes momentos: (1) tese psiquiatrizante, compreendendo o

conjunto terico e prtico que define a doena mental como um processo mrbido e

12

H que se excetuar as experincias italianas, j que a Reforma Psiquitrica empreendida na Itlia buscou romper as barreiras da desospitalizao partindo para a desinstitucionalizao , tendo iniciado um processo de desmonte desde aparatos dicurssivos at legislativos e administrativos referentes doena mental . Contudo, em termos tericos/prticos at o momemo no rompeu as barreiras da simples desospitalizao Ver Rotelli, F. Desinstitucionalizao. Hucitec, 1990.

9

progressivo de origem orgnica ou mental que ataca o indivduo, deslocando-o da natureza humana, doena esta identificada a partir da observao meticulosa dos comportamentos desviantes , e que por representar perigo tanto para seu portador como para sociedade, devem os identificados ser internados e tratados em Hospitais prprios, ainda que contra sua vontade; (2) a sua negao, anttese despsiquiatrizante, constituda pelas crticas e proposies alternativas tese psiquiatrizante, que de forma variada questionam a existncia da doena mental nos termos propostos pela tese que negam, criticam a Instituio Psiquitrica e sua funo poltica (controle, segregao e violncia), identificam nos processos de sofrimento psquico uma alienao poltico-social-existencial do indivduo de modo a no justificar a ruptura entre sanidade/insanidade, normal/patolgico, e propem alternativas prticas no sentido de renovar a capacidade teraputica da psiquiatria, superando o ciclo de violncia, excluso e segregao; (3) a possibilidade da emergncia da sntese pspsiquiatrizante, definida como a direo para o qual o processo tende, onde tese e anttese seriam assimiladas por uma racionalidade e prtica mais abrangente. Quer dizer, a sntese como um por-vir no se constituiria do triunfo de um ou outro plo da contradio, mas do ultrapassamento dialtico de ambos.

10

1.3 - Processo Brasileiro: Contradio Dialtica entre Tese Psiquiatrizante e Anttese Despsiquiatrizante

A gnese da Psiquiatrizao do Social no Brasil encontra suas razes na primeira metade do sculo XIX. Tal como nos pases europeus do sculo XVII, os mendigos, loucos , rfos, desocupados, etc., so recolhidos sob a tica do binmio ordem-segurana, na Santa Casa de Misericrdia, na sede do Imprio (Rio de Janeiro). De acordo com RESENDE(1990: 30-34),

ainda que semelhante, a gnese do

processo de psiquiatrizao do social brasileiro no sculo XIX difere do processo europeu de dois sculos antes. Se para este ltimo a ruptura da ordem feudal e a emergncia do capitalismo mercantil determinam as circunstncias do seqestro daqueles que ameaavam a nova ordem , no primeiro, o nascimento das instituies segregadoras era contemporneo da sociedade rural pr-capitalista. Fundada no trabalho escravo, a economia brasileira neste perodo restringe o campo de ao dos homens livres, como tambm consubstancia o estigma de que aquele que no trabalha um ser indigno . Isto cria as condies para o surgimento crescente dos vadios (homens livres e no-proprietrios, que circulam pela cidade) que, por ameaar a ordem social so recolhidos. Seria, para repetir RESENDE (1990: 35), o grande enclausuramento brasileiro. Os loucos que, como na Europa Medieval, gozavam de certa tolerncia social, tambm so varridos das ruas em nome da manuteno da ordem. Assim como l, o tratamento com respeito a estes diferente. Sob os cuidados de religiosas, eles so amontoados nos pores da Santa Casa, merc de guardas e carcereiros. Vtimas de profundos maus tratos, morrem aos montes, por desnutrio e doenas infecciosas. A Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, produzindo em 1830 um diagnstico da situao do louco na cidade, defere profundas crticas ao Hospital Santa Casa de Misericrdia, propondo a criao de um espao especial para o tratamento do alienado. O ncleo bsico da argumentao dos mdicos que o Hospital no cura: retira o louco do convvio social em razo do perigo, porm 11

incapaz de atingir a loucura. Alm disso, o louco no considerado doente , no recebe tratamento fsico e moral condizente com sua doena , no existe repartio espacial dos doentes em espcie, no existe mdico especial, e no h condies higinicas (MACHADO et al, 1978: 423-424). Este movimento da Medicina marca, segundo Amarante(1994: 74),

o

incio do processo de medicalizao da loucura no Brasil13, processo em que a loucura passa a ser considerada uma doena especial que necessita de tratamento em espao especial. As crticas mdicas e o apoio e mediao de Jos Clemente Pereira (provedor da Santa Casa de Misericrdia e Ministro da Guerra) levaram criao do Hospcio Pedro II, inaugurado no Rio de Janeiro em 1852. Espao destinado privativamente para tratamento de alienados, o Pedro II, ainda sob direo das religiosas, a objetivao embrionria da institucionalizao da Psiquiatria no Brasil. Os mdicos apoiaram a criao do Pedro II por ser um espao destinado ao tratamento do louco. Contudo, pouco a pouco foram surgindo crticas, uma vez que a Medicina no ocupava o lugar central no controle da loucura. A reivindicao de centralizao do poder mdico referia-se tanto aos internos quanto ao pessoal administrativo. O Hospcio, ainda no assimilado como espao de cura, era frontal e publicamente atacado pelos mdicos. Teixeira Brando, o principal articulador da ofensiva mdica no perodo prximo Proclamao da Repblica, argumentava que a situao do Pedro II era marcada pelo monoplio de poder e de informaes por parte das religiosas, pelo uso da fora fsica na relao dos enfermeiros com os alienados e pelo conluio entre religiosas e enfermeiros contra os mdicos(MACHADO et al, 1978: 461).

As crticas dos mdicos no estavam dirigidas ao

asilo em si mesmo. Inspirados pela Psiquiatria Francesa, eles se articulavam no

13

Convm notar que no existe um corpo psiquitrico brasileiro constitudo neste perodo. As primeiras contribuies tericas sobre alienao mental no Brasil apresentam-se como exerccio de cunho universitrio, escolar e burocrtico, no refletem uma prtica existente. Fortemente influenciadas pela Psiquiatria Francesa, em particular pela produo de Esquirol, tematizam as problemticas prprias daqueles autores. Neste primeiro momento, tais contribuies tericas apresentam-se como mera repetio do saber estrangeiro (ver Machado et al op cit: 382-409).

12

sentido de promover o fortalecimento do Hospcio como pea fundamental, seja como espao teraputico, seja como local da produo do saber psiquitrico, seja para a hegemonizao da Medicina no campo da loucura. Com a Proclamao da Repblica o Pedro II sai do controle da Igreja e transforma-se no Hospital Nacional de Alienados, sendo dirigido por Teixeira Brando14, seguidor das idias da Psiquiatria Francesa. Sua gesto, de acordo com AMARANTE (1994: 76) caracterizada pela expanso dos asilos e pela sistematizao do espao de formao dos profissionais para a especialidade. A Psiquiatria, mediada pelos hospcios, universidades e Estado, produz e amplia seu corpo de conhecimentos e se estabelece no Brasil como nico conhecimento vlido sobre a loucura1994: 32). (SANTOS,

Juliano Moreira, substituto de Brando na Assistncia Mdico-Legal aos Alienados e vinculado tradio organicista alem15, continua o processo de expanso asilar16 de seu antecessor. A perspectiva alem introduzida por Juliano desenvolve a discusso etiolgica biologicista no Brasil, que passa a tematizar no apenas a origem da doena mental , como tambm o desenvolvimento de uma nosologia voltada a fatores e aspectos tnicos, polticos e ticos78). (AMARANTE, 1994: 77-

Gustavo Riedel funda, em 1923, a Liga Brasileira de Higiene Mental. Suas um programa de interveno no espao social, com

proposies constituem

caractersticas marcadamente eugenistas, [...] xenfobas, antiliberais e racistas(ibid: 78).

Buscavam o aprimoramento da raa brasileira , procurando criar um

indivduo mentalmente so: branco, racista, xenfobo, puritano, chauvinista e antiliberal (MACEDO, cit por SANTOS, 1994: 39).

14

Considerado o Pinel brasileiro, Teixeira Brando assume tambm a direo da Assistncia Mdico-Legal aos Alienados, primeira instituio pblica de sade estabelecida pela Repblica, criada um ms depois da reforma do Pedro II. 15 Juliano Moreira permanecer no cargo por 27 anos (1903-1930), sendo posteriormente destitudo pelo governo provisrio de Getlio Vargas. 16 Trata-se do modelo de Hospitais Colnia na assistncia loucura. O ethos do trabalho, um dos elementos articuladores da sociedade capitalista brasileira emergente, passa a ocupar o locus central da ao teraputica nos Hospitais Colnia, e tambm absorvido como baliza demarcatria dos limites entre normal e anormal.

13

A hegemonia dos princpios organicistas na praxis psiquitrica encontra resistncia com a penetrao do saber psicanaltico atravs de Franco da Rocha em 1919, e posteriormente com Durval Marcondes. O entusiasmo psiquitrico cresce nos anos 30 em funo das novas tcnicas teraputicas: choque insulnico, choque eltrico, lobotomia, etc. Tambm produzido durante a Nova Repblica o decreto 24.559/1934, que dispe sobre a profilaxia mental, a assistncia pessoa e aos bens dos psicopatas, bem como a fiscalizao dos servios psiquitricos. Este decreto constitui a mais ampla lei sobre doena mental j criada no Brasil. Inicia-se neste perodo uma poltica sistemtica de criao de Manicmios Estaduais fundado no modelo das Colnias Agrcolas de inspirao germnica. Tais Instituies iro ditar toda a poltica do setor nos Estados e constituir-se-o nos principais e nicos centros de formao tcnica e profissional(DELGADO, 1992: 46).

Os anos 50 vo assistir, por um lado, a um novo surto entusistico da Psiquiatria com o aparecimento dos psicofrmacos17, e por outro, a continuao da poltica de implantao dos Manicmios Estaduais Pblicos e a criao dos estabelecimentos privados. A unificao dos Institutos de Aposentadoria e a criao do INPS (Instituto Nacional de Previdncia Social), garantindo a assistncia psiquitrica no apenas nos hospitais pblicos como nos privados, engendrar nos anos 60 o nascimento da mercantilizao da loucura, ou se preferir, da industria da loucura: o Estado ao comprar os servios psiquitricos privados, cria as condies para a transformao da loucura em mercadoria. Com isto aumenta rpida e desordenadamente a oferta de leitos psiquitricos nas grandes cidades18.

17

A introduo dos psicofrmacos refora, poca, a perspectiva organicista de que as perturbaes psiquitricas so doenas mdicas, curveis com medicamentos especficos. 18 Este fato ser responsvel pela exploso das internaes em Hospitais Psiquitricos no pas. As internaes chegaram, num espao de 20 anos, a crescer 213%, enquanto que a populao aumentou 82%, no mesmo perodo (SANTOS, 1994: 59).

14

Por outro lado, as perspectivas das Psiquiatrias Preventivista19 e Comunitria, presentes no Brasil desde o final dos anos 50, ganham novo impulso a partir do lanamento do Programa Nacional de Sade Mental dos Estados Unidos em 1963, pelo ento Presidente John F. Kennedy. As Psiquiatrias Preventivista e Comunitria sintetizam um deslocamento radical do objeto da PsiquiatriaCOSTA, 1994) (BIRMAN &

que tradicionalmente se centrava nas enfermidades mentais. Elas passam

a privilegiar a sade mental, entendida neste contexto terico, como adaptao social. A relao sade-doena fica polarizada em termos de adaptao e desadaptao social. O enfoque central, neste caso, no curar, mas impedir que a doena aparea. No campo da assistncia, as Psiquiatrias Preventivista e Comunitria se opem ao modelo asilar, propondo rede de atendimento extra hospitalar, como ambulatrios, hospitais-dia, etc. Mesmo sendo os princpios preventivistas e comunitaristas assumidos como discurso oficial do Estado, o nmero de asilados cresce vertiginosamente (particularmente nos hospitais privados) nas dcadas de 60 e 70, chegando a representar, em 1978, entre 90-95% dos gastos do INAMPS -antigo INPS (SANTOS, 1994: 69). O modelo preventivista/comunitrio, influente no Brasil at os anos 80, amplia os horizontes da ao psiquitrica, uma vez que expande seu poder normatizador para alm dos muros dos asilos, alcanando o tecido social. Constitue uma...[...] forma abusiva de psiquiatrizao da vida social, com o nome de promoo de sade mental, j que a doena ou sua ameaa torna-se caracterizada como desadaptao social ou negativismo social. A teraputica ou a promoo da sade torna-se idntica realizao de prticas de ajustamento social. (BIRMAN & COSTA, 1994: 59)

As tentativas de racionalizao da assistncia psiquitrica (ancoradas na Psiquiatria Preventivista), que pretendiam a diminuio das internaes, ocuparam19

SILVA FILHO (1987: 98) define a Psiquiatria Preventivista como: apanhado genrico de noes de sade pblica, de teorias psicolgicas desenvolvidas por psicanalistas americanos e de estudos de higiene mental realizados por especialistas do exrcito norte-americano. Da sade pblica vm as noes de histria natural das doenas e preveno primria, secundria e terciria. Da psicologia americana a noo de crises vitais (evolutivas e acidentais) e do exrcito americano a noo de que os indivduos devem se adaptar ativa e realisticamente s dificuldades e circunstncias situacionais com relao s quais a doena mental representa uma tentativa de fuga e escape .

15

o centro das discusses e aes no campo da sade mental na dcada de 70, sem entretanto produzir reduo nas elevadas taxas de internao. No final dos anos 70 incio dos 80 comea a se expressar com maior significncia a anttese despsiquiatrizante. quando a questo da cidadania do louco ocupa lugar central. No bojo do processo de redemocratizao do pas, em um contexto de profunda crise no sistema de sade, e pressionado pelo Movimento de Reforma Sanitria o Ministrio da Sade convoca, em 1986, a 8a Conferncia Nacional de Sade (CNS). Realizada com a participao no apenas dos burocratas do Estado e tcnicos convidados, tal como nas outras, esta Conferncia se destaca pela participao de diversos segmentos da sociedade, deliberando sobre uma srie de resolues quanto a questo da sade no pas, e elaborando um conjunto de recomendaes para a Constituinte que se realizaria em 198720. Como princpios norteadores da formulao e gesto das polticas de sade, a 8a CNS prope, dentre outras coisas, a descentralizao, integralizao das aes, superando a dicotomia preventivo/curativo, a participao de setores representativos da sociedade, e o fortalecimento do papel dos municpios. Tais princpios influenciaro as deliberaes da Assemblia Nacional Constituinte, como por exemplo a criao do Sistema Integrado de Sade (Sistema nico de Sade - SUS). A I Conferncia Nacional de Sade Mental realizada em 1987, emerge como um desdobramento da 8a Conferncia Nacional de Sade. Tambm dela participam, alm de diversas categorias de profissionais em Sade Mental, mltiplos segmentos sociais, como partidos polticos, entidades religiosas, instituies privadas, associaes de usurios, etc. As propostas da Conferncia giram em torno da reverso do modelo Hospitalar reduo Custodial, para dos um modelo Extra-hospitalar e

multiprofissional,

progressiva

leitos

psiquitricos

existentes,

substituindo-os por leitos em Hospitais Gerais, proibio da construo de novos Hospitais Psiquitricos tradicionais, implantao de programas de recuperao da20

Nos anos que antecederam a Constituinte, vrios eventos foram realizados tomando como ponto central a questo da cidadania do louco . Os objetivos destes encontros tinham em vista a Reformulao Legislativa da Assistncia Psiquitrica no Brasil.

16

populao cronificada, e implantao de recursos alternativos aos asilaresFinal da I Conferncia Nacional de Sade Mental, 1987: 12).

(Relatrio

O ano de 1987 marcado tambm pela deciso do Movimento dos Trabalhadores em Sade Mental (articulado desde finais da dcada de 70) em se assumir como Movimento Social e lanarem o lema Por uma Sociedade sem Manicmios , remetendo para a Sociedade a discusso sobre a loucura, a doena mental , a Psiquiatria e os Manicmios. No final de 1990, convocada pela Organizao Mundial de Sade/Organizao Panamericana de Sade, realizou-se em Caracas a Conferncia sobre a Reestruturao da Assistncia Psiquitrica na Amrica Latina. Os resultados desta conferncia, publicada sob o ttulo Declarao de Caracas , influenciam fortemente o processo de transformao do modelo de ateno sade mental que se desenvolve no Brasil. Suas principais recomendaes situam-se fundamentalmente em reformas institucionais, abordando questes relativas aos direitos humanos, civis e polticos dos doentes mentais , diretrizes para propositura de alteraes legislativas referentes ao tema, e diretrizes relativas s transformaes no modelo de tratamento centrado no manicmio. A II Conferncia Nacional de Sade Mental, realizada no final de 1992, em clima de inquietao em face das possveis alteraes na relao entre o Estado e a Sociedade anunciados pela reviso constitucional de 1993, basicamente reafirma as deliberaes da I Conferncia, e prope que o dia 18 de maio passe a constar no calendrio oficial como o Dia Nacional da Luta por uma Sociedade sem Manicmios . A dcada de oitenta marca, portanto, por um lado, o desenvolvimento de variadas iniciativas prticas que visam o resgate da cidadania do sofredor psquico e a humanizao do tratamento, e por outro, uma crescente produo terica que se ocupa das diversas facetas da problemtica em tela, em particular a produo acadmica, marcada pela pluralidade temtica, epistemolgica e disciplinar. O17

conjunto destas iniciativas abrigar-se- no termo Reforma Psiquitrica . O termo no se reduz apenas a designar reformas no aparato assistencial do Estado (como o projeto de lei 3657/89 do Deputado Federal Paulo Delgado, apresentado em 198921; e a pulverizao em diversos Estados e Municpios brasileiros de projetos de legislao reformista, em moldes semelhantes ao projeto de Lei Federal 3657/89), mas pretende expressar a totalidade de um processo poltico e social que ...[...] implica simultaneamente foras e instituies sociais de origem diversa, incidindo sobre territrios heterogneos, como as disciplinas universitrias, o imaginrio social, a opinio pblica, o mercado de servios de sade, as corporaes profissionais, neoformaes corporativas - como grupo de familiares de pacientes - governos municipais, estaduais e federais, partidos polticos e outras. (DELGADO, 1992:44)

este processo de Reforma Psiquitrica , (como um processo prtico de desconstruo dos conceitos e das prticas da tese psiquiatrizante, envolvendo amplos setores sociais) ora avanando ora recuando, que demarca a problemtica da Psiquiatrizao/Despsiquiatrizao do Social no Brasil nos anos 80 e 90. A existncia de inmeros Hospitais Psiquitricos e a vigncia de dispositivos legais que negam o gozo pleno de todos os direitos aos loucos de todo gnero 22, ao lado de iniciativas tericas, prticas, polticas e legislativas que lutam pela superao do ciclo de reproduo da violncia e segregao psiquitricas no Brasil, delineia um contorno onde tese psiquiatrizante e anttese despsiquiatrizante confrontam-se dialeticamente.

21

O projeto de Lei 3657/89 que, dentre outras, coisas prope a extino gradativa dos hospitais psiquitricos e sua substituio por outras modalidades e prticas assistenciais, continua, at o momento da concluso desta pesquisa, aps dez anos de sua propositura, em processo de deciso no Congresso Nacional. 22 Expresso usada no Art. 5o inciso II do Cdigo Civil Brasileiro, e corroborada pelo Decreto Lei no 24.559 de 3 de julho de 1934, que dispe sobre a Assistncia e Proteo Pessoa e aos Bens dos Psicopatas (Decreto at este momento em vigncia).

18

1.4

Referncias Bibliogrficas

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20

CAPTULO II - Construo da Grade Analtica

21

2 - Construo da Grade Analtica

2.1- Metodologia

A tentativa heurstica de pr em relevo a objetivao da dialtica psiquiatrizao/despsiquiatrizao do social, no perfil relativo s produes acadmicas nacionais, gerou a necessidade metodolgica de uma clara

operacionalizao dos conceitos psiquiatrizao e despsiquiatrizao, em face da qual se pudesse distinguir os estudos de tendncia psiquiatrizante dos de tendncia despsiquiatrizante. Dito em outras palavras, o esforo de constituio de uma grade analtica, como instrumento de categorizao, se imps frente questo da tendncia que a produo acadmica nacional aponta, quando cortada transversalmente pela tica da psiquiatrizao/despsiquiatrizao do social. O elemento estruturante bsico da grade analtica proposto, emergiu da prpria estrutura bsica do fenmeno em estudo: um fenmeno dialtico. Neste caso, parte-se, conforme referido anteriormente, de que as proposies/aes despsiquiatrizantes (anttese despsiquiatrizante) encontram suas condies de possibilidade exatamente naquilo que negam (tese psiquiatrizante). Em resumo, todas as proposies/aes despsiquiatrizantes pressupem (e emergem de) um elemento psiquiatrizante que negam. Deste modo, as negaes, que revelam por contradio as afirmaes negadas, forneceram a base de construo dos indicadores de despsiquiatrizao, e por conseguinte, os de psiquiatrizao. Um segundo elemento estruturante resultou da objetivao histrica em termos geopolticos. Cronologicamente, os processos europeu e americano de negao da psiquiatrizao, antecederam e influenciaram o processo brasileiro, o que uma rpida reviso histrica pode confirmar. Contudo, isto no o mesmo que dizer que ambos os processos causaram ou determinaram o processo brasileiro. Eles apenas22

tiveram funo no campo de possibilidades brasileiro, ou seja, campo de possibilidades aqui definido como um no-ser que somente pode vir-a-ser pela praxis de quem o realiza. deste modo que a realidade brasileira no pode ser diluda em nenhuma outra, ainda que de um ponto de vista mais totalizante, ela (a realidade brasileira) revela- se como uma singularidade na universalidade do fenmeno que aqui se ocupa. A partir destes dois elementos estruturantes, procedemos reviso terico/prtica dos movimentos europeu e americano mais destacados pela literatura especializada, objetivando identificar seus ncleos temticos, atravs dos quais foram construdos os indicadores de psiquiatrizao e de despsiquiatrizao. A identificao destes ncleos temticos possibilitou, por outro lado, a compreenso da relao de funo entre a produo nacional e a produo internacional (de tendncia despsiquiatrizante). A reviso da literatura referente aos movimentos europeu e americano revelou uma riqueza e diversidade, das quais se destacou como mais representativas, as produes de Thomas Szasz (americano), Erving Goffman (americano), Franco Basaglia e equipe (italianos), Michel Foucault (francs), Deleuze e Guattari (franceses), alm de Ronald Laing, David Cooper e equipe (britnicos). Objetivando a depurao do instrumento de anlise, duas providncias metodolgicas foram tomadas. A primeira foi verificar possveis redundncias entre as expresses destacadas, e a segunda foi realizar uma pr-anlise dos dados, a fim de preliminarmente observar o grau de penetrao das mesmas, nas produes acadmicas nacionais. A constatao de que as preocupaes de Foucault estavam, em boa parte, presentes nas produes italianas, e as de Goffman claramente presentes tanto nas produes de Szasz como nas de Basaglia e equipe, subsidiou a deciso metodolgica de no inclu-los na grade analtica. A complexidade das temticas de Delleuze e Guatarri, o tempo disponvel para a realizao da pesquisa, como tambm a tmida presena de ambos, observada na pr-anlise dos dados, instrumentalizaram a deciso de no incluir essa importante expresso do movimento francs no campo constitutivo da grade analtica.23

Estabelecemos, portanto, trs vertentes para compor a grade analtica, denominadas, para efeitos de identificao, como: Vertente Britnica (Laing, Cooper e equipe), Vertente Italiana (Basaglia e equipe), e Vertente Americana (Szasz)23. Ser exposto a seguir cada uma delas, advertindo-se, porm, que no se trata de exposio exaustiva do pensamento dos autores, o que demandaria outro recurso metodolgico. Centrada em obras nucleares, e em obras paralelas a respeito dos mesmos, a exposio objetiva apenas indicar, o mais ordenadamente possvel, a origem e o horizonte dos temas que engendraram os indicadores de psiquiatrizao e de despsiquiatrizao. Ao final da exposio de cada vertente, aparecer um quadro contendo as principais teses e propostas de ao encontradas. Posteriormente, expor-se- a elaborao do cotejamento realizado entre as trs vertentes (destacando-lhes o trnsito disciplinar, bem como convergncias e diversificaes nas temticas). Tal elaborao subsidiou o terceiro elemento estruturante da grade analtica. Por fim, apresentar-se- a grade analtica propriamente dita.

23

A referencia a Italianos , Britnicos e Americanos , utilizada apenas como designao das vertentes descritas. O que no o mesmo que dizer que tais vertentes sejam unanimidades em seus pases de origem.

24

2.2 - Subsdios Para a Construo da Ferramenta de Anlise

2.2.1 - Vertente Britnica

A Vertente que aqui se designou de Britnica, foi desenvolvida por Laing, Cooper, Esterson (fundamentalmente) e outros, na Inglaterra, a partir do final da dcada de 50. No se pode, sem incorrer em erro, afirmar que a produo do grupo possa ser entendida como um corpo terico nico e homogneo, porm, guardadas as distines singulares entre os autores britnicos, poder-se-ia afirmar que praticamente tematizam de modo muito semelhante, e em cooperao, a maior parte de suas contribuies. Isto nos permite, em certo sentido, trat-los como uma unidade. Convm apontar tambm, que se trata de um grupo de psiquiatras que desenvolveram suas pesquisas como mdicos psiquiatras, atuando em Hospitais Psiquitricos e em Comunidades teraputicas. De acordo com FBREGAS & CALAFAT(1978: 95)

as produes

tericas de Laing e equipe esto ancoradas em quatro segmentos: no campo psiquitrico absorvem contribuies de Freud, M. Klein, Biswanger e Jung. Kierkgaard, Jasper, Heidegger, Sartre e Tillich sustentam suas razes filosficas. No campo sociolgico buscam contribuies, por um lado, em Marx, e por outro, nos americanos Goffman, Scheff e Levinson dentre outros. Por fim, nutrem-se dos trabalhos de Bateson e Waltzlawick no campo da comunicao humana. J em O Eu Dividido(1960),

sua primeira publicao, cuja redao

foi concluda em 1957, LAING antes de tratar do sujeito esquizofrnico , dedica-se a comparar o approach da Psiquiatria Clssica e da psicopatologia com o approach fenomenolgico-existencial, declarando este ltimo como mais apropriado realidade humana. Destaca a inconvenincia e o equvoco dos primeiros, quando25

recortam a pessoa de seu contexto de relaes, considerando-a como objeto (coisa). A crtica epistemolgica ali empreendida, segue no horizonte da crtica que a fenomenologia, apropriada pela sociologia e psicologia, defere contra a plataforma epistemolgica positivista, reivindicando os direitos da subjetividade em oposio objetividade (no sentido de coisificar), o que em termos epistemolgicos expresso na oposio entre explicar (prprio aos objetos fsicos-naturais) e compreender (prprio realidade humana). Posteriormente, enriquecidas com a Fenomenologia Existencialista Dialtica de Sartre, as reflexes epistemolgicas dos autores articulam, de maneira no dicotmica, subjetividade/objetividade, singular/universal e estrutura/histria. Deste modo discutem, a um s tempo, uma Antropologia estrutural e histrica, bem como uma Epistemologia Fenomenolgica e Dialtica (apropriada ao ser dialtico, que o homem). O epicentro crtico dirige-se ao modo como a Psiquiatria Clssica perde o sujeito, ao procurar em seu organismo as causas de uma suposta doena, presumida a partir de comportamentos desviantes (sintomas) que o sujeito tido como doente apresenta24. Em resumo, o approach Psiquitrico Clssico pressupe que uma vez que esteja lidando com uma doena , existem sintomas que podem ser observados na pessoa-objeto (coisa). Estes sintomas indicam um diagnstico que incorre em prognstico e tratamento. Contudo, o diagnstico precisa, por sua vez, de uma causa, e aqui as opinies divergem, mesmo que desprovidas de evidncias empricas: oscilam desde anormalidades bioqumicas, infeco virtica, defeito natural do crebro, constituio gentica, at causao psicolgica (COOPER, 1989: 16). Aprofundando suas reflexes Epistemolgicas, argumentam que a metodologia de compreenso das Cincias Antropolgicas deve diferir das Cincias da Natureza em razo do status ontolgico de seus objetos (COOPER. ibid: 19). A soluo proposta, encontra suas bases na distino entre duas racionalidades distintas, cada24

A Psicopatologia encarna o mesmo equvoco, uma vez que seu arcabouo conceitual tem um modo de funcionar anlogo quele em que funciona um organismo sadio e um meio de funcionar anlogo ao do organismo fisicamente doente (LAING, 1978: 23).

26

qual adequada a seu campo de realidade25: a racionalidade analtica e a racionalidade dialtica. A racionalidade analtica definida por COOPER como...[...] uma lgica da exterioridade, de acordo com a qual a verdade reside, conforme certos critrios, em proposies formadas fora da realidade s quais se referem. O modelo epistemolgico aqui caracterizado por uma passividade dual: o sistema observado passivo com respeito ao observador [...]; o observador passivo com relao ao sistema que observa; a atividade, que ele parece manifestar, limitada ao rearranjo conceitual dos fatos, que so registrados nele a partir de fora, e as inferncias que faz destes fatos. (id. ibid: 21).

Este tipo de racionalidade apropriado s cincias da natureza, onde os objetos so totalidades inertes, isto , algo completo, que por conseguinte, pode ser apreendido como um todo. Tais objetos obedecem a um determinismo do tipo mecanicista, ou se preferir, suas regularidades podem ser expressas desta maneira. A realidade humana, ao contrrio, por ser um perptuo movimento, a totalizao constitui seu modo de ser, e assim, no poderia ser apreendida por um mtodo que a paralisasse. A totalizao pertence razo dialtica, ope-se, pelo seu dinamismo, totalidade, que da ordem da razo analtica. A totalidade acabada, descontnua e esttica, enquanto que a totalizao um perptuo devir (BOSSEUR, 1976:41).

A racionalidade dialtica, dir COOPER

(1989: 23),

concreta, um mtodo de

conhecimento que permite apreender estruturas inteligveis em sua inteligibilidade , no seio de um movimento concreto sempre em curso de totalizao-destotalizaoretotalizao. Por conseguinte, a dialtica no apenas um princpio epistemolgico, como tambm um princpio antropolgico, quer dizer, refere-se a um setor da realidade que , em seu modo de ser, dialtico. Trata-se, portanto, de um mtodo de conhecer e de um movimento do objeto. Este movimento, ao contrrio dos objetos estudados pelas disciplinas cientfico-naturais, no um processo inerte, mas uma

25

Esta distino foi produzida por Sartre (Crtica de la Razn Dialctica, [1960] 1995).

27

praxis, ou seja, uma atividade totalizante. Em suma, a dialtica refere-se a duas atividades totalizantes, onde duas formas de unificao esto relacionadas:[...] a unificao unificante (o ato de conhecer) e a unificao unificada (o objeto conhecido). A ao humana, a interao e seus produtos sociais so inteligveis, se pudermos seguir nelas um padro de sntese de uma multiplicidade dentro de um todo. Se formos capazes de dar um passo adiante e vincular a praxis (atos de um indivduo ou grupo) a uma inteno de um indivduo ou grupo, ento teremos descoberto a compreensividade da praxis . Se, todavia, atravs da alienao, o ato vem se divorciar da inteno, poderemos ainda descobrir a inteligibilidade do ato, embora seja incompreensvel. (COOPER, 1989: 24).

A Psiquiatria Clssica mediada pela razo analtica exclui, por definio, qualquer compreenso das relaes de interioridade entre as pessoas, arranca o sujeito de seu contexto, reduzindo-o a uma entidade individual, constituda por meio de fatores exteriores a ele como pessoa. Dito em outras palavras, reduz o sujeito a um produto inerte de relaes mecnicas, sejam elas de natureza glandular, neural, mental, etc. O exposto at aqui permite destacar que as crticas epistemolgicas da Vertente Britnica so acompanhadas lado a lado por uma crtica antropolgica e metodolgica, onde uma est em relao de continuidade com as outras, quer dizer, a crtica epistemolgica Psiquiatria Clssica enraza-se no status ontolgico do ser que estuda: um ser dialtico (a realidade humana) exige uma racionalidade dialtica para ser conhecido. Estas consideraes fornecem, repetindo COOPER(1989: 26-27),

a

base de um esquema metaterico e metametodolgico para teorias a respeito das relaes humanas, desde relaes face a face, at o nvel mais totalizante que a Histria. Tal esquema deve ser progressivo e regressivo, sinttico, bem como analtico26: o ponto de partida so os atos da pessoa que se pretende conhecer. A partir destes atos rastrea-se a inteno ou intenes que esto relacionadas a uma prvia e mais bsica escolha do Eu (o projeto de ser, dir Sartre). Esta apresentao26

Este esquema tambm foi desenvolvido por Sartre (Crtica de la Razn Dialctica, [1960] 1995).

28

do Eu, que puro fluxo perpetuamente ultrapassando sua perpetua objetivao de si no mundo, a dialtica constituda. Aps a descrio Fenomenolgica deste momento constitudo, caminha-se, atravs de um movimento regressivo, em direo dialtica constitutiva (condicionamentos scio-ambientais, tais como as interaes intra e extra familiares, variveis relacionadas classe econmica, determinantes scio-histricas, etc). Em seguida, atravs de um movimento progressivo, atinge-se a sntese pessoal, a totalizao totalizada, quer dizer, a totalizao singular da totalizao universal condicionante, que est na base da totalizao de si. Com isto tem-se objetivada (conhecida objetivamente) a vida da pessoa, ou de algum setor especfico de sua vida. O movimento britnico centrou a maior parte de suas investigaes nos classificados de esquizofrnicos . Tal centralidade justificada, em primeiro lugar, pelo grande percentual de internaes em Hospitais Psiquitricos sob este rtulo . E, em segundo, por ser esta a doena modelo que sustenta toda a argumentao patolgica da Psiquiatria Clssica. Considerando o corte epistemolgico e antropolgico em relao Psiquiatria Clssica, bem como transitando na trilha aberta por Bateson27 em seus estudos sobre esquizofrenia e famlia, os britnicos empreenderam pesquisas que aprofundaram a compreenso dos atos psicticos dos chamados esquizofrnicos , tornando inteligvel o que desde Kraepelin fora tornado ininteligvel. A questo que presidiu as pesquisas foi [...] em que medida a experincia vivida e o

comportamento da pessoa que foi diagnosticada como esquizofrnica so inteligveis, se os considerarmos sob o ngulo da praxis e do processo de seu vnculo grupal?(LAING & ESTERSON, 1980: 24).

Os resultados, sempre em ritmo de enriquecimento

quanto aos detalhes das interaes grupais, apontam que [...] as experincias e o comportamento dos esquizofrnicos so socialmente muito mais compreensveis do

27

BATESON e a equipe de Palo Alto (1956) na California, Estados Unidos, haviam desenvolvido, at ento, o mais significativo estudo sobre a conexo entre esquizofrenia e interaes familiares.

29

que foi suposto pela maioria dos psiquiatras

28

(id. Ibid: 24).

dizer, na medida em que

se parte das microssituaes para as macrossituaes, verifica-se que a aparente irracionalidade do comportamento numa pequena escala, assume certa forma de inteligibilidade quando vista num contexto de relaes. O elemento nuclear da questo est na transcendncia do indivduo em relao ao grupo (familiar), isto , o momento em que a pessoa faz outra coisa do que foi feito dela(COOPER, ibid: 27).

A famlia, instituio que promove a mediao

entre o indivduo, os outros grupos (extrafamiliares), a Sociedade e o Estado, engendra o processo de alienao micro e macrossocial. Esta alienao est na base da objetivao de seres acrticos, esvaziados de interioridade (subjetividade) e produtivos. ela que engendra o aparecimento de pessoas aptas a se moverem luz de scripts pr-fixados, to necessrios manuteno da ordem das sociedades produtoras de mercadorias (COOPER, 1980: 26). Por este ngulo, a esquizofrenia alcana sua verdadeira significao no quadro terico dos autores. Ao invs de uma entidade mrbida que ataca o indivduo, aparece como uma forma de protesto inbil, j que invalidado pela famlia e posteriormente pela Psiquiatria. Mostra-se como sintoma, no sentido de um pedido de socorro, um grito, uma queixa que a pessoa emite quando seu ser-nomundo se tornou insuportvel: da o porqu de Laing afirmar que ningum sofre de esquizofrenia. A pessoa esquizofrnica29

(LAING, 1978: 35. Grifos do autor).

28

Esta sociognese contida nas constataes dos autores, nada tem a ver com as solues que propem ser a famlia a causa e o locus da esquizofrenia . Tal soluo, frisam os autores, padece do mesmo equvoco que a perspectiva clssica e psicopatolgica. O que fazem migrar o mesmo esquema interpretativo do indivduo para o grupo: [...] o indivduo no a unidade da doena, mas sim sua famlia [...]. A famlia (ou mesmo a sociedade, em maior escala) agora um tipo de hiperorganismo, com uma fisiologia e patologia que podem ser boas ou doentias (LAING e ESTERSON, 1980: 21). O grupo, argumentam os britnicos, tal qual a personalidade, um processo aberto que se movimenta dialeticamente. No se trata de uma totalidade, mas de um processo de totalizao-destotalizao-retotalizao. 29 Laing considera, ainda, a esquizofrenia ou a crise psictica, uma seqncia natural , com princpio meio e fim. Trata-se de uma seqncia de morte-renascimento em que a pessoa que retorna dela tem a impresso de renascer, de renovar-se, de reintegrar-se no mundo. Essa seqncia Laing chama de viagem . Para ele, toda a Psiquiatria procurou sustar, bloquear este trajeto. Neste caso, a hospitalizao e todas as teraputicas aplicadas (lobotomia, eletrochoque e quimioterapia) tem por finalidade direta e confessada sustar este processo, para que nada mude, tanto micro (famlia) como macro socialmente (LAING, 1983:59-76).

30

Como implicao resultante de suas pesquisas, os britnicos no estabelecem ruptura nem oposio entre sanidade e loucura. O pequeno hiato que separa o sadio do louco est no processo de violncia e invalidao a que est submetido o segundo; loucura e sanidade , deste modo, se opem a uma forma alienada de existncia - a que os autores definem como normalidade . A

normalidade encarada, portanto, como conformismo a um conjunto de normas sociais mais ou menos arbitrariamente pressupostos(COOPER, 1989: 32-34).

As relaes concretas entre os normais e os loucos so marcadas pela violncia. Caracterizada pela sutileza e tortuosidade, tal violncia no necessariamente fsica, mas psquica. Ela no se deixa apreender facilmente, revela-se nas aes de desqualificao e invalidao do ato autnomo e divergente, iniciada no seio da famlia e perpetrada pelos agentes da sociedade, particularmente a Psiquiatria:[...] a famlia, a fim de se preservar na sua inautntica maneira de viver, inventa uma doena. Sensvel a tais necessidades sociais generalizadas, a cincia mdica providenciou uma disciplina especial, a psiquiatria, para conceituar, formalizar e classificar esta doena e fornecer seu tratamento. (COOPER, 1989: 42).

Esta posio pe em relevo que a crtica da Vertente Britnica Psiquiatria Clssica ultrapassa as questes epistemolgicas e metodolgicas, dirigindo-se ao terreno tico e poltico, ao desvelar os instrumentos alienantes de manuteno da Ordem (funo poltica primordial da Psiquiatria Clssica). Opondose a este papel de agentes da norma , e enxergando nos atos psicticos uma tentativa de libertao de estruturas alienantes, os autores fundaram, no perodo entre 1964 e 1970 nos arredores de Londres, vrios lares (comunidades teraputicas) fora do Hospital, destinados a acompanhar as pessoas em seu processo de libertao. Estas iniciativas alternativas foram impulsionadas pela experincia que Cooper havia levado a cabo em 1962 em um Hospital Psiquitrico (Pavilho 21), cujos resultados so relatados no livro Psiquiatria e Antipsiquiatria. A articulao daquelas comunidades coadunava-se com a convico dos autores de que no Hospital

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Psiquitrico tradicional seria impossvel o trabalho de acompanhamento da pessoa que se encontra em viagem , em termos no repressivos. As preocupaes polticas conduzem os autores, particularmente Cooper, discusso de processos totalizantes de alcance social mais amplo. Transitando em terreno marxista, Cooper destaca, contudo, a dimenso ontolgica da infra-estrutura, isto , a fonte da interao e da interpenetraoBOSSEUR, 1976: 85). (COOPER apud

Dito em outras palavras, o autor tematiza em termos dialticos e

no dicotmicos, as relaes entre estruturas objetivas e subjetivas, indivduo e grupo, relaes macro e micro sociais. Neste sentido, os processos descritos sobre as relaes de alienao e violncia na famlia apresentam-se como instrumentos de condicionamento ideolgico, uma espcie de engrenagem social encarregada de reforar o poder real da classe dominante numa sociedade que tem seus alicerces na explorao. Cooper(1980: 26)

propor que antes da revoluo mundial seria

preciso comear por experincias pr-revolucionrias, em escala micro social. Tratase de um programa pr-revolucionrio para unidades isoladas (indivduos e comunidades) que se tornariam permanentes aps a revoluo. Tais formaes assumiriam um carter de centros revolucionrios de conscincia , constitudos de grupos no-formais, espontneos, no-institucionais, agindo independentemente de estruturas burocrticas e formais, cuja finalidade seria preservar a personalidade de cada um e permitir o espao de transcendncia e reciprocidade com os outros:[...] o carater revolucionrio desses grupos assenta na exploso da contradio entre sociedade burguesa que tudo domina, que forma pessoas annimas, comanda-as, classifica-as em categorias, e aquelas pessoas que, apesar de tudo, querem justamente gritar seu nome e anunciar sua obra em face do mundo. (COOPER, 1980: 55)

A seguir apresenta-se um quadro contendo as principais teses e propostas da Vetente Britnica, elaborado com base nas temticas acima sintetizadas.

32

2.2.1.1 - Principais Teses e Propostas de Ao da Vertente BritnicaTematiza A racionalidade dialtica como a racionalidade apropriada s cincias humanas, cujos objetos de estudo so, em seu estatuto ontolgico, dialticos. A racionalidade dialtica partindo da dialtica entre sistema observado - observador, como tambm da dialtica do prprio sistema observado, produz uma lgica da interioridade-exteriorizada, ou seja, uma inteligibilidade totalizadora de estruturas em processo contnuo de totalizaodestotalizao-retotalizao. Uma antropologia estrutural e histrica, de acordo com a qual o homem um tipo de ser resultante de um processo histrico de relaes que estabelece com os outros, o mundo e as contingncias. Um ser livre (no sentido ontolgico) que, ao realizar a si realiza a histria e vice-versa, num movimento perptuo de totalizao. Em oposio A racionalidade analtica, apropriada s cincias da natureza, cujos objetos de estudo so totalidades inertes, sem interioridade subjetiva. A racionalidade analtica partindo da dupla passividade entre sistema observado - observador, produz uma lgica da exterioridade, ou seja, um rearranjo conceitual dos fatos tomados de fora. Uma antropologia dualista, de acordo com a qual o ser do Homem constitudo por duas substncias distintas, que funcionam em paralelo ou interagindo (conforme a vertente terica): uma substncia extensa e outra substncia no extensa. Tal dualidade expressa de diversas maneiras, tais como, corpo e alma, corpo e mente, etc. As relaes entre estruturas objetivas e subjetivas tomadas dicotomicamente, de modo que uma mantm com a outra uma conexo causal. Para uns (objetivistas) a objetividade determina a subjetividade, para outros (subjetivistas) a subjetividade quem determina a objetividade. Os comportamentos psicticos dos sujeitos ditos esquizofrnicos so absolutamente ininteligveis. Crise psictica como manifestao de entidade mrbida (seja ela psquica ou orgnica) que se apossa do indivduo, deslocando-o da natureza humana.

As relaes entre estruturas objetivas e subjetivas interagindo dialeticamente, de modo que uma mantm com a outra uma unidade dialtica constitutiva e indissolvel.

Os comportamentos psicticos dos sujeitos ditos esquizofrnicos como inteligveis, quando tomados em sua interioridade e no contexto das relaes do mesmo. A crise psictica como um momento de protesto inbil da pessoa como ser-no-mundo, em circunstncias scioexistenciais insustentveis. Isto , emerge em processo de transcendncia intenso, onde a pessoa pode vir a se demarcar dialeticamente como singularidade (personalidade) no seio da universalidade (grupo), experimentando-se como sujeito de seu ser, do grupo e da histria. A loucura e sanidade como modos menos alienado de ser-nomundo. Entre ambos os modos de ser, a relao no de ruptura nem de oposio, a distncia que os separam est no processo de invalidao e violncia a que fica submetido o segundo. A sanidade aparece em oposio normalidade, entendida como modo alienado de ser, no qual a pessoa se move a partir da exterioridade (conjunto de normas mais ou menos arbitrariamente pressupostas). A esquizofrenia como resultante de um processo de relaes micro (familiares) e macro (sociais), envolvendo alienao, invalidao, desqualificao de ser, e violncia. Propostas de relaes de mediao entre pessoas; relaes que envolvam implicao ontolgica (reciprocidade) e no apenas limites ticos e morais, e que permitam as condies de possibilidade para processos de singularizao no seio do grupo (transcendncia), gerando, desta maneira, seres humanos menos alienados e com a histria em suas mos . Propostas de engajamento da psiquiatria em processos de formao de uma cultura e praxis compatvel com o ser dialtico que o homem (desalienao), e em processos de

A loucura como o outro da sanidade. Entre ambos a relao de oposio e descontinuidade, onde a loucura aparece como a queda no no propriamente humano .

A esquizofrenia como resultado mecnico de desordens biolgicas ou mentais. Relaes entre pessoas marcadas por processos de negao e desqualificao de ser (violncia e invalidao) de todos os atos autnomos e de transcendncia, gerando seres humanos alienados de si, do grupo e da histria, aptos ao trabalho e obedincia. Psiquiatria como agncia que conceitua, classifica e segrega os atos autnomos e de transcendncia, objetivando-se como uma33

transformao prtica da realidade socio-histrica (processos revolucionrios).

Proposta de lares (comunidades teraputicas) fora do Hospital, destinados a acompanhar e assessorar as pessoas (se estas o desejassem) complicadas em seu processo de transcendncia (Loucura). Propostas de um programa pr-revolucionrio permanente, de escala micro-social, constitudo de grupos no formais, espontneos e no institucionais, agindo margem das estruturas burocrticas, e que visam preservar a personalidade de cada um e permitir o espao de transcendncia e reciprocidade com os outros.

das instituies guardis da ordem em sociedades produtoras de mercadorias (instrumento de manuteno da tica burguesa). Hospitais Psiquitricos como instituies destinadas a segregar e curar os ditos doentes mentais , impedindo, desta forma, a emergncia de processos de transcendncia e de transformao micro e macro social. Relaes coletivas sem interioridade, cuja unidade estabelecida por elementos externos, tais como, o Estado, a moral e toda forma de dever-ser pr-determinado.

34

2.2.1.2

Referncias Bibliogrficas

BOSSEUR, Chantal. Introduo Antipsiquiatria. [1974]. Rio de Janeiro : Zahar, 1976. COOPER, David. Psiquiatria e Antipsiquiatria. [1967]. 2. ed. So Paulo : Perspectiva, 1989. _______. A Morte da Famlia. So Paulo: Martins Fontes. 1980. FBREGAS, J.L.; CALAFAT, A. Poltica da Psiquiatria. Lisboa : Moraes, 1978 LAING, R.D. & ESTERSON, A. Sanidade Loucura e a Famlia. Belo Horizonte:

Interlivros. 1980LAING, R.D. O Eu Dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura. [1969] 3. ed. Petrpolis : Vozes, 1978. _______. A Poltica da Famlia. 2.ed. So Paulo : Martins Fontes, 1983. SARTRE, J. P. Crtica de la Razn Dialctica. [1960]. 4. ed. Buenos Aires : Losada, 1995.

35

2.2.2 - Vertente Italiana

Designamos de Vertente Italiana o movimento prtico-terico de negao da Psiquiatria Clssica, gerado pelas iniciativas de Franco Basaglia e equipe30, no inicio dos anos 60, no Hospital Psiquitrico de Gorizia e posteriormente, a partir dos anos 70, no Hospital de Trieste, ambos na Itlia. A caracterstica fundamental que atravessa de ponta a ponta esta tradio crtica, a primazia da prtica. Tal primazia defendida em oposio a um empirismo pragmtico, afirma-se como prtica que exige o esforo dialtico de conceituao, cujo limite a prpria prtica. Dito de outra maneira, a primazia da prtica como princpio orientador da ao, no trata, neste contexto terico, de um simples fazer, mas de condies de possibilidade para a produo de outra realidade e de outra cultura. Trata-se portanto, de um fazer-ser-outro. Transcende tambm uma mera mudana terica, como uma espcie de recmbio ideolgico, para lanar-se num projeto...[...] de demolio concreta de uma cultura, possvel somente se, contemporaneamente, outras culturas pudessem ser construdas: outra sustentao, outro suporte, outro conceito de sade e de doena, de normalidade e de loucura. (FRANCA BASAGLIA, 1996: 13).

Seria conveniente, antes de adentrarmos nas vertentes temticas da produo italiana, destacar alguns poucos momentos da trajetria pessoal de Basaglia (o principal expoente do grupo), uma vez que esta trajetria demarca, em certo sentido, a trajetria dos italianos. Em funo de sua militncia na resistncia italiana, Basaglia ainda muito jovem, foi tornado prisioneiro em sua cidade natal (Veneza) pelos fascistas, at30

Rotelli, Dell Acqua, Venturini, De Leonardis e Mauri, principais colaboradores de Basaglia, que alm de ampliar os conceitos por ele desenvolvidos, introduzem a discusso dos aspectos epistemolgicos do saber psiquitrico. Tal como o fizemos quando tratamos da Vertente Britnica, consideramos o trabalho italiano de modo homogneo, a partir dos denominadores comuns s diferentes contribuies, deixando de lado as diferenas que pudessem ocorrer entre seus componentes.

36

o final da II Grande Guerra Mundial. Sua experincia nas condies do crcere lhe ser de grande importncia posteriormente. Libertado da priso no final guerra, Basaglia ingressa na Faculdade de Medicina de Padova. Permanecer na academia por 12 anos como professor de Psiquiatria, abandonando a ctedra em 1961, para dirigir o Hospital Psiquitrico de Gorizia. A realidade da situao dos pacientes com a qual se deparou no Hospital, remeteu-lhe s condies que havia experimentado no perodo em que estivera preso. Em face disto, iniciou um conjunto de transformaes internas na Instituio, que deram curso a uma das maiores e mais profundas Reformas Psiquitricas, cujas razes se esparramam em mltiplas dimenses:[...] do microcosmo da relao teraputica (e das concepes e prticas de tratamento) dimenso da construo de uma nova poltica psiquitrica (e das concepes e prticas da ao poltica). (ROTELLI, 1990: 25).

Se se quisesse estabelecer um ponto originrio da produo italiana, poder-se-ia fincar uma estaca nesta constatao e desejo de mudana radical do dado, vivido por Basaglia quando de seus primeiros contatos com a realidade Institucional Psiquitrica de Gorizia. Alguns anos depois das primeiras iniciativas, as experincias inovadoras de Gorizia alcanam notoriedade internacional no bojo dos movimentos estudantis e operrios que sacodiram a Europa no final dos anos 60. Porm, em meio a um clima de intensa oposio poltico-social local, a experincia de Gorizia chega ao fim em 1968. As reflexes de Basaglia e equipe sobre o processo de Gorizia so publicadas no livro A Instituio Negada: relato de um Hospital Psiquitrico, a obra nuclear e mais conhecida do grupo (particularmente no Brasil). Em 1971 Basaglia e equipe assumem o Hospital Psiquitrico de Trieste, dando um salto qualitativo em relao Gorizia, j que iniciaram um processo de desativao do manicmio com a gradual reinsero dos internados em ncleos sociais, criando estruturas de suporte para a defesa da sade e recebendo apoio popular, poltico e social. A influncia destes trabalhos na cultura e sociedade italiana acaba por produzir alteraes profundas na legislao. A lei 180, como ficou37

conhecida a lei de Reforma Psiquitrica italiana, foi aprovada em 197831. Sua implantao (cujo elemento primordial produzir uma nova maneira de pensar, viver e agir em relao loucura), lenta, gradual, com recuos e avanos, ainda hoje, aps vinte anos, marca o processo italiano. De acordo com AMARANTE(1996: 25),

o projeto do grupo italiano

apoia-se em obras de um conjunto diversificado de autores, dos quais destaca Sartre, Hegel, Husserl, Heiddeger, Merleau-Ponty, Binswanger, Gramsci, Althusser, Foucault, Goffman, Adorno, Marcuse, Fromm, Horkheimer, Habermas, Artaud, Parsons, Martin, Maxwell Jones, Tosquelles, Bonnaf, Fanon, Laing e Cooper. Inspirados pela reflexo terica fenomenolgica-existencial, a equipe de Gorizia recusa aceitar a hiptese da incompreensibilidade da pessoa considerada doente mental . Dispostos a compreender a pessoa concreta em seu sofrimento, opuseram-se ao etiquetamento nosogrfico da pessoa, etiquetamento este,

construdo a partir de categorias fechadas e sustentadas por uma entidade abstrata: doena mental(BARROS, 1994: 58-59).

Para enfrentar a situao de violncia e desumanidade encontrada no Hospital de Gorizia, os inovadores italianos buscam, a princpio, referncias prticotericas nas experincias de Comunidades Teraputicas. Tosquelles (psicoterapia institucional francesa) e Maxwell Jones (comunidades teraputicas britnicas) tornam-se as principais fontes de referncia. Embora fundamentais, tais referncias no foram tomadas como modelos acabados e verdadeiros, mas sim no sentido de ser um ponto de referncia genrico, com condies para justificar os primeiros passos de uma ao de negao da realidade do manicmio(BASAGLIA, 1985: 112.

31

De acordo com KINOSHITA (1990: 68-69), os pontos centrais da Lei 180 so: (a) proibio de construo de novos hospitais, bem como a internao de pacientes psiquitricos naquelas estruturas; (b) os servios territoriais tornam-se os responsveis pela sade mental de uma dada populao e coordenam o conjunto de estruturas necessrias; (c) abolio do estatuto de periculosidade social do doente mental, a tutela jurdica, a internao compulsria e o tratamento compulsrio. Ainda de acordo com o autor, a abolio da periculosidade social abre uma fissura na contradio psiquitrica, que experimentada pelos profissionais em termos de contradio entre tratamento e custdia, entre mandato social de conteno e controle da demanda daqueles que tm sofrimento psquico.

38

Grifos do autor).

O propsito originrio deste primeiro momento era a transformao

do manicmio em Hospital de cura , a ser viabili