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GRAGOATÁ ISSN 1413-9073 Gragoatá Niterói n. 21 p. 1-400 2. sem. 2006 n. 154p. 1-140 2. sem. 2003 n. 21 2 o semestre 2006 Política Editorial A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura.

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GraGoatá

ISSN 1413-9073

Gragoatá Niterói n. 21 p. 1-400 2. sem. 2006 n. 154 p. 1-140 2. sem. 2003

n. 21 2o semestre 2006

Política Editorial

a revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e Literatura.

Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense Direitos desta edição reservados à EdUFF – Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 – anexo – sobreloja – Icaraí – Niterói – RJ – CEP 24220-008 Tel.: (21) 2629-5287 – Telefax: (21)2629-5288 – http://www.eduff.uff.br – E-mail: [email protected]

Projeto gráfico:Capa:Revisão:Normalização:Editoração:Supervisão GráficaCoordenação editorial:Periodicidade:Tiragem:

Reitor:Vice-Reitor:Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação:Diretor da EdUFF:Conselho Editorial:

Conselho Consultivo:

Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. MErogério MartinsMariangela Rios de Oliveira e Jussara AbraçadoCaroline Brito de OliveiraJosé Luiz Stalleiken MartinsKáthia M. P. MacedoRicardo Borges Semestral500 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Ana Pizarro (Univ. de Santiago do Chile)Cleonice Berardinelli (UFRJ)Eurídice Figueiredo (UFF)Evanildo Bechara (UERJ)Hélder Macedo (King’s College)Lourenço de Rosário (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa)Lucia Teixeira (UFF)Malcolm Coulthard (Univ. de Birmingham)Maria Luiza Braga (UFRJ)Marlene Correia (UFRJ)Michel Laban (Univ. de Paris III)Mieke Bal (Univ. de Amsterdã)Nádia Battela Gotlib (USP)Nélson H. Vieira (Univ. de Brown)Ria Lemaire (Univ. de Poitiers)Silviano Santiago (UFF)Teun van Dijk (Univ. de Amsterdã)Vilma arêas (UNICAMP)Walter Moser (Univ. de Montreal)

© 2007 by

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

APOIO PROPP/CAPES / CNPqUNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense.— n. 1 (jul./dez. 1996) - . — Niterói : EdUFF, 1996 – v.17 : il. ; 26 cm.

Semestral ISSN 1413-9073.

1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-Graduação em Letras. CDD 800

Roberto de Souza SallesAntônio José dos Santos PeçanhaHumberto Machado FernandesMauro Romero Leal PassosMariângela Oliveira (UFF) – PresidenteLívia de Freitas Reis (UFF)Eneida Maria de Souza (UFMG)Solange Vereza (UFF)Silvio Renato Jorge (UFF)José Luiz Fiorin (USP)Leila Bárbara (PUC-SP)Lucia Helena (UFF)Eurídice Figueiredo (UFF)Regina Zilberman (PUC-RS)Laura Padilha (UFF)Jussara Abraçado (UFF)

Sumárion.21 2ºsemestre2006

GraGoatá

Apresentação ................................................................................... 5

ARTIGOS

Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no Brasil nos séculos XVIII e XIX ...............11MárioEduardoMartelottaA estrutura argumental das construções deverbais em -dor ..27Nubiacira Fernandes de Oliveira Correlações função-forma em dois períodos do século XX: indícios de especialização funcional ...........................................43Maria Alice Tavares Gramaticalização de conjunções coordenativas: a história de uma conclusiva ................................................................................59Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de......73Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza BragaMudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização ................87Ana Lúcia dos Prazeres CostaTransitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer ................................ 101Célia Maria Medeiros Barbosa da SilvaEstrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto ............................................................................................... 115Maria Angélica Furtado da Cunha “Restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção de “unidade de informação” ...133Maria Beatriz Nascimento DecatGramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional ......................................... 147Sebastião Carlos Leite GonçalvesA gradação tipológica das construções de voz ......................... 167Roberto Gomes Camacho

Ressonância e graus de transitividade na conversação espontânea em português ............................................................191Maria Elizabeth Fonseca Saraiva Aspectos semântico-cognitivos da intensificação ..................201JoséRomeritoSilvaUsos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português .................................................................219Carlos Alexandre GonçalvesUsos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise .............................................................................................243Ida Rebelo e Paulo OsórioO uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português afro-brasileiro ................................269VívianMeiraO papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de .........................................289Angelina Aparecida de PinaAquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais ................................................................303Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon e Márcia Cristina PontesVieiraA construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa ........................................................... 319Cláudia Roncarati e Sílvia Regina Neves da SilvaIdentité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle ...............................................339Patrick CharaudeauRepresentação e intervenção: produção da subjetividade na linguagem .......................................................................................355Décio RochaUm ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos ...............................373Luciana Salazar Salgado

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apresentação

o tema deste número 21 da revista Gragoatá, usos lin-güísticos, contempla reflexões acerca das seguintes questões: continuidade, variabilidade e mudança dos usos lingüísticos; derivação e estabilidade de sentido e de forma na língua; a ex-pressão lingüística como história e como atualização; o passado e o presente no continuum das línguas; as relações entre língua, sociedade e sujeito; e relações interpessoais, tais como: negocia-ção, polidez e conflito.

Buscando adequar-se à natureza do tema a que se dedica, a Gragoatá21, no que diz respeitoà ordenação dos artigos que reúne, apresenta-se organizada em forma de um continuum: os trabalhos voltados para o estudo de unidades lingüísticas me-nores ou de fenômenos mais específicos antecedem aqueles que se detêm na investigação de unidades maiores ou de fenômenos de caráter mais abrangente.

De acordo com tal disposição, o primeiro artigo, de autoria de Mário Eduardo Martelotta, trata da ordem dos advérbios qualitativos em –mente, nos séculos XVIII e XIX. analisando a ordenação que caracteriza tais advérbios em cartas escritas no Brasil da época, Martelotta se propõe a demonstrar o gradual desaparecimento da tendência, já detectada em fases anteriores da evolução do português, ao posicionamento desses advérbios antes do verbo.

No artigo seguinte, de Nubiacira Fernandes de Oliveira, o centro de interesse é a estrutura argumental de construções deverbais com o sufixo –dor. Em seu trabalho, a autora busca examinar os processos de interação entre propriedades morfos-sintáticas, semânticas e pragmáticas, visando ao estabelecimento de traços gerais de interpretação caracterizadores de tais constru-ções. Para tanto, investiga a relação entre o sufixo e a estrutura temática das bases com as quais o sufixo ocorre, focalizando, em particular, as seguintes questões: (1) em que medida a estrutura argumental da construção deverbal corresponde à estrutura argumental da base? (2) como o caso agente se manifesta nas construções derivadas em -dor?

Partindo da constatação de que, como resultado de seus processos de gramaticalização, os conectores e, aí e então pos-suem funções sobrepostas no português brasileiro, Maria Alice Tavares, à luz do suporte teórico da lingüística funcional, estuda os padrões de correlação entre e, aí e entãoe três dessas funções: seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito. tavares analisa dados oriundos de As vinhas da ira, romance escrito por John Steinbeck em 1939 (cuja tradução brasileira,

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datada de 1940, apresenta marcas do dialeto usado nos anos trinta pelas classes populares do estado do rio Grande do Sul) e de 48 entrevistas provenientes do Banco de Dados VARSUL, que foram coletadas ao longo da última década do século XX. a partir dos resultados encontrados, tavares chega às seguin-tes conclusões: (1) e, aí e entãointercalam-se na codificação da seqüenciação textual, da seqüenciação temporal e da introdu-ção de efeito na primeira e na segunda metade do século XX; e (2) houve mudanças nos padrões de correlação função-forma, uma vez que, na década de trinta, aí e então são muito menos utilizados para codificar algumas das funções em tela do que na década de noventa.

Aspectos relativos à gramaticalização de conjunções co-ordenativas constituem o foco de atenção do artigo escrito por Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi. Apoiando-se no pressu-posto de que fatores de ordem cognitiva e pragmática interagem para a criação de novos itens gramaticais, a autora adota uma concepção de coordenação fundamentada em critérios semânti-co-funcionais e busca reconstruir o percurso histórico-evolutivo da conjunção conclusiva logo, com base em fontes históricas do português.

Maria Luiza Braga e Maria da Conceição Paiva discutem, em seu trabalho, os empregos de por causa (de) que, no discurso oral, buscando identificar as equivalências e diferenças que apresentam os usos dessa locução conjuntiva em relação à con-junção prototípica porque e ao sintagma preposicional por causa de no discurso oral. através de uma análise comparativa de algumas propriedades sintáticas e semântico-discursivas dessas três construções causais, as autoras destacam as restrições ao uso da conjunção perifrástica por causa (de) que e a pertinência de distingui-la da conjunção inteiramente gramaticalizada por-que, apresentando evidênciasfavoráveis à conclusão de que o processo de gramaticalização de uma locução conjuntiva opera inicialmente no nível representacional.

Pesquisas recentes têm abordado a gramaticalização do verbo ir/movimento em verbo auxiliar. O estudo realizado por Ana Lúcia dos Prazeres Costa intenta mostrar: (1) que este au-xiliar não ocorre somente na expressão do futuro, mas também em variação com o futuro do pretérito; (2) que o uso da perí-frase verbal com ir tem se tornado mais freqüente; (3) que, até a primeira metade do século XX, este auxiliar concorria com outro, haverde, no contexto de variação considerado. Visando à realização de um estudo de mudança em tempo real de longa duração, o material objeto de análise foi extraído de amostra constituída por peças teatrais.

No artigo de Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva, cumprem-se os seguintes objetivos: analisar a transitividade do

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verbo fazer em dados de textos reais (orais e escritos) e compa-rar o desencontro entre o conceito de transitividade puramente teórico, trabalhado pela gramática tradicional, e aquele que, no âmbito da lingüística funcional contemporânea, refere-se ao ato discursivo/comunicativo do falante. São também discutidas, com base nos resultados encontrados na análise dos dados, diversifi-cadas possibilidades de se analisar a transitividade a partir da manifestação discursiva do verbo.

Maria Angélica Furtado da Cunha focaliza, em seu texto, a relação gramatical objeto direto sob a perspectiva funcionalista do estudo da língua. analisa os aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos relacionados ao objeto direto, tomando as pro-priedades sintáticas como derivadas de propriedades semânti-cas e sintáticas do verbo a que o objeto direto está relacionado. os dados empíricos submetidos à análise correspondem a oito narrativas conversacionais extraídas do Corpus Discurso & Gra-mática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. . Com base nos resultados obtidos, a autora propõe um tratamento gra-diente da relação gramatical em estudo, através de uma escala que ordenaria os objetos diretos de acordo com o seu grau de prototipicidade.

O artigo de autoria de Maria Beatriz Nascimento Decat apresenta uma análise de cunho funcionalista das estruturas de “ilhas” (denominação oriunda da teoria gerativista), objetivando demonstrar que as restrições estabelecidas por tais ilhas, em re-lação à ocorrência de constituintes em determinados lugares da estrutura, devem-se ao fato de elas constituírem, funcionalmente, “unidades de informação”, não permitindo, portanto, a extração ou movimento de constituintes para fora de seus limites.

recorrendo a dois tipos de construção com predicados matrizes (parecer e achar/crer), diferentes no estatuto argumen-tal da completiva (sujeito ou complemento, respectivamente) e semelhantes na codificação das atitudes subjetivas do falante (evidencial/modal epistêmico), Sebastião Carlos Leite Gon-çalves mostra, em seu artigo, a tendência a gramaticalização e dessentencialização dessas construções que, segundo evidências encontradas, desvinculam-se de suas orações encaixadas e reca-tegorizam-se como satélites atitudinais. Essa alteração sintática, observa o autor, afeta a construção complexa, que passa de bi-clausal para monoclausal.

Roberto Gomes Camacho ocupa-se, em seu artigo, da caracterização tipológica da passiva. Nesse sentido, desenvolve análise pautada em dados extraídos do corpus compartilhado do Projeto de Gramática do Português Falado, que consiste numa amostragem do material coletado pelo Projeto da Norma Urbana Culta (NURC)/Brasil, gravados com informantes cultos procedentes de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Baseando-se na noção givoniana _ segundo a qual a mul-

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tifuncionalidade da voz verbal envolve três domínios funcionais: atribuição de um tópico, impessoalização e detransitivização _, Camacho estabelece como principal interesse de seu trabalho o de fornecer, com base nos referidos domínios, uma caracteriza-ção escalar e não discreta para as diferentes construções de voz disponíveis na gramática do português.

O artigo de autoria de Maria Elizabeth Fonseca Saraiva examina e quantifica o grau de transitividade (segundo a acepção de tHoMPSoN & HoPPEr, 2001) de enunciados ressoantes, isto é, enunciados proferidos por interlocutores diferentes em que se estabelece uma relação de mapeamento tanto estrutural quanto lexical. A análise é norteada por princípios da abordagem funcionalista, em seu modelo norte-americano, e os dados ana-lisados foram extraídos de conversações espontâneas que fazem parte do banco de dados do Grupo de Estudos Funcionalistas da Linguagem (GREF).

José Romerito Silva estuda os processos de intensificação, no que diz respeito aos seus aspectos semântico-cognitivos. Para tanto, busca subsídios teóricos da Semântica Cognitiva, segundo a qual a linguagem codifica os esquemas cognitivos estruturados a partir de nossa experiência com a realidade. Essa codificação, propõe o autor, reflete combinações metafóricas existentes entre domínios de natureza mais “concreta”, adquiridos a partir do modo como conceptualizamos nossa relação com o mundo, e outros de natureza mais abstrata. A análise e os resultados en-contrados têm como suporte dados extraídos do Corpus Discurso & Gramática, constituído de textos orais e escritos, e de textos avulsos coletados, principalmente, de jornais e revistas.

Carlos Alexandre Gonçalves, no artigo “Usos morfológicos: os processos marginais de formação de palavras em português”, abre uma série de trabalhos que, a partir de perspectivas teórica e metodológica diversas, abordam a rica e complexa questão dos usos lingüísticos. Em seu texto, com base na morfologia prosódica, Gonçalves circunscreve o foco de análise aos proces-sos não-concatenativos de formação de palavras do português brasileiro. Para tanto, o autor propõe que tais operações mor-fonológicas sejam distribuídas em três grupos de fenômenos: afixação não-linear (reduplicação), encurtamento (truncamento e hipocorização) e fusão (mesclagem lexical e siglagem).

No texto seguinte, Ida Rebelo e Paulo Osório apresentam e analisam distintos usos do verbo ficar na norma brasileira do português contemporâneo. os autores, partindo dos postulados da gramática funcional de Dik e das variadas acepções de ficar articuladas na comunidade lingüística do Brasil, levantam, descrevem, classificam e interpretam esses usos, levando em consideração os moldes de predicado e os definidores semânticos envolvidos nessas articulações. Em análise pautada em parâme-tros semântico e funcional-pragmático, Rebelo e Osório traçam

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a diversidade de usos de ficar, concluindo ser esta uma formaverbal mutacional.

Em “o uso do modo subjuntivo em orações relativas e com-pletivas no português afro-brasileiro”, Vívian Meira investiga, com base no suporte teórico-metodológico da sociolingüística variacionista, a expressão do subjuntivo em construções oracio-nais complexas de quatro comunidades rurais afro-brasileiras do interior da Bahia. Em sua pesquisa, diferentemente dos re-sultados obtidos sobre o estudo desse modo verbal no português urbano do Brasil, Meira observa que o subjuntivo ganha espaço em relação ao indicativo, revelando um processo de aquisição que passa, necessariamente, por fatores de ordem morfológica e semântica. Tal condição faz com que a autora confirme a realidadebipolarizada do português brasileiro, fruto de duas trajetórias históricas diversas – a urbana e a rural, com suas específicas realidades lingüísticas.

Angelina Aparecida de Pina, com base na lingüística cog-nitiva e na teoria dos espaços mentais, trata do papel da mescla-gem conceptual desempenhada na construção do significado do angulador do português umtipode. a autora analisa sentenças articuladas por esse angulador, chegando à conclusão de que o significado de umtipode depende da mesclagem conceptual que a construção incita: um mapeamento entre um espaço input (entidade) e um outro espaço input (categoria / membro mais prototípico de uma categoria), um espaço genérico, uma projeção parcial para o espaço mescla (a entidade, a categoria / membro mais prototípico de uma categoria e algumas propriedades partilhadas) e uma estrutura emergente (categoria flexível / hiperonímia).

No artigo “Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais”, Christina Abreu Gomes, Aline Ro-drigues Benayon e Márcia Cristina Pontes Vieira apresentam os resultados de três pesquisas que focalizam a aquisição da variação estruturada de padrões fonológicos por crianças do Rio de Janeiro, tendo os modelos baseados no uso como referencial teórico. Nessa abordagem, as autoras assumem que a variação sociolingüística é representacional, não uma regra, conforme a tradição dos estudos sociolingüísticos, e é parte do conhecimento lingüístico do falante, que deve ser adquirido. Abreu, Benayon e Vieira propõem que distribuições de freqüência das variantes ob-servadas na produção das crianças por faixa etária sejam vistas como reflexos da maneira como as variantes são armazenadas e adquiridas, defendendo ainda que gradualidade e efeitos de freqüência permeiam o processo de aquisição lingüística.

No artigo seguinte, Cláudia Roncarati e Sílvia Regina Ne-ves da Silva ampliam o foco de abordagem dos usos lingüísticos, ao tratarem da noção de cadeia referencial na progressão textual e da questão dos usos referenciais e atributivos no processo de

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construção do objeto-de-discurso. Em “A construção da referên-cia e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa”, as autoras adotam enfoque metateórico, pautando-se na teoria da referenciação de base sócio-cognitiva interativa, para identificar cadeias referenciais na progressão de três textos de gêneros diversos, na demonstração de que a construção da referência e seus mecanismos de articulação é traço constitutivo de todos os objetos-de-discurso.

os usos discursivos, na perspectiva dos sujeitos comuni-cantes e interpretantes, são também objeto de investigação de Patrick Charaudeau em “Identité sociale et indetité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle”. Aqui o autor destaca a complexidade de que se reveste a questão da identidade, tanto a social quanto a discursiva, que resulta do entrecruzamento de uma série de fatores ou motivações. A par da diversidade apontada, Charaudeau destaca a tensão entre o caráter multifacetado da identidade e a tentativa de fazê-la una e essencial.

A complexidade e a subjetividade dos usos lingüísticos é abordada por Décio rocha no artigo “representação e interven-ção: produção de subjetividade na linguagem”. o autor, a partir do conceito de cenografia de Maingueneau, analisa declarações concedidas pelo presidente Bush imediatamente após o 11 de setembro de 2001. Com base no duplo papel da linguagem – re-presentação e intervenção, rocha levanta, descreve e interpreta as marcas lingüísticas do discurso presidencial norte-americano em sua articulação relacional entre o sujeito e o mundo, proble-matizando ainda as conexões entre identidade e alteridade.

No último artigo, “Um ethos para Hércules – considera-ções sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos”, Luciana Salazar Salgado aborda o tema dos usos lin-güísticos numa feição distinta dos demais. A autora, com base em Maingueneau, discute a questão da autoria e seu processo de constituição, analisando excertos de tratamento editorial de uma versão dos Doze Trabalhos de Hércules, nos quais alterações sutis da cenografia discursiva alteram o ethos que dela participa, matizando o mito. Salgado enfatiza que, para a reflexão sobre a produção editorial e para uma prática de edição proveitosa, é necessário compreender a maneira pela qual os diferentes atores envolvidos com a publicação dão sentido aos textos que transmitem, imprimem e lêem.

Jussara Abraçado e Mariangela Rios de Oliveira

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 11-26, 2. sem. 2006

ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no

Brasil nos séculos XVIII e XIXMarioEduardoMartelotta

Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 15, ago. 2006

ResumoEste trabalho consiste em uma análise da ordena-ção que caracteriza os advérbios qualitativos em -mente, em cartas escritas no Brasil nos séculos XVIII e XIX. O objetivo é demonstrar o gradual desaparecimento, que se dá do século XVIII para o século XIX, da tendência que esses advérbios possuem de se colocar antes do verbo, já detectada em fases anteriores da evolução do português.

Palavras-chave: advérbio, ordenação, gramati-calização, mudança lingüística.

Gragoatá MarioEduardoMartelotta

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O objetivo do presente trabalho é fazer uma análise das tendências de ordenação dos advérbios qualitativos1 derivados em -mente em textos escritos nos séculos XVIII e XIX. Busca-se observar, sobretudo, os advérbios referentes a verbos, já que os qualitativos em -mente que modificam adjetivos, particípios e outros advérbios não apresentam mudanças em suas tendências de ordenação no período de tempo analisado.

Para que se tenha uma noção mais precisa dos objetivos deste trabalho, é importante ressaltar que, embora o foco esteja nos séculos XVIII e XIX, o que se busca aqui é observar um pro-cesso de mudança mais amplo. Em outras palavras, esta pesquisa é parte de uma análise mais geral, que observa a mudança nas tendências de ordenação dos advérbios qualitativos do latim ao português atual (MORAES PINTO, 2002; MARTELOTTA; BAR-BOSA; LEITÃO, 2002; MARTELOTTA, 2004; MARTELOTTA; PROCESSY, 2006).

Em Martelotta e Processy (2006), observa-se um levanta-mento de ocorrência de advérbios qualitativos, temporais e es-paciais em textos do latim clássico. Os resultados dessa pesquisa apontam para o fato de que, no latim clássico, os advérbios, de um modo geral, tendem fortemente a ocorrer antes do verbo,2 tendência já mencionada em Marouzeau (1949) para os qualita-tivos bem e mal e os intensificadores muito e pouco.

Analisando textos escritos em língua portuguesa, Marte-lotta (2004) apresenta uma comparação entre as tendências de ordenação dos advérbios qualitativos bem e mal nas fases arcai-ca e atual, que demonstrou características distintas para esses dois períodos da evolução de nossa língua. Esses advérbios, na fase arcaica, podem aparecer não apenas depois do verbo, como ocorre atualmente, mas também antes do verbo. o mesmo ocorre com advérbios qualitativos em -mente, como se observa nos exemplos abaixo:

(1) [...] nos daram com a graça de nosso senhor deus e de nosa senhora santa marya grande auantajem pêra bem e folgadamentedesenbargarmos [...] (DIAS, 1982)

(2) Creo uerdadeyrame~ te que Jhesu Christo he uerdadeyro Deus [...] (MALER, 1956)

Nota-se que, no exemplo (1), o advérbio folgadamenteapa-rece antes do verbo (desenbargarmos) e, no exemplo (2), depois do verbo (creo). Entretanto é nas cláusulas com altos graus de gramaticalização3 que se encontra a grande maioria das ocor-rências pré-verbais de qualitativos no português arcaico:

(3) [...] que Deus faça dyno pera por uos dignamente orar [...] (DIAS, 1982)

Os textos do português atual, diferentemente, demonstra-ram uma propensão, que se manifesta quase categoricamente, de esses advérbios4 ocorrerem após o verbo, em cláusulas gramati-calizadas (reduzidas de infinitivo) ou não. Eis um exemplo:

1 Estamos aqui chaman-do de qualitativos os vo-cábulos tradicionalmen-te classificados como advérbios de modo.2 Essa tendência se man-tém mesmo em casos em que a frase não termina com o verbo.3 De acordo com Hopper e traugott (2003) as cláu-sulas hipotáticas (tradi-cionalmente chamadas de adverbiais) e as su-bordinadas, sobretudo as reduzidas, apresen-tam níveis maiores de gramaticalização.4 Essa propensão se ma-nifesta mais fortemente com os advérbios qua-litativos bem e mal do que com os terminados em -mente, que parecem ter mais mobilidade na cláusula. Isso, provavel-mente, se dá pelo fato de bem e mal serem monos-sílabos, tendendo a se fixar junto aos verbos a que se referem, chegan-do, em alguns casos, a se tornarem prefixos (bendizer, maldizer).

Ordenação dos advérbios qualitativos em –mente no português escrito no Brasil nos séculos xViiiexix

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(4) As festas de família, os aniversários, os batizados, os ca-samentos, as doenças e a morte estreitam calorosamente os laços. (BOFF, 1998)

No que se refere ao século XIX, Martelotta e Vlček (2006), em uma pesquisa sobre os advérbios qualitativos em -mente em cartas de leitores e de redatores, escritas em três fases, ou períodos de tempo, do século XIX, apontaram uma tendência de as ocorrências pré-verbais desses advérbios desaparecem gradualmente com o passar do tempo. Na primeira fase (de 1808 a 1840), há mais ocorrências de posições pré-verbais do que na segunda (1841 a 1870), que, por sua vez, apresenta maior tendên-cia à pré-posição do que a terceira (1871 a 1900). Isso aponta para uma mudança, no século XIX, da ordenação desses advérbios em direção à pós-posição, característica desses elementos no português atual.

Nesse sentido, trabalha-se aqui com a hipótese de que há uma trajetória de mudança gradual a partir do latim, segundo a qual os advérbios qualitativos passam progressivamente da posição pré-verbal para a pós-verbal. Essa mudança se inicia nas cláusulas menos gramaticalizadas5 e vai passando, em seguida, para as mais gramaticalizadas.

a posição pré-verbal latina começa a desaparecer nas cláu-sulas justapostas ou coordenadas, ficando ainda perceptível, do português arcaico ao português do século XIX, nas cláusulas hipotáticas e subordinadas, sobretudo, na formas reduzidas, que apresentam maiores graus de encaixamento ou gramaticalização. Isso ocorre porque as mais gramaticalizadas apresentam graus maiores de cristalização e, conseqüentemente, graus maiores de pressuposicionalidade (GIVÓN, 1979). Com o tempo, essa tendência vai desaparecendo também nas cláusulas encaixadas e o século XIX parece ser o período em que essa mudança se efetivou.

Com base nesses dados, este trabalho partiu das seguintes hipóteses:

a) Serão encontradas mais ocorrências de qualitativos em -mente em posição pré-verbal no século XVIII do que no século XIX, já que a mudança nas tendências de ordena-ção desses elementos se dá de modo gradual.

b) as ocorrências de qualitativos em -mente em posição pré-verbal tenderão a aparecer em cláusulas com graus maio-res de gramaticalização em ambos os séculos analisados. Na base dessa hipótese, está a proposta de Givón (1979), segundo a qual essas cláusulas são mais conservadoras em termos de ordenação, o que significa que elas tendem a preservar a antiga colocação pré-verbal latina.

c) a distribuição das ocorrências pré-verbais se apresentará de modo diferente nos dois séculos analisados. A tendên-cia é o desaparecimento dessas ocorrências em cláusulas

5 Entre as menos gra-maticalizadas estão as cláusulas justapostas e coordenadas, que Ho-pper e traugott (1993) caracterizam como ca-sos de parataxe.

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menos gramaticalizadas durante século XIX, já que essas cláusulas são afetadas inicialmente pela mudança. Isso significa que o século XVIII tenderá a exibir mais quali-tativos em -mente pré-verbais em cláusulas justapostas e coordenadas do que o século XIX.

d) os qualitativos em -mente tenderão a aparecer próximos ao verbo. Subjacente a essa hipótese está o subprincípio icônico da proximidade (GIVON, 1990), que propõe uma relação entre proximidade semântica e proximidade sin-tática. Segundo esse subprincípio, entidades que estão próximas funcionalmente, conceptualmente ou cogni-tivamente ocorrerão próximas no nível da codificação. ou seja, os qualitativos, que indicam o modo como se dá a ação verbal, interferindo substancialmente em seu sentido, tendem a ocorrer próximos ao verbo.

MetodologiaEste trabalho visa a apontar as tendências de ordenação

dos advérbios qualitativos em -mente em textos escritos nos sé-culos XVIII e XIX. Para que um trabalho comparativo entre estes dois séculos pudesse ser feito, foram analisadas as ocorrências destes advérbios em cartas escritas no Rio de Janeiro nos dois períodos.

o material analisado do séc. XVIII é constituído de cartas oficiais e de comércio, bem como de documentos particulares e cartas comuns; pertencentes ao acervo do PHPB-RJ (BARBOSA; LOPES, 2003). Foram também analisadas duas cartas de adminis-tração pública, representações oficiais do Rio de Janeiro, obtidas no corpus do Museu da Língua Portuguesa - Estação da Luz.6 Embora as ocorrências de qualitativos em -mente,nesses textos, seja muito reduzida, será feita uma leitura das tendências gerais de ordenação neste século.

Os textos do séc. XIX englobam, na medida do possível, documentos de natureza semelhante aos do século XIX: cartas oficiais e cartas escritas no Rio de Janeiro. Foram também obser-vadas cartas pessoais, como as cartas a Rui Barbosa, bem como cartas de leitores e redatores publicadas em jornais cariocas. Todo o material referente a este período foi obtido a partir do corpus do PHPB-RJ (BARBOSA; LOPES, 2003).

Buscou-se observar as ocorrências dos advérbios com base em duas variáveis: posição na cláusula e grau de gramaticalização da cláusula. A partir de agora será feita uma exposição acerca dessas variáveis, começando pelas posições na cláusula:

Posições pré-verbaisa) advérbio + Verbo (aV)

(5) ... porem nossa consciencia tranquilla nos affiança de | não termos offendido o melindre, e nosso correspondente |

6 D i s p o n í v e l e m : <http://estacaodaluz.org.br >.

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a quem cordialmente respeitamos. (PHPB - Carta de Redator no 8, 1a Fase)

Posições pós-verbaisa) Verbo + advérbio (aV):

(6) O futuro te espera grandioso: - prepara-te dignamente para êle. (séc. XVIII, Carta a Rui Barbosa, no 217.1.(2))

b) Verbo + X7 + advérbio (VXa)(7) ... atiram-se sedentes de sangue como | féras, sobre a

pobre victima que desprevenida | assistia ao espetaculo impu-nemente, de que elles | proprios se tinham tornado actores na noite de | 13 do corrente: e o povo ainda teve de sujar as | mãos, medindo n’aquella occasião, a sua força | com a espada de um sicario. (PHPB - Carta de Leitor no 6, 3a Fase)

além dessas posições, encontramos alguns casos em que o advérbio se relaciona a em locuções verbais (ex: hãodejudiciosa-mente convir, devesurprehender inteiramente). Foram encontrados casos em que o advérbio ocorre ao final e no meio da locução. Por apresentar características sintáticas distintas, optou-se por não levar em conta esses dados na análise quantitativa.

Grau de gramaticalização das cláusulasDe acordo com Hopper e traugott (2003), os períodos

complexos baseiam-se em uma trajetória com três pontos de aglomeração, como se segue:

1 - Parataxe ou independência relativa, exceto como restrin-gida pela pragmática de fazer sentido e relevância.

2 - Hipotaxe ou interdependência, em que há um núcleo e uma ou mais cláusulas que não podem ficar sozinhas e que são, por conseguinte, relativamente dependentes. Entretanto elas não se incluem completamente em qual-quer constituinte do núcleo.8

3 - Subordinação, ou, em sua forma extrema, encaixamento; em outras palavras, dependência completa, em que uma margem está completamente incluída no núcleo.

Esses pontos de aglomeração podem ser caracterizados pela seguinte trajetória de gramaticalização em direção a es-truturas mais encaixadas, ou, em outras palavras, mais grama-ticalizadas:

parataxe > hipotaxe > subordinação-dependente +dependente +dependente-encaixada -encaixada +encaixada

Isso significa que as cláusulas subordinadas são mais gra-maticalizadas do que as hipotáticas, por apresentarem níveis maiores de dependência e encaixamento. Do mesmo modo,

7 X é qualquer elemento lingüístico que ocorra entre o advérbio e o ver-bo, como um elemento de natureza argumental ou outro advérbio.8 as hipotáticas incluem as tradicionalmente cha-madas subordinadas adverbiais e adjetivas explicativas.

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as cláusulas hipotáticas são mais gramaticalizadas do que as paratáticas.

No que se refere às cláusulas reduzidas, partiremos, com Givón (1990), da proposta de que a redução da subordinada reflete graus maiores de integração. O autor propõe ainda que a existência de diferentes graus de encaixamento ou integração entre a cláusula principal e sua subordinada com função de obje-to relaciona-se ao conceito de iconicidade, mais especificamente ao subprincípio da proximidade. Segundo essa proposta, há um isomorfismo entre a semântica e a sintaxe da complementação verbal, no sentido de que os graus de integração sintática entre as cláusulas não refletem aspectos arbitrários, sendo, ao contrá-rio, a expressão gramatical dos níveis de vinculação semântica entre o evento expresso pela cláusula principal e o expresso pela subordinada.

Givón (1990) propõe os seguintes princípios de iconicidade para a sintaxe da complementação:

a) Quanto mais integrados são dois eventos, mais integra-dos são os verbos que os exprimem. Uma das principais manifestações da vinculação semântica é o nível de controle do sujeito da principal sobre o sujeito da subor-dinada: em JoãofezMariasair, por exemplo, o controle do sujeito da principal sobre o da subordinada é maior do que em João pediu que Maria saísse, em que não há garantia de que Maria, de fato, tenha saído.

b) Quanto mais integrados são dois eventos, menor a proba-bilidade de eles serem separados por um subordinador, ou mesmo por uma pausa física.

c) Dada uma hierarquia de graus de agentividade, AG>DAT > ACC > OUTROS, quanto mais integrados são os dois eventos, menos agentivo será o sujeito da cláusula complemento.

d) Dada uma hierarquia de graus de finitude (em oposição a graus de nominalidade), da forma verbal, os mais in-tegrados são os casos que apresentam o verbo da subor-dinada com características mais nominais e com menos morfologia verbal.

Gramaticalização e estrutura sintáticaDe acordo com Givón (1979), a maior liberdade e variedade

de elementos significativos tende a ocorrer na cláusula principal, declarativa, afirmativa, ativa. Por outro lado, tanto no que se refere a itens lexicais quanto a construções sintáticas, a distribuição dos elementos significativos, em todos os outros tipos de cláusula, é sempre mais restrita.

Isso ocorre em função do fenômeno da pressuposição dis-cursiva, ou seja, o grau de pressuposicionalidade no qual uma sentença é usada. Esse fenômeno está relacionado ao nível de

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dificuldade que o falante acha que o ouvinte terá em determinar uma única referência para um referente no discurso. E, segundo Givón (1979), a cláusula principal, declarativa, afirmativa, ativa apre-senta a complexidade pressuposicional mais baixa no discurso, se comparada a todos as outras variantes sintáticas.

Givón (1979) apresenta várias propriedades formais dessas variantes sintáticas, em relação ao seu grau de pressuposicio-nalidade:

1- Variantes mais pressuposicionais exibem maiorcomple-xidade sintática.

2- Variantes mais pressuposicionais apresentam maiores restrições distribucionais do que os padrões neutros.

3- Variantes mais pressuposicionais são gramaticalizadas mais tarde por crianças, ou pelo menos sua sintaxe é adquirida mais tarde do que as variantes menos pressu-posicionais.

4- Variantes mais pressuposicionais freqüentemente ten-dem a exibir grande conservadorismo sintático, mais comumente na área da mudança de ordenação.

5- a cláusula principal declarativa, afirmativa, ativa, neutra e menos pressuposicional é também a mais freqüente no discurso.

Dentre essas propriedades, são especialmente interessantes para este trabalho as de número 1, 2 e 4, já que se propõe aqui que as cláusulas gramaticalizadas, e, portanto, mais restritas distribucionalmente e mais complexas sintaticamente, tendem a ser mais conservadoras, apresentando as tendências de distri-buição dos advérbiosem -mente mais antigas.

As pressuposições discursivas das construções sintáticasa noção de pressuposição é entendida aqui como um con-

junto de informações que estão fora da sentença e que são assu-midas pelo falante como evidentes ou indiscutíveis. Em outras palavras, aquilo que é pressuposto tende a refletir conhecimentos compartilhados, crenças comuns ou conhecimento presumido como conhecido.

Seguindo Givón (1979), esta pesquisa não adota a distinção entre pressuposição lógica e pressuposição pragmática, já que parte do princípio de que todo fenômeno pressuposicional nas línguas naturais é pragmático. Nas palavras de Givón (1979), o fenômeno da pressuposição, tem a ver com: “as hipóteses que o falante assume acerca da habilidade do ouvinte de identificar unificadamente (‘estabelecer uma única referência para’) um argumento-referente.” (p. 50)

Nesse sentido, Givón (1979) apresenta as variantes sintá-ticas que se caracterizam por maior grau de pressuposiciona-lidade:

1. Construções estritamente pressuposicionais. Cláusulas rela-

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tivas, clivadas, pseudo-clivadas e perguntas QU. 2. Cláusulas encaixadas.3. Outros atos de fala. Imperativo, interrogativo e negativo.4. Construções envolvendo graus de definitude-topica-

lidade dos argumentos. Mudança de tópico, passiva, pronomes anafóricos, etc.

De acordo com o autor, essas construções apresentam or-denação mais conservadora dos elementos argumentais. Mas esse raciocínio pode ser estendido para as características de ordenação de elementos adverbiais. De fato, como já foi mencio-nado, o nível de encaixamento ou gramaticalização da cláusula tem influência sobre as tendências de ordenação de advérbios qualitativos.

O português arcaico caracteriza-se por uma variação na colocação dos advérbios, ou seja, apresenta advérbios qualitativos nas posições pré e pós-verbais em todos os tipos de cláusulas, apresentando uma pequena predominância de anteposição nas cláusulas mais gramaticalizadas. Por outro lado, textos de épocas posteriores à fase arcaica – pelo menos até o século XIX - apresentam cada vez menos anteposições de advérbios, que vão ficando cada vez mais restritas a cláusulas com altos graus de gramaticalização. Isso sugere que, de fato, esses parâmetros de pressuposicionalidade podem ajudar a descrever mudanças no comportamento diacrônico desses elementos, no que diz respeito à sua ordenação.

Análise dos dados referentes ao século XVIIIA análise dos dados será feita separadamente. Primeiro

serão observados os textos do século XVIII e, em seguida os do século XIX. A tabela abaixo apresenta a distribuição das ocor-rências dos qualitativos em -mente pelas diferentes posições ob-servadas, sempre levando em conta o grau de gramaticalização das cláusulas que contêm essas ocorrências:

XVIII -gramatical. +Gramatical.Hipotaxe Hipot. rel. Subordinação Subord. rel

Nr Nr r Nr Nr totalaV 2 2 5 1 - 3 13Va 4 - 2 2 2 - 10

VXa - - 1 3 1 - 5total 6 2 8 6 3 3 28

Tabela 1: Ocorrência de advérbios no séc. XVIII

Cabe registrar logo de início a quantidade extremamente pequena de dados de ocorrências dos advérbios em estudo. Isso, obviamente, impede qualquer conclusão mais definitiva acerca de suas tendências de ordenação nos textos observados

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durante o século XVIII. Entretanto, é possível observar algumas regularidades interessantes, sobretudo quando se comparam esses resultados com outras pesquisas referentes à ordenação de qualitativos, feitas com base em outros corpora e em outros estágios da evolução do português (SILVA E SILVA, 2001; Mo-RAES PINTO, 2002; MARTELOTTA; BARBOSA; LEITÃO, 2002; MARTELOTTA, 2004; MARTELOTTA; VLČEK, 2006).

Era de se esperar, por exemplo, uma predominância não muito acentuada das posições pós-verbais. De fato, a tabela apre-senta 15 ocorrências (distribuídas por Va e VXa), ou 53,6% do total 28 advérbios. Essa tendência já se manifesta desde a fase arcaica do português, como observam trabalhos desenvolvidos não apenas acerca da ordenação de qualitativos em -mente, mas também sobre os qualitativos bem e mal, que demonstram não ser incomum a ocorrência de qualitativos pré-verbais no português arcaico (MORAES PINTO, 2002; MARTELOTTA, 2004). Esses tra-balhos também registram que, no português atual, a pós-posição dos advérbios qualitativos é praticamente categórica.

Por outro lado, 13 ocorrências pré-verbais (46,4% do total) constituem uma quantidade bastante significativa, se comparada aos resultados do século XIX, que serão apresentados adiante.9 Isso é importante, porque pode apontar para o fato de que, até o século XVIII, era mais forte a inclinação que os qualitativos apresentavam de ocorrer antes do verbo, reforçando os resulta-dos obtidos em Martelotta e Vlček (2006), segundo os quais essa tendência começa a enfraquecer no início do século XIX e acaba por desaparecer na virada para o século XX.10

outro resultado interessante se apresenta quando se relacionam as posições dos advérbios com o grau de gramati-calização da cláusula em que ele ocorre. Do total de 13 casos de advérbios pré-verbais, 11, ou 84,6% ocorreram em cláusulas mais gramaticalizadas (hipotáticas e subordinadas). Isso aponta para a tendência já detectada no português arcaico, segundo a qual a anteposição do advérbio em relação ao verbo, caracterís-tica do latim, se mantém em cláusulas com graus mais altos de gramaticalização, que são mais conservadoras em termos de ordenação (GIVÓN, 1979).

É claro que se pode alegar que esse resultado perde signi-ficância, quando se leva em conta o fato de que há também mais casos de ocorrência pós-verbal em cláusulas com altos graus de gramaticalização (11, ou 73,3% do total de 16 ocorrências de posições pós-verbais Va e VaX). Em outras palavras, pode-se concluir que essa diferença se dá simplesmente pelo fato de que existem mais cláusulas com altos níveis de gramaticalização nesses textos e que, somente por isso, os números referentes aos advérbios pré-verbais são mais altos nessas cláusulas.

Contra essa análise, podem se apresentados dois tipos de argumentos. o primeiro pondera que, comparando-se a distri-

9 apenas 21,6% do total de advérbios no século XIX ocorreu em posição pré-verbal.10 No português con-temporâneo, ainda po-dem ser encontradas algumas raras ocorrên-cias de qualitativos pré-verbais em construções cristalizadas ou em tex-tos altamente conserva-dores. Esses casos não ref letem a tendência atual de ordenação des-ses advérbios.

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buição das posições pré e pós-verbais pelos tipos de cláusulas, percebe-se uma superioridade na percentagem da posição pré-verbal nas cláusulas gramaticalizadas: 84,6% das ocorrências na posição aV, contra 73,3% de ocorrências distribuídas pelas posições pós-verbais Va e VXa. ou seja, a ordenação pré-verbal parece ser numericamente mais significativa do que a pós-verbal em cláusulas com altos graus de gramaticalização.

o segundo argumento, que também visa a atenuar as limi-tações referentes à pequena quantidade de dados, se relaciona ao fato de que outros trabalhos de natureza histórica, referentes à ordenação de qualitativos, demonstraram essa tendência das ocorrências pré-verbais para as cláusulas mais gramaticalizadas. Essa tendência se dá, como já foi mencionado, pelo fato de que essas cláusulas, mais conservadoras em termos de ordenação, mantêm mais fortemente a ordenação pré-verbal, tipicamente latina.

resta apenas comentar o predomínio da posição pós-verbal VA sobre a VXA, fato que não pode deixar de ser relacionado à não ocorrência de uma posição pré-verbal aXV, que é muito comum, por exemplo, na fase arcaica do português (MARTE-LOTTA, 2004). Parece haver uma forte tendência de os advérbios qualitativos ocorrerem imediatamente próximos ao verbo, ao contrário dos temporais e dos locativos, por exemplo, que apre-sentam uma mobilidade maior na cláusula.

Martelotta (2004) atribui isso ao subprincípio icônico da proximidade (GIVON, 1990), que propõe uma relação entre proximidade semântica e proximidade sintática. Segundo esse subprincípio, entidades que estão próximas funcionalmente, conceptualmente ou cognitivamente ocorrerão próximas no nível da codificação, isto é, temporal e espacialmente. Ou seja, os qualitativos, que indicam o modo como se dá a ação verbal, interferindo substancialmente em seu sentido, tendem a ocorrer próximos ao verbo, ao passo que os temporais e os locativos, que nada dizem acerca da natureza da ação e se limitam a localizá-la no tempo ou no espaço, podem se afastar do verbo.11

Análise dos dados referentes ao século XIXFoi encontrado um número bem maior de dados no século

XIX em função de dois fatos distintos. O primeiro – e menos importante – refere-se à maior quantidade de material do século XIX disponível para análise. O segundo – e mais interessante – é conseqüente de haver menos quantidade de advérbios qualita-tivos em -mente no século XVIII do que no XIX.

Para se ter uma idéia dessa diferença quantitativa entre os dois séculos analisados, é interessante observar que foram encontradas 28 ocorrências de advérbios qualitativos em -mente nos textos do século XVIII, que, juntos, apresentam um total de 21.512 palavras. Isso significa um percentual de 0,13% desses

11 Isso, é claro, não se limita aos qualitativos. o mesmo subprincípio pode atuar, por exem-plo, de modo a impelir um advérbio locativo a se posicionar próximo a um verbo de movi-mento.

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advérbios em relação ao total de palavras que compõem o corpus referente a esse século. Por outro lado, ocorreram 88 qualitati-vos em -mente nos textos do século XIX, que, ao todo, reúnem a quantidade de 42.281 palavras, o que dá um percentual de 0,21% desses advérbios em relação ao total de palavras que compõem o corpus. Nota-se, então, uma superioridade numérica de usos de qualitativos em -mente no século XIX.

Isso pode remeter a uma maior produtividade desses advérbios no século XIX, e deixa a curiosidade de observar, ao longo dos anos, a quantidade de advérbios em -mente com outros valores, distintos do valor qualitativo, como o valor mo-dalizador, por exemplo. Fica também o interesse em observar a produtividade dos qualitativos em -mente, nas fases anteriores do português. Seria possível afirmar que os advérbios em -mente se tornariam progressivamente mais produtivos ao longo dos anos? Tendo essa formação de advérbios se concretizado no latim vulgar (CÂMARA JR., 1976), ou seja, constituindo um processo de gramaticalização relativamente recente, essa hipótese não seria inteiramente absurda.

as ocorrências de qualitativos em -mente no século XIX, relacionadas às variáveis posiçãonasentença e grau de gramatica-lização da cláusula, podem ser vistas na tabela abaixo:

XIX -gramatical. +Gramatical.Hipotaxe Hipot. rel. Subordinação Subord. relr Nr r Nr r Nr r Nr total

aV 1 1 4 1 3 2 1 1 5 19Va 20 4 10 3 1 10 10 - 7 65

VXa 1 - - - 2 - 1 - - 4total 22 5 14 4 6 12 12 1 12 88

tabela 2: ocorrência de advérbios no séc. XVIII

No caso do século XIX, há uma quantidade maior de ocor-rências de qualitativos em -mente, embora essas 88 ocorrências estejam longe de constituir a quantidade necessária para se che-gar a conclusões mais precisas. Como foi mencionado na análise das ocorrências do século XVIII, acredita-se ser possível, apesar dos poucos dados, observar regularidades interessantes, que se tornam significativas, quando comparadas com tendências detectadas em outras pesquisas referentes à ordenação de qua-litativos, feitas com base em outros corpora e em outros estágios da evolução do português.

assim como aconteceu com o século XVIII, era de se espe-rar que o século XIX apresentasse uma relativa predominância das posições pós-verbais. Isso de fato ocorreu: a tabela apresenta 69 ocorrências nessa posição, ou 78,4% do total 88 advérbios. Esses dados refletem a tendência, já mencionada anteriormente, que vem se delineando desde a fase arcaica do português (MO-

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RAES PINTO, 2002; MARTELOTTA, 2004). Mas, é importante registrar aqui que a quantidade de advérbios nessa posição cresceu de 53,6% no século XVIII para 78,4% no XIX: isso reflete um enfraquecimento da propensão desses advérbios para as posições pré-verbais no século XIX.

Por outro lado, a tabela apresenta 19 ocorrências pré-ver-bais (21,6% do total de 88 dados), o que é significativo, uma vez que houve um decréscimo, em termos percentuais, de ocorrên-cias pré-verbais do século XVIII para o XIX (de 46,4% para 21,6%). Isso, como foi dito anteriormente, pode apontar para o fato de que, até o século XVIII, ainda era relativamente forte a vocação dos qualitativos para a ocorrerem antes o verbo, reforçando os resultados obtidos em Martelotta e Vlček (2006) para o século XIX.

outro resultado interessante se apresenta quando se re-lacionam as posições dos advérbios com o grau de gramatica-lização da cláusula em que ele ocorre. Do total de 19 casos de advérbios pré-verbais, 18, ou 95% ocorreram em cláusulas mais gramaticalizadas (hipotáticas e subordinadas). Cabe ressaltar aqui o aumento percentual que ocorreu em relação aos 84,6% encontrados de anteposições em cláusulas mais gramaticali-zadas no século XVIII. Mais uma vez se evidencia a mudança desses advérbios para as posições pós-verbais, já que eles ficam praticamente restritos às cláusulas com alto grau de gramatica-lização, mais conservadoras em termos de ordenação.

Comparando o resultado acima, referente à posição pré-verbal, com a distribuição das posições pós-verbais pelos diferen-tes graus de gramaticalização das cláusulas, percebe-se a maior tendência das ocorrências pré-verbais para as cláusulas com níveis mais latos de gramaticalização: 18 ou 95% contra 48 ocor-rências (de Va e VXa), ou 69,6% do total de casos de advérbios pós-verbais, apareceram em cláusulas mais gramaticalizadas. Mais uma vez nota-se uma distribuição maior – agora no século XIX – das ocorrências pós-verbais pelos tipos de cláusulas.

Com relação à proximidade do advérbio qualitativo em relação ao verbo, nota-se, também nos dados do século XIX, a forte predominância da posição VA, com 65 casos, que represen-tam 94,2% do total de 69 ocorrências de qualitativos em posição pós-verbal, contra apenas 4 casos de VXA, ou 5,8% do total. Por hipótese, entra em ação, nesses casos, o subprincípio icônico da proximidade, que, como já foi mencionado na análise referente ao século XVIII, prevê que entidades que estão próximas funcio-nalmente, conceptualmente ou cognitivamente ocorrerão pró-ximas no nível da codificação, isto é, temporal e espacialmente. assim, os advérbios qualitativos, indicadores do modo como se dá a ação verbal, interferindo substancialmente em seu sentido, tendem a ocorrer próximos ao verbo.

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ConclusãoForam muito poucos os dados encontrados nos corpora ana-

lisados, em função do fato de que, de um modo geral, advérbios qualitativos são, de fato, pouco usados no discurso escrito – as-sim como no falado. Isso, obviamente, impede que se chegue a conclusões mais definitivas acerca das tendências de ordenação dos qualitativos em -mente nos textos observados. Entretanto, é possível vislumbrar, entre esses poucos dados, algumas regu-laridades interessantes, sobretudo quando essas regularidades são localizadas dentro de um processo de mudança mais geral, observado em outras pesquisas referentes à ordenação de qua-litativos, feitas com base em outros corpora e em outros estágios da evolução do português.

Como foi dito anteriormente, embora este trabalho focalize os séculos XVIII e XIX, busca-se aqui observar um processo de mudança mais amplo, que compreende o período de tempo en-tre o latim e o português atual. Durante esse período de tempo, ocorreu uma trajetória de mudança gradual, através da qual os advérbios qualitativos passam progressivamente da posição pré-verbal para a pós-verbal. tudo indica que essa mudança se inicia nas cláusulas menos gramaticalizadas e vai passando, em seguida, para as mais gramaticalizadas, que são mais con-servadoras, por apresentarem graus maiores de cristalização e, conseqüentemente, graus maiores de pressuposicionalidade (GIVÓN, 1979).

Os poucos dados coletados nos textos dos XVIII e XIX, que estão no meio desse processo, ratificaram essa hipótese. Nos dois séculos observados foi encontrada, por exemplo, uma quantidade maior de ocorrências pré-verbais do que é comum nos português atual, em que a pós-posição é praticamente cate-górica. além disso, nota-se que o século XVIII apresentou mais essas ocorrências do que o XIX, o que aponta para essa mudança gradual.

Outro resultado interessante pode ser visto no fato de que as ocorrências de qualitativos em -mente em posição pré-verbal tenderão a aparecer em cláusulas com graus maiores de grama-ticalização em ambos os séculos analisados. Isso era esperado com base na proposta de Givón (1979), segundo a qual essas cláusulas são mais conservadoras em termos de ordenação, o que significa que elas tendem a preservar a antiga colocação pré-verbal latina.

Cabe ressaltar também o aumento percentual do século XVIII para o XIX das ocorrências pré-verbais em cláusulas gra-maticalizadas. Isso evidencia a mudança desses advérbios para as posições pós-verbais, já que a anteposição fica praticamente restrita, no século XIX, às cláusulas com alto grau de gramati-calização, mais conservadoras em termos de ordenação.

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resta apenas comentar o predomínio, nos dois períodos de tempo analisados, da posição pós-verbal Va sobre a VXa, assim como a inexistência da posição AXV, detectada no por-tuguês arcaico (MARTELOTTA, 2004). Isso, por hipótese, está relacionado ao subprincípio icônico da proximidade (GIVON, 1990), que propõe uma relação entre proximidade semântica e proximidade sintática. Segundo esse subprincípio, entidades que estão próximas funcionalmente, conceptualmente ou cogni-tivamente ocorrerão próximas no nível da codificação. Ou seja, os qualitativos, que indicam o modo como se dá a ação verbal, interferindo substancialmente em seu sentido, tendem a ocorrer próximos ao verbo.

AbstractThis paper consists of an analysis of the word or-der change that characterizes the uses of manner adverbs formed with the suffix -mente in letters written in Brazil in the 18th century and in the 19th century. The analysis aims to show, within this period of time, the gradual disappearance of the tendency of these adverbs of occurring in pre-verbal positions, which had already been detected in the early historical evolution of Portuguese.

Keywords: adverb, word order, grammaticali-zation, linguistic change.

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a estrutura argumental das construções deverbais em -dor

Nubiacira Fernandes de OliveiraRecebido 25, jun. 2006/Aprovado 28, ago. 2006

Resumo

análise da estrutura argumental de construções deverbais com o sufixo -dor, com o objetivo de depreender em que medida o caso ‘Agente’ nelas se manifesta, considerando a interação entre as propriedades morfossintáticas, semânticas e prag-máticas dessas formações derivadas. Assume-se como pressuposto que há um paralelismo entre a categorização conceptual e a categorização lingüís-tica. A análise se baseia na utilização concreta da línguapelofalante.

Palavras-chave: construções deverbais; estrutu-ra argumental; agentividade.

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1. IntroduçãoEste trabalho, inserido no domínio da lingüística funcional

norte-americana, segue a linha de investigação que vem sendo desenvolvida por Givón, Hopper, Thompson, Bybee, Goldberg, Du Bois, entre outros. Apresenta resultados preliminares de uma pesquisa, cujo objetivo é examinar os processos de interação entre propriedades morfossintáticas, semânticas e pragmáticas, visando ao estabelecimento de traços gerais de interpretação caracterizadores da estrutura argumental de construções dever-bais com o sufixo –dor. Examinando a relação entre o sufixo e a estrutura temática das bases com as quais ele ocorre, focaliza, em particular, as seguintes questões: (1) em que medida a estrutura argumental da construção deverbal corresponde à estrutura argumental da base? e (2) como o caso Agente se manifesta nas construções derivadas em -dor? A principal fonte de pesquisa empírica é o Corpus Discurso & Gramática: a língua falada escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), constituído de textos falados e escritos de tipos diversos: narrativa expe-riencial, narrativa recontada, descrição de local, relato de proce-dimento e relato de opinião. Dados adicionais foram coletados da Revista VEJA - anos 2004-2006. A análise se processa à luz do conceito de Estrutura Argumental (DU BOIS, 2003) e das noções de Transitividade (HOPPER; THOMPSON, 1980) e de categorização prototípica, tal como proposta por Taylor (1995). Nesse modelo, as análises lingüísticas se baseiam na utilização concreta da língua pelo falante e assume-se como pressuposto que há um paralelismo entre a categorização conceptual e a categorização lingüística.

2. Sobre o conceito de estrutura argumentalA noção de Estrutura Argumental provém da filosofia, em

que era concebida, de acordo com Frege, como um instrumento para a formulação do ‘pensamento puro’, usado precisamente para descrever os significados proposicionais em termos lógicos. Os lingüistas se apropriaram do conceito para seus propósitos e, em vista de seu interesse intrínseco pela linguagem, o ponto focal é a relação da estrutura argumental com a organização da expressão lingüística.

Em princípio, a noção de estrutura argumental diz respeito às relações semântico-gramaticais que se estabelecem entre um predicado – tradicionalmente o Verbo – e seus complementos ou argumentos – o Sujeito e o Objeto. Mais recentemente, a comple-xidade da estrutura argumental vem sendo posta em evidência em vários modelos da teoria lingüística.

Segundo Du Bois (2003, p. 17), a estrutura argumental implica uma estrutura organizacional que estabelece relações combinatórias entre elementos, em pelo menos duas dimensões

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paralelas – a gramatical e a semântica. Ao longo das dimensões combinatórias, gramaticalmente, os nomes se relacionam aos verbos, desempenhando funções como sujeito, objeto, etc. e, se-manticamente (e/ou conceptualmente), entidades conceituais se relacionam a eventos conceituais, assumindo papéis como agente, paciente, etc. Entre esses dois níveis, há um mapeamento siste-mático entre o conjunto das relações semânticas (ou temáticas) co-presentes e o conjunto das relações gramaticais co-presentes. o processo (ou princípios) de mapeamento tem sido caracteri-zado de modo variável como alinhamento, ligação, seleção de argumento, etc.

os tipos de orações básicas (compostas de um predicado) de uma língua como o português, por exemplo, são conside-rados como construções de estrutura argumental, nas quais o verbo, tomado como elemento central ou predicador, mantém uma relação abstrata (relação valencial) com os termos que dele dependem – seus argumentos. Em outras palavras, o verbo tem a capacidade de abrir determinados lugares na oração e de se-lecionar os argumentos para preenchê-los. Assim, por exemplo, tomando-se uma oração básica como PedroferiuJosé, diz-se que temos um predicado de dois lugares. o verbo ferir – núcleo do predicado ou predicador – seleciona obrigatoriamente dois argu-mentos SNs: Pedro e José. trata-se de uma construção transitiva prototípica, que descreve um evento no qual um agente exerce uma ação que afeta um paciente. O agente é realizado no papel de sujeito transitivo (A), expresso na posição pré-verbal pelo SN – Pedro, e o paciente é realizado no papel de objeto direto (O), na posição pós-verbal, expresso pelo SN José.

Do ponto de vista semântico, o evento transitivo prototí-pico é definido pelas propriedades do agente, do paciente e do verbo envolvidos na oração que codifica esse evento. Em prin-cípio, a delimitação das propriedades desses três elementos é uma questão de grau. Do ponto de vista sintático, as orações – e verbos – que têm um objeto direto são, em geral, consideradas transitivas; as que não o têm são intransitivas. Segundo Givón (2001), embora as caracterizações semânticas e sintáticas da transitividade pareçam independentes, elas normalmente se sobrepõem: a maioria das orações que são semanticamente transitivas também são sintaticamente transitivas. Desse modo, se uma oração codifica um evento semanticamente transitivo, o agente e o paciente do evento são, via de regra, respectiva-mente, o sujeito e o objeto direto dessa oração. Na prática, essa sobreposição não é, contudo, categórica, devido à possibilidade de elipse. No nível semântico, um dos argumentos nucleares de comer, por exemplo, diz respeito à substância colocada na boca e engolida: não é possível pensar em comer sem pensar em algo que é comido. Mas, é perfeitamente normal dizer Ele tem comido, sem mencionar o que é consumido (ausência do objeto). Por outro

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lado, certos aspectos, tais como a chamada dimensão afetamento, pertencem à transitividade semântica e não à sintática. assim, numa oração como João correu cinco milhas, a presença de um objeto direto (cinco milhas) não implica que o SN sujeito (João) é CAUSA + afetamento; nem a ausência de um objeto direto implica que o sujeito é CAUSA – afetamento, como se pode ver no exemplo, Mário escreve para ‘O Times’, em que não há objeto direto, porém há afetamento, pois, pode-se dizer que O Times é, de algum modo, enriquecido pela contribuição de Mário.

Numa referência a Levin e Rappaport Hovav (1995), Du Bois (2003) chama atenção para o fato de que, se o papel semântico de um argumento (agente, paciente, etc.) é, em parte, determinado pelo significado do verbo que o seleciona e se argumentos que dão suporte a certos papéis semânticos regularmente se associam a expressões sintáticas particulares, essa regularidade de associa-ção reforçaria a idéia de que o significado do verbo é um fator na determinação da estrutura sintática das orações. Estudiosos da estrutura argumental e da gramática de construção, entre eles o próprio Du Bois e Goldberg (1995), questionam parcialmente essa idéia com base no conceito de construção. Segundo Goldberg, as orações básicas de uma língua, como o inglês, por exemplo, são instâncias de construções, entendidas como correspondências de forma e significado que existem independentemente dos verbos particulares. ou seja, uma construção carrega em si mesma um significado independente das palavras que a compõem. A des-peito de sua importância, uma discussão detalhada sobre esse ponto ultrapassa os limites do presente trabalho.

A propósito da relação entre verbos e nomes de ‘atividade’, a pesquisa morfológica confirma a existência de SNs que exibem uma estrutura de predicado similar à de um SV: o núcleo do SN (o Nome) determina argumentos, do mesmo modo que o núcleo do SV (o Verbo) o faz. Além disso, a própria categorização dos argumentos em externo (sujeito) e interno(s) (complemento(s)) é mantida nesse paralelismo. Comparem-se, por exemplo, as construções em (1) abaixo:

(1) a. O MLST invadiu o parlamento brasileiro. b. A invasão do parlamento brasileiro pelo MLST.

o verbo invadir, em (1) a, exige a presença de um argumen-to externo (sujeito), representado na oração pelo SN O MLST, e um argumento externo (complemento - objeto direto), repre-sentado pelo SN o parlamento brasileiro. De modo semelhante, na construção (1) b, o nome invasão determina a presença de um argumento interno (correspondente ao complemento - objeto direto), que se manifesta através do SP do parlamento brasileiro, e de um argumento externo (correspondente ao sujeito), expresso através do SP pelo MLST. Com efeito, SNs tais como ‘Ainvasão’teriam o estatuto de construções de estrutura argumental, assim como o SV. Citando Demonte (1985), Neves (1996) lembra que,

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para esse autor, o SN, no que diz respeito “a sua natureza for-mal, compartilha características dos sintagmas verbais e pode ser concebido também, em certo sentido, como uma estrutura similar à oração”. Do ponto de vista semântico, diz ela, o SN é “uma entidade paradoxal porque, tomada em seu conjunto [...], é um argumento, porém internamente, deve distinguir-se entre elementos receptores e atribuidores de papel temático”.

Essas observações vêm reforçar a idéia comum à teoria da Gramática de Construção segundo a qual não há divisão estrita entre o léxico e a sintaxe (GOLDBERG, 1995). Construções lexi-cais e construções sintáticas diferem em complexidade interna e na especificidade da forma fonológica, mas ambas constituem essencialmente o mesmo tipo de estrutura de dado declarativa-mente representada: ambas são pares de forma e significado. A esse propósito, Croft; Cruse (2004, p. 254) afirmam que, assim como a sintaxe, a morfologia representa unidades gramaticais complexas, no caso, compostas de morfemas. De um ponto de vista estrutural, a única diferença entre morfologia e sintaxe é que os morfemas são limitados no interior da palavra, enquan-to as palavras são morfologicamente livres no interior de um sintagma ou oração. os autores argumentam que muitas são as palavras a que se podem chamar de ‘palavras idiomaticamente combinadas’, em que o significado de um morfema é específico para a raiz com a qual ele se combina (ou uma subclasse de raí-zes). Por exemplo, em inglês, o sufixo derivacional –er refere-se ao agente do evento denotado pela raiz do verbo, quando esta pertence a uma classe que inclui write, run (escrever, correr) e assim por diante, mas se refere a um instrumento, se a raiz do verbo é clip (cortar, tosquiar), staple (grampear) e semelhantes, ou a um paciente se a raiz do verbo é fry (fritar), broil (assar). a observação parece ser igualmente válida para as construções deverbais com o sufixo –dor, em português. Ou seja, o significado do sufixo -dor depende da raiz verbal com a qual ele se combina (ou da subclasse de raízes), mas, seguindo a proposta da teoria da gramática de construção, as propriedades semânticas de ambas as partes interagem para produzir o significado construcional, de tal forma que o significado da construção é dado unicamente pelo todo.

tudo que essas observações sugerem é que, realmente, a morfologia é muito parecida com a sintaxe e que uma represen-tação construcional é motivada para a morfologia também.

alguns nomes de ação-processo, tais como repressão, cassa-ção, por exemplo, de fato, remetem a um evento que facilmente prevê uma configuração envolvendo um argumento subjetivo (a1) e um argumento objetivo (a2), este último, em muitos casos, afetado pela ação-processo. Sob essa ótica, no exemplo (2) abaixo, o nome cassação (em destaque) é um predicado de dois lugares, cuja estrutura argumental comporta um argumento objetivo

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(A2), expresso pelo SP de direitos políticos, e um argumento sub-jetivo (a1), aqui representado pelo SN umaproposta, recuperável no contexto imediatamente anterior.

(2) “A lei precisa ser aperfeiçoada para acabar com essa farra”, protesta o deputado orlando Desconsi, do Pt gaúcho, autor de uma proposta que prevê a cassação de direitos políticos para o culpado em qualquer momento, com ou sem renúncia. (VEJA, 26.10.05, p. 53).

observe-se que, se por um lado, o SN a cassação de direitos políticos é, em si mesmo, uma estrutura predicado-argumen-to – uma predicação -, em que o nome cassação é o núcleo do predicado e o SP de direitos políticos é o argumento objetivo (a2), por outro lado, esse mesmo SN constitui o argumento objetivo (a2) do predicado sintático, cujo núcleo é prevê. ou seja, predi-cações encaixadas funcionam como termos dentro de outras predicações. trata-se de nomes (resultantes ou não de processos de nominalização) que ativam no interior do SN o sistema de transitividade. Os derivados deverbais em –dor exibem nitida-mente essa propriedade.

a observação dos dados indica que a base verbal envolvida na produção de derivados com o sufixo –dor é geralmente do mesmo tipo daquela que codifica o predicado que se denomina de ação-processo: evento com afetamento de y, controlado por x, sendo x o agente-prototípico. assim, em princípio, uma ora-ção transitiva prototípica (cf. Hopper; Thompson, 1980) e uma construção deverbal em -dorse assemelhariam em dois pontos: classe semântica do predicado (verbo de ação-processo) e papéis semânticos relacionados (agente ou causativo e paciente afetado). Em vista desse fato, poder-se-ía admitir, como pressuposto, que os deverbais são construções de estrutura argumental que, em princípio instalam, numa estrutura menor, o esquema temático da base (ou do verbo primitivo). os dados, no entanto, revelam que, ao assumir o seu status nominal, alguns derivados passam a ter características sintático-semânticas próprias, controlando a manifestação de sua estrutura argumental. Assim, por exemplo, quando se observa a relação verbo-nome deverbal, a correspon-dência entre a estrutura argumental do verbo e a do derivado nominal nem sempre é perfeita, podendo ocorrer uma limitação no número de papéis temáticos da estrutura nominal em relação à verbal. No caso, sugere-se que, ao se avaliar o problema da não expressão dos argumentos dos deverbais, é preciso considerar o contexto maior do que o sintagma. Em nosso corpus, para al-guns dos derivados sob análise, não foi preenchida totalmente a estrutura argumental dentro do próprio SN. a hipótese é que, se a estrutura sintática da oração já fornece informação sobre o (s) argumento (s) do nome deverbal, dispensa-se sua expressão sob a forma canônica de sintagma preposicional. O argumento

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não vem, então, expresso, mas pode ser depreendido do contexto maior, isto é, da organização sintático-semântica do texto, em qualquer ponto dele, dentro ou fora da oração. Pode-se supor que, muitas vezes, a saturação informativa da estrutura argumental dispensa, e até bloqueia, a expressão de argumentos, como se verifica em (3) abaixo:

(3) ... saí feito uma louca ... na escola ... procurando o diretor ... procurando o supervisor... (Corpus D&G, p. 52)

Nesse exemplo, diretor constitui, em tese, o núcleo de um predicado de dois argumentos, correspondente a ‘x dirige y’ ou ‘x diretor de y’. Nota-se, porém, que a estrutura argumental do predicado não está totalmente preenchida, ou seja, diretor aparece desacompanhado de seus argumentos. acontece que, como substantivo, diretor traz implicitamente a representação do papel semântico Agente no sufixo –tor, de modo que diretor equivale a ‘aquele que dirige’. Por sua vez, o argumento-objeto, que deveria figurar na forma do SP ‘da escola’, pode ser depre-endido do quadro geral em que se realiza a predicação (situação de enunciação e enunciado maior), o que torna desnecessária a sua expressão. Na visão de Schlesinger (1995), dirigir, administrar, governar, etc., de fato, envolvem ou denotam atividades e, como verbos, pode-se dizer que descrevem eventos. Mesmo assim, quando se diz, por exemplo: Atualmente, Joãodirigeumaempresaestatal e ElegovernouoEstadopordoisanos, aparentemente o que está sendo focalizado não são propriamente os eventos, mas os cargos ocupados por João, de modo que os verbos (dirigir e governar) apontam, certamente, para um indivíduo numa certa posição (diretor e governador). No caso, os limites entre atividade (evento) e coisa (cargo) parecem difusos. Para nós, na medida em que construções deverbais como diretor, governador, etc., denotam mais propriamente cargos ou funções (e não even-tos em si), a presença do conteúdo ‘atividade’ nesses derivados parece naturalmente tênue; o traço dinamicidade e a dimensão afetamento (que caracterizam os verbos de ação-processo) tor-nam-se opacos, o que, por hipótese, poderia também favorecer a omissão do argumento objeto (na forma de SP), nas referidas construções.

No corpus examinado, foram identificadas 72 ocorrências de derivados em –dor, cujo verbo base normalmente envolve dois argumentos – sujeito e objeto, tais como: jogador, vendedor, orien-tador, etc. Desse total, apenas 9 construções contendo o derivado, isto é, cerca de 12,5%, apresentam o argumento objeto explícito e, desse grupo, a maioria absoluta (7 ocorrências) é de construção predicativa, com cópula, em que o deverbal (causadores, em (4)) aparece na função de predicativo do sujeito, ou seja, remete para o argumento externo (cartolas). Veja-se o exemplo abaixo:

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(4) Na minha opinião os cartolas são os principais causado-res dessa situação ... (Corpus D&G, p. 36).

Ao que tudo indica, o nome deverbal evoca a informação dada na oração predicada pelo verbo de que deriva, apesar das diferenças entre as estruturas argumentais das duas construções: a nominal e a verbal. Cabe, portanto, investigar as motivações que levam a essas diferenças.

Os fatos mostram, por exemplo, que de um verbo proto-tipicamente transitivo, tal como conquistar, trair, etc. resulta um adjetivo – conquistador, traidor – que regularmente figura em construções predicativas do tipo SN + cópula + adjetivo, tais como: João é um conquistador ou João é traidor. Em casos como esses, não se verifica um paralelismo completo entre as cons-truções verbais e as construções deverbais correspondentes. a construção predicativa dispensa ou bloqueia a realização do argumento interno, com papel semântico de paciente afetado ou estímulo, normalmente presente na construção verbal. No caso, a estrutura argumental específica da construção deverbal parece refletir uma restrição do próprio processo morfológico, pois, na conversão do verbo em adjetivo, ocorre a perda do traço dinami-cidade (inerente ao verbo), o que afeta, naturalmente, as relações temáticas. Além disso, vale observar que essas formações em –dor têm um valor aspectual. Envolvem, digamos, o caráter habitual imperfectivo da agentividade, ou seja, permitem reconhecer agentes habituais. Na oração João é um conquistador, acima, con-quistador equivale a “pessoa que conquista”, indicando-se pela paráfrase com o presente a freqüência ou habitualidade da ação. Parece que, nesses casos, a habitualidade da ação imprime uma certa genericidade ao argumento objeto (paciente/estímulo) – conquista todomundo ou tudo - e, assim, reduz o seu grau de relevância informacional, de modo que a expressão do objeto pode (ou até deve) ser dispensada. Por outro lado, o objeto afe-tado ou o estímulo também podem ser facilmente inferidos do contexto discursivo ou do contexto pragmático - por exemplo, num enunciado como: “O Presidente é um traidor”, proferido por alguém, no atual contexto político brasileiro. Vejam-se os exemplos (5) e (6) a seguir, do nosso corpus:

(5) algum tempo depois, chegou ao solar (casa) um homem que sabendo da história da prisão assumiu a identidade do advogado e pediu abrigo. Este era um traidor e assassino e estava sendo procurado pela polícia Francesa. (Corpus D&G, p. 45)

(6) ... eu me sinto um buscador ... um cara que quer é:: que quer ser útil em alguma coisa ... (Corpus D&G, p. 86)

Em (6), novamente diante do deverbal, a expressão do argumento objeto é inibida ou restringida. o derivado busca-dor supostamente se enquadra no tipo de categoria com valor

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aspectual referido acima e, se isso é verdadeiro, tal construção deve ser analisada de modo semelhante a traidor, conquistador, etc. A restrição provavelmente está ligada a um fator de ordem semântica: o argumento objeto é não-referencial, exibindo, por-tanto, baixo grau de informatividade, o que favorece a sua não explicitação e justifica, em parte, a especificidade da estrutura argumental da construção. A favor da análise aspectual de buscador, é interessante considerar o fato de que o Dicionário de Aurélio Buarque fornece para essa forma o mesmo significado que é dado para buscante, outra forma agentiva, essa sim, com nítido valor aspectual. Consta no dicionário que buscador per-tence à categoria Adjetivo e significa aquele que busca e buscante, também Adjetivo, significa que busca; buscador.

Basílio (2004, p. 41) indica motivação de ordem textual para o uso de deverbal com estrutura argumental específica: os dever-bais têm uma função anafórica, que corresponde ao uso de nome derivado de verbo para fazer referência a uma estrutura verbal anteriormente utilizada no texto. Segundo a autora, a utilização de formas nominalizadas para substituir frases predicadas por verbos é essencial na construção do texto escrito, na medida em que permite representar de modo unificado e através de uma única palavra toda uma proposição. Para ilustrar, Basílio fornece o exemplo (7):

(7) O presidente eleito decidiu indicar pessoas de sua confiança para as posições-chave do governo. a decisão terá implicações complexas.

Argumenta-se que, nesse exemplo, o nome decisão subs-titui todo o período anterior, assim transferindo a informação para o período seguinte; a forma nominalizada é crucial para a continuidade do tópico na construção do texto.

Diferentemente de sufixos nominalizadores como – agem, -mento e –ção, o sufixo –dor mantêm com sua base uma relação que podemos chamar de actância, em que o sufixo remete a um participante da situação, em geral o argumento externo, com papel semântico Agentivo. Todavia, conforme afirma Du Bois (2003), o processo de seleção de argumentos, com seus respec-tivos papéis semânticos, é bastante complexo, envolvendo, de modo particular, a consideração da estrutura do evento como um todo. No nível da oração, tomando-se uma relação gramatical isoladamente, como, por exemplo, a de sujeito num conjunto de verbos, a diversidade das relações semânticas que ela codifica parece difícil de delimitar ou de caracterizar e a observação de dados lingüísticos reais tem demonstrado que divergências se-mânticas sutis são capazes de motivar estruturas argumentais distintas.

a atenção ao aspecto semântico das relações gramaticais leva à pesquisa dos tipos de papéis desempenhados pelos par-

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ticipantes ligados às ações-processos expressas pelos deverbais (Agentivo, Instrumental, Experienciador, Objetivo, etc.), toman-do-se como pressuposto que, também no nível das construções morfológicas, é preciso considerar como a interação entre as diversas relações gramaticais atua no processo de seleção desses papéis, atentos ainda para as características do contexto discur-sivo-pragmático circundante.

Dado o caráter preliminar dos resultados e em razão dos limites impostos pela natureza do presente trabalho, a análise será circunscrita apenas à manifestação do traço Agentividade nos derivados em -dor.

3. O complexo AgentivoDe acordo com Basílio (2004, p. 44), a formação dos cha-

mados nomes de agente tem como produto palavras que desig-nam um ser pela prática ou exercício de uma ação ou atividade, especificada pelo verbo envolvido na derivação. O processo de formação também se estende à nomeação de objetos instrumen-tais, cuja função principal é definida pelo significado da base verbal. Como construções de estrutura argumental, tais formas implicam na interpretação de uma ação-processo ou de uma causatividade, direta ou indireta, ou seja, atribuem agentividade a seu argumento externo, seja de modo literal - se tal argumento se refere a agentes propriamente ditos (cobrador) - ou por extensão metafórica a partir do protótipo, se ele denota outros tipos de causadores, como instrumentos (cortador), mecanismos abstratos (redutor), substâncias ativas (fixador), etc. Ainda, segundo Basílio, o modo preferido pelos falantes do português para exprimir morfologicamente agentividade seria o acréscimo do sufixo –dor a raízes de verbos de ação e/ou de ação-processo. Portanto, os derivados em –dor, traduzíveis informalmente como ‘aquele que V’ (sendo V uma forma verbal), são os principais membros da classe dos agentivos no português.

Constatada a existência de Agentivos com o sufixo –dor, passou-se a investigar o significado de toda e qualquer forma deverbal em –dor, a fim de observar que tipos de conteúdo se-mântico poderiam nelas estar presentes, para além do agentivo. Ou seja, interessa saber se esse conteúdo é exclusivo, dominante, ou convivente com outros.

Segundo Lyons (1977), é difícil precisar a noção de agenti-vidade. Mas o agente prototípico (que serve como paradigma) se refere a uma entidade animada x, que usa intencional e respon-savelmente sua própria força ou energia para desencadear um evento; e o exemplo típico de evento em que a agentividade está mais obviamente envolvida é aquele que resulta numa mudança na condição física ou locação de y, característica dos verbos de ação-processo. O ponto de vista de Lyons é o de que cada um dos

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traços, ou propriedades, que compõem o conceito de agentivida-de padrão – traços como [Animado], [Intencional], [Responsável], [Usuário da própria força ou energia], [Modificador de si próprio ou de outrem] – é destacável do conjunto, funcionando de modo independente na caracterização de situações não prototípicas, porém semanticamente aproximadas do tipo padrão. Essa idéia harmoniza-se com o conceito de prototipicidade, central para a Teoria Funcionalista e para a Lingüística Cognitiva, a partir do qual entende-se que categorizar uma entidade não é uma questão de saber se ela possui um determinado atributo ou não, mas de considerar o quanto as dimensões da entidade em questão se aproximam das dimensões ideais para ela. À luz da teoria dos protótipos, a agentividade seria uma propriedade escalar, e não categórica. a classe dos nomes agentivos comportaria membros que compartilham muitos traços comuns, constituindo-se nos protótipos da categoria, e entidades que compartilham apenas alguns atributos, integrando-se como elementos marginais na re-ferida classe. Sob essa ótica, seria possível construir formulações mais detalhadas no interior da definição de Agentividade.

A análise da definição de agente prototípico proposta por Lyons permite depreender que ela repousa em três tipos de critério: um critério de sentido, que orienta para o papel de x, Desencadeador, Auto-afetador ou Afetador de y; um critério de seleção denotativa, tanto do evento/situação (que deve ser dinâmico) quanto da entidade que se candidata a agente (que deve ser um animado); e critérios de seleção discursiva, pois é no discurso que se obtém a informação sobre a intencionalida-de e responsabilidade da entidade animada no que concerne à mudança denotada.

Acima mencionou-se o fato de que a observação preliminar dos dados indica haver, entre os termos de uma relação oracional transitiva e os termos de um derivado deverbal argumental, uma semelhança em dois aspectos: tipo denotativo (ou classe semân-tica) do predicado (verbo de ação-processo) e papel semântico dos argumentos selecionados (agente ou causativo e paciente afetado). De fato, embora no presente estágio da pesquisa não se tenha feito levantamento quantitativo, os dados levam a supor que o sufixo –dor combina-se quase sem restrição com verbos que exibem a propriedade [+Dinâmico]ou [+Controle], por parte da entidade animada que ocupa a posição do argumento exter-no, ou as duas propriedades. Contudo, o que esses derivados parecem não se comprometer a representar, necessária e exclu-sivamente, é o tipo denotativo do agente prototípico, conforme será demonstrado adiante.

Considerando a oração transitiva canônica, o agente pro-totípico pode ser definido pela presença das seguintes proprie-dades: Causativo, Controlador, Animado, Intencional e Responsável. Com relação ao derivado argumental, o causativo nem sempre

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denota um agente prototípico. Podem perfeitamente faltar-lhe algumas das propriedades características do protótipo. os da-dos demonstram que há derivados em –dor com a propriedade Causativo, mas que são marcados negativamente quanto ao traço Animado. Enquadram-se nesse caso os deverbais que denotam instrumento, máquina, aparelho, dispositivo e peça de máquina, que embora Causativos, não são agentes, considerando-se que, neste trabalho, o caso Agente é caracterizado em termos de feixes de traços semânticos, ao invés de um traço discreto (GIVÓN, 1984, p. 107).

É fato que um derivado em –dor, como grampeador, por exemplo, pode referir-se a um agente prototípico, se usado vir-tualmente numa oração como O grampeador de textos hoje foi Gabriel, em que a situação denotada pela base verbal é compatível com a atuação de um ser humano. Contudo, no plano lexical, e principalmente pragmático, grampeador mais freqüentemente especializa-se em denotar um instrumento de grampear e não tem, portanto, propriedades de seres animados. o sentido da formação deverbal, porém, continua orientado para o papel semântico Causativo. Verifica-se aqui, novamente, a ambivalên-cia de um derivado em –dor, desta feita uma ambivalência não de ordem morfossintática, mas semântica: grampeador denota usualmente um instrumento, mas pode eventualmente, em de-terminados contextos, denotar o Agente. Este parece ser o caso também de despertador em (8):

(8) ... era um galo que despertava a gente ... era um despertador e o galo era um dos componentes né ... do grupo ... ele imitava direitinho um galo ... (Corpus D&G, p. 73)

De (8) depreende-se a seguinte informação: ‘um dos componentes do grupo era o despertador da gente’. No caso, despertador tem todas as propriedades do agente prototípico. Porém, no nível lexical e pragmático, despertador remete sis-tematicamente a um objeto concreto, a saber, um certo tipo de relógio. Conseqüentemente, não apresenta propriedades de seres animados, embora o sentido da construção derivada permaneça orientado para o papel semântico Causativo.

Formações adjetivas, como conservador em (9), que são morfossintaticamente ambivalentes (já que também podem ser usadas como substantivo em contextos específicos), dis-tanciam-se muito do agente prototípico. Em primeiro lugar, essas construções não são denotativas e sim atributivas. Logo, não denotam seres intencionais, mas se referem a esses seres, qualificando-os. Nessa relação, parecem assimilar dos substan-tivos a propriedade do agente prototípico. É essa extensão de propriedades, certamente, que faculta a omissão do substantivo (um sujeito conservador, um cara conservador, etc.). Se analisados sob o prisma dos traços do complexo agentivo, derivados desse

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tipo compartilham com os agentes prototípicos o tipo semântico da base verbal (verbos de ação-processo) e os traços Causativo, Animado, Intencional e Responsável.

(9) ... talvez nesse ponto eu seja meio conservador ... e acho que a família deve ser preservada”. (Corpus D&G, p. 161)

Exemplos como os apresentados acima apontam para uma redefinição e refinamento da própria categoria ‘agentivo’, de modo a permitir a inclusão de casos que se situam nos limites dessa categoria, mas ainda assim compartilham com ela aspectos morfossintáticos, semânticos e pragmáticos. São esses aspectos que, em última análise, motivam o surgimento de novos itens lexicais na língua, por analogia ao agente prototípico ou extensão metafórica de suas propriedades. A esse propósito, considere o neologismo presente no exemplo (10), retirado de uma edição da revista Veja:

(10) Desde o início da rebelião, Garotinho e rosinha evitaram a imprensa. A decisão de não dar explicações sobre a rebelião também não ajuda a compor a imagem de um executivo resolvedor de problemas com a qual o ex-governador sonha se apresentar aos eleitores. (“A Barbárie Anunciada”, Veja, 09/07/04)

Em vista do exposto, assume-se a idéia de que a agenti-vidade seja tratada como uma propriedade escalar ou gradual nas construções derivadas em –dor, considerando-se os traços do complexo agentivo propostos neste trabalho.

Para efeito da análise preliminar ora apresentada, sugere-se a construção de uma escala provisória para avaliar o grau de agentividade dos derivados em –dorpresentes no corpus. Para tanto, foram aplicados os traços do complexo de agentividade, a saber: Causativo, Controlador, Animado, Responsável e Intencional. Esses traços, se marcados como positivos, assinalam o grau máximo de agentividade. À medida que eles vão recebendo marcação negativa, o grau de agentividade do derivado diminui. Sobre esse aspecto, compare-se, por exemplo, o “comportamento” mais ou menos agentivo dos derivados diretor e reparadoras, que figuram, respectivamente, nos exemplos (3), repetido, e (11), abaixo:

(3) ... saí feito uma louca ... na escola ... procurando o diretor ... procurando o supervisor ...(Corpus D&G, p. 52)

(11) o médico também atende pacientes queimados ..., estes são cirurgias reparadoras, e atendemos sem autorização prévia. (Corpus D&G, p.268)

Em (3), pode-se dizer que o substantivo diretor está situado no pólo superior da escala, pois exibe todos os traços semânticos do agente-padrão, quer dizer, todos os traços dessa categoria são marcados positivamente: Causativo, Controlador, Animado,

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responsável e Intencional. além disso, o tipo semântico do verbo envolvido na formação desse derivado (verbo de ação-processo) é o que seleciona o agente prototípico.

Em (11), o adjetivo reparadoras apresenta um baixíssimo grau na escala de abstração do agente-padrão. Construções desse tipo não denotam seres intencionais. Sendo adjetivos, denotam atributos ou propriedades dos seres a que se referem. Analisada à luz dos traços do complexo agentivo, reparadoras compartilha com o agente prototípico apenas o tipo semântico da base verbal (verbo de ação-processo) e o traço Causativo, pois o sentido da construção está orientado para o papel Causativo.

observe ainda a ocorrência do deverbal protetor em (12). Note-se que, a despeito do tipo semântico da base verbal envol-vida na formação derivada (verbo de ação-processo), protetor denota um produto ou substância e não um ser intencional. assim sendo, embora o sentido do derivado seja orientado para o papel semântico Causativo, ele recebe, obviamente, marcação negativa em relação a todos os outros traços do agente prototípi-co: - Controlador, - Animado, - Responsável e - Intencional. No caso, esse derivado apresenta o mais baixo grau de agentividade.

(12) ... pra passar o veraneio todo ... vá ... branco volta preto ... você pode passar protetor solar mil ... (Corpus D&G, p. 372)

4. Conclusões preliminaresOs derivados deverbais em –dor se inserem, de modo geral,

na categoria dos nomes agentivos, considerados como formações morfológicas que designam um ser pela prática ou exercício de uma ação ou atividade, especificada pelo verbo. (BASÍLIO, 2004).

o estudo que se empreendeu aqui buscou investigar em que medida o caso ‘Agente’ (definido não a partir de um traço discreto, mas de feixes de traços semânticos) se manifesta nas referidas formações derivadas, tendo constatado a relevância dos traços do complexo Agentividade na caracterização do pa-pel semântico dessas construções. Utilizando-se os traços desse complexo, propôs-se uma escala provisória para avaliar o grau de agentividade exibido pelos derivados deverbais em –dor.No desenvolvimento da pesquisa, serão aplicados outros traços do parâmetro Transitividade de Hopper; Thompson (1980).

Em etapa posterior, pretende-se também testar hipóteses relacionadas à ambivalência morfossintática dos derivados, investigando sob que condições sintático-semântico-discursi-vas tais construções podem ser usadas indistintamente como substantivos ou adjetivos.

Além dessa questão, considerações bastante gerais foram feitas sobre o comportamento dos deverbais em –dor quanto à realização de sua estrutura argumental. Os dados parecem indi-

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car uma preferência pela omissão do argumento objeto em cons-truções com esses nomes, o que, se confirmado no desenrolar da pesquisa, reforçaria uma tendência geral dos nomes valenciais, já constatada em outros estudos sobre deverbais: a tendência da nominalização a não manter uma estrutura paralela à da base (no caso, o verbo). Nesses estudos, a nominalização tem sido vista como estritamente associada à redução da valência (cf. NEVES, 1996; GAMARSKI, 1996). Conforme se viu na análise prelimi-nar aqui esboçada, com relação à estrutura argumental dos deverbais em –dor, há indícios de que dois fatores, entre outros, devem ser levados em conta na consideração da não-expressão do argumento objeto: 1. relevância informacional do argumento objeto e 2. contribuição do contexto discursivo-pragmático para a recuperação desse argumento.

Abstract

Analysis of the argumental structure of N-dor derivative formation with the aim of investiga-ting how the features of ‘Agent’ are expressed in this forms. The work takes into account the interaction between morphosyntactic, semantic and pragmatic properties and presupposes a parallelism between a conceptual and linguistic categorization. The analysis is supported by lan-guage actual use.

Keywords: deverbal formations; argument struc-ture; agentivity.

Referências

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Gragoatá Nubiacira Fernandes de Oliveira

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GAMARSKI, Léa. Efeitos da morfologia sobre a estrutura ar-gumental – adjetivos deverbais em –nte. In: KOCH, I.G.V. (org.). Gramática do português falado. v. 6. Campinas, SP: Ed. da UNI-CAMP: FAPESP, 1996.GIVÓN, t. Syntax: a functional-typological introduction.v. 1. Amsterdam: John Benjamins, 1984.

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Correlações função-forma em dois períodos do século XX:

indícios de especialização funcionalMaria Alice Tavares – UFRN

Recebido 30, jun. 2006/Aprovado 28, ago. 2006

Resumo

Como resultado de seus processos de grama-ticalização, os conectores e, aí e então possuem funções sobrepostas no português brasilei-ro. À luz do suporte teórico da lingüística funcional, este artigo focaliza os padrões de correlação entre e, aí e então e três dessas funções: seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introduçãodeefeito. os dados são oriundos das seguintes fontes: (i) Asvinhasda ira, romance escrito por John Steinbeck em 1939, cuja tradução brasileira, datada de 1940, apresenta marcas do dialeto usado nos anos trinta pelas classes populares do esta-do do Rio Grande do Sul; (ii) 48 entrevistas provenientes do Banco de Dados VARSUL, que foram coletadas ao longo da última dé-cada do século XX. os resultados, obtidos através de análise quantitativa, revelam que e, aí e entãointercalam-se na codificação da seqüenciação textual, da seqüenciação tem-poral e da introdução de efeito na primeira e na segunda metade do século XX. Contudo, há evidências de mudanças nos padrões de correlação função-forma: na década de trinta, aí e então são muito menos utilizados para codificar algumas das funções em tela do que na década de noventa.

Palavras-chave: correlações função-forma; conectores; gramaticalização

Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

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1. Introdução

A língua se faz...: é um fazer-se num quadro de permanência e continuidade... Mas o fato de se manter parcialmente idêntica a si mesma e o fato de incorporar novas tradições é, precisa-mente, o que assegura a sua funcionalidade como língua e o seu caráter de objeto histórico. Um objeto histórico só o é, se é, ao mesmo tempo, permanência e sucessão. (COSERIU, 1979, p. 236)

observem-se as seguintes ocorrências:

(1) Aí a minha mãe: “Ah! pois é, mas eu tenho que dar baixa nessa carteira.” Aí o cara falou: “É, mas a senhora não quer nada?” E a minha mãe disse: “Quer nada o quê?” “É porque nós somos obrigados a vender um ônibus desses pra pagar ele, porque a- a carteira dele não está dando baixa, ninguém deu baixa, né?” (MC/FLP09J)1

(2) Mas ele insistiu e disse: “olha, tem uma equipe de São Paulo, lá, do Professor Odair Pedroso, se for necessário nós podemos lhe mandar pra São Paulo fazer um curso.” Então eu disse: “Se é assim, se desejam assim, eu posso tentar, se não decepcionar.” Então eu fiquei, realmente três meses em treinamento com a equipe do Professor Odair Pedroso num- no Hospital Celso Ramos. (AC/FLP21)

(3) aí no que ele chegou ali, ele me convidou pra mim ouvir música com ele. Aí eu disse: “ah, não, eu não vou, porque amanhã é outro dia, e eu, outro dia, tenho que enfrentar todo mundo: pai, mãe, tio, todo mundo, né?” Aí ele disse: “Não, mas, amanhã eu fico contigo.” Eu disse: “Ah, não.” Aí eu não sabia se eu acreditava nele, se eu ria, se eu chorava, se eu não- Eu não sabia a minha reação, não tem? (SE/FLP20)

Extraídos de narrativas orais em trechos de introdução de seqüências de discurso direto, com o verbo de elocução dizer no pretérito perfeito do indicativo, os dados acima ilustram o fato de que os conectores e, aí e então desempenham papéis similares no plano da articulação entre partes do discurso. Nesse âmbito, são freqüentemente utilizados, no português brasileiro contemporâ-neo, para a codificação de três funções semântico-pragmáticas em especial: seqüenciação textual, assinalando a ordem discursiva pela qual informações são apresentadas e desenvolvidas no texto; seqüenciação temporal, interligando eventos que se sucedem temporalmente; introduçãodeefeito, exibindo relações de conseqü-ência ou conclusão.2 Há registros de ocorrência, em uma única fonte de dados (cf. seção 3), de e, aí e então na expressão dessas funções já na primeira metade do século XX, o que motivou a realização deste estudo.

ao comparar dados da primeira e da segunda metade do século XX, pretendo analisar a distribuição de e, aí e então nas

1 o código que segue o trecho da entrevista a identifica. Por exemplo, (MC/FLP09J) = infor-mante MC, natural de Florianópolis (FLP), en-trevista número 09. Nos casos em que há uma letra após o número da entrevista, podemos ter ou J = informante de 15 a 21 anos, ou C = infor-mante de 09 a 12 anos.2 Há outros conectores que se correlacionam a uma ou mais das três funções sob enfoque, mas que foram exclu-ídos deste estudo por serem pouco recorrentes nas amostras de dados consideradas e por não aparecem na codificação de todas essas funções. Por exemplo, portanto não indica seqüenciação temporal e depois não in-dica introdução de efeito (cf. TAVARES, 2003a). Já daí sinaliza as três fun-ções, porém, conquanto seja bastante recorrente em algumas comunida-des de fala, não o é em outras (taVarES, 2006). E, aí e então expressam ainda outras funções vinculadas à articulação de partes do discurso, como a adversão, que não foi incluída neste estudo porque, diferen-temente do que ocorre com as funções aqui consideradas, existem outros conectores de grande recorrência cor-relacionados à ela, como mas, só que eagora. Uma análise de correlações função-forma engloban-do todos os conectores adversativos do portu-guês brasileiro contem-porâneo ainda está por ser levada a cabo.

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funções de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e intro-dução de efeito em termos de freqüência de uso, verificando se houve alterações nos padrões de correlação função-forma nesse interstício. Busco resposta para uma série de questões. Por exem-plo, as especializações funcionais de cada conector permanecem estáveis ou sofrem mudança ao longo do século XX? A cada pe-ríodo de tempo considerado, um dos conectores destaca-se como forma codificadora preferencial de uma ou mesmo de todas as funções em causa? Ou os três conectores partilham espaço na indicação de cada uma das funções? Mudanças na correlação de um dos conectores com uma das funções acarretariam mu-danças na correlação dos demais conectores com essa função, em efeito dominó?

É preciso considerar ainda que e, aí e então, provenientes de advérbios do latim, tornaram-se conectores através da grama-ticalização (cf. BARRETO, 1999; BRAGA, 2003; MARTELOTTA, 1994; TAVARES, 1999b, 2003a; entre outros), processo de mudança que conduz itens do léxico à gramática, ou que conduz itens a ela já pertencentes a novos encargos gramaticais. Comparar correlações função-forma em diferentes épocas pode ser útil para diagnosticar estágios de gramaticalização, pois é possível tomar essas correlações como evidências ou da estabilidade ou do avanço da mudança funcional sofrida por um certo item: com o passar do tempo, ele pode ter mantido o mesmo grau de correlação com determinada função, ou pode tê-lo aumentado ou diminuído. Nesse sentido, os dados aqui considerados trazem indícios a respeito dos próximos passos a serem seguidos por e, aí e então em seus processos de gramaticalização?

Nas próximas seções, encontram-se considerações referen-tes à gramaticalização, os procedimentos metodológicos segui-dos, uma descrição mais detalhada das funções sob estudo, a apresentação e a discussão dos resultados obtidos, seguindo-se as conclusões e as referências.

2. Uma questão de gramaticalização Neste estudo, busco fundamentação no aporte teórico do

funcionalismo lingüístico norte-americano, que defende que as correlações entre funções e formas estão continuamente em mobilidade devido à própria natureza da gramática, um sistema aberto, fortemente suscetível à mudança e intensamente afetado pelo uso que lhe é dado no dia-a-dia, inclusive em termos de freqüência. Ela é, nas palavras de Ford, Fox e Thompson (2003, p. 122),

[...] um conjunto vagamente organizado de memórias sobre o que as pessoas ouvem e repetem ao longo de sua vida em situações de comunicação, um conjunto de formas, padrões e práticas que surgem para servir às funções que os falantes necessitam desempenhar com maior freqüência.

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Estratégias retóricas envolvendo itens lexicais e/ou grama-ticais, inicialmente criativas e expressivas, tornam-se habituais por terem sido utilizadas recorrentemente em determinado tipo de contexto interacional (HOPPER, 1987). Segundo Thompson e Couper-Kuhlen (2005), tais padrões gramaticais habituais su-prem a necessidade humana de seguir modos rotinizados para agir no mundo: certos tipos de ação desencadeiam certos tipos de gramática.

O movimento de rotinização gramatical é denominado gramaticalização, que pode ser definida como o processo de regularização gradativa pelo qual um item freqüentemente utilizado em contextos comunicativos particulares adquire função gramatical e pode, uma vez gramaticalizado, angariar ainda mais funções gramaticais (HOPPER; TRAUGOTT, 1993). As mudanças envolvidas na gramaticalização, tanto as morfos-sintáticas quanto as semântico-pragmáticas, são induzidas pelos contextos de uso das formas relevantes.

Valendo-se do termo camadas para referir-se a formas lingüísticas distintas utilizadas para a codificação de uma mesma função gramatical em determinada etapa histórica de uma língua, Hopper (1991) prevê que, dentro de um domínio gramatical, podem emergir, via gramaticalização, novas cama-das para desempenhar funções que, em geral, já são exibidas por camadas mais antigas. Quando isso acontece, estas não são necessariamente descartadas, e podem permanecer coexistindo e interagindo com as novas, em uma situação de estratificação (layering), isto é, de sobreposição funcional. O autor apresenta como exemplos de camadas que convivem no mesmo plano funcional as formas do pretérito do inglês: ablaut (They sang), sufixação (iadmiredit) e construção perifrástica (Wehaveusedit), assim como as diversas formas de sinalização do futuro: will, be going to, be + ing, be + to, be about to.3

Vejamos como se comportam os processos de gramati-calização de e, aí e então no que diz respeito ao fenômeno de estratificação. E é proveniente do conector latino et, por sua vez derivado do advérbio do latim arcaico et/eti ‘também’. Aí, do advérbio latino ibi ‘nesse lugar’ ou ‘nesse momento’, e então, do advérbio latino intunc ‘nesse momento’, receberam, em português, papéis adverbiais de natureza dêitica e anafórica espacial e/ou temporal, dos quais são oriundos seus usos como conectores.4 o conector et já indicava seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito, funções conservadas por e em português.Então também é encontradiço na indicação dessas três funções já nos primórdios da língua portuguesa (séculos XIII e XIV). Contudo, a utilização de aí como conector parece ser um fato bastante recente. Em um estudo anterior (TAVARES, 2003a), embora tenha perquirido cerca de quarenta textos portugueses e brasileiros de gêneros variados escritos do século ao XIII ao

3 Con soa nte Givón (1984), a g ra m át ica agrega domínios varia-dos, cada um abarcando um conjunto de formas gramaticalizadas, isto é, de uso rotinizado. Esses domínios podem corresponder a áreas funcionais gerais como TAM (tempo/ aspecto/ modalidade) ou caso, ou a áreas mais específicas, como o tempo passa-do, o caso nominativo, etc. As formas perti-nentes a cada domínio – suas camadas – são um conjunto de elementos funcionalmente unifi-cados, isto é, codificam o mesmo ou semelhante papel. 4 Tavares (2003a) traz uma análise dos vários estágios da gramatica-lização de e, aí e então como conectores, com base em dados do latim e das várias fases da língua portuguesa, além de discutir a natureza coordenativa das fun-ções de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito, bem como a categorização de e, aí e então como conectores coordenativos. Em Bar-reto (1999), há uma des-crição da trajetória de mudança de e/et desde o proto-indo-europeu.

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XX, só localizei ocorrências em romances brasileiros escritos a partir da primeira metade do século XX. É possível, portanto, que aí tenha se tornado conector apenas no português brasilei-ro, conclusão reforçada por resultados obtidos através de outro estudo (TAVARES, 2003b), em que comparei amostras de fala do português brasileiro e do português europeu, ambas do final da segunda metade do século XX, e não encontrei, além mar, dados de aí como conector. Em contraste, no português brasilei-ro, e, aí e então são recorrentemente utilizados como conectores denotadores de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito, caracterizando, portanto, casos de estrati-ficação funcional no domínio da articulação de segmentos do discurso.

Outro efeito típico da gramaticalização é o denominado por Hopper (1991) de especialização, processo em que uma das formas estratificadas sofreria abstração e generalização de signi-ficado, passando a abarcar especificações de sentido e/ou prefe-rências contextuais que porventura fossem manifestadas pelas demais. Desse modo, poderia assumir a totalidade ou grande parte das funções pertinentes a seu domínio gramatical, o que levaria à diminuição do uso ou mesmo à eliminação das outras formas, por terem se tornado desnecessárias. A especialização, portanto, é capaz de suavizar ou mesmo extinguir casos de estratificação funcional. Há que se considerar também a possi-bilidade de ocorrência de um outro tipo de especialização, que se caracteriza não por generalização, mas sim por especificação de significados. Nesse caso, cada forma seria particularizada para funções específicas em seu domínio gramatical, o que também acarretaria o fim da estratificação, embora sem levar ao desaparecimento de formas.

Quanto mais intensa for uma correlação função-forma, mais especializada estará a forma para a função, e menor será o uso de outras formas para a codificação desta. Por conseguinte, não ocorre estratificação funcional em uma situação caracteri-zada por correlação de 100% entre uma função e uma forma, pois há uma única forma especializada para a função em causa. Em contraste, nos casos de estratificação, diferentes graus de especialização podem ser encontrados, já que é possível que um item, embora mais recorrente na codificação de uma dada função, ainda assim tenha seu espaço partilhado com outros itens, de menor freqüência. No entanto, em uma situação em que duas ou mais formas se correlacionam a uma mesma função com freqüências similares, não se pode falar em especialização: as formas estariam bastante sobrepostas funcionalmente.

Consideremos um caso de especialização por generaliza-ção, o de et, que, segundo Coseriu (apud BARRETO, 1999), em uma etapa de seu processo de gramaticalização ainda no latim, partilhava funções com outros três conectores copulativos: ac,

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atque e o enclítico -que. atque e ac desempenhavam o mesmo papel, sendo que o uso de um ou outro dependia do contexto: ac era empregado preferencialmente antes de palavras iniciadas por consoante e atque antes de palavras iniciadas por vogal ou h, embora também pudessem ser usados em outros contextos. o uso de et indicava adição; o uso de ac/atque indicava adição e unidade, dando realce ao segundo termo em relação ao pri-meiro; e o uso de -que indicava adição, unidade e equivalência, apresentando o segundo membro como um apêndice do anterior ou como continuação ou extensão dele. A opção entre ac ou -que dependia da perspectiva resultante da união dos dois termos: caso pretendesse obter um efeito de forte união, o falante usaria –que: pattermaterque = paiemãe; caso não pretendesse estabelecer tal equivalência, empregaria ac ou atque:poematenerumetmo-ratumatquemolle= poema fraco, arrastado emole. Essas nuanças, entretanto, não eram sensíveis e, muitas vezes, et substituía os outros conectores.

as relações entre et, ac/atque e -que são típicas de uma situação de estratificação, pois, embora cada conector apresen-tasse tendências de uso particulares (isto é, cada um possuía um certo grau de especialização funcional), tais tendências não se revelavam categóricas, mas sim preferenciais. Assim, o uso sobreposto era possível, e, em especial, et, de significado cada vez mais generalizado, podia facilmente ser utilizado nos con-textos típicos das demais formas. Como desdobramento de seu processo de gramaticalização, et passou a preponderar sobre ac/atque e –que, acarretando sua eliminação. Com o desapare-cimento destes conectores, as nuanças de significação ligadas a seu uso deixaram de receber expressão formal específica, e foram acopladas ao conjunto de funções desempenhadas por et. Já na época imperial romana, et reinava sozinho no domínio. Chegou ao português sob a forma e, conservando os mesmos ou similares papéis que exibia no latim.

Podemos considerar como exemplo de especialização por especificação o caso descrito por Silva (1996), envolvendo os pronomes possessivos seu/sua e dele/dela no português brasileiro. Por volta do século XVIII, a forma você emergiu como pronome pessoal, derivado de um processo de gramaticalização que partiu do pronome de tratamento Vossa Mercê. Você denota a 2ª pessoa do singular, mas, de acordo com a norma canônica, concorda morfologicamente com a 3ª pessoa gramatical (Você come). Uma das conseqüências desse fato é que a forma seu/sua, possessivo correspondente à 3ª pessoa do singular ele/ela, passou a corres-ponder também a você, gerando casos de ambigüidade, como em “Joana, vi Stella beijando seu namorado”, que pode significar que o namorado é de Joana ou de Stella. Para resolver essa am-bigüidade, há várias estratégias, entre as quais a utilização do genitivo dele/dela para a referência à 3ª pessoa (“Joana, vi Stella

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beijando o namorado dela”), principalmente na língua oral. Con-figura-se, portanto, um fenômeno de estratificação envolvendo seu/sua e dele/dela como camadas na expressão do possessivo de 3ª pessoa. Nesse papel, conforme apontado por Silva, houve, na oralidade, um aumento da freqüência de ocorrência de dele/dela – de 75% na década de 70 para 91,6% na década de 80, resultado que mostra que esta forma está altamente especializada para a 3ª pessoa do singular, ao passo que seu/sua tem sido reservado para a 2ª pessoa (você).

A análise de correlações função-forma em um domínio gramatical somente será completa se forem levadas em conta todas as formas relevantes, porquanto é o uso dado a cada uma delas que define os rumos do domínio como um todo. Como sublinham Hopper e Traugott (1993), a gramaticalização de um determinado item nunca ocorre isoladamente. o percurso de mudança de uma forma depende das trajetórias seguidas por outras formas: sem a consideração do conjunto dos usos, prova-velmente passaria despercebido se – e em que grau – o aumento de recorrência de uma das formas tem levado as demais a se deslocarem rumo a outras funções ou mesmo se as tem colocado em risco de extinção.

3. Procedimentos metodológicosLanço mão de duas amostras do português brasileiro para

compará-las no que diz respeito às correlações entre as funções de sequenciação textual, sequenciação temporal e introdução de efeito e os conectores e, aí e então: (i) as ocorrências do final da primeira metade do século XX foram obtidas na tradução brasi-leira do romance regionalista norte-americano The grapes of wrath, escrito em 1939 por John Steinbeck e traduzido para o português sob o título Asvinhasdaira em 1940; (ii) as ocorrências da fala de florianopolitanos nativos foram angariadas em 48 entrevistas pertencentes ao Banco de Dados VARSUL. Essas entrevistas foram coletadas ao longo da última década do século XX.

Merecem comentários as razões pelas quais optei pela comparação de resultados provenientes de amostras de dados tão díspares, uma de fala real de uma comunidade brasileira e outra de diálogos fictícios entre personagens em um texto es-crito. a coleta de dados de então e especialmente de aí no papel de conectores em textos orais e escritos de épocas anteriores ao final da segunda metade do século XX é tarefa árdua, pois sua freqüência de aparecimento é bastante baixa, ao contrário do que ocorre com e. Em busca de dados, revistei um total de quarenta textos – de vários autores e gêneros, publicados do século XIII ao século XX (cf. TAVARES, 2003a). Constatei que, em todos os recortes de tempo efetuados, eé sempre abundante e então é encontradiço desde o século XIII, embora, à exceção de Asvinhasdaira, com pouca freqüência para a execução de uma

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análise quantitativa. Já as ocorrências de aí somente começam a aparecer no início do século XX e, mesmo nesse período, são bastante escassas. Outros pesquisadores têm se defrontado com o mesmo problema. Por exemplo, Braga (2003, p. 07) aponta como “[...] dificuldade básica inerente aos estudos voltados para a trajetória de aí[...]: a inexistência de material diacrônico que fundamentasse a análise.” Asvinhasdaira fornece, dessa guisa, o que pode ser considerado uma raridade: dados suficientes de e, aí e entãoprovenientes de uma fatia de tempo não tão próxima da atual.

Afora ser o único texto que traz material para a análise, também motiva a seleção de Asvinhasdaira para este estudo o fato de que os dados daí extraídos, embora provenientes de tentativas de imitação da oralidade na fala de personagens, e não da fala real de uma comunidade, podem ser tomados como refletindo usos reais da época em dialetos do extremo sul do Brasil. Em The grapes of wrath, os personagens falam de acordo com a “linguagem chã dos homens de sua condição” (StEIN-BECK, 1940, p. 10), integrantes de classes socio-economicamente desfavorecidas. Para manter o tom de oralidade e o destaque à presença de traços de língua não-padrão na fala dos persona-gens, a tradução para o português se valeu das marcas do dialeto das classes populares do estado do rio Grande do Sul. Sobre a “audácia” dos tradutores Ernesto Vinhaes e Herbert Caro em inserir em sua tradução a linguagem popular do rio Grande do Sul, Menon (2000, p. 149) aponta que “provavelmente, para terem reproduzido tão fielmente esse dialeto, eram eles mesmos utentes dessa variedade, pois em nenhum momento parece haver artificialismo nas falas das personagens.” Assim, interpretarei os resultados obtidos através da análise da fala das personagens de Asvinhasdaira como pistas indicativas (as melhores a que tenho acesso) de correlações função-forma vigentes em 1940, no rio Grande do Sul.

Cumpre salientar ainda que, embora os traços dialetais presentes em As vinhas da ira sejam de fala gaúcha, acredito ser possível tomá-los como representando um estágio anterior de língua em relação à fala florianopolitana mais recente, em virtude da proximidade geográfica dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Além disso, em um estudo anterior (taVarES, 1999a), com o objetivo de destacar semelhanças e diferenças relativamente às restrições sociolingüísticas sobre o emprego de conectores em duas comunidades de fala brasileiras – Florianópolis e Rio de Janeiro, constatei que grupos de fatores sociais (sexo, idade e escolaridade) e lingüísticos (tipo de discurso e traços semânticos do verbo) condicionadores do uso de ee de aí em terras cariocas atuavam de modo semelhante sobre o uso dos mesmos conectores em terras florianopolitanas (com freqüências e pesos relativos bastante próximos). Tal similaridade parece

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evidenciar a existência de tendências gerais quanto à distribuição sociolingüística desses conectores no português brasileiro do final do século XX, independentemente da região considerada, hipótese que pode ser estendida para as comunidades de fala gaúcha e catarinense do final da primeira metade do século XX. Destarte, parto da suposição de que os usos dados a e, aí eentãoem 1940, no rio Grande do Sul, assemelhava-se aos usos dados a esses conectores na mesma época, em Santa Catarina, o que permite a comparação das duas amostras de dados selecionadas para este estudo.

Como Asvinhasdaira é um romance bastante extenso, com um total de 489 páginas e 24 capítulos na edição consultada (a primeira edição em português brasileiro, datada de 1940), recolhi dados dos trechos de fala das personagens apenas nas 197 páginas iniciais (da página 07 à 204), nos capítulos I, III, V, VII, IX, XII, XIV e XV. Deixei de lado também os capítulos intercalados (II, IV, VI, VIII, X, XI e XIII), em que o narrador tece considerações pertinentes à narrativa, destacando aspectos históricos, geográficos, sócio-econômicos, entre outros, sem dar voz às personagens.

Quanto aos dados de Florianópolis, como os conectores e, aíeentão são bastante recorrentes na fala, considerei apenas os 30 minutos finais das 48 entrevistas, que têm cada uma cerca de 60 minutos de duração. Elas foram realizadas com informantes florianopolitanos nativos distribuídos em relação às variáveis sociais sexo, idade (em quatro faixas etárias: 09 a 11; 15 a 21; 25 a 45; mais de 50 anos) e escolaridade (em três níveis: 4a ou 5a séries do ensino fundamental; 8a série do ensino fundamental; 3o ano do ensino médio). Todas as entrevistas foram coletadas na última década do século XX e pertencem ao Banco de Dados VARSUL (Variação Lingüística Urbana da Região Sul).

Obtive, na amostra extraída de Asvinhasdaira, um total de 734 ocorrências de e, aí e então, e, na amostra de Florianópolis, um total de 2.813 ocorrências desses conectores. Em 100% desses dados, os conectores introduzem a unidade que possuem por escopo, ocupando a posição de extrema margem esquerda, isto é, entre o final de uma oração ou parte maior do texto e o início de outra, indício de que estão altamente rotinizados nessa que é a posição sintática típica dos conectores.5

4. Sobre as funções Como funções semântico-pragmáticas pertinentes ao

domínio da articulação de partes do discurso, a seqüenciação textual, a seqüenciação temporal e a introdução de efeito são interpretadas pelo ouvinte a partir da soma de diversos indícios: o que foi dito antes, o que se seguiu, inferências e implicaturas em jogo no momento da interação. Também contam as experi-ências anteriores dos interlocutores, a sua familiaridade com a

5 Silva, Tarallo e Braga (1996), em um estudo utilizando amostras do NURC, também apon-tam que os conectores ocorrem preferencial-mente à extrema esquer-da dos enunciados: e e aí em 100% das ocorrências e então em 97,16%.

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gama de tonalidades passíveis de colorirem as tramas coesivas alinhavadas entre partes do discurso. A seguir, as três funções são descritas e exemplificadas.

A seqüenciação textual é uma estratégia coesiva que assi-nala a ordem pela qual as unidades conectadas são apresentadas e desenvolvidas ao longo do tempo discursivo, salientando o encadeamento de uma porção anterior do discurso com uma posterior. Alguns exemplos:

(4) E tratou de explicar: --- A estrada ‘tá cheia de gente e todo o mundo quer água e suja a privada e rouba o que pode e não compra coisa nenhuma. (Asvinhasdaira, p. 130)

(5) Um moleque dos bons. Já faz uma semana que não vem em casa. [...] Eu era pior. Era muito pior, um demônio, que nem tu; – disse radiante. – Então, tinha um culto campestre em Sallisaw quando eu tinha a idade do al, um pouco mais do que ele. Ele é um menino ainda, não entende de nada, mas eu era um pouco mais velho. tinha umas quinhentas pessoas nesse culto e uma porção de crianças. (Asvinhasdaira, p. 85)

(6) Ela tinha de cento e sete a cento e quatorze, a tia Pequena. Ela tinha acabado de morrer. Aí ela morreu no sábado, às nove horas, e a mãe morreu às cinco horas de- cinco e vinte da manhã de domingo. Logo depois. (RO/FLP03)

(7) E eu e a S., a gente se perdeu lá, porque a gente andava sempre juntas, né? Então, tem duas descidas e a gente não sabe qual a descida que é pra gente sair, e eles não dão informação, tu sabes? Os paraguaios, eles não dão pra gente- informação pra gente. (AT/FLP09)

A seqüenciação temporal emerge quando eventos são apre-sentados no discurso de acordo com a ordem em que ocorreram no tempo, envolvendo a pressuposição de que o segundo evento ocorreu mais tarde em relação ao primeiro:

(8) Bem, agora o senhor pode ajudar. Preste atenção: eu vou bater, que é pra afrouxar um pouco êsse troço. Aí o senhor tira êsses parafusos em cima e eu tiro os parafusos de baixo. Cuidado com o mancal. (Asvinhasdaira, p. 181)

(9) O velho Tom Joad disse: “mergulha êle na água.” Então eu peguei na sua cabeça e empurrei ela pra debaixo da água. (Asvinhas da ira, p. 47)

(10) Eu muitas vezes me abaixei ali defronte ao banquinho do freguês e ajudei ele a- a calçar o sapato. (AL/FLP22)

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(11) Botava o espetinho, assim, dentro do fogão à lenha, que na época não existia fogão a gás. Botava, assim, deixava assar aquela manta de carne seca. Então ela passava a mão, dividia aquele alguidar em- Lógico, ela não botava até em cima, botava até certa altura. (PE/FLP02)

introduçãodeefeito é o rótulo por mim atribuído à adição, no discurso, de informações que representam conclusão ou con-seqüência em relação ao que foi dito anteriormente. Tanto a cro-nologia temporal quanto a discursiva podem estar implicadas: a primeira, quando os casos de introdução de efeito envolvem a interligação de eventos que se sucedem temporalmente, sendo o primeiro a causa e o segundo sua conseqüência. No entanto, quando são conectados argumentos sem relação de implicação temporal, temos cronologia discursiva: ou um argumento-causa precede um argumento-conseqüência, ou, de um argumento anteriormente dado, deriva uma certa conclusão. Vejamos os exemplos:

(12) o homem meteu-se a besta e tive que dar nele. (Asvinhasdaira, p. 283)

(13) Tu voltou, Tommy. Então, tu pode ir com a gente. tu pode vir! (Asvinhasdaira, p. 74)

(14) Porque uma vez ele- ele soltou as galinhas, foi tudo pra debaixo de um porão, aí foi o ovo tudo pro pau. (AZ/FLP04)

(15) É como se tivesse sempre alguém vigiando a pessoa. Não tens liberdade. Então é melhor viver sem o vício, né? (DA/FLP17)

5. Correlações função-forma As tabelas 1 e 2 apresentam, em forma de freqüências e

percentuais, as correlações entre e, aí e então e as funções de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito na primeira e na segunda metade do século XX:

E aÍ ENTÃOFUNÇÕES Ap./Tot. % Ap./Tot. % Ap./Tot. %Seqüenciação textual 302/315 96 02/315 01 11/315 03Seqüenciação temporal 223/268 83 24/268 09 21/268 08Introdução de efeito 72/151 48 12/151 08 67/151 44TOTAL 597/734 82 38/734 05 99/734 13

Tabela 1: Correlações função-forma no final da 1ª metade do século XX

No final da primeira metade do século XX, em Asvinhasdaira, a seqüenciação textual é fortemente associada ao apare-cimento de e, com freqüência de 96%, quase caracterizando uso categórico. Trata-se, portanto, de uma correlação função-forma próxima de 100%. A sequenciação temporal também se encon-

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tra fortemente vinculada a e, em 83% das ocorrências, mas aí e então ocupam um pequeno espaço na expressão desta função (8 e 9%, respectivamente). Há, pois, alta correlação entre e e a seqüenciação textual e a seqüenciação temporal: o conector está, na fatia de tempo sob enfoque, altamente especializado para tais funções. Por outro lado, não é possível apontar a existência de uma forte correlação entre a introdução de efeito e apenas uma de suas formas codificadoras, pois as freqüências de uso de e e de então são similares: 48 e 44%, respectivamente.

E aÍ ENTÃOFUNÇÕES Ap./Tot. % Ap./Tot. % Ap./Tot. %Seqüenciação textual 861/1420 60 279/1420 20 280/1420 20Seqüenciação temporal 465/907 51 402/907 44 40/907 04Introdução de efeito 131/486 27 147/486 30 208/486 43TOTAL 1457/2813 52 828/2813 29 528/2813 19

Tabela 2: Correlações função-forma no final da 2ª metade do século XX

No final da segunda metade do século XX, em Florianó-polis, o aparecimento de e ainda está bastante correlacionado à seqüenciação textual (60%), mas não de modo quase categórico como em Asvinhasdaira. Nesse papel, houve uma elevação no aparecimento de aí e de então (ambos com 20%). Quanto à seqüen-ciação temporal, e e aí possuem freqüências próximas (51 e 44%, respectivamente), o que impossibilita considerar que haja uma maior especialização de um deles para a referida função. Neste caso, portanto, e e aí correlacionam-se fortemente a uma mesma função. É possível observar ainda que então perdeu espaço na indicação da seqüenciação temporal, de 8% em Asvinhasdaira para 4% em Florianópolis.

Finalmente, no que diz respeito à introdução de efeito, e teve seu uso diminuído de 48 para 27% e aí teve seu uso aumen-tado de 8 para 30%. Já então não apresenta alteração em termos de freqüência entre as duas metades do século XX: passa de 44% na primeira a 43% na segunda. ou seja, todos os conectores são utilizados com boa freqüência como marcas da introdução de efeito: e detém 27% dos casos, aí 29% e então 43%. Há, portanto, três formas correlacionadas à mesma função, embora em dife-rentes graus: então é o conector de maior recorrência e e é o de menor, em contraste com o que ocorria na primeira metade do século XX, em que este último era o conector mais utilizado na indicação da introdução de efeito.

Consideremos tais resultados à luz das duas possibilidades de especialização descritas na seção 2, generalização e especificação. As especializações quase categóricas de epara a sequenciação textual e para a seqüenciação temporal no final da primeira me-tade do século XX apontam para o fenômeno de especialização por generalização: no domínio da articulação entre partes do discurso

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de 1940 representado em Asvinhasdaira, e reina quase absoluto (com a freqüência geral de 82%), cedendo pouco espaço para aí e então (que contam juntos com 18% do total de dados). Se e tivesse tido, posteriormente, seu uso ampliado ainda mais, poderia ter substituído de vez seus concorrentes, configurando-se assim um caso de especialização similar ao de et no latim, que desbancou at/atque e -que (cf. seção 2).

Contudo, os resultados obtidos para as correlações função-forma no final da segunda metade do século XX em Florianópolis revelam especializações bem menos categóricas, o que parece eliminar a hipótese de que uma das formas venha a predomi-nar sobre as demais na codificação de todas as três funções. Por conseguinte, atualmente, a possibilidade de especialização por generalização é remota.

E continua se destacando na indicação da seqüenciação textual, mas aí e então tiveram um bom aumento de uso nessa função. Quanto à seqüenciação temporal, a taxa de emprego de e e aí é similar, e, na indicação da introdução de efeito, os três conectores recorrem com boa freqüência. Talvez um dos desdobramentos futuros dessas correlações seja a especializa-ção por especificação, caso em que cada conector se tornaria especializado para uma função distinta no plano da articulação do discurso. Entretanto, com base nos resultados obtidos, é pre-maturo afirmar que e, aí e então poderão passar a predominar em papéis distintos. Para cada função, no português brasileiro contemporâneo, há mais de uma forma fortemente correlacio-nada, situação que contrasta com a que ocorre, por exemplo, no caso dos pronomes possessivos seu/sua e dele/dela na oralidade (cf. seção 2).

É interessante observar ainda que a freqüência geral de e, considerando a totalidade dos dados, diminuiu de 82% em Asvinhasdairapara 52% em Florianópolis, a de aí sofreu uma ele-vação de 05 para 29% e a de então de 13 para 19%. Em um estudo anterior (TAVARES, 2003b), comparei amostras de fala recentes do português brasileiro e do português europeu, datadas do final do século XX, e encontrei uma alta taxa de aparecimento de e no português europeu: ele foi responsável por 82% das ocorrên-cias, somando-se os casos de seqüenciação textual, seqüencia-ção temporal e introdução de efeito. Parece, portanto, que, em relação à utilização de e, os resultados referentes ao português brasileiro na primeira metade do século XX em Asvinhasdaira estão próximos daqueles encontrados para o português europeu na segunda metade do século XX: em ambas e é responsável por 82% dos dados.6

No caso do português brasileiro, houve ampliação da utilização de aí e de então e retração da utilização de e, o que distanciou os domínios da seqüenciação do final da primeira metade e do final da segunda metade do século XX, bem como

6 No português europeu do final do século XX, destacam-se também os conectores portanto (16%) e então (2%). a distribui-ção por função é a se-guinte: (i) sequenciação textual: e = 88%, portanto = 10%, então = 2%; (ii) se-qüenciação temporal: e = 98%, portanto = 1%, então = 1%; (iii) introdução de efeito: e= 43%, portanto = 51%, então = 6%. Maiores informações podem ser conferidas em Tavares (2003b). No português brasi leiro, encontrei apenas um dado de portanto na amostra de Florianópolis, e nenhum na fala dos personagens de AsVinhasdaira.

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os domínios brasileiro e europeu da atualidade. Na Florianó-polis do final do século XX, as freqüências revelam correlações função-forma que estão longe das opções quase categóricas pelo eencontradas em Asvinhasdaira.

6. À guisa de conclusãoa análise da distribuição dos conectores e, aí e então nas

funções de seqüenciação textual, seqüenciação temporal e in-trodução de efeito trouxe evidências a respeito das correlações função-forma que se conservaram enraizadas ao longo do século XX e das que sofreram mudança. Conquanto e, aí e então interca-lem-se na sinalização das funções sob enfoque tanto na primeira como na segunda metade do século, os padrões de ocorrência de cada conector como marca formal de cada função parecem ter sido bastante alterados.

Na primeira metade do século XX, e é a forma codificadora preferencial da seqüenciação textual e da seqüenciação temporal, além de também se destacar na introdução de efeito, ao lado de então. Contudo, na segunda metade do século, epartilha boa parte da tarefa de indicação da seqüenciação textual e da intro-dução de efeito com aí e então e da seqüenciação temporal com aí. O aumento da taxa geral de uso de então (de 13 para 19%) e em especial de aí (de 5 para 29%) teve como contraparte, em efeito dominó, a diminuição de uso de eem todas as funções, embora ele ainda seja o conector predominante na seqüenciação textual e na seqüenciação temporal.

A grande elevação da freqüência de aparecimento de aí, forma relativamente recente no domínio da articulação discur-siva, pode ser tomada como evidência de que houve avanços em sua gramaticalização ao longo do século XX na direção de uma maior consolidação como conector sinalizador de três funções semântico-pragmáticas vinculadas ao domínio, inclusive a se-qüenciação textual, à qual, na primeira metade do século, era pouco correlacionado (1%).

As correlações função-forma mais estáveis ao longo do século XX foram as de então, que, apesar de ter aumentada sua recorrência na expressão da seqüenciação textual (de 3 para 20%), teve pequena variação na expressão da seqüenciação temporal e manteve o mesmo patamar de vínculo com a introdução de efeito.

Este estudo, portanto, revelou relações dinâmicas e fluidas entre funções e formas ao longo do século XX, servindo para diagnosticar possíveis rumos a serem tomados pelo domínio de articulação de partes do discurso no português falado e do processo de gramaticalização de cada conector em particular: embora os resultados referentes à primeira metade do século XX apontassem para o fenômeno de especialização por genera-lização dado o forte predomínio de e na expressão de todas as

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funções, os resultados referentes à segunda metade do século descartam essa possibilidade, pois, para cada função, há mais de uma forma fortemente correlacionada. Contudo, se ocorrerá especialização por especificação, somente os desenvolvimentos futuros do domínio da articulação poderão indicar.

Abstract

As an outcome of grammaticalization processes, connectors e, aíandentão have overlapped func-tions in Brazilian Portuguese. From the theore-tical support provided by functional linguistics, this paper focuses on the patterns of correlation between e, aíandentão and three of these func-tions: textual sequenciation, temporal sequencia-tion and effect introduction. The data come from the following sources: (i) The grapes of wrath, an novel written by John Steinbeck in 1939, which 1940 Brazilian translation brings markers of the dialect used in the thirties by working classes in the southest state of the country, Rio Grande do Sul; (ii) 48 interviews from the VARSUL Data Base, which were collected during the last decade of the XX century. The results, obtained through quantitative analysis, show that e, aíandentãoare used to code textual sequenciation, temporal sequenciation and effect introduction both in the first and second half of the XX century. Howe-ver, the results also bring to light evidence thatthe patterns of function-form correlations have changed: in the thirties, aíandentão are much less used to code some of these functions than they areinthenineties.

Keywords: function-form correlations; connec-tors; grammaticalization

Gragoatá Maria Alice Tavares – UFRN

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. ��- �2, 2. sem. 2006

Gramaticalizaçao de conjunçoes coordenativas: a história

de uma conclusivaSanderléia Roberta Longhin-Thomazi

Recebido 30, jun. 2006/Aprovado 30, ago. 2006

ResumoNeste trabalho, analiso aspectos relativos à gramaticalização de conjunções coordenativas. Assumindo que fatores de ordem cognitiva e pragmática interagem para a criação de novos itens gramaticais, e adotando uma concepção de coordenação fundamentada em critérios semân-tico-funcionais, reconstruo o percurso histórico-evolutivo da conjunção conclusiva logo, a partir de fontes históricas do português.

Palavras-chave: gramaticalização; conjunção; coordenação; lingüística histórica.

Sanderléia Roberta Longhin-Thomazi

Niterói, n. 21, p. ��-�2, 2. sem. 200660

Apresentação Este trabalho trata de um fato lingüístico - já conhecido e

anunciado pelos historiadores do português - que é a relação genética existente entre os usos adverbial e conjuncional de logo: o primeiro está na base da constituição do segundo. Bueno (1968), por exemplo, argumenta que a conjunção conclusiva logo é o mesmo advérbio temporal, mas “com nova função gramati-cal”. Contudo, resta explicar ainda como se deu o processo de transição entre essas categorias, o que pretendo fazer ao longo desta exposição, por meio da consolidação de dois objetivos mais específicos. Considerando tal processo como um fenômeno legítimo de Gramaticalização, meus propósitos são: (i) explicitar a relação que existe entre o sentido da conjunção logoe o sentido do advérbio logo, relação esta que estaria na origem da derivação histórica; e, (ii) explicitar o contexto lingüístico que teria favo-recido a alteração na fronteira dos constituintes e a posterior reinterpretação do advérbio como conjunção.

1. Gramaticalização de conjunções Entende-se por “gramaticalização” um processo especial de

mudança lingüística, principalmente diacrônico e gradual, em que itens lexicais plenos passam a funcionar como expressões gramaticais específicas, em razão de um conjunto de alterações nos vários componentes da linguagem, sobretudo no sintático e no semântico. trata-se, em outras palavras, de uma evidência de que as gramáticas das línguas são constantemente remodeladas, via processos de mudança que reutilizam material da própria língua.

Dos muitos fenômenos de gramaticalização, a formação de conjunções tem se mostrado um domínio extremamente fértil, visto que, na história das línguas, essa classe de palavras sempre esteve sujeita à renovação (MEILLET, 1912). Particularmente, no campo das conjunções de coordenação, os estudiosos concordam que a fonte diacrônica é, até certo ponto, transparente. Paul (1886) já afirmava que as conjunções (“palavras de ligação”, em sua terminologia) derivam historicamente de advérbios conjuncio-nais ou de alguns usos de pronomes conjuncionais, itens que já serviam para ligar orações antes mesmo de se transformarem em conjunções propriamente ditas. Said ali (1964, p. 220) tam-bém destaca o papel de advérbios e pronomes na formação de conjunções:

Obscura é a origem de algumas conjunções latinas; porém a julgar por aquelas cujo histórico se conhece, a linguagem não teria creado vocábulos especiais para constituir a nova catego-ria. Serviram a este fim advérbios que, de modestos determi-nantes de um conceito único, se usaram como determinantes de toda uma sentença; e serviram também pronomes do tipo

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relativo-interrogativo, ou temas pronominais acrescidos de novos elementos.

Câmara (1975), por sua vez, é mais categórico e defende que “geneticamente, a conjunção coordenativa é sempre um advérbio”. Além disso, ele chama a atenção para o fato de que, em português, as conjunções não são os únicos mecanismos gramaticais que dão conta de expressar a coordenação sindéti-ca. ao lado delas, há uma série de advérbios que, quer simples ou em locução, estabelecem um elo coordenativo entre orações e até mesmo porções maiores de texto. Essa correlação estreita entre advérbio e conjunção também é mostrada no trabalho de Mithun (1988). A partir do estudo das formas de coordenação em línguas tipologicamente diversas, a autora mostra que as conjunções coordenativas tendem a derivar principalmente de advérbios discursivos.

É nessa perspectiva que o presente trabalho persegue o objetivo de analisar o processo histórico-diacrônico que levou à formação em português da conclusiva logo. a análise pretende enfocar dois aspectos salientes da mudança por gramaticaliza-ção. De um lado, examino as alterações de sentido, tendo em vista que elas são conduzidas por dois mecanismos distintos, mas complementares. Um deles, que é de natureza cognitiva, consiste na projeção, em passos discretos, de significados de um domínio cognitivo mais concreto para um mais abstrato, enquanto o segundo, que é de natureza pragmática, consiste na transição gradual e contínua de um significado a outro, por meio da reinterpretação contextual.

De outro lado, examino as alterações sintáticas, tendo em vista que, segundo Hopper e traugott (1993), a mudança de categoria segue uma tendência particular em que categorias menores (preposição, conjunção, auxiliares) derivam de cate-gorias maiores (nomes, verbos) ou de categorias intermediárias (adjetivos, advérbios), por meio de estágios de sobreposição, que revelam a gradualidade na fixação das categorias. A constituição do estatuto conjuncional de logo será examinada à luz de uma concepção de coordenação fundamentalmente semântica, for-mulada a partir de um texto de Bally (1944), cuja importância já foi reconhecida por Ducrot (1977), Geraldi (1981), Koch (1987), Guimarães (1987) e Carone (1988).

2. Alterações no sentido Em conformidade com os pressupostos da lingüística

cognitiva e da lingüística funcionalista, defendo que as funções sociais e cognitivas desempenhadas pela língua têm um papel singular no processo de criação da gramática dessa língua que, por sua vez, equivale a um conjunto de estruturas que experi-mentam constantes acomodações – ou gramaticalizações - já que

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se prestam à satisfação das necessidades de expressão e comu-nicação. Portanto, lanço mão sobretudo de fatores cognitivos e pragmáticos para explicar aspectos da mudança de significados envolvida na gramaticalização.

2.1 Fatores cognitivos e pragmáticos o entendimento dos processos semânticos envolvidos

na gramaticalização recebeu uma formulação consistente nos trabalhos de Sweetser (1988, 1991), que são fundamentados numa semântica de orientação cognitivista, aliada às tradições em análise pragmática e teoria dos atos de fala. A questão que está no centro das discussões promovidas na obra de Sweetser é aquela de saber o que acontece com os significados nas mudanças semânticas que acompanham os processos de gramaticalização. rejeitando a hipótese de semantic bleaching, amplamente aceita desde o trabalho pioneiro de Meillet (1912), a autora propõe um mecanismo geral de mudança semântica que opera por meio de projeções metafóricas entre diferentes domínios conceituais. Nesse mecanismo, a metáfora é concebida como uma “estratégia cognitiva” que possibilita a emergência de itens gramaticais, na medida em que atua como veículo na transferência de sig-nificados de um domínio cognitivo mais concreto, próximo à experiência física, para um domínio mais abstrato, próximo às experiências mental e conversacional.

Segundo a autora, tais projeções são sempre parciais. o que é transferido de um domínio a outro são unidades inferenciais altamente abstratas, de modo que o mecanismo de mudança se efetiva por meio de duas etapas: (i) uma unidade inferencial é abstraída a partir de um domínio de conceituação mais concreto, etapa em que pode haver descarte de traços de significado; e, (ii) essa unidade é projetada em um domínio mais abstrato, possi-velmente mais subjetivo, dentro do qual pode assimilar novos traços. Fica evidente, então, a inadequação do modelo bleaching, já que, na realidade, segundo a autora, há uma reorganização semântica, com possível perda, preservação e ganho de traços semânticos:

[...] there is a sense in which grammaticalization involves loss of meaning, and another sense in which it does not. Whenever abstraction occurs – for example, when an image-schematic structure is abstracted from a lexical meaning – there is potential loss of meaning. [...] But if the abstracted schema is transferred from the source domain to some particular target domain, then the meaning of the target domain is added to the meaning of the word. (SWEETSER, 1988, p.12)

Para exemplificação, Sweetser recorre ao processo de mudança de go, do inglês, que de verbo de movimento passou a auxiliar marcador de futuro. Segundo ela, no caso de go, a

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projeção de movimento físico para futuridade se deu graças à projeção da inferência “deslocamento linear de um ponto a ou-tro”, do domínio físico-espacial, mais concreto, para o domínio temporal, menos concreto.

Assim, da perspectiva de Sweetser, as mudanças semân-ticas são, até certo ponto, previsíveis. Essa previsibilidade tem motivação no interior de uma teoria que toma a percepção hu-mana como o alicerce da estrutura das línguas. A metáfora é, nesse contexto, a principal força de estruturação semântica, pois as mudanças semânticas seguem uma trajetória unidirecional de crescente abstratização que é justificada pela unidirecionalidade inerente às conexões metafóricas.

também numa linha cognitivista, Heine e outros (1991) descrevem a transferência entre estruturas fonte e alvo a partir de uma hierarquia de categorias cognitivas, que eles organizam da seguinte forma: Pessoa > Objeto > Atividade > Espaço > Tempo > Qualidade. Cada categoria, que inclui uma variedade de conceitos, representa um domínio de conceituação relevante para a experiência humana. A relação entre as categorias é de natureza metafórica, no sentido de que qualquer categoria pode ser usada para conceituar outra categoria, contanto que esta esteja à sua direita. Desse modo, objeto pode ser usado para conceituar Espaço, que pode ser usado para conceituar tempo, e assim por diante. Outras hierarquias foram propostas, por exemplo, Traugott e König (1991) traçaram o percurso Tempo > Concessão para explicar o processo de constituição de while, do inglês. Shyldkrot (1995) propôs a trajetória Quantidade > Qua-lidade > Concessão para dar conta dos processos de mudança sofridos por tout, do francês. Martelotta e outros (1996) propu-seram a trajetória Espaço > Discurso para descrever os usos de aí, em português.

Mas se, por um lado, as projeções metafóricas apresentam a vantagem de predizer a direção dos processos de mudança, por outro, não são capazes de recuperar as etapas intermedi-árias desses processos, em que as categorias podem coexistir. A esse respeito, Sweetser argumenta que as mudanças sempre tomam lugar através de estágios intervenientes de polissemia: se uma palavra significou A e hoje significa B, é certo que em algum momento ela significou A e B. A autora acrescenta ainda que existe uma correlação estreita entre polissemia sincrônica e mudança diacrônica, no sentido de entender as polissemias como pistas capazes de recapitular e de explicar a trajetória histórica de desenvolvimento de uma palavra ou morfema.

Para recuperar esses estágios intermediários, a análise em termos de metáfora deve ser complementada pela análise pragmático-contextual, que reserva ao contexto contíguo um papel crucial na evolução semântica. É justamente por causa da influência do contexto sobre a interpretação de um item que

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Hopper e Traugott (1993) e Traugott e König (1991) qualificam as mudanças semânticas de “metonímicas”. Para os autores, a reinterpretação induzida pelo contexto ocorre quando uma pa-lavra ou construção, além do sentido básico, permite a inferência de um sentido adicional (relacionado ao mundo das crenças e atitudes do falante), em função da contigüidade contextual ou metonímica. Com o tempo, pode haver convencionalização de inferências, caso o sentido adicional se torne parte da palavra, de forma que o que antes era inferido passa a ser codificado.

Nesses termos, a gramaticalização consiste num processo gradual e histórico de pragmatização do significado, que envol-ve, por um lado, estratégias de caráter inferencial, que levam ao aumento de informação pragmática e, por outro, estratégias de caráter metafórico, que levam ao aumento de abstração.

3. A construção coordenada a coordenação consiste, grosso modo, numa construção

sintática em que duas ou mais unidades funcionalmente equiva-lentes se articulam, com ou sem nexos explícitos, para a formação de uma unidade ainda maior, da qual emerge uma nova relação de sentido. todas as línguas apresentam construções coorde-nadas de algum tipo (MITHUN, 1988; HASPELMATH, 2000). Em português, a coordenação pode se realizar entre sintagmas, orações e até mesmo entre enunciados, estabelecendo as relações de adição, alternância, adversidade, explicação ou conclusão. Em razão das possibilidades de encadeamento dentro e além da oração, Azeredo (2001) afirma que a coordenação é mais propria-mente um mecanismo discursivo do que sintático, que pode ser realizado por conjunções de coordenação, advérbios e locuções adverbiais ou simplesmente pela justaposição e entoação.

Neste trabalho, assumo uma concepção de coordenação essencialmente semântica, nos moldes propostos por Bally (1944). Tal concepção, que confere alguma transparência ao mecanismo de produção de conjunções coordenativas, tem por orientação a dicotomia tema/comentário, cuja relevância para as línguas foi bastante acentuada por Ilari (1981, p. 62):

a articulação de oração em tópico e comentário é um fenômeno generalizado nas línguas de que se tem notícia; [...] a presença de uma articulação desse tipo em orações do português é extremamente freqüente; para sermos mais exatos é obrigatória, no sentido de que toda a ora-ção se biparte em tópico e comentário ou é globalmente interpretada como comentário.

Nesses termos, as orações são suscetíveis de bipartição em dois segmentos de importância comunicativa diferente - tema e comentário - em que o tema é entendido como o ponto de parti-da ao qual é acrescido o comentário, que é o centro de interesse da comunicação. O padrão habitual corresponde à seqüência

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(tema)/comentário, na qual é possível prever orações formadas unicamente pelo comentário.

Seguindo Bally, acredito que a articulação tema/comentá-rio, que estrutura uma oração, também estrutura a coordenação de orações. Em outros termos, na coordenação, as orações estão relacionadas de tal forma que a segunda toma a primeira como tema e é no interior desse tema que ela deve ser interpretada como acrescentando ao discurso a informação mais importante ou saliente. Nessa relação, que é essencialmente coesiva, o co-mentário tem, portanto, a dupla função de recuperar ou reativar uma informação dada e de predicar sobre ela, acrescentando informação nova.

Com o acréscimo do comentário, é disparada uma relação semântica particular que justifica a combinação das orações. Nos exemplos abaixo, em que a articulação tema/comentário é evidenciada em construções binárias cuja independência dos membros é sinalizada por contornos entoacionais distintos e pela existência de uma pausa considerável, podemos inferir as relações de causa e de efeito:

(01) Faz frio. Não sairemos. (CAUSA > EFEITO)Faz frio (e a propósito do fato de que faz frio, acrescento:) não sairemos

(02) Não sairemos. Faz frio. (EFEITO > CAUSA)Não sairemos (e a propósito desse fato, acrescento:) faz frio

Está também em Bally (1944) a sugestão de que em uma construção coordenada um termo pertencente ao comentário está predestinado a se tornar uma conjunção quando ele tem, por si só, a propriedade de reiterar todo ou parte do tema. Para o autor, esse termo apareceria inicialmente como um modifica-dor adverbial que, de forma gradual, ganharia posição inicial na oração, ao mesmo tempo em que se tornaria frouxa a noção de que ele é somente uma anáfora do tema.

Segundo essa hipótese, as conjunções de coordenação têm uma origem por excelência: são criadas preferencialmente a partir de advérbios pronominais que, além de exprimirem circunstâncias, atuam como mecanismos de coesão, ligando partes do texto e estabelecendo relações de sentido. Desse ponto de vista, a conjunção coordenativa resultante se caracteriza por um duplo movimento de retorno e avanço, ou seja, retoma um tema, conferindo-lhe especificidade, e, por meio do comentário, dá seqüência ao discurso, estabelecendo novas relações de senti-do. É provavelmente nesse sentido que Guimarães (1980) afirma que “a função de uma conjunção coordenativa não é fazer que uma oração esteja em outra, mas que as orações se tornem texto, se constituam, portanto, em discurso”.

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3.1 Conjunções coordenativas conclusivas As conjunções são elementos que têm função conectiva.

Contudo, dada a natureza heterogênea dos itens que integram essa classe de palavras, o reconhecimento e a classificação das conjunções constituem ainda um domínio pouco preciso da gra-mática do português. Uma amostra disso é a falta de consenso que existe no tratamento do uso conjuncional das palavras logo, pois (posposto), portanto, então e assim. Cunha e Cintra (1985), Cegalla (1990), Rocha Lima (1998) e Abreu (2003) classificam essas partículas como conjunções coordenativas conclusivas. Já Bechara (2001, p. 322) argumenta que, influenciados por aspectos semânticos, vários gramáticos incluem no paradigma das con-clusivas certos advérbios que têm a propriedade de estabelecer relações inter-oracionais e inter-textuais, como é o caso, por exemplo, de pois, logo e portanto. Segundo ele, apesar das proxi-midades com as conjunções coordenativas, esses advérbios não têm o mesmo estatuto.

Nos estudos descritivos, Neves (2000, p. 241) reserva para esses itens o rótulo de “advérbios juntivos”, e os define como advérbios de valor anafórico que promovem a conjunção de orações e estabelecem relações de sentido, sobretudo relações adversativas (porém, contudo, entretanto, todavia, no entanto) e conclusivas (portanto, por conseguinte, então). a autora argumenta que: “Na verdade, são elementos em processo de gramaticaliza-ção. Nesse processo, está em estágio mais avançado o elemento conclusivo logo, que tem o comportamento próximo ao de uma conjunção coordenativa.”

3.2 A “conjunção” logoEnquanto conjunção conclusiva, logoé definido tradicional-

mente como um item que serve para ligar à anterior uma oração que exprime conclusão ou conseqüência (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 567), podendo ser parafraseado por “portanto”, “por conseguinte”, como é o caso do exemplo (03) abaixo, cuja cons-trução apresenta as seguintes características: logoarticula duas orações gramaticalmente autônomas,1 ocupa posição fixa no início da oração, e faz remissão à oração precedente, pesando-a, para então introduzir uma conclusão.

(03) João é um indivíduo perigoso, logo fique longe dele

Do ponto de vista argumentativo (MAINGUENEAU, 1997), a conjunção logo funciona como um operador, que atua numa construção de implicação do tipo “P logo Q”, em que o antece-dente P aparece como um fato definitivo, e o conseqüente Q aparece legitimado por princípios admitidos pela comunidade, o que justifica o caráter polifônico da construção. No caso de (03), o segmento P (“João é um indivíduo perigoso”) implica o

1 Guimarães (1987) apre-senta exemplos em que logo não se limita a arti-cular orações, mas tam-bém articula parágrafos e até mesmo capítulos.

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segmento Q (“fique longe dele”), numa relação necessária de causa-efeito ou argumento-conclusão. Essa relação garante a rigidez na ordem das orações articuladas por logo.a represen-tação em (04) é ilustrativa:

(04) P, logo Q , em que:P é argumento em favor de Q

4. O percurso histórico-evolutivo de logo: da etimologia à pragmática

Nesta seção, reconstruo o percurso histórico-evolutivo da conjunção logo, a partir de uma base de dados2 que reúne vários textos em prosa, representativos do português dos séculos XIII ao XVIII.

Os dicionários etimológicos (FERREIRA, 1983; CUNHA, 1986) indicam que o item logo do português é proveniente do lo-cus-i latino, que era empregado em sentido espacial (lugar, local, morada, país), em sentido temporal (época, ocasião, situação), e ainda em sentidos diversos tais como situação social, emprego, ponto, questão, matéria, assunto e capítulo.

os dados investigados sugerem que no português arcaico parece ter havido um afunilamento nas possibilidades semân-ticas do item, pois nas ocorrências relativas ao século XIII veri-fiquei a coexistência de apenas dois usos de logo: o substantivo logoe o advérbio logo, itens que sinalizavam, respectivamente, sucessão espacial e sucessão temporal, como mostram os exem-plos (05) e (06):3

(05) Mandamos que quando ouuyre morte Del rey, todos guarde senhorio e os dereytos del rey aaquel que reynar en seu logo e os que algua cousa teuerem que perteesca a senhurio Del rey (13FR, p.132) [...todos guardem o poder e os direitos de rei àquele que reinar em seu lugar...]

(06) E Galvam filhou logo o escudo e depois deitou-o ao colo (13DSG, p. 8) [Galvam tomou em seguida (ou imediatamente) o escudo e depois colocou-o no colo]

Como substantivo, de que (05) é exemplo, logo equivale a “lugar” e integra o sintagma preposicional “en seu logo”, no qual logoindica mais precisamente posição física e social e acrescenta a noção de deslocamento ou sucessão. Já como advérbio, de que (06) é exemplo, logoé muito mais freqüente no corpus investigado. Nesse caso, o item indica uma relação de posterioridade temporal (“em breve”, “em seguida”) que está ancorada na situação externa e que pode alternativamente ser entendida como particularizada pelo imediatismo da relação, corroborando uma afirmação de Cunha (1986), de que no português arcaico, logo funciona como “imediatamente”.

2 Para a análise, optei por uma seleção de trechos dos seguintes textos: Séc. XIII: a demanda do Santo Graal (13DSG); Foro Real de Afonso X (13FR); Testamento de D. Afonso II (13TDA); Notícia do Torto (13NT); Inquirições de Afonso III (13IA). Séc. IV: Cró-nica Geral de Espanha de 1344 (14CGE); Orto do Esposo (14OE); Pri-meyra Partida (14PP); Bíblia Medieval Portu-guesa (14BMP); Séc. XV: Boosco Deleitoso (15BD); Livro dos Ofícios de Marco Tullio Ciceram (15LO); Crónica D. Fer-nando (15CDF); Crónica D. Pedro I (15CDP); Leal Conselheiro (15LC); Séc. XVI: Colóquios dos sim-ples e drogas e cousas medicinais da Índia (16CSD); Historia da prouincia de Sãcta Cruz a que vulgame[n]te cha-mamos Brasil... (16HSC); Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel (16CDM); os Sete Únicos Docu-mentos de 1500 (16OSD); Desengano de Perdidos (16DP); Séc. XVII: Jorna-da dos Vassalos da Co-roa de Portvgal (17JV); Peregrinaçam (17P); Chronica Del Rey D. Ioam I (17CDJ); Sermão da Sexagésima (17SS); Corte na Aldeia e Noi-tes de Inverno (17CA); Séc. XVIII: a ordem da Salvação ou a Doutrina Christaã (18OS); Neces-sario aviso acerca da Igreja e Doutrina dos Papas em Roma (18NA) ; Reflexoens sobre a ques-taõ entre os Estados Uni-dos, e a França (18REF); Do Uso, e Abuso das minhas agoas de Ingla-terra (18UA); Theorica verdadeira das Mares (18TM). 3 Nos exemplos, as refe-rências entre parênteses remetem, respectiva-mente, ao século e à abreviação do título do texto.

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Por outro lado, há contextos em que o advérbio temporal logo está ancorado em um momento já especificado no próprio texto. Nesse caso, logo sinaliza uma sucessão temporal, em que um evento se realiza após outro, recuperável no co-texto prece-dente. Para isso, logo retoma anaforicamente o evento anterior que, em geral, é introduzido por uma conjunção de tempo, como mostram os exemplos abaixo:

(07) tanto que viu Galvam Erec logo o conheceu (13DSG, p. 65) [Assim que viu Galvam Erec logo (= que o viu) o reconheceu]

(08) Quando Galaaz êsto ouviu, filhou logo sas armas e guisou-se o mais toste que pôde (13DSG, p.145) [Quando Galaaz ouviu isto, tomou logo ( = que ouviu isto) suas armas...]

Nos dados relativos a esse período da língua, não encontrei exemplos do uso conjuncional de logo. Só no material referente ao século XVII é que verifiquei as primeiras ocorrências. O exemplo (09) traz uma delas:

(09) Para hum homem se ver a si mesmo, são necessarias tres cousas: olhos, espelho, & luz. Se tem espelho, & he cego; não se póde ver por falta de olhos: se tem espelho, & olhos, & he de noyte; não se póde ver por falta de luz. Logo ha mister luz, ha mister espelho, & ha mister olhos. (17SS, p.18)

Em (09), há uma estrutura do tipo “C1. Logo C2”, em que os segmentos C1 e C2 são gramaticalmente independentes, se-parados por uma pausa representada por ponto. Cada segmento é constituído por orações estruturadas em tema e comentário. Essa relação tema/comentário se sustenta também entre C1 e C2, estruturando-os, uma vez que o segundo deve ser interpre-tado à luz do primeiro. Ou seja, C2 acrescenta um pensamento, uma avaliação conclusiva acerca de C1, evidenciando assim a relação de sentido, que é condição para a coordenação. Veja o esquema:

C1 C2Para hum homem se ver a si mesmo, são necessarias tres cousas: olhos, espelho, & luz. Se tem espelho, & he cego; não se póde ver por falta de olhos: se tem espelho, & olhos, & he de noyte; não se póde ver por falta de luz

logo ha mister luz, ha mister espelho, & ha mister olhos

tEMa COMENTÁRIO

CONCLUSÃOA relação coesiva entre os segmentos C1 e C2 é garantida

por logoou, mais particularmente, pela foricidade de logo que,

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encabeçando o comentário, promove simultaneamente um mo-vimento de retorno ao já dito, em que reitera todo o C1, e um movimento de avanço, fazendo com que as orações se constituam em texto. Em C2, não é só uma parte do conteúdo de C1 que é reativada, mas também a própria orientação argumentativa de C1 é retomada em C2. Portanto, em (09), logo tem as caracterís-ticas que, nos termos de Bally, permitem colocá-lo no rol das conjunções de coordenação.

Além de mostrar que o uso conjuncional de logo é mais recente que os demais, a investigação dos dados históricos evidenciou ainda que o contexto que teria favorecido a reinterpretação do advérbio logo como conjunção é aquele exemplificado em (10), uma ocorrência do século XIV:

(10) [...] e he chamado mar morto, porque nem pexes, nem aves nom vivem em ele, nem pode em ele andar navio, nem outra matéria nenhua, senon for bitumada, e se algua cousa morta hi lançarem, logo se afonda, e se for cousa viva, logo saae a cima pero seja amerguda per força. (14BMP, p.40) [... e se alguma coisa morta lançarem ali, logo afunda, e se for coisa viva, logo sai para cima].

Configura-se, nesse caso, uma situação de ambigüidade. Em uma interpretação, logo atua como advérbio (fórico!) de tempo posterior, admitindo paráfrase com “em seguida”. Por outro lado, dado o contexto contíguo, logo integra uma construção condicional do tipo “Se P, logo Q”, cujo significado reside numa relação de implicação entre P e Q, na qual “se temos P, devemos ter Q”. Assim, conforme (10), o fato de “lançar alguma coisa morta” implica conseqüentemente “afundar”, da mesma forma que “lançar coisa viva” implica “sair acima”. Nessa relação de implicação, logo veicula um sentido de conseqüência ou conclusão, que é fortemente baseado nas crenças e expectativas do falante/escritor. Acrescente-se a isso que o item, nesse contexto, ocupa posição inicial na oração, tal como uma conjunção prototípica. Nessa condição híbrida, logo revela a fluidez categorial entre o advérbio de tempo e a conjunção conclusiva, isto é, a face não discreta da mudança.

Nessa perspectiva, o embrião da conjunção conclusiva logo seria o uso mais referencial de logo, o dêitico temporal, que passou a ser empregado, em determinados contextos, como um item de coesão textual, retomando anaforicamente orações precedentes e indicando sucessão temporal. Nesses termos, um item que era empregado para sinalizar sucessão temporal no mundo real teve seu uso estendido para sinalizar sucessão temporal entre eventos mencionados no texto. Ratificando os pressupostos de Bally, mencionados anteriormente, sugiro que a natureza pronominal do advérbio logo foi determinante para a constituição da conjunção conclusiva - que até hoje preserva essa característica do advérbio - já que na relação de conclusão há um movimento de retroação, a partir do qual o falante/escritor retoma o conteúdo anterior e então introduz uma conclusão. Por isso é que afirmei anteriormente que o modelo de Bally, de certa forma, torna mais transparente o mecanismo de formação de conjunções.

A alteração de sentido aponta para abstratização e pragma-tização crescentes do significado: a posterioridade temporal de

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logo passou a ser entendida, metaforicamente, como posteriori-dade no discurso: aquilo que vem depois no tempo foi projetado para designar aquilo que vem depois no discurso, a saber, um efeito ou uma conclusão. Essa projeção evidentemente não foi abrupta, mas propiciada pelo contexto contíguo de implicação que, além da leitura de tempo posterior, permitia a leitura de conclusão.

Assim, de um lado, a foricidade de logo criou condições para que o item ganhasse gradativamente estatuto conjuncional e, de outro, a transferência metafórica e a reinterpretação contextual determinaram a emergência de um novo sentido, mais abstrato e mais subjetivo que o primeiro.

Conclusão A trajetória de gramaticalização percorrida por logo para a

constituição da conjunção coordenativa conclusiva corrobora as hipóteses de Sweetser (1988, 1991), Heine et al. (1991), Traugott e König (1991) Hopper e Traugott (1993), tanto no que concerne ao papel da pressão contextual para a emergência de novos usos, como no que concerne à direcionalidade da mudança, que aponta preferencialmente para a abstratização e pragmatização do significado: TEMPO > CONCLUSÃO, e para o surgimento de categorias ainda mais gramaticais: ADVÉRBIO PRONOMINAL > CONJUNÇÃO.

AbstractIn this paper, I analyze some aspects related to the grammaticalization of the coordinating conjunc-tions. Assuming that cognitive and pragmatic factors interact to create new grammatical items and adopting a coordination approach supported by functional-semantic criteria, I reconstruct the evolutionary-historical course of the Portuguese conclusive conjunction logo from Portuguese historical sources.

Keywords: grammaticalization; conjunction; coordination; historical linguistics.

Referências

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Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

Recebido 15, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

ResumoEste artigo investiga a emergência da locução conjuntiva por causa (de) que no português do Brasil, baseando-se em um corpus constituído por dados coletados em 64 horas de entrevistas com falantes cariocas (Amostra 80). Inicialmente coteja as orações complexas formadas pela vincu-lação de uma oração efeito a uma oração de causa introduzida por porque, conectivo prototípico de causa, às orações que apresentam o SPrep por causa de com relação às seguintes variáveis: po-sição, transitividade e tempo do predicado verbal, tipodeinformaçãointroduzidapelosegmentodecausa. A seguir, considera as orações encabeça-dasporpor causa (de) que mostrando que elas compartilham as propriedades exibidas tanto pelas orações prototípicas de causa quanto pelos SPrep por causa de: tendem a introduzir informação nova, a apresentar verbos de estado no presente do indicativo e a ocorrer pospostas. A diferença entre elas e as orações prototípicas concerne ao fato de que as orações com por causa de quesãoempre-gadas apenas no nível representacional enquanto que aquelas iniciadas por porque podem, também, estabelecer relações em dois outros níveis, o das relações epistêmicas e dos atos de fala.

Palavras-chave: gramaticalização, conectores, relação causal

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o português brasileiro dispõe de uma grande variedade de conectores para a expressão da relação de causalidade, que diferem quanto à sua freqüência e contextos discursivos. Coe-xistem com o conector prototípico porque, assim como com a sua forma reduzida que, exemplificadas em (1) e (2), o conector como e as locuções conjuntivas como visto que, dado que, já que, para citar apenas as mais freqüentes (Cf. NEVES, 2000).

(1) Ela falou que não gosta de dar aula de sétima, porque acha todo mundo, assim, muito criança. (Amostra Censo, Adr.51)

(2) A Cláudia chamou ela e deve fazer chantagem com ela, eu não sei. Que agora ela sabe que o Márcio é filho da Renata. (Amostra Censo, Adr.63)

No nível oracional, a relação causal entre dois segmentos de discurso pode ser expressa pelo Sprep por causa de, como no exemplo (3):

(3) tive que interromper um pouco (os estudos) por causa da gravidez da minha mulher. (Amostra Censo, Dav.42)

Esse sintagma preposicional está na origem da locução conjuntiva por causa (de) que a qual, através do acréscimo do subordinador que pode ser utilizada para relacionar uma cláu-sula causal a uma cláusula efeito, como mostram os exemplos (4) e (5).

(4) Só sabia quem era o presidente do CCE, por causa que ela botou

uma porção de cadeira ali, botou o vice-presidente, botou cortadô

de... aqueles negócio. (Amostra Censo, Adr.51)

(5) Ele gosta mais até de ficar lá no fundo porque não... parece assim

mais aconchegante, né? por causa que dá assim prá os quarto e não

tem vizinho , num tem nada. (Amostra Censo, Mag.48)

Esses usos de por causa (de) que no discurso oral, uma lo-cução conjuntiva que está emergindo no português brasileiro, (cf PAIVA, 2001), constituem o objeto de reflexão deste artigo. Discutimos os empregos dessa locução conjuntiva , buscando identificar as equivalências e diferenças que apresenta em relação à conjunção prototípica porque e ao sintagma preposicional porcausa de no discurso oral. através de uma análise comparativa de algumas propriedades sintáticas e semântico-discursivas dessas três construções causais, procuramos depreender o cruzamento de propriedades que resulta em enunciados como os exempli-ficados em (4), (5). Além disso, destacamos as restrições ao uso

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da conjunção perifrástica por causa (de) que e a pertinência de distingui-la da conjunção inteiramente gramaticalizada porque. Como mostraremos ao longo do artigo, as maiores restrições impostas ao uso de por causa de (que) sugerem que o processo de gramaticalização de uma locução conjuntiva opera inicialmente no nível representacional.

Os dados analisados foram extraídos de um corpus do português carioca, composto de amostras de fala de 64 falantes, distribuídos de forma equilibrada segundo as variáveis sexo, idade e escolaridade.

2- Construções causais com porqueAssim como outras conjunções fortemente gramaticali-

zadas, o conector porque, mais freqüentemente utilizado para a expressão da relação de causalidade, goza de acentuada polis-semia e multifuncionalidade, servindo à expressão não apenas de causa estrita, como também de justificativa, razão, motivo. Adotando aqui a posição de Swetser (1990), podemos dizer que este conector estabelece relações em diferentes domínios: domí-nio referencial, domínio epistêmico e domínio dos atos de fala. (Cf. também PAIVA, 1995; NEVES, 2000):

a- nível referencial(6) E o tião chegou por último, porque ele passou primeiro na

delegacia, não é?(Amostra Censo, Jos.35) b- nível epistêmico

(7) O Serafim ele não gosta da merenda porque ele só leva merenda. (Amostra Censo, Nel. 49)

c- nível dos atos de fala(8) olha, corre, vem pra cá porque a minha casa foi assaltada.

(Amostra Censo, Dor.29)

No exemplo (6), a oração introduzida pelo conector porque expressa a causa efetiva do fato expresso na oração núcleo, ou seja, pode-se falar realmente de relação causa-efeito. A confi-guração causal no exemplo em questão é reforçada pela relação temporal entre os fatos, com o estado de coisas causa precedendo o estado de coisas efeito.

Nos exemplos (7) e (8), por outro lado, só podemos falar em causa em sentido mais amplo. Em (7), a oração introduzida por porque expressa uma evidência que autoriza o falante a extrair, a partir da sua avaliação, uma determinada conclusão. trata-se no caso de uma causa formal , realizada no plano das relações possíveis e que opera no plano interpessoal da linguagem.

No exemplo (8), estabelece-se uma relação entre um ato de fala e a justificativa para a realização de tal ato.

Nas abordagens tradicionais (cf, por exemplo, CUNHA, 1976) essa polivalência do conector porque é resolvida pela sua

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inclusão em dois conjuntos paradigmáticos distintos: no conjunto das conjunções subordinativas causais (causais estritas) e no con-junto das conjunções coordenativas (explicativas). Essa solução taxonômica constitui, no entanto, um problema, na medida em que, em muitos enunciados, duas interpretações podem conviver, requerendo a intervenção de fatores discursivos que permitam determinar a natureza exata do uso de porque.

a análise de algumas propriedades sintáticas e semânticas das construções causais com o conector porque permite mostrar que as mesmas ocorrem em alguns contextos preferenciais.

No que se refere às propriedades morfossintáticas, destaca-se a importância das categorias tempo e modo verbal das orações relacionadas. Nas construções com porque pode ser constatada grande diversidade de formas verbais tanto na cláusula núcleo como na cláusula hipotática (Cf. PAIVA, 1992; NEVES, 2000).

Uma análise estatística dos dados mostra, no entanto, que, na grande maioria dessas construções causais verifica-se um tipo de correlação modo-temporal preferencial: em mais da metade dos dados (50,80%) relacionam-se verbos no presente do indi-cativo tanto na cláusula causal quanto na cláusula efeito, como no exemplo a seguir:

(9) Eu não tenho que dizer de nenhum deles ali, sabe? porque a gente se dá com todo mundo, conversa com todo mundo. a gente precisa muito de vizinho. (Amostra Censo, Fal 04)

Especificidades das construções causais com o conector porque podem ser observadas também no nível das propriedades semânticas dos verbos núcleo da cláusula causal. Embora as orações hipotáticas introduzidas pelo conector porque admitam grande variabilidade de tipo de predicadores, elas tendem a ser construídas principalmente com os verbos de estado (31,6%), seguindo-se de perto os verbos de processo (25, 8%) e de evento (23,3%). O exemplo (10) é representativo do contexto mais fre-quente da cláusula porque.

(10) Minha mãe também, mas minha mãe agora está um pouco devagar, porque ela esteve doente. (Amostra Censo, Cab02)

Consideração especial tem de ser dispensada à disposição sintagmática das orações introduzidas pelo conector porque que são, como já foi mostrado em diferentes trabalhos, predomi-nantemente pospostas à oração núcleo com que se relacionam. Nos dados analisados, representativos, como já dissemos, do discurso oral, em 88,4% das construções, a cláusula porque segue a oração núcleo.

A posposição do segmento causal ao segmento efeito pa-rece constituir, portanto, a ordem não marcada nas construções causais com porque. a anteposição, muito mais rara, está asso-ciada a contextos bastante marcados, principalmente àqueles

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em que ocorre um processo de clivagem, através do qual uma condição, dentre outras possíveis, é destacada como a causa de um estado de coisas.1

Evidentemente, a posposição desses segmentos causais reflete a função que eles possuem na organização discursiva: via de regra, eles constituem pontos de introdução de infor-mação nova (68,3%) ou inferível de outras peças de informação já apresentadas no discurso anterior (17,5%). Nos dois casos, pode-se considerar que as orações causais introduzidas pelo conector porque desempenham um papel essencial na progres-são discursiva. Assim, no exemplo (10), já citado, a informação introduzida pela cláusula porque ela esteve doente apresenta para o ouvinte (no caso, o entrevistador), uma informação que não integrava seus conhecimentos anteriores.

Da análise desenvolvida até este ponto, ressalta que os enunciados construídos com o conector porque apresentam algumas características predominantes que nos auxiliarão a entender o comportamento das cláusulas iniciadas pela locução conjuntiva por causa (de) que.

3- Construções causais com o Sprep por causa de – a causalidade no nível intra-oracional

Retomemos neste ponto o exemplo (3), ilustrativo do uso do sintagma preposicional por causa de para a expressão da rela-ção causa-efeito no nível oracional. Nesse exemplo, o segmento introduzido pelo Sprep por causa de é intercambiável com uma oração hipotática com porque.

(11a) tive que interromper um pouco (os estudos) por causa da gravidez da minha mulher (Amostra Censo, Dav 42).

(11b) tive que interromper um pouco (os estudos) porque minha [mulher estava grávida.]

A possibilidade de paráfrase do constituinte intra-oracional introduzido por por causa de pela cláusula finita encabeçada por porque não significa necessariamente que elas sejam tomadas pelo falante como equivalentes em todos os níveis. O certo é que parece haver, em alguns contextos, uma interseção das proprie-dades dos dois tipos de enunciados, o que autoriza a alternância entre eles (Cf. PAIVA, 1998).

Há evidências, no entanto, de que a alternância entre uma cláusula porque e um segmento causal não oracional introduzi-do pelo Sprep por causa de é restrita a certos ambientes, sendo bloqueada em outros, como ilustra o exemplo (12)

(12) Fica com ciúmes por causa de um velhinho. (Amostra Censo, Sue05)

1 Um exemplo ilustrativo é: É porque minha mãe é viúva que ela então se juntou com o meu padrasto.

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Os exemplos acima mostram, portanto, que existem tanto pontos de interseção entre uma oração introduzida por porque e os constituintes causais intra-oracionais introduzidos por porcausa de como contextos em que eles se particularizam. Focali-zemos inicialmente as propriedades comuns aos constituintes intra-oracionais com o SPrep e as cláusulas com porque.

Do ponto de vista do tempo e modo verbais do segmento efeito, algumas simetrias podem ser depreeendidas entre os enunciados com porque e os enunciados com o Sprep por causa de. Assim como nos períodos complexos com o conector porque, nos períodos simples com os sintagmas preposicionais causais, o verbo da oração se encontra mais freqüentemente no presente (59,1%). Seguem-se, com índices significativos, enunciados com verbo na forma de pretérito perfeito (30%). Essa convergência na distribuição dos dados é indicativa da similaridade de configu-ração sintagmática dos dois tipos de enunciados causais.

o paralelismo entre construções causais com porque e com por causa de pode ser constatado também no que se refere à tran-sitividade do verbo nuclear do segmento efeito, embora de forma menos nítida. Nos enunciados com o Sprep por causa de, há maior freqüência de verbos de estado (30%), mas é igualmente signifi-cativa a ocorrência de verbos de processo (25,4%) ou de processo mental (22,7%). Essa propriedade dos sintagmas preposicionais será retomada mais à frente, quando mostraremos que ela pode explicar, pelo menos em parte, a possibilidade de deslizamento desse sintagma para o conjunto das locuções conjuntivas cau-sais. A maior diferença entre os dois tipos de enunciados fica concentrada nos verbos de evento e nos existenciais.

Do ponto de vista da sua organização sintagmática, o seg-mento causal introduzido por por causa de assim como as orações com porque podem se antepor ou se pospor ao segmento efeito, como mostram os exemplos (13a) e (13b).

(13a) Por causa da gravidez dela eu parei de estudar.(Amostra Censo, Dav. 42)

(13b) Eu costumo fazer bolo por causa das crianças lá em casa. (Amostra Censo, Mag.48)

Assim como nos períodos complexos com o conector porque, essa flexibilidade é, no entanto, mais virtual do que real, pois o segmento causal encabeçado pelo Sprep por causa de é quase ca-tegoricamente posposto, com um percentual que atinge 93,6%.

A organização sintagmática dos períodos formados com porque e das orações com por causa de segue a mesma tendência, embora se perceba uma diferença de grau nos índices de pospo-sição: o sintagmapreposicional por causa de parece apresentar uma ordenação mais rígida (acima de 90%) na forma de efeito-causa,

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enquanto que os períodos compostos com porque apresentam um pouco mais de flexibilidade. Para ambos, pode-se dizer, no entanto, que a ordem não marcada é a posposição.

Essa semelhança de padrão sintagmático encontra corres-pondência na função discusiva desses segmentos causais: ambos contribuem para a evolução do discurso, constituindo pontos de introdução de informação nova. Essa tendência é significati-vamente mais acentuada para as cláusulas porque (68,3%) e um pouco menos notável para o Sprep por causa de (59,2%). Devemos ressaltar, no entanto, que a equivalência discursivo-funcional fica limitada ao segmento causal considerado isoladamente. Na análise dos dois segmentos do enunciado, depreendem-se dife-renças relevantes na forma como se distribui a informação pelos segmentos causa e efeito. Os segmentos causais introduzidos pelo conector porque com informação nova se articulam mais fre-qüentemente a segmentos efeito que codificam informação velha 65.8%) ou informação inferível (24,2%) que, em uma determinada interpretação, pode ser considerada uma forma de informação velha. Diferentemente, nos enunciados com o sintagma prepo-sicional, não chega a haver diferença no estatuto informacional do segmento efeito que tanto pode codificar informação nova ou velha, embora se verifique ligeira preponderância de ligação com segmento efeito velho. Quanto ao estatuto informacional do segmento efeito, constata-se, portanto, uma distinção relevante entre os dois tipos de enunciado.

Considerando as propriedades discutidas até aqui, pode-mos dizer que a interseção entre os enunciados com cláusulas porque e com o sintagma preposicional causal, embora não seja total, pode ser depreendida em diversos pontos, como mostra a figura 1.

Figura 1 – Interseção entre enunciados com porque e com o sintagma preposicional por causa de.

Oração de causa Constituinte intra-oracional de causa

Segmento causal

+ posposição

+ informação nova segmento efeito

predicado no presente do indicativopredicador é verbo de estado

Evidentemente, essa convergência de propriedades não explica em si mesma a possibilidade de alternância entre um constituinte causal oracional e um constituinte causal intra-ora-cional. Como mostramos através do exemplo (12 – Meu namo-

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rado fica com ciúme por causa de um velhinho), há restrições na alternância entre os dois tipos de construções. Um primeiro aspecto a ser considerado se refere às características do núcleo do SN2, aquele que é subcategorizado pelo SPrep por causa de. o núcleo do SN2 tende a ser constituído por um nome comum com os traços [+ animado] e [+ humano ]. Nesse caso, a pará-frase do Sprep causal por uma cláusula porque é bloqueada ou, no mínimo, menos provável.

Meu namorado fica com ciúme por causa de um velhinho

Meu namorado fica com ciúme porque tem um velhinho

No exemplo (12), a responsabilidade, a motivação do esta-do “fica com ciúme” é atribuída a um referente, sem qualquer explicitação da ação por ele realizada. A maioria das caracterís-ticas inerentes à noção de causa ficam ofuscadas em enunciados desse tipo: a própria ação, em conseqüência a referencialidade temporal e, de certa forma, a noção de agentividade. O ciúme do namorado não pode ser atribuído diretamente ao velhinho. a relação causal só pode ser interpretada através das inferências autorizadas pelo contexto em que a construção se insere.

a alternância entre um Sprep causal e uma cláusula causal com porque é favorecida, ao contrário, nos contextos em que o núcleo do SN2 é uma nominalização (um nome deverbal), situ-ação em que se estabelece relação morfológica e, conseqüente-mente, semântica entre os elementos nucleares dos constituintes. Nesse caso, a possibilidade de recuperação da forma verbal da cláusula, contida no núcleo do SN integrado ao Sprep, parece favorecer a alternância entre as duas estruturas, como mostra o exemplo 14.

(14) o time tá ruim, mas não é por causa da escalação do técnico.o time tá ruim, mas não é porque o técnico selecionou (o time)

a potencial equivalência entre as duas construções, vale dizer, a possibilidade de parafrase não se restringe, entretanto, à satisfação de uma condição morfológica; mais relevante, sem dúvida, é a natureza do vínculo causal realizado em cada um dos enunciados. Em outras palavras, os efeitos comunicativos decorrentes da seleção de uma ou outra alternativa são diversos. Assim, no exemplo (14), embora a condição morfológica seja sa-tisfeita, o sintagma preposicional por causa da escalação do técnico apresenta efeitos comunicativos que se anulam numa possível contraparte verbal (o técnico escalou um time). Na cláusula introduzida por porque, a relação causal é vista de forma dinâ-mica, ou seja, o que está em destaque é o próprio ato de escalar. No enunciado com sintagma preposicional, esse dinamismo se perde em favor da ênfase no resultado da ação (escalação) e dos seus efeitos. Esse resultado pode ser avaliado positiva ou

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negativamente e é exatamente essa avaliação que se perde na conversão do sintagma preposicional pela cláusula porque. É o que explica uma certa conotação negativa na expressão da cau-salidade através do sintagma preposicional.

a atribuição de caráter [-dinâmico] ao sintagma preposicio-nal por causa de encontra respaldo na possibilidade de conversão desses segmentos em cláusulas porque com verbos de estado. Caracterizando-se igualmente pelo traço [-dinâmico], as cláu-sulas porque de estado compartilham propriedades inerentes ao segmento introduzido pelo Sprep.

Um segundo aspecto importante envolve o pressuposto temporal implícito na relação de causalidade. a imbricação entre as noções de causa e tempo é anulada nos segmentos causais introduzidos pelo Sprep. Como conseqüência de sua atempo-ralidade, os enunciados com Sprep causal se afastam da noção prototípica de causa, mesmo quando são parafraseáveis por uma cláusula porque. a relação causal parece se situar em um plano metafórico, na medida em que se desvincula da ação.

tudo parece indicar, portanto, que os segmentos introdu-zidos pelo conector porque e os segmentos introduzidos por porcausa (de) situam a relação causal em planos distintos: o primeiro, no plano da própria ação, e o segundo, no resultado de uma ação ou no possível ator de uma ação que pode provocar um estado de coisas.

4 - Construções causais com por causa (de) queRetomemos agora os exemplos (4) e (5), objeto central

deste artigo. Antes de mais nada, é necessário destacar a baixa incidência desse tipo de construção (apenas 26) nos dados de fala examinados. Essa limitação parece decorrer do fato de que se trata de um uso lingüístico mais recente, provavelmente um processo de mudança que está se instalando na língua.

Uma análise de construções causais constituídas com a conjunção lexical por causa de (que) permite mostrar que elas se situam numa interseção das propriedades dos enunciados causais com porque e dos enunciados com por causa de. Um con-fronto entre os períodos complexos construídos com a locução por causa (de) que e os enunciados com porque, por um lado, e os enunciados com por causa de , por outro, permite identificar a trajetória de inclusão dessa forma no conjunto das locuções conjuntivas de causalidade.

No que se refere à correlação modo-temporal, podem ser depreendidas diversas simetrias entre as construções com porque e aquelas com por causa (de) que. Mantendo uma configuração semelhante à dos períodos compostos com porque, os períodos com por causa de que relacionam, mais freqüentemente, verbo no presente do indicativo na cláusula causal e verbo no presente do indicativo na cláusula efeito (53,84%). Segue-se a correlação

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entre pretérito perfeito e presente (23,75). No que se refere ao segmento efeito, essa tendência encontra paralelo nos períodos simples com o sintagma preposicional por causa de, em que pre-domina igualmente o presente do indicativo.

a convergência entre os três tipos de construções causais pode ser verificada também no nível das propriedades semânti-cas dos verbos núcleo do segmento efeito. Assim, ocorrem mais freqüentemente em todos eles verbos de estado, como ilustram os exemplos a seguir:

(15) Eu gosto da rosângela por causa que ela é assim parecida comigo. (Amostra Censo, Eri.59).

(16) O apelido dela é até Cláudia Magrinha, por causa que ela é assim Magrinha. (Amostra Censo, Eri.59)

No que concerne à disposição sintagmática, verifica-se a mesma flexibilidade referida previamente. No entanto, embora os segmentos que expressam causa possam tanto se antepor ou pospor à oração efeito, a posposição é a posição mais usual.

Também no que diz respeito às propriedades discusivo-informacionais dos segmentos causais, depreende-se acentuado paralelismo entre as construções com porque, por causa de e porcausa (de) que: todos eles constituem pontos de introdução de informação nova. Considerando-se, no entanto, o status infor-macional do segmento efeito, observa-se que as construções com por causa de que se aproximam daquelas com o Sprep por causa de. Instaura-se mais freqüentemente uma relação entre dois seg-mentos com informação nova, diferentemente da configuração observada nos enunciados causais com porque.

Do que foi visto até aqui, é possível esquematizar da seguinte forma o paralelismo entre as construções causais com porque, com por causa (de) que e com o Sprep por causa de.

Oração introduzida por porque

Locução conjuntiva

por causa (de) que

Constituinte intra oracional introduzido por por causa de

[+ posposição] [+ posposição]tempo verbal: presentePredicado verbal: Psicológico Informação nova Informação nova

Segmento efeito Segmento efeitoEstado / processo ProcessoInformação velha Informação velha / nova

As propriedades consideradas no esquema 2 refletem, portanto, os contextos que permitem o deslocamento do Spreppor causa (de) que para o conjunto paradigmático das locuções

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conjuntivas causais.Essa hipótese deve levar em consideração, no entanto, o fato de quearelação de causalidade, à semelhança de outras relações semânticas, opera em domínios distintos, como já mostramos no item 2, com base no conector porque.

É necessário esclarecer que, a nosso ver, o deslocamento funcional do sintagma preposicional por causa de não constitui um movimento isolado; ao contrário, é conseqüência de várias mudanças que se dão no interior do conjunto dos conectores de causalidade no discurso oral.

A possível gramaticalização do sintagma preposicional em locução conjuntiva pode estar relacionada, em primeira instância, à já discutida multifuncionalidade do conector porque no discurso. Uma hipótese possível é a de que a movimenta-ção do Sprep por causa de do nível intra-oracional para o nível inter-oracional ocorreria principalmente no domínio referen-cial, enquanto o conector porque estaria se especializando na indicação de relações no nível da enunciação (epistêmico e atos de fala). Dessa forma, estaríamos observando um processo de restabelecimento de uma repartição funcional, obscurecida com o desaparecimento do conector, na modalidade oral. os resul-tados expostos na tabela 1, que confrontam as três construções no que se refere ao domínio da causalidade, fornecem algumas evidências sugestivas da trajetória de por causa (de) que.

Tabela 1– Distribuição das construções causais de acordo com o domínio da relação casual.

Domínio Porque por causa (de) que por causa de

Epistêmico 198 24.50% 0 8

7.84%

Referencial 597 73.88%

26 100%

102 92.16%

Atos de fala 13 1.61% 0 0

total 08 26 110

De acordo com os resultados mostrados na tabela 1, a hi-pótese levantada se confirma no que se refere ao uso da locução por causa (de) que, mas encontra problemas no que diz respeito ao uso do conector porque. No caso da locução conjuntiva, poder-se-ia falar em especialização funcional: a locução por causa (de) que é utilizada apenas em contextos de relação causal no domínio referencial, ou seja, como expressão de causa estrita. O conector porque, embora predomine para a expressão de relações no plano referencial, pode ser utilizado para a explicitação de relações em outros domínios, como já destacamos.

Evidentemente, a particularidade das construções com porcausa (de) que pode estar refletindo propriedades semânticas ine-rentes à locução por causa de. Uma dessas propriedades é a maior

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transparência do item causa quanto à explicitação do ponto de origem (causa estrita) de um determinado estado de coisas. além disso, como já destacamos, essa locução carreia uma acentuada indicação de agentividade (que atribui a algo ou a alguém a razão de ser de um determinado estado de coisas).

Embora essa carga semântica possa se diluir na locução conjuntiva, , autorizando o uso de por causa (de) que em constru-ções causais que não implicam ação de um agente na produção de um estado de coisas, ela parece restringir ainda a utilização da locução conjuntiva a contextos de maior referencialidade. Nesse caso, parece ocorrer um processo segundo o qual a locu-ção preserva a carga semântica da própria palavra causa em seu sentido mais estrito. No processo de deslocamento, a locução traz para o seu novo uso, as suas propriedades originais, o que faz com que, no seu percurso, se mantenha a ligação entre o o sintagma preposicional e a locução conjuntiva.

5 - ConclusãoComo pudemos constatar ao longo desta análise, o deslo-

camento do sintagma preposicional por causa de para a locução conjuntiva por causa (de) que constitui um movimento que parece ter seu ponto de partida em um conjunto de propriedades se-mânticas compartilhadas pelo conector porque e pelo sintagma preposicional por causa de que. Ele vai culminar na perda de algumas características prototípicas do sintagma preposicional em favor do desenvolvimento de uma função mais sintática de introdutor de orações hipotáticas.

o movimento da locução preposicional em direção a uma locução conjuntiva não significa, no entanto, total anulação das propriedades da forma fonte. A locução conjuntiva preserva traços da forma da qual se originou como a de ser utilizada preferencialmente para introduzir orações que descrevem um estado de coisas [-dinâmico] e estabelecer relações causais no domínio do conteúdo. tal situação parece coerente com a pro-posta de Hengeveld e Wanders (no prelo), segundo a qual as conjunções lexicais complexas, formadas a partir de itens de um conjunto específico de nomes, se gramaticalizam inicialmente no nível representacional da linguagem.

Conjunções lexicais e gramaticais: o caso de por causa de

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Referências

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. Variação e especificidades funcionais no domínio da causalidade. Revista de estudos da linguagem, Belo Horizonte, v.7, n. 2, p. 89-108, jul./dez. 1998.

AbstractIn this article we analyze the emergence of the lexical conjunction por causa (de) que (by cause of that) in spoken Brazilian Portuguese, focusing tokens collected from 64 hours of tape-recorded interviews with speakers born in Rio de Janeiro in the early eighties. First we compare clauses headed by porque (because) and clauses which presentthePPpor causa de (by cause of) and show that both segments are similar with regard to four variables: position, transitivity and tense of the verbal predicate and informational status. Then we consider the clauses headed by por causa de que (by cause of that) and show that they share the same properties with the clauses headed by porque: they tend to introduce new information, exhibit state verbs in the present tense and follow the main clause. The difference between them con-cerns the fact that the latter combines clauses only at the representational level whereas the former combines clauses not only at this level but at the epistemic and speech act levels as well.

Keywords: grammaticalisation, conjunctions, causal relations

Maria da Conceição Auxiliadora de Paiva e Maria Luiza Braga

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PAIVA, Maria da Conceição de; SWETSER, Eve. From etymology to pragmatics: metaphorical and cultural aspects of semantic structure. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. ��-100, 2. sem. 2006

Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a

questão da gramaticalizaçãoAna Lúcia dos Prazeres Costa

Recebido 15, mai. 2006/Aprovado 10, jul. 2006

ResumoEstudos recentes têm abordado a gramaticalização do verbo ir/movimento em verbo auxiliar. O pre-sente artigo mostra que no português brasileiro este auxiliar não ocorre somente na expressão do futuro, mas em variação com o futuro do preté-rito, e que o uso da perífrase verbal com irvemse mostrando crescente. Até a primeira metade do século XX, este auxiliar concorria com outro, haver de, neste contexto de variação. O artigo apresenta também matizes semânticos diversos de cada um dos referidos auxiliares, o que demonstra os diferentes níveis semânticos da mesma forma lingüística em processo de gramaticalização. Os dados da análise foram obtidos através de um es-tudodemudançaemtemporealdelongaduração(amostra de peças teatrais).

Palavras-chave: mudança lingüística; gramati-calização; verbos auxiliares.

Ana Lúcia dos Prazeres Costa

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1- IntroduçãoSabe-se que a origem das flexões de futuro do presente e

do pretérito em português está na gramaticalização do verbo “haver” (cf. CÂMARA, 1979, p. 130):

amare + habeo > amar + aio > amareiamare + habebam > amar + abeam > amar + ea > amariatambém se sabe que tem havido variação no uso dessas

formas sintéticas, ou seja, na expressão do futuro cronológico não existe somente a forma flexionada (-rei, -rá, -remos etc.), tampouco ocorrem somente as formas em -ria na expressão do futuro do pretérito (ou do irrealis).

Ao traçar o percurso das formas que variam com o futuro do pretérito na linha do tempo, Costa (2003) demonstra como o ciclo de mudanças recupera formas que já haviam feito parte do sistema no passado, como é o caso do auxiliar haver (amaria x haviadeamar). Mais recentemente, o futuro do pretérito concorre com outra forma perifrástica cujo verbo auxiliar é o ir (iaamar).

A substituição do futuro flexionado pela forma perifrástica tem sido também constatada no futuro simples [amarei x vouamar], em relação ao português brasileiro, conforme atestam os trabalhos de Gryner (1997 e 2003), Santos (2000) e Malvar (2003). Esta última pesquisadora, à semelhança de Costa (2003), constata através de uma investigação diacrônica a presença do auxiliar haver (hei de + infinitivo, há de + infinitivo etc.) e, o uso – mais recente – da perífrase com ir (vou + infinitivo).

o presente artigo se concentrará em um aspecto discutido em Costa (2003), a saber, o fato de os auxiliares ir e haver nem sempre concorrerem com as demais variantes, ou seja, de existi-rem certos contextos especializados para uma ou outra forma. O objetivo deste artigo é, portanto, apresentar diversos valores de haviade e ia e relacioná-los ao fenômeno de gramaticalização.

Para tanto, será apresentada, na próxima seção, uma sín-tese dos resultados da pesquisa diacrônica de Costa (2003). Nas demais seções, trataremos do processo de gramaticalização de verbos auxiliares e da co-existência de camadas de significação da mesma forma no decorrer do processo.

2 - Formas que alternam com o futuro do pretérito: variação e mudança

Em trabalho que comparou a fala (entrevistas sociolin-güísticas) e a escrita informal (cartas pessoais), numa análise sincrônica, Costa (1997) investigou as formas que alternam com o futuro do pretérito no português informal no Rio de Janeiro.1

A pesquisa constatou que há alternância entre formas simples e em perífrase, a saber:

• Futuro do pretérito simples (FP): amaria

1 A amostra de fala é constituída por entre-vistas sociolingüísticas do projeto PEUL / UFRJ e a de escrita por cartas pessoais coletadas por Paredes Silva (1988 e 1989).

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• Futuro do pretérito em perífrase (Iria+V (infinitivo): iriaamar

• Pretérito imperfeito simples (Imp): amava• Pretérito imperfeito em perífrase (Ia+V (infinitivo)): ia

amarNo referido trabalho, a variável “idade” revelou que Ia+V

era a forma preferida dos informantes mais jovens. Como o controle desta variável é um possível indicador de mudança lingüística em tempo aparente (cf. LABOV, 1972), levantou-se a hipótese de que a perífrase com ia seria uma candidata a va-riante inovadora.

O fenômeno foi, então, posteriormente, estudado sob o pon-to de vista diacrônico (COSTA, 2003) a partir de duas estratégias de investigação: mudança em tempo real de longa duração e de curta duração (cf. LABOV, 1994). Apresentaremos aqui os resul-tados do estudo de mudança em tempo real de longa duração, que revelou a presença de uma quinta variante – a perífrase com haviade – que aparece principalmente nos textos mais antigos.

Para a realização desse estudo, foi analisada uma amostra de 33 textos teatrais (de 1733 a 1997).2 Usar peças teatrais como fonte de dados é uma prática comum entre os pesquisadores de variação e mudança lingüística, já que tais textos são escritos para serem falados, ou seja, seus autores geralmente buscam retratar a fala tal como se realizava na época.

O exemplo (01) ilustra algumas variantes, inclusive a perí-frase com o verbo haver, que à época do texto em questão, década de 50 do século XX, estava se retirando do palco de variação, conforme será visto na Fig. 1.

(01) [Personagens fazem aposta sobre resultado de jogo de futebol a se realizar no final de semana seguinte]...se eu tivesse dinheiro, sabes o que eu fazia, no domingo, queres saber? [...] apostava com duzentas mil pessoas no Vasco. Havia de esfregar a gaita assim, na cara de duzentas mil pessoas (...) Te juro que ia fazer minha independência, que ia lavar a égua! (A falecida, de Nelson rodrigues, 1953)

o estudo de mudança em tempo real de longa duração permitiu verificar a trajetória das variantes do início do século XVIII ao final do século XX. Seus resultados estão sintetizados na Fig. 1, que está organizada da seguinte maneira: intervalos de 50 anos nos séculos XVIII e XIX (exceto entre 1751-1800, em que não houve dados disponíveis); intervalos de 20 anos para o século XX.

2 Para mais detalhes so-bre a amostra de peças teatrais, consultar Costa (2003).

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Fig. 1 – Amostra de Teatro (em porcentagem)

0

10

20

30

40

50

60

70

1701-1750

1801-1850

1851-1900

1901-1920

1921-1940

1941-1960

1961-1980

1981-2000

FP

IMP

IA+V

IRIA+V

HAVIA DE+V

O que mais se destaca no gráfico é a constatação de um uso decrescente de havia de como auxiliar, enquanto a outra perífrase – com ia – apresenta um uso crescente. Há também uma oscilação nas ocorrências das formas FP e Imp através da linha do tempo, sendo que, a partir dos anos 60, o FP dá lugar não somente ao Imp como à forma Ia+V.

Existem, portanto, dois tipos de competição: uma entre as formas em perífrase e a outra entre as formas flexionadas. A primeira é menos acirrada, porque Ia+V entra em cena quando Havia de+V está se retirando. Na outra competição, a mais acirra-da, Imp e FP se alternam entre altos e baixos. O uso da perífrase com iria, por sua vez, se mantém bastante tímido.

Na evolução das línguas é natural que formas inicialmente de conteúdo lexical (como o verbo ir, de movimento) ganhem fun-ções gramaticais (como o auxiliar ir). Este fenômeno, chamado de gramaticalização, tem sido alvo de interesse do funcionalismo lingüístico e será o assunto da seção a seguir.

3- GramaticalizaçãoAinda que o rótulo “gramaticalização” tenha surgido em

1912 com os estudos de Meillet (cf. HOPPER; TRAUGOTT, 1993, p.18), pesquisas que abordavam este processo já eram realizadas desde o século XVIII por filósofos e estudiosos da linguagem.

o interesse pelo acompanhamento deste processo em vá-rios fenômenos lingüísticos vem ressurgindo nos últimos anos em pesquisas de cunho funcionalista (cf., por exemplo, MAR-TELOTTA (1998), GRYNER (1997) e BRAGA (1995)). Em linhas gerais, trata-se de um processo de mudança semântica através do qual um item de uma categoria lexical se transfere para uma categoria gramatical, ou um item já gramatical se torna ainda mais gramatical. As formas submetidas a este processo geral-mente sofrem também transformações fonéticas.

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Hopper & Traugott (1993) comentam a gramaticalização do verbo togo (ir) do inglês, em auxiliar que expressa futuridade imediata, e atestam que este auxiliar deriva historicamente do verbo de movimento togo. Assim, a existência dos dois tipos de verbo (lexical e gramaticalizado) na mesma construção verbal é possível em inglês (Bill is going to go to college after all - exemplo dos autores), o que prova que o auxiliar já atingiu níveis altos de gramaticalização naquela língua.

Como vimos nas seções anteriores, processo semelhante é encontrado nas línguas românicas, entre elas o português, em que o uso do verbo ir como auxiliar - em perífrase, variando com o futuro do presente ou futuro do pretérito - parece inovador e crescente.

Além disso, outro auxiliar nos chama a atenção (cf. COS-TA, 2003). Vimos, nos dados de textos teatrais, que se usava a perífrase haver de + infinitivo até meados do século XX, época em que precisamente aumenta a freqüência do uso de perífrases com o ir auxiliar.

Bybee, Perkins & Pagliuca (1994), em obra sobre a evolução da gramática em várias línguas do mundo, tratam, entre outros assuntos, do surgimento de formas verbais relacionado ao pro-cesso de gramaticalização. Sobre a gênesis do futuro gramatical, os autores afirmam que duas fontes comuns são justamente os verbos de movimento e os verbos modais de obrigação (como haver), sendo os primeiros os mais freqüentes (p. 253, 267). ir e vir são os verbos de movimento que mais se gramaticalizam na expressão do futuro (p. 253).

A hipótese dos autores é de que a gramaticalização destas formas passa por um estágio em que elas expressam “intenção”, primeiramente do falante e, mais tarde, do agente do verbo prin-cipal. Isto significa que a intenção atribuída a uma outra pessoa pode ser encarada como “predição” (em vez de intenção), que seria um segundo estágio (p. 254, 270).

além disso, entre as línguas estudadas, os autores notam que verbos de movimento que se gramaticalizam acabam ado-tando a forma de verbos auxiliares preferencialmente (afixos, por exemplo, são minoria) (p. 267). Também afirmam que o que torna fácil a transição de verbo lexical a verbo auxiliar de futuro é a própria semântica de “movimento até um alvo”, que parte do âmbito espacial para o âmbito temporal.

No entanto, a gramaticalização é um processo bastante lento; assim, o surgimento de uma nova forma não anula ime-diatamente as suas antecessoras. Pode haver, numa dada língua, a expressão variável de um mesmo sentido, para a qual concor-rem formas de origens diversas e até mesmo diferentes níveis de gramaticalização de uma mesma forma. Neste segundo caso, tem-se um efeito da gramaticalização chamado de layering (BY-

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BEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994, p. 21; HOPPER; TRAUGOTT, 1993, p. 123-124).

Como foi apresentado na primeira seção deste artigo, Costa (2003), em estudo de perspectiva diacrônica, abordou alguns usos de ia e haviade que não eram intercambiáveis com as demais variantes de futuro do pretérito, ou seja, havia matizes semân-ticos diferentes nestes casos. Estes tipos de ocorrência foram evidentemente excluídos do tratamento quantitativo, porém, nos servem como observação dos níveis de gramaticalização (coexistência de camadas - layering) de que falam Bybee, Perkins & Pagliuca (1994). Na seção seguinte, apontaremos alguns tra-balhos que comentam os diversos valores de ir ehaverde em perífrases verbais e relacionaremos tais observações aos dados obtidos na investigação de Costa (2003).

4 - Valores de ia e havia deA equivalência de perífrases formadas por haviade e ia com

o futuro do pretérito é prevista em Almeida (1980, p. 210-213). Sobre havia de + infinitivo, o autor afirma tratar-se de uma forma “mais enfática do que a simples, donde a maior convicção e certeza que dela emana” (p. 210). Veja-se um dos exemplos fornecidos pelo autor:

Antes, se admissível fosse aí qualquer presunção, havia de ser em sentido contrário...(R. Barbosa – OM, 109 apud ALMEIDA, 1980)

autores como Said ali (1965) e Mattos e Silva (1993) cos-tumam atribuir ao auxiliar haverde os valores de necessidade e obrigação, por isso, a forma é vista como equivalente a terde, sendo aquela apontada como uma variante arcaica desta.

Sobre haver de, Almeida (1980, p. 142-147) acrescenta ao valor de necessidade/obrigação os de convicção, imprecação, e até mesmo de contestação da necessidade, nos casos de contexto interrogativo:

Nem cedo nem tarde, pelo seu relógio. Mas ainda havemos de nos encontrar. (F. Sabino – EM, 196 apud ALMEIDA, 1980)(Convicção.)armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar? (A. de Azevedo – C, 101 apud ALMEIDA, 1980)(Contestação da necessidade.)

Dias (1959, p. 196-197), também atribui o valor de modalidade a havia de, apresentando esta forma ao lado de verbos modais como poder e dever.

Quanto ao auxiliar ia, costuma-se-lhe atribuir uma semân-tica de intenção a realizar-se ou não-realizada:

– Eu vou comprar esta casa.– Ia comprar, já foi vendida.(ALMEIDA, 1980, p. 215 – exemplo do autor)

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Ia tomar o pan.(MATTOS E SILVA, 1993, p. 67 – exemplo do português arcaico, extraído de Diálogos de São Gregório, séc. XIV)

a partir dessas considerações, buscamos uma sistemati-zação das ocorrências excluídas de perífrases com haviade e ia, visando a uma definição dos traços sintáticos e/ou semânticos característicos de cada grupo de itens excluídos. Como disse-mos, os itens excluídos são não-intercambiáveis em relação às outras variantes analisadas (sobretudo em relação ao Imp), pois apresentam um sentido especificamente modal (ou, no caso de ia, de iminência).

A – Iminência/intenção em futuro do passado (estruturas encaixadas)

Orações encaixadas que apresentam uma expressão crono-lógica de futuro em segmentos narrativos são um contexto em que dificilmente a forma de Imp é uma candidata a alternante. Isto se tornará claro na apreciação dos exemplos a seguir, que serão divididos em dois grupos:

A-1 – Orações encaixadas em discurso indireto/ estrutura com verbo dicendi, de cognição e outros (ver, saber, etc.):

(02) Mas ela me disse que ia ter [o filho]! A gente aqui feito boba. (Nocoração do Brasil, de Miguel Fallabela, 1992)(*tinha)

A-2 – Orações adjetivas:a iminência, nestes casos, também acontece em relação a

um tempo passado, o tempo da narrativa, embora a estrutura encaixada não seja a de oração objetiva, como é o caso do grupo anterior.(03) Era o que eu ia fazer. Mas o patrão pôs-se aqui. (Asdoutoras, de

Fraca Júnior, 1887)(*fazia)

B – Iminência em orações independentesNote-se que tanto os exemplos do item anterior quanto os

deste transmitem a noção de iminência. A diferença é que, no grupo de exemplos deste item B, as orações em que Ia+V figura não são encaixadas. Além disso, neste grupo, a iminência pode se relacionar a um futuro do tempo passado ou do presente (momento da enunciação), como veremos no exemplo (04), a seguir.

Muitas vezes a não-realização do evento iminente é apre-sentada por uma oração adversativa imediatamente posterior, como é o caso do exemplo (03) do item anterior. No exemplo (04), em que a ação iminente também não se realiza, pode-se dizer que há um “mas” implícito no contexto seguinte.

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(04) Dorotéa - O Carlos ia sair agora mesmo para encontrá-lo na Central [do Brasil]. [...] Estou vendo que o trem chegou adeantado... (O hóspede do quarto número dois, de armando Gonzaga, 1937)

O exemplo acima apresentou uma iminência frustrada; a seguir, temos um caso de iminência a realizar-se (em relação ao tempo da narrativa):

(05) Disse pra todo mundo ficar escondido, [por]que ele ia falar com a menina pra ver se podia ser... (Era uma vez nos anos cinqüenta, de Domingos Oliveira, 1980)

Nesses exemplos dos itens A e B, uma alternância com o FP seria possível, mas não com o Imp (na mesma interpretação).

C – Pergunta retóricaNossos exemplos de “pergunta retórica” se assemelham

bastante ao que Almeida (1980, p. 145) chamou de “contestação da necessidade”. O exemplo que o autor ofereceu (como vimos anteriormente) mostra este valor semântico associado ao auxi-liar haver (“armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?”), porém, encontramos, exemplos também com o auxiliar ir:

(06) Pensavas que havíamos de chorar sempre? (O Noviço, de Martins Pena, 1844)

(07) E tu acha que Marlyn Monroe ia ter problema igual ao teu? (NoCoração do Brasil, de Miguel Fallabela, 1992)

(08) Então eu ia dizer uma coisa dessas? (Último carro, de João das Neves, 1967)

(09) Então eu ia pedir uma coisa dessas? (Como matar um playboy, de João Bethencourt, 1965)

Note-se, especialmente, a repetição da estrutura de per-gunta retórica nos dois últimos exemplos, que, por acaso, foram coletados em autores distintos.

Na pergunta retórica, o haver parece ser similar ao poder ou dever (no sentido epistêmico de possibilidade/ eventualidade). No exemplo a seguir, a mais recente ocorrência do auxiliar haviade na amostra de textos teatrais, temos a expressão modal de possibilidade (algo como “ora, quem mais poderia ser?”):

(10) Marina - ora, quem havia de ser? aquele moleque mentiroso, aquele desclassificado,... (Como matar um playboy, de João Bethencourt, 1965)

Houve um caso de devia+V em ambiente de pergunta retórica, contexto em que a estrutura parece veicular “eventua-lidade”:

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(11) Hom’essa! Então eu não devia conhecer o Pão de açúcar? (O hóspede do quarto número dois, Armando Gonzaga, 1937)

D – Haver com valor modal (modalidade deôntica: obrigação/ necessidade) – fora de pergunta retórica.

Haver de, em alguns contextos, apresentou valor modal similar ao de dever e ter de (que) / modalidade deôntica (obri-gação/ necessidade), como nos exemplos abaixo. Note-se que tais exemplos são extraídos dos textos mais antigos. De fato, o valor deôntico de haverde é mais presente neste grupo de textos (datados do início do século XVIII).

(12) Como a Justiça havia de sair direita, para não se lhe enxergar. (Vida de Dom Quixote, de Antonio José da Silva, 1733)

(13) [Regras de um duelo] O desafio foi que havia ser só por só (Esopaida, de Antonio José da Silva, 1734)

5 - Os valores dos auxiliares: co-existência de camadas no processo de gramaticalização

Como vimos na seção 3, o conceito funcionalista de grama-ticalização é definido como o processo pelo qual itens lexicais e outras construções adquirem funções gramaticais em certos contextos e continuam a desenvolver diacronicamente novas funções (HOPPER; TRAUGOTT, 1993).

Segundo Hopper &traugott (1993, p. 123-124), no processo de gramaticalização, a persistência de formas ou significados antigos ao lado de novas formas ou significados (procedentes da mesma origem) resulta no efeito conhecido como layering. Isto significa que formas anteriores não são descartadas de modo abrupto, já que a gramaticalização deve ser encarada como um continuum. assim, dado um recorte sincrônico de uma língua, podem ser encontradas diferentes “camadas” do processo.

Bybee, Perkins & Pagliuca (1994), sobre o efeito de layering em várias línguas, afirmam não ser raro encontrar, especialmen-te no âmbito da expressão de futuro e modalidade, um grupo de formas gramaticalizadas em competição com outro em que as formas estão em processo de gramaticalização (p. 21).

Em outro ponto de sua obra (p. 279), os autores comentam o trabalho de Dahl (1985 apud BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994), baseado em amostras de sessenta e quatro línguas, no qual se verifica que a expressão do tempo (tense) futuro tende a possuir formas perifrásticas e flexionadas em quantidade equilibrada.

os mesmos autores apontam que as origens mais comuns para formas de futuro são aquelas mais claramente relacionadas a itens com noções de intenção, quais sejam: “desejo, obrigação e movimento em direção a um alvo” (p. 280).

Ana Lúcia dos Prazeres Costa

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Estaria no valor de “obrigação” a origem do haverde tem-poral/ modal (irrealis) que pode variar com outras formas na ex-pressão do tempo futuro (heide) e do futuro do pretérito/ irrealis (haviade)? Vimos exemplos deste valor de haviade (obrigação) acima, nos textos mais antigos da Amostra de Teatro (início do século XVIII).

Quanto ao verbo ir como auxiliar de futuro, o valor de “movimento em direção a um alvo” como sua fonte parece bas-tante consensual.

Martelotta (1998, p. 23) aponta que esta origem do verbo ir indicador de futuro pode estar relacionada com uma origem adverbial, ou seja, com uma estrutura que originalmente possui uma cláusula final:

Ele vai para falar com o professor. > Ele vai falar com o professor. > Vai chover

(Exemplo do autor)Em Costa (2003) foi encontrado um exemplo similar ao

oferecido por Martelotta (1998) sobre o verbo ir em cláusulas finais, ou seja, registramos uma ocorrência em uso real que ilustra esta etapa intermediária:

“ia/ movimento” – “ia/ finalidade-intenção” – “ia/ futuro do passado”

(14) ...de sorte que eu ia para ver o assalto, quando me disse um soldado, que era todo uma nata, e estava de sentinela: “se quer ver, há-de pagar à porta!” (Vida de Dom Quixote, de Antonio José da Silva, 1733)

Abaixo, o verbo ia parece veicular um valor de intenção muito mais evidente do que o valor de “futuro do passado” ou de irrealis. Note-se que o valor de intenção aparece mesmo antes das construções com ia, na forma do infinitivo ir (ir receber).

(15) Pois eu já compreendi tudo. O interesse de Carlos em ir receber o Candinho era apenas um pretexto para sair. Ele nem ia receber Candinho nenhum. O que ele ia era encontrar-se com o Ventura, que telefonou para aqui uma porção de vezes procurando-o. (O hóspede do quarto número dois, de Armando Gonzaga, 1937)

Em (15), na segunda ocorrência de ia + infinitivo, na ver-dade, a perífrase é desmembrada e a construção clivada coloca em foco o verbo ia (= intenção): “O que ele ia era encontrar-se com o Ventura...”.

a origem da estrutura be going to (ou do auxiliar ir, em português) também costuma ser relacionada a um processo metafórico segundo o qual a noção de tempo é conceptualizada a partir de outra mais concreta: espaço (HOPPER; TRAUGOTT, 1993).

Ainda segundo esta visão, que envolve questões metafó-ricas, significados relacionados à obrigação (como é o caso de

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haverde e dever) ganham valores epistêmicos de probabilidade e possibilidade através de uma metáfora segundo a qual a no-ção de “X é obrigado a Y” se desenvolve em “a proposição X é obrigada a ser verdadeira” (BYBEE; PAGLIUCA, 1985, p. 73 apud HOPPER; TRAUGOTT, 1993).

O conceito de gramaticalização e de uma de suas caracte-rísticas – o efeito de layering – são, portanto, cruciais para análise dos dados apresentados na seção anterior, visto que tais dados evidenciam a coexistência de camadas (layering) de função/sig-nificado de uma mesma forma gramatical.

Viu-se que, ao lado do valor deôntico (obrigação) de haverde (item D), há situações em que este auxiliar é empregado em contextos de pergunta retórica (valor epistêmico: eventualida-de) (item C), além de variar com FP e Imp (conforme vimos no exemplo (01)).

A forma ia em perífrase, por sua vez, oscila entre os valores de intenção/ iminência (itens A e B), pergunta retórica (item C) e também na concorrência com as variantes FP e Imp em contexto de irrealis.

Logo, vimos que o valor diferencial do auxiliar ia parece ser o de iminência/ intenção, já que a expressão de outros valores é compartilhada com haviade– pergunta retórica – e Imp/ FP/ Havia de+V/ e Iria+V – irrealis. Por isso, não deve ser coincidência o fato de que na amostra de fala também analisada em Costa (2003) não tenha ocorrido FP em contexto sintático de discurso indireto (e apenas 16% de FP neste contexto na amostra de textos teatrais, como em “Insistiu que o encontraria em casa” (O dote, de Arthur Azevedo, 1907)). Ou seja, há um matiz de iminência/ intenção muito forte neste ambiente, e, apesar da concorrência das variantes, o Ia+V predomina.

6 - Conclusãoo presente trabalho se alinha a outros que apontam na

direção de uma mudança no português brasileiro relativa ao uso de formas flexionadas versus formas em perífrase. Ademais, pretende oferecer uma contribuição sobre os sentidos que os au-xiliares ia e haviade podem veicular através de um determinado recorte diacrônico de nosso idioma (século XVIII ao XX).

Como já foi dito, no que toca à expressão do futuro crono-lógico, também se constata o uso decrescente da perífrase com haverde e o comportamento do auxiliar ir enquanto variante inovadora.3 Percebe-se, portanto, que o conjunto das formas que variam com o futuro do pretérito e as que variam com o futuro flexionado integram um sistema cujas mudanças têm acontecido de forma parecida, pelo menos no que diz respeito às construções perifrásticas.

A história do auxiliar haviade nos defronta com mais de uma etapa de gramaticalização, pois é sabido que a origem do

3 Malvar (2003) chegou a tal resultado ao tam-bém realizar um estudo de mudança em tempo real de longa duração com base em amostra de textos teatrais.

Ana Lúcia dos Prazeres Costa

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futuro do pretérito (assim como a do futuro do presente) está em outra perífrase também com haver (amare habebam).

Como relata Câmara (1979, p. 132), a gramaticalização de amare habeo a amarei e amare habebam a amaria não apagou totalmente o valor modal do futuro do presente e do futuro do pretérito: mesmo flexionadas, estas formas são vistas muito mais como portadoras de um “caráter modal” do que um caráter temporal.

Isto significa que a língua, em seu ciclo funcional, após esta etapa de gramaticalização, buscou um outro modal, no caso, o próprio haver (haviadeamar), que, associado à semântica de obrigação, veicula também outros valores, até mesmo variando com o futuro do pretérito.

Por outro lado, esse valor deôntico de obrigação parece sofrer a concorrência dos modais devia e tinha de/que, que, ao que tudo indica, acabam por suplantar, na linha do tempo, haviade nesse valor.

Paralelamente, na condição de forma perifrástica variando com formas flexionadas (FP e Imp) em contexto de irrealis, Havia de+V concorreu com outra perífrase - Ia+V - que a suplantou.

Quanto à gramaticalização do auxiliar ir, por sua vez, podemos afirmar que tal forma vem perdendo propriedades lexicais (num processo de descoloramento), passando a funcio-nar como um verbo auxiliar (sem que isto tenha prejudicado a existência paralela do ir de movimento). Isto é, este verbo deixa de ser principal como item léxico (nos contextos investigados) com uma semântica indicativa de movimento, passando a indicar predição/ futuridade.

ir segue, assim, o mesmo percurso que tem sido observado em várias línguas e que no inglês já se encontra mais consolida-do, já que este idioma permite a coocorrência de go auxiliar e go principal, além de o processo já incluir perdas fonéticas, como é o caso da forma gonna. No português, por enquanto, construções como “eu vou ir ao cinema” ou “eu ia ir ao cinema” ainda estão sujeitas a forte sanção social.AbstractRecent studies have focused the grammaticalization of the verb of movement

Mudança no sistema verbal do português: as variantes do futuro do pretérito e a questão da gramaticalização

Niterói, n. 21, p. ��-100, 2. sem. 2006 99

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ir (to go) into an auxiliary verb. This paper shows that in Brazilian Portuguese this auxiliary occurs not only in the expression of the future (time) but also in variation with the conditional; it also shows that the use of the verbal periphrasis with ir has increased diachronically. Until the first halfofthexxth century, this auxiliary co-occu-red with another one, haver de, in this context (irrealis). This paper presents, in addition, the several sematic values for each one of the referred auxiliaries, which may signalize the different semantic levels of the same linguistic form in a grammaticalization process. This study is based on a sample organized for a real-time observation of linguistic change considering a long run of time (a sample of theater plays).

Keywords: linguistic change; grammaticalization; auxiliary verbs.

Referências

Ana Lúcia dos Prazeres Costa

Niterói, n. 21, p. ��-100, 2. sem. 2006100

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006

transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações

discursivas do verbo fazerCélia Maria Medeiros Barbosa da Silva

Recebido 28, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

ResumoEste estudo objetiva analisar a transitividade do verbo fazer em dados de textos reais (orais e escritos), bem como comparar, em relação à tran-sitividade, o desencontro existente entre o conceito puramente teórico, trabalhado pela Gramática Tradicional, e aquele que reflete um ato discursi-vo/comunicativo do falante. Com base no quadro teórico da lingüística funcional contemporânea, entendemos transitividade como um complexo de traços sintático-semânticos que, prototipicamente, apresenta um sujeito/agente e um objeto/pacien-te, a partir da manifestação discursiva do verbo na cláusula. Utilizamos as categorias analíticas transitividade e prototipicalidade, além da apli-cação dos processos de metonímia e de metáfora. Os dados analisados foram retirados do Corpus Discurso & Gramática, composto de textos produ-zidos por alunos do último ano do ensino superior, distribuídos nos seguintes tipos: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada e relato de procedimento. Após este estudo, vimos que há possibilidades diversificadas de se analisar a transitividade a partir da manifestação discursiva do verbo. As cláusulas com fazerapresentaramvariação sintático-semântico-pragmática, levan-do-nos a concluir que transitividade é muito mais uma questão de gradação do que de regras prontas ou fórmulas fixas.

Palavras-chave: transitividade, verbo fazer, prototípico, manifestações discursivas.

Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

Niterói, n. 21, p. 101-114, 2. sem. 2006102

1 IntroduçãoNa visão da gramática tradicional, o estudo da língua é

independente do estudo da situação comunicativa, pois não se leva em consideração o contexto discursivo, ou seja, as condições de uso das formas lingüísticas. Essas observações podem ser verificadas, por exemplo, quando se vão procurar informações sobre transitividade verbal.

Para essa gramática, o verbo constitui o elemento principal do predicado verbal, podendo ser classificado em intransitivo, quando não precisa de complemento para integrar o seu sentido, como em (1):

(1) ... e eu fiquei tão ... é a ... ficou tão cheio de escoriações nas pernas principalmente ... que eu pensava que num ia andar mais ... num tinha quebrado nada ...mas tinha medo de andar ... aí fiquei quase esse tempo todinho que passei no hospital numa cadeira de roda ... (D&G, p. 23)

E transitivo, quando necessita de complemento que integre sua predicação, como em

(2) ... o professor quando chegou viu que tinha sido eu que tinha feito o serviço ... aí ele disse que tinha sido ele fazendo uma experiência ... eu não tinha dinheiro pra pagar aquele material todo do laboratório ...aí ficou todo mundo ... “quem foi ... quem não ... quem não foi” ... e terminou ficando o professor com a culpa ... e depois toda a turma ... o colégio inteiro ... fez uma coleta ... todo mundo colaborou pra repor o material do laboratório... (D&G, p. 50)

Verifica-se, então, que a gramática tradicional faz referência à transitividade verbal em termos de um complemento de que o verbo precisa para integrar o seu sentido. A classificação do verbo em transitivo ou intransitivo é, portanto, dicotômica, tendo como critério único a presença versus a ausência de um sintagma nominal (SN) que complete o significado do processo verbal.

Esta pesquisa teve como objetivo geral realizar um estudo da transitividade sob o enfoque da abordagem funcionalista norte-americana. Como objetivos específicos, propusemo-nos:

a) analisar a transitividade do verbo fazer, em dados de textos reais (oral e escrito), extraídos do Corpus Discurso & Gramática –1 a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998);

b) Comparar, com relação à transitividade, o desencontro existente entre o conceito puramente teórico, trabalhado pela Gramática Tradicional, e aquele que reflete um ato discursivo/comunicativo do falante.

Especificamente, interessou-nos analisar as manifestações discursivas do verbo fazer,2 em uma escala de transitividade, tendo como ponto de partida seu significado prototípico. Es-

1 Na parte destinada à análise de dados, ci-tamos D&G para nos referir à fonte de onde retiramos os exemplos.2 os resultados aqui apresentados foram re-tirados da nossa disser-tação de mestrado, de-fendida em 29/10/2002, na Universidade Federal do rio Grande do Nor-te – UFRN.

Transitividade verbal: uma análise funcional das manifestações discursivas do verbo fazer

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truturamos, então, o nosso estudo considerando os aspectos semântico e sintático das ocorrências com fazer.

Com relação ao aspecto semântico, dividimos as cláusulas em três tipos de construção: fazer + objeto direto produzido (prototípico), fazer + objeto direto (lexicalização) e fazer (curinga)3 + objeto direto.4 Nesse caso, levamos em conta a existência nelas de um sujeito/agente e objeto/paciente, que ca-racteriza a cláusula como transitiva prototípica (SLOBIN, 1982; GIVÓN, 1984).

No que tange ao aspecto sintático, analisamos as cláusulas em que o verbo fazer apresenta-se sem OD expresso, conside-rando, pois, duas ocorrências: objeto recuperável do contexto e objeto não-recuperável do contexto.

Vale salientar que o foco no verbo fazer deu-se por este servir de modelo para os verbos classificados categoricamente pela gramática tradicional como transitivos diretos, caso de colocar, dar e encontrar, que no funcionamento discursivo freqüentemente têm seu objeto suprimido, o que resulta numa configuração intransitiva.

Na tentativa de explicar a forma da língua através do uso que se faz dela, a transitividade foi vista a partir de um estudo sintático-semântico, no qual esse conceito é caracterizado em termos de grau, ou seja, a partir de parâmetros os quais con-tribuem para que a cláusula seja mais ou menos transitiva. a classificação das cláusulas não foi feita em termos binários, isto é, categóricos, em que estas são transitivas quando apresentam um objeto como complemento do verbo, e intransitivas quando não têm objeto, como propõe a gramática tradicional.

tomamos como ponto de partida os parâmetros de transiti-vidade formulados por Hopper e Thompson (1980) e Thompson e Hopper (2001), bem como a abordagem acerca do tema desen-volvida por Givón (1984), num estudo de âmbito extra-sentencial em que haja interface entre discurso, sintaxe e semântica, na linha de Givón (1979).

Do ponto de vista metodológico, o estudo sobre transitivi-dade que se pretendeu desenvolver neste trabalho foi formulado a partir de dois aspectos: o teórico e o empírico.

Com relação ao aspecto teórico, este consistiu primeiro em uma retrospectiva acerca da transitividade verbal feita pelos gramáticos, Said Ali (1964,1966) e Cunha e Cintra (1985), pelos autores de gramáticas escolares Faraco e Moura (2000) e Infante (2001), e pelos lingüistas Perini (2000) e Dias (1999). Em seguida, abordamos o fenômeno da transitividade sob a ótica de estudos desenvolvidos por Givón (1979,1984), Hopper e Thompson (1980), Thompson e Hopper (2001) e Furtado da Cunha (1989, 1996, 2001). Fizemos uso, ainda, de postulados funcionalistas, a saber: a prototipicalidade (GIVÓN, 1984; SLOBIN, 1980), entendida como a representação exemplar de uma categoria; os processos

3 Esse termo terá a mes-ma função da car ta curinga no baralho, que, em alguns jogos, muda de valor de acordo com a combinação que se tem em mão. 4 Doravante oD

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de metonímia (TAYLOR, 1992), que se referem à contigüidade sintática dos elementos na cláusula; e os de metáfora (LAKOFF; JOHNSON, 1980; TAYLOR, 1992), que estão relacionados ao valor semântico dos componentes lingüísticos na cláusula, os quais serviram de apoio a este estudo.

No que concerne ao aspecto empírico, procuramos inves-tigar a concepção de transitividade como uma noção contínua, em que as cláusulas com o verbo fazer possam ser classificadas a partir de parâmetros independentes. Para isso, fizemos um levantamento das ocorrências com fazer em textos retirados do Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998). Esses textos foram pro-duzidos por 4 (quatro) alunos do último ano do ensino superior, de universidades públicas e particulares, compreendendo as modalidades oral e escrita. Ao todo foram 115 (cento e quinze) ocorrências com o verbo fazer, distribuídas nos seguintes tipos de textos: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada e relato de procedimento.

Vale salientar que a opção por estudantes do ensino su-perior deu-se por entendermos que estes já passaram pelos três níveis de escolaridade, nos quais a noção dicotômica de transi-tividade costuma ser bastante trabalhada.

2 Análise dos dadosIniciamos nossa análise a partir da idéia de que o signifi-

cado de base do verbo fazer é “produzir através de determinada ação” (cf. HOUAISS; VILLAR 2001) e passamos a distribuir as ocorrências de fazer em uma escala de transitividade, tendo como ponto de partida seu significado prototípico.

Do ponto de vista semântico, dividimos as cláusulas com fazer em três tipos, levando em consideração a definição de cláu-sula transitiva prototípica de Slobin (1982): aquela que apresenta um agente animado e intencional que provoca uma mudança física e perceptível de estado ou de lugar em um paciente por meio do contato corporal direto. Essa definição corresponde às duas propriedades que Givón (1984) atribui aos verbos transitivos prototípicos: um sujeito agente e um objeto paciente. trabalha-mos, então, com os seguintes tipos:

a) Fazer + OD produzido (prototípico);b) Fazer + OD (lexicalização);c) Fazer (curinga) +OD.

Do ponto de vista sintático, nosso estudo analisou as cláusulas em que o verbo fazer apresenta-se sem OD expresso, separando-as em dois tipos:

a) Objeto recuperável do contexto;b) Objeto não-recuperável.

apresentaremos, agora, o procedimento analítico que acabamos de descrever.

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2.1 Aspectos semânticos

2.1.1 Fazer + OD produzidoapresenta as seguintes características:

a) Cláusula transitiva [+ prototípica] (Sujeito/agente + Fazer (prototípico – “produzir através de determinada ação”) + objeto/paciente):

(3) E: as cores...inclusive da montanha são pelo menos apro-ximadas a da fotografia?

I: são...eu ... eu procurei ao máximo ... inclusive eu tive um ... um ... eu tive um pouco de dificuldade pra fazer esse mar aí porque marinha tem sido ... tem ... tem sido um dos ... um dos primeiros trabalhos sozinho assim... (D&G, p. 135)

A cláusula caracteriza-se como transitiva prototípica, na medida em que apresenta um sujeito/agente “eu” que produz, através da ação de desenhar, “esse mar” – objeto/paciente total-mente afetado, pois ganha existência a partir dessa ação.

b) Cláusula transitiva [- prototípica] (Sujeito/beneficiário + Fazer (prototípico – “produzir através de determinada ação”) + objeto/paciente):

(4) ... aí eu sei que eu fiquei esses dias todinho lá ... sem dormir direito ... coçava muito né ... aquele negócio sarando né ... aquelas ferida cicatrizando ... aí eu fiz uma plástica ... tive que fazer uma plástica aqui e aqui né . (D&G, p. 22)

Embora não possa ser caracterizada como transitiva proto-típica, já que não tem sujeito agente, essa cláusula é sintaticamen-te codificada como tal por um processo de extensão metafórica. Como o OD é um produto criado, que ganha existência a partir da ação de um agente, e o beneficiário é tópico central do frag-mento textual, o falante estrutura a cláusula como transitiva, eliminando o sujeito e substituindo-o pelo beneficiário. Note-se que, aqui, fazer mantém o seu sentido de base: “produzir através de determinada ação”.

2.1.2 Fazer + OD (lexicalização) = cláusula transitiva [- prototípica] – valor semântico de Fazer

(processo metonímico e metafórico) thompson e Hopper (2001, p. 33) usam o termo “compos-

tos V-O” para se referir às combinações de verbo + substantivo que exibem um ou mais dos seguintes traços: 1) a combinação é altamente lexicalizada; 2) o Objeto é não-referencial; 3) o Verbo é ´leve’ ou ‘baixo em conteúdo’. Assim, estamos considerando Fazer + OD (lexicalização) como construções que apresentam comportamento igual aos compostos V-O. Da mesma forma de

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thompson e Hopper (idem), estamos nos reportando a Fazer + OD (lexicalização) como cláusulas com dois participantes.

Examinaremos, em primeiro lugar, as ocorrências em que Fazer + OD pode ser substituído por um verbo pleno:

(5) E: educação artística?I: sim ... e ... educação artística seria ... não sei se seria um ... um ... talvez nessa ... nesse ... nessa área eu ... eu me propusesse a ensinar ... a ... a .... a desenvolver a atividade profissional ...E: eu acho até que há uma coisa natural a acontecer ... você faz plano de se tornar um profissional nessa atividade de pintura? ou você já se sente assim ... (D&G, p. 144)

Na cláusula destacada, apesar de o sujeito ser o agente da ação, na medida em que “fazer plano” envolve intencionalidade, não se pode afirmar com certeza se o objeto é afetado por essa ação, tendo em vista que é não-individuado e não-referencial. Essa combinação parece ser uma lexicalização, o que resulta num afastamento do sentido prototípico de fazer, esvaziado de conteúdo e “contaminado” pelo sentido do OD. Consideramos que o OD não é afetado, pois tal combinação implica um valor semântico global: “faz + plano” = “planeja”. a cláusula, então, afasta-se da transitiva prototípica, na medida em que há um sujeito agente, mas um objeto não-paciente.

Devido à contigüidade sintática dos elementos V-OD, por um processo de extensão metonímica, fazer adquire o novo valor semântico do seu objeto. a interpretação que atribuímos ao bloco fazer + OD de algum modo amplia o sentido do verbo, num processo de extensão metafórica. Assim, a partir de uma transferência de sentido de natureza metonímica, chega-se a uma extensão metafórica de sentido.

Passemos, agora, à análise das combinações V+o para as quais a língua não possui um item verbal semântica e morfolo-gicamente correspondente:

(6) E: endereço...I: rua Pedro Afonso 44...Quadra B...E: Pedro Afonso?I: é...caneta tão chique que num sabe nem escrever direito...E: num é minha não...I: rua Pedro Afonso número 44... então foi só pra me impressionar né...que você veio com ela? E: não ... num quero impressionar você ... por nada nesse mundo ... rua Pedro Afonso número 44 ... Quadra B ... oh ... fiz besteira ... I: tem problema você repete ... E: complemento aqui ... vou botar ... Natal ... rio Grande do Norte ...

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I: Natal é aqui ó ... Natal ... rio Grande do Norte aqui ... (D&G, p. 128)

Deparamo-nos com uma cláusula em que, embora o sujeito seja o agente da ação, não podemos garantir ser o objeto afetado por essa ação, já que é não-individuado. Existe um valor semântico global

oriundo da combinação de “fiz + besteira” = “errei”. Dessa forma, a cláusula se afasta da transitiva prototípica, na medida em que o su-

jeito é agente, mas o objeto não é paciente.Nesse caso, o contexto comunicativo nos dá as pistas para

interpretar a expressão “fiz besteira”. Como o informante estava preenchendo um formulário, podemos entender que a cláusula em destaque se refere a “erros gráficos’produzidos à medida que ia escrevendo.

2.1.3 Fazer (curinga) + OD = cláusula transitiva [-prototípica] (Sujeito/agente + atribuição do valor semân-tico de Fazer por meio dos processos da metonímia e da

metáfora) a denominação fazer (curinga) + OD deve-se ao fato de

termos verificado em nossos dados ocorrências do verbo fazer que podem ser substituídas por outros verbos que não têm relação morfológica (ou semântica) com o OD. Nesses casos, o significado do OD é fundamental para a atribuição de valor semântico a fazer:

(7) ...quando eu vou preparar um jantar de peixe ... eu tenho que ver que tipo de peixe que eu vou usar ... quais são os complementos ... né ... então normalmente eu faço esse peixe e tenho que me preparar pra ver o que eu vou ... cozinhar ... (D&G, p. 59)

À primeira vista, a cláusula acima se caracteriza como transitiva prototípica, na medida em que possui sujeito/agente, animado e intencional, “eu”, e objeto/paciente, “esse peixe”, que sofre mudança de estado. Entretanto, nesse exemplo o verbo fazer não está sendo empregado no seu sentido de base ─ “pro-duzir através de determinada ação” ─, mas com outro sentido: “preparar”, já que o peixe referido pré-existe à ação do agente, não sendo por ele criado. A proximidade sintática dos componentes ─ “faço + esse peixe” ─ leva-nos, por metonímia, a fazer uma reanálise do significado de base de fazer, estendendo-o meta-foricamente. Do ponto de vista sintático, a cláusula é codificada como transitiva prototípica.

Examinando as cláusulas (3), (4), (5), (6) e (7) com base nos dez traços de transitividade, temos o seguinte resultado:

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transitividade alta Transitividade baixa(3) (4) (5) (6) (7) (3) (4) (5) (6) (7)

Participantes 1 1 1 1 1Cinese 1 1 1 1 1aspecto do verbo 1 1 1 1 1Punctualidade do verbo 1 1 1 1 1Intencionalidade do sujeito 1 1 1 1 1Polaridade da cláusula 1 1 1 1 1Modalidade da cláusula 1 1 1 1 1agentividade do sujeito 1 1 1 1 1Afetamento do objeto 1 1 1 1 1Individuação do objeto 1 1 1 1 1total de pontos 08 08 06 07 08 02 02 04 03 02

Quadro 1: Resultadodostraçosdetransitividade das cláusulas: aspectos semânticos.

a pontuação alta obtida em (3) está correlacionada à sua apresentação no plano da figura discursiva. O mesmo ocorre com (4), na medida em que a informação nela contida é central no evento que está sendo narrado. Já em (5), a cláusula apresenta grau de transitividade 6 (seis), devido ao preenchimento negativo dos traços aspecto, punctualidade, afetamento e individuação. Ainda assim, a cláusula parece se situar no plano da figura, visto que serve como gatilho para que o informante exponha seus planos para o futuro.

a marcação positiva de 7 (sete) traços, em (6), não garante que a cláusula pertença ao plano da figura, tendo em vista que representa um comentário a respeito do tema do trecho: o pre-enchimento dos dados solicitados. Isso significa dizer que essa cláusula se encontra no plano de fundo do texto. Por fim, em (7), a cláusula exibe um alto grau de transitividade e se situa no plano da figura, representando, nesse fragmento de um relato de procedimento, uma informação central.

2.2 Aspectos sintáticosDo ponto de vista sintático, nosso estudo analisou as

cláusulas em que o verbo fazer apresenta-se sem OD expresso, separando-as em dois tipos:

2.2.1 Objeto recuperável do contexto

(8) ... então é ... o doutor Carrilho que tava comprando todo o material lá né ... pra mansão dele disse ... E: por que [...]I: é ... o cara foi super grosso aí ... aí Jorge já tremeu nas bases que ... percebeu que ia acontecer alguma coisa muito ... muito séria né [...]E: mas em relação à compra do material ... fizeram na mesma loja?

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I: sim ... aí ele com eles ... parece que o doutor Carrilho no outro dia ... no mesmo dia ele conseguiu falar com o gerente principal e:: teve um negócio desagradável como ... puxar arma ... um negócio assim sabe? (D&G, p. 110-113)

Temos, aqui, uma cláusula que, sintaticamente, afasta-se do caso transitivo prototípico. Por meio da morfologia verbal (3ª pessoa do plural), identifica-se o sujeito/agente anafórico (“Jorge e doutor Carrilho”). Quanto ao objeto, embora ele não seja lexi-calmente explicitado, pode ser recuperado na mesma cláusula, em que aparece topicalizado (“a compra do material”).

Percebemos então que, do ponto de vista semântico, a cláusula é transitiva, na medida em que a ação se transfere do agente para o paciente, do mesmo modo que em uma cláusula com OD expresso. O objeto, assim recuperado, é produto da ação do agente. Note-se que a combinação “fazer a compra” equivale a “comprar”, ou seja, o oD de fazer é uma nominalização. Nesse sentido, a cláusula se enquadra no tipo que denominamos fazer + OD (lexicalização).

(9) I: eu vou...lhe ensinar a fazer uma pizza...((riso))[...] E: tem é ... diferença?I: é tem ... a com a ... com a água ele tem a tendência a ... a endurecer mais rápido né ... ((barulho de carro)) a se perder mais rápido né? fica logo dura a massa aí ... num ... num presta não ... mas se for pra ser consumido logo no mesmo dia num tem problema não ... é até melhor fazer com a água porque ... gasta menos né?... (D&G, p. 39-40)

Sintaticamente, (9) se afasta do caso prototípico, pois o sujeito e o objeto não se encontram codificados na cláusula, apesar de serem recuperados do contexto. Essa recuperação torna-se possível na fala do próprio informante que diz ao seu interlocutor que “vai lhe ensinar a fazer uma pizza”.

Considerando a recuperação do OD anafórico, ao analisar as cláusulas em (8) e (9) pelo complexo de transitividade, o Qua-dro 2 nos fornece o seguinte resultado:

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transitividade alta Transitividade baixa (8) (9) (8) (9)

Participantes 1 1Cinese 1 1aspecto do verbo 1 1Punctualidade do verbo 1 1Intencionalidade do sujeito 1 1Polaridade da cláusula 1 1Modalidade da cláusula 1 1agentividade do sujeito 1 1Afetamento do objeto 1 1Individuação do objeto 1 1total de pontos 10 07 0 03

Quadro 2: Resultadodostraçosdetransitividadedas cláusulas: aspectos sintáticos.

Note-se que a pontuação máxima obtida em (8) resulta da decisão analítica de tratar o OD anafórico recuperável como um participante. Fosse outro o procedimento, os traços correspon-dentes ao OD seriam marcados negativamente e, conseqüente-mente, o grau de transitividade da cláusula seria mais baixo. Com relação ao plano discursivo, essa cláusula contrariamente à expectativa, já que é altamente transitiva, encontra-se no plano de fundo, representando um pedido de esclarecimento feito pelo entrevistador. também a cláusula em (9) se situa no plano de fundo desse relato de procedimento, tendo em vista que repre-senta uma explicação, um detalhamento do preparo da pizza.

2.2.2 Objeto recuperável do contextoEmbora não tenhamos encontrado esse tipo de ocorrência,

em nosso corpus, com falantes do ensino superior, estes são co-muns no português, como se vê em:

(10) Quem sabe faz ao vivo. (Fausto Silva, apresentador de TV)

(11) Quem quer faz, quem não quer manda.(Ditado popular)

Verificamos que o sujeito em (10) e (11), embora tenha ca-racterísticas de agente, não executa nenhuma ação. As cláusulas apresentam várias propriedades da modalidade irrealis: o sujeito “quem” é genérico (= qualquer pessoa), o objeto zero é genérico (= qualquer coisa) e o modo verbal é o subjuntivo.

Sintaticamente, as duas cláusulas se afastam do tipo an-terior, na medida em que não há um objeto codificado e tam-pouco definido pelo contexto. Pode-se dizer que o verbo fazer, em ambos os casos, apresenta um conteúdo lexical baixo, que não corresponde exatamente ao seu sentido básico “produzir através de determinada ação”. aqui, o produto (objeto criado) é

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irrelevante e a ênfase recai na execução da ação (qualquer que seja) pelo sujeito agente.

3 Considerações finaisNo que tange à análise das cláusulas com fazer, verificamos

que há possibilidades diversificadas de manifestação discursi-va. Essas cláusulas apresentam variação tanto na configuração sintática, como na função semântica dos participantes sujeito e objeto, quanto na função pragmática da cláusula com relação à relevância discursiva. Isso nos leva a concluir que a transitivi-dade, como afirma Givón (1984), é muito mais uma questão de gradação do que de regras prontas ou fórmulas fixas, o que pode ser ratificado pelo Quadro 3 abaixo:tipos de cláusulas Língua falada Língua escrita total por tipos

de cláusulasFazer + OD produzido 43 (84%) 8 (16%) 51 (44%)Sujeito/beneficiário + Fazer + OD paciente 3 (60%) 2 (40%) 5 (4%)

Fazer + OD (lexicalização) 39 (87%) 6 (13%) 45 (39%)

Fazer (curinga) + OD 6 (100%) - 6 (5%)Fazer sem OD expresso: objeto recuperável do contexto

8 (100%) - 8 (7%)

Fazer sem OD5 expresso: objeto não recuperável do contexto

- - -

total geral 99 (86%) 16 (14%) 115 (100%)

Quadro 4: Distribuição dos tipos defazer em 115 (cento e quinze) ocorrências.

Conforme demonstrado no Quadro 4, do ponto de vista quantitativo, vimos que há grande incidência de fazer + OD (produzido) ─ cláusula prototipicamente transitiva ─, que apresenta sujeito/agente e objeto/paciente. A maioria dessas cláusulas ocorre na oralidade. Isso demonstra que fazer é pre-dominantemente empregado pelo falante no seu sentido proto-típico. Mesmo na escrita, esse tipo de construção foi o que exibiu o maior número: 8 (oito) ocorrências.

Notou-se também que as construções com fazer + OD (lexicalização), prototipicamente menos transitivas, são usadas com muita freqüência, pois a diferença entre este tipo e as cláu-sulas transitivas prototípicas foi de apenas 6 (seis) casos.

as cláusulas construídas com fazer sem OD expresso, mas recuperável do contexto ocorreram em número bastante inferior às duas construções anteriores, 8 (oito) casos, ocupando o terceiro lugar em freqüência de ocorrência nos dados por nós coletados. Tais cláusulas se afastam sintaticamente da transitiva prototípica, pois não há um OD lexicalmente explicitado, embora, do ponto

5 Não encontramos esse tipo de ocorrência, em nosso Corpus, com falan-tes do ensino superior. Por isso, não levamos em consideração, para fins quantitativos, os exemplos (10) e (11).

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de vista semântico, a ação se transfira do agente para o paciente, da mesma forma que em uma cláusula com OD expresso.

as cláusulas construídas com fazer (curinga) + OD e aque-las com sujeito/beneficiário + fazer + OD paciente obtiveram quase o mesmo número de dados coletados, 6 (seis) e 5 (cinco), respectivamente. No que tange ao primeiro caso, verificou-se que todas as ocorrências se encontram na oralidade. Com relação à segunda, estas se situam tanto na oralidade como na escrita.

Com relação aos pontos qualitativos, foram constatados alguns fatos interessantes. O primeiro deles diz respeito à forma pela qual a GT trata a questão da transitividade, cuja definição é dada em função do complemento verbal, considerando intransiti-vo o verbo que não apresenta sintaticamente oD. alguns verbos, como é o caso de fazer, são categoricamente classificados como transitivos diretos. Verificou-se, contudo, que no funcionamen-to discursivo o objeto muitas vezes é suprimido pelo falante, e mesmo assim a cláusula não deixa de ser transitiva, haja vista apresentar traços que a caracterizam como transitiva.

Outro fato por nós observado foi o de que transitividade deve ser tratada observando a variação que existe no funciona-mento discursivo do verbo, partindo do inter-relacionamento que há entre os componentes sintático, semântico e pragmático. Essa constatação ratifica ainda mais a nossa visão acerca do fenômeno transitividade, em que não se deve considerar um aspecto isoladamente, e sim todo o contexto, de modo que haja uma articulação sintático-semântico-pragmática.

Procuramos mostrar que a noção de transitividade não é categórica: não há um padrão único de construção para cláusulas com fazer, bem como não se pode categorizar um verbo anali-sando-o sob a dicotomia transitiva ou intransitiva, sem verificar a sua manifestação discursiva. Vale salientar que, nesta pesquisa, fazer serviu como modelo para os verbos que são classificados pela Gt considerando essa dicotomia.

Não queremos com este estudo impor procedimentos que o professor deva adotar ao trabalhar com o fenômeno da transitividade. Esperamos, contudo, que este estudo possa servir como uma reflexão, a fim de que se criem situações de ensino-aprendizagem que sejam sintonizadas com a realidade lingüística em curso. Assim, sugerimos que, ao tratar da tran-sitividade, o professor chame a atenção dos seus alunos para a atuação dos componentes de traços sintáticos e semânticos, e que tal fenômeno não seja visto como uma propriedade categórica do verbo, mas como uma propriedade escalar da cláusula como um todo.

Por fim, ressaltamos que esta pesquisa não pretendeu ser exaustiva nem definitiva no que tange à questão da transiti-

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AbstractThe following study aims to analyze the transitivi-ty of the verb fazer in certain real texts (oral and written), as well as compare the gap that exists between the purely theoretical concept, as subs-cribed to by traditional grammar, and the concept which reflects a discursive/communicative act of the speaker. Based on the theoretical framework of contemporary functional linguistics, we un-derstand transitivity as a group of syntactical-semantic traits which prototypically present a subject/agent and an object/patient, taking into consideration the discursive manifestation of the verb in the clause. We use analytical categories transitivit, and prototypicality, in addition to the application of the processes of metonymy and metaphor. The data analyzed were taken from Corpus Discurso & Gramática – the spoken and written language in the city of Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), composed of texts produced by high school students of the following type: first person narrative, third person narrative and telling of a process. As a result of this study, we see that there are diverse possibilities of analyzing transitivity taking into consideration the discur-sive manifestation of the verb. Clauses with fazer present syntactical-semantic-pragmatic variation which brings us to the conclusion that transitivity is much more a question of degree than steadfast rulesorrigidformulas.

Keyword: transitivity, verb fazer, prototypica-lity, discursive manifestation.

vidade. Dessa forma, possíveis indagações não contempladas aqui, ou respostas talvez insatisfatórias, por limitações óbvias, possam vir a ser, pretendemos, razão para especulações futuras mais abrangentes e aprofundadas.

Célia Maria Medeiros Barbosa da Silva

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 11�-131, 2. sem. 2006

Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto

Maria Angélica Furtado da Cunha

Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 5, ago. 2006

ResumoEste artigo focaliza a relação gramatical objeto direto, com o fim de analisar as diferentes ma-nifestações discursivas desse elemento. A partir da análise, é proposto um tratamento gradiente dessa relação gramatical, através de uma escala que ordena os objetos diretos de acordo com o seu grau de prototipicidade. A pesquisa segue uma perspectiva funcionalista do estudo da língua, discutindo aspectos sintáticos, semânticos e prag-máticos do objeto direto e tomando as propriedades sintáticas como derivadas de propriedades semân-ticas e sintáticas do verbo a que o objeto direto está relacionado. Os dados empíricos correspondem a oito narrativas conversacionais extraídas do Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade de Natal.

Palavras-chave: estrutura argumental, objeto direto, tratamento escalar.

Maria Angélica Furtado da Cunha

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1. IntroduçãoEste artigo focaliza a relação gramatical objeto direto, com

o fim de analisar as diferentes manifestações discursivas do ele-mento que tradicionalmente se classifica como objeto direto.1 a partir dessa análise, pretende-se propor um tratamento gradien-te dessa relação gramatical, sugerindo uma escala que ordena os objetos diretos de acordo com o seu grau de prototipicidade. Essa organização hierárquica se correlaciona a processos de natureza cognitiva e de natureza pragmático-comunicativa que regulam as tendências de manifestação discursiva da estrutura argumental dos predicados.

Fundamentada em pressupostos teóricos funcionalistas e cognitivistas, assumo que há um paralelismo entre a cate-gorização conceptual e a categorização lingüística, ou seja, conhecimento do mundo e conhecimento lingüístico não são separados (FURTADO DA CUNHA et al., 2003; TAYLOR, 1998; TOMASELLO, 1998).

Nesse quadro, as análises lingüísticas se baseiam no uso concreto da língua pelos falantes, admitindo que a gramática se molda a partir do uso lingüístico que se dá em situações co-municativas. A gramática é, pois, o resultado da cristalização ou regularização de estratégias discursivas recorrentes, que decorrem de pressões cognitivas e, sobretudo, de pressões de uso. as regularidades observadas no uso interativo da língua são explicadas com base nas condições discursivas em que se verifica esse uso.

De acordo com a proposta funcionalista, portanto, os pa-drões gramaticais estão estritamente relacionados à estrutura do discurso e podem, em muitos casos, ser explicados em termos dessa estrutura. Nesse sentido, a investigação do modo como as orações se organizam e se manifestam no discurso interativo tem de levar em conta fatos probabilísticos, como a freqüência de ocorrência de um dado padrão, em substituição à concepção de que aos verbos, ou predicados, correspondem a estruturas argumentais ou valência fixas, que estabelecem, apriori, o nú-mero de participantes que um dado predicado evoca. Compar-tilho, portanto, a idéia, corrente na lingüística contemporânea, de que os verbos são listados no léxico com molduras ( frames) que especificam quais argumentos são obrigatórios e quais são opcionais. Os falantes dominam essa informação à medida que adquirem sua língua materna.

a perspectiva de análise que adoto situa esta pesquisa no domínio de interface entre sintaxe, semântica e pragmática, de acordo com a postura teórico-metodológica corrente no quadro da Lingüística Funcional norte-americana (cf. FURTADO DA CUNHA; COSTA, 2001). Logo, as propriedades sintáticas do

1 Esse artigo faz parte de uma pesquisa, em desenvolvimento, sobre as manifestações dis-cursivas da estrutura argumental (estágio de pós-doutorado, apoia-do pelo CNPq – pro-cesso 200756/2003-6, na University of Cali-fornia, Santa Barbara). Concentra-se na sintaxe do objeto direto, o que significa que os papéis semânticos que ele pode desempenhar não serão examinados aqui. Adi-anta-se, contudo, que o objeto é uma categoria semanticamente hete-rogênea.

Estruturaargumentale valência: a relação gramatical objeto direto

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objeto examinadas aqui decorrem das propriedades semânticas e pragmáticas dos verbos a que se ligam.

os dados empíricos correspondem a oito narrativas con-versacionais2, extraídas do Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), produzidas por 4 estudantes do terceiro ano do ensino médio. O material analisado consiste de 28.717 palavras, sendo 26.069 dos textos falados e 2.648 dos textos escritos correspon-dentes.

2. Estrutura argumental e valênciaDe um modo geral, os conceitos de regência verbal,3 valên-

cia verbal,4 estrutura argumental e transitividade são tratados como sinônimos tanto nas gramáticas tradicionais como nas gramáticas descritivas (cf. CUNHA; CINTRA, 1985; SAID ALI, 1971; NEVES, 2000; PERINI, 1995, entre outros).

A estrutura argumental de um dado verbo especifica gra-maticalmente quantos nomes vão acompanhá-lo, e que papéis vão desempenhar, na oração (CHAFE, 1979; FILLMORE, 1977). De um ponto de vista cognitivo, uma estrutura argumental nada mais é do que uma estrutura de expectativas desencadeadas pelo verbo (DU BOIS, 2003).

os termos “valência” e “estrutura argumental” normal-mente se referem ora ao aspecto sintático da relação entre o predicado e seus argumentos, ora à relação semântica entre eles, ora a ambos, salientando o papel dominante do verbo na estruturação gramatical da oração em que ocorre. Desse modo, a estrutura argumental pode focalizar as relações gramaticais dos argumentos (sujeito, objeto direto, etc.), assim como os papéis semânticos que lhes são atribuídos (agente, paciente, etc.). Um outro tipo de valência, a pragmática, trata dos diferentes modos em que essencialmente a mesma informação, ou o mesmo con-teúdo semântico, pode ser estruturado de maneiras diferentes a fim de refletir o fluxo de informação velha ou nova (COMRIE, 1981). Portanto, os verbos e suas estruturas argumentais, como tantos elementos na gramática, são multifuncionais: são capazes de servir simultaneamente a funções sintáticas, semânticas e pragmáticas.

“transitividade” (do latim transitivus = que vai além, que se transmite), em seu sentido original, denota a transferência de uma atividade de um agente para um paciente. Para a Gramá-tica tradicional, a transitividade é uma propriedade do verbo, e não da oração: são transitivos aqueles verbos cujo processo se transmite a outros elementos, que lhes completam o sentido. Por oposição, nos verbos intransitivos “a ação não vai além do verbo” (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 132). Ou seja, a classificação de um verbo como transitivo ou intransitivo se apóia na presen-ça/ausência de um Sintagma Nominal objeto (critério sintático)

2 o termo “narrativa conversacional” se refe-re a narrativas em que há tomada de turno, mas o narrador mantém o turno a maior parte do tempo.3 regência é a relação de dependência que se dá entre um termo regente e um termo regido. a regência é um fenôme-no formal que apenas informa se o verbo pede um objeto (direto ou indireto). Esse concei-to não será examinado aqui.4 termo emprestado da química e introduzido por tesnière (1959), in-dicando o número de argumentos que um verbo subcategoriza.

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exigido pelo significado do verbo (critério semântico). Apesar da distinção formal rígida entre verbos transitivos e intransitivos, as gramáticas são unânimes em salientar o fato de que “a linha de demarcação entre verbos transitivos e intransitivos nem sempre pode ser rigorosa. alguns verbos transitivos podem ser empregados intransitivamente”, como comer e beber em: comer carne, beber vinho, o doente não come nem bebe (SAID ALI, 1971, p. 165). Cunha e Cintra (1985, p. 134) fazem referência ao papel do contexto lingüístico na interpretação/aferição da transitividade do verbo: “a análise da transitividade verbal é feita de acordo com o texto e não isoladamente. O mesmo verbo pode estar em-pregado ora intransitivamente, ora transitivamente”. Conclui-se, então, que a transitividade não é uma propriedade intrínseca do verbo enquanto item lexical, mas está sujeita a fatores que ultrapassam o âmbito do Sintagma Verbal.

Com base no fato de que alguns verbos classificados pela gramática como transitivos podem ocorrer sem objeto direto explícito, Perini (1995) critica o tratamento tradicional e avança uma proposta de análise em que cada verbo seja especificado (supostamente no léxico, embora Perini não esclareça) com re-lação à possibilidade de ocorrência de objeto direto. assim, os verbos seriam marcados como: exige objeto direto (ex. fazer), recusa objeto direto (ex. nascer) e aceita livremente objeto direto (ex. comer). Perini (1995, p. 168) argumenta a favor de uma con-cepção de transitividade puramente formal, que utiliza a função sintática “objeto direto” para marcar cada verbo, “sem referir-se a traços do seu significado”, embora admita que “evidentemente, existe uma relação entre transitividade e traços do significado dos verbos”, como a exigência de agente, paciente, etc. (p. 170).

Uma alternativa de análise para a questão da transitivi-dade é fornecida pelo quadro teórico da Lingüística Funcional norte-americana, de inspiração em Givón, Hopper, thompson, entre outros. De acordo com esse tratamento, a transitividade é entendida não como uma propriedade categórica do verbo, mas como uma propriedade escalar (ou gradiente) da oração como um todo. Embora o presente estudo se alinhe a essa abordagem, a questão da transitividade oracional não será examinada aqui.5

Neste trabalho, vou utilizar a noção de estrutura argu-mental sintática, tomada como correspondente a valência, as-sim definida: a estrutura argumental de um verbo representa o número de argumentos que ele pode (argumento opcional) ou deve tomar (argumento obrigatório). Por sua vez, o termo “argumento” identifica qualquer elemento sintático relacionado ao verbo. Como se pode ver, estrutura argumental e valência referem-se ao mesmo fenômeno.

As noções de valência (PAYNE, 1997; BORBA, 1996), estru-tura argumental (GOLDBERG, 1995; PERINI, 1995) e transitivida-de (HOPPER; THOMPSON, 1980; THOMPSON; HOPPER, 2001)

5 Cf. Furtado da Cunha (1996, 2002).

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têm atraído o interesse de muitos pesquisadores. o estudo da natureza da relação entre o predicado e seus argumentos, con-tudo, tem-se restringido, em grande parte, à análise de exemplos construídos ou de textos escritos. Poucos trabalhos, em especial sobre o português, examinam como a estrutura argumental e a transitividade se manifestam no discurso interacional.6 apoiada nos pressupostos teóricos funcionalistas, assumo que as questões que surgem quando se trabalha com dados reais de interação comunicativa apresentam sérias implicações para a nossa com-preensão da gramática da oração.

a estrutura argumental tem sido uma questão central na investigação da gramática das línguas humanas. Na lingüística contemporânea, “estrutura argumental” aponta para a idéia de que o léxico de uma língua contém informação sobre as molduras ( frames) dos verbos, que descrevem quais argumentos são indis-pensáveis e quais são facultativos (DIK, 1989; FILLMORE, 1968; LANGACKER, 1987; PAYNE, 1997, entre outros). Para muitas línguas, isso significa listar as molduras em que um dado verbo pode participar. Parece consensual que a estrutura argumental dos verbos é um tipo de conhecimento que o falante adquire à medida que aprende a usar sua língua. Contudo, as discussões sobre esse aspecto da gramática têm sido baseadas em exemplos fabricados, e não em textos reais.

thompson e Hopper (2001) citam vários problemas en-volvidos no estudo da gramática da oração sob a perspectiva da estrutura argumental, tais como: cenas (scenes), predicados sem estrutura argumental e fronteiras indeterminadas entre predicados de um participante e de dois participantes.

Com relação a cenas, a metodologia utilizada para deter-minar a valência semântica7 de um verbo é imaginar ou con-ceitualizar cenas para esse verbo, ou seja, quem ou o quê deve estar presente para esse verbo. Contudo, pesquisas baseadas em corpora identificaram um leque de usos de verbos que não apa-recem nas investigações sobre a estrutura argumental baseadas na introspecção.

No que se refere a predicados sem estrutura argumental, thompson e Hopper (2001) argumentam que corpora de conver-sações do dia-a-dia registram muitas expressões lexicalizadas ou pré-fabricadas que são apre(e)ndidas como unidades e que não se prestam a uma análise baseada em verbos que escolhem os participantes com que ocorrem.8 Em português, temos como exemplo as expressões dar um cochilo ou ter confiança.

Quanto à impossibilidade de traçar fronteiras nítidas entre predicados de um e de dois participantes, os autores observam que, além de as línguas naturais diferirem quanto à marcação desses predicados, em uma mesma língua os predicados variam em relação à especificação clara dos sintagmas nominais com os quais podem ocorrer. Desse modo, alguns verbos podem

6 Cf. Borba (1996) que trata a questão da valên-cia a partir de exemplos criados. outros autores abordam a estrutura argumental preferida, como Pezzatti (1996) e Camacho (1996), utili-zando dados do NURC.7 Valência semântica é o número de participantes que devem estar pre-sentes na cena expressa pelo verbo. Por exemplo, o verbo comer tem uma valência semântica de dois, já que deve haver pelo menos alguém que come e uma coisa comi-da (PAYNE, 1997).8 Vale notar que, ao refe-rir-se a “predicados sem estrutura argumental”, thompson e Hopper (2001) não levam em conta o argumento su-jeito, mas apenas o argu-mento objeto, que forma um todo com o verbo que acompanha.

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alternar entre uma configuração de um participante ou de dois participantes, retendo o mesmo significado básico, o que compro-va a fluidez entre as duas categorias de predicado. Veja-se, por exemplo, a alternância entre Euferviaágua e Aáguajáferveu.

Para muitos lingüistas, a estrutura argumental sintática e a semântica (também chamada case frame) de um verbo devem ser especificadas na entrada lexical, ou dicionário (PAYNE, 1997). De acordo com essa orientação, para que uma oração seja bem formada, é exigida a presença explícita ou implicada dos argumentos que mantém uma relação gramatical ou semântica específica com o verbo da oração. Isso significa que a um deter-minado verbo corresponderia uma estrutura argumental rígida, cristalizada, donde se pode concluir que a não realização dessa estrutura acarretaria em dificuldade ou mesmo impossibilidade de interpretação do enunciado.

Pelo que foi exposto, conclui-se que há vários problemas en-volvidos na visão tradicional da estrutura argumental, que leva em conta cenas fixas. Na verdade, a estrutura argumental parece ser muito mais variável em comparação com o que geralmente se afirma sobre a gramática das orações. Trabalhos recentes na linha funcionalista evidenciam que a estrutura argumental tem a ver com freqüência de ocorrência de um verbo em situações reais de uso lingüístico. O modo como os verbos se combinam com nomes não é uma propriedade estável dos itens no léxico mental, mas um fato altamente variável. Nessa perspectiva, não há espaço para estruturas argumentais fixas ou rígidas. Ao definir cada relação sintática e cada papel semântico associados a um verbo, define-se um protótipo. Cada verbo especifica sua própria moldura proposicional única, seu próprio arranjo único de papéis sintáticos e semânticos. o conhecimento que adquiri-mos sobre os verbos – com que elementos ele se combina – pode não estar estocado em categorias nitidamente distintas. Um ver-bo como comer, por exemplo, pode ser estocado como transitivo ou intransitivo. Diversas pesquisas confirmam (THOMPSON; HOPPER, 2001; TAYLOR, 1995; LAKOFF, 1987; LABOV, 1973) que as categorias lingüísticas se comportam como as categorias humanas de um modo geral. ao se deparar com um novo verbo (por exemplo, dolarizar, em português, ou e-mail, em inglês), o falante pode tratá-lo como um membro prototípico da classe dos verbos e até mesmo como um membro da subclasse de verbos com dois argumentos. assim, a gramática da oração ou estrutura argumental é formada do mesmo modo que as outras categorias: através do contínuo processo cognitivo de classificação, refina-mento e generalização a partir das interações comunicativas diárias. Como defendem Thompson e Hopper (2001), o sentido de um verbo ou predicado está relacionado aos esquemas léxico-gramaticais em que ele pode ocorrer, e a estrutura argumental é essencialmente um subconjunto desses esquemas.

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Vimos que as orações simples são definidas em termos de suas molduras,uma semântica e a outra sintática. a moldura sintática refere-se aos papéis gramaticais (estrutura sintática dos tipos de oração), enquanto a moldura semântica diz respeito aos papéis dos participantes (estrutura semântica dos tipos de estado/evento), conforme Givón (2001). O isomorfismo forma-função na oração simples é expresso em termos do mapeamento sistemático entre as relações gramaticais dos participantes e seus papéis semânticos no estado/evento descrito na oração.

Somente através do exame de dados de textos reais é pos-sível determinar como os verbos e seus argumentos são usados por falantes reais, engajados em interações comunicativas. A análise desses dados pode fornecer material relevante para a compreensão de como os humanos produzem e processam a linguagem. Este trabalho se volta, portanto, para a observação dos padrões recorrentes nos textos para saber que construções os falantes de fato usam, categorizam e estocam.

3. A relação gramatical objeto direto as línguas tendem a ter três categorias distintas de relações

gramaticais nucleares: sujeito, objeto direto e objeto indireto. Essa limitação formal provavelmente reflete as limitações cognitivas dos humanos em rastrear os papéis dos participantes em uma dada situação e/ou o número de papéis de participantes necessá-rios para expressar os tipos de mensagens (ou proposições) que os humanos normalmente expressam. Em outras palavras, há duas, possivelmente três, categorias necessárias para manter os papéis dos participantes distintos na interação humana normal sem sobrecarregar a mente.

os argumentos nucleares são aqueles mais centrais à es-trutura da oração. Tendem a ser altamente gramaticalizados, isto é, obrigatórios e não opcionais, e relativamente desbotados de significado semântico específico.

As relações gramaticais são categorias formais automa-tizadas (aprendidas ou institucionalizadas) que permitem às línguas lidar com um extenso leque de variabilidade no reino dos papéis semânticos e do status pragmático. Logo, elas têm apenas uma correlação frouxa com as relações semânticas e pragmático-discursivas, embora muitos lingüistas concordem que as relações gramaticais não podem ser inteiramente compre-endidas a menos que sejam relacionadas aos papéis semânticos e pragmáticos dos argumentos.

Nas gramáticas normativas, o objeto direto geralmente é definido como o Sintagma Nominal (SN) complemento de um verbo transitivo direto, ou seja, o complemento que normalmente vem ligado ao verbo sem preposição e indica o ser para o qual se dirige a ação verbal. Segundo essa definição, o objeto direto é um termo integrante, isto é, completa o sentido do verbo e é

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indispensável à compreensão da mensagem (CUNHA; CINTRA, 1985; FARACO; MOURA, 1991). Essa definição é bastante seme-lhante às que se encontram na literatura lingüística, as quais destacam ainda que o objeto direto é um argumento nuclear (core argument), seja qual for o papel semântico que desempenha (SCHLESINGER, 1995, entre outros).

Um argumento nuclear é parte da definição mental de um verbo e corresponde ao participante que é inerentemente implicado no evento ou estado expresso pelo verbo, ou seja, para que o evento ocorra, é necessário que haja tal participante. A entrada lexical de um verbo como demolir, por exemplo, tem como um dos seus argumentos nucleares um SN que diz respeito ao referente que é demolido.

Embora esteja especificado na entrada lexical de um dado verbo, o fato de o objeto direto representar um argumento nu-clear não exclui a possibilidade de omissão desse argumento, pois ele pode ser recuperado ou inferido do contexto. Note-se, porém, que recuperabilidade não é uma questão de tudo ou nada: a escolha entre duas alternativas tem determinantes pragmáti-cos, como veremos adiante.

À relação gramatical objeto direto deve corresponder um determinado papel semântico, especificado pelo tipo semânti-co de verbo. os papéis semânticos são relações conceituais no “mundo da mensagem” (PAYNE, 1997), definido como o domínio conceitual expresso pela linguagem, que é distinto do domínio formal da estrutura lingüística. Os conceitos existem mesmo se não forem lingüisticamente expressos, daí a possibilidade de não realização do objeto direto. Idealmente, os papéis semânticos são papéis que os participantes desempenham nas situações do mundo das mensagens, distintos da codificação lingüística dessas situações. Por exemplo, o verbo comer tem conceitual-mente (semanticamente) dois argumentos. Formalmente, os falantes podem ajustar o conteúdo de suas mensagens, mencio-nando mais ou menos argumentos do que esses dois previstos na estrutura argumental de comer. Em As crianças já comeram, entendemos que as crianças comeram algo; simplesmente não interessa, para os propósitos desse ato comunicativo particular, o que elas comeram.

Em princípio, muitos verbos podem ter mais de uma mol-dura semântica; isto é uma outra maneira de dizer que eles têm “sentidos” diferentes. A expressão gramatical do papel semân-tico e do status pragmático de um dado SN pode ser entendida em termos da função comunicativa da língua.

as relações gramaticais são geralmente consideradas como relações entre argumentos e predicados em um nível da estrutura lingüística que é independente de (isto é, que não é sensível a) influências semânticas e pragmáticas (PAYNE, 1997). Se as relações gramaticais fossem um tipo de representação ou mapeamento de papéis semânticos e/ou de status pragmático,

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então sua existência poderia ser explicada em termos da função comunicativa da língua. Contudo, não se pode dizer que isso aconteça porque uma dada relação gramatical pode expressar diferentes papéis semânticos, por um lado, e papéis semânticos particulares podem ser expressos por diferentes relações gra-maticais, por outro. De um ponto de vista funcional, a relação entre status pragmático, papel semântico e relação gramatical é motivada em termos da noção de protótipo. Por exemplo, um SN que tanto é agente semântico quanto tópico pragmático provavelmente vai ser expresso como um sujeito gramatical. Esse SN seria um sujeito prototípico. Do mesmo modo, um SN que representa simultaneamente o paciente semântico e o foco (a informação nova) da oração tende a ser expresso como objeto direto. A conjunção desses aspectos define o objeto prototípico, assim como a posição pós-verbal, no português.

4. Tratamento escalar do objeto diretoPara este estudo, trabalhei com um universo de 1.365 ocor-

rências (1.197 na fala e 168 na escrita) de verbos transitivos, isto é, verbos cuja moldura semântica implica a existência de um argumento objeto direto. a partir da análise desse material, é possível verificar tendências recorrentes no discurso no que diz respeito à realização do argumento objeto.

a análise dos dados coletados, apoiada na leitura da bibliografia especializada, levou-me a uma proposta de um tratamento gradiente da relação gramatical objeto direto (objec-thood), que ordena os objetos diretos de acordo com seu grau de prototipicidade:

Objeto Direto explícito > Zero anafórico > Zero inferido > Objeto Direto oracional > Complexo Verbo + Objeto.

Isso significa que, como muitas outras categorias lingüís-ticas, a categoria “objeto direto” não é discreta, uma vez que é composta por membros que não apresentam um mesmo estatuto ou as mesmas propriedades inerentes. Há, portanto, diferentes manifestações discursivas do que tradicionalmente se classifica como objeto direto. Cabe enfatizar que essa escala leva em conta as propriedades sintáticas do argumento objeto direto, embora considerações semânticas e pragmáticas não possam ser descar-tadas. o quadro 1 dispõe os resultados encontrados para cada tipo de objeto direto, tanto na fala quanto na escrita:

tipo de objeto Fala EscritaOD Explícito 671 (56%) 132 (79%)

oD Zero 292 (24%) 13 (8%)oD oracional 130 (11%) 16 (9%)

Complexo V + OD 104 (9%) 7 (4%)TOTAL 1197 (100%) 168 (100%)

Quadro 1: Distribuição dos dados

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A primeira categoria da escala – Objeto Direto explícito – corresponde ao objeto prototípico, expresso por um SN cuja distribuição é pós-verbal, tende a constituir o foco do enunciado e a representar o papel semântico de paciente, ou objeto afeta-do. Esse tipo é o mais freqüente, nos dados de fala e de escrita. Vejamos alguns exemplos:

(1) ele matou um professor ... (Corpus D&G, p. 184).

(2) ele realizou um sonho dela, né? (Corpus D&G, p. 235).

Na escala, a segunda e terceira categorias correspondem aos objetos diretos não explícitos, que se afastam do protótipo porque o objeto não é informação nova, ou foco, daí a omissão.9 O objeto zero ocorre três vezes mais na fala do que na escrita, dadas as propriedades pragmáticas específicas que caracteri-zam seu uso, como veremos a seguir. O objeto zero anafórico compreende os objetos contextualmente dados ou recuperáveis, e corresponde aos complementos definidos nulos (definite null complements, na terminologia de Fillmore, 1986). A categoria zero inferido compreende os objetos previstos pela estrutura semântica do verbo, e corresponde aos objetos indefinidos nulos (indefinite null complements, na classificação de Fillmore, 1986). Isso significa que os objetos diretos não-expressos não com-partilham as mesmas propriedades, isto é, há diferentes tipos de zero, pois enquanto os objetos anafóricos apontam para um referente único, recuperado do contexto discursivo anterior, no caso dos inferidos não há nenhum argumento que possa ser razoavelmente evocado do contexto prévio. Os enunciados (3) e (4) exemplificam o objeto zero anafórico, enquanto (5) e (6) ilustram o objeto zero inferido:

(3) ele teria que queimar esse almanaque … então antes de fazer qualquer aposta ele conseguiu pegar o almanaque ... queimou ... aí quando queimou imediatamente a manchete do jornal mudou ... (Corpus D&G, p. 188).

(4) ele pediu um prato … que ela foi enfiar o garfo e o negócio voou … que num era para comer com garfo (Corpus D&G, p. 242).

(5) e ela tinha um ... um caso né ... com um homem ... que ele ... é ... trabalhava ... mexia assim com drogas ... não é ... com tráfico ... um ladrão assim ... né ... pra conseguir o que ele queria ... ele matava ... né ... (Corpus D&G, p. 276)

(6) no dia seguinte … ele apareceu lá no hotel … querendo seduzir sabe? a … a moça … mas ela não aceitou sabe? (Corpus D&G, p. 243).

Em (3) e (4), o objeto direto dos verbos queimar e comer é dado no contexto imediatamente precedente: o almanaque e o

9 Encontra-se em prepa-ração um trabalho que aborda especificamente as manifestações discur-sivas dos objetos diretos não-expressos. Neste artigo, os dois tipos de objeto zero foram agru-pados no quadro 1.

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negócio, respectivamente. Em (5), a identidade exata do referente objeto de matar não pode ser recuperada e é irrelevante para os propósitos comunicativos do falante: infere-se que o ladrão matava qualquer pessoa que interferisse em suas atividades ilícitas. Com base em nossa experiência, atribuímos um argu-mento objeto ao verbo matar, muito embora não sejamos capazes de identificá-lo, já que ele representa um elemento genérico ou não-específico. Em (6), por outro lado, a recuperabilidade do objeto está aberta para o interlocutor, pois há vários SN candi-datos potenciais ao papel gramatical de objeto direto, caracte-rizando o zero multireferrencial. Dentre outras possibilidades, podem-se selecionar como referente do objeto zero: asedução, aproposta, a cantada, etc. Tanto em (5) quanto em (6) a ênfase recai sobre o evento em si, daí a não explicitação do objeto direto. Dado o nosso conhecimento semântico/pragmático, inferimos o argumento não-expresso, muito embora ele não possa ser lexicalmente identificado.

Como se pode ver, o objeto zero anafórico é dado no texto, constituindo um subtópico discursivo, ao lado do sujeito tópico, e a possibilidade de referência anafórica reflete sua topicidade. Portanto, se afasta do objeto direto prototípico, que é o foco da oração, isto é, a informação nova. Por sua vez, a irrelevância comunicativa do objeto zero inferido está refletida na impossibi-lidade de recuperação precisa, em muitos casos, de seu referente: nem o falante nem o ouvinte precisam ser capazes de identificar o referente particular do objeto direto, aquele que sofreu mudança de estado. Há, portanto, uma diferença importante entre esses dois tipos de objeto zero. Com relação ao zero inferido, trata-se de uma operação de ajuste da valência, o que não se dá com o zero anafórico. No primeiro caso, a ausência do objeto direto se deve à falta de proeminência discursiva (cf. GOLDBERG, 2001). Na grande maioria dos casos em que um verbo com uma va-lência semântica de dois argumentos ocorre sem referência ao segundo argumento, a situação é tal que a identidade do item que preencheria a relação gramatical do segundo argumento não foi estabelecida e não precisa ser estabelecida para que o falante atinja seu propósito comunicativo. É a ação que é particularmen-te enfatizada. Por outro lado, o objeto zero anafórico funciona exatamente no tipo de situação contrária, ou seja, quando a identidade do referente está tão bem e recentemente estabelecida que não há possibilidade de confusão com alguma outra enti-dade. Vale lembrar que a noção de valência está estreitamente relacionada com a idéia tradicional de transitividade, a saber, um verbo transitivo é aquele que descreve uma relação entre dois participantes de tal modo que um dos participantes age sobre o outro. Um verbo intransitivo é aquele que descreve uma propriedade, um estado, ou uma situação que envolve apenas um participante. Segundo Payne (1997), as línguas têm várias

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maneiras de ajustar (aumentando, diminuindo, reorganizando) a valência sintática das orações. O efeito semântico (isto é, con-ceitual) e pragmático de aumentar a valência sintática pode ser caracterizado como a promoção de um participante periférico ao centro do palco, enquanto o efeito de diminuir a valência é o rebaixamento de um participante central a um status periférico, ou sua eliminação da cena.

Incluem-se, ainda, na categoria dos objetos não explícitos os verbos de moldura semântica transitiva que ocorrem, preferen-cialmente, com objeto zero inferido não-específico ou genérico, como é o caso de beber, que implica bebida alcoólica, e dirigir, que implica carro, como nos exemplos seguintes:

(7) a gente tinha ido pra:: Baixa Verde ... aí lá tinha uma vaquejada ... meu pai foi ... começou a beber ... começou a beber ... isso a gente tinha um Passat ...sabe? começou a beber ... e minha mãe morrendo de medo porque ... ele ia beber muito e pra voltar ... de noite era muito perigoso ... (Corpus D&G, p. 223).

(8) eu vinha com o coração na mão ... sabe? [...] se eu soubesse dirigir ... por isso é que é bom ... a pessoa saber dirigir ... né? Porque numa hora dessa ... “pai vá pra trás que eu vou aí pra frente”... (Corpus D&G, p. 225).

Esses verbos apresentam um significado especializado, na medida em que beber tende a envolver álcool na cena, e dirigir implica carro, a menos que especificado de outra forma. Então, pode-se dizer que álcool foi incorporado na moldura semântica de beber, assim como carro na de dirigir. Essa é a interpretação que normalmente atribuímos ao objeto zero desses verbos.

Note-se que o objeto anafórico é definido, ao passo que o objeto inferido é indefinido. Isso significa que, embora eles sejam sintaticamente iguais (são zero, isto é, não estão lá), semantica-mente são diferentes, pois os inferidos não podem ser identi-ficados com precisão. Do ponto de vista pragmático, o objeto inferido/indefinido é irrelevante na medida em que a saliência comunicativa incide sobre o evento/ação. Esse aspecto reflete o fato de que a estrutura argumental sintática e a estrutura argu-mental semântica de um verbo nem sempre coincidem no uso discursivo desse verbo, pois o comportamento sintático de um verbo também pode ser pragmaticamente motivado. a estrutu-ra da informação tem a ver com o uso das orações e não com o significado das proposições, o que demonstra a independência dos papéis semânticos e pragmáticos. Isso nos leva a crer que a semântica nem sempre determina a sintaxe, apesar de funcio-narem de forma integrada.

o objeto direto oracional10 apresenta algumas característi-cas que o afastam do protótipo: é representado por uma oração, e não por um SN nominal, é não-referencial, não-individuado e

10 Não foram contabi-lizados aqui os objetos oracionais dos verbos dicendi, tema de outro estudo. Para uma dis-cussão sobre o estatuto sintático desses objetos, ver Furtado da Cunha (2004, 2005).

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não-afetado. A oração complemento pode ser introduzida pelo complementizador que, por verbo no infinitivo ou por pronome relativo, como nos exemplos seguintes:

(9) depois que ele descobriu [que as cartas eram dela] ... (CorpusD&G, p. 184).

(10) dizendo que ela tinha aceitado [sair com ele] ... (Corpus D&G, p. 234).

(11) eu já sei [quem foi] que ganhou... (Corpus D&G, p. 179).

A categoria complexo V + Objeto compreende construções que ocorrem com os chamados verbos-suporte (cf. BORBA, 1996). Esses verbos participam de uma construção complexa (GOLDBERG, 1995) com um nome que atua como o núcleo do predicado, enquanto o verbo é esvaziado de significado lexical, servindo como suporte de categorias verbais (tempo, modo, nú-mero e pessoa). Nessas construções, parece não haver separação semântica entre o evento/ação e seu complemento; ao contrário, a construção é interpretada como um todo. os mesmos verbos que ocorrem nessas construções complexas (dar, fazer, ter, etc.) funcionam como verbos plenos quando seu complemento é um SN referencial. Em muitos casos a construção complexa pode corresponder a um verbo pleno, como em dar conselho = aconselhar, fazerparte = participar, ter confiança = confiar. Vejamos alguns exemplos:

(12) gosto de fazer amizade e tudo mais ... (Corpus D&G, p. 175).

(13) eu tinha vergonha de comer na frente do Alexandre ... (CorpusD&G, p. 227).

(14) ela deu um telefonema pra casa do delegado … (Corpus D&G, p. 280).

Não se pode analisar a estrutura argumental sem deparar com construções desse tipo ou sintagmas verbais fixos, idioma-tizados, o que constitui um problema para qualquer análise. Parece não haver critérios bem estabelecidos que diferenciem as construções com verbo-suporte do tipo que estou denominando complexo V + Objeto das construções que também apresentam verbo semanticamente esvaziado + objeto, que podem corres-ponder a verbos simples, mas que são tidas como expressões cristalizadas ou idiomatizadas por alguns autores, como fazerquestão, fazer sucesso (cf. NEVES, 2000). Esse assunto não será aprofundado neste trabalho.

Os dados analisados apontam para o fato de que a estru-tura argumental dos verbos parece ser gradiente, o que significa que os verbos variam com relação a quão rígida ou quão frouxa sua estrutura argumental pode ser. Muitos verbos ocorrem em

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mais de um padrão de estrutura argumental (confiram-se os exemplos (1) e (5) acima, com o verbo matar). além de serem pragmaticamente motivados, em termos do status informacional dos argumentos, padrões alternativos de estrutura argumental sintática provavelmente estão relacionados ao tipo semântico de verbo e a diferenças de significado de um mesmo verbo (pró-xima etapa da pesquisa sobre as manifestações discursivas da estrutura argumental).

5. Considerações finaisA lingüística funcional postula a ascendência do compo-

nente pragmático sobre o componente semântico, e do semântico sobre o componente sintático: a gramática da oração veicula o sistema semântico da língua, o qual, por sua vez, organiza os acontecimentos da realidade. A complexidade sintática resulta da pragmática da comunicação: a necessidade do falante de basear a cena referencial – o evento a ser comunicado – na cena atencional (TOMASELLO, 1999) – o evento de interação – que está compartilhando com seu(s) interlocutor(es). No nível do enunciado, as construções mais comuns e recorrentes na língua fornecem embalagens pré-estabelecidas, convencionalizadas ao longo do tempo, que servem de base para a referência a parti-cipantes e eventos particulares, e para o processo de tomada de perspectiva, selecionando diferentes elementos como foco primário do enunciado.

Para Du Bois (2003), os falantes, ao produzir discurso, são cuidadosos em rastrear quais referentes foram previamente introduzidos (e estão ativos na mente, no sentido de CHAFE, 1994) e quais estão sendo introduzidos pela primeira vez, tendo em vista o estado corrente de conhecimento (ou ausência dele) que seus interlocutores têm. as estratégias para o gerenciamento da informação governam parcialmente as escolhas lingüísticas, como aquela entre objetos diretos explícitos ou zero. Em geral, a escolha do falante com relação à forma de codificação do ob-jeto direto pode ser considerada como um indicador sensível e confiável do custo cognitivo percebido em acessar um referente. os verbos e suas estruturas argumentais, como tantos elemen-tos na gramática, são multifuncionais: são capazes de servir simultaneamente a funções semânticas e pragmáticas. Ainda segundo Du Bois (2003), os padrões discursivos têm a ver com custo cognitivo: eles apontam para uma exploração sistemática da estrutura sintática como um quadro para a organização e gerenciamento de custos cognitivos na produção e compreensão do discurso. Nesse sentido, a estrutura argumental de um verbo define um formato para o processamento cognitivo, formato este que, uma vez cristalizado como estrutura gramatical devido a sua freqüência no discurso, torna-se um recurso cognitivo disponível a todos os membros da comunidade de fala. No

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processo de gramaticalização, aqui entendido como a fixação de padrões discursivos em padrões gramaticais, há, portanto, uma atuação direta do componente pragmático. Em relação à estru-tura argumental, essa postura implica a interferência de fatores discursivos na codificação gramatical das orações e dos casos semânticos envolvidos, ressaltando a estreita correlação entre as determinações do discurso e as da gramática. o fato de muitos verbos ocorrerem ora com ora sem objeto torna a distinção entre verbos transitivos e intransitivos discursivo-pragmática, e não lexical e paradigmática.

Abstract:This paper addresses the grammatical relation direct object, with the aim of analyzing the vary-ing discourse manifestations of this element. As a result of this analysis, it is proposed a gradient treatment of objecthood, by means of a scale which ranks the direct object according to its degree of prototipicality. The research follows a functional perspective on language study, discussing syntac-tic, semantic and pragmatic aspects of the direct object, and considering the syntactic properties as derived from semantic and pragmatic properties of the verb the direct object is related to. The data for this study come from eight conversational narratives, collected from Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade doNatal.

Keywords: argument structure, direct object, scalar treatment.

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“restrições de ilhas” revisitadas: uma abordagem funcionalista à luz da noção

de “unidade de informação”Maria Beatriz Nascimento Decat

Recebido 29, jun. 2006/Aprovado 30, ago. 2006

ResumoEste trabalho apresenta uma abordagem funcio-nalista das estruturas de “ilhas”, assim nomeadas por Ross (1967) dentro de uma visão gerativista. Pretende-se mostrar que as restrições estabelecidas por tais ilhas quanto à ocorrência de constituintes emdeterminadoslugaresdaestruturasedevemaofato de elas constituírem, funcionalmente, “uni-dades de informação” e, por isso, não permitindo a extração ou movimento de nenhum constituinte paraforadeseuslimites.

Palavras-chave: restrições de ilhas, unidade de informação, funcionalismo.

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Ross (1967), em sua tese de doutorado, formulou restrições sobre regras cuja aplicação dava origem ao deslocamento de constituintes. tais regras postulavam o deslocamento de um nódulo para o início da sentença, que iria para a esquerda do nódulo S, através do processo de adjunção chomskiana, o qual consistia em inserir um elemento sob um nódulo que já existis-se e, também, em criar uma cópia desse nódulo sob o nódulo existente. Depois de Ross (1967), foram feitas várias propostas para explicar esse deslocamento, as quais se baseavam na exis-tência do elemento COMP, que ora seria substituído, ora teria o constituinte deslocado (no caso presente, o sintagma nominal interrogado — SN-q) à sua esquerda; e ora o SN-q se deslocaria para a posição de COMP, à esquerda do complementizador, em estruturas como, por exemplo: Geomeperguntouo que que eu vou comprar.

Saber se o movimento de SN-q se deu em substituição a COMP, ou para a esquerda desse, não é o objetivo deste trabalho. Aqui pretende-se explicar os lugares de ocorrência, ou não, de um SN-q na língua em uso. Assim, fala-se em deslocamento por mera finalidade de exposição do fato, o que não quer dizer que se esteja admitindo deslocamento dentro da estrutura, visto que a abordagem, aqui, é funcionalista e, como tal, toma a língua em sua materialidade, em sua real manifestação.

As restrições formuladas por Ross (1967) sobre as regras de movimento/deslocamento de constituintes impediam, portanto, que determinados elementos fossem extraídos de dentro de cer-tas estruturas, a que ele chamou de “ilhas”. Essas estruturas, por seu próprio caráter de isolamento — daí, “ilhas” — impunham restrições quanto ao deslocamento de elementos para fora delas, como se estivessem ‘encapsulados’. O autor arrolou como “ilhas” as construções de orações relativas, os sujeitos sentenciais, os SNs especificadores da esquerda, as estruturas coordenadas, as interrogativas indiretas e as orações complementos de nomes.

Em Decat (1978), trabalhando com interrogativas diretas no português, tratei das condições que determinavam o movimento do sintagma nominal, quando interrogado. O trabalho foi desenvolvido à luz da fundamentação teórica de base gerativista (mais especificamente, a teoria padrão ) , tendo nos postulados de Chomsky a linha central da argumentação. Os dados utilizados foram de introspecção, submetidos a julgamentos de gramaticalidade, como era o usual na época. Em linhas gerais, a análise centrou-se em estruturas do tipo das abaixo:

(l) a- Cláudia comprou que livro? b- Que livro Cláudia comprou?

(2) a- Olavo disse que Cláudia comprou o quê?b- o que Olavo disse que Cláudia comprou?

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Pela comparação de (1 a-b) e (2 a-b) acima, evidencia-se que a análise tratou do movimento de SN-q tanto em sentenças simples quanto em sentenças complexas. Em dado momento do trabalho afloraram dados como as sentenças exemplificadas abaixo, extraídas de Decat (1978):

(3) a- Ela fugiu quando quem apareceu na porta? b- *Quem ela fugiu quando apareceu na porta?

(4) a- Biba chorou porque sua colega quebrou o quê?b- *o que Biba chorou porque sua colega quebrou?

Algum problema existia com as sentenças acima que não permitia o movimento do SN-q para o início de toda a sentença. Comparando (3) e (4) com (2) acima observa-se que todas constituem casos de sentenças complexas formadas por subordinação (pelo menos como se entendia a subordinação na época). Qual era, então, o problema com (3) e (4)? Por que a regra ali não se aplicava? A hipótese que logo surgiu foi a de que as estruturas com orações subordinadas não permitiam tal movimentação. Entretanto, por que (2b) era gramatical e (3b)-(4b) não eram? A conclusão decorrente dessa primeira hipótese foi a de que as orações subordinadas adverbiais não admitiam, ao contrário das substantivas, a aplicação da regra de movimento. A análise de Ross (1967) não apresentava solução para o fato exemplificado em (3) e (4), uma vez que sua análise não incluía orações adverbiais como construções de ilhas.

A mesma comparação foi feita com períodos compostos por coordenação, como os exemplos abaixo:

(5) a - Rosane comprou um vestido e Fernando pagou com cheque de qual banco? b - *De qual banco Rosane comprou um vestido e Fernando pagou com cheque?

(6) a - Eu estudo latim e você estuda que língua?b - *Que língua eu estudo latim e você estuda?

a situação com as coordenadas parecia a mesma. Entretan-to, uma nova coleta e testagem de dados mostraram que eram gramaticais, em português, as estruturas abaixo:

(5) c- rosane comprou um vestido e de qual banco Fernando pagou com cheque?

(6) c- Eu estudo latim e que língua você estuda?

A diferença entre as sentenças (5 a-b) e (5c), e entre as de (6 a-b) e (6c) parecia apontar para uma conclusão segundo a qual a coordenação permitia algum tipo de movimento, o que não acontecia com a subordinação. Entretanto, quando se tratava de levar o SN-q para o início de toda a estrutura, todas as sentenças

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acima mencionadas tinham igual comportamento, ou seja, não era permitido tal movimento.

Várias foram as tentativas de solução. A teoria, no entan-to, não fornecia meios para uma explicação sobre tão estranho comportamento, mesmo incorporando, em seu arcabouço, as “restrições de ilha”, postuladas por ross (1967). Nesse caso, estar-se-ia diante de configurações estruturais que impediam o movimento do SN interrogado. No entanto, nem mesmo essa análise era suficiente para explicar grande parte das ocorrências. Por exemplo, nem todo tipo de oração subordinada se apresen-tava como sujeita a essas restrições (se se considerar, como na época, que a subordinação constitui um bloco, não admitindo diferentes tipos de subordinação). Assim, uma oração relativa teria o mesmo comportamento de uma adverbial, como apontam os exemplos abaixo:

(7) a- Geovane gostou da palestra que você proferiu onde?b - * onde Geovane gostou da palestra que você proferiu?

Já uma subordinada complemento mostra-se sensível à aplicação da regra de movimento do SN-q, como na estrutura que se segue:

(8) a- águeda disse que Evane vendeu o quê?b- o que águeda disse que Evane vendeu?

o sintagma interrogado o que está numa oração que é argumento do verbo dizer, seu objeto direto. a ocorrência do SN-q no início de toda a estrutura mostrou-se possível.

Continuava, entretanto, a pergunta: por que algumas su-bordinadas permitiam o movimento do SN-q para fora delas, e outras, não? Em outros termos, por que somente algumas subordinadas se comportavam como “ilhas” quanto à aplicação daquela regra de movimento?

ross acrescentou, às restrições de ilhas, três condições co-nhecidas como: Restrição sobre SN Complexo, Restrição sobre Estruturas Coordenadas e Restrição sobre Sujeito Sentencial. Assim, segundo ele, na estrutura abaixo não seria possível o movimento do sintagma interrogado para o início da sentença, uma vez que o elemento interrogado faz parte de um SN Com-plexo (estando dentro de uma oração relativa restritiva — com ‘cabeça’, nesse caso, isto é, com núcleo nominal):

(9) a. Giovanni atropelou a moça que ele conheceu onde?b. *onde Giovanni atropelou a moça que ele conheceu? (Mantendo-se a relação de onde com o verbo conhecer, e não com atropelar)

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Já em (10b), abaixo, o movimento não foi possível por força da Restrição sobre Estruturas Coordenadas, uma vez que o SN-q está dentro de uma delas, no caso, a segunda:

(10) a. Cristina comeu mamão e você comeu o quê?b. * o que Cristina comeu mamão e você comeu?

Finalmente, (11b) e (12b) não seriam, segundo Ross, pas-síveis de ocorrência, tendo em vista a restrição sobre Sujeito Sentencial. tanto em (11a) quanto em (12a) o SN-q está dentro da oração que é sujeito do predicado é obvio (em 11a), e me chateia, em (12a):

(11) a. É obvio que Luciana ama quem?b. *Quem é óbvio que Luciana ama?

(12) a. Me chateia angélica não gostar de quem?b. *De quem me chateia angélica não gostar?

Um questionamento feito por Ross (1967) sobre o movimen-to de SN-q procura mostrar que esse movimento não é ilimitado, em termos de tamanho da estrutura que ele encabeça. aponta ross que é gramatical o movimento de SN-q em estruturas com thatcomplemento de verbo (em português, estruturas oracio-nais substantivas objetivas). o mesmo não acontece quando as estruturas com that são complemento de nome, como no caso exemplificado em (13), a seguir (oração completiva nominal):

(13) a. Sueli mencionou o fato de que o ladrão correu atrás de quem?b. *De quem Sueli mencionou o fato de que o ladrão correu atrás?

Segundo Lobato (1986, p.258), ao se admitir, na língua, variação quanto às configurações de ilha, percebe-se que no português é permitida a extração de dentro de SN complexos. assim, segundo essa autora, (14) é uma estrutura possível no português:

(14) ? Quem você acredita no boato de que beijou andréia?

Entretanto, não creio que esse possa ser um contra-exemplo à restrição de Ross, uma vez que não encontrei, nos dados exa-minados, nenhum caso desse tipo, em que o SN quem é sujeito da oração quem beijou andréia, que é uma oração complemento de nome (no caso, o boato) — tradicionalmente conhecida como completiva nominal.

Voltando às estruturas em que o SN-q ocorria dentro de uma oração adverbial — como (3) e (4) dadas anteriormente — continuava sem uma explicação satisfatória a razão pela qual o SN-q não ocorria no início de toda a sentença.

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os estudos por mim empreendidos, nos últimos anos, na teoria funcionalista me permitiram aventar uma resposta ao pro-blema até então não satisfatoriamente explicado. Uma possível solução se insinuou através da noção de “unidade de informa-ção” — UI —, postulada por Chafe (1980). Segundo esse autor, trata-se de um jato de linguagem que contém toda a informação que pode ser ‘manipulada’ (ou monitorada) pelo falante num único foco de consciousness (ou “estado de consciência”, confor-me KATO 1985, p. 35). O autor dá outras características dessa unidade, que não interessam neste trabalho. Interessa, aqui, principalmente o fato de que essa unidade, sendo um bloco de informação, expressa o que está na “memória de curto termo” (ou “memória rasa”, ou ainda “memória de médio prazo”, con-forme já apontou KATO, 1985). Tal noção foi por mim utilizada (cf. DECAT 1999, 2001, 2005) para explicar, já numa abordagem funcionalista, não só o comportamento de certas orações adver-biais que apareciam desligadas da oração-núcleo (ou matriz) — a que chamei de orações ‘desgarradas’ — como também o comportamento idêntico das orações relativas explicativas (ou relativas apositivas).

A questão parecia, finalmente, estar resolvida: o problema da não-aplicação da regra de movimento de SN-q não era das orações adverbiais, pelo simples fato de serem adverbiais. A ex-plicação passa a ter, na noção de “unidade de informação”, seu ponto básico: o SN-q não podia movimentar-se para o início da sentença quando ele originalmente estava dentro de uma ora-ção que, por si mesma, era uma unidade informacional. Estava, assim, explicado por que nas orações de (2) o movimento era permitido, dando origem a estruturas gramaticais, quando isso não era possível nos demais casos exemplificados: é que o SN-q não poderia ser movido para fora da unidade informacional à qual ele pertencia. Isso viria a resolver também o caso das estruturas com coordenação; nelas, cada oração é uma unidade de informação à parte, e por isso são também chamadas de ora-ções independentes (nos termos da gramática tradicional). Já o SN-q da estrutura (2) teve seu movimento permitido porque a oração que Cláudia comprou o quê faz parte de toda a estrutura constituída pela sentença inteira, pois tal oração está na condi-ção de uma oração encaixada, integrada estruturalmente numa estrutura de nível maior, exercendo uma função — no caso, de objeto direto — como argumento do verbo da oração-núcleo.

Ressalte-se que a explicação acima faz uso de uma argu-mentação de base gerativista, uma vez que se admite a existência de uma estrutura original da qual se ‘desloca’ um elemento. Em termos funcionalistas, no entanto, pode-se argumentar que o SN-q não ocorre em início de um complexo oracional que tem, dentro dele, uma oração adverbial. E mais: por constituir a oração adverbial, assim como a coordenada, uma unidade de infor-

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mação à parte, é evidente que todos os elementos pertencentes ao bloco de informação que tais tipos de orações codificam, ou materializam, estejam dentro desse bloco. Não há, portanto, por que falar em movimento, mas de lugares de ocorrência.

Se se entender que uma configuração sintática vista como “ilha” assim se caracteriza por causa de seu ‘isolamento’, talvez se possa aliar às “restrições de ilhas”, de ross (1967), um trata-mento funcionalista, dando, portanto, a essas restrições assim reformuladas um caráter mais explanatório. Em outras palavras, qualquer que tenha sido a evolução da teoria gerativa no que diz respeito a esses tipos de estruturas que estão sendo analisados aqui, creio que a noção funcionalista de “unidade de informação” (ou “unidade de idéia”, “bloco de informação”) atinge esse poder explanatório, saindo da esfera meramente material e descritiva, atribuída às ilhas, para a esfera conceitual, tomando o estatuto informacional da estrutura como parâmetro para a análise.

retomando ross (1967), postula esse autor que o movi-mento do SN-q é gramatical (em termos gerativistas) dentro dos limites de uma “ilha”, e não além de suas fronteiras. Ora, o tra-tamento funcionalista que aqui estou propondo permite que se reconheçam algumas dessas ilhas como “blocos de informação” à parte, como “unidades de informação”. Dessa forma, explica-se a não-ocorrência de sintagmas interrogados em início de estru-turas complexas que contenham: a) orações coordenadas (como 5, 6 e 10 dadas anteriormente); b) orações adverbiais (como 3 e 4, vistas antes); c) orações relativas restritivas (como 7 e 9); d) um SN-q dentro de uma oração substantiva subjetiva (como 11 e 12 ); e) finalmente, aquelas em que o SN-q faz parte de uma oração complemento de nome (como 13). Dentre essas estruturas, as de tipo a e b comportam-se como “unidades de informação” à parte. Por outro lado, vão permitir a ocorrência de um SN-q no início da estrutura sentencial as orações complemento de verbo (como 2 e 8), porque elas constituem, juntamente com o restante da estrutura, uma única “unidade de informação”, por serem argumento de verbo e estando, portanto, integradas semântica e estruturalmente à estrutura global.

Há, no entanto, algumas restrições de ross que se mantêm, ou seja, às quais a análise com base na noção de “unidade de informação” não se aplica. Por exemplo, as estruturas dadas em (11) e (12), embora sejam, cada uma delas, uma única unidade informacional, têm o sintagma interrogado como constituinte de uma oração que é sujeito de toda a estrutura. Assim, fica mantida a Restrição sobre Sujeito Sentencial para explicar a não-ocorrên-cia desse elemento no início de toda a estrutura. também em (13) não é possível o aparecimento do SN-q na posição inicial da estrutura. Embora se tenha, nesse caso, um único “bloco de informação”, o SN-q é constituinte de uma oração complemento

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de nome, construção essa que constitui uma das restrições de ross ao movimento do sintagma interrogado.

Uma análise alternativa poderia ser atribuída à estrutura encontrada em (13). Tal análise tem seu fundamento nas relações lógico-semânticas postuladas por Halliday (1994) para a articu-lação de orações. Poder-se-ia dizer, então, que em (13) há duas unidades de informação, sendo que a segunda é uma projeção de um nome (fato) que ocorre na primeira unidade. assim, não seria possível a ocorrência do SN-q no início, como mostra (13b), e estaria mantida a restrição sobre complemento de nome. ob-serve-se que uma estrutura cujo conteúdo informacional fosse o mesmo de (13) evidenciaria a existência de duas unidades de informação. Trata-se da estrutura de projeção paratática, como (13c) abaixo

(13) c. Sueli mencionou o fato: o ladrão correu atrás de quem? (diferentemente de 13b, em que a projeção era hipotática, segundo Halliday), em que se projeta uma idéia (no caso, materializada no nome fato). Disso resulta a impossibilidade de ocorrência do sintagma interrogado no início da estrutura.

Da mesma forma acontece com uma estrutura em que há uma relação de projeção de uma locução — portanto, com verbos dicendi —, como em

(15) a. João disse: ele viu o quê?b. * o que João disse: ele viu?

O fato de ser um discurso direto (uma citação de fala) já aponta para a existência de duas unidades de informação, se se entender que o fato de uma oração se projetar sobre a outra significa que ela funciona como uma representação da própria representação lingüística. Dessa projeção surgem o discurso direto (com duas unidades de informação relacionadas parata-ticamente) e o discurso indireto, como apresentado em (13a) e também em (16) abaixo, em que a projeção se faz hipotaticamente, materializando, portanto, uma única unidade de informação, e permitindo a ocorrência do SN-q no início:

(16) a. João disse que viu o quê?b. o que João disse que viu?

Pode-se dizer, então, que na relação de projeção (seja de locução, seja de uma idéia), as construções paratáticas, por carac-terizarem discurso direto, terão sempre duas (ou mais) unidades de informação. Já as projeções hipotáticas vão se constituir numa só unidade informacional, explicando, portanto, a ocorrência do SN-q no início do enunciado, como em

(17) a. Carmen pensou que estava fazendo o que ali?b. o que Carmen pensou que estava fazendo ali?

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No primeiro caso — ou seja, nas projeções paratáticas –, por se constituírem em duas unidades informacionais, as ora-ções mantêm entre si um vínculo mais frouxo, e, por isso, con-sideradas por Bally (1965), dentre outros estudiosos, como um processo de coordenação. Já no caso do discurso indireto (por projeção hipotática de uma locução ou idéia) tem-se o que Bally chama de “soldadura” — que corresponde ao “encaixamento” nos termos de Halliday (1994). Por haver essa “soldadura” é que se pode dizer que há, na estrutura dada em (17), assim como em outras já apresentadas, uma única unidade de informação, razão pela qual é possível a ocorrência do SN-q no início de toda a estrutura. Em outras palavras, o SN-q ocorre dentro dos limites do “bloco de informação” a que ele pertence.

Ainda uma explicação funcionalista que reforça o trata-mento por “unidade de informação” é a proposta de Matthiessen & Thompson (1988) para o estudo da articulação de orações. Partem eles de relações retóricas, distribuídas em dois tipos — as de “núcleo-satélite” e as de “listagem” — para mostrar como se dão as relações das orações entre si ou com porções maiores de texto. A relação núcleo-satélite refletiria, no meu entender, uma relação entre duas unidades de informação, sendo uma ancilar da outra. Isso explica a ocorrência do SN-q no início de uma es-trutura em que uma das unidades de informação é uma oração adverbial, como foi exemplificado em (3) e (4).

O mesmo resultado, em termos dessa noção aqui utilizada, teriam as relações de listagem, em que as orações têm o mesmo estatuto, consistindo, portanto, núcleos distintos e sendo, por isso, chamadas de coordenadas. assim, numa relação de lista-gem, que seria uma relação paratática, o SN-q não ocorreria à frente da primeira unidade de informação — a menos que ele fizesse parte dela, como no exemplo abaixo:

(18) a. Glória fez o que e Décio protestou?b. o que Glória fez e Décio protestou?

Em (18a) o SN-q está dentro da unidade Glória fez o que. Se, ao contrário, o sintagma interrogado estivesse na segunda unidade (Décio protestou), ele não poderia ocorrer à frente da primeira, como comprova (19b) a seguir:

(19) a. Marcelo protestou e Mary fez o quê?b. *o que Marcelo protestou e Mary fez?

Em suma, quando é uma relação retórica que se estabele-ce entre as duas orações, ou seja, relação de núcleo-satélite (no caso das adverbiais, por exemplo, em que a oração adverbial é o satélite), ou de listagem (no caso da coordenação), não se dá a ocorrência do SN-q no início da estrutura complexa porque:

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a) trata-se de relações de organização do discurso em termos das unidades de informação. Em outras palavras, tais unidades vão se relacionar umas com as outras ou atra-vés da relação núcleo-satélite, ou através de listagem. No primeiro caso, tem-se a relação hipotática; no segundo, tem-se a coordenação;

b) nos termos de Bally (1965), pode-se dizer que o movi-mento de SN-q (ou, em bases funcionalistas, a ocorrên-cia do SN-q) se dá dentro de estruturas caracterizadas como de “soldadura”, em que uma oração se integra estruturalmente em outra. E no caso de ele ocorrer em estruturas de coordenação ou de “segmentação” (esse último, o caso das relações adverbiais), o movimento para fora dessas estruturas não se dá. Isso porque elas têm um grau de integração menor em comparação com as estruturas resultantes de “soldadura”, ou seja, estru-turas de “encaixamento”, nos termos de Halliday (1994) e também de Matthiessen & Thompson (1988). Assim, as orações adverbiais são “ilhas” semânticas e estruturais, como também o são as orações coordenadas. Sendo ilhas semânticas, elas se caracterizam como unidades de in-formação à parte.

O papel da unidade de informação como determinante da ocorrência do SN-q no início da sentença complexa também pode evidenciar-se quando levadas em conta, na análise, as relações lógico-semânticas de expansão, dadas por Halliday (1994). Em todos os três tipos — expansão por elaboração (exemplos 20 e 21), por extensão (exemplos 22 e 23) e por realce (exemplos 24 e 25) —, em ambas as relações táticas (parataxe: ocorrências pares; e hipotaxe: ocorrências ímpares), não é possível a ocorrência do SN-q no início da sentença, como mostram os exemplos abaixo, constituídos, todos eles, de duas unidades de informação:

(20) a. Maria não se conteve, comprou o quê?b. *o que Maria não se conteve, comprou?

(21) a. João fugiu, o que espantou a quem?b. *a quem João fugiu, o que espantou?

(22) a. João foi ao shopping e comprou o quê?b. *o que João foi ao shopping e comprou?

(23) a. João entrou na festa, ao passo que Jair foi fazer o quê?b. *o que João entrou na festa, ao passo que Jair foi fazer?

(24) a. João estava com fome, então ele comeu o quê?b. *o que João estava com fome, então ele comeu?

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(25) a. João passou mal porque comeu o quê?b. *o que João passou mal porque comeu?

Em (21) apresenta-se uma estrutura até então não discutida neste trabalho. trata-se de uma construção com uma oração re-lativa apositiva (tradicionalmente, relativa explicativa), sem um núcleo nominal como antecedente, e que constitui por si uma unidade de informação à parte, o que explica a não-ocorrência do SN-q no início da estrutura. a oração relativa apositiva constitui, portanto, assim como vários outros tipos vistos até agora, uma “ilha”, mas não foi incluída por Ross (1967) em seu estudo, assim como não o foram as adverbiais. Da mesma forma que as adver-biais, ela mantém, com a oração que a precede, uma relação de “segmentação”, nos termos de Bally (1965), de caráter mais frouxo que a “soldadura”, que caracteriza as orações encaixadas.

Para finalizar essa discussão, gostaria de retomar um fato que já venho analisando há algum tempo, que diz respeito à possibilidade de ocorrência, no português escrito, de orações ‘destacadas’ da porção textual com a qual mantêm algum vín-culo semântico. Trata-se das orações “desgarradas” (cf. DECAT 1999, 2001, 2005), ocorrendo como enunciados independentes, materializadas tanto por orações adverbiais quanto por orações relativas apositivas. a separabilidade estrutural dessas orações é favorecida por seu estatuto de “ilha”. Assim, ser uma “ilha” — e, por isso, estar “desgarrada” — significa, em termos funcio-nalistas, ser uma “unidade de informação”

Por tudo o que foi apresentado, creio que se pode alcançar maior generalização se se trabalhar a pergunta: Por que uma “ilha” é uma ilha? ou seja, por que determinadas construções estabelecem algum tipo de restrição à ocorrência de elementos em determinados contextos, ou lugares sintáticos? Não bastaria elencar os tipos de construções que se comportam como ilhas (estruturas coordenadas, relativas restritivas, relativas apositi-vas, etc.). A lista poderia se modificar e se estender em demasia, admitindo-se, como apontou Lobato (1986), que as ilhas variam de configuração na língua. É preciso encontrar uma razão de outra ordem para que as construções se comportem como ilhas. Uma solução possível, e que atinge maior poder explanatório — porque vai abranger toda construção que for “ilha” — é dar uma abordagem funcionalista à análise, incorporando a ela a noção de “unidade de informação”. A resposta à pergunta acima estará, como proponho, no fato de que uma ilha é a configuração material de uma “unidade de informação”. assim, basta que uma estrutura constitua, por si só, uma unidade de informação para que ela impeça a ocorrência, fora de seus limites, de qualquer ele-mento que dela faça parte. Em outras palavras, uma construção de ilha é uma ilha, numa língua, porque ela é uma unidade de informação e, como tal, abarca um conjunto conceitual coeso.

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Estarão, assim, explicadas, senão todas, pelo menos algu-mas das restrições dadas por ross (1967), encontrando na aborda-gem funcionalista uma maior abrangência. Dessa forma, podem ser arroladas como materialização de uma mesma noção semân-tica (a “unidade de informação”) as seguintes estruturas:

• estruturas com orações coordenadas;• estruturas com orações adverbiais;• estruturas com orações relativas apositivas;• estruturas com orações complemento de verbo (portanto,

encaixadas).A título de ilustração da real materialização lingüística do

fato aqui estudado, seguem alguns exemplos retirados do corpus do NURC/SP, em especial das entrevistas entre um documenta-dor e um informante (DID), e entre dois informantes (D2), nos quais também estão sublinhados os sintagmas interrogados:

(26) e como é que surgiu que idéia de vocês...fazerem teatro e:: de quem vocês tiveram mais apoio...pra poder realizar essas peças? (DID, Inq.161, p. 40, l.117-9)

(27) conta uma coisa...que tipo de peça assim...quer dizer o estilo da peça...que você acha que é mais aceito pelo público?...quer dizer o::o que o que precisa existir numa peça de teatro para ela:: atingir realmente a massa?... (DID, Inq. 161, p.49, l.488-491)

(28) quando você tem algum problema de vista você recorre a quem? (DID,Inq.251, p.64, l.211-2)

(29) quando você não come em casa onde você costuma comer e o que você costuma comer? (DID, Inq. 235, p.124, l. 170-1)

(30) e quando vocês quiseram...escolher uma carreira...o que as levou escolher a carreira? (D2, Inq.360, p.174, l.1511-2)

(31) cimento armado né?...e outros países já usam o quê? estrutura de ferro quer dizer:: rapidez na construção lógico [...] (D2, Inq.62, p.87, l1134-6)

Em síntese, as questões discutidas pretendem evidenciar o poder explanatório de uma abordagem funcionalista para os fatos da língua. Certamente poderão surgir contra-argumentos às idéias aqui expostas, uma vez que não pretendi esgotar o assunto, mas contribuir para o avanço das discussões.

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Referências

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AbstractThis paper introduces a functionalist approach to structures of the “island constraints” type, thus named by Ross (1967) within a generative perspective. We will show that the restrictions those islands impose on the occurrence of cons-tituents in certain structural positions is due to their functional status of “idea units”, therefore not allowing extraction or movement of any of the constituents across their boundaries.

Keywords: island contraints; idea units, func-tionalism

Maria Beatriz Nascimento Decat

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 14�-166, 2. sem. 2006

Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de

atitude proposicionalSebastião Carlos Leite Gonçalves

Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 16, ago. 2006

ResumoRecorrendo a dois tipos de construção com predi-cados matrizes (parecer e achar/crer), diferentes no estatuto argumental da completiva (sujeito e complemento, respectivamente) e semelhantes na codificação das atitudes subjetivas do falante (evidencial/modal epistêmico), mostro a tendên-cia de essas construções se gramaticalizarem e se dessentencializarem, desvinculando-se de suas orações encaixadas e se recategorizando como satélites atitudinais. Essa alteração sintática afeta a construção complexa, que, de biclausal, passa a monoclausal.

Palavras-chave: oração matriz; gramaticalização; dessentencialização; parentéticos.

Sebastião Carlos Leite Gonçalves

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Introduçãoalguns trabalhos já descreveram usos de construções pa-

rentéticas no português brasileiro (PB), entre as quais se incluem os chamados parênteses modais (JUBRAN, 2002a,b), sem tratá-las, entretanto, como resultantes de um processo de mudança que ocorre nos domínios de uma construção complexa, envolvendo o encaixamento de uma oração completiva em uma matriz, orientação que pretendo explicitar neste artigo.

No âmbito da lingüística funcional, proposição semelhante a que aqui pretendo desenvolver já foi sugerida para a caracteri-zação dos chamados parentéticos epistêmicos (THOMPSON; MU-LAC, 1991; TRAUGOTT, 2000), com pouca, ou quase nenhuma, atenção dispensada aos aspectos diacrônicos da mudança deste tipo de construção.

Recorrendo a dois tipos de predicados matrizes – de um lado parecer e de outro, achar e crer –, diferentes quanto à estru-tura argumental (monovalente e bivalente, respectivamente) e ao estatuto sintático da oração encaixada (posição de sujeito e posição de complemento, respectivamente), mas semelhantes quanto aos valores semânticos e pragmáticos (evidencial/modal epistêmico), em Gonçalves (2003), sob uma perspectiva pan-crônica, investiguei o uso desses predicados, sob a premissa de que a alta freqüência de uma palavra/construção leva a sua gramaticalização. Comprovei, assim, a tendência de predicados de atitude proposicional se gramaticalizarem como satélites atitudinais,1 parentéticos epistêmicos nos termos de thompson & Mulac (1991). De predicado organizador de uma estrutura de predicação, passam a se comportar como constituinte não-ar-gumental. Como se pode notar, foquei, nesse trabalho, mais a gramaticalização dos predicados do que das construções em si que eles integram, tomando por base a concepção mais clássica de gramaticalização, aquela centrada na alteração categorial de itens, que, na mudança, tornam-se gramaticais ou, se já gramati-cal, tem sua gramaticalidade ampliada (HOPPER; TRAUGOTT, 1993). Exemplificam essa trajetória as ocorrências do português histórico, dadas em (1) a (3) abaixo, para as quais propus um cline geral de desenvolvimento categorial, que segue em (4).2

(1) Valores sintático-semânticos de parecera. v. pleno (apresentativo)

... aque-vos um demo vem, que lhe pareceu (=apareceu) em semelhança de um homem (13, DG, p.50)

b. v. suporte de predicação (apreciação)E quanto mais lia, tanto ele me pareciamelhor. (15,CP, p.215)

c. v. encaixador de proposição (epistêmico de probabilidade/evidencial)ora pareceque meu filho serviu maau senhor. (13,DG,p.57)

d. Satélite atitudinal adverbial (epistêmico/evidencial)...vindo tão embebidos de suas danças, tendo parecealguma notícia do que se passava. (16,CJ, p.440)

1 Nos termos da gramá-tica funcional, satélites, em geral, são meios lexi-cais opcionais de susten-tar informação adicional a um dado estado-de-coisas; são opcionais porque, se omitidos, não afetam a boa-for-mação do enunciado em que ocorrem; sustentam informação adicional porque a informação principal está contida na estrutura do enun-ciado à qual o satélite é adicionado. Satélites de atitude (orientado para o conteúdo proposicio-nal, para o evento ou para um participante) especificam a atitude do falante em relação a um conteúdo proposicional ou a apenas parte dele (DIK et al.,1990).2 No parêntese que segue cada ocorrência, encon-tram-se a indicação do período de uso da forma e os dados da obra de refe-rência de onde as ocorrên-cias foram extraídas (cf. TARALLO, 1991). Outras ocorrências do português moderno foram extraídas de Gonçalves (2003).

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(2) Valores sintático-semânticos de achara. v. pleno (encontrar)

Mas u (=onde) vos achou ele? (13,DG,p.68)b. v. encaixador de predicação (apreciação)

Manifestou-se, ca (=pois) diz que s’achou pecador muit’ (13,CE,p.231)c. Construção encaixadora de proposição (epistêmico)

acho[este lugar] não estar na última perfeição (18,GR,p.8)d. Satélite atitudinal adverbial (epistêmico)

Apenas eu e o Couto achamos a não inclusão do pneumatorax “escandalosa”, como você fala. Indispensável, achamos (19-20,Ma, p.340)

(3) Valores sintático-semânticos de crera. v. pleno (crença em alguém)

Seu padre non nos crerá, antes dirá que a matamos (13, DG, p. 75)b. v. pleno encaixador de proposição (crença em algo)

Todo christão crea firmemente que huu soo é uerdadeyro Deus (13,FR,p. 127)

c. Construção encaixadora de proposição (epistêmico)Creo que esto fezerom por que aqueles lugares erom em tal comarca (15,LO,p.26)

d. Satélite atitudinal adverbial (epistêmico)Por mais solenidade que ouvesse, tudo creo terião por pouco (16,CJ,p.448)

(4)

v. pleno >v. encaixador

de predicação>

v. encaixador

de proposição>

construção

encaixadora de proposição

>Satélite

atitudinal

Pelas ocorrências dadas em (1) a (3), pode-se observar que significados baseados em uma situação externa ((1a), (2a) e (3a)) passam a significados baseados numa situação interna – avalia-tiva, perceptual, cognitiva – ((1b), (2b)), que, por sua vez, passam a significados cada vez mais assentados na atitude subjetiva do falante ((1c,d), (2c,d) e (3c,d)).

Cumpre-me agora uma volta aos dados para uma reinter-pretação que considere uma análise que, para os estágios mais gramaticalizados, vá além do predicado em si, levando em conta as mudanças que afetam a relação entre a oração matriz e a completiva, objetivo que pede uma concepção mais ampla de gramaticalização, como, por exemplo, a oferecida por Bybee (2003, p. 602), que transcrevo abaixo: 3

Na literatura recente sobre gramaticalização parece consenso que não é suficiente definir gramaticalização como o processo pelo qual um item lexical torna-se morfema gramatical, mas, ao contrário, é importante dizer que esse processo ocorre em contexto de uma construção particular [...]. De fato, parece mais adequado dizer que é a construção com seus itens lexicais particulares que se torna gramaticalizada do que dizer que é o item lexical que se gramaticaliza. (grifos nossos)

Sob essa concepção mais recente de gramaticalização, busco, neste, artigo, verificar, desta vez, quais parâmetros pro-piciam o “desgarramento”4 da oração matriz e a sua atuação

3 the recente literature on grammaticalization seems to agree that it is not enough to define grammaticalization as the process by which a lexical item becomes a grammatical morpheme, but rather it is important to say that this process occurs in the context of a particular construc-tion […]. In fact, it may be more accurate to say that a construction with particular lexical items in it becomes grammati-cized, instead of saying that a lexical item be-comes grammaticized. (tradução minha).4 Empresto esse termo de Decat (2001).

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como satélite na oração complemento, que passa a funcionar como oração independente. Interessa-me, então, discutir os usos mais gramaticalizados das construções com verbos de atitude proposicional, representadas, no cline de mudança em (4), por verbo encaixador de proposição > construção encaixadora de proposição > satélitesatitudinais.

Feitas essas considerações iniciais, na próxima seção, apresento conceitos operacionais, para nas seções seguintes: (i) discutir e analisar as construções com predicados de atitudes proposicionais, a partir de parâmetros formais e funcionais; (ii) defender a proposta de gramaticalização e dessentencialização dessas construções; e, (iii) mostrar, diacronicamente, os efeitos da freqüência na mudança de uso dessas construções. Reservo a última seção às considerações finais.

os complementos de predicados atitudinais: conceitos operacionais

Por complementação deve-se entender o mecanismo sintático que surge quando uma predicação é estruturada como argu-mento de um predicado. Predicado completável por argumentos complexos é chamado predicado matriz, e a oração que contém esse predicado como núcleo é a oraçãomatriz. alternativamente, a estrutura de complementação de um predicado matriz é tam-bém referida como oração encaixada ou subordinada (NooNaN, 1985; DIK, 1997).5

Estruturalmente, a definição de construções encaixadas se completa por referência às posições argumentais que elas ocupam no complexo oracional, propriedade dependente da estrutura argumental do predicado matriz: nas posições A1, de primeiro argumento (parece [que...]), a2, de segundo argumento (x acha/crê [que...]), ou a3, de terceiro argumento (x convence Y [de que...]).6

relativamente ao seu estatuto semântico, predicados matrizes comportam diferentes tipos de construção encaixada: predicação, proposição e atodefala, como se observa nas ocorrên-cias abaixo. (5) a. E ante que fosse longe daquel lugar vivirdomTristamemposmim (13,

DG, p. 68)b. E elles vendo que não podyam ter a villa, ouveram por ben de a dar pello

melhor preito que podesse, ante que seus inimigos soubessem sua myngua (14, CG, p. 336)

c. E disse Deus a Moysés que partisse todo o esbulho iugualmente antre os que lidarom(15, BM, p.145)

Pode-se observar, em (5), que o mesmo predicado ver as-sume valores diferentes: percepção visual (= enxergar), em (5a), e percepção mental (=perceber/concluir), em (5b). No primeiro caso, o que de fato foi visto é (a ocorrência de) um estado-de-coisas, enquanto, no segundo caso, o que se percebe é um

5 Neste artigo, uso in-tercambiavelmente os termos subordinação, complementação e encai-xamento e seus corre-latos.6 Estou, aqui, assumin-do, junto com Dik (1997) e Noonam (1985), a exis-tência de sujeitos oracio-nais em posição a1. Para uma discussão que colo-ca em xeque a existência de sujeitos oracionais em português, remeto o leitor a Kato & Mioto (2000) e a Mira Mateus et al. (1989).

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“fato possível”. As coisas as quais se pode dizer que as pessoas percebem/concluem/acreditam não são estado-de-coisas; são antes “conteúdos proposicionais”, entidade que, submetida a uma avaliação em termos de sua verdade, pode ser motivo de surpresa ou dúvida, de menção ou negação, de rejeição e de lembranças, de verdade ou falsidade. Assim, diferentemente de estado-de-coisas, que, localizados no espaço e no tempo, podem ser avaliados em termos de sua realidade, conteúdos proposicionais, também localizáveis no espaço e no tempo, podem ser avaliados somente em termos de sua verdade, casos em que se enquadram os complementos encaixados nos tipos de predicados enfocados neste trabalho.Atosdefala, como o mostrado em (5c), e incluindo outros tipos de verbos dicendi, são entidades que, também locali-zadas no espaço e no tempo, podem ser avaliadas não em termos de realidade ou de verdade, mas em termos de suas condições de felicidade (DIK, 1997).7

Passando agora a tratar mais especificamente dos predica-dos de atitude proposicional, esses são predicados que tomam por escopo uma proposição para, sobre a verdade que ela veicula, incidir a atitude de crença do falante. Como predicados não-factivos, por recurso a predicado atitudinal, o falante não se compromete nem com a verdade nem com a falsidade da proposição encaixa-da; o estado-de-coisas codificado na proposição é sempre pas-sível de verificação, embora a proposição seja, em muitas vezes, apresentada “por aquele que nela acredita como verdadeira” (DIK, 1997, p. 109). Nesse sentido, como afirma Noonan (1985), a atitude proposicional é considerada sempre positiva.8

Essas marcas subjetivas do falante constituem o que Ben-veniste (1991) caracterizou como a subjetividade da linguagem. Subjetivização, entretanto, refere-se ao processo por meio do qual os usuários da língua, no curso do tempo, desenvolvem signi-ficados novos para formas já existentes, que passam a codificar perspectivas e atitudes, que são baseadas nas características do evento comunicativo, e não nas características de uma situação referente ao “mundo real”. É, assim, um mecanismo bastante permissivo para a mudança semântica, que se implementa por metaforização ou metonimização. O termo subjetividade, nessa abordagem, refere-se, então, aos mecanismos que as línguas naturais colocam à disposição do agente locucionário para a expressão de si mesmo e de suas atitudes e crenças (TRAUGOTT; DASHER, 2001). Na identificação desse processo, assumem espe-cial relevância os meios lingüísticos que permitem a expressão da modalidade epistêmica (ME, daqui em diante) e da eviden-cialidade (EV, daqui em diante), categorias que, em relação a um conteúdo proposicional, revelam, respectivamente, o grau de comprometimento do falante e algo sobre a fonte do saber em que tal conteúdo se sustenta (WILLET, 1988).

7 Para um excelente quadro tipológico de predicados que tomam complemento oracional, remeto o leitor a Noo-man (1985).8 Predicados do tipo de duvidar, negar, recear etc expressam uma atitude proposicional negativa (NOONAN, 1985).

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além de ME, construções com predicados do tipo de pa-recer, achar e crer permitem também a expressão de EV, ambos os valores constitutivos da diluição da responsabilidade pelo “dito”. Crer e achar, mais claramente, apontam o falante como fonte de uma evidência, enquanto parecer aponta-o apenas como fonte de uma inferência, cuja base da evidencia (visual, relatada, raciocínio) não é revelada.

Como formas de expressão de atitudes subjetivas do falante, orações matrizes com predicados atitudinais podem apresentar marcas do experienciador, seja por meio do sujeito gramatical, nos casos de completivas em posição a2 (6b,c), seja por meio do clítico dativo, no caso de completivas em posição A1 (6a), marcação esta já bastante rara no PB contemporâneo. Assim a opção que o falante tem de deixar ou não marcas de sua atitude subjetiva, implica uma escolha estrutural para o encaixamento da oração completiva: na posição de A1 (6a) ou na posição de a2 (6b), respectivamente. (6) a. E por esto, Senhor, a mym parece que dos livros que vi de philosaphia,

este avantejadamente enssyna a cobrar o que os outros fazem amar e desejar. [...] E deste velume os primeiros dous livros, segundo meu juizo, me parecem que tem avantagem do terceiro, e aquelles achei mais claros. O Terceiro achey muito scuro, por que reconta estoria e exemplos, e parece que screvia a quem as sabia. (15,LO, p. 4)

b. Então por isso que eu acho que, mesmo que se eu não tivesse feito pré-vestibular, eu acho que eu passaria no vestibular (20, NURC/RJ-DID-001)

c. De Platom eu creyo que, se quisera trauctar daquesta maneira de desputaçom, que mui sobedormente e mui avondosamente podera falar ... (15, LO, p. 9)

Sob a crença funcionalista de que o uso da língua motiva, restringe, explica ou mesmo determina a estrutura gramatical, Thompson (2002) e Bybee (2002) defendem que a subordinação deve ser tratada não como uma noção estritamente sintática, mas como uma noção mais pragmática, e é justamente a riqueza pragmática de orações matrizes que faz delas um domínio pro-pício para o desencadeamento de processos de gramaticalização, quando comparadas às orações encaixadas, que constituem um domínio mais resistente à mudança (cf. BYBEE, 2002, p. 18). Sob tal assunção, passo, na seção seguinte, a explicitar parâmetros formais e funcionais, para advogar em favor de uma fraca ligação sintática envolvendo as construções encaixadas em predicados atitudinais, relação que propicia inovações no complexo oracio-nal envolvente.

Parâmetros formais e funcionais de construções com predicados atitudinais

Um primeiro parâmetro a se investigar nas relações entre matriz e encaixada diz respeito à dependência de referência tem-

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poral. Em qualquer oração complexa envolvendo construções com predicados atitudinais, a oração encaixada tem referência temporal independente do tempo da matriz (NOONAN, 1985), como se observa em (7). (7) a. E por esto, Senhor, a mym parece que dos livros que vi de philosaphia,

este avantejadamente enssyna a cobrar o que os outros fazem amar e desejar. [...] O Terceiro [livro] achey muito scuro, por que reconta estoria e exemplos, e parece que screvia a quem as sabia. (15,LO, p. 4)

b. Mas, porque creio (que) se irá amenhã, abreviarey como puder e acabarey com lhe dar novas das muytas impresas que se aparelhão pêra os que lá vierem. (16,CJ, p. 449)

O tempo codificado na encaixada, embora definível em relação ao tempo da “crença” codificado na matriz, pode ser coin-cidente com ele (parece-ensina, em (7a)), anterior (parece-escrevia, ainda em (7a)) ou posterior (creio-irá, em (7b)) a ele.

No que se refere aos valores semântico-pragmáticos, em seus usos já gramaticalizados, mas ainda não-parentéticos, os predi-cados em análise expressam atitudes proposicionais positivas em relação à proposição encaixada em seu complemento. Por como-didade, repito em (8), ocorrências ilustrativas desses casos. (8) a Ora parece que meu filho serviu maau senhor. (13, DG, p.57)

b. Acho [este lugar] não estar na última perfeição (18, GR, p.8)c. Creo que esto fezerom por que aqueles lugares erom em tal comarca

(15, LO, p.26)

Em (8), é mais provável que a oração matriz expresse primeiramente uma asserção sobre a crença do falante do que sobre o conteúdo proposicional. É possível, entretanto, usar a construção em que ocorre o predicado matriz parenteticamen-te, como satélites, de tal modo que a asserção invista-se sobre o complemento proposicional, especialmente nesses casos de primeira pessoa do singular e de tempo presente. Funcionando como satélite, a construção parentética é mais livre que o usual: o “predicado e seu sujeito”, quando é o caso, podem ser colocados em posição inicial, medial ou final da sentença. (9) a. E os seus, que como digo, vinhão tão embebidos em suas danças, [tendo

parece alguma notícia do que se passava], supitamente se callarão. (16, CJ, p. 440)

b. E sempre os mesmo Indios o esperão no tal tempo e tem-lhe tanto respeito que, por mais solenidade que ouvesse nos seus bautismos, [tudocreo terião por pouco, costuma] (16, CJ, p. 448)

c. Apenas eu e o Couto achamos a não inclusão do Pneumatorax “escandalosa”, como você fala. (...) [Indispensável, achamos.] (19, Ma, p. 340)

Em uma interpretação das ocorrências acima, é bem mais provável que a asserção principal constitua uma afirmação sobre o conteúdo da oração em que a construção parentética ocorre do que sobre o estado de crença do falante. A função do satélite

Sebastião Carlos Leite Gonçalves

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nessas sentenças é “modificar ou enfraquecer a afirmação da verdade que seria implicada por uma simples asserção” (Noo-NAN, 1985, p. 86).

Não parece demais chamar a atenção para o fato de que esse funcionamento só se instancia na verificação do parâme-tro presença de subordinador. O complementizador que, marca de subordinação, não é usado quando a construção ocorre paren-teticamente, características dos parentéticos de um modo geral. Entretanto, no processo de gramaticalização, essa dispensabi-lidade do complementizador é gradual, como se observa com parecer em (10) abaixo, possível de ser parafraseado por achar e crer, mudança que segue acompanhada de uma maior liberdade de posição sintática da construção em que ocorre o predicado atitudinal.(10) a. nós nos casamos no civil... parece (acho/creio) que de manhã (20,

NURC/RJ-DID-71)b. [o pedágio] passou para parece (acho/creio) que setenta cruzeiro (20,

PEUL/CEN-E32)

restritas à posição medial, construções parentéticas como (10), que rompem a estrutura de constituência da oração sim-ples, caracterizam-se pela presença do “complementizador” que ainda atrelado ao “predicado atitudinal”, não escopando mais um complemento oracional, como em (8), mas apenas um cons-tituinte da oração principal: em (10a), um adjunto temporal, e, em (10b), um objeto de preposição. Observe que a incerteza do falante, em (10a) diz respeito apenas ao horário do casamento, e em (10b), ao novo valor do pedágio, e não sobre os estados-de-coisas em si, codificados na proposição. Esses casos constituem argumento para afirmar uma das propriedades da gramaticali-zação: a união/compactação, ou, nos termos de Traugott (2002), ocongelamento interno da oração principal, que, nesse uso, não é mais analisada como [oração principal] + [complementizador], mas um só constituinte, originado na reanálise de um uso anterior, em que, claramente, o complementizador introduz um complemento oracional finito, como mostro em (11).(11) a. Muitas mães parecem que fazem das filhas o que elas queriam pra

elas. (20, PEUL/TEN-27)

Uma possível correlação para os usos mostrados em (10), parentéticos ainda com “complementizador”, pode ser buscada nos casos de topicalização do sujeito da encaixada, colocado em posição anteposta ao verbo da matriz (11a). Nesse uso, a seqü-ência [oração matriz] + [complementizador] parece romper a estrutura canônica da oração [muitas mães fazem das filhas...], o que pode levar o ouvinte a uma reinterpretação induzida pelo con-texto e a proceder da mesma forma em qualquer parte da oração. Feita essa reanálise, o complementizador, não mais funcional,

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é apagado, e mais claramente a construção passa a assumir as propriedades de satélites atitudinais, tornando-se constituinte não-argumental e de posicionamento livre no interior da cons-trução. Há de se observar que, semanticamente, a presença do “complementizador” marca com clareza o constituinte que ele escopa, o que nem sempre é claro quando é apagado, e a cons-trução parentética ocorre em posições iniciais ou mediais.

Na verdade, usos como os mostrados em (10) podem repre-sentar que a posição assumida pela “oração matriz” no interior da “oração complemento” faz diminuir (e não eliminar) o grau de incerteza que recairia sobre toda a proposição (“parece [que nós nos casamos no civil de manhã]”, “parece [que o pedágio passou para setenta cruzeiro”]). Sob tal hipótese, o elemento escopado deve ser interpretado como sendo ele o portador de menor grau de comprometimento com a verdade do seu conteúdo, havendo, assim, um desequilíbrio entre o comprometimento do falante com a verdade de toda a proposição e com a verdade de apenasparte dela.

Sobre o parâmetro marca de subordinação, sua ausência tem como efeito sintático tornar a oração complemento uma oração independente.

Para construções parentéticas, um outro parâmetro re-levante para a dessentencialização do complexo oracional é a atuaçãodeoperadoresdenegação.Somente predicados afirmativos ocorrem em construções parentéticas, de modo que, com “pre-dicado” negado, a sentença torna-se inaceitável, porque se nega o que acabou se afirmar. A ocorrência em (12a) e sua paráfrase (12a’) são exemplos dessa restrição.(12) a. naquele tempo não se tomava uísque tomava-se chope então tinha um

barrilzinho de cho:pe uns... uns sanduíches... naquele tempo devia ser presunto e queijo ... parece ... eu não me lembro bem ((risos)) mas devia ser assim. (NURC/RJ-DID-71)

a’. */? naquele tempo devia ser presunto e queijo ... não parece ...

Mesmo nos casos de construções não parentéticas com pre-dicados atitudinais, a negação tem escopo restrito ao conteúdo da oração encaixada, nunca incidindo sobre a crença veiculada na oração matriz, ainda que ela contenha algum operador de negação. Observe (8b’), que é uma boa paráfrase de (8b), cujo conteúdo proposicional ocorre negado. (8) b. Acho [este lugar] não estar na última perfeição (18, GR, p.8)

= acho que este lugar não está na última perfeiçãob’. não acho [este lugar] estar na última perfeição.

= não acho que este lugar esteja na última perfeição

Além dos parâmetros acima explicitados, também parâ-metros morfossintáticos (tempo/modo e pessoa/número) envol-

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vidos no entrelace da oração matriz à completiva apresentam relevância para a discussão da dessentencialização do complexo oracional envolvendo tais predicados. Em Gonçalves (2003), valendo-me de dados quantitativos, mostrei que, nos estágios mais gramaticalizados, construções com os predicados parecer,achar e crer apresentam uma invariabilidade em relação aos pa-râmetros morfológicos de pessoa e de tempo: enquanto parecer se fixa na 3ª. pessoa, sem marcas formais de subjetividade, achar e crer fixam-se na 1ª. pessoa, todos no presente do indicativo, o que favorece a interpretação de uma maior gramaticalidade de parecer, como marcador gramatical de modalidade epistêmica/evidencialidade. Essa invariabilidade morfológica será mais bem discutida adiante.

Até aqui, tive por objetivo explicitar a integração sintática fraca entre a oração matriz com predicado atitudinal e a ora-ção encaixada, ou ainda a fraca dependência entre elas, como também atesta Bybee (2002, p. 3) para complementos de outros predicados epistêmicos e evidenciais. Para tanto, recorri aos seguintes critérios: (i) referência temporal independente; (ii) escopo da negação restrito ao conteúdo da oração encaixada; (iii) perda de complementizador e de posição sintática fixa, com conseqüente redução valencial; e, (iv) restrições flexionais (tempo, modo, pessoa e número do predicado matriz). Esses critérios, ao mesmo tempo em que revelam uma integração fraca entre matriz e encaixada (BYBEE, 2002), podem também ser vistos como causas/motivações que levam ao “desgarramento” e à conseqüente gramaticalização da construção matriz. Mesmo nos estágios anteriores ao “desgarramento”, orações matrizes com predicados atitudinais mantêm com sua encaixada uma fraca integração sintática, reflexo de suas propriedades semântico-pragmáticas.9

Gramaticalização e dessentencialização de construçõesConfirma o resultado da aplicação dos parâmetros fun-

cionais e formais apresentados acima, a sua interpretação à luz da proposta de Lehmann (1988) sobre grau de integração de orações.

Enfatizando o contínuo existente entre coordenação e subordi-nação, Lehmann propõe seis parâmetros aferidores do grau de in-tegração de oração, correlacionados, porém independentes, quais sejam: (i) rebaixamento da oração subordinada a constituinte da principal; (ii) nível sintático de integração da subordinada à principal; (iii) dessentencialização da subordinada, que passa a constituinte simples da principal (seu verbo torna-se não finito; seu sujeito é perdido ou torna-se oblíquo); (iv) gramaticalização do verbo matriz; (v) entrelaçamento das duas orações (partilha de elementos); e, (vi) grau de explicitude da integração (presença de conectores).

9 Dik (1997) já ob-servara que orações matrizes que ser-vem para abrandar a força asseverativa do conteúdo da en-caixada funcionam apenas como uma ‘nota-de-rodapé’ modal e não uma declaração em si.

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Para a discussão dos casos de construções com predicados atitudinais, desses seis parâmetros de Lehmann, destaco (iii) e (iv), que dizem respeito ao modo de redução de uma oração complexa. Tanto na dessentencialização da oração complemento quanto na gramaticalização da construção matriz, observa-se uma modificação na estrutura complexa, que de biclausal passa a monoclausal (cf. THOMPSON, 2002).

relativamente ao parâmetro dessentencialização, uma oração complemento pode se reduzir ao seu centro (o predicado da en-caixada), tornando-se uma nominalização ou um constituinte de natureza adverbial, ambos atuantes na oração matriz. Dentre os componentes que restritivamente atuam na dessentencializa-ção de orações encaixadas, Lehmann (1988, p. 193) inclui: força ilocucionária, tempo, modo e aspecto, actantes e circunstantes de funções sintáticas variadas. Sobre o parâmetro gramaticali-zação do predicado matriz, o previsto é que, dependendo do grau de gramaticalização do predicado, a sentença toda deixe de ser sintaticamente complexa, podendo o predicado chegar a afixo gramatical operante no que restou da oração complexa. Lehmann (1988, p. 204) oferece o seguinte contínuo de gramaticalização de predicados matrizes:(13) Predicado independente operador

gramatical auxiliar verbo lexical

verbo evidencial

verbo modal

afixo gramatical / derivacional

Esse contínuo não parece suficiente para explicar a mu-dança das orações matrizes discutidas neste artigo. Entretanto, é possível apreender dele ao menos os valores lexical > eviden-cial > modal dos predicados das construções atitudinais em seus estágios mais gramaticalizados. Sob tal consideração, como parece óbvio, a mudança não leva as construções até o ponto terminal do cline em (13), razão atribuída primeiramente ao fato de a proposta de Lehmann tratar de gramaticalização de predicados e não de construções. além disso, a não necessidade de um percurso completo de gramaticalização já foi bastante enfatizada na literatura sobre o assunto (cf. HOPPER; TRAUGOTT, 1993, entre outros).

Na verdade, para as construções com predicados atitudi-nais, o mais prudente, segundo os dois parâmetros de Lehmann aqui considerados, parece ser mesmo tratá-las tanto como casos de dessentencialização do complexo oracional matriz + encaixada quanto de gramaticalização da oração matriz, uma vez que: (i) no que respeita à força ilocucionária, a construção gramatica-lizada, parentética, mantém ilocução independente do restante da oração na qual ela passa a atuar como simples modificador de caráter pragmático, semelhante aos satélites atitudinais de

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natureza adverbial; (ii) quanto ao tempo, modo e aspecto, os pre-dicados tornam-se invariáveis, fixando-se na forma de presente, deixando livre a referência temporal da oração em que ocorre; (iii) quanto aos actantes, achar e crer se restringem a sujeitos de 1ª. pessoa e parecer neutraliza totalmente a expressão de pessoa, assumindo a forma não-marcada de 3ª. pessoa.

Lehmann (1988) não faz referência à possibilidade de ora-ções matrizes se tornarem satélites, recategorização que, em sua proposta, fica restrita ao âmbito da oração complemento. Surpre-endentemente, os casos aqui analisados são mais congruentes com os critérios postos para a dessentencialização da encaixada do que com a gramaticalização do predicado matriz. Essa direção inversa não implica a anulação dos critérios investigados, antes abre a possibilidade de interpretar que, ao mesmo tempo em que se recategorizam como satélites (gramaticalização, portanto), as orações matrizes se dessentencializam e modificam o estatuto sintático da oração complemento.

adicionalmente aos critérios aqui discutidos, importante na gramaticalização de construções, sobretudo as identificadas com processos de subjetivização, é a apuração da freqüência das formas que a facultam, assunto que passo a tratar na seção seguinte.

Os efeitos da freqüência de uso: um percurso diacrônicoDois métodos de apurar a freqüência são relevantes nos

estudos lingüísticos: um que conduz à freqüência token e ou-tro à freqüência type. Token ou freqüência textual é o número de ocorrências de uma unidade, geralmente uma palavra ou morfema, independentemente do significado que ela veicula. A freqüência type refere-se à freqüência de um padrão particular de dicionário (BYBEE, 2003).

Tem sido tendência associar o crescimento de freqüên-cia type – aqui entendida como deslizamentos funcionais ou diversidade de funções verificadas na gramaticalização – ao aumento de freqüência token. Entretanto, adverte Bybee, a alta freqüência não resulta em gramaticalização, mas apenas indicia sua identificação.

Discutindo as conseqüências da ritualização, Bybee argu-menta que a repetição freqüente de uma construção desempenha importante papel nas seguintes mudanças associadas à gramati-calização: (i) enfraquecimento de forças semânticas pelo hábito, que faz que um organismo deixe de responder, com mesma eficácia, a estímulos repetidos; (ii) mudanças fonológicas de redução e de fusão de formas; (iii) maior autonomia da forma, que propicia a neutra-lização de componentes individuais (flexão, estrutura argumental etc) presentes em usos menos gramaticalizados; (iv) extensão de uso da forma a novos contextos com novas associações pragmáticas; (v) preservação de marcas morfológicas originais.

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Para explicitar o papel da freqüência na gramaticalização e dessentencialização das construções com parecer, achar e crer, considero suas freqüência de uso, ao longo dos séculos XIII a XX, também um dos parâmetros responsáveis pela constituição de construções com significados cada vez mais assentados em ati-tudes subjetivas. Na determinação da freqüência type, valho-me dos parâmetros funcionais e formais discutidos anteriormente. As alterações qualitativas já apontadas para os diferentes tipos de construções com parecer, achar e crer (v. (1) a (3) acima) são mais bem esclarecidas pela suas freqüências token e type (em números absolutos) mostradas na tabela 1.

Períodos (século) Tipos sintático/semânticos XIII XIV XV XVI XVII XVIII XIX XX total

PAR

ECER

(ty

pes)

Construção com v. pleno (apresentativo) 5 1 4 2 4 2 0 0 18

Construção com v. encaixador de proposição (ME/EV)

1 3 17 32 15 29 14 19 130

Construção com v. pleno comparativo (de aspectos físicos)

0 0 1 9 3 3 5 4 25

Construção com v. suporte de predicação (apreciação)

0 0 9 16 13 46 15 18 117

Construção com v. modal (ME/EV) 0 0 3 1 6 3 3 0 16

Construção como satélite atitudinal (ME/EV) 0 0 0 2 2 3 0 3 10

TOTAL (tokens) 6 4 34 62 43 86 37 44 316

AC

HA

R (ty

pes)

Construção com v. pleno (encontrar) 27 26 23 42 40 83 20 9 270

Construção com v. encaixador de proposição (percepção/EV)

4 0 3 4 2 1 0 0 14

Construção com v. encaixador de predicação (apreciação)

1 0 3 3 3 7 9 23 49

Auxiliar perifrástico (decidir, resolver) 0 1 0 0 0 0 0 0 1

Construção encaixadora de proposição (ME) 0 0 0 0 0 2 1 16 19

Construção como satélite atitudinal (ME) 0 0 0 0 0 0 0 1 1

TOTAL(tokens) 32 27 29 49 45 93 30 49 354

CR

ER

(type

s)

Construção com v. pleno (crer em alguém) 1 5 0 0 0 0 3 0 9

Construção com v. pleno encaixador de proposição (crer em algo)

3 7 0 0 0 0 5 0 15

Construção encaixadora de proposição (ME) 0 0 3 10 2 11 18 16 60

Construção como satélite atitudinal (ME) 0 0 0 2 0 1 5 4 12

TOTAL (tokens) 4 12 3 12 2 12 31 20 96

Tabela 1: Freqüência token e type na evolução

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diacrônica de construções com parecer, achar e crer

Do período de emergência à perpetuação na língua, é pos-sível propor que os diferentes usos de cada uma das construções se desenvolvem das respectivas construções em que figura um verbo pleno, tipos mais freqüentes nos períodos mais iniciais. as construções mais recorrentes com parecer e achar apresentam um aumento crescente de freqüência token até o século XVIII, momento em que mais freqüentemente passam a compartilhar suas funções com crer. Dos tipos de construções investigadas, a com achar é a mais resistente à mudança, quando se verifica sua persistência em construções com o verbo pleno original, em todos os séculos. Entretanto, as três se aproximam no quadro evolutivo, à medida que, muito cedo, permitem encaixamento de conteúdos proposicionais, assinalando, ainda de modo não muito explícito, as atitudes subjetivas do usuário.

Como construções que, epistemicamente, promovem o descomprometimento do falante em relação ao conteúdo pro-posicional nelas encaixado, a construção com parecer é pioneira (séc. XIII), seguida das construções com crer (séc. XV), função que construções com achar experimentarão somente no séc. XVIII. A completa alteração funcional, de construções com predicador a satélites parentéticos, emerge no mesmo período para as cons-truções com parecer e crer (séc. XVI), e só mais tardiamente, no séc. XX, para as construções com achar. Importa enfatizar que, na coexistência de diferentes types, é reconhecido um estatuto mais gramaticalizado da oração matriz (satélites atitudinais), ou mais dessentencializado, do complexo oracional como um todo, em relação às construções originais com verbos plenos.

a perspectiva histórica, segundo traugott & Dasher (2001), é sempre o melhor recurso para se reconhecer nas línguas a emergên-cia de significados que tendem a se ampliar para codificar o estado de crença subjetiva do usuário. Assim é que os resultados abaixo mostram a forte correlação entre a mudança categorial das cons-truções em análise e suas mudanças morfossintáticas referentes à expressão de pessoa e de tempo (primeira (1P), segunda (2P) e terceira (3P) pessoas e tempos presente, futuro e pretérito).

Figura 1 – Evolução da expressão de forma

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dativa de ‘parecer’ (século XIII a XX)

Figura 2 – Evolução da expressão de pessoa do SN-sujeito de ‘achar’ (século XIII a XX)

Figura 3 – Evolução da expressão de pessoa do SN-sujeito de ‘crer’ (século XIII a XX)

Nas figuras 1 a 3, observa-se, como tendência geral, o crescimento das marcas de 1P, oscilante nas construções com parecer, até o séc. XVII, mas contínuo para as construções com achar e crer, a partir do séc. XIV, comportamento que leva ao conseqüente decréscimo do uso da

3P. Não ultrapassando os 20%, os picos para 2P (séc. XVI e XIX) explicam-se pelo gênero epistolar dos textos investiga-dos.

É do século XVII para o XVIII que a 1P começa a se fixar nas construções com parecer e achar, mais para aquela do que para esta, constatação que identifica estratégias de subjetiviza-ção primeiramente mais para as construções com parecer e crer do que com achar. Com crer, são até mesmo mais anteriores (séc. XIV), justificadas pelo valor de crença inerente ao verbo.

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observe-se que a ausência de marca de dativo nas cons-truções com parecer é a mais forte concorrente da 1P, em todos os séculos. No séc. XX, entretanto, a marca de pessoa tende a se neutralizar, prevalecendo a sua ausência, constatação impor-tante para afirmar o caráter mais gramatical das construções com parecer sobre as demais construções, que ainda expressam marca de pessoa.

Sob esse mesmo prisma, as figuras 4 a 6 revelam o com-portamento da expressão de tempo.

Figura 4 – Expressão de tempo morfológico de ‘parecer’ (século XIII a XX)

Figura 5 – Expressão de tempo morfológico de ‘achar’ (século XIII a XX)

Gramaticalização e dessentencialização de construções com predicados de atitude proposicional

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Figura 6 – Expressão de tempo morfológico de ‘crer’ (século XIII a XX)

Considerações finaisNuma reinterpretação de dados sobre a gramaticalização

de dois tipos de construções com predicados de atitude propo-sicional de natureza sintática diferente (GONÇALVES, 2003), reafirmando suas trajetórias de mudança, mostrei nesse artigo uma análise que considera conjuntamente tanto propriedades da construção matriz quanto da construção encaixada. Procurei, neste passo, oferecer evidências para as causas/motivações que levam à mudança das construções matrizes no seu funciona-mento como satélite atitudinal da oração independente em que passa a atuar.

A existência de uma integração fraca entre os dois tipos oração matriz e suas respectivas orações encaixadas é comprova-da por recurso aos seguintes parâmetros: (i) referência temporal independente; (ii) restrição do escopo de negação ao conteúdo da oração encaixada; (iii) restrições de tempo, modo, pessoa e número da oração matriz; (iii) perda de complementizador; e, (iv) perda de propriedades de seleção de constituintes (redução valencial). Confirmando esses critérios, recorri a dois parâmetros que aferem a integração de orações: (i) a dessentencialização da oração encaixada; e (ii) a gramaticalização do predicado matriz, tendo constatado que os critérios propostos para a análise da redução da oração encaixada aplicam-se com mais consistência à gramaticalização da oração matriz formada pelos predicados atitudinais. Essa constatação me conduziu à conclusão de que, mesmo nesse caso, os critérios que se aplicam à oração encaixada são válidos também para a oração matriz, uma vez que tanto um conjunto de critério quanto o outro levam ao mesmo resultado: a redução de oração. Sob tal interpretação, advogo ainda que, ao mesmo tempo em que as construções com predicados atitudinais se recategorizam como satélites atitudinais (gramaticalização, portanto), elas também se dessentencializam, incorporando-se

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como constituinte não-argumental da oração que modificam, a qual de complemento, passa a independente. Fica, no entanto, em aberto a questão da relação de causa-efeito entre dessenten-cialização e gramaticalização.

Como entendimento mais geral para o modo funcionalista de conceber a linguagem, resultados convergentes para constru-ções com predicados matrizes que, sintaticamente, funcionam de modo diferente legitimam a premissa da prevalência da pragmática sobre a semântica e da semântica sobre a sintaxe.

abstract

Two types of constructions with matrix predi-cate were selected ( parecerandachar/crer) to show their tendency to grammaticalization and desentencialization, as they, detaching from their embedded clause, decategorize themselves like attitudinal satellites. These constructions differ from each other in relation to argument status of embedded clause (subject and complement) and they resemble each other, as they codify the speaker’s subjective attitudes (evidentiality/epis-temic modality). This syntactic shifting affects complex construction, turning it from biclausal into monoclausal.

Keywords: matrix clause; grammaticalization; desentencialization; parenthetical.

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 16�-1��, 2. sem. 2006

a gradação tipológica das construções de voz

Roberto Gomes Camacho

Recebido 10, mai. 2006/Aprovado 8, ago. 2006

ResumoA caracterização tipológica da passiva envolve, segundo Givón, (1981), três domínios funcionais: atribuição de um tópico, impessoalização e detran-sitivização. O principal interesse deste trabalho é fornecer uma caracterização escalar e não discreta para as diferentes construções de voz disponíveis na gramática do português com base nesses três domínios funcionais.

Palavras-chave: voz passiva, voz impessoal, voz média, topicidade.

Roberto Gomes Camacho

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0. Introduçãoa noção de que a gramática tradicional tem boas intuições

sobre os fatos lingüísticos, mas pouca precisão descritiva foi um dos motivos que acionou o interesse pela construção de uma gramática de referência do português, já em 1988, quando um grande grupo de lingüistas de diferentes universidades brasilei-ras reuniu-se em torno de um projeto comum de âmbito nacio-nal, o ‘Projeto de Gramática do Português Falado’. Esse projeto constitui a principal conseqüência de um anseio inaugurado no Brasil, principalmente na década de 80, pela revisão do conceito tradicional de gramática, traduzido em obras como Cunha e Cintra (1985), Perini (1995), Bechara (1999) e, em Portugal, com Mira Mateus e outros (1983); seus reflexos mais recentes se fazem sentir nos trabalhos de Neves (2000) e Vilela & Koch (2001).

Um dos objetivos de uma gramática de referência não é o de fornecer tão somente uma descrição do uso efetivo, mas um conjunto de proposições que sirva de orientação sobre os recursos disponíveis ao falante comum, num tipo de atividade mais próxima da elaboração normativa, nunca da prescritiva: “a distinção entre o ponto de vista prescritivo e o ponto de vista normativo se estabelece, essencialmente, sobre uma definição de norma, fundamentada nas freqüências observáveis dos fatos funcionais” (FRANÇOIS, 1979, p. 93)

assim, o percurso que medeia a descrição dos dados e a construção de uma gramática com base em ‘freqüências obser-váveis’ tem como origem uma reflexão sobre a “autoridade dos fatos”, própria de uma descrição científica, e como alvo uma refle-xão sobre o “fato de autoridade” (FRANÇOIS, 1979, p. 93), própria de uma gramática. Na construção de uma gramática normativa desse tipo as perguntas que se impõem são, em primeiro lugar, como a descrição e a explicação teoricamente fundamentada que se faz no âmbito acadêmico pode transformar-se num discurso sobre as regras efetivamente em uso? E, em segundo lugar, em que grau aspectos relevantes da descrição do fenômeno abordado está próximo ou distante do modo tradicional de descrição das gramáticas puramente prescritivas em uso no ensino escolar?

Responder a essas questões, mesmo de forma indireta, é uma das preocupações que norteiam este trabalho, que procura refletir sobre a relação entre o trabalho descritivo e o normativo, com base no enfoque de um fenômeno lingüístico particular, o domínio funcional da voz, já suficientemente submetido ao es-crutínio da pesquisa lingüística (MOINO, 1989; CUNHA, 1994; CAMACHO, 2002).

De um ponto de vista tipológico, as construções de voz exercem uma diversidade de valores semântico-oracionais e pragmático-discursivos, codificados na sintaxe por diferentes tipos de configurações estruturais. É justamente em função dessa

A gradação tipológica das construções de voz

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complexidade que a tipologia lingüística tem preferido definir voz como um domínio multifuncional, com base no princípio de que a pesquisa trans-sistêmica não pode partir da forma, que nem sempre é a mesma nas diferentes línguas, mas de domínios funcionais, que são codificados por uma variedade de formas.

A noção de multifuncionalidade da voz verbal envolve, segundo Givón, (1981, 1994), três domínios funcionais: (i) o de topicalidade, segundo o qual se atribui a função de tópico a um argumento não-agente; esse traço é oposto ao que identifica a sentença ativa correspondente, em que o tópico é comumente o sujeito/agente; (ii) o de impessoalidade, segundo o qual se supri-me a identidade/presença do argumento agentivo, geralmente o sujeito expresso da sentença ativa; (iii) o domínio da detransiti-vidade segundo o qual, a construção de voz é semanticamente menos ‘ativa’, menos transitiva, mais estativa que a construção ativa correspondente.

O objetivo específico deste trabalho é mostrar, por um lado, que as construções de voz do português falado, incluindo as médias e as reflexivas, são pontos de um continuum funcional e que, nesse caso, passiva e impessoal correspondem aos dois ex-tremos da escala, embora sejam regidas pelas mesmas restrições semânticas em relação ao tipo de predicado subjacente envol-vido, enquanto a construção média e a reflexiva ora combinam traços com a passiva ora com a impessoal. a interpretação das construções de voz adotará uma perspectiva pragmática e uma perspectiva semântica; a perspectiva pragmática tomará como parâmetro a relativa topicalidade do agente e do paciente, com base na proposta de Givón (1981), e a perspectiva semântica to-mará como parâmetro o grau de distintividade dos participantes no evento transitivo, tal como proposto por Kemmer (1994). o objetivo mais geral é mostrar que a gramática normativa ganha em precisão e qualidade se adotar uma perspectiva escalar para suas categorias.

a construção de uma tipologia se baseará, sempre que possível, em dados extraídos do corpus compartilhado do Projeto de Gramática do Português Falado, que consiste numa amostra-gem do material coletado pelo Projeto da Norma Urbana Culta (NURC)/Brasil, gravados com informantes cultos procedentes de Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.

Este texto organiza-se do seguinte modo: a seção 1 trata das condições semânticas e pragmáticas que permitem codificar sintaticamente um estado de coisas nas construções passiva e impessoal e do modo como as diferenças funcionais representam escolhas pragmaticamente motivadas. Passa-se, em seguida, na seção 2, à discussão das construções reflexiva e média, com ên-fase especial na última em virtude de não merecer um enfoque sistemático nas gramáticas da língua portuguesa; nessa seção, apresenta-se um quadro analítico para representar a função

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que a escolha de uma construção média projeta no âmbito da transitividade semântica. a conclusão inclui algumas generali-zações em princípios tipológicos que permitem identificar cada construção de voz como pontos funcionais de um continuum escalar, perspectiva de análise que poderia substituir o trata-mento excessivamente dicotômico das categorias nas gramáticas do português.

1. Construções passiva e impessoal: distinções pragmáticas e semânticas

1.1 Tipo semântico de predicado e função semânticaa grande maioria das construções passivas e impessoais

ocorre com verbos de ação [+dinâmico, -controlado] em cujo esquema de predicado, o argumento objeto corresponde a um papel de paciente (meta e meta-experienciador), isto é, uma entidade afetada ou efetuada, enquanto o argumento sujeito corresponde a uma entidade agentiva, humana e controladora. Os exemplos (1a-c) abaixo ilustram esse tipo de predicação

(1) a todo seu material bélico foi arrasado? (EF-RJ-379)b compra-se mais um título... (D2-RJ-355:30)c faz esse refogado e põe tomate, um ou dois tomates (D2-Poa-291:129)

Muito provavelmente são os verbos de ação os que prototi-picamente desencadeiam as construções passivas e impessoais. Por essa razão, uma gramática como a de Cunha (1986) traz definições de voz ativa, passiva e reflexiva em que a noção de agentividade está sempre implícita: “[...] o fato expresso pelo verbo pode ser representado de três formas: a) como praticado pelo sujeito [...] b) como sofrido pelo sujeito [...] e c) como praticado e sofrido pelo sujeito [...].” (CUNHA, 1986, p. 210)

Entretanto, a passiva manifesta-se também com predicados de posição, que não envolvem dinamicidade, mas são semanti-camente marcados pelos traços [+controlado]. posição, na visão teórica de Dik (1989), aqui adotada, inclui os verbos de percepção, ou posição mental, como considerar e seus similares com ver-bo-suporte, como levar em conta, contido em (2-a); e verbos que pressupõem posicionamento físico de um ser controlador, como considerar, manter, conservar,conforme se observa em (2b-d).

(2) a aumentos... salariais... que anualmente são levados em conta (DID-rE-131)b os sindicatos são realmente entidades...que têm... determinados elementos

que são considerados como postos...[...] quer dizer que são considerados como elementos chaves (DID-rE-131: 70-1)

c o período presidencial.... émantido... durante três anos... (DID-rE-131:225)d outrostiposdealimentoque podem ser conservados(DID-Poa-044)

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Mais intrigante é a incidência de predicados de processo, cuja entidade envolvida, não exerce qualquer controle, sendo, antes, afetada. Processos [+dinâmico, -controlado] implicam, por definição, a atuação involuntária dos participantes, afastan-do-se, portanto, do evento transitivo prototípico.apesar dessa restrição semântica, o corpus inclui construções passivas com predicados de processo, como lembrar,entender, perceber, eperder, contidos em (3a-c).

(3) a a relação salário aluguel...já que o assunto foi lembrado aqui...(D2-RJ-355:213)b bom... ocorre a guerra e... nada nessa história acontece por acaso... né? se...

realmenteaguerrafoiperdidapelos países do eixo... é que as condições... sociológicas... econômicas e políticas etc.etc.fizeram com quefosseperdidaaguerra... (EF-RJ-379)

c agora o dinheiro no Brasil nunca foi tão difícil de serentendido...(D2-RJ-355)

todos esses predicados de processo contêm um sujeito experienciador e a experiência por que se passa pode ser física, como ocorre com vereperder, ou mental, como ocorre com enten-der, perceber, lembrar. observe a esse propósito, o uso causativo de lembrar em (4a-c), em que se aplica o traço [+controlado], justificando o uso de construções passivas, como a de (3a).

(4) a O professor lembrou a data da prova.b A data da prova foi lembrada pelo professor.c Lembrou-se a data da prova.

as construções contidas em (3b-c) constituem desvios do evento prototipicamente transitivo, que deveria caracterizar as construções passivas. Certamente o envolvimento num estado de coisas não-controlado não acarreta qualquer ato voluntário, intencional da entidade experienciadora. É por outra razão que, ao explicar as construções de voz passiva, as gramáticas escolares invocam um argumento circular para fornecer as condições es-truturais da passiva, ao mencionarem que o único tipo de verbo que licencia essa construção é o chamado transitivo direto, e o conceito de transitividade é entendido sintática e não semanti-camente, ainda que as definições de passiva tenham em geral uma base nocional.

Quanto à impessoal, embora a incidência de outros tipos semânticos de predicados seja pouco representativa, há um dado relevante a observar: aplicam-se a ela as mesmas con-dições semânticas que se aplicam à passiva. É possível inferir essa correlação do fato de os dados terem manifestado inclusive ocorrências de predicações envolvidas com entidades no papel semântico de experienciador e de posicionador, que pressupõem entidades controladoras, comuns às construções passivas. as sentenças incluídas em (5a-c) são exemplos representativos de

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predicação de posição [-dinâmico; +controlado], e as de (5d-e), de processo [+dinâmico, -controlado].

(5) a somentelevando em consideração a realidade social... em adequação à lei por exemplo (EF-RE-337:224)

b porque tem que manter um certo padrão:: e não dá (D2-SP-360:686)c alimentosassimque não se pode guarda(r) por muito tempo, não é? (DID-

Poa-044: 207)d e como se vêfogueiraoolindensefazfogueira (D2-rE-05:290)e se encontra por exemplo hoje...no Japão... quer dizer uma situação

DIFERENTE daquele Japão pós-guerra (EF-RJ-379:340)

1.2. Grau de transitividadeNos dados analisados, há em termos estritamente semânti-

cos, uma correlação significativa entre as construções de voz pas-siva e impessoal: ambas são fortemente motivadas pela presença de um verbo de ação [+dinâmico, +controlado] em detrimento de predicados de processo, posição e estado, o que confirma a idéia de que o candidato preferencial para ocupar a função de sujeito, o agente, segue a hierarquia de funções semânticas. Uma boa questão a discutir é a das motivações funcionais possíveis que determinam a escolha entre essas construções alternativas.

Um aspecto funcional importante que deve determinar essa seleção está justamente no domínio semântico da transitivi-dade. A natureza ativo-transitiva do predicado, que a construção impessoal preserva, alivia a restrição motivada pelo princípio cognitivo do grau de distintividade entre os participantes. Com base num postulado de Haiman (1983) sobre a separação conceitual que o falante opera cognitivamente sobre grau de individuação, Kemmer (1994) elabora o parâmetro da distin-tividade relativa de participantes, segundo o qual uma entidade única físico-mental pode ser conceitualmente distinguida em diferentes participantes.

assim, como a passiva se aplica a eventos transitivos em que a entidade no papel de iniciador deve ser distinta da entidade no papel de ponto de chegada, ela é automaticamente bloqueada por predicados de ação cujo objeto afetado é parte inalienável da entidade agentiva, conforme se observa em (6-8).

(6) a João lavou-se.b ? Joãofoilavadoporsi.

(7) a João levantou o braço.b ?O braço foi levantado por João./ ?O braço de João foi levantado por ele

(8) a João tomou banho.b ?Banho foi tomado por João

O traço caracterizador de um esquema de predicado biva-lencial, que constitui o evento transitivo prototípico, representa-

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se, por definição, na distinção entre dois participantes exercendo papéis semânticos igualmente distintos, que é como se identifica uma relação tipicamente assimétrica (KEMMEr, 1994). o evento reflexivo de (6a) evoca dois papéis semânticos separados, mas que convergem para uma única entidade referencial. Já o Agente e a entidade afetada de (7a) representam uma única entidade, uma vez que braço representa uma parte inalienável de João. as-sim, (6a-b) e (7a-b) constituem subconjuntos do mesmo fenômeno semântico, isto é, os argumentos representam entidades com grau baixo ou nulo de distintividade. A conseqüência mais evi-dente dessa propriedade semântica para a organização sintática é o bloqueio da construção passiva de (7b), que não se aplica, no entanto, à construção impessoal, conforme se observa em (9).

(9) a levantou-se tanto o braço na assembléia para votar as propostas que a reunião mais parecia um ritual religioso.

b Na pescaria tomou-se banho só de rio.

Ilari & Franchi (apud FRANCHI; CANÇADO, [19--?]) lem-bram, todavia, que passivas derivadas de predicados com objeto incorporado são mais freqüentes do que parecem, pelo menos na modalidade falada coloquial: Ele é para ser tomado conta, hein? Esses casos, que constituem graus extremos de topicalização do SP oblíquo na função de Beneficiário, assemelham-se a outras construções de tópico, em que uma entidade externa à predica-ção, chamada por Dik (1989) de Tema, passa a gramaticalizar-se como Sujeito/Tópico da predicação. Esses processos de ‘integra-ção de Tema’ (Dik 1989) se assemelham formalmente com casos, como O meu carro furou o pneu, tratados por Pontes (1987).

observem-se, agora, as sentenças contidas em (10a-c):(10) a João quebrou o vidro da janela.

b O vidro da janela foi quebrado (por João).c Quebrou-se o vidro da janela (?por João).

Em termos estritamente semânticos, a possibilidade de construir passivas e impessoais no português está associada às mesmas restrições de seleção; entretanto, a sentença passiva é prototipicamente sensível à promoção de entidades afetadas à posição de sujeito/tópico e à detransitividade do predicado ver-bal, excluindo-se necessariamente a impessoalidade do agente; quanto a esse aspecto, as impessoais não autorizam absoluta-mente a manifestação formal de um SN agentivo, ainda que ele permaneça pressuposto.

O fato de permanecer pressuposto, sem manifestação for-mal, mostra que, acima de tudo, o acesso a tipos alternativos de construções de voz é uma prerrogativa do falante ao elaborar seu discurso. Sendo assim, na formulação de uma construção de voz, as condições pragmáticas, ligadas ao nível interpessoal,

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acionam uma escolha, e a construção selecionada obedece a restrições semânticas, no nível representacional, quanto ao tipo semântico de predicado e à função semântica dos participantes. O resultado dessa operação é a codificação morfossintática, que distingue formalmente as duas construções de voz, de acordo com a natureza da formulação (cf. HENGEVELD, 2004).

as gramáticas tradicionais sustentam o princípio descriti-vo de que construções impessoais são passivas reais em função de o argumento único ser o sujeito formal e, embora posposto, controlar a concordância número-pessoal com o verbo. Há, todavia, uma gramática que resiste em considerar a impessoal como uma forma de passiva: “Tal teoria [...] foge à realidade da língua. Em tal frase [alugam-se casas], casas é o objeto direto: o verbo é ativo e o se é símbolo de indeterminação do sujeito.” (BARROS, 1985, p. 301)

Bechara (1999) reconhece essa diferença semântica e formal entre passiva e impessoal, mas a natureza clítica das construções impessoais o leva a aproximá-las da voz reflexivo-recíproca; para diferenciar uma da outra, menciona vagamente um sentido de “passividade com se” e de impessoalidade para a construção que se denomina aqui de impessoal, conceituando a reflexiva como a “forma verbal que indica que a ação verbal não passa a outro ser (negação da transitividade), podendo reverter-se ao próprio agente, que é o sentido reflexivo propriamente dito, ou atuar reciprocamente entre mais de um agente” (cf. BECHARA, 1999, p. 222-3). Ao contrário da interpretação de Bechara, mais adiante se defende a idéia de que a reflexiva é a construção de voz que mais se aproxima do evento ativo-transitivo, interpretação mais próxima da que defende Barros (1985).

1.3. Forma de manifestação do SN agente na passivaa condição especial da passiva de poder conservar o SN

agentivo pode ser observada em (11a) e (11b), construções que manifestam respectivamente SNs sob a forma de itens lexicais plenos e de zeros anafóricos:

(11) a então lá fui recebido pelaempregada (D2-RJ-355)b então a minha de onze anos... ela supervisiona o trabalho dos cinco... então

ela vê se as gavetas estão em orde/... em ordem se o:: material escolar já foi re/arrumado[entenda-se pelos cinco]paraodiaseguinte (D2-SP-360)

No exemplo contido em (11b), o tópico discursivo é repre-sentado pelos cinco filhos da locutora, que passa a tratar especi-ficamente de um deles, a menina de onze anos. O contexto deixa claro que o SN agentivo não-manifesto pressuposto por arrumarse identifica, por relação anafórica e co-referencial, com o SN oscinco; trata-se claramente de um caso de entidade inferível não-

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contida (PRINCE, 1981). Em outro tipo de construção, como o de (12), a referência ao nominal está bem mais próxima:

(12) se...realmenteaguerrafoiperdidapelos países do eixo... é que as condições... sociológicas... e econômicas e políticas etc. etc. fizeram com que fosse perdida aguerra...[entenda-se pelos países do eixo] (EF-RJ-79)

Há casos de passivas não-agentivas que assim se caracte-rizam por manifestarem entidades genéricas, como o de (13a) ou, se individuadas, desconhecidas do emissor, e por fim, se conhecidas, propositalmente não enunciadas por ele, como o de (13b).

(13) a ciranda é cantada durante o verão em olinda.b se a gente lembrar que aquele prédio foi feito para conter (D2-RJ-355)

Em termos semânticos, a passiva prototípica corresponde a uma predicação estativo-processiva em que a entidade afetada/efetuada pela ação verbal recebe a função de sujeito e, geralmen-te, a de tópico, e a entidade causadora ou é colocada em segundo plano, significativamente, representada pela posição sintática de oblíquo, ou, mais comumente, é demovida sintaticamente.

Embora a demoção sintática do SN agentivo seja faculta-tiva, acaba por constituir-se numa propriedade característica da passiva, já que a grande maioria das ocorrências não exibe a possibilidade de recuperação, no contexto discursivo, de re-ferência a uma entidade individuada que seja controladora da ação envolvida no predicado.

Vale a pena mencionar que a manifestação do agente como oblíquo cria uma possibilidade adicional de demovê-lo, propriedade que dá uma flexibilidade funcional à passiva de que a impessoal não dispõe. Há, na realidade, uma tendência inequívoca, detectada por Du Bois (1987) no sacapulteco e por Pezatti (2002) no português falado, para orações com um único argumento lexical, geralmente na posição de meta, implicando numa regra de estrutura preferida do tipo “evite mais de um argumento lexical na oração”. Nesse caso, enquanto a constru-ção passiva é capaz de cumprir satisfatoriamente esse princípio funcional, conforme o estatuto informacional dos argumentos, a impessoal é absolutamente impermeável a ele.

A demoção sintática do SP agentivo, embora facultativa, é estatisticamente preferida (CAMACHO, 2002; CUNHA, 1994), o que aproxima as duas construções, mas razões pragmáticas de topicidade da entidade afetada comandam a escolha da passiva em vez da impessoal. Um traço formal que permite rastrear com segurança a topicidade da entidade representada no SN sujeito da passiva é seu grau de acessibilidade anafórica (WRIGHT; GIVÓN, 1987). Observem-se em (14a) e (14-b) dois casos típicos

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de SNs na função de sujeito/tópico, manifestando-se, respecti-vamente, como pronome anafórico e zero anafórico.

(14) a a Arquitetura quando foi prá lá estava do primeiro ao oitavo andar mobiliado... com mobiliário melhor possível... então... o que acontece... quando elafoi sendo comprimida... ela não foi deixando os móveis (D2-RJ-355)

b a criança vai ao maternal somente pra brincar.. ser educada ser alfabetizada(DID-Sa-231)

É óbvio dizer que zeros costumam desempenhar o papel de ponto terminal de uma cadeia anafórica, que, muitas vezes, começou com um SN lexical pleno. Observem-se os exemplos contidos em (15).

(15) a essenódulo terá que ser... examinado..∅.teráque ser retirado...∅terá que sermandado para a... anatopatologista... para eh::eh::/ para então... ele dizer...sehámalignidadeounaonessenódulo(EF-SA-049)

b eleéresponsávelpela chefia lá e:: ∅não foi preenchida(D2-SP-360)

Vale lembrar que Weiner & Labov (1983) defendem a idéia de que construções passivas não-agentivas em inglês não são favorecidas por condições pragmáticas, como topicidade, mas por razões formais de paralelismo formal, que é a presença de uma construção similar precedente. Desse modo, o sujeito da passiva, em vez de seu caráter tópico, é simplesmente motivado pela tendência de se preservarem estruturas paralelas.

Os dados de língua falada aqui analisados não confirmam a atuação desse fator, já que é significativamente majoritário o número de passivas sem qualquer outra estrutura similar no contexto. A passiva é usada principalmente para a continuidade tópica de um argumento não-agentivo. Na verdade, os índices de manutenção de sujeito apontam apenas parcialmente para um fenômeno mais geral, de manutenção tópica, cujo indício mais evidente está no grau de distância referencial não importa que função, na oração anterior, o SN precedente exerça. Nesse âmbito, é possível evocar os dados de Cunha (1994) que apontam para uma incidência de apenas 19% dessa categoria em seus dados de fala. Nesse caso, o mecanismo que atua mais decisivamente é de ordem discursiva, já que atende a determinações pragmáticas de manutenção e continuidade tópica e não a determinações de ordem puramente formal.

1.4. O estatuto gramatical do argumento único das construções impessoais

Nas estruturas impessoais reinam absolutas as entidades inanimadas na única posição argumental. Um bom indício para verificar o estatuto dado/novo desses referentes é seu grau de acessibilidade anafórica. A grande maioria dos SNs das cons-truções clíticas e não-clíticas apresentam ligação anafórica com

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algum elemento antecedente, comportamento que caracteriza as entidades representadas por esses SNs como discursivamente dadas.

Nessa condição, o argumento afetado seria promovido, de um ponto de vista pragmático, para a função de tópico e, de um ponto de vista sintático, para a posição de sujeito, como, aliás, é comum ocorrer com a passiva. Entretanto, dificilmente se pode-ria atribuir aos casos de voz impessoal do corpus exemplos claros e inequívocos de construção promotora de entidades afetadas à posição de sujeito, já que a maioria absoluta delas têm seu argu-mento único inequivocamente flexionado no singular.

Para reforçar esse argumento, verifiquemos como se comportam os argumentos únicos das construções impessoais; caso fossem interpretados como sujeito, exigiriam aplicação de concordância de número. Isso de fato ocorre em apenas um caso, ilustrado em (16).

(16) quer dizer além de chegar ao plano muscular...seretiramoselementosmusculares...ousejam... os peitorais... grandes e pequenos (EF-SA-049)

O cuidado especial do falante com a regra normativa de concordância verbal o leva a produzir um caso típico de hiper-correção mais adiante, quando usa a locução invariável ouseja como um verbo no plural. Isso pode indicar que, somente em situações muito tensas, um falante de nível superior de escola-ridade produziria uma construção em que o argumento único é codificado como sujeito, em razão da concordância número-pessoal.

Os demais casos representam todos indícios de que o falan-te não trata o argumento posposto ao verbo como o sujeito legíti-mo da sentença. Vale ressaltar que alguns casos são construções impessoais não-clíticas, em que a ausência de marca explícita de voz torna mais rara a concordância. A sentença contida em (17) fornece uma evidência de que a construção impessoal é variável quanto à inserção do clítico marcador.

(17) então, naquele arroz mexe, quebra dois ovos aí e, e depois então comprime esse arroz num pirex, bate-se um ovo, põeagema(D2-Poa-291)

Já em outros casos, como os de (18a) e (18-b), a construção impessoal é inequivocamente assinalada com o marcador clítico. A despeito disso e da relativa formalidade da situação interacio-nal, o SN pluralizado não aciona a concordância.

(18) a nãosepodecriar assim profissões ou citar(r) profissões que sejam mais importantes ou mais necessárias entende? (DID-Poa-044)

b também se faz a aquelas compras pequenas que.. alimentos assim que não se pode guarda(r) por muito tempo, né?[...] só outros tipos de alimentos que podem ser conservados (DID-Poa-044).

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É interessante observar que, em (18b), o locutor usa a alter-nativa impessoal com um SN no plural que, mesmo assim, não aciona a concordância de número no predicado. Na seqüência, apesar de alimentosaparecer em posição pré-verbal, controlando a ligação anafórica com o pronome relativo na posição de sujeito, esse SN também não é capaz de acionar a regra de concordância com o auxiliar modal poder. Na mudança de subtópico que o lo-cutor faz em seguida, referindo-se a outros tipos de alimentos, ele alterna para a passiva numa oração relativa restritiva, cujo pronome relativo tem como co-referente um nome no plural e, diferentemente do que ocorre na construção impessoal, que acabou de ser enunciada, aplica-se rigorosamente a regra de concordância.

as construções impessoais ainda representam casos de ambigüidade estrutural no português falado culto em função de um mínimo de construções no plural, certamente motivadas pela tradição normativa que rege a modalidade escrita. Esses poucos casos podem ser identificados como construções que promovem o SN afetado à posição de sujeito. Ainda assim, é muito relativa a aplicação da regra de concordância nos casos de sujeito em posição pós-verbal. Reporta-se aqui aos exemplos de (19), extraídos de uma amostra de língua escrita de Scherre (apud BAGNO, 2003, p. 27).

(19) a “FALTA ao governo FHC DECISÕES CORAJOSAS E FIRMES, principalmente contra os partidos que o apóiam” (o Estado de S. Paulo, 17/9/1995, A-2, c. 2)

b “Mas se a população de rua não for retirada, de nada ADIANTARÁ MEDiDASDESEGURANÇA”. (Jornal do Brasil, 13/11/92, p. 3)

A preferência estatística por construções impessoais no singular é um indício evidente de que se acha subjacente a in-terpretação cognitiva de que o constituinte relevante não é de fato o sujeito sintático.

Assim, nem todas as construções desse tipo se fazem marcar por se, eliminação que, de resto, acompanha a perda de clíticos já atestada no português (cf. KATO; TARALLO, 1986). além disso, nem sempre, como se sabe, o argumento único do predicado na construção impessoal se comporta como sujeito real: além de ocupar uma posição destinada ao objeto, não é absoluta a codificação morfossintática que regula o comporta-mento nominativo desses SNs, tal como costuma aparecer nas gramáticas tradicionais. Cria-se, assim, uma espécie de voz ativa impessoal indeterminadora, em que o argumento paciente não recebe função de sujeito, cuja posição fica marcada formalmente pela presença do clítico se.

Já a preferência pela construção passiva é motivada pela determinação pragmática de constituir um tópico, o que não se aplica à impessoal, em que o processo é apresentado em si

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mesmo, independentemente de uma entidade que lhe sirva de referência, a mesma motivação que dá lugar às frases sem sujeito.

A própria configuração sintática da construção impessoal, argumento único em posição pós-verbal, é um resultado explícito dessa motivação pragmática; além disso, ela preserva a estrutura predicacional ativo-transitiva.

A necessidade pragmática de topicalização requer do fa-lante a opção por uma estrutura em que o argumento principal seja sintaticamente o sujeito, o que define a construção passiva. Nesse caso, resulta um estatuto de detransitividade semântica, que é secundário em função da determinação pragmática de atribuição tópica, hierarquicamente dominante.

2. Construções de voz média e de voz reflexiva

2.1. Um único clítico com duas funçõeso termo média designa uma categoria flexional de voz do

Grego Clássico, definida tanto em termos de forma quanto de função. Do ponto de vista formal, essa categoria é constituída por paradigma de sufixos verbais com uma função semântica bem delineada: expressar estados de coisas que afetam o sujeito do verbo ou seus interesses (cf. LYONS, 1979, p. 373). Por ser do domínio das línguas indo-européias clássicas, como o sânscrito, o grego e o latim, as gramáticas não fazem qualquer referência ao termo, embora haja claras alusões à expressão voz reflexiva. Cunha e Cintra (1985, p. 395) tratam a passiva mais como um modelo de conjugação, enquanto a diferença entre voz reflexiva e média se restringe apenas à idéia de que, quando no singu-lar, o clítico na função de objeto co-referencial ao SN sujeito, manifesta a idéia de reflexividade e, quando no plural, o clítico co-referencial ao sujeito manifesta a idéia de reciprocidade; já a diferença entre reflexiva e média é tratada apenas com uma seção destinada aos verbos pronominais.

Câmara Jr. (1972) foi o primeiro lingüista a reconhecer não só os traços comuns mas também os traços distintivos das construções média e reflexiva/recíproca. Em atenção aos traços comuns, denomina medialo tipo que corresponde sintaticamen-te a uma construção em que à forma do verbo na voz ativa se acrescenta um pronome adverbal átono, referente à pessoa do sujeito, e a função semântica que veicula é a de uma integração na ação que dele parte. Em atenção aos traços distintivos, Câ-mara Jr. (1972, p. 182-3) fornece três subcategorias de voz medial: a medial reflexiva, a medial recíproca e a medial dinâmica.

Seja como medial reflexiva, seja como medial recíproca, a construção não-pronominal com objeto autônomo, isto é, não co-referencial ao sujeito, mantém inalterada a significação

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verbal, sempre numa forma ativa, conforme os exemplos: eumeferi x euoferi. Já como medial dinâmica, a pessoa do sujeito, sob a forma do clítico, reaparece no predicado, representando o centro de uma ação verbal transitiva que dele parte, mas que não sai de seu âmbito, eliminando-se, assim, o objeto sobre o qual ela recairia: eumelevantei e, diferentemente das estruturas reflexivo-recíprocas, a construção de pronome autônomo altera a significação verbal: euolevantei.

Alguns exemplos típicos de voz média reflexiva e de voz média recíproca podem ser observados em (20a) e (20b), respec-tivamente. O uso original das construções clíticas foi provavel-mente o reflexivo simples com o pronome co-referencial ao ob-jeto, que se vê em (20a) e o uso recíproco, que se vê em (20b).

(20) a e a melhor maneira que ele encontrava pra sedefender era atacando (EF-RJ-379).

b mas um não acusa o outro de jeito nenhum...agora na mai/... na maioria das vezes eles dizem...(que foi eles...dizem) se acusa(D2-SP-360)

As construções de (20a) e (20b) permitem uma formulação alternativa na voz ativa com o mesmo valor semântico do verbo, conforme se observa em (21a) e (21b).

(21) a A melhor maneira que ele encontrava para defender sua pátria era atacando.

b o deputado acusou o ministro de corrupção.

Como marcador medial, o clítico se ainda retém proprie-dades pronominais de acordo com suas origens no pronome reflexivo: formalmente ainda é parte do paradigma pronominal, correlacionando-se com outros membros da classe, embora o único traço nominal que lhe resta seja o de pessoa; além disso, ele participa regularmente das regras de colocação de clíticos que governam os pronomes em geral. o marcador medial ainda mantém traços morfológicos e sintáticos tipicamente pronomi-nais, mas sua forma de manifestação sintática e semântica não é idêntica à do marcador reflexivo-recíproco; nas construções médias, o clítico não permite, por um lado, comutações com outros termos possíveis do mesmo paradigma e, por outro, não estabelece com o sujeito uma relação semântica de co-referência, o que só seria possível se houvesse duas posições estruturais disponíveis para serem preenchidas por SNs referencialmente idênticos.

O fato de não constituir uma posição sintática preenchível aproxima as construções médias das construções impessoais: há em ambas as classes um marcador morfológico sem posição valencial no esquema de predicado. Observe-se no exemplo (22) um caso de predicado pronominal.

(22) ela realmente procura se aperfeiçoa(r) dentro daquilo que faz (DID-Poa-045)

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De um ponto de vista formal, uma construção média caracteriza-se, portanto, por predicados intrinsecamente pronominais cujo clítico já não representa nenhum par-ticipante no esquema valencial. De um ponto de vista semântico, a maioria dos casos de voz média manifesta predicados com argumento único afetado e todo o evento é tomado como não sendo o resultado da ação de uma outra entidade causativa. o sujeito parece ter alguma qualidade própria para gerar o estado de coisas que então só dele emana. observe-se em (23a-e) alguns casos prototípicos:

(23) a apalavramesmaporsijáse explica (EF-POA-)b agentesedesgastamais (D2-SP-360)c acho que o sistema bancário já que nossa conversa é em torno de

dinheiro...evoluiumuitoesepopularizou(D2-RJ-355)d mas eu acho que o pessoal não se equipou ainda aqui (D2-SA-98)e se cala mas não se dobra (D2-SP-360)

Apesar de o marcador de voz média do português ser, como já mencionado, o clítico destituído da função reflexiva, podem ocorrer, mesmo num corpus mais formal, como as entrevistas do NURC, as alternativas não-clíticas contidas em (24), similarmente ao que ocorre, conforme já mencionado, com as construções impessoais.

(24) a todooterrenodavizinhançajávalorizou(D2-RJ-355)b o problema é vender pro comércio...quando começaadesenvolvero

comércio... (D2-RJ-355)c o dia que você tiver verba pra consertar a torneira da tua escola...o

vidro da janela que quebrou (D2-RJ-355)d quando atinge o quinto ano do primeiro grau é o grande deficit de

evasão... é onde há... é o pique da evasão.. a pirâmide fecha ali... quase que fecha ali...(D2-RJ-355)

As sentenças acima produzem um efeito semântico equivalente ao de suas alternativas clíticas; são casos de variação. Observe-se, a esse propósito, o exemplo contido em (25), situação em que o mesmo falante produz, às ve-zes, duas instâncias do mesmo predicado, ora clítico, ora não-clítico.(25) acho que o sistema bancário já que nossa conversa é em torno de

dinheiro...evoluiumuitoesepopularizou [fechando o tópico] hojepopularizou o sistema bancário (D2-RJ-355)

Essas variantes não-clíticas aproximam formalmen-te as médias das construções de voz impessoais, já que o clítico é uma espécie de afixo marcador de impessoalidade e de medialidade, respectivamente, retendo do pronome reflexivo apenas a categoria número-pessoal, mas não a relação de co-referência. É possível referir-se aos verbos inerentemente pronominais, como queixar-se, arrepender-se

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e levantar-se, como mediatantum, já que não têm uma contraparte não-pronominal. Bechara (1999) reconhece que, nessa categoria de verbos, “não se percebe mais a ação rigorosamente reflexa, mas a indicação de que a pessoa a que o verbo se refere está vi-vamente afetada” (BECHARA, 1999, p. 223), mas não se arrisca a tentar criar uma categoria especial de voz.

Como os marcadores médio e reflexivo mostram freqüen-temente correspondência formal sincrônica e/ou diacrônica, é possível concluir que há uma relação semântica entre as catego-rias que os marcadores expressam, mas a distinção semântica ou funcional entre as construções reflexiva e média também sugere uma distinção formal, suscetível de codificação lingüística, e é nos ‘sistemas de duas formas’ (two-form systems) que a diferença se manifesta mais claramente (cf. KEMMER, 1994, p. 190).

O latim se caracterizava como um ‘sistema de duas for-mas’, mas os marcadores reflexivo e médio não eram cognatos: a expressão formal do primeiro era o clítico se, enquanto a do segundo era desinencial, mediante o acréscimo de -r à raiz ver-bal; nesse caso, o latim constituía um ‘sistema de duas formas não cognatas’ (two-form non-cognate system). o desaparecimento dos verbos depoentes, classe de mediatantum, tornou possível generalizar o uso do clítico reflexivo também para as constru-ções médias do português e de outras línguas românicas, como o espanhol e o francês.

Apesar dessa convergência formal das línguas românicas, é possível considerar a hipótese de que a distinção gramatical entre construções médias e reflexivas, presente no latim clássico, venha a traduzir-se, respectivamente, na ausência e na presença do clítico, padrão de distribuição que preservaria inclusão da variedade falada nos sistemas de duas formas, mas com um jogo de oposições muito diferente do que ocorre na variedade padrão da modalidade escrita.

tomando por base subtipos semânticos de predicação, su-geridos por Kemmer (1994), é possível identificar nos verbos de movimento não-translacional, como virar-se, e nos de mudança de postura corporal, como levantar-se, a característica semântica de acarretarem uma espécie de fusão no sujeito dos papéis de agente e paciente, embora pareça que o traço de afetado é o mais evidente. o mesmo parece aplicar-se a outros tipos de estado de coisas que envolvem verbos de comportamento, como conduzir-se, comportar-se, portar-se. Verbos naturalmente recíprocos, como abraçar-se, parecem fundir os papéis de agente e beneficiário; observem-se, a esse propósito, as construções de (26a-b).(26) a João abraçou a mulher, antes que ela caísse de vez.

b João abraçou-se à mulher, antes que (ele) caísse de vez.

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a sentença (26b) contém um verbo tipicamente médio cujo complemento preposicionado não exerce a função semântica de beneficiário da ação de João, como é o caso do SN amulher em (26a); exerce, muito provavelmente, a de instrumento (meio de suporte), já que o beneficiário passa a ser o próprio agente, que aparecem como que fundidos no SN João na posição de sujeito.

Há um conjunto de verbos tipicamente causativos, que admitem praticamente todas as construções de voz, como se observa nos exemplos contidos em (27a-b) e (28a-b):

(27) a O padre conscientizou Maria das dificuldades do casamento. (ativo-causativa)

b Maria foi conscientizada pelo Padre das dificuldades do casamento. (passiva)

(28) a Maria se conscientizou das dificuldades do casamento. (média)b Maria está conscientizada das dificuldades do casamento. (estativo-

resultativa)

É interessante observar que um evento causativo exclui a construção de voz reflexiva; o clítico se de (28a)não pressu-põe reforço com asimesma, mas com porsimesma, o que leva a interpretá-la como construção média. A reflexividade é muito mais restrita: está relacionada semanticamente a verbos não-causativos com SNs animados, daí a impossibilidade de uma construção de voz média como (29b) :

(29) a João cortou o bolo.b ?O bolo (se) cortou.c João se cortou.

Este é um bom argumento para considerar que deve ser preferencialmente média a interpretação de construções pro-cessivas, como (30a) abaixo, que exibem correspondência com predicados causativos.

(30) a o bebê se acalmou com os sons ritmados.b Os sonsritmadosacalmaram o bebê.c o bebê se acalmou por causa dos sons ritmados.

Esses verbos de processo configuram uma classe ampla de predicados orientados para a entidade meta, ou paciente. o epíteto orientaçãoparaMeta, cunhado por Vet (1985),(Goal-oriented predicates) indica que esses predicados estão em oposição aos verbos que admitem voz reflexivo-recíproca, que são orientados para a entidade controladora, geralmente no papel semântico de agente (Agent-oriented predicates). os predicados daquela classe não expressam, como os desta, uma relação entre alguma en-tidade e si mesma, mas o envolvimento do sujeito da sentença num estado de coisas que o afeta de algum modo.

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Eventos causativos requerem um causador externo virtual, mas é possível construir sentenças, como (30c), com a entida-de causativa, reduzida sintaticamente à posição de oblíquo, e verbalizar o evento como auto-suficiente na rede causal. Nesse caso, a auto-suficiência do evento parece ser mais relevante para os propósitos comunicativos que a ação de uma causa externa controladora na função de sujeito (cf. CROFT, 1994), pressupondo certa responsabilidade da entidade afetada no desencadeamento do processo. É como se as motivações do nível interpessoal se sobrepusessem às do nível representacional e os reflexos dessas motivações no nível morfossintático resumem-se às diferentes configurações formais disponíveis (HENGEVELD, 2004).

2.2. Coincidência das funções semânticas de iniciador e ponto de chegada nas construções médias

Segundo Klaiman (1988), no tipo médio de voz o sujeito, além de iniciador e/ou controlador, representa também o status de entidade afetada. Em contraste com a média, sobre o sujeito da ativa, que é, de algum modo, o controlador do estado de coisas, não incidem os efeitos do evento. A representação da sentença processiva correspondente parte de uma perspectiva segundo a qual a entidade afetada, também o ponto de partida do evento, não está sujeita a qualquer causa externa; essa característica, aliada à marcação morfossintática do clítico correspondente, torna evidente sua inserção na classe das médias.

apesar dessa evidente inserção, não se deve limitar a medialidade às construções processivas, que têm na afetação do sujeito o traço semântico mais distintivo, já que a categoria medial inclui um paradigma de predicações controladas, em que uma entidade agentiva opera sobre si mesma, como levantar-se, virar-se, ajoelhar-se; inclui também uma classe de predicados de processos e estados cognitivos, como lembrar-se e interessar-se, respectivamente, que acarretam a participação de entidades experienciadoras.

Comparem-se (31a-c) e (32a-c):(31) a Maria viu o menino no espelho.

b Maria viu-se no espelho.c Maria viu-se a si mesma no espelho.

(32) a Joãoselevantou.b João levantou a pedra. c ?João se levantou a si mesmo.

No caso de levantar-se, o léxico do português dispõe de duas entradas, uma pronominal, que representa a interpretação média, e outra não-pronominal, que representa a interpretação causativa. O efeito semântico está no fechamento do predicado sobre seu sujeito, valor semântico que já se supõe estar presente

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na construção reflexivo-recíproca. A diferença, entretanto, é que nesta o clítico é simultaneamente anafórico e co-referencial ao sujeito, enquanto na média o clítico é unicamente anafórico. O pronome reflexivo, que perdeu completamente seu estatuto argu-mental, pode ser considerado uma espécie de afixo pronominal que concorda em pessoa e número com o sujeito da sentença.

Diferentemente dos reflexivos, não há comutação plausível entre o clítico e outro SN com manutenção de compatibilidade semântica, como comprovam os exemplos contidos em (31a-b) e (32a-b). além disso, a construção (32c) é estranha, e o mesmo não se aplica a (31c). Em (32a), o sujeito é, ao mesmo tempo, Iniciador e Ponto de Chegada do evento.

Os exemplos discutidos envolvem a conceitualização do sujeito da sentença como o lugar de incidência do efeito do es-tado de coisas. a dupla identidade do sujeito decorre de a média instaurar uma perspectiva que representa a entidade afetada como o ponto de partida do evento e, portanto, iniciador e/ou controlador ou, na pior das hipóteses, entidade não sujeita a qualquer causa externa.

Considerações finaisAo refletir sobre o modo como o trabalho descritivo, pura-

mente acadêmico, pode atuar sobre o discurso normativo, este trabalho firmou seu principal interesse no estabelecimento das bases para uma gramática, que se limitou, por sua vez, a um único domínio funcional. O trabalho descritivo pautou-se por uma organização escalar de traços semânticos e pragmáticos da diversidade morfossintática das construções de voz do por-tuguês falado, cujo resultado final consistiu na elaboração de uma taxonomia descritiva, passível de ser aplicada a gramáticas pedagógicas.

Assumiu-se, para tanto, o princípio de que voz é, por de-finição, uma categoria multifuncional, organizada em torno de três domínios (topicalidade, impessoalidade e detransitividade), vinculados ao conceito de “evento transitivo prototípico”, que fornece, por sua vez, a definição nuclear da voz ativo-transitiva (Givón, 1981; 1994), base para outras categorias de voz. A apli-cação desses três domínios funcionais fornece uma distribuição de traços que permite chegar à seguinte tipologia:Domínios funcionais Passiva Impessoal Média ReflexivaImpessoalidade - + + -Detransitividade + - - -topicalidade + - + -

Juntamente com a reflexiva, a impessoal é a construção menos marcada, já que para construir um exemplo, basta im-pessoalizar a entidade controladora do evento, que exerceria a função de sujeito na construção ativa. É por isso que o único

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traço positivo que ela sustenta no quadro comparativo é o de impessoalidade; como a passiva manifesta um tópico representa-do por uma entidade não agentiva, ela focaliza o evento a partir da perspectiva do paciente, da qual resultam detransitividade e topicalidade como traços positivos.

A construção média atribui a função de tópico ao sujeito, que é também uma espécie de entidade afetada e exclui, como as impessoais, o agente; daí a convergência dos traços de impes-soalidade e topicalidade. A construção reflexiva, por sua vez, praticamente representa um estado de coisas ativo-transitivo; como não promove a tópico uma entidade paciente, o estado de coisas mantém alto grau de transitividade e a agentividade acaba por incidir também sobre o sujeito.

Outra característica funcional ligada ao conceito de transi-tividade é o grau de distintividade dos participantes, postulado por Kemmer (1994). Como as línguas em geral assimilam outros tipos de eventos, que não envolvem necessariamente a trans-missão de energia física, como os prototipicamente transitivos, Kemmer (1994) considera o grau em que a elaboração lingüística de um estado de coisas toma por base o ponto de vista de um participante que “inicia” o evento para um segundo participante, que é o alvo ou “ponto de chegada”.

Kemmer argumenta em favor de um princípio semântico que é crucial para a natureza da reflexividade e da medialidade. Esse princípio, ainda mais abrangente que a noção de afetação do sujeito, baseia-se numa escala ao longo da qual é possível situar a reflexividade e a medialidade não apenas como categorias se-mânticas intermediárias de transitividade entre eventos de um e de dois participantes, mas também como categorias distintas uma da outra. O esquema abaixo representa essa escala.Evento de dois participantes Evento reflexivo Evento médio Evento de um participante+ –

Grau de transitividade dos participantesGrau de distintividade dos participantes

Um evento de dois participantes se caracteriza cognitiva-mente pela existência de dois distintos participantes preenchen-do cada qual uma função semântica numa interação ou relação assimétrica, como é o caso típico das construções de voz ativa e passiva. Embora o evento reflexivo e o médio evoquem, como no evento de dois participantes, dois papéis semânticos separa-dos, estes convergem para uma única entidade referencial. Em virtude dos distintos papéis que evocam, os eventos reflexivo e médio denotam relações internamente complexas, mas o primei-ro implica uma diferenciação cognitiva da entidade referencial em subpartes discretas, enquanto o segundo prescinde dessa diferenciação; desse modo, o evento médio está mais distante do evento de dois participantes que o reflexivo. Aplicado o parâ-

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metro da distintividade dos participantes, obtém-se a seguinte tipologia:relação assimétrica entre o predicado e dois participantes

relação simétrica entre o predicado e dois participantes

relação do predicado com um participante

Voz ativa Voz passiva

Voz reflexiva Voz média Voz impessoal

Para finalizar, uma breve reflexão sobre a questão do grau em que aspectos relevantes da descrição de um fenômeno es-tejam próximos ou distantes do modo tradicional de descrição das gramáticas puramente prescritivas em uso no ensino escolar. Um modo seguro de responder a essa questão é afirmar que os tipos de construção de voz no português não se identificam fun-cionalmente, mas constituem, na verdade, diferentes formas de expressão que se acham à disposição do usuário para o exercício de diferentes funções semânticas e pragmáticas. Outro aspecto relevante é o de que os diferentes tipos de construção de voz não constituem categorias discretas, mas fenômenos lingüísticos escalares, contínuos, tendo por referência um modelo prototípico, do qual se afastam mais ou menos.

as gramáticas normativas só teriam a ganhar com um enfoque similar, pois habilitariam o aluno a descobrir na na-tureza complexa das categorias lingüísticas um cruzamento de traços formais e funcionais em detrimento da caracterização em geral dicotômica e, por isso mesma, pouco explícita na escolha de parâmetros de análise que em geral permeia as gramáticas escolares.

Abstract According to Givón (1981), the typological cha-racterization of passive involves three functional domains: clausal topic assignment, impersonali-zation and de-transitivization. This paper´s main objective is to provide a scalar, non-discrete cha-racterization to the different voice constructions available in Portuguese grammar on the basis of those three functional domains.

Keywords: passive voice, impersonal voice, mi-ddle voice, topicality.

Roberto Gomes Camacho

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 1�1-200, 2. sem. 2006

ressonância e graus de transitividade na conversação

espontânea em portuguêsMaria Elizabeth Fonseca Saraiva

Recebido 29, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

Resumo:Este texto tem por objetivo examinar e quantificar o grau de transitividade (THOMPSON & HO-PPER, 2001) de enunciados ressoantes, isto é: enunciados proferidos por interlocutores diferentes em que se estabelece uma relação de mapeamento tanto estrutural quanto lexical. A análise é nor-teada por princípios da abordagem funcionalista, em seu modelo norte-americano.

Palavras-chave: ressonância; transitividade; subjetividade.

Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

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1 – A noção de ressonânciaNeste ensaio, dou prosseguimento ao estudo das resso-

nâncias na conversação espontânea em português, iniciado em Saraiva (2005). Para desenvolvimento dessa análise, convém esclarecer que Du Bois (2001) propõe um novo modelo no trata-mento da língua em uso, denominado por ele Sintaxe Dialógica. Considerando tal abordagem como um ramo da Sintaxe Conven-cional e não como um modelo alternativo, o lingüista enfatiza o papel dos enunciados em que se instaura a ressonância como o reflexo mais transparente do envolvimento estabelecido entre os interlocutores no calor da interação dialógica. Nos momentos de envolvimento intenso, os falantes constróem seus enunciados reutilizando recursos, como por exemplo os léxico-estruturais, que acabaram de ser usados por seus parceiros de diálogo. Nas palavras de Du Bois, estabelece-se uma relação de mapeamento entre o enunciado do primeiro falante, que funciona como ma-triz, e o do segundo, que o explora para efeitos de ressonância. Dessa forma, a ressonância é uma propriedade de enunciados produzidos por falantes diferentes em situação de interação dialógica. É um fenômeno pelo qual um falante explora padrões utilizados por seu interlocutor, para reutilizá-los em sua fala, fazendo emergir “afinidades” em diversas dimensões da forma e do significado. Tais “afinidades” são, portanto, ativadas em contexto, no uso real da língua.

A título de exemplificação, considerem-se os dados grifados a seguir: 1

(1) (L1 e L2 conversam sobre roupa)L1 – mas será que combina?eu acho que não né?L2 – ah não... nada a ver...L1 - nada a ver...

(2) (L1 e L2 estão vendo fotos)L1 – qual que ocê quer ver primeiro...(...)2

vão vê das paisagens...L2 – nó que lin::do né?L1 – nossa ficou lin::do...L2 – nossa essas andorinhas aí tão maravilhosas...

Em (1) e (2), observa-se que as recorrências destacadas evi-denciam uma concordância entre os pontos-de-vista dos locuto-res. Porém as ressonâncias se prestam a inúmeras outras funções discursivas (discordância, retificação, ironia, humor, estabeleci-mento de contato etc.), como se pode verificar a seguir:3

1 os dados deste traba-lho foram extraídos de conversações espontâ-neas que fazem parte do banco de dados do GREF – Grupo de Estu-dos Funcionalistas da Linguagem (CNPq), por mim coordenado. as normas de transcrição seguiram as sugestões do Projeto NURC/SP (CASTILHO; PRETTI, 1986, p. 9-10). Os inter-locutores são falantes do português do Brasil, de nível universitário completo, que apresen-tam alto grau de inti-midade.Nos exemplos, cada li-nha corresponde a uma unidade entonacional (UE). A divisão em UEs das conversações anali-sadas foi efetuada por Beatriz da Matta. Agra-deço a Andressa Jorge Sarsur a colaboração no levantamento dos dados.2 Nos exemplos, ado-tou-se a convenção de usar para trechos que foram retirados por não serem relevantes para a ilustração.3 Para uma análise de-talhada das funções discursivas das resso-nâncias, consulte-se a dissertação de Beatriz da Matta, por mim orien-tada: Ressonâncias léxico-estruturais na conversação espontânea em português (FALE/UFMG, 2005).

Ressonância e graus de transitividade na conversação espontânea em português

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(3) (L1 e L2 estão vendo fotos)L1 – mostrou só a metade...e você descendo de rappel heim?

morreu de medo...L2 – morri nada...

(4) (L2 e L2 conversam sobre feiras, exposições, etc.)L1 – agora eu tô querendo ir é na Casa Cor...L2 – ah eu não vou não...

(Casa Cor eu não vou não...)L1 - ah::eu adoro ir...

(5) (L2 e L2 conversam sobre festas)L1 – de quem é a festa?L2 – aniversá / aniversário de uma / um amigo da minha amiga...

e aí ela me colocou lá na porta...L3 - te colocou lá na porta?

cê vai ficar de porteiro hoje? ((rindo))L2 - não não... ela colocou o meu nome na porta...

aí eu posso entrar...

Em (3) e (4), os mapeamentos são efetuados com a finalida-de de salientar a divergência de opiniões. Já em (5), a ressonância de L3 é criada para manifestar humor.

Retomada a noção de ressonância, na próxima seção sinte-tizam-se alguns dos resultados de Saraiva (2005), que servirão de base para o prosseguimento desta pesquisa.

2 – Síntese dos resultados de Saraiva (2005) e propostas deste trabalho

É necessário salientar que, em Saraiva (2005), objetivou-se descrever os tipos de estrutura detectados nos conjuntos forma-dos pela matriz e o enunciado ou enunciados que a ressoam, presentes num trecho de conversação espontânea do portu-guês do Brasil, assim como verificar o comportamento dessas unidades com referência à “Estrutura Argumental Preferida”, tal como formulada em Du Bois (2003). Para tanto, foi adotada a noção tradicional de construção intransitiva, transitiva (que inclui as bitransitivas), copulativa etc., que orientou a análise de Dubois.

a seguir apresento, de modo sintético, os resultados obtidos com referência aos tipos de construção, pois deverão servir de ponto de partida para o desenvolvimento da presente análise:

Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

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Tabela 1 – Resultados relativos aos tipos de construção das matrizesConstruções %A – Frases feitasB – Com verbo ser impessoalC – CopulativasD – Com verbo ter impessoalE – IntransitivasF – Transitivas

1572241537

total 100

Tabela 2 – Resultados relativos aos tipos de construção dos enunciados ressoantes

Construções %A – Frases feitasB – Com verbo ser impessoalC – CopulativasD – Com verbo ter impessoalE – IntransitivasF – Transitivas

3514161844

total 100

Uma primeira observação sobre as tabelas I e II refere-se ao fato de que, como é de se esperar, os mesmos tipos de cons-trução obtidos nas matrizes se fizeram presentes nos enunciados ressoantes. Como ilustração, podem ser citadas as frases feitas, exemplificadas tanto em (1) como nos casos denominados openidioms4 (expressões idiomáticas abertas), nos quais há uma va-riável a ser preenchida no contexto de uso. A expressão Sabe x, usada em português para introduzir novos referentes na fala, é um desses casos. O referente assim introduzido costuma ser retomado nos enunciados subseqüentes, tornando-se tópico da conversação. observe-se:

(6) (Conversa sobre restaurantes)L1 – e... sabe Graciliano?L2 – Graciliano não conheço...

bom?L1 – é... médio...

os doces são excelentes...bom demais...

Contudo, para os próximos passos da pesquisa a serem relatados à frente, o mais relevante é a conclusão, inicialmente obtida com base nas tabelas I e II, de um predomínio das estrutu-ras tradicionalmente consideradas transitivas tanto nas matrizes (37%) quanto nos enunciados ressoantes (44%).

Em contraponto a essa conclusão, há a possibilidade de um outro olhar sobre os resultados: computando o número de argumentos nucleares disponíveis para a ocupação de partici-pantes do discurso, verifica-se que, em C, D e E, há apenas um 4 Cf. THOMPSON; HOP-

PEr (2001).

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argumento nessa situação, diferente de F, que apresenta dois ou mais.5 Isso significa que, nas matrizes, 41% das estruturas portam apenas um argumento nuclear, em contraste com 37% das estruturas com dois ou mais argumentos. Nos enunciados ressoantes também há o predomínio de construções com uma só posição argumental: 48%, em confronto com 44% de estruturas com duas ou mais posições argumentais nucleares.

A partir dessa perspectiva, neste texto, objetiva-se retomar conjuntos de enunciados em que se instaura a ressonância para analisá-los com base em outra concepção: os parâmetros de transitividade propostos por Hopper & Thompson (1980).

3 – Graus de transitividade dos enunciados ressoantesComo se sabe, Hopper & Thompson (1980) consideram a

noção de transitividade sob um prisma diferente, como uma propriedade da oração na sua totalidade, focalizando traços referentes tanto ao verbo quanto a seus argumentos. Conforme a presença ou ausência desses traços, as estruturas instanciadas em enunciados efetivamente produzidos são classificadas como mais ou menos transitivas, distribuindo-se em diferentes pontos de um continuum, de uma escala de transitividade.

Tendo em vista que o texto Transitivity in grammar and discourse, no qual essa concepção é detalhada, já se tornou um clássico na literatura funcionalista, no momento vou me ater à apresentação do quadro abaixo, no qual são apresentadas as propriedades relevantes para a análise, sem me preocupar com sua explicação.

Quadro 1 - Parâmetros de transitividadeoração mais transitiva Menos transitiva

a) Participantesb) agentividadec) Voliçãod) Cinesee) aspectof) Pontualidadeg) Afirmaçãoh) Modalidadei) Afetação do objetoj) Individuação do objeto

dois ou mais participantesmais agentemais volitivoaçãoperfectivopontualafirmativorealisobjeto totalmente afetadoobjeto mais individualizado

um participantemenos agentemenos volitivonão-açãonão-perfectivonão-pontualnão-afirmativoirrealisobjeto não-afetadoobjeto não-individualizado

Fonte: HOPPER, P.; THOMPSON, S. (1980, p. 252 – com adaptação na ordem dos traços e tradução de minha responsabilidade)

Merece destaque, nessa abordagem, o fato de que a pre-sença ou ausência de um segundo participante, como o objeto direto, é apenas um dos traços considerados dentre os dez que compõem a noção de estrutura transitiva típica. Sendo assim, em princípio, é possível encontrar-se, no discurso real, estrutura sem objeto que, embora não seja prototípica, deva ser alocada na

5 os casos de dois argu-mentos nucleares são os das estruturas bitran-sitivas, as quais foram catalogadas junto com as transitivas diretas e as transitivas indiretas da tradição gramatical.

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escala dentre as portadoras de alto grau de transitividade, isto é, aquelas com seis ou mais traços positivos. A frase “Ele saiu cedo”, por exemplo, seria uma dessas orações, apresentando sete marcas positivas. apenas os traços a, i e j não se aplicam nesse caso.

Por outro lado, em “Ele tem uma casa de campo muito es-paçosa”, a presença de um objeto representado por entidade bem individualizada não garante alto grau de transitividade para a estrutura, de acordo com os parâmetros do Quadro I. Essa ora-ção ganha marcas negativas para as propriedades b, c, d, e, f e i, totalizando, pois, apenas quatro traços positivos. assim, coloca-se dentre as de baixa transitividade no continuum mencionado.

Considerando a concepção acima e os percentuais de ocorrência de construções com um só argumento, observados nas tabelas I e II, surgiu a questão dos graus de transitividade dos conjuntos formados pelas matrizes e enunciados ressoantes, conforme anteriormente asseverado.

Na busca de resposta para essa indagação, examinou-se um trecho de conversação espontânea em que foram detectadas 169 unidades entonacionais (UEs) ressoantes.6 Como existem UEs não-oracionais, assim como há UEs que englobam mais de uma oração, fez-se necessário identificar e quantificar as orações daquelas UEs. Foram identificadas 203 orações, que passaram a ser analisadas com base nas propriedades do Quadro I. Deve-se esclarecer, no entanto, que foram excluídas dessa contagem as expressões idiomáticas (de sentido metafórico). Porém as frases feitas com posições abertas (openidioms), como a exemplificada em (6), foram computadas.

A seguir, explicitam-se outras decisões metodológicas tomadas na condução da análise. Um primeiro passo consistiu em separar as orações com um (ou menos de um7) participante daquelas com dois ou mais, de acordo com a proposta de thomp-son & Hopper (2001). os dois casos vêm ilustrados, respectiva-mente, em (7) e (8):

(7) (L1 avalia a possibilidade de levar o filho pequeno durante uma viagem de curta duração)L1 – mas eu vou ficar esgotada né?L2 –. vai..

(8) (L1 e L2 conversam sobre a construção de uma casa)L1 – ah::... ela tá fazendo uma casa lá?L2 – B. tá fazendo uma casa lá... tá...

Com base nos argumentos apresentados em Saraiva (2001), os objetos não-referenciais, dentre os quais se situam os obje-tos incorporados, não foram contabilizados como um segundo participante. A mesma decisão foi estendida, ainda, aos objetos oracionais com relação à sentença na qual se encaixam. Embora tais objetos tenham sido considerados na contagem e análise

6 a partir deste momen-to, sempre que fizer refe-rência a enunciados res-soantes, estarei fazendo menção aos conjuntos constituídos pela matriz e sua(s) ressonância(s), uma vez que, para esta pesquisa, são esses con-juntos que interessam.7 os dados com menos de um participante, no corpus, são ilustrados pelo verbo ter impes-soal acompanhado de SN não-referencial (de acordo com a acepção de GIVÓN, 1984, p. 389-390).

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das orações, não foram levados em conta como um segundo participante da oração que os domina.8 ambos os casos são exemplificados, respectivamente, em (9) e (10) abaixo:

(9) (Comentários sobre uma moça empenhada em seu trabalho)L1 – eu já vi ela vendendo biquíni também né?...L2 – é... ela vende tudo...L1 – ela é muito esforçada...L2 – muito esforçada...

(10) (Observações sobre uma criança com ciúme da irmãzinha)L1 – e ele só quer ficar no colo?L2 – só quer ficar no colo...

(...)ele vê a amanda no colo...aí quer ficar no colo..

.adotados os critérios mencionados, procedeu-se à quan-

tificação das orações com um (ou menos de um) participante e as com dois ou mais, obtendo-se estes resultados:(11) a) orações com um participante (ou menos de um): 162, ou seja,

79,8%.b) orações com dois ou mais participantes: 41, ou seja, 20,2%.

a etapa seguinte consistiu na análise das orações de cada um dos grupos de (11) com referência também aos demais tra-ços do Quadro I. As construções de (11)a) apresentaram o perfil registrado na tabela III:

Tabela 3 – Orações com um (ou menos de um) participantetraços de alta transitividade Número de orações Porcentagem (%)

sete 0 0,0seis 9 5,6

cinco 15 9,2quatro 9 5,6

três 20 12,3dois 64 39,5um 17 10,5zero 28 17,3total 162 100,0

as orações com um participante, embora não possam ser prototípicas, em princípio podem acumular até sete traços positivos de transitividade, conforme salientado anteriormente. todavia, dos 162 casos da tabela III, nenhum atingiu esse núme-ro. Em III, observa-se, ainda, que apenas 9 estruturas obtiveram seis traços positivos, ou seja, somente 5,6% das orações podem ser caracterizadas como construções portando alto grau de tran-

8 Cf. THOMPSON; HO-PPEr (2001) para as ra-zões desta decisão.

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sitividade. Os demais 94,4% distribuem-se nos diferentes pontos da escala que são considerados de baixa transitividade. Mais ainda: 67,2% situam-se nos extremos de baixa transitividade, isto é, apresentam dois ou menos de dois traços positivos.

O exame das 41 construções com dois participantes (ou mais) revelou a seguinte composição dos parâmetros do Qua-dro I:

Tabela IV – Orações com dois (ou mais) participantestraços de alta transitividade Número de orações Porcentagem (%)dez 5 12,2nove 0 0,0oito 6 14,6sete 2 4,9seis 11 26,8cinco 3 7,3quatro 7 17,1três 3 7,3dois 4 9,8um 0 0,0total 41 100,0

Na Tabela IV, verifica-se que apenas 12,2% dos dados ana-lisados se caracterizam como estruturas transitivas prototípicas, ou seja, apresentam marcas positivas para os dez parâmetros considerados. outros 46,3% também se alocam em posições de alta transitividade (de seis a nove propriedades positivas). Fi-nalmente, 41,5% se distribuem, na escala, nos pontos de baixa transitividade.

Considerando as 203 orações analisadas, obtêm-se estes percentuais:

(12) a) Orações revelando baixa transitividade: 83,7% (170 orações).b) orações com alta transitividade: 16,3% (33 orações).

Essas diferenças são significativas e nos apontam uma forte tendência dos enunciados ressoantes: a tendência a portarem baixo grau de transitividade.

4 - ConclusãoRefletindo sobre os resultados desta pesquisa, surgem

considerações que se relacionam também com outros trabalhos. assim, em Da Matta (2005), demonstrou-se que as ressonâncias léxico-estruturais em diálogos espontâneos do português apre-sentam uma freqüência geral de 24,5%. Considerando a noção de marcação explorada por Givón (1995, p. 64-65), pode-se afir-mar que esse percentual revela que os conjuntos de enunciados ressoantes ocupam uma posição de figura sob o pano de fundo daqueles mais freqüentes, ou seja, não ressoantes. Nas palavras

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de Givón (1995, p. 64), “salient experience is clearly the less fre-quent figure, standing out on the more frequent ground.”

Esse caráter dos enunciados ressoantes, marcado em termos de freqüência, se apresenta em sintonia com sua caracterização formal e comunicativa: o mapeamento de padrões e estruturas efetuado em tais enunciados, e que lhes confere proeminência discursiva, é um índice iconicamente motivado dos momentos de maior envolvimento entre os interlocutores.

Diante disso, pergunta-se: o que motiva o resultado de um predomínio maciço de construções menos transitivas nesses enunciados, conforme se lê em (12) e a tendência captada expli-cita? Uma possível explicação para o fato pode ser aventada com base em thompson & Hopper (2001): os recursos gramaticais explorados pelos falantes nesses casos são um reflexo do que estão fazendo quando conversam com amigos e conhecidos. Nos termos desses lingüistas, isso é um reflexo da subjetivi-dade no uso diário da língua. Nesse contexto sócio-cultural, parece que os interlocutores estão mais interessados em revelar seus pontos-de-vista, seus valores, como descrevem e avaliam situações, pessoas, comportamentos etc. Enfim, na conversação espontânea em geral e, de um modo especial, nos momentos em que a ressonância se estabelece, enquanto interlocutores, nossa preocupação central se volta “to display our identities, convey who we are to others, express our feelings and attitudes, and check our views of the world with our community-mates” (THOMPSON; HOPPER, 2001, p. 53).

Essa perspectiva deverá nortear minhas próximas inves-tigações sobre a tendência dos enunciados ressoantes a porta-rem baixo grau de transitividade, conforme registrado neste ensaio.

AbstractThis paper aims at examining and quantifying the degree of transitivity (Thompson & Hopper (2001)’s concept) of ressonant utterances, that is, utterances produced by different speakers betwe-en which is established a mapping relation, both structural and lexical. The analyses is guided by principles from the North American Functiona-lism.

Keywords: ressonance; transitivity; subjectivy.

Maria Elizabeth Fonseca Saraiva

Niterói, n. 21, p. 1�1-200, 2. sem. 2006200

Referências

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 201-21�, 2. sem. 2006

aspectos semântico-cognitivos da intensificação

JoséRomeritoSilva

Recebido 25, jun. 2006/Aprovado 25, ago. 2006

ResumoO presente trabalho tem por objetivo focalizar, especificamente, os processos de intensificação no que se refere aos seus aspectos semântico-cog-nitivos. Para isso busca os subsídios teóricos da semântica cognitiva, segundo a qual a linguagem codifica os esquemas cognitivos estruturados a partir de nossa experiência com a realidade. Essa codificação reflete combinações metafóricas exis-tentes entre domínios de natureza mais “concreta”, adquiridos do modo como conceitualizamos nossa relação com o mundo, e outros de natureza mais abstrata. Nessa perspectiva, admite-se que o recur-so à intensificação, em boa medida, constitui uma construção metafórica, operada pelo estabeleci-mento de relações analógicas com noções oriundas de determinados conceitos de base mais “concreta”, como quantidade, tamanho/dimensão, localização (horizontal ou vertical), peso/força etc.

Palavras-chave: intensificação; semântica cog-nitiva; metáfora.

JoséRomeritoSilva

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IntroduçãoA intensificação, ao lado da transitividade, da predicação,

da negação e de outros, figura entre os universais semântico-lingüísticos (LEHMANN, 1991; MARTIN, 2003; KEMMER, 2003). Não há dúvida de que se trata de uma das estratégias discursi-vas mais utilizadas nos processos de interação verbal, dos mais simples e descontraídos, como é o caso de uma conversa íntima, àqueles mais ritualizados e formais, como o discurso acadêmico, por exemplo.

No entanto, embora reconheça o caráter funcional – i.e. discursivo-pragmático – da intensificação (e estou considerando esse aspecto em meu trabalho de doutoramento), pretendo, aqui, focalizá-la exclusivamente no que se refere aos aspectos semân-tico-cognitivos, advogando seu caráter metafórico, cujas bases se assentam nas experiências físico-sensoriais, psicoafetivas e socioculturais humanas, em que colaboram processos de natu-reza cognitiva. Utilizo como referencial teórico os postulados da semântica cognitiva, conforme defendidos por pesquisadores como Lakoff e Johnson (1999, 2002), Tomasello (2003), Croft e Cruse (2004), entre outros.

O material de análise é extraído do Corpus Discurso & Gramática (FURTADO DA CUNHA, 1998) – doravante, Corpus D&G, constituído de textos orais e escritos produzidos por alunos dos níveis fundamental e médio e por universitários. Recorro, ainda, a textos avulsos colhidos em situações reais de comunicação, principalmente jornais e revistas, entre outros.

Breves considerações teóricasLakoff e Johnson (1999, 2002) postulam que o pensamento

tem base corporal. Isso porque é mediante o corpo que o indi-víduo se relaciona consigo mesmo, com o mundo físico e com o ambiente sociocultural ao seu redor. E é, portanto, através dessa interação que constrói os conceitos, os quais, por sua vez, são traduzíveis via linguagem. Logo, não há como negar a relação intrínseca existente entre experiência, pensamento e linguagem (cf. MARMARIDOU, 2000).

Para esses pesquisadores, o grande equívoco da tradição filosófica ocidental tem sido a crença de que a razão é inde-pendente do corpo, e que é essa autonomia que nos caracteriza como seres humanos, distintos das outras formas de vida. Ao contrário, o nosso sistema conceptual emerge de nosso contato corporal com o mundo que nos cerca. Esses conceitos nos per-mitem caracterizar mentalmente as categorias e raciocinar sobre elas. Tais categorias são parte de nossa experiência, isto é, são parte daquilo em que nossos corpos e cérebros estão engajados em nossa relação com o ambiente biofísico e sociocultural.

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o postulado da relação entre corpo e mente (ou da mentecorporificada) evidencia por que uma enorme quantidade de conceitos abstratos emerge de noções “concretas”, tendo por base a dimensão corporal. Lakoff e Johnson denominam esse fenô-meno de metáforaprimária, afirmando que estas são automática e inconscientemente adquiridas na vivência comum do cotidiano desde a infância.

É preciso esclarecer, de antemão, que o conceito de metáfora tomado neste trabalho não se alinha à tradição clássica, na qual a metáfora é vista como uma figura de estilo, ou seja, como um desvio da linguagem comum e denotativa. Ainda conforme essa perspectiva, a metáfora figura entre outras possibilidades estilísticas da língua – os tropos –, mais reservadas para as expressões poético-literárias, em que o falante recorre, criativa e inusitadamente, aos efeitos especiais da linguagem para fins estéticos e afetivos.

Aqui, ao contrário, o recurso à metaforização é considera-do um fenômeno participante do discurso cotidiano, presente tanto nas interações mais corriqueiras e informais como nas comunicações mais formalizadas. Significa dizer que a metáfora recobre uma quantidade considerável de categorias conceituais utilizadas nas diversas formas de interlocução da convivência social, emprestadas de noções que têm como fundamento signi-ficados construídos a partir das experiências do indivíduo com o ambiente circundante.

Portanto, adotando a idéia de que o pensamento é de na-tureza eminentemente metafórica, elimina-se assim a clássica distinção entre linguagem comum e linguagem literária, bem como a idéia de linguagem figurada como uma realização lin-güística especial. Em vez disso, considera-se a figuratividade como um fenômeno central no processamento cognitivo, espe-lhada em todas as manifestações da fala cotidiana (LAKOFF; JOHNSON, 2002).

Sem querer deter-me nas discussões teóricas em torno da metáfora, esta pode ser definida, grosso modo, como uma cons-trução cujo conteúdo resulta da interação entre dois domínios conceituais. Quer dizer, uma noção é concebida em termos de outra. Um ponto importante nessa perspectiva é que a metáfora é, antes de tudo, uma operação cognitiva. Significa que, apesar de se realizar lingüisticamente, a metáfora é, por natureza, uma estrutura conceitual, no sentido de que, em sua formação, operam-se correspondências de relações entre domínios, repre-sentadas no sistema conceitual, as quais se convencionalizam entre os membros de uma comunidade de fala (CROFT; CRUISE, 2004).

Uma evidência disso é que, mesmo nas comunicações de caráter técnico-científico, em que se espera uma linguagem precisa e denotativa (“literal”), as metáforas ainda podem ser

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encontradas em abundância. Basta uma rápida observação a um texto como este para que isso possa ser percebido claramente: vejam-se neste pequeno parágrafo, por exemplo, palavras como caráter, espera, podem, texto, claramente etc., as quais procedem de alguns conceitos básicos de nossa experiência.

O processo de metaforização se verifica, por exemplo, no deslocamento de idéia espacial a domínio temporal do verbo ir, como se pode ver abaixo:

(01) “... todo veraneio que a gente vai pra lá [casa de praia]... a gente vai pescar lá...” (Corpus D&G, 1998, p. 370);

(02) “... porque esses rapazes de hoje não pensa no amanhã que vai ser.” (Corpus D&G, 1998, p. 363).

Note-se que, na primeira ocorrência em (01), ir tem um valor genuinamente espacial, no sentido de movimento do cor-po de um lugar a outro, confirmado pelo locativo anafórico lá; na segunda – ainda no mesmo trecho –, acumula tanto a idéia de deslocamento espacial como de ação habitual; na terceira menção, no fragmento (02), esse verbo assume por completo a condição de marcador temporal, isto é, como auxiliar indicativo de futuro do verbo ser, o que representa uma noção bastante abstratizada em relação às anteriores.

Assim, parte do sistema semântico-cognitivo de base físi-ca é transferida, analogicamente, para a formação do universo conceptual mais abstrato das construções gramaticais. Compar-tilhando dessa mesma idéia, Slobin (1980) admite que as línguas parecem expressar noções abstratas, por extensões metafóricas, da experiência concreta do comportamento sensorimotor.

Assumindo o mesmo ponto de vista, Heine (1994) afirma que a emergência de estruturas lingüísticas deriva de deter-minados processos cognitivos básicos, através dos quais os conceitos gramaticais são expressos em termos de algumas experiências humanas básicas, relacionadas ao modo como nós vemos o mundo, a onde as coisas estão localizadas, a como elas se inter-relacionam, a como as ações são realizadas, e assim por diante.

Confirmando essa perspectiva teórica, Marmaridou (2000, p. 61) sustenta que “[...] o sentido emerge de nossas experiências corporais e, dado que nossas experiências são física e cultural-mente motivadas, parece plausível assumir que o pensamento, compreendido como uma estrutura cognitivo-cultural, modela a linguagem.” (tradução nossa)

E acrescenta mais adiante:[...] já que o sentido surge de uma compreensão da experiência e já que ela é simbolicamente expressada através de uma forma lingüística, segue-se que a forma lingüística expressa como os seres humanos entendem a experiência, ou, alternativamente, como eles conceptualizam a realidade. (MARMARIDOU, 2000, p. 61, tradução nossa)

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Sendo as construções lingüísticas uma codificação sim-bólica do modo como conceptualizamos, através de operações cognitivas, as coisas (categorias) com as quais interagimos fisicamente, o contato corporal projeta-se imperativamente na formação de conceitos mais abstratos. Assim, estes são reflexos metafóricos das noções adquiridas pela experiência.

Baseado nesse postulado, advogo que, nos processos de intensificação, estabelece-se uma conexão analógica entre o conteúdo intensivo significado e outro de natureza mais “con-creta”, resultante da nossa relação somática com o ambiente em que vivemos. Nesse caso, por exemplo, o intensificador muito emerge do esquema imagético de quantidade; -inho, da concepção de tamanho/dimensão; a repetição lexical, da “imitação” icônica de quantidade e tamanho, ao mesmo tempo;ultra- e super-, das idéias de localização horizontal e vertical, respectivamente; a tonicida-de prosódica – como em “... um HOrror!... [filmes] de terror eu DEtesto!” (GONÇALVES, 2003, p. 48) – exprime a metáfora de força muscular, uma vez que a sobrecarga sonora na sílaba das palavras relaciona-se a peso, o que demanda esforço físico; bem e terrivelmente apontam para as respectivas noções básicas de estado/sensação psicoafetivo(a) de prazer e medo.

É importante esclarecer, no entanto, que essa experiência física do indivíduo com o meio não pode prescindir do convívio social para o estabelecimento dos conceitos. Na verdade, o ponto de vista cultural sobre o mundo parece exercer um papel deci-sivo no processamento cognitivo e na conseqüente codificação lingüística. Por outro lado, não obstante a isso, pode-se admitir que há uma relativa recorrência dos mesmos padrões de metafo-rização nas estratégias de atribuição de intensidade. Quero dizer: em geral, aproveitam-se noções derivadas, especialmente, das idéias de distância espacial (horizontal ou vertical), quantidade, tamanho e peso.

Se o recurso à intensificação tem como fundamento o em-préstimo de noções adquiridas a partir de nossas experiências corporais com o contexto biofísico, sociocultural e psicoafetivo em que estamos envolvidos, então é válido postular que é pos-sível haver um padrão semântico-cognitivo mais geral (ou uni-versal) para a formação dos conceitos intensivos. Significa dizer que, apesar das peculiaridades lexicais e gramaticais existentes em cada língua, o fenômeno da intensificação se manifesta translingüisticamente adotando mais ou menos os mesmos princípios nocionais.

É por isso, por exemplo, que se observam praticamente as mesmas idéias fundantes na expressão de intensidade, não obstante à diversidade tipológica e às distâncias geográficas ou cronológicas verificadas entre as línguas. Isto é, para exprimir um conteúdo intensivo, os falantes recorrem basicamente às

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mesmas noções de quantidade, localização, tamanho, força ou alguma sensação físico-psicológica impactante.

Evidências semântico-cognitivas da intensificaçãoDo ponto de vista formal, a intensificação pode ser expressa

das mais diversas maneiras:1. no plano fonético – através de traços supra-segmentais,

em que se alonga e/ou se imprime maior tonicidade a um componente sonoro. ainda um outro recurso acústico é o que Cagliari (apud GONÇALVES, 2003) chama de “fala silabada”, na qual o falante produz a escansão de sílabas. Exemplifico com estes dois fragmentos textuais colhidos do autor citante (p. 48, 50, respectivamente):

(03) “E por falar nisso, a Dona Dalva fez ontem uma carne assada gosTOOOOOsa...”;

(04) “O que? Adoro ele [Thiago Lacerda], que ele é lindo demais, que é GA-TÉ-SI-MO!”.

2. no plano lexical – com carga intensiva no próprio lexe-ma:

(05) substantivo: medo < pavor; raiva < ódio, buraco < rombo, casa < mansão;

(06) adjetivo: bonito < lindo, pobre < miserável, bravo < furioso, frio < gelado;

(07) verbo: pedir < implorar; falar < tagarelar, gastar < esbanjar, abrir < escancarar;

(08) advérbio: pouco < muito < bastante < demais.

3. no plano morfológico – por meio da afixação:

(0�) supermercado < hipermercado;

(10) “... é uma invenção caipira do caipiríssimo José Aparecido de Oliveira, por sua vez cupincha do caipirésimo Itamar Franco...” (SABINO, M. Veja, 24/07/1996).

4. no plano sintático – mediante combinação de formas sintagmáticas/oracionais ou pela repetição da mesma base lexical:

(11) “Eu acho isso que o namoro de hoje está muito avançado demais...” (Corpus D&G, 1998, p. 363);

(12) “Ele [o presidente Lula] passou a acreditar em si mesmo muito além do que seria razoável.” (TOLEDO, R. P. de. Veja, 13/07/05, p. 134);

(13) “a gente anda, anda, anda. Mas não vende nada.” (isto É, 21/01/1998).

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5. no plano textual – quando uma determinada palavra, expressão ou sentença é repetida enfaticamente ao longo dos segmentos textuais, com o fim de conferir “peso” a uma idéia e realçá-la, ou, ainda, por meio da gradação, revelada numa dada seqüência textual. Vejamos os frag-mentos que se seguem:

(14) “... Tudo foi dado a eles: o sacrifício de direitos, o sacrifício de milhões de empregos, o sacrifício de incontáveis empresas brasileiras, o sacrifício da legitimidade do congresso, o sacrifício do patrimônio nacional, o sacrifício da Constituição. E eles quebraram o país... liberando o valor do dólar em relação ao real. ou seja, desvalorizandoaindamaisoreal...” (FREITAS, J. de. FolhadeS.Paulo, 17/02/1998);

(15) “... o bicho não era um cão

não era um gatonão era um ratoo bicho, meu Deus, era um homem” (BANDEIRA, 1967).

6. Ainda um outro modo de exprimir intensidade é através de proposições indiretas ou de implícitos, cujo signifi-cado intensivo é extraído por inferência. Observem-se os trechos a seguir:

(16) “Quando eu tentei ouvir pela primeira vez o Pierrot Lunaire de Schoenberg senti um incômodo profundo.Nada, nem o mais selvagem Death Metal ou o Hard Core mais feio, sujo e malvado, se compara a [sic] devastação interior daquela composição.” (CAPISTRANO, P. Metropolitano, 15/04/2005, p. 2);

(17) “Frio, cruel e insensível. Se o mocinho é assim, imagina como são os bandidos.‘A Missão’ com Robert de Niro.” (istoÉ, 25/06/97, p. 137).

No fragmento (16), deduz-se que a composição PierrotLunaire, de Schoenberg, é infinitamente mais devastadora se comparada mesmo ao maisselvagemDeathMetalou ao Hard Core mais feio, sujo e malvado. No trecho (17), o que se depreende a partir da informação imagina como são os bandidos, tomando como base o que foi declarado antes, é que eles são bem piores (isto é: excessivamente mais frios, mais cruéis e mais insensíveis) do que o mocinho.

Fica, portanto, evidente que o recurso à intensificação nem sempre se processa de modo explícito, codificado diretamente por meio de uma expressão lingüística denotativa. Significa que, nesse caso, o falante conta com a capacidade dedutiva/inferencial do interlocutor para apreender o conteúdo intensivo significado, abstraindo-o de determinadas pistas deixadas no texto.

a motivação icônica observada nas estratégias de inten-sificação reside em sua dimensão metafórica, que tem como fundamento a percepção sensorimotora resultante de nossas

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experiências com o mundo físico e sociocultural, conforme abordado anteriormente. Explicando: a ênfase sonora, o alon-gamento silábico e os demais recursos de acréscimo estrutural representam, na verdade, uma analogia aos conceitos básicos de peso/força, quantidade, tamanho/dimensão, espaço/distância e sensações/estados bio-físicos ou psico-afetivos, derivados da relação corporal do indivíduo com o espaço, seres, objetos e/ou situações com que está em contato, numa tentativa de “imitar” expressiva-mente, a partir dessas noções, a idéia de intensividade (LAKOFF; JOHNSON, 2002).

Note-se que, no caso específico do português, uma quanti-dade considerável das formas intensificadoras emergem direta-mente dessas conceptualizações básicas. Quanto à transferência metafórica proveniente da idéia “+concreta” de peso/força, pode ser encontrada em palavras que exprimem essa noção, como pe-sado, potente, poderos(o)/amente, reforçado, forte/mente, insuportável/mente e similares, além daquelas expressas através da sobrecarga fonética (intensidade prosódica) já demonstradas anteriormente. Também pode ser percebida em expressões nas quais o falante imprime maior carga tônica (ou seja, “peso” sonoro) a uma de-terminada sílaba, para intensificar uma certa noção.1 Isso porque, do ponto de vista físico, as coisas mais pesadas são vistas com maior destaque em comparação com outras mais leves, uma vez que demandam maior esforço de nossa parte para segurá-las ou movê-las. além disso, elas se impõem como merecedoras de “consideração” especial, uma vez que se sobrepõem à nossa capacidade física, oferecendo resistência a sua manipulação ou remoção (os exemplos 1.(03) – gosTOOOOOsa – e 1.(04) – GA-TÉ-SI-MO –, na p. 8, ilustram bem isso).

Como o recurso à intensificação é um esforço de nossa parte em impor sobre o interlocutor o nosso ponto de vista sobre algo e convencê-lo quanto à validade de nossa argumentação, a sobrecarga fonética conferida ao item que queremos destacar funciona como uma espécie de suporte de poder à idéia/concep-ção que desejamos seja percebida como verdadeira, importante e digna de aceitação (cf. MARMARIDOU, 2000).

Com relação à metáfora de quantidade, observem-se pa-lavras/expressões analíticas intensificadoras como quanto, tão/tanto, muito, mais,2 demais, bastante, abastado, fart(o)/ amente, abundante/mente, copios(o)/amente, profuso/em profusão, pouco, menos, além da conta, de mão cheia, um bocado (de), umaporçãode, ou os sufixos -udo,-dor, -eiro(a)/-aria, além de outros, em que se incluem referências hiperbólicas numérico-quantitativas, cujos conceitos são construídos a partir do que é quantitativamente perceptível. Essa noção “concreta” é, portanto, transferida ana-logicamente para significar aquilo que nos parece além do seu estado entendido como normal.

1 Creio que seja esse (a sobrecarga sonora) um dos motivos pelos quais as formas em -íssimo, -ér-rimo, -ésimo são sentidas como mais intensivas do que suas “equivalentes” analíticas.2 Na verdade, mais (de magis) tem a mesma raiz de magno (gran-de), isto é, mag. Sendo assim, observamos a íntima relação entre as noções de tamanho e quantidade; quer dizer, o que é numeroso é tam-bém percebido como de maior dimensão/massa material.

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A metáfora de tamanho/dimensão pode ser encontrada em diversos exemplos. Entre eles estão as palavras exager(o)/ad(o)/amente, grand(e)/ioso, gigante/sco, imens(o)/amente, enorme/mente, ampl(o)/amente, larg(o)/amente; alt(o)/amente, vasto, grosso, o radical magno (formador de palavras, como magnífico, magnitude, maior, major/itariamente), baixo, pequeno, menor, diminuto; também os prefi-xos mega-, macro-, maxi-, micro- e mini-; os sufixos -aço, -inho e -ão;3 a forma senhor(a),4 ou expressões como demontão,ummontede, umamontanha/pilhade. Todas essas formas, que são utilizadas para mencionar grandezas em referentes “concretos”, são aproveita-dos por similaridade conceitual para intensificar noções mais abstratas de propriedades, valores (em substantivos/adjetivos) e circunstâncias (em verbos/advérbios). Outra amostra desse conceito é bastante evidente nos casos de alongamento formal, seja no exagero da extensão silábica (isto é, no prolongamento sonoro) ou nos exemplos em que se majora a codificação mórfi-ca e/ou sintática, através do acréscimo/repetição de morfemas presos ou dependentes. Nesse caso, ocorre, ao mesmo tempo, a metaforização das noções de quantidade etamanho, pelo fato óbvio de ter havido acréscimo tanto do número de formas utilizadas como no conseqüente crescimento estrutural da expressão. Os exemplos a seguir corroboram as idéias defendidas nesses dois últimos parágrafos:

(18) “resultado mais efetivo ainda traria o anúncio de que o capturado fora o próprio Saddam... Uma mentira a mais, uma a menos, não faz diferença.” (TOLEDO, R. P. Veja, 10/09/2003, p. 122.);

(19) “Se tanto falaram nos sósias, por que não ir atrás deles? A captura de um sósia do ex-ditador [Saddam Hussein], de perfil igualmente rechonchudo, o bigodão espesso e o jeito absurdamente bonachão, para alguém com as mãos tão manchadas de sangue,...” (ibidem);

(20) “Uma noite, by Olimpo, dasmais agradáveis... Quesaudade! adroaldo Carneiro foi – queridíssimo, Aladim! E Tony Glamour, metiiiido, todo pé-de-alface!... Betíssima almeida, linda! Linda! Linda! E rita Macedo – que astral, que charme!... Henrique Fonseca e Terezérrima,...”E muito, muito mais.” (SABOYA, C. de. Diário de Natal, 09/10/2004, p. 3).

Observe-se que, em (18), o primeiro mais – reforçado por ainda – revela intensificação, enquanto o segundo denota inequi-vocamente quantidade, incluindo aí, também, menos. No frag-mento (19), no início, tanto carrega um sentido mais quantitativo; já na segunda vez (tão) encerra uma idéia intensiva. Do mesmo modo, o primeiro -ão (em bigodão) expressa a noção de tamanho; no segundo emprego (em bonachão), denota claramente intensi-dade. No trecho (20), o primeiro mais é intensivo; o segundo dá a idéia de mais informação/novidade sobre os acontecimentos da noite anterior. Nas demais formas, vemos o alongamento si-lábico em metiiiido; os acréscimos morfológicos em queridíssimo,

3 Vale notar que -inho, por sua relação com pequenez, em geral apa-rece como intensivo as-sociado a palavras cuja noção indica direção para menos (como em pequenininho, cedinho) ou valor negativo; no caso de -ão, a idéia in-tensiva combina-se com lexemas que denotam direção para mais ou valor positivo (como em grandão, bonitão etc.).4 Nesse caso, a relação não é apenas quanto ao maior tamanho, mas também por ser mais velho e dar a noção de poder. Como exemplo, tem-se: “a banda [Mo-tim] leva uma senhora vantagem em relação aos grupos mais jovens” (Jornal Hoje. tV Globo, 06/07/2004).

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Betíssima e Terezérrima; e o aumento sintático, através da repeti-ção enfática em linda! Linda! Linda! e muito, muito. temos nessas amostras, sem dúvida, evidências da extensão metafórica, nas quais foram convocadas as respectivas noções mais “concretas” de quantidade e tamanho.

Esse mesmo procedimento é também comum em outras línguas. Por exemplo: s’i(n) = pequeno > s’i(n) s’i(n) = muito pequeno (extraí-

do do xipaya, língua indígena brasileira. CÂMARA JR, 1989);

lapun = velho > lapunpun = muito velho (língua pidgin da Nova Guiné. PEttEr, 2003).

O conceito metafórico de espaço/distância – vertical ou horizontal – é encontrado nos prefixos sub-, sobre-, super-, supra-, hiper-, arqui-, ultra-, extra-, ex- (presente na idéia intensiva de em excesso/iv(o)/amente, excepcional, exacerbado), ou em palavras/ex-pressões como além, delonge, praláde... e similares. Há ainda os lexemas intensivos, como sum(o)/amente, supremo, superior, elevado, profund(o)/amente, abissal, extrem(o)/amente, avançando, avantajado, um primor (de), primoroso também relacionados à metáfora es-pacial. Outros que também se relacionam a localização são os que se referem ao espaço sideral, como estratosférico, exorbitante, astronômico (este mais relacionado a grandeza), por designarem distância para além dos limites terrestres. Vejamos os seguintes exemplos:

(21) “... você vê que a gente adota um pre/ elege um presidente... ele não é solução pros nossos problemas... pelo contrário... a gente pensa que vai ser... mas aí dificulta mais as coisas... o salário diminui... as coisa aumenta... a inflação sobe lá pra cima... pronto... sobe lá pra cima... olha que coisa... vai subir pra onde? pra baixo? mas... a... é uma situação super difícil sabe? super difícil mesmo...” (Corpus D&G, 1998, p. 255-6);

(22) “Apesar do eleitorado feminino ser infinitamente maior, nenhuma mulher assumirá, no próximo ano uma cadeira na Câmara.- O que é profundamentelamentável.” (SABOYA, C. de. DiáriodeNatal, 09/10/2004, p. 3);

(23) “Juros altos são resultado da falta de confiança na capacidade do Estado de saldar seus débitos. o Estado deve muito, gasta mais do que arrecada e tenta arrecadar cada vez mais para poder gastar o que não tem. O ciclo é infernal. (...) Dívidaelevada, carga tributária excessiva, leis trabalhistas retrógradas, burocracia enlouquecedora, ritos jurídicos e judiciários desanimadores, rombo na Previdência.” (ALVARENGA, T. Veja, 04/05/2005, p. 64).

Deve-se registrar também o prefixo -infra, que exprime a noção de posicionamento inferior. No entanto, embora pouco comum, foi utilizado no seguinte excerto, metaforicamente, com noção intensiva: “... que era uma vida infra-humana que levava.” (INQ356, INF452, apud LOPES, 2000, p. 5).

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Um dado interessante sobre analogia a partir da noção espacial é fornecido por Ribeiro (1956, p. 331). O que se vê nos registros desse autor parece demonstrar que já era comum, na língua latina, o uso de palavras/expressões indicativas de intensidade como extensões metafóricas de significados mais concretos. É o caso, por exemplo, de longe – designativo de lugardistante – apresentado a seguir:

(24) “Longe nobilissimus et ditissimus apud Helvetios.”.

Said Ali (1971, p. 84) cita um caso do período renascentista que evidencia igual procedimento com relação a extremo:

(25) “Os quaes peixes são muy peçonhentos por extremo.”

Ainda sobre a utilização da idéia espacial para indicar intensidade é o que vemos no exemplo fornecido por Schachter (apud ROSA, 2000, p. 93), encontrado no haússa, língua afro-asiática falada principalmente na Nigéria:

(26) “Ya fi ni hankali (literalmente: “Ele me ultrapassa em inteligência”, isto é, “Ele é mais inteligente que eu”).

Há também uma relação metafórica em vocábulos inten-sivos que têm como fundamento semântico a experiência física visual. São eles, por exemplo, deslumbrante,admirável/mente, umespetáculo/espetacular, uma maravilha e maravilhos(o)/amente. Estes vinculam-se à idéia de alguém ficar perplexo diante de algo vi-sualmente impactante. Compare-se com os exemplos, os quais atestam essa tendência já num período mais antigo da língua.

(27) “Quando Lançalot e Persival viram esta aventura, foram mui muito maravilhados,...” (RIBEIRO, 1956);

(28) “... E elle era muy velho a maravylha.” (RIBEIRO, 1956).

Essa prática é confirmada também por Mattos e Silva (1984, p. 207-8):

(29) “Mata mui grande e mui basta a maravilha.”

Existem outras amostras intensivas derivadas das metá-foras de sensações/experiências físicas, tais como, por exemplo, trabalho extenuante, calor sufocante, cheiro inebriante, barulho ensurdecedor, beleza estonteante, vista de tirar o fôlego, brilho ofuscante, frio de arrepiar, debate acalorado, ciúme doentio, desejo ardente, crescimento vertiginoso, diferença que salta aos olhos (algumas dessas até já um tanto clicherizadas). Também encontramos, além dessas, outras expressões intensivas que, do mesmo modo, provêm de noções ancoradas nas experiências biofísicas, tais como feio que dói, podre de rico, lindodemorrer e outras mais.

As intensificações em que se empregam expressões com bem, bom, ruim, ótimo, péssimo, pavor/oso, medonho, estarrecedor,

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hediondo, um terror (de)/terrível/mente, um horror (de)/ horrível/mente, assustador/amente, assombros(o(/amente, espantos(o)/amente, tremend(o)/ amente, entre outras, refletem as metáforas de sen-sações/estados psicoafetivos. Estas estão, em geral, associadas às experiências básicas de bem-estar/satisfação físico(a) que nos proporcionam benefício/prazer ou de desconforto/desagrado/perigo/medo diante de algo poderoso e ameaçador que possa trazer algum dano a nossa integridade física.

É digno de nota que, neste caso, o mesmo padrão exibido no português contemporâneo e no inglês também se encontra, por exemplo, no hebraico antigo. Comparem-se os exemplos a seguir:

(30) terrify, terrific, terrible = atemorizar, espantoso, demasiadamente:• to be terrified of = ter medo de/ficar atemorizado com (noção +/-

concreta de base psico-física);• in a terrible hurry = com muita pressa/estar apressado demais;• at a terrific velocity = numa velocidade espantosa/em alta

velocidade (nas duas últimas expressões, os vocábulos têm valor intensivo).

(31) tremendous, astounding = tremendo, espantoso, assombroso:• “... it is a tremendous store of heat called geothermal energy.” = “... é

uma tremenda reserva de calor chamada energia geotérmica”;• “an astounding amount of energy indeed!” = “Uma espantosa

quantidade de energia, de fato!” (Exemplos extraídos de Awake!. August 8, 2002, p. 13-15).

(32) :temer, aterrorizar, assombroso, tremendamente = (’yare) ירא• E temendo disse: Quão temível é este lugar!... – Gen. 28:17 (noção

psicológica “+concreta”);• ... visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste;...

– Sal. 139:14 (exprime intensidade).

Essa tendência de transferir conceitos fundamentados na experiência com o mundo concreto (como as noções de tama-nho/dimensão, quantidade, localização espacial – de distância ou altura –, peso/força etc) para a esfera mais abstrata da in-tensificação é observada, conforme já demonstrado, em outras línguas. Vejamos mais alguns casos:

1 - em alemão:(33) sehr = muito:

• Das Glas ist sehr voll = O copo está muito cheio (quantidade +concreta);

• Ich bin sehr krank = Eu estou muitodoente (designa intensidade).

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(34) wenig = pouco:• Ich habe wenigGeld = Eu tenho poucodinheiro (noção quantitativa

+concreta);• Ich habe wenig Zeit = Eu tenho pouco tempo (idéia intensiva +

abstrata).

(35) groß = grande:• Das Haus ist groß = A casa é grande (noção +objetiva de tamanho);• Ich habe ein großen Bruder = Literalmente: Eu tenho um irmãomaior, ou seja: Eu tenho um irmão mais velho (todos esses foram exemplos fornecidos por falantes nativos).

É interessante notar, nesse último exemplo, a idéia intensiva de mais idade/ser mais velho deriva da noção de grandeza, uma vez que, segundo nossa experiência objetiva, aquele que é mais velho é, em geral, também maior em tamanho.

2 - em mandarim:(36) hĕn = muito(s), bastante(s)

• ;

fáng zi lĭ rēn hĕn duō = Há muitas pessoas na casa (quantidade observável)

• tā gè zi hĕn gāo = ele é muito alto (idéia intensiva) – (exemplos coletados de falantes nativos).

3 - em japonês:(37) ippai = muito(s), bastante(s), demais

• ippai daigakusé ga = muitosalunosuniversitários (noção quantitativa);• ippai muzukashii = muito difícil (exprime intensidade) – (exemplos

coletados de um falante nativo).

4 - em húngaro:(38) nagy = grande, muito, demais:

• nagyház = casa grande (noção de tamanho/grandeza);• nagyon yó = muito bom (idéia intensiva).

(39) túlon = além, demasiadamente:• ahatáritúlon magyarok = aos húngaros alémdafronteira (localização

horizontal, indicando distanciamento);• túlontul átpolitizálunk = politizados por demais (idéia intensiva)

– (Nepszava, 2004. Május 1, Szombat).

5 - no grego koinê – variante popular falada no início da era cristã (ALAND et. al., 1970):

(40) πολυ (polú) = muito(s), mais, bastante(s), demais:• expeliam muitos demônios e curavam numerosos enfermos,... – Mar.

6:13 (denota quantidade);• ... um vaso de alabastro com preciosíssimo perfume de nardo puro;...

– Mar. 14:3 (idéia intensiva).

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(41) επι (epi) = sobre, em cima/acima de, demasiadamente, intensamente:• ... viram Jesus andando por sobre o mar... – Jo. 6:19 (localização

vertical);• ... tenho desejado intensamente comer convosco esta páscoa,... – Luc.

22:15 (idem).

(42) υπερ (húper) = sobre, acima de, além, mais:• Não ultrapasseis o que está escrito, a fim de que ninguém se

ensoberbeça... – I Cor. 4:6 (localização horizontal e intensificação, respectivamente);

• São ministros de Cristo?... Eu ainda mais... em açoites, além damedida;... – I Cor. 11:23 (ambos denotam, respectivamente intensidade e quantidade).

(43) µεγα (mega) = grande, intenso:• ... e saiu grande voz do santuário,... e ocorreu grande terremoto... e a

grande cidade se dividiu em três partes,... e lembrou-se Deus da grande Babilônia,... porquanto o seu flagelo era sobremodo intenso. – Apoc. 16:17-21 (noções de intensidade nas duas primeiras ocorrências e na última; na terceira, a idéia é de tamanho físico; e na quarta, parece misturarem-se os sentidos intensivos de grandeza/dimensão tanto física quanto em importância econômica, política e sociocultural).

6 - no hebraico antigo (HARRIS, 1998):(44) :grande, alto, muito(s), mais, intenso = (gadowl) לללל

• Fez Deus dois grandes luzeiros: o maior para governar o dia, e o menor para governar a noite... – Gên. 1:16;

• ... amnom sentiu por ela [sua irmã] grande aversão, e maior era a aversão que sentiu por ela que o amor... – 2 Sam. 13:15.

(45) :numeroso, muito(s), (o) mais, excessivamente = (me’od) ללל• E o homem [Jacó] se tornou mais e mais rico; teve muitos rebanhos,...

– Gên. 30:43 (intensidade e quantidade, respectivamente);• ... tu [Jônatas] eras amabilíssimo para comigo!... – 2 Sam. 1:26 (idéia

intensiva).

(46) :sobre, acima, por cima de, além, mais, extremamente = (al‘) לל• ... do meio dos dois querubins que estão sobre a arca do testemunho,

falarei contigo... – Ex. 25:22 (exprime localização vertical);• “Pois tu, Senhor, és o Altíssimo sobre todaaterra; tu és sobremodo

elevado acima detodososdeuses.” – Sal. 97:9 (noções de superioridade e de intensidade).

7 - o inglês é, em igual medida, pródigo nesses casos. Em apenas um texto (Awake! August 8, 2002, p. 13-15) – sobre energia geotérmica –, colhi as seguintes amostras:

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(47) huge = enorme, imenso, (em tamanho físico, importância ou valor):• ... estas presilhas permitem a expansão e a contração dos enormes

tubos enquanto eles aquecem e esfriam. (expressa a idéia de tamanho físico);

• Sob a superfície da terra repousa um enorme tesouro... é um tremendo estoque de calor chamado energia geotérmica. (noção metafórica de grandeza).

(48) large = grande (em dimensão física ou em termos metafóricos):• ... Awake! visitou uma grande usina geotérmica chamada Mak-Ban,

na província filipina de Laguna. (exprime a idéia de dimensão física);

• … as Filipinas tem se tornado um dos maioresprodutoresmundiais de energia de fonte geotérmica. (grandeza intensiva).

(49) much = muito (em quantidade material ou em intensidade):• ... Nós geramos tanta água quente e calor a cada hora que é necessário

injetar água separa de volta para o reservatório do solo... (noção de quantidade material);

• Mas, no subsolo, as pressões são muito mais altas... (expressa intensidade).

(50) more = mais (em quantidade material ou em intensidade):• Mais tubos podem ser vistos trazendo vapor dos poços… (idéia de

quantidade material);• Os desenvolvimentos futuros, sem dúvida, nos ajudarão a ver como

usar nossos tesouros mais beneficamente... (noção intensiva).

Há outros vocábulos cujas noções relacionadas a conceitos “+concretos” se estendem igualmente para designar intensidade abstrata. Podem ser incluídos nesse caso o que se vê em constru-ções como top secret (super secreto), high tech (alta tecnologia), lowcarb (alimentos com baixo teor de carboidrato), light food (comida leve, ou seja, com pouca caloria), deep impact (impacto profundo), broadminded(literalmente: com mente larga, isto é, dementalidadeaberta/liberal), entre outras.

ainda quanto a isso, vejam-se os trechos a seguir, retirados do trabalho de Marmaridou (2000), quanto ao uso metafórico de far (distante), wide (largo), large (grande) e strong ( forte):

(51) A presente análise experiencialista de fenômenos pragmáticos é amplamente justificada por questões similares na pesquisa atual, indicando um interesse maior na conceitualização do sentido pragmático. (p. 275);

(52) Acredita-se que o método experiencialista proposto, ainda que largamente articulado na base dos dados construídos, não obstante, encoraja fortemente – na verdade, exige –... (p. 279).5

5 Os exemplos nos ca-sos (47) a (52), p. 20-22, são todos traduções minhas.

JoséRomeritoSilva

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ConclusãoEssas poucas amostras ajudam-nos a perceber a motivação

cognitiva que embasa a formação de intensidade. Tais configura-ções lingüísticas vêm confirmar a idéia de que a intensificação, do mesmo modo que muitas outras noções, é expressa em termos metafóricos, cujo fundamento se encontra nas relações analógi-cas operadas cognitivamente entre domínios da nossa relação corporal (e, portanto, concreta) com o mundo físico-social em que estamos inseridos e outros de natureza mais abstrata. Nesse sentido, podemos facilmente recuperar as associações semân-tico-metafóricas estabelecidas entre as formas intensificadoras expostas e as respectivas noções de peso/força, tamanho/di-mensão, quantidade, espaço, impacto visual, sensações/estados psicoafetivos de base experiencial mais concreta.

o mais interessante nisso é que, mesmo considerando-se o fato de que as metáforas não estão estocadas apriori na mente dos falantes, sendo, portanto, construídas nos ambientes socio-culturais específicos da cada comunidade de fala, a codificação intensiva parece evidenciar, translingüisticamente, uma espécie de padrão cognitivo mais ou menos comum, apontando, rela-tivamente, para as mesmas noções básicas das quais deriva. Quer dizer, para exprimir intensidade, os locutores lançam mão dos mesmos recursos metafóricos em maior ou menor grau de semelhança, ou seja, apóiam-se quase nas mesmas analogias experienciais fundantes. Isso pode sinalizar que, muito prova-velmente, existam esquemas metafóricos mais relacionados com nossa própria maneira de ser e de estar no mundo, independente das especificidades culturais e lingüísticas.

AbstractThe present paper aims to focuse the semantic and cognitive aspects of the intensity processes. Thus takes the theoretic accounts of Cognitive Semantics, to which language encodes the cogni-tive schemas structured from our experience with reality. Linguistic symbols reflect the metaphorical combinations between more “concrete” domains, acquired from the way how we conceptualize our relation with the world, and those of more abstract nature. From this point of view, we claim that intensifiers are mostly metaphorical constructions based on analogical relations with some more “concrete” concepts such as quantity, size/dimension, localization (horizontal or verti-cal), weight/strength and so on.

Keywords: intensity – cognitive semantics –metaphor.

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Referências

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 21�-241, 2. sem. 2006

Usos morfológicos: os processos marginais de formação de

palavras em portuguêsCarlos Alexandre Gonçalves

Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

ResumoEstudo dos processos não-concatenativos do portu-guês brasileiro, com base na morfologia prosódica (McCARTHY, 1981, 1986). Descrição do formato morfo-prosódico da reduplicação, do truncamento, da hipocorização e do blend lexical.

Palavras-chave: morfologia não-concatenativa; interface fonologia-morfologia; morfologia pro-sódica.

Carlos Alexandre Gonçalves

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IntroduçãoO objetivo deste texto é mostrar que o português, apesar de

ser uma língua de morfologia predominantemente aglutinativa, também faz uso de processos não-concatenativos (McCARTHY, 1981) para ampliar seu vocabulário ou para expressar carga emo-cional variada. Proponho que essas operações morfofonológicas sejam distribuídas em três grupos: (a) processos de afixação não-linear (reduplicação), (b) de encurtamento (truncamento e hipocorização) e (c) de fusão (mesclagem lexical e siglagem).

Não descritos de forma sistemática em nossa língua e in-terpretados como irregulares pela maior parte dos estudiosos que lhes dedicaram alguma atenção (ROCHA, 1998; FREITAS, 1998; LAROCA, 1994; SANDMANN, 1990; BASÍLIO, 1987), os chamados processos marginais de formação de palavras encon-tram guarita em abordagens não-lineares, como a morfologia prosódica (McCARTHY, 1986; McCARTHY; PRINCE, 1990), e podem ser considerados circunscritivos (LACY, 1999): inteira-mente desprovidos de conteúdo subjacente, têm materialização segmental resultante da delimitação de um domínio sobre a(s) base(s) e tamanho determinado por restrições sobre a forma prosódica.

Na história da morfologia, processos não-concatenati-vos – os “mal-comportados da formação de palavras” por não se ajustarem bem ao modelo Item-e-Arranjo (JENSEN, 1991) – foram diretamente responsáveis pelo esvaziamento da noção de morfema, que de “coisa” também passou a ser interpretado como “regra”. A razão desse mal-comportamento, mostra Spen-cer (1991, p. 133), repousa no fato de tais operações não constitu-írem morfologiapura, mas morfologia que requer acesso a informações prosódicas, resultando da integração de primitivos morfológicos (radical, afixo) com primitivos prosódicos (mora, pé).

Com o advento das fonologias não-lineares, operações não processadas pela adjunção sintagmática de morfemas foram progressivamente ganhando destaque, passando de morfologia-fundo à morfologia-figura. Desde McCarthy (1981) – abordagem pioneira sobre a infixação em árabe a partir do padrão CCC de raízes –, vem crescendo o interesse por processos não-concate-nativos: diversas análises sobre reduplicação, infixação e ablaut proporcionaram o rápido desenvolvimento da morfologia pro-sódica (McCARTHY, 1986) e, nos dias de hoje, operações desse tipo são de interesse central na chamada “teoria da correspon-dência” (McCARTHY; PRINCE, 1995), uma extensão da “teoria da otimalidade” aplicada à morfologia (BENUA, 1995).

Pesquisas sobre fenômenos não-aglutinativos são vitais para a consolidação da teoria da correspondência, cuja relevân-cia vem sendo questionada nos últimos anos (HALE; KISSOCK; REISS, 2000 ; WALTHER, 2001). Está sendo posta em xeque a

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co-existência de vários conjuntos de restrições de fidelidade numa gramática – input – output (McCARTHY; PRINCE, 1993), output-output (FUKAZAWA, 1997), base-reduplicante (McCAR-THY; PRINCE, 1995) e base-truncamento (BENUA, 1995). Para resolver esse impasse, processos de cópia, como os analisados neste texto, vêm emergindo da obscuridade e ocupando lugar de destaque na lingüística contemporânea.

No presente artigo, além de salientar que a morfologia portuguesa não se organiza unicamente pela sucessão linear de formativos, busco: (1) mapear as estratégias não-aglutinativas utilizadas com função lexical ou expressiva no português bra-sileiro; (2) mostrar como elas se manifestam em nossa língua; (3) apresentar os dispositivos morfo-prosódicos ativados por elas; e, por fim, (4) argumentar em favor do reconhecimento de três tipos básicos de processos – os de afixação não-linear, os de encurtamento e os de fusão.

Esta abordagem, que deve ser interpretada como descri-tiva, não propõe uma análise dos fenômenos à luz da teoria da correspondência, o que é feito em Gonçalves (em preparação). Com o intuito de refutar a idéia de que as construções aqui exa-minadas são “imprevisíveis” (SaNDMaNN, 1990), “não-susce-tíveis de formalização” (LAROCA, 1994) ou mesmo “processos marginais de formação de palavras” (ALVES, 1990), utilizo a morfologia prosódica (McCARTHY; PRINCE, 1990) para iniciar uma descrição da contraparte não-concatenativa da morfologia portuguesa.

O texto aparece estruturado da seguinte maneira: na seção 1, listo e exemplifico os processos que considero não-aglutina-tivos em português, com ênfase em sua latitude funcional. Na seção seguinte, destaco as semelhanças e as diferenças entre eles, analisando o formato morfo-prosódico de cada um. Por fim, elenco as principais conclusões do trabalho (seção 3), apresen-tando as motivações que me levaram a distribuir as operações nos grupos acima mencionados.

1. Processos não-lineares do português brasileiroEstudos sobre o português, tradicionalmente alicerçados

na noção de “item”, tendem a conceber a morfologia como um módulo sintagmaticamente determinado pelo encadeamento de formativos. Sem dúvida alguma, o português é uma língua que se ajusta bem a uma descrição que isola entidades morfo-lógicas, uma vez que a grande maioria das operações é, de fato, aglutinativa. Flexão (feliz-es), sufixação (pagod-eiro), prefixação (in-certo), composição (puxa-saco) e circunfixação (des-alm-ado) são processos que se manifestam pela concatenação de afixos ou de radicais, de modo que há condições ótimas para a isola-bilidade de morfemas.

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No entanto, há processos que, mesmo considerados mar-ginais, dão mostras de que o português, sobretudo o brasileiro, também faz uso de expedientes morfo-prosódicos para formar uma nova palavra ou para externar o ponto-de-vista do falante a respeito de algo ou alguém.1 Esses processos são os seguintes:

1.1 ReduplicaçãoEm Couto (1999), encontra-se uma coleção de processos

de reduplicação utilizados no português do Brasil. Dessa lista, duas operações são particularmente produtivas: (i) a cópia da sílaba tônica de prenomes para formar hipocorísticos (primeira coluna de 01) e (ii) a reprodução de todos os elementos de um verbo para formar um substantivo, na grande maioria das vezes lexicalizado (segunda coluna).

(1) Fátima > Fafá Puxa-puxa ‘doce’angélica > Gegé Bate-bate ‘carrinho de autopista’Carlos > Cacá Pega-pega ‘brincadeira infantil’Barnabé > Bebé Lambe-lambe ‘máquina fotográfica’andré > Dedé Pula-pula ‘brinquedo de parque

de diversão’

Por copiar segmentos de uma base, o reduplicante não apresenta conteúdo segmental. Dessa maneira, o morfema re-duplicativo pode ser considerado subespecificado, codificando nada além de uma representação prosódica. Embora envolvam reduplicação, os dados de (01) diferem em vários aspectos. A primeira coluna exemplifica casos de cópia parcial (apenas parte da base é reproduzida), enquanto a segunda ilustra casos de cópia total (a palavra é reduplicada por inteiro). além dis-so, a circunscrição – procedimento analítico que delimita um domínio prosódico sobre bases (McCARTHY, 1991) – funciona como um alvo para o qual segmentos melódicos são mapeados, na segunda coluna: o reduplicante é anexado à palavra-matriz. Nos hipocorísticos, ao contrário, a circunscrição funciona como um delimitador que efetivamente reduz a base ao tamanho de uma sílaba, que será posteriormente reduplicada.

Do ponto-de-vista semântico, a reduplicação que caracteri-za os dados da primeira coluna deve ser vista não como processo que forma nova unidade lexical, uma vez que hipocorísticos e antropônimos diferem unicamente quanto ao valor estilístico/contextual, funcionando, na verdade, como sinônimos. No caso dos verbos, há função sintática (mudança de classe) e, muitas vezes, o substantivo sinaliza uma ação continuamente repetida, como se vê em (02), o que nos leva a interpretar a reduplicação como um morfema aspectual de iteratividade, seguindo Araújo (2000).

1 De acordo com rio-Torto (1998), processos como a mesclagem le-xical (‘chafé’) e o trun-camento (‘vagaba’) não têm qualquer paralelo no português europeu. Em araújo (2000), en-contra-se uma discussão pormenorizada das di-ferenças entre a morfo-logia do PB e do PE. Em linhas gerais, as duas variedades dispõem de um conjunto nuclear de regras de formação de palavras, mas o PB lança mão de recursos au-sentes na Gramática do PE (ARAÚJO, 2000, p. 09). ao que tudo indica, os processos não-conca-tenativos estão na base das diferenças entre as duas variantes.

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(02) corre-corre pinga-pingacoça-coça empurra-empurrabeija-beija agarra-agarraraspa-raspa roça-roça

1.2 HipocorizaçãoDe acordo com Gonçalves (2001, p. 1), hipocorização é o

processo pelo qual nomes próprios são abreviados afetivamen-te, resultando numa forma diminuta que mantém identidade com o prenome ou com o sobrenome original. Hipocorísticos devem ser interpretados, pois, como apelidos. Se, por um lado, hipocorís-ticos são apelidos, por outro apelidos não são, necessariamente, hipocorísticos. Em outras palavras, a seta que relaciona esses dois conceitos não é bidirecional, uma vez que apelido, na qualidade de hiperônimo, é, nas palavras de Monteiro (1987, p.187), termogeral de que os hipocorísticos constituem espécie.

Para haver hipocorização, é necessário que o termo afetivo apresente relação de correspondência com o prenome (GoN-ÇALVES, 2001), isto é, deve haver fidelidade suficiente para que o antropônimo seja rastreado. Dessa maneira, ‘Chico’ é hipocorístico de ‘Francisco’, mas não ‘Quino’, analisado apenas como apelido.

Em Gonçalves (2001), apresenta-se uma lista de sistemas de hipocorização encontrados no português do Brasil. O mode-lo default, exemplificado em (03), preserva o acento lexical das palavras-matrizes, escaneando, da direita para a esquerda, um troqueu moraico. Se a sílaba final apresentar coda, o pé será mo-nossilábico (coluna 1). Caso contrário, o troqueu será constituído de duas sílabas leves (coluna 2).

(03) raquel > Quel Felipe > LipeIrineu > Neu Marilena > LenaMiguel > Guel Leopoldo > PoldoMarimar > Mar augusto > GutoMarissol > Sol Fernando > Nando

Com função de atitude subjetiva (BASÍLIO, 1987), a hipoco-rização não leva à formação de uma nova palavra, não apresen-tando, portanto, função lexical. Por seu caráter essencialmente afetivo, esse processo se assemelha à linguagem infantil, fazendo emergir formas não-marcadas (McCARTHY; PRINCE, 1994).

1.3 TruncamentoFormações truncadas (04) sinalizam o impacto pragmático

do falante em relação ao enunciado, ao referente ou ao interlocu-tor. Dessa maneira, o truncamento2 pode ser concebido como re-curso morfológico de natureza expressiva, estando relacionado,

2 redução vocabular (ALVES, 1990), abre-viação (SaNDMaNN, 1990), Braquissemia (MONTEIRO, 1987) e retroformação (SÂN-DALO, 2001) são va-riações terminológicas usadas para descrever esse processo de forma-ção de palavras que, ao contrário da prefixação e da sufixação, consiste na diminuição do cor-po fônico da palavra derivante.

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portanto, à modalização apreciativa (LOURES, 2000), através da qual o locutor imprime sua marca ao enunciado, inscrevendo-se, explícita ou implicitamente, na mensagem.

(04) delega (delegado) salafra (salafrário) Maraca (Maracanã)sapa (sapatão) analfa (analfabeto) estranja (estrangeiro)cerva (cerveja) gurja (gorjeta) vagaba (vagabunda)

Como não há distanciamento de significado entre a parte (a forma reduzida) e o todo (a palavra-matriz), pode-se dizer que o truncamento não apresenta função lexical. De fato, formas como ‘comuna’ (por comunista) e ‘batera’ (por baterista) não têm por finalidade a nomeação e/ou a caracterização de seres, eventos ou estados. Tais construções têm a função de adequar a idéia contida no item lexical às necessidades de utilização daquela idéia – ou daquele item – para a formação de um tipo específico de enunciado (BASÍLIO, 1987, p. 66). Em linhas gerais, formações truncadas são responsáveis pela expressão do pejorativo, revelando o ponto-de-vista do falante sobre o que diz, chamando atenção de seu interlocutor para algo avaliado negativamente.

Como se vê em (04), o truncamento reproduz parte da base, mas também se manifesta pelo acréscimo de uma vogal final nem sempre existente na palavra-matriz (entre outros, ‘vestiba’, por ‘vestibular’, ‘estranja’, por ‘estrangeiro’, e ‘sarja’, por ‘sargento’). A vogal -a funciona, pois, como uma espécie de afixo de truncamento, que, por isso, pode ser considerado pro-cesso simultaneamente não-concatenativo (cópia) e aglutinativo (acréscimo de vogal final).

1.4 Mesclagem lexicalTambém chamados de cruzamentos vocabulares (SAND-

MANN, 1990; SILVEIRA, 2002), palavras-valise (ALVES, 1990) e misturas (SÂNDALO, 2001), mesclas lexicais são formas criadas pela junção de duas palavras já existentes na língua, como se vê em (05). Diferentes dos compostos, que tendem a preservar o conteúdo segmental das bases (‘porta-luvas’ e ‘bóia-fria’), mes-clas são caracterizadas pela interseção de palavras, de modo que é impossível recuperar, através de processos fonológicos como crase, elisão e haplologia, as seqüências perdidas.

(05) chafé (chá + café) sacolé (saco + picolé)gayroto (gay + garoto) cariúcho (carioca + gaúcho)cantriz (cantora + atriz) psicogélico (psicólogo + evangélico)matel (mato + motel) apertamento (apartamento + aperto)

Como assinala Silveira (2002), a mesclagem, na grande maioria dos casos, sinaliza o ponto-de-vista do emissor em rela-ção ao objeto do enunciado, como em ‘tristemunho’ (‘testemunho’

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+ ‘triste’), que externaliza a opinião do falante sobre o testemu-nho, considerado difícil, penoso ou custoso. A pejoratividade é, sem dúvida, o caso por excelência da expressão subjetiva do falante (BASÍLIO, 1987). É nesse campo que as mesclas encontram seu maior potencial de uso, revelando intenção depreciativa do emissor, como ocorre em ‘crilouro’ (negro que se faz passar por louro, tingindo os cabelos), ‘vagaranha’ (prostituta em excesso) e ‘Chattoso’ (Mattoso Camara Jr., por sua obra, considerada “chata” pelos alunos da Fac. de Letras da UFRJ).

A mesclagem, além de apresentar função discursiva, também pode ser usada para formar novas unidades lexicais, a exemplo do que ocorre com as já dicionarizadas ‘sacolé’ (um tipo especial de picolé, em forma de saco) e ‘portunhol’ (mistura de português com espanhol). assim, esse tipo de processo, ao contrário do truncamento e da hipocorização, também apresenta função lexical, servindo para rotular e/ou caracterizar seres, eventos ou estados.

Condições prosódicas devem ser satisfeitas no molde das mesclas, de modo que o processo não é arbitrário, mas regido sobretudo pela semelhança fônica entre as bases, como destaca-rei na seção seguinte. a sistematicidade dessa operação só pode ser observada na interação morfologia-prosódia, o que difere mesclagem de composição, fazendo do primeiro uma operação circunscritiva e do segundo um processo aglutinativo.

1.5 SiglagemSiglagem, redução sintagmática (LAROCA, 1994), acro-

nímia (MONTEIRO, 1987) e abreviação (SANDMANN, 1990) são termos que fazem referência a um processo que consiste na combinação das iniciais de um nome composto ou de uma expressão. Os dados de (06) evidenciam que o segmento inicial pode ser um som ou uma sílaba.

(1) CUT (Central Única dos Trabalhadores)BANERJ (Banco do Estado do Rio de Janeiro)EMBRATEL (Empresa Brasileira de telecomunicações)Pt (Partido dos trabalhados)CDF (Cabeça de Ferro)

Uma vez criados e difundidos, os acrônimos passam a ter autonomia em relação ao sintagma que lhes deu origem. Muitas vezes, o falante, apesar de reconhecer o significado do acrônimo, não consegue rastrear a expressão original, analisando a sigla como palavra primitiva. Sendo passíveis de receber afixos, como em (07), acrônimos podem formar derivados, o que comprova ser a siglagem um processo em que predomina a função lexical.

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(2) PT – petista, pró-PT, petice, petismoAIDS – aidético, anti-AIDS

MOBRAL – mobralense, pré-MobralUFO – ufólogo, ufologia

O distanciamento das formas de base advém da pequena relação de identidade entre a sigla e a expressão, uma vez que apenas a seqüência inicial é copiada. Em decorrência, é grande a probabilidade de o acrônimo suplantar de vez o sintagma-base, a exemplo do que vem ocorrendo com CPF (abreviação de ‘ca-dastro de pessoas físicas’), que já não mantém qualquer relação de correspondência com a expressão que lhe deu origem.

Na próxima seção, procuro mapear as semelhanças e as diferenças entre as operações ora apresentadas. Para tanto, pro-ponho um formato morfo-prosódico para cada uma, utilizando a circunscrição – procedimento amplamente difundido no paradigma da morfologia prosódica (MAcCARTHY; PRINCE, 1990).

2. Sobre o formato morfo-prosódico dos processosOs processos listados e exemplificados ao longo da seção

1 são considerados não-concatenativos pela falta de encadea-mento. De fato, as bases não são modificadas pelo acréscimo de afixos, palavras ou radicais, como nas operações aglutinativas. Ao contrário, são delimitadas por um restritor que efetivamente controla seu tamanho. Embora seja responsável pelo status não-linear dos processos, é esse restritor que particulariza cada uma das operações aqui examinadas.

2.1 O formato da reduplicaçãoDiferente dos outros processos, a reduplicação pode ser

considerada um tipo “diferente” de afixação (STRUIJKE, 2000, p. 2, grifo nosso), pois o reduplicante é linearmente ligado à forma projetada para o molde, via circunscrição prosódica (McCAR-THY; PRINCE, 1995). Nos exemplos listados em (01), não há como decidir se a porção reduplicada é preposta ou posposta à base, uma vez que a cópia é total: nos hipocorísticos, a sílaba CV é inteiramente reproduzida, enquanto na nominalização todo o verbo sofre redobro.

Na nominalização, a base é a 3ª pessoa do singular do pre-sente, uma forma neutra do ponto-de-vista cognitivo (BYBEE, 1985; GÉHARDT, 2001). Os dados de (08) evidenciam que não há qualquer tipo de modificação estrutural em relação à base – um dissílabo paroxítono sem coda. Estruturas menos marcadas constituem tendência nesse tipo de reduplicação, uma vez que o processo opera unicamente com formas verbais cuja 3ª pessoa termine em vogal (segunda coluna de 08).

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(3) pisca-pisca *retém-retémbole-bole *advém-advémpinga-pinga *quer-querraspa-raspa *corrói-corrói

Como a presença de um elemento em coda – uma nasal não-especificada para ponto, uma vibrante ou uma semivogal anterior – bloqueia a operação e a maioria esmagadora das bases vem a ser um dissílabo paroxítono,3 é possível admitir que a circunscrição escaneia toda a palavra prosódica para formar o substantivo deverbal reduplicativo. o mecanismo derivacional se processa como em (09) a seguir. o input inclui a base verbal e o morfema reduplicativo, que, na representação abaixo, aparece como prefixo, muito embora essa escolha seja arbitrária (STRUI-JKE, 2000). A circunscrição delimita a própria base (uma palavra prosódica – ω), pois todos os segmentos do verbo apresentam correspondente no reduplicante.

(09)

Em (09), a circunscrição modela uma palavra prosódica (ω), cujo conteúdo segmental será inteiramente copiado por rED. as linhas de correspondência que relacionam o “recheio” do molde com o output evidenciam total identidade entre base e redupli-cante, de modo que não há qualquer discrepância – nem mesmo de traços – entre esses elementos. Como se vê, a reduplicação de formas verbais realmente pode ser definida como um tipo de afixação, tanto do ponto de vista morfossintático (por envolver mudança de classe e por veicular o conteúdo ‘iteratividade’), quanto do ponto de vista da posição em relação à base.

De acordo com McCarthy; Prince (1995), reduplicantes tendem a apresentar estruturas fonologicamente não-marcadas, levando-se em conta o leque de possibilidades fonotáticas da língua.4 Com base nos dados de (08), podemos afirmar que a reduplicação bane sílabas finais travadas, em favor de abertas, e incide basicamente em pés binários com cabeça à esquerda. Estruturas ‘CV.CV – as que emergem na formação de substan-tivos deverbais reduplicativos – são indiscutivelmente ótimas em português: nenhuma outra forma da língua pode ser menos marcada que um dissílabo paroxítono constituído de sílabas abertas.

3 As poucas formas mo-nossilábicas (‘cai-cai’) e trissilábicas (‘agarra-agarra’ e ‘esconde-es-conde’) fogem à gene-ralização e constituem problema marginal nes-sa análise. De qualquer forma, levando em conta os resultados de araújo (2000, p. 09), 90% dos casos de reduplicação em verbos incidem em bases dissilábicas.4 Em outras palavras, reduplicantes tendem a manifestar apenas um sub-conjunto de opções fonotáticas permitidas pela língua. A expressão “emergência do não-marcado” (McCARTHY; PRINCE, 1994) explicita a idéia de que línguas desenvolvem estruturas não-marcadas nos con-textos em que a influên-cia da fidelidade não é tão imperativa.

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A reduplicação utilizada na formação de hipocorísticos também pode ser considerada afixação, mas difere da encon-trada em verbos por envolver um mecanismo transderivacional (McCARTHY; PRINCE, 1995). Nesse caso, a sílaba tônica do prenome é mapeada pela circunscrição e, uma vez satisfeitas as condições de “boa-formação silábica”, passam a funcionar como base para a reduplicação, de modo que o reduplicante guarda mais semelhança com o molde que com o antropônimo propriamente dito. Vejam-se os dados de (10):

(10) andré > Dedé artur > tutu José > Zezé Sueli > LiliCarlos > Cacá Glória > Gogó Nílton> Nini Vívian > ViviAlberto > Bebé augusto > Gugu Josefina > Fifi Valquíria > Kikiangélica > Gegé américo > Memé Fátima > Fafá

Em todos os exemplos de (10), o hipocorístico apresenta a mesma sílaba tônica que o antropônimo correspondente.5 Essa sílaba, no entanto, não guarda identidade absoluta com a do prenome, uma vez que não preserva a coda (‘Artur’ > ‘Tutu’) ou o onset complexo (‘Glória’ > ‘Gogó’) da palavra-matriz. Como na reduplicação de verbos, efeitos de marcação governam o conteúdo segmental do reduplicante, que, nesse caso, deverá apresentar, necessariamente, o formato CV. Nos verbos, as condições de marcação atuam no próprio input, bloqueando bases que contenham sílabas travadas ou pés monossilábicos. Nos hipocorísticos, por sua vez, tais condições agem sobre uma forma de output: o molde.

Ao contrário do redobro de formas verbais, a reduplicação em hipocorísticos é processada em dois momentos diferentes. Primeiramente, a circunscrição prosódica reduz a palavra-matriz ao tamanho de uma sílaba, como se vê em (11) abaixo. Essa sílaba é posteriormente avaliada pelas condições de marcação (não complexidade no onset; não coda) e passa a ser base para a afixação de RED. Na nominalização de verbos, a circunscrição funciona como um alvo, para o qual segmentos melódicos são mapeados. Na formação de hipocorísticos, diferentemente, a circunscrição vem a ser um delimitador prosódico que impõe minimalidade à palavra-matriz.

(11)

Nas formas verbais, a circunscrição faz um mapeamento completo da base e leva para um alvo (o molde) todos os seg-

5 Há casos de redupli-cação em que a sílaba levada para o molde não é a tônica, como demonstrado em Gon-çalves (2004). Hipoco-rísticos como ‘Vavá’ (de ‘Valdemar’), ‘Vivi’ (de ‘Violeta’) e ‘Lulu’ (de ‘Luciana’) são formados a part ir da primeira sílaba do antropônimo. Somente um modelo baseado em restrições pode dar conta das va-riações encontradas na formação de hipocorís-ticos, o que é feito em Gonçalves (2004). Dados como esses não foram considerados por ora.

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mentos utilizados por RED. Em (11), ao contrário, condições de minimalidade atuam no input (prenome), gerando um output (molde), que, por sua vez, passa a ser o input sobre o qual atuarão as condições de boa-formação silábica formuladas em (12) a se-guir. É nesse momento da derivação que aparece RED, cuja tarefa é reproduzir a base por completo, levando ao output final.

(12) Condições sobre o molde: A sílaba do molde deve apresentar o formato CV, de modo que não são permitidos onsets complexos ou codas.

Pela representação precedente (11), somos forçados a inter-pretar o processo como transderivacional (McCARTHY; PRIN-CE, 1990), uma vez que há necessidade de um nível intermediário entre base e produto: o molde é a fôrma gerada pela circunscri-ção, mas também a forma (1) a ser regulada pelas condições de marcação e (2) sobre a qual atua o morfema reduplicativo.

Concluindo, a reduplicação, apesar de circunscritiva, en-volve afixação. Essa afixação é “diferente”, nos termos de Strui-jke (2000, p. 02), porque não possui o esqueleto CV e a melodia fonêmica. O reduplicante, por não apresentar especificação segmental, toma emprestado da base todos os seus elementos, incluindo a estrutura silábica e a estrutura melódica.

2.2 O Formato do truncamento e da hipocorizaçãoO Truncamento e a hipocorização se assemelham por

promoverem diminuição no corpo fônico da palavra-matriz, mas não podem ser considerados afixação, no sentido estrito do termo, pelo fato de a porção copiada não se adjungir ao molde. Diferentes da reduplicação, esses processos “separam uma seqü-ência da base” (CABRÉ, 1994, p. 4, grifo nosso), mas são bastante diferentes em forma e em função, de modo que não considero a hipocorização um tipo de truncamento, como sugerem, entre outros, Colina (1996) e Piñeros (2000).

Do ponto de vista morfo-prosódico, quatro são as dife-renças entre truncamento e hipocorização: (a) a (não)formação de palavras mínimas, (b) a (não)superficialização de estruturas marcadas, (c) a (não)existência de afixo de redução e, por fim, (d) o tipo de circunscrição utilizado no processo (positiva ou negativa).

Em primeiro lugar, a hipocorização default (GONÇALVES, 2001)6 sempre isola uma palavra mínima na língua, de modo que o hipocorístico nunca extrapola o limite de duas sílabas (cf. coluna 1, de 13). O truncamento, ao contrário, tende a formar trissílabos (coluna 2).

(13) augusto > Guto Delegado > DelegaFilomena > Mena Salafrário > SalafraIrineu > Neu Baterista > Batera

6 Para Gonçalves (2001), esse sistema de hipoco-rização é o acionado pri-meiramente. restrições prosódicas (ausência de onset na penúltima sílaba ou estruturas si-lábicas mais complexas) podem levar aos demais sistemas (reduplicação à esquerda (‘Dudu’, de ‘Eduardo’, e ‘Lelê’, de Leandro) ou à direita da base (‘Dedé’, de ‘André’, e ‘Teteu’, de ‘Mateus’) e parsing à esquerda (‘Edu’, de ‘Eduardo’, e ‘Rafa’, de ‘Rafael’)).

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Isabel > Bel Vagabunda > VagabaFabrício > Biço Comunista > ComunaDébora > Deba Marginal > Margina

O processo de hipocorização se inicia com a definição de um domínio sobre a palavra-matriz. Dois parâmetros regem essa delimitação: (a) o do pé (a formação de um troqueu moraico – ([µµ])) e (b) o da direcionalidade (da direita para a esquerda do antropônimo – E D ##). Esses parâmetros definem a circuns-crição positiva, já que o conteúdo segmental descartado é o que fica fora desse domínio (McCARTHY; PRINCE, 1990). Portanto, o material que aparece no hipocorístico é exatamente aquele rastreado pela circunscrição prosódica, que atua no sentido de isolar uma palavra mínima: um troqueu moraico é copiado do domínio-fonte (a palavra-matriz) para o domínio-alvo (o molde). Vejam-se mais dados em (14):

(14) Felipe > Lípe raquel > Quél Alexandre > Xándeantônio > tónho Isabel > Bél Edivaldo > Váldoaugusto > Gúto Marimar > Már Fernando > NándoFilomena > Ména Nicolau > Láu reginaldo > NáldoRoberto > Béto Miguel > Guél rosimeire > Méire

a vogal tônica do pé mais à direita constitui a primeira mora do troqueu. Havendo coda ou ditongo pesado (BISOL, 1989) na sílaba final, o troqueu será monossilábico, como em ‘Quel’ (‘Raquel’) e ‘Lau’ (‘Nicolau’). Se não houver ramificação no nú-cleo ou na rima da sílaba final, ao contrário, ter-se-á um troqueu dissilábico, como em ‘Lene’ (‘Marilene’) e ‘Xande’ (‘Alexandre’). os limites da circunscrição prosódica sempre coincidem com os limites da sílaba, pois (i) onsets nunca desgarram de suas rimas, (ii) núcleos não são apagados ou inseridos, (iii) nem codas são ressilabificadas. Em (15), aparece formalizado o procedimento da circunscrição prosódica. Tanto em ‘Marilene’ quanto em ‘Raquel’, a margem direita da base coincide com a margem direita da circurscrição prosódica e, conseqüentemente, com a margem direita do molde para a formação do hipocorístico. Da direita para a esquerda, forma-se um pé bimoraico, que separa a seqüência da base a ser utilizada na hipocorização.

(15)

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No truncamento, a circunscrição mapeia uma seqüência que não aparecerá na forma diminuta. Em outras palavras, a circunscrição é negativa, pois o conteúdo segmental fora do domínio é o que será aproveitado na forma truncada. Vejam-se os dados em (16), a seguir. Diferente da Hipocorização, o trun-camento não leva em conta o acento lexical da palavra-matriz e sempre forma paroxítonas, independentemente da pauta acentual da base.

(16) japa (japonês) sapa (sapatão) trava (travesti)comuna (comunista) sarja (sargento) vagaba (vagabunda)frila (free-lancer) granfa (grã-fino) malcra (mal-criado)

os dados de (16) revelam que o truncamento opera de modo semelhante em nomes simples e em compostos que fun-cionam como unidade vocabular, do ponto de vista fonológico. Construções como ‘granfa’ e ‘frila’, originárias dos compostos ‘grã-fino’ e ‘free-lancer’, respectivamente, apresentam o mesmo comportamento de palavras como ‘trava’ e ‘sarja’, formadas a partir dos nomes simples ‘travesti’ e ‘sargento’, nesta ordem. Em todos os casos, forma-se um pé binário, da esquerda para a direita, do qual será aproveitado somente o primeiro onset que, alinhado à vogal -a, constituirá a última sílaba da palavra braquissemizada. Nesse sentido, a representação subjacente do truncamento pode ser analisada como uma seqüência de sílabas vazias: a última é inteiramente dissociada e a penúltima tem sua coda descartada, sendo copiado somente o onset – seja ele simples, como em ‘Maraca’, ou complexo, como em ‘salafra’. As sílabas anteriores (uma ou duas) constituirão parte da forma que servirá de base para a afixação de -a. Em termos de repre-sentação, teríamos o seguinte:

(17)

Essa análise preserva a idéia de que morfemas possuem representações subjacentes. Nesse sentido, formações trunca-das seriam caracterizadas por uma representação subespeci-ficada,7 que consiste na preservação de todo o material fônico, da esquerda para a direita, até o onset do pé mais à direita do item derivante, incluindo-o, já que o material após esse onset

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é circunscrito negativamente. Esse padrão geral só é violado quando a penúltima sílaba da palavra-matriz não apresenta o ataque. Por exemplo, em ‘confa’, formado a partir de ‘confiança’, não são copiados os segmentos que imediatamente precedem o pé binário mais à direita da palavra. ao contrário, esse pé é inteiramente descartado, fazendo com que a circunscrição avan-ce para a esquerda e promova a cisão em ‘fi’ (con.f[i.an.ça] + -a). Dados como esse revelam que a sílaba final do truncamento deve necessariamente apresentar onset, em decorrência da afixação de uma vogal.

Como se pode perceber, os dois fenômenos discutidos nesta sub-seção apresentam diferenças consideráveis. A hipoco-rização forma palavras mínimas, leva em conta o acento lexical da base e não faz uso de qualquer tipo de afixo. Além disso, a circunscrição prosódica age positivamente, levando a porção rastreada a constituir o hipocorístico. o truncamento, ao con-trário, não forma palavras mínimas e é cego à pauta acentual da base. A circunscrição utilizada é a negativa, o que faz com que a seqüência mapeada seja descartada para fins de adjunção de um sufixo: a vogal -a. Outra diferença entre os processos são os efeitos de marcação, discutidos a seguir.

Por se assemelhar à linguagem infantil, no sentido de privilegiar “marcação sobre fidelidade” (GONÇALVES, 2001), a hipocorização se sujeita a condições de boa-formação silábica, o que não acontece com o truncamento. De fato, os exemplos de (18) mostram haver diferenças entre o material circunscrito e o que efetivamente aparece nos hipocorísticos. Estruturas silábicas menos complexas constituem tendência nesse tipo de formação, que privilegia sílabas destravadas (coluna 1), onsets simples (coluna 2), além de não se iniciarem por vogais (coluna 3)

(1) Francisco > Chico Alexandre > Xánde Mariana > NánaRoberto > Beto Euclides > Kíde Joelma > Mélmaaugusto > Guto Gertrudes > túde Eduardo > Dado

Discrepâncias segmentais entre moldes e hipocorísticos devem ser entendidas como resultantes do papel desempe-nhado pelas condições de boa-formação silábica (11). Como os reduplicantes, também os hipocorísticos banem qualquer tipo de complexidade no onset, de modo que seqüências CC são sempre simplificadas. Nos truncamentos, há tolerância quanto à presença de ataques complexos, como se vê em (19). Dessa maneira, discordo de araújo (2000), para quem o truncamento é um tipo de processo morfológico em que emergem estruturas não-marcadas. No meu entender, o slogan “emergência do não-marcado” (McCARTHY; PRINCE, 1994) somente faz sentido nos casos de reduplicação e hipocorização. O truncamento

7 tal procedimento ana-lítico, conforme McCar-thy (1986), consiste em omitir informações na representação subja-cente, preenchidas mais tarde, com o propósito de se obter a representa-ção de superfície. Dessa maneira, a presença de uma estrutura prosódi-ca não-preenchida en-gatilharia um processo automático de cópia dos segmentos da base.

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– que não necessariamente forma pés binários e sílabas abertas e não impede a presença de onsets complexos – é caracterizado por privilegiar fidelidade sobre marcação, sendo muito mais fiel à base, preservando uma seqüência da palavra-matriz que, levando em conta a ação da analogia (BASÍLIO, 1998), pode ser reinterpretada como raiz.

(19) salafrário > salafra free-lancer > frilaflagrante > flagra mal-criado > malcragrã-fino > granfa estrangeiro > estranja

De fato, a supressão encontrada nos casos de truncamento é sempre de uma seqüência fônica tomada como afixo.8 Nas palavras de Basílio (1987, p. 38), tem-se esse processo “ quando uma palavra é interpretada como sendo uma construção base + afixo e então o afixo é retirado para se formar uma outra pa-lavra, constituída apenas da suposta base”. a porção suprimida pode não apresentar qualquer status morfológico, não sendo, necessariamente, um sufixo (‘vestib-ular’, ‘sap-atão’, ‘cerv-eja’ e ‘Marac-anã’, entre outros). Do ponto de vista cognitivo, no entanto, é possível analisar o truncamento como processo de reanálise (ALVES, 2002), sendo a circunscrição negativa interpre-tada como sufixo e o que resta, após a delimitação, como base. Tem-se, portanto, mais uma diferença, desta feita morfológica, entre hipocorização e truncamento.

2.3 O formato do blendMesclas lexicais têm sido interpretadas como uma subcate-

goria de compostos, uma vez que os morfemas que participam de sua formação são livres ou potencialmente livres (LAUBSTEIN, 1999; PIÑEROS, 2000; SANDMANN, 1990). Como morfemas livres equivalem a palavras morfológicas (MWds), admite-se que mesclas e compostos combinam MWds para gerar um novo lexema. Esse novo lexema, dessa forma, constitui uma MWd complexa, representada por MWd*, como em (20) a seguir:

(1)

Nos blends, a combinação de palavras promove ruptura na ordem linear estrita por meio de um ovelapping, que leva a uma correspondência de um-para-muitos entre forma de base e forma cruzada. Como resultado, uma das bases é realizada simultaneamente com uma parte da outra. Veja-se (21) abaixo:

8 a grande maioria dos sufixos do português apresenta o mesmo for-mato da circunscrição negativa: um dissílabo iniciado por vogal que, com o onset da base, for-mará a penúltima sílaba da palavra derivada.

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(21)

Em linhas gerais, mesclas podem ser entendidas como “ a junção de dois vocábulos, sendo que o segundo é usado para completar uma parte do primeiro” (LAUBSTEIN, 1999, p.1); dessa forma, distinguem-se de criações analógicas (22), aqui interpretadas como substituições sublexicais, por envolverem a incorporação de uma “palavra invasora” na chamada “palavra-alvo”. A palavra-alvo (base) apresenta uma porção fonológica que coincide com a encontrada numa forma de livre-curso da língua. Em ‘macumba’, por exemplo, a seqüência ‘má’, que não apresenta qualquer status morfológico, é idêntica ao adjetivo ‘má’. A palavra invasora é projetada a partir dessa seqüência, levando consigo suas estruturas métrica e silábica. ‘Boa’ promove o cons-tituinte ‘ma’ à condição de radical, substituindo sublexicalmente essa seqüência.

(1) mãedrasta (madrasta tão boa como uma mãe)bebemorar (comemorar à base de bebidas)tricha (homossexual afeminado em demasia; três vezes bicha)halterocopismo (levantamento de “copos” com bebida alcoólica)

Blends não operam como criações analógicas, não podendo ser analisados como substituições sublexicais. A mesclagem, na verdade, vem a ser o resultado da fusão de dois vocábulos que atuam em “planos alternativos”, ao contrário das formações analógicas, cujas bases operam em “planos competitivos”. Nesse último caso, o alvo é apenas uma das palavras, e a interseção das bases é ocasiona da pela reanálise intencional da forma-alvo.

Cruzamentos são, portanto, junções de duas palavras: palavra 1 (P1) e palavra 2 (P2). o ponto de quebra (local em que essa fusão ocorre) permite levantar algumas conclusões acerca da estrutura lexical das mesclas. Em linhas gerais, há dois pa-drões para blends no português do Brasil: (a) um para os casos em que P1 e P2 apresentam algum tipo de semelhança fônica e (b) outro para aqueles em que P1 e P2 são totalmente desse-melhantes do ponto-de-vista segmental. Essa (des)semelhança fônica determinará o ponto de quebra.

Se as duas palavras envolvidas são monossílabas, a uni-dade após a quebra pode ser identificada como rima (23). A mescla de ‘pai’ com ‘mãe’, originando ‘pãe’ (pai zeloso ou pai que cuida do filho sem a presença da mãe), separa o onset da

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rima, aproveitando o ataque de P1 e a rima de P2, como se vê na representação a seguir.

(23)

Dados como (23) nos levam a identificar a rima como uni-dade de produção nos blends. Contudo, existe o problema de detectar qual é a porção das bases que vêm antes e depois da quebra. Bastante clara nos monossílabos, essa situação é mais de-licada no caso de vocábulos maiores. As palavras ‘saco’ e ‘picolé’ apresentam uma sílaba em comum (‘co’). Essa semelhança deter-mina não só a interseção das palavras, como também a posição das bases no interior da mescla. Em decorrência de a sílaba ‘co’ ser átona final em ‘saco’, o blend preservará o acento de ‘picolé’, fazendo com que essa forma funcione como P2 (cabeça lexical do cruzamento) e seja responsável pela pauta acentual da nova formação (‘sacolé’ – picolé em saco). Caso contrário, a mistura não daria certo. raciocínio semelhante pode ser encaminhado à junção de ‘política’ com ‘sacanagem’, cujo blend é ‘politicanagem’. A presença de uma sílaba comum (‘ca’) determina o ponto de quebra: como essa sílaba é átona em ‘política’, P2, a cabeça lexi-cal (núcleo da mescla), será ‘sacanagem’, que levará seu acento lexical para a nova palavra, como se vê em (24):(24)

Nos casos em que as bases são totalmente dessemelhantes, não haverá descontinuidade morfológica. A quebra será feita com base no melhor rastreamento das bases (maior grau de identi-dade). Por exemplo, ‘português’ e ‘espanhol’ não apresentam qualquer segmento em comum, do ponto-de-vista da estrutu-ração silábica.9 Nesse caso, a quebra será feita nas tônicas, sendo aproveitadas as duas sílabas iniciais de ‘português’ e a sílaba final de ‘espanhol’, resultando em ‘portunhol’ (mistura de português com espanhol). A outra possibilidade (‘espaguês’), por ser mais opaca, dificilmente levaria às bases que motivaram o processo. O mesmo acontece com ‘selemengo’ (o Flamengo, time de futebol carioca, comparado à seleção brasileira), ‘cariúcho’ (gaúcho que

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vive muito tempo no Rio e já se considera carioca) e ‘showmício’ (comício com apresentação de shows musicais).

o que segue ou o que precede o ponto de quebra nem sem-pre é um constituinte morfológico, fazendo com que o blend seja visto como fenômeno distinto da composição, cujo encademento preserva a integridade das bases, mesmo que atue um processo fonológico, como a crase (‘aguardente’), que modifique uma delas. A despeito das similaridades morfossemânticas (SILVEI-RA, 2002), há uma diferença crucial entre blends e compostos: nos compostos regulares,10 cada um dos formativos projeta sua própria palavra prosódica (PWd), enquanto nos blends os dois formativos levam a uma só PWd, como se vê em (25):

(25)

Em resumo, a mesclagem lexical é um processo de forma-ção de palavras que acessa informações fonológicas, como (a) a posição do acento de P1 e P2, (b) o grau de semelhança fônica entre as bases e (c) a natureza estrutural da seqüência comparti-lhada pelas formas a combinar. Por esses motivos, deve ser vista não como um caso de substituição sublexical, como as criações analógicas, mas como uma fusão que leva à concatenação não-linear de bases, o que faz com que essa operação se diferencie da composição, cuja ligação sempre se dá por encadeamento, seja ele por justaposição (‘baba-ovo’, bajulador) ou por aglutinação (‘girassol’, tipo de flor).

3. Palavras finaisNo decorrer do texto, frisei que os processos morfológicos

aqui examinados diferem dos demais (composição, flexão e derivação) por não envolverem simples adjunção sintagmática de formativos a bases. Tendo em vista a falta de encadeamento, propus que esses mecanismos sejam analisados como não-concatenativos em português. apesar de semelhantes nesse aspecto, tais operações diferem em vários outros (p. ex., função e formato morfoprosódico), o que me levou a distribuí-las em três grupos: (a) afixação não-linear (reduplicação), (b) encur-tamento (truncamento e hipocorização) e (c) fusão (siglagem e mesclagem lexical).

Os três primeiros fenômenos se assemelham por reque-rerem mapeamento melódico a partir de uma única forma de base: uma seqüência da palavra-matriz é copiada e afixada (re-

9 A semelhança fônica deve ser interpretada não como a mera pre-sença de um segmento comum, mas como uma semelhança em termos de posição na estru-tura da sílaba. assim, embora ‘show’ e ‘comí-cio’ apresentem uma vogal média posterior em comum (/o/), essa identidade não é estru-tural, uma vez que as rimas são diferentes: na primeira palavra, a rima é ramificada (/ow/), enquanto na segunda a rima é constituída unicamente da vogal média (/o/). Dessa for-ma, ‘show’ e ‘comício’ são interpretadas como dessemelhantes, sendo o blend formado a partir do padrão 2 (‘showmí-cio’).10 De acordo com Villalva (2000), Rio-Torto (1998) e Silveira (2002) não são produtivos os chamados compostos aglutinados, cujo produto leva a uma só palavra prosódica.

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duplicação) ou passa a funcionar como unidade lexical autônoma (truncamento e hipocorização). Esses processos manipulam uma só base e podem ser considerados casos de derivação, no sentido de levar a um vocábulo diferente com o redobro (reduplicação) ou com a supressão de segmentos (truncamento e hipocorização).

Ao contrário da hipocorização e do truncamento, a re-duplicação utiliza aglutinativamente o conteúdo segmental rastreado pela circunscrição prosódica. Por esse motivo, pode ser considerada “afixação diferente” (STRUIJKE, 2000) – uma afixação não-linear. Truncamento e hipocorização separam uma seqüência da base, podendo ser vistos como processos de encurtamento. Embora tomem emprestado do derivante todos os seus elementos, o material copiado nunca é adjungido às palavras-matrizes.

Os dois últimos fenômenos (blend e siglagem), semelhan-tes entre si, diferem dos demais por envolverem mapeamento de mais de uma base. No primeiro caso (mesclagem lexical), uma parte da palavra 1 é fundida com uma parte da palavra 2, resultando numa terceira forma, cujo conteúdo final pode ser interpretado pela soma dos conteúdos parciais (‘psicogélico’ = um psicólogo evangélico). A siglagem também faz uso de mais de uma palavra-matriz, mas há maior distanciamento entre base e produto, de modo que os falantes muitas vezes não conseguem rastrear a expressão de onde provém o acrônimo. Uma vez que pelo menos duas bases participam de sua formação, mesclas e siglas podem ser interpretadas como casos de composição, apesar de as primeiras operarem com, no máximo, duas pa-lavras-matrizes (‘gayúcho’ = ‘gaúcho’ + ‘gay’) e as últimas com um número que tende a ser superior a dois (‘IBGE’ – ‘Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística’). Mesclas lexicais e siglas se caracterizam pelo aproveitamento de pelo menos duas bases, mas, ao contrário da composição, utilizam apenas fragmentos delas, o que nos leva a concluir que não há concatenação estrita, mas fusão num plano multilinear.

Enquanto siglagem e blend quase sempre apresentam fun-ção lexical, tendo o produto a finalidade de nomear uma nova entidade, favorecendo a lexicalização, hipocorísticos e trunca-mentos são sempre utilizados com função expressiva, muito embora o tipo de expressividade seja diferente em cada um. Na reduplicação, há casos que evidenciam função lexical (verbos reduplicados) e casos unicamente com função expressiva, de modo que esse processo se apresenta como multifuncional em português (COUTO, 1999).

Portanto, são basicamente cinco as diferenças entre os pro-cessos (a) de afixação não-linear (reduplicação), (b) de encurta-mento (truncamento e hipocorização) e (c) de fusão (mesclagem lexical e siglagem):

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(1) os dois primeiros grupos têm como input uma única base, a partir da qual opera a circunscrição prosódica; os do terceiro, ao contrário, requerem pelo menos duas bases;

(2) as operações dos grupos (a) e (b) podem ser consideradas derivacionais, ao passo que os do grupo (c) devem ser interpretadas como casos de composição;

(3) os processos do grupo (a) levam o material rastreado a se adjungir à forma de base, o que não acontece com os demais;

(4) os mecanismos do grupo (b) não formam palavras novas, haja vista que o item derivado – que pode ser considerado sinônimo do derivante – é marcado pela função expres-siva (BASÍLIO, 1987);

(5) os do grupo (c) apresentam função lexical, uma vez que o produto é geralmente uma nova palavra na língua.

No decorrer do texto, procurei refutar a tese de que esses “processos marginais de formação de palavras” são idiossincrá-ticos (ALVES, 1990; MONTEIRO, 1987). A regularidade de tais operações provém da integração de primitivos morfológicos com primitivos prosódicos e, por isso, uma abordagem mais compreensiva de tais fenômenos requer enfoque a partir da interface morfologia-fonologia. Os procedimentos analíticos da morfologia prosódica – moldes e circunscrições – possibilitam descrever processos não-concatenativos de modo bastante na-tural, explicitando que eles não constituem, de fato, “morfologia pura”, mas “morfologia fonológica”, nas palavras de McCarthy (1986).

AbstractApproaches of Brazilian Portuguese non-conca-tenative morphological process within the fra-mework of prododic morphology (McCARTHY, 1981, 1986). Description of morphological and prosodic patterns of reduplication, truncation, lexical blend, inter alia.

Keywords: non-concatenatie morphology; phonology morphology interface; prosodic mor-phology.

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Usos do verbo ficar no português do Brasil: classificação e análise

Ida RebeloPaulo Osório

Recebido 20, abr. 2006/Aprovado 20,ago. 2006

ResumoO presente estudo propõe-se classificar e analisar os diferentes usos do verbo ficar, sob o ponto de vista semântico, à luz de um enquadramento fun-cional. A descrição efectuada nesta investigação respeita à variante brasileira do português.

Palavras-chave: usos, funcionalismo, ficar, pre-dicação, semântica.

Ida Rebelo e Paulo Osório

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Breves considerações introdutóriasO objecto de análise do presente texto toma como ponto

central de abordagem o uso do verbo ficar, uma vez que apre-senta uma variedade de sentidos quando ligado a preposições, adjectivos ou, até mesmo, a advérbios. Consideremos os seguin-tes exemplos:1

(01) Eu me fiz de idiota para não me aborrecer.

(02) Deu trabalho, mas nós fizemos bonito na exposição.

(03) Não deu para chegar mais cedo, portanto vamos eliminar uma parte da reunião.

(04) O exame deu negativo.

(05) Vamosdetrem até São Paulo e depois alugamos um carro.

(06) Você vai de saia ou de calça?

(07) É melhor irdevagar com esse assunto.

(08) Só um ficou com o dinheiro, os outros morreram.

(09) assim, fica difícil trabalhar.

Os verbos seleccionados nos exemplos de (01) a (07), ser-vem, apenas, para ilustrar que os significados do verbo ficar resultam da relação entre os sentidos possíveis de ficar e os sen-tidos dos seus complementos. Em (08) temos a paráfrase reter, que se estabelece a partir do sentido de mudança, próprio de ficar, relacionado com a expressão iniciada pela preposição com seguida de elemento determinado por artigo definido. Em (09) o sentido de mudança liga-se ao significado do adjectivo difícil e estabelece a paráfrase ganhar aparência de com sentido de apre-ciação. A fim de proceder a uma análise das construções onde o verbo ficar ocorre acompanhado de partículas preposicionais ou de adjectivos, baseou-se este trabalho no conceito de predicador como núcleo do enunciado.

o conceito de predicador, como núcleo do enunciado, podendo ser um verbo ou um nome, é o ponto fulcral da teoria desenvolvida por Peres (1984) e revista por Meyer (1991), traba-lhos estes que constituem a base teórico-metodológica da análise empreendida e têm como fundamento a gramática funcional de Dik (1981). Assim, na análise desenvolvida serão trabalhados os diferentes significados que se constroem no uso do verbo ficar entendido como predicador. Esses significados são revelados na dinâmica entre o predicador e os seus complementos, façam eles parte da estrutura argumental do verbo ou constituam, por outro lado, complementos de outra natureza. Nos usos de ficar aqui seleccionados, esse verbo é estudado ao entrar na formação

1 Todos os exemplos são do português do Brasil e seguem, igualmente, a ortografia dessa va-riante.

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de enunciados que são agrupados conforme os significados que apresentam. Consideram-se 15 significados diferentes confor-me os enunciados agrupados. A cada um desses significados é atribuída uma paráfrase explicativa, sendo esta um rótulo que identifica cada grupo de ocorrências com um mesmo significado. Em cada um desses casos, o verbo mantém o sentido expresso pela sua paráfrase explicativa com a possibilidade de uma gran-de variação no preenchimento de seus complementos.2

as ocorrências encontram-se divididas pela carga se-mântica peculiar a cada grupo dos exemplos seleccionados. De notar, todavia, que nesses grupos há casos em que o verbo ficar é seguido de preposição e casos em que isso não acontece. Dentre os moldes em que ocorre preposição, há aqueles em que a preposição compõe com o verbo uma unidade - como em (10). Nestes casos, a preposição é invariável e o complemento que lhe sucede faz parte da estrutura argumental do verbo, isto é, cons-titui um dos argumentos necessários do predicador. os casos do tipo exemplificado em (10) são menos numerosos. Há, por outro lado, um grande número de exemplos em que a preposição faz parte de um sintagma preposicional e varia conforme os exem-plos ou, então, pode ser substituída pelo adjectivo sem que haja alteração do significado - como em (11) e (12).

(10) A PUC fica na Gávea. (Ficar em = localizar-se)

(11) Elas ficaram com o Chico na Igreja. (manter-se relativamente a)

(12) Eu e a Leila ficamos juntos alguns anos e depois separamos. (manter-se relativamente a)

Nas ocorrências em que há sintagma preposicional, esta não constitui a única possibilidade de complementação do verbo ficar. Há outros elementos morfossintácticos que podem ser seleccionados para exercer funções semânticas idênticas. Pretendemos, pois, determinar o que concorre para regulari-zar a selecção dos complementos pelo predicador e estabelecer regras de uso.

1. Função e gramática funcionalA gramática funcional de Dik tem, como um dos princípios

básicos da sua organização, a criação de entradas no léxico a partir da constituição de marcos predicativos que contêm todas as informações necessárias à identificação dos itens lexicais. Dik (1981) postula que há três níveis que se inter-.relacionam para o estabelecimento do significado dos enunciados: odasrelaçõespragmáticas, o das relações semânticas e o das relações sintácticas. As informações contidas nos marcos predicativos devem dar conta das características impostas em cada um desses níveis. o modelo descritivo baseado nos marcos predicativos é adaptado

2 Essa característica ga-rante a distinção entre as ocorrências toma-das como objecto desta análise e aquelas que podem ser considera-das como expressões idiomáticas. Nas expres-sões idiomáticas há um sentido individual para cada expressão tomada de forma isolada. Este sentido não se mantém caso haja alteração dos complementos através de selecção no eixo sin-tagmático.

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por Peres (1984) sob a terminologia de “moldes proposicionais”. Na prática, o molde proposicional determina a distribuição dos elementos constituintes das ocorrências linguísticas.

É na actualização do molde proposicional que se materiali-zam as funções semânticas atribuídas aos termos do predicador na formulação do molde. Essas funções semânticas são limitadas por injunções sintácticas e pragmáticas. Neste estudo, em parti-cular, utilizamos, na formulação do molde, o procedimento de que, para cada grupo de exemplos, com um mesmo significado, é gerado um molde onde são representados os elementos cons-tituintes do enunciado – predicador, argumentos, funções dos argumentos – com as suas características invariáveis assinaladas. Essa representação leva à criação de rótulos – paráfrases explica-tivas – para cada grupo com o mesmo significado. Esses rótulos ou paráfrases, juntamente com a designação de item ordenado, servem de título ao molde, como no seguinte exemplo:

Formalização do Molde de Predicado F1

F 1: Manter-se – estado físicoMolde de Predicado Estativo BásicoΦ (x1) O: Φ ⇒ [FICAR + DS1] DS2: DS1 ⇒ Adj () Sprep + condição física: DS2 ⇒ Sprep + intervalo de tempo: (x1 ) ⇒ SN ___ Φ

Esta formalização descreve, em linhas gerais, os elemen-tos que constituem o molde de predicado em questão, assim como o seu argumento e função: Φ representa o predicador, (x1) representa o argumento do predicador e O indica a função do argumento (x1), que é a de objecto.

Uma outra noção que importa descrever é a de função. as funções organizam-se pelas escolhas que o falante faz no uso comunicativo da língua. As escolhas, por sua vez, são condicio-nadas por funções já estabelecidas na língua e pré-existentes às escolhas. Harder (1997) enfatiza a relação entre escolha e regras:

I now turn to the only situation in which function can exist from Searle s point of view: within an intentional context, where subjects can assign a function to something by virtue of their own conscious choices. Intentional functions are

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unique in being assignable by choice – but they share with all other forms of function the dependence on a Background in terms of which their contribution is normatively motivated. (HarDEr, 1997, p. 96)

É importante lembrar que uma gramática funcional não é incompatível com uma formalização descritiva. Neves (1997) faz uma avaliação detalhada da visão de gramática estabelecida por Halliday (1974) e fundamenta a nossa concepção sobre a adequação de um enfoque que considere as escolhas do falante ao formular a hipótese sobre o significado com estabelecimento de regras para o uso. a abrangência desse enquadramento pode ser melhor ilustrada na afirmação de Halliday (1974, p. 44), ao considerar o alcance da expressão “função” naquilo a que ele chama de “Functional sentence perspective - FSP”.

Nesse texto, Halliday distingue dois conceitos dentro da sua concepção do termo ‘função’: FSP (functional sentence pers-pective) que refere às funções atribuídas aos constituintes dos predicadores em consequência das escolhas do falante no acto ilocutório e funções comunicativas que constituem o que esse autor estabelece como as três funções da linguagem – ideacional, interpessoal e textual. No entanto, nem todas as funções atribuídas pelo falante encontram correspondência nas categorias da descri-ção normativa da língua. A descrição normativa tende a deixar de lado as ocorrências que não são acondicionáveis nas categorias sintácticas estabelecidas ou a classificá-las indevidamente. Esse é o caso das funções representadas por complementos verbais que, na categorização normativa, extrapolam a categoria de ob-jecto do verbo e nem sempre se encaixam nas outras categorias, como a de adjunto adverbial, por exemplo. Neste estudo criamos uma categoria – o definidor semântico – que tenta dar conta de complementos verbais desse tipo.

Na busca de uma formalização descritiva, consideramos o enfoque funcionalista, ao mesmo tempo, abrangente e económico para caracterizar itens do léxico. A caracterização feita à luz do funcionalismo utiliza pontos de vista gerados pela incidência, no mecanismo da linguagem enquanto dispositivo de comuni-cação, dos diferentes níveis citados, isto é, o nível das relações pragmáticas, o das relações semânticas e o das relações sintácti-cas. Por outro lado, uma gramática funcional que se baseia nas relações de predicador e argumento e tem no verbo o núcleo dessas relações mostra-se capaz de guiar uma análise que tem como tema o estabelecimento dos valores semânticos envolvidos no uso de determinada forma verbal.

1.1 A classificação de Peres e de MeyerA descrição que Peres faz dos predicadores verbais em

português, baseada na gramática funcional de Dik, tem o mérito

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de diferenciar, mais adequadamente, os níveis que se inter-rela-cionam na produção dos enunciados. Peres toma esses três níveis e, a partir deles, estabelece a existência de quatro componentes: componente ilocutório que determina os tipos de actos de fala (contexto pragmático); componente semântico que corresponde às estruturas de significação; componente textual que relaciona as estruturas textuais (contexto discursivo) e componente formal que relaciona as formas linguísticas (contexto morfo-sintáctico) (PERES, 1984, p. 28).

todas as propostas de construção de uma gramática funcional são orientadas pelo princípio da predicação. Con-forme explicitado em Meyer, a predicação é a descrição de um estado-de-coisas de que participam um ou mais argumentos relacionando-se com um termo predicador (MEYER, 1991, p. 42). a autora distingue as predicações simples das predicações complexas. Embora o objecto da nossa análise seja a predicação simples ou nuclear, importa considerar a definição de predicação complexa ou alargada. Consideramos que a predicação complexa é o campo onde transitam valores semânticos que podem escla-recer certos comportamentos do predicador ficar considerado na sua realização como núcleo da predicação simples.

No presente estudo, estabelecemos uma formalização de moldes de predicado originados na observação dos usos do predicador verbal ficar.

Peres ( 1984, p. 67) explica que[...] a tipologia pode ser elaborada de forma indutiva, a partir da construção de moldes proposicionais de um grande número de predicados3 de uma língua ou, alternativamente, como um modelo concebido apriori com base num determinado número de propriedades pertinentes na classificação dos predicados.

O autor faz um levantamento a partir das valências estabe-lecidas previamente para a maioria dos verbos portugueses. a análise de Meyer, assim como a que se empreendeu neste estudo, faz uso do procedimento indutivo. A partir da consideração de um corpus é feita uma formalização que pretende generalizar o comportamento do predicador ficar, agrupando-se as ocorrências contidas nesse corpus em torno de 15 moldes de predicado. os predicadores são classificados conforme a descrição de Peres, em função dos estados-de-coisas que representam e do tipo de argumentos que seleccionam, e podem ser:

(a) Estativos - ocorrem em proposições que designam esta-dos-de-coisas que não envolvem qualquer mudança no intervalo de tempo da sua duração e que não se combi-nam com um termo que represente uma entidade dada como causador dos estados-de-coisas que as proposições designam. (PERES, 1984, p. 86-87)

3 adoptamos aqui a ter-minologia de Meyer - predicador - para indi-car o núcleo da predica-ção, embora Peres use o termo predicado com as mesmas intenções.

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(b) Posicionais - ocorrem em proposições que designam estados-de-coisas que não envolvem qualquer mudança no intervalo de tempo da sua duração e que se combi-nam com um termo que represente uma entidade dada como causador dos estados-de-coisas que as proposições designam. (PERES, 1984, p. 86).

(c) Processuais - ocorrem em proposições que designam estados-de-coisas que envolvem uma qualquer mudança no intervalo de tempo da sua duração e que não se com-binam com um termo que represente uma entidade dada como causador dos estados-de-coisas que as proposições designam. (PERES, 1984, p. 86).

(d) accionais - ocorrem em proposições que designam esta-dos-de-coisas que envolvem uma qualquer mudança no intervalo de tempo da sua duração e que se combinam com um termo que represente uma entidade dada como causador dos estados-de-coisas que as proposições de-signam. (PERES, 1984, p. 86).

Conforme o tipo de argumento que seleccionam, os pre-dicadores podem ser classificados em: básicos - os argumentos seleccionados serão preenchidos por qualquer entidade desde que ela não tenha função semântica de causador, experienciador ou de lugar; experienciais - os argumentos seleccionados serão preenchidos por entidades que sofrem experiência de carácter psíquico; possessivos - os argumentos seleccionados são preen-chidos por entidades envolvidas numa relação de posse ou de mudança de posse e locativos - os argumentos seleccionados são preenchidos por entidades envolvidas numa relação de locali-zação ou de transferência de localização.

Importa observar que esta caracterização dos possessivos é da criação de Meyer, pois Peres faz a distinção entre possessivos (relação exclusiva de posse) e transaccionais (relação de mudança de posse). Meyer demonstra que o único traço que marca essa distinção em Peres é o de mudança e este traço já está expresso na classificação dos estados-de-coisas. A selecção dos argumentos pelo predicador implica a consideração das funções semânticas atribuídas a esses argumentos. São as seguintes as funções se-mânticas propostas por Peres para o português e adoptadas neste estudo:4 causador atribuída a uma entidade que desencadeia um estado-de-coisas; objecto atribuída à entidade envolvida em qual-quer tipo de estado-de-coisas, onde não desempenhe qualquer das restantes funções semânticas especificadas; experienciador atribuída à entidade que se encontra numa situação ou que sofre um evento de carácter psíquico; possuidor atribuída à entidade que tem a posse de outra entidade; recebedor atribuída à enti-dade que adquire a posse de outra entidade; dador atribuída à entidade que perde a posse de outra entidade; lugar atribuída à entidade que constitui o espaço de outra entidade; origem atribu-

4 Por razões que concer-nem as características do verbo ficar, nem todas as funções aqui descri-tas são seleccionadas por esse predicador.

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ída à entidade a partir da qual uma outra entidade é transferida e destino atribuída à entidade que constitui o espaço para a qual uma outra é transferida. (PERES, 1984, p. 118-119)

2 Usos do verbo ficar - classificação e análiseA listagem por significados baseia-se em dois critérios:I – Critério semântico explora, no presente estudo, a oposi-

ção entre o carácter estativo e o resultativo. o título - semântico - abrangeria mais do que está compreendido neste item, mas foi adoptado por nos parecer ser o que melhor cobre a distinção em questão. o primeiro critério subdivide-se em dois campos distintos: (A) – não-mudança ou estativo e (B) – mudança ou resultativo;

II – Critério funcional pragmático: baseia-se numa divisão por tipos de predicador, conforme a classificação estabelecida por Meyer. São eles: básico, experiencial, possessivo e locativo.

No quadro 1 apresentamos, de forma esquemática, a ma-neira como os dois critérios se inter-relacionam, formalizando a classificação proposta para os significados do verbo ficar:

Quadro 1 – Classificação dos Moldes de PredicadoA – I Estativos:

Básico manter-se DS (+ condição física)

DS2 (+ interv.tempo) F1

Experiencial manter-se DS (+ sentimento) DS2 (+ interv.tempo) F2

Locativo localizar-se x2 (+ lugar) F3

A – II Posicionais:

Básico manter-se relativamente à DS (+ modo) F4

Básico acção repetitiva DS (+ ação) F5

Locativo manter condição anterior x2 (+ lugar) F6

B – I Processuais:

Básico ganhar aparência de DS (+ apreciação) F7

Básico alcançar um valor DS (+ numeral) F8Básico classificar-se DS (+ item ordenado) F9

Básico restar DS (+ origem () + fim) F10

Básico resultar em DS (+ condição física) DS2 (+causa () tempo) F11

Experiencial passar a sentir-se DS (+ sentimento) DS2 (+causa () tempo) F12

B – II accionais:Possessivo reter x2 F13Experiencial responsabilizar-se x2 F14

o procedimento de distribuição dos moldes de predicado, como apresentado no quadro 01, deu origem a uma estatística que discriminamos a seguir. Entre os significados mais fre-

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quentes encontrados no uso do predicador ficar,temos 15 mol-des de predicado, dos quais 14 realizam-se conforme mostra o quadro 2:

Quadro 2 – Distribuição Estatística dos Moldes de Predicado

a - Não-MudançaMoldes de Predicados Estativos 3

Moldes de Predicados Posicionais 3

B - MudançaMoldes de Predicados Processuais 6

Moldes de Predicados accionais 2

Registamos, ainda, a existência de um molde de predi-cado accional que não se insere em nenhum dos dois critérios semânticos escolhidos. Esse molde é formalizado no Quadro 3 conforme o segundo critério, Funcional-Pragmático. No Quadro 3 não está, entretanto, incluída nenhuma marca referente ao primeiro critério:

Quadro 3 – Classificação do Molde de Predicado F15accional:Experiencial comprometer-se x2 (+ acção) F15

A classificação funcional-pragmática explica a excepção – não inclusão no critério semântico - sem tirar consistência ao critério criado. trata-se de verbo que pode ser incluído no grupo dito de ‘comunicação’ e, conforme Mateus e outros (1994), os verbos de comunicação podem, eventualmente, ser incluídos entre os verbos performativos5 da classificação de Austin e Se-arle. Essas circunstâncias explicam a classificação do predicador em accional; a paráfrase atribuída a F15, contudo, não autoriza sua inserção em nenhum dos dois eixos – mudança ou não-mu-dança – definidos no primeiro critério. Esta análise mostra-se coerente com a classificação de accionais ao inserir F15 no grupo que Mateus designa como verbos de comunicação. Para a autora, há predicadores não estativos que, sempre que usados literal-mente, são P agentivos, caso dos verbos como afirmar, declarar, dizer, concluir, deduzir, inferir. os predicadores não estativos que exigem um argumento [+humano], e exprimem uma proprieda-de ou relação controlável por esse argumento, podem ser usados agentivamente. (MATEUS et al., 1994, p. 46)

Para estabelecer com o máximo possível de adequação o critério de mudança/não-mudança, servimo-nos do cálculo de Mudança-de-estado de Von Wright, explicitado por Peres (1984, p. 88-89). Os símbolos utilizados são:

(p) - “proposição”(- p) - a contraditória de (p)(t) - operador diático, significa ‘a seguir’

5 Os verbos per for-mativos são definidos por austin (1970, p. 41) através da oposição en-tre enunciados perfor-mativos e enunciados constativos. Formular um enunciado cons-tativo, para austin, é emitir uma afirmação produzindo-a com uma referência histórica. Formular um enuncia-do performativo é, por exemplo, fazer uma aposta que não necessita de referência histórica.

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A partir destes símbolos são construídas 4 fórmulas possíveis que representarão um dos dois conceitos, isto é, Mudança ou Não-Mudança:

- p t p (Mudança)P t p (Não-Mudança)

- p t - p (Não-Mudança)P t - p (Mudança)

Sem adoptar a simples utilização do conceito de traço [+ ou - mutacional], que Peres adopta mas que é, contudo, de contornos, por vezes, difíceis de definir, preferimos utilizar esta fórmula lógica para enquadrar o nosso critério semântico, fórmula essa que se revelou de grande utilidade na determinação e justificação da divisão dos moldes de predicado. A explicação de Peres para essa fórmula lógica envolve a utilização dos verbos acontecer e permanecer e tem a seguinte formulação:acontecer (p) é definida como - p t ppermanecer (p) é definida como p t pnão acontecer (p) é definida como - p t - pnão permanecer (p) é definida como p t - p

Ao tomarmos exemplos do molde de predicado F1, que se inclui no parâmetro da não-mudança, podemos fazer as seguin-tes leituras, como assinalado entre parênteses:

(13) Ele ficou de cama durante 2 dias. (DS2 = durante 2 dias)

(14) Na festa da Paula, eu fiquei sozinho. (DS2 = enquanto durou a festa)

(15) Se não souber o que dizer, fique em silêncio. (DS2 = enquanto não souber o que dizer)

(16) Sta. teresa ficou sem água o dia inteiro. (DS2 = durante o dia inteiro)

(17) Fiquei sem meu ajudante por 3 meses. (DS2 = por 3 meses)

Nestas ocorrências, não são considerados intervalos de tempo anteriores ou posteriores ao momento da enunciação. Assim, lemos o símbolo (T) de uma forma ligeiramente diferente da que é apresentada no cálculo de Von Wright. No molde de predicado F1 (T) não é ‘a seguir’, mas sim, o intervalo de tempo explícito pelo constituinte DS2.

Uma vez que este estudo tem por objectivo a determinação dos valores semânticos de um predicador e não a sua análise textual, consideramos que a leitura acima atende aos objectivos a que nos propomos, ainda que, tomadas num contexto linguís-tico alargado, essas construções pudessem ser consideradas de mudança.

Considere-se o DS2 do molde de predicado F2, em (35):(18) Nós ficávamos impacientes antes da aula. (DS2 = enquanto a aula não

começava)

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O que nós alegamos para a classificação destes moldes no critério de não-mudança é que a predicação simples [ficar + DS1] não sofre mudança, enquanto sofre a influência de DS2, constituinte expressando intervalo fechado de tempo. O que pode causar, à primeira vista, uma certa flutuação do conceito de não-mudança é o que Schmitt chamará de “constant meaning of the verb”: a autora postula que ficar tem um traço de transition que lhe é constante, mas que esse traço pode ficar ‘ensombrea-do’ conforme os complementos que acompanham a realização do predicador e que nos parece ser o fenómeno em causa nos moldes F1 e F2:

I argue that the BECOME reading with adjectival predicates is the result of combining part of the qualia of the adjectival predicate with the TRANSITION fo ficar. The STAY readings of ficar + adjective are the result of shadowing the transition. [...] Unliked to any argument, the TRANSITION can only be part of the ‘constant’ meaning of the verb (SCHMITT, 1999, p. 227)

Corroborando esta afirmação, temos dois outros moldes - F11 e F12 - que se incluem entre os de mudança e que têm como DS1 os mesmos elementos que F1 e F2; entretanto, os seus DS2 atribuem um carácter de mudança ao predicador enunciado.

(19) Ele ficou doente pois não tomou os devidos cuidados. (DS2 + causa)

(20) Tenho 18 anos e fiquei indignada ao ler o depoimento da mulher que fez 3 abortos. (DS2 + tempo)

(21) Fiquei entusiasmado com a possibilidade de emagrecer. (DS2 + causa)

(22) as crianças ficam impacientes quando terminam o trabalho e não têm mais nada a fazer. (DS2 + tempo/causa)

Nestes exemplos, o traço [+tempo] não pode ser traduzido pela noção expressa pelos termos ‘durante’ ou ‘enquanto’ como em F1 e F2 mas, sim, pelas expressões ‘assim que’ ou ‘a seguir’. A presença dessas noções denota, definitivamente, a mudança de estado que diferencia o carácter permansivo – F1 e F2 – do carácter resultativo, também chamado de causativo por Mateus e outros (1989, p. 96) - F11 e F12. Consideramos, portanto, que a característica não-mudança, expressa pelo contexto linguístico, se sobrepõe à característica de ‘transição’ inerente ao predicador ficar. Todavia, para que fique clara a nossa utilização do traço temporal, veja-se o que refere Pinto (1994), uma vez que o que chamamos de tempo, é o que Pinto denomina tempo semântico, que não é marcado na enunciação da mesma forma que o temporeal, este, aliás, indicado por meio de sintagmas nominais que descrevem datas ou fixam durações:

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Enunciados que não contenham datas ou durações, como ‘Pe-dro chegou ontem’ ou ‘Quando Maria chegou, Pedro estava jantando’, não são ancorados ao tempo físico e são totalmente ambíguos quanto à data ou à duração dos estados-de-coisas representados. Mas apresentam, no entanto, certas caracterís-ticas gramaticais, como verbos conjugados, advérbios dêiticos (“ontem”) e orações temporais, que são marcas do que vou chamar de tempo semântico, objeto das operações de ancora-gem temporal. (PINTO, 1994, p. 58)

2.1 Dos moldes de predicado de ficar

2.1.1 Apresentação dos moldesPeres classifica os predicadores em básicos e derivados (PE-

RES, 1984, p.38) e atribui a cada predicador básico um molde proposicional registado no léxico de uma língua. Neste estudo adoptamos a terminologia de moldes de predicado ao invés de ‘moldes proposicionais’ e predicador ao invés de ‘predicado’, ambos de uso em Peres (1984). Molde de predicado designa, neste estudo, a fórmula lógica que traduz e generaliza o com-portamento semântico, textual e morfossintático de cada tipo de ocorrência do predicador ficar. a cada molde de predicado atribuímos um significado comum. A decisão de não atribuir o termo molde proposicional às fórmulas levantadas, neste estudo, liga-se ao facto de que entre os enunciados de ficar encontram-se predicadores básicos, onde ficar ocorre em presença de um argumento x2 e, também, predicadores derivados, onde ficar ocorre, obrigatoriamente, em presença de um DS indispensável ao estabelecimento do significado do molde. Quanto ao termo ‘predicador’, é usado, igualmente, por Meyer (1991) e representa o elemento núcleo do molde de predicado que no caso deste artigo é representado pelo verbo ficar. as ocorrências do predicador verbal ficar foram distribuídas em subgrupos que foram codifica-dos em função do significado comum aos exemplos listados em cada um. Esse código constitui-se por uma sigla alfanumérica composta de uma letra ‘F’ maiúscula e de um algarismo; este algarismo corresponde à posição ocupada pelo molde na lista-gem de significados levantada por este estudo. Cada código é seguido da paráfrase escolhida para o significado do subgrupo de ocorrências. assim, para cada molde de predicado temos um título, como no exemplo a seguir:

F1: manter-se – condição físicao título, que indica o tipo de molde de predicado, aparece

na segunda linha do molde e pode ser expresso como no exem-plo seguinte:

Molde de Predicado Estativo Básico

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Esse título é seguido do molde, propriamente dito, que se compõe de várias linhas onde estão dispostos os constituintes na ordem em que ocorrem. a primeira linha do molde consiste numa fórmula lógica contendo o símbolo Φ seguido dos argu-mentos do predicador. Os argumentos são representados por (x1) e (x2), onde o número que acompanha a letra (x) se refere a um dos dois argumentos que podem ser encontrados na predicação analisada. Cada (x) é seguido de uma letra maiúscula indicando a função semântica atribuída ao argumento. A primeira linha tem a seguinte configuração:

Φ (x1) OA fórmula lógica expressa acima pode ser lida como:

predicador (Φ) de 1 lugar ou de um único argumento, onde o argumento (x1) tem a função (O) de objecto do estado-de-coisas expresso pela predicação. Na segunda linha temos a explicita-ção, através da actualização lexical, do predicador seguido dos itens que se relacionam directamente com esse predicador sem, entretanto, constituírem argumento da predicação. Por não se tratarem de argumentos do predicador, esses itens são desig-nados como definidores semânticos. Esta linha tem a seguinte apresentação:

Φ ⇒ Ficar + DS1Essa linha do molde é lida como: o predicador (Φ) será

actualizado pelo verbo ficar, seguido de um constituinte que não se realiza como argumento da predicação e que é o seu definidor semântico.

Nas linhas do molde que vêm a seguir a essa fórmula são indicadas: as classes de palavras em que se pode actualizar cada argumento da predicação; as restrições de selecção para cada argumento; as classes de palavras em que pode(m) actualizar-se o(s) DS(s); as restrições de selecção para cada DS e a posição ocupada pelos argumentos em relação ao predicador. Quando não é indicada nenhuma restrição de selecção, isto significa sim-plesmente que não há restrições actuando sobre o elemento em questão. Assim, no molde de predicado F1 formalizado a seguir, (x1) actualiza-se no nível formal sem restrições de selecção. Nesta formalização os colchetes indicam que o predicador como um todo [FICAR + DS1] é modificado por um terceiro elemento da predicação, o DS2.

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Formalização do Molde de Predicado F1

F 1: Manter-se – estado físicoMolde de Predicado Estativo BásicoΦ (x1) O: Φ ⇒ [FICAR + DS1] DS2: DS1 ⇒ Adj () Sprep + condição física: DS2 ⇒ Sprep + intervalo de tempo: (x1 ) ⇒ SN ___ Φ

(23) Ele ficou de cama durante 2 dias mas depois foi trabalhar ainda que não estivesse completamente curado.

(24) a verdade ficou oculta durante 100 anos.

(25) os seus objetos de prata podem ficar reluzentes por cinco anos depois de polidos. A prata recebe uma camada de verniz plástico incolor.

Considerem-se os argumentos (x1) de (23), (24) e (25), aos quais podem ser atribuídos diferentes traços, respectivamente, como se segue:

• (x1) é actualizado pelo SN ‘ele’ com traço [+humano];• (x1 ) é representado por ‘a verdade’ e tem o traço [+abs-

tracto];• (x1) corresponde a ‘os seus objetos de prata’ e tem o tra-

ço[- animado].Esses traços não interferem no significado do molde, ou

seja, (x1) pode ser representado por todo e qualquer SN que possa ser inserido nessa predicação com função semântica de Objecto e não apresenta, portanto, nenhuma restrição de selecção.

2.1.2 Os argumentos nucleares e os argumentos opcionaisSegundo Martinet (1979), as gramáticas funcionais con-

sideram a existência de funções que são unidades linguísticas definidas por uma forma e um valor. Dentre essas funções, é pre-ciso distinguir aquelas que formam os argumentos nucleares de certos predicadores verbais das que formam os seus argumentos opcionais. os argumentos nucleares são elementos relacionados com o predicador verbal de forma intrínseca, estando previstos no próprio valor semântico do núcleo predicador, já argumentos opcionais de um predicador verbal são facultativos e não fazem parte da valência verbal. O significado do verbo não depende dos seus argumentos opcionais, uma vez que estes apenas

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acrescentam novos dados ao sentido básico. Como diz Meyer (1991, p. 45-46):

São nucleares os argumentos correspondentes aos lugares pre-vistos na estrutura semântica do predicador. São opcionais os argumentos que, não estando previstos na estrutura semântica do predicador, podem ser-lhe acrescentados, caso o predicador os aceite e caso haja intenção comunicativa para tal.

Por oposição aos argumentos opcionais, os argumentos nucleares são indissociáveis do significado do predicador ver-bal a que se ligam e são subentendidos mesmo ‘in absentia’. Em (26) temos um exemplo desse relacionamento dos argumentos nucleares com o predicador e em (26’) temos a adição de argu-mentos opcionais. Em (26’’) o número de argumentos nucleares não foi reduzido, apenas um dos argumentos foi omitido, mas está subentendido.

(26) João disse a ela que saísse.

(26’) João disse a ela, sem levantar os olhos, que saísse, imediatamente.

(26’’) João disse que saísse.

As funções expressas pelos termos “João”, “a ela” e “que saísse” são argumentos nucleares do predicador verbal e carac-terizam a valência do verbo “dizer”. Sem esses termos, o predi-cador verbal, em questão, não traz informação suficiente para ser aceite como elemento com carga informacional autónoma; assim, os argumentos nucleares caracterizam a valência dos predicadores que acompanham. O termo ‘valência’ é definido por Martinet (1979, p. 159):

Parmi les fonctions en tant qu’unités linguistiques définies par une forme et une valeur, on distinguera celles qu’on ne rencontre jamais avec certains verbes et qui, en conséquence, caractérisent les verbes auprès desquels on les rencontre. Ces fonctions sont celles qui constituent ce qu’on désigne souvent comme la valence du verbe.

Dentre as muitas definições existentes para o termo va-lência, incluímos aqui essa noção de ‘valência’ expressa por Martinet, por considerarmos sua definição útil para a compre-ensão do relacionamento que se estabelece entre argumentos e predicadores. Entretanto, por razões de economia descritiva e da especificidade do nosso objecto de análise, limitar-nos-emos, ao longo da análise, às propostas avançadas por Meyer e Peres. além disso, o predicador ficar extrapola o conceito de valência.

Quanto à polémica sobre a distinção entre argumentos nucleares e opcionais, levantada por Peres e Meyer, não conside-ramos a sua discussão no âmbito deste trabalho. Esclarecemos tão somente que, com vista a uma generalização quanto ao tipo de argumentos seleccionados por ficar, podemos afirmar que

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este predicador sempre selecciona, pelo menos, um argumento que terá a função semântica quer seja de objecto (O), de expe-rienciador (Ex) ou causador (C). É importante observar que estas duas últimas vão ser definidas na constituição semântica do molde, uma vez que há a possibilidade de se ter um argumento experienciador que pode ou não acumular a função semântica de causador.

outra observação é que ficar, eventualmente, selecciona um segundo argumento; entretanto, nos casos - mais numero-sos – em que selecciona apenas um argumento, ficar encontra-se, invariavelmente, ligado a um definidor semântico (DS), consti-tuindo, assim, um predicado derivado, conforme a concepção de Peres. A categoria ‘derivado’ é considerada em oposição à dos ‘básicos’, que se realizam, segundo este autor, sem a presença de constituinte ligado ao verbo que não exerça a função de argumento. observamos, igualmente, que uma das categorias consideradas na formalização de Peres como função semântica exclusiva de argumentos opcionais aparece, no presente estu-do, como argumento nuclear. trata-se da dimensão espacial que, como se pode comprovar nos exemplos apresentados, é representada por argumentos com traço [+ lugar]. Isto acontece em virtude do argumento com a referida função semântica responder, integralmente, nos moldes de predicado de ficar, às injunções necessárias para ser considerado como argumento nuclear, conforme a teoria proposta por Meyer.

o quadro 4 dá uma visão de conjunto do relacionamen-to que se estabelece entre moldes de predicado e argumentos seleccionados, tendo como parâmetro as funções semânticas destes últimos:

Quadro 4 – Selecção das Funções Semânticas

tipos de ocorrências

Selecção das Funções Semânticas para cada Argumentox1 x2

Ficar em o C L

Ficar com r C o

Ficar de C oFicar + DS o Ex C Ø

A selecção de funções semânticas pelo predicador ficar para os seus argumentos obedece a um direccionamento facilmente compreensível quando se consideram as propriedades dos mol-des de predicado em que ocorrem. A função objecto (O) tanto pode ser seleccionada para (x1) como para (x2). Entretanto, só o será para o primeiro argumento em moldes de predicado estati-vos, como em (27) ou processuais, como em (28) que são aqueles em que o estado-de-coisas é considerado como ‘não-causado’ por nenhuma das entidades envolvidas. Este mesmo argumen-

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to apresentará a função causador (C), mas somente nos moldes de predicado posicionais, como em (29) ou accionais, como em (30). As funções semânticas experienciador (Ex) e recebedor (R) partilham traços com a de causador e estarão presentes apenas nos moldes em que se considera que se sobreponham a esta última:

(27) Ele fazia seu discurso e todos ficamos em silêncio.(F1)

(28) Você fica muito bem com essa roupa.(F7)

(29) Eu fico muito tempo conectado, mas prefiro as madrugadas pois a ligação é mais barata.(F4)

(30) Resistindo à tentação de ficar com todas, decidi ficar sempre com a que traz, além das tabelas e dos mapas, as fases da lua.(F13)

Quanto à função lugar (L), tem como peculiaridade ocorrer apenas em moldes que seleccionam dois argumentos. Há, apenas, dois moldes de predicado apresentando argumentos com traço [+lugar]: F3, para seres inanimados e localidades geográficas – Molde de Predicado Estativo Locativo; e F6, para seres animados desde que apresentem mobilidade autónoma (plantas e peixes em aquário, por exemplo, estão excluídos) – molde de predicado posicional locativo. Esses moldes são, também, os únicos, no critério semântico de não-mudança, que admitem um segundo argumento - (x2)- e têm, em comum, a presença de uma única e mesma preposição em todas as ocorrências – EM. A existência de preposição única simultânea à selecção de um segundo argu-mento nuclear vai repetir-se no grupo classificado no segundo critério – mudança – em que os dois únicos moldes a admitirem o segundo argumento – (x2) – têm, igualmente, o predicador ficar ligado, invariavelmente, à mesma preposição – COM. São os moldes F13 – Molde de Predicado Accional Possessivo – e F14 – Molde de Predicado Accional Experiencial.

2.2 Os definidores semânticos – DSDeste estudo resultou a criação de uma terminologia para

designar constituintes que, ligados ao predicador verbal, são imprescindíveis para a construção do significado do molde de predicado sem constituírem argumento desse predicador ver-bal. Esses constituintes estão aqui designados como definidores semânticos (DS). O DS caracteriza-se por ser um constituinte ocorrendo junto ao verbo e representado no componente formal por: adjectivo (adj), sintagma preposicional (Sprep), advérbio (adv) ou por uma oração (or). Há, ainda, muito raramente, a possibilidade de um sintagma nominal assumindo função de advérbio como o DS2 em (31).

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alguns dos moldes de predicado que se constroem como ficar + DS necessitam de um outro definidor semântico, que modifica o predicador como um todo. Sendo assim, temos de-finidores semânticos de duas naturezas: (1) aquele que constrói o significado do molde, explícito na paráfrase e (2) aquele que restringe esse significado, diferenciando as ocorrências do res-pectivo molde de outras que se apresentem morfossintaticamente idênticas, mas que pertençam a outro molde de predicado.

(31) Sta. teresa ficou sem água o dia inteiro. (F1)

(32) Sta. teresa ficou sem água por uma falha da CEDAE. (F11)

Em (31), como em (32), temos o predicador ficar ligado a um DS1 representado por Sprep com o traço [+ condição física] – semágua. Em (31), entretanto, o DS2 [+ intervalo de tempo], representado por “o dia inteiro” o distingue de (32), onde o DS2 [+ causa] “por uma falha da CEDAE” atribui um valor resultativo ao predicador. Isto é, o DS2 é o responsável pela distinção entre o critério semântico de Mudança em (32) e o de não-mudança em (31).

2.1.1 Representações dos DS em algumas categorias morfossintáticas

Um grupo considerável, dentro do leque de significados atribuídos a ficar, constrói-se com DS. além disso, a maioria des-ses moldes de predicado admite a representação do DS por uma expressão com função adjectiva, ou por uma oração com valor adjectivo ou adverbial. Essas razões levam-nos a descrever, de-talhadamente, as possibilidades de ocorrência que caracterizam esse constituinte nos moldes de predicado de ficar. Considerados os critérios (i) semântico e (ii) funcional-pragmático utilizados nesta análise, a determinação das categorias morfossintácticas tem um papel secundário. o valor semântico de que são por-tadores os DS sobrepõe-se ao que possam incluir as categorias morfossintácticas atribuídas aos elementos que compõem es-ses DS. Tendo em vista o carácter classificatório desta análise entendemos que se torna necessária a descrição de todos os elementos que compõem o molde de predicado. Vamos, assim, ocupar-nos, inicialmente, das ocorrências com adjectivo. Dentre os moldes em que ficar se faz acompanhar por DS, apenas em F10 não ocorrem expressões com função adjectiva. Todo o resto apresenta a possibilidade de ocorrência de adjectivo, ou de ex-pressão equivalente, na predicação.

Adjectivo (Adj)Em português, a função adjectiva pode fazer-se represen-

tar, no componente formal, pelos seguintes itens lexicais:

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• adjectivos comuns• adjectivos deverbais• formas V+do• locuções prepositivas

Deixando de lado, por agora, as locuções prepositivas, res-ta-nos um grupo de formas classificadas indistintamente como adjectivos. Dentro deste grupo encontram-se as formas [V+do], que poderiam representar um problema de classificação quando consideradas na análise dos constituintes das predicações de ficar. Isto dá-se, em primeiro lugar, por uma certa dificuldade, à primeira vista, de se determinar se, em presença das formas [V+do], o predicador ficar não pode ser classificado como verbo auxiliar. Isto é, há necessidade de se eliminar a possibilidade de tratar-se de um predicador em que ocorre passivização, pois, como determina Peres, só verbos plenos podem ser predicadores de um estado-de-coisas.

Tendo em conta Mateus e outros (1989), que consideram uma parte das ocorrências de ficar como variante aspectual de estar, e considerando que, enquanto variante aspectual de estar, ficar não ocorre como verbo pleno, as ocorrências com ficar + [V+do] não poderiam, portanto, ser analisadas, no âmbito deste estudo. Tornou-se, deste modo, relevante mostrar que as formas [V+do] encontradas entre os constituintes das predicações ana-lisadas não têm função verbal, ou seja, não participam de uma transformação resultante do procedimento de passivização de uma forma verbal transitiva directa. Para este fim, submetemos essas ocorrências à aplicação das 10 propriedades relacionadas por Pimenta-Bueno (1986) para a distinção das circunstâncias textuais e dos ambientes sintácticos em que se realiza uma ou outra função das formas [V+do], ou seja, se em função adjectival ou se em função verbal.

A fim de enquadrar a nossa análise com dados justificáveis pelas hipóteses estabelecidas por Pimenta-Bueno, analisamos cada uma das ocorrências [V+do] encontradas entre os exem-plos listados. tomemos o predicador Φ ⇒ Ficar + DS1, onde DS1 terá como representação, no componente formal, elementos que ocorrem, indistintamente, como:

• adjectivos comuns (sozinho, impaciente, etc);• adjectivos deverbais ( parado, transitável, etc);• Formas [V+do] originadas de verbos transitivos directos

que obedeçam à tipologia das propriedades levantadas por Pimenta-Bueno.

Antes de expor os resultados da análise das formas [V+do] contidas no corpus deste estudo, consideramos relevante fazer referência à classificação estabelecida por Pimenta-Bueno, que estabelece uma minuciosa descrição das formas [V+do]. Para a autora, as formas [V+do] dividem-se em dois grupos: (a) vocá-bulos cuja base não é um verbo transitivo directo e que são os

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adjectivos deverbais comuns, que não têm maiores implicações na distinção que ora pretendemos fazer, pois não participam dos processo de passivização; (b) vocábulos que têm por base os verbos transitivos directos e que actuam, segundo o contexto, ora como verbo, ora como adjectivo, ora com características de ambas as classes, verbos e adjectivos. (PIMENTA-BUENO, 1986, p. 207-208).

Pimenta-Bueno enumera 10 propriedades sintácticas das formas [V+do] que tenham por base um verbo transitivo di-recto. Para a autora, essas propriedades servem para esclarecer em que contextos sintácticos ocorrem as formas [V+do] e em quais deles essas formas são consideradas, respectivamente, adjectivo ou verbo (PIMENTA-BUENO, 1986, p. 208-214). Essas propriedades são por nós utilizadas para validar o “rótulo” de adjectivo atribuído às formas [V+do] que participam das ocor-rências analisadas neste estudo. Dado o carácter instrumental do trabalho de Pimenta-Bueno para o nosso estudo, não faremos uma exposição exaustiva das propriedades em questão. Mostra-remos, apenas, de que forma uma dessas propriedades auxilia no esclarecimento das características dos adjectivos deverbais envolvidos nos predicadores de ficar. a primeira propriedade restringe as consequências da ocorrência de formas [V+do] no nosso corpus. transcrevemos a descrição dessa propriedade, a seguir:

1a. propriedade: adjectivoPodem ocorrer em posição predicativa em sintagmas

verbais.a) Em posição de pós-cópula;b) Em formas atributivas introduzidas por como;c) Como complemento da classe restritiva de SV que inclui

os verbos sentir-se, julgar-se, crer-se, achar-se e considerar-se entre outros;

d) Como complementos de verbos indicadores de Mudança de estado como tornar-se e ficar. (PIMENTA-BUENO, 1986, p. 208)

O item (d) da citação acima leva-nos a excluir da discussão sobre as formas [V+do] todos os moldes de predicado de ficar em que há mudança de estado. São os moldes listados de F7 a F14, no Quadro 1. Restam-nos, então, os moldes de predicado classificados como de “não-mudança”. São os moldes listados de F1 a F6. Dentre esses moldes, apenas F1, F2 e F4 poderiam levantar a possibilidade de indeterminação da natureza do adjectivo constante no DS1, uma vez que F3 e F6 são moldes de predicado em que ficar não se liga a DS e sim a argumento (x2). O tipo de teste que Pimenta-Bueno propõe é o de se substituir a ocorrência [V+do] que se quer analisar sucessivamente por um outro adjectivo primitivo e por um verbo em forma flexionada,

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caso este último se revele uma construção aceitável: teríamos então um verbo, no particípio passado, e não um adjectivo.

Apresentamos, a seguir, uma outra razão para que as cons-truções ficar + [V+do] não sejam consideradas como passivas, uma vez que, na voz passiva, ainda que de forma implícita e/ou indeterminada, há a presença de um elemento agente. Neste estudo, porém, mesmo em exemplos onde ocorram estruturas [V+do] derivadas de verbo transitivo, há um apagamento da função de sujeito da activa/agente da passiva. Isto é, essa função não se produz na frase. Vejamos os exemplos:

(33) assumo sempre o que digo [...] Mas eu não tenho que obedecer, por duas razões: 1º porque não têm que proibir o que eu já não proíbo; 2º porque ficarei enterrado na terra, sem mais nada a não ser a terra.

(34) O prédio ficou abandonado durante anos depois de ter sido desocupado pelos antigos moradores.

Em (33) e (34) não se trata de considerar uma acção - serenterrado, ser abandonado - sob o ponto de vista do elemento sobre o qual ela incide, como é o caso da construção passiva. trata-se é da constatação de uma condição física do argumento com função semântica de objecto do estado-de-coisas expresso pelo enunciado. (33) e (34) não servem como resposta às seguintes perguntas: Por quem ele foi enterrado? ou, Por quem o prédio foi abandonado?

Estas constatações levam-nos a afirmar que, no caso dos moldes de predicado F1, F2 e F4, a possibilidade de ficar ser considerado auxiliar da passiva deve ser afastada, dado que, a partir da aplicação das propriedades estabelecidas por Pimenta-Bueno, as leituras possíveis dos enunciados do corpus excluem a possibilidade de se tratar de formas da voz passiva.

Sintagma preposicional (Sprep)outro ponto a ser esclarecido quanto aos elementos que

compõem os DS é o que diz respeito às ocorrências de Sprep. Se considerarmos predicadores formados com DS como um conjunto de moldes com características comuns teremos, dentro deste conjunto, um subconjunto formado pelos moldes onde o DS se constitui de Sprep ligado ao predicador, com ele formando um todo. Esse Sprep tem função adjectiva ou adverbial e, nor-malmente, pode ser substituído por adjectivo ou por advérbio consoante a função respectiva exercida. Encontram-se neste subconjunto os moldes: F1, F2 e F4, do 1º critério semântico - e F8, F9, F10, F11 e F12, do 2º critério semântico, em que há pontos comuns a todos. todos esses moldes representam predicadores de um só lugar com a ocorrência de elementos ligados ao verbo por preposição sem que esses elementos possam ser caracteri-zados como (x2). A preposição usada, diferentemente do que acontece nos predicadores que apresentam argumento (x2),

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pode variar e não é condição obrigatória para a classificação do molde de predicado, uma vez que também ocorrem nesses moldes as formações de predicador + Adj e - apenas em F11 e F12 - de predicador + adv, sem a participação de preposição. Essa variação da preposição pode conduzir à ambiguidade, por ser marcada com formas idênticas em moldes cujos significados são diferentes. Assim, as actualizações dos moldes podem coincidir nas categorias morfossintácticas, ainda que venham a diferir na carga semântica.

(35) Ela ficou com as pernas doendo de tanto dançar. (F11)

(36) O gato ficou com tanto medo que subiu literalmente as paredes. (F12)

(37) Depois do assalto só um ficou com o dinheiro, os outros correram. (F13)

Em (35), (36) e (37) temos o predicador ficar, conjugado no pretérito perfeito do indicativo, em moldes de predicado cujo argumento (x1) tem o traço [+animal]. o predicador verbal é seguido da preposição [com] que, por sua vez, precede um complemento formado por SN. Estas são as características que têm em comum os elementos que entram na construção dos exemplos citados e que são coincidentes para os três exemplos, ainda que em (35) o SN faça parte de uma oração reduzida de gerúndio. tendo em vista o componente semântico, porém, (35), (36) e (37) se actualizam em três diferentes moldes de predicado, como se segue:(53) F11 ⇒ Molde de Predicado processual básico. Paráfrase: resultar em,

onde (x1) será objecto de um estado-de-coisas que implica em experiência não-psíquica.

(54) F12 ⇒ Molde de Predicado processual experiencial. Paráfrase: passar a sentir-se, onde (x1) será objecto de um estado-de-coisas que implica em experiência psíquica.

(55) F13 ⇒ Molde de Predicado processual possessivo. Paráfrase: reter, onde (x1) recebe a posse de uma entidade (x2), definitivamente ou por algum tempo.

A partir das constatações, acima, justifica-se a diferença de significados notada na simples leitura dos exemplos em questão. Em presença de um DS, o sentido do enunciado como um todo é definido por esse elemento. Quando da existência de dois argumentos no enunciado analisado, o sentido da mesma constrói-se no inter-relacionamento do predicador com os seus argumentos, como é o caso de F13, onde há uma transferência de posse.

O nosso estudo parece apontar para o facto de que a ho-monímia só existe se considerarmos unicamente a forma lexical ficar isolada. Ao enfocarmos o ambiente frásico em que ela se encontra temos um caminho bifurcado: ou essa forma lexical

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se apresenta ligada a um DS revelando-se um outro constructo, lexical e semanticamente definido; ou ficar é regido por uma preposição constante e selecciona um argumento compatível com o significado do predicador. Assim, o conceito de carga valencial perde em importância, pois neste estudo fica exposta uma outra realidade: a de que a valência do verbo ficar não é suficiente para determinar o significado do verbo: este depende, em muitos casos, de algo mais do que seus argumentos para ser determinado. Um corolário da afirmação anterior é que ficar constitui-se como uma forma verbal mutacional que, mesmo sem ter aumentado o número de seus argumentos, encontrou novos sentidos graças à presença dos definidores semânticos (DS) que a ele se ligam de forma estreita e com ele criam uma unidade geradora de sentido, sentido este que se renova a cada alteração nos traços que caracterizam o DS.

AbstractThe study presented here aims at classifying and analysing the different uses of the verb ficar from a semantic point of view, following a functionalist approach. This description concerns the Brazilian variety of the Portuguese language.

Keywords: uses, functionalism, ficar, predication, semantics.

Referências

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o uso do modo subjuntivo em orações relativas e completivas no português

afro-brasileiroVívianMeira

Recebido 21, jun. 2006/Aprovado 21, ago. 2006

ResumoEste trabalho apresenta um estudo sobre a variação no uso do modo subjuntivo nas orações relativas e completivas no falar de quatro comunidades rurais afro-brasileiras do interior do Estado da Bahia. Com o suporte teórico-metodológico da sociolingüística variacionista e o recurso ao pacote de programas VARBRUL para o processamento quantitativo dos dados lingüísticos, analisou-se o encaixamento desse processo variável na estrutura lingüística e social das comunidades de fala estu-dadas. Do ponto de vista lingüístico, as formas do modo subjuntivo ocorrem com maior freqüência em duas situações: (i) uma de base morfológica, em que o uso das formas de subjuntivo se dá tanto com verbos quanto com o tempo em que a oposi-ção subjuntivo versus indicativo é mais saliente; (ii) outra de base semântica, em que o contexto de irrealidade tende a favorecer o uso do modo subjuntivo.

Palavras-chave: sociolingüística; língua portu-guesa - subjuntivo; comunidades afro-brasilei-ras - Bahia.

VívianMeira

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IntroduçãoNeste trabalho, aplicamos a teoria da variação lingüística

laboviana, além de nos pautar também na teoria da transmissão lingüística irregular (TLI), como forma de explicar a variação no uso dos modos verbais entre falantes de comunidades ru-rais afro-brasileiras isoladas, situadas no interior do estado da Bahia. Com efeito, em linhas gerais, consideramos a hipótese de que a variação no uso do subjuntivo nessas comunidades seja resultado do processo de transmissão lingüística irregu-lar, desencadeado pelo massivo contato do português com as línguas africanas, ocorrido nos períodos colonial e imperial. Acreditamos que nessas comunidades, diferentemente do que se observa em pesquisas no português urbano, o subjuntivo vem gradativamente ganhando ambiente antes ocupado apenas pelo indicativo, visto que os antepassados desses falantes devem ter adquirido através do processo de TLI as formas do indicativo, pois este modo, por se referir a eventos reais, tende a ser mais usado na comunicação, podendo ser definido como o modo morfologicamente não marcado. Atualmente, o subjuntivo vem sendo adquirido por estes falantes em decorrência da difusão dos meios de comunicação e de toda a infra-estrutura propiciada pela urbanização de nosso país.

1 O fenômeno estudado: o modo subjuntivoa tradição gramatical apresenta um sistema de modo

verbal, cujo emprego se baseia ora em critérios semânticos, ora em critérios sintáticos e formais. De fato, se nos pautarmos na gramática tradicional, observaremos uma miscelânea de regras que norteiam o emprego dos modos verbais, especificamente do subjuntivo.

Esse conjunto de fatores arrolados pela tradição gramatical portuguesa atesta a variação no emprego dos modos verbais, uma vez que apresenta, por exemplo, a anteposição ou pospo-sição do advérbio talvez ao verbo como regra de emprego de subjuntivo ou de indicativo, respectivamente, como se o advérbio por si só marcasse a atitude que deveria ser categoricamente expressa pelo verbo, como em:

(i) Talvez eu compre uma camisa;

(ii) Comprareitalvez uma camisa.

os modos verbais são também condicionados por regras facultativas cuja aplicação é regulada por fatores intencionais e subjetivos, pois, muitas vezes, cabe à atitude do falante o em-prego de determinado modo, mesmo que a estrutura gramatical indique o uso de um modo específico. Por outro lado, verificamos também que a complexidade em estudar a forma verbal se dá

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inicialmente a partir do fato de que um mesmo morfema acu-mula em si as noções de tempo e de modo. Semanticamente são valores distintos, mas são indissociados morfologicamente.

o respaldo teórico apresentado pela gramática tradicional é muitas vezes contraditório com o uso. Tomando como base Santos (2003), achamos conveniente, como primeiro passo, ob-servar o que existe de comum em:

(i) Quero que você estude hoje.

(ii) Talvez você estude hoje.

(iii) Duvido que você estude hoje.

Curiosamente, poderíamos nos perguntar o que permite a mesma forma – estude – assumir conteúdos semânticos distintos, como dúvida, vontade, sentimento etc. Levando em conta o que prescreve a tradição gramatical, no que diz respeito ao emprego do subjuntivo, diríamos que tal modo é determinado automati-camente pelo tipo de verbo da oração principal e, assim, depara-mo-nos com um “problema” sintático. Por outro lado, assume-se também que o modo verbal é dependente de uma atitude do falante diante de um fato ou de uma proposição enunciada, referindo-se, assim, a uma questão semântico-pragmática.

No entanto, o emprego do subjuntivo não se deve exclu-sivamente a uma questão sintática ou semântico-pragmática, mas também, e com certa freqüência, a expressões de dúvida, a conjunções, a advérbios etc. Daí poderíamos supor que os princípios sintático e semântico-pragmático de emprego do sub-juntivo estariam estreitamente relacionados com tais partículas. Em outras palavras, uma explicação meramente sintática não abarcaria todas as ocorrências do subjuntivo e, devido a isso, recorre-se a critérios puramente semânticos, que, por sua vez, são insuficientes, não cobrindo todos os aspectos de uso desse modo em português, valendo-se, assim, de definições de vária ordem.

É extremamente complexo o estudo da flexão verbal de modo em português, pois, quando observamos, por exemplo, o contexto semântico de emprego do subjuntivo em que o falante opta voluntariamente por impulso expressivo por determinado modo, verificamos que há uma mudança no sentido da frase, portanto, não há variação. Para a teoria variacionista, quando a opção implica uma diferença no valor semântico da oração, ou seja, quando os contextos em que há alternância entre as formas do subjuntivo e do indicativo indicar mudanças semânticas, não há variação, pois os significados são distintos, ao passo que a variação remete ao processo de alternância entre duas formas que, no mesmo contexto, remetem ao mesmo significado.

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a análise do uso do modo verbal sob a perspectiva da sociolingüística quantitativa permite-nos demonstrar em que medida o contexto lingüístico condiciona o emprego dos mo-dos, bem como com que freqüência uma camada da estrutura social impulsiona a aplicação do mesmo. Empregamos, para a análise quantitativa dos nossos dados, o pacote de programas VARBRUL.

2 MetodologiaNosso estudo objetiva discutir a variação no uso do modo

subjuntivo em português, verificando a freqüência de emprego desse modo em quatro comunidades rurais afro-brasileiras do interior do estado da Bahia: as comunidades de Cinzento, Hel-vécia, Barra e Bananal e Sapé. Para análise dos dados dessas comunidades, utilizaremos os corpora constituídos pelos pesqui-sadores do Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia. Serão analisadas 28 entrevistas.

Os informantes foram distribuídos em sexo (masculino e feminino), idade (faixa I: de 20 a 40 anos; faixa II: de 41 a 60 anos; faixa III: de 61 a 80 anos e faixa IV, com mais de 80 anos), escolaridade (analfabeto e semi-analfabeto) e estada fora da co-munidade (aqueles que viveram pelo menos seis meses fora da comunidade e aqueles que se ausentaram da comunidade por um período inferior a seis meses).

A variação no uso do subjuntivo apresenta diferentes graus de intensidade, a depender, não apenas do contexto interno, como também dos fatores sócio-históricos que caracterizam a comunidade pesquisada. optamos pelo estudo dessas comuni-dades pelo fato de elas serem constituídas por afro-descendentes, cujo passado está ligado ao contato entre línguas e ao processo de TLI e por apresentarem certo grau de isolamento de outros meios sociais. Segundo nossa hipótese de trabalho, o contato entre a língua portuguesa e as línguas africanas faladas pelos antepassados dos membros que hoje vivem em tais comuni-dades e a transmissão irregular daquela a estes falantes foram responsáveis por muitas das variações ocorridas no português do Brasil, especialmente em sua variedade rural.

2.1 O contexto lingüístico: a variável dependente e as variáveis explanatóriasDelimitamos duas variáveis dependentes para estudo: (i)

o uso do modo subjuntivo em orações relativas e (ii) o uso do subjuntivo em orações completivas, com variantes binárias em cada uma delas, presença/ausência da forma do subjuntivo.

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2.1.1 O emprego do subjuntivo em orações relativas: fatores lingüísticos

As variáveis lingüísticas explanatórias utilizadas para a análise do uso do subjuntivo em orações relativas são as seguin-tes: (i) tempo do subjuntivo previsto no uso culto; (ii) localização temporal do evento expresso na oração relativa em relação ao momento da enunciação e (iii) morfologia verbal.

Com as variáveis tempo do subjuntivo previsto no uso culto e morfologia verbal, tanto na análise do uso do subjuntivo nas orações relativas quanto nas completivas, procuramos avaliar a atuação do princípio da saliência fônica, isto é, se as formas mais marcadas foneticamente na oposição subjuntivo versus indicativo favorecem o uso do subjuntivo. Isso será válido tanto para a diferença entre as formas do presente e do imperfeito do subjuntivo, quanto com relação à questão da regularidade e irregularidade dos verbos.

Por outro lado, como se trata de comunidades que apre-sentam um passado marcado pelo contato entre línguas e pelo processo de TLI, esperamos que as marcas do tempo futuro (de verbos regulares) sejam mais recorrentes, visto que estas se assemelham às formas do infinitivo, o que teria facilitado a sua aquisição pelos falantes. Nesse sentido, observe-se que a marca do futuro tende a se assemelhar à do infinitivo, mesmo em ver-bos irregulares, como em “É aonde nós tamos por aí até o dia que Deus querê” (SubR_R24).

Com a variável localização temporal do evento expresso na oração relativa em relação ao momento da enunciação, levamos em consideração a hipótese de que uma referencialidade posterior ao momento da enunciação, por se relacionar a eventos irreais e hipotéticos e, portanto, ao valor semântico do subjuntivo, tenda a favorecer o uso desse modo verbal. Destacaremos três localizações temporais do evento: (i) anterior (ii) simultâneo e (iii) posterior ao momento da enunciação.

2.1.2 O subjuntivo nas orações completivas: fatores lingüísticos

Os fatores lingüísticos selecionados para a análise dos cor-poraforam os seguintes: (i) tipo da oração em que a completiva está encaixada; (ii) tipo do verbo da oração em que a completiva está encaixada; (iii) avaliação do falante acerca do nível de re-alidade do evento referido na oração completiva; (iv) tempo do subjuntivo previsto no uso culto e (v) morfologia verbal.

Com as variáveis tipo da oração em que a completiva está en-caixada, tipo do verbo da oração em que a completiva está encaixada e avaliação do falante acerca do nível de realidade do evento referido na oração completiva, procuramos verificar a relação entre o modo subjuntivo e o valor semântico de irrealidade contido na oração

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principal, ou seja, se o contexto semântico do evento referido na oração principal tende a favorecer a aquisição das formas de subjuntivo pelos falantes das comunidades de fala analisa-das. assim, esperamos que esse modo verbal tenda a ocorrer em completivas encaixadas em orações que, em linhas gerais, contenham proposições hipotéticas, que estejam sob o domínio da dúvida e da incerteza e, portanto, que estejam associadas ao valor semântico do subjuntivo.

3 A análise dos dadosCom relação ao uso do subjuntivo em orações relativas,

encontramos, nos 28 inquéritos, um total de 827 ocorrências, das quais selecionamos apenas 162 referentes aos contextos em que é previsto o emprego do subjuntivo de acordo com os padrões normativos. De fato, o número de ocorrências foi reduzido.

obtivemos um total de 23% de uso de subjuntivo. Pimpão (1999), ao estudar o português urbano, utilizando corpus do projeto VARSUL, encontrou, aproximadamente, 82% de uso do subjuntivo nas relativas no tempo presente, ao passo que, em nossos corpora, registramos apenas 18% de uso do subjuntivo nesse tempo verbal. assim, os nossos resultados não estão de acordo com aqueles encontrados em falantes do meio urbano, o que contribui para demonstrar a concorrência de duas gramá-ticas, uma referente ao português urbano e outra ao português rural, em especial, afro-brasileiro.

Quanto ao uso do subjuntivo em orações completivas, foram encontradas 858 ocorrências. No entanto, quando selecio-namos apenas os contextos prescritos como de uso do subjuntivo, foram registradas 80 ocorrências. Nesse contexto, o subjuntivo foi usado apenas em 23 ocorrências, portanto, 29% do total, número bastante reduzido. Por outro lado, Pimpão (1999) encontra o total de 84% de uso do subjuntivo nas completivas, no tempo presente, num corpus constituído por 83 ocorrências (70 apresentaram o uso do subjuntivo) e, em nossos corpora, registramos apenas 24% de uso do subjuntivo no tempo presente. a disparidade desses resultados ratifica as diferenças entre a gramática do português urbano e a do português afro-brasileiro.

a partir de nossos resultados, acreditamos que, no por-tuguês afro-brasileiro, o indicativo está perdendo (aos poucos) ambiente para o subjuntivo, pois este modo vem sendo grada-tivamente adquirido pelos membros dessas comunidades. Na verdade, no processo de TLI, ocorrido durante o contato entre línguas, o modo indicativo, não marcado morfologicamente, deve ter sido mais facilmente adquirido pelos falantes, pois, por se referir a eventos reais, este modo tende a ser mais usa-do na comunicação do que o subjuntivo. Nesse sentido, com a crescente urbanização de nosso país e todos os benefícios por ela propiciados, é provável que as formas referentes ao modo

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subjuntivo tenham sido mais facilmente transmitidas aos falan-tes do meio urbano; por outro lado, temos a realidade do meio rural, especificamente aquelas comunidades constituídas por afro-brasileiros, que, por muito tempo, se mantiveram isoladas de outros grupos sociais e de todo processo urbanizador, como propõe Lucchesi (2001).

3.1 A análise dos dados das orações relativas: o fenômeno sob a perspectiva lingüística

O VARBRUL selecionou com nível de significância .044 três variáveis lingüísticas e uma social. A ordem das variáveis lingüísticas e extralingüísticas selecionadas foi: (i) localização temporal do evento expresso na oração relativa em relação ao momento da enunciação; (ii) tempo do subjuntivo previsto no uso culto; (iii) morfologia verbal e (iv) estada fora da comunidade.

3.1.1 Localização temporal do evento expresso na oração relativa em relação ao momento da enunciação

Como podemos ver a partir dos resultados da Tabela 1, o uso do subjuntivo é largamente favorecido quando o evento referido na relativa se localiza em um momento posterior ao momento da ilocução.

Tabela 1 – O uso do subjuntivo nas orações relativas no português afro-brasileiro segundo a localização temporal do evento

expresso na oração relativa(Nível de Significância: .044)

LOCALIZAÇÃO TEMPORAL nº de oc./total Freq. P.r.

1. Posterior à ilocução 17/31 61% .93

2. Simultaneamente à ilocução 09/38 13% .36

3. anterior à ilocução 12/66 15% .37

TOTAL 38/135 28%

O uso do subjuntivo é desfavorecido quando os eventos referidos são anteriores ou simultâneos ao momento da ilocução, como exemplificados, respectivamente, em “... as comida que numdavapá comê, num podia come” (SubR_C09) e “É difici i(r) assim alguém que num usa o chapéu” (SubR_C01). Isso se ajusta ao valor semântico do subjuntivo, pois este se relaciona a eventos hipotéticos e irreais, que, por sua vez, abarcam também uma referencialidade posterior ao momento da enunciação. De fato, esse plano do irrealis está mais diretamente ligado ao futuro, a momentos posteriores do que ao presente e ao passado; na verdade, os eventos que se situam no futuro são objetivamente irreais, por maior que seja a certeza do falante em face da sua

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realização. Como exemplos da localização posterior ao momento da ilocução, temos: “Quando a gente vai tem em quarqué um das casa que fô...” (Cinz., 09).

3.1.2 Tempo do subjuntivo previsto no uso cultoO subjuntivo no português afro-brasileiro é mais usado

nos contextos em que o uso culto prevê as formas do futuro e do imperfeito, como podemos verificar na Tabela 2.

Tabela 2– O uso do subjuntivo nas orações relativas no português afro-brasileiro segundo a forma prevista na norma culta

(Nível de Significância: .044)

FORMA PREVISTA NO USO CULTO

n.º de oc./Total Freq. P.r.

1. Futuro do Subjuntivo 17/31 55% .782. Imperfeito do Subjuntivo 09/38 24% .463. Presente do Subjuntivo 12/66 18% .38TOTAL 38/135 28%

Verificamos que o grande favorecedor do uso das formas do subjuntivo é o futuro, conforme exempliicado em “...tua ex-mullhé pode chegá aqui pa conversá comigo... quarqué uma coisa que precisá, eu sô mulé pa empresta” (Sapé, 12), enquanto o imperfeito fica um pouco abaixo da média geral de uso (24% contra 28%, do geral), desfavorecendo ligeiramente o emprego do subjuntivo (p.r. de .46), como exemplificado em “...aí todo dinhêro que ele pegasse, ele... de pemêro não, quando tava numa boa mais eu...” (Sapé, 05). O contexto de presente é aquele que mais desfa-vorece o uso desse modo verbal, como exemplo, temos “...graças a Deus, tem tudo em quarqué lugá que ‘cê chegue” (Cinz., 03).

Segundo Mattoso Câmara (1979), não existia no latim vul-gar o tempo futuro do subjuntivo, que se originou de formas fle-xionais volitivas e subjuntivas e, a partir daí, desenvolveu-se um futuro modal, que conduziu às línguas românicas a um futuro temporal. Para Lyons (1979), o caráter modal do tempo futuro, existente desde o latim, atua no futuro temporal das línguas românicas. Pimpão (1999) defende que a noção de futuridade, desencadeada pelo tempo presente, favorece o uso do subjuntivo e não o valor nocional de irrealidade.

a partir dos nossos resultados, registramos que o uso do subjuntivo em comunidades afro-brasileiras é favorecido pelo tempo futuro (55%), com um peso relativo de .78 e não pelo tempo presente (18%). Isso pode ser explicado da seguinte maneira. A idéia de projeção futura desencadeada pelo tempo futuro pode se relacionar com o traço irrealis, na medida em que o futuro indica apenas uma suposição, hipótese ou, como afirma

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Mattoso Câmara (2002 [1970]), o tempo futuro. Assim como o pretérito mantêm uma oposição em orações que designam uma condição prévia do que será dito, pois um evento futuro sugere que poderá acontecer ou não. Além disso, as formas do futuro em sua grande maioria coincidem com as formas do infinitivo, o que facilitaria a sua aquisição. Já o imperfeito e o presente, que apresentam morfemas exclusivos, seriam mais lentamente incorporados ao uso da comunidade de fala. E, entre esses dois, as formas do imperfeito levariam vantagem por apresentarem um morfema foneticamente mais saliente e regular, o -sse- (que possui o padrão silábico CV). Por outro lado, a alternânica da vogal temática que marca as formas do presente do subjuntivo seria a de mais difícil aquisição, o que nos leva a crer que a forma de futuro foi facilmente adquirida pelos falantes no processo de TLI, desencadeado pelo contato entre línguas.

Tendo em vista apenas as formas do imperfeito e do pre-sente, esperávamos, tomando como base o princípio da saliência fônica, que aquelas fossem as favorecedoras do uso do subjun-tivo, o que pode ser confirmado em nossos resultados, já que encontramos um peso relativo de .46 para o uso das formas do tempo imperfeito e de .38 para o uso do presente. Assim, defen-demos que, no processo de aquisição da norma culta, os falantes das comunidades de fala analisadas tendem a usar inicialmente a forma de subjuntivo que se assemelha a outras formas de nossa língua e, em outro sentido, os falantes adquirem as formas de subjuntivo em que o material fônico é mais perceptível, pois nos ambientes em que o material fônico é menos saliente o uso de subjuntivo foi menor.

acreditamos que essas comunidades adquiriram mais facilmente, no processo de TLI, as formas do tempo futuro por coincidirem com as formas do infinitivo; por outro lado, nos grandes centros, o alto índice de uso da forma do tempo presente pode ser explicado pelo fato de nesses meios haver a difusão do padrão culto através dos meios de comunicação e da escolarização.

Segundo Wherritt (apud FARIAS, 2005, p. 50), há duas fases no processo de aquisição das formas de subjuntivo:

a) uma em que o subjuntivo é adquirido na comunidade por meio do input, por exemplo, o aparecimento do futuro do sub-juntivo em orações adjetivas, com conectivos como ‘se’, ‘como se’, ‘quando’, ‘onde’ e depois de palavras que indicam incerteza; b) outra que é adquirida por meio da educação formal, em que aparece o uso do subjuntivo nas orações adjetivas (no presente e no pretérito) e em orações substantivas introduzidas por conjunções diferentes das mencionadas acima.

Tomando como base as comunidades de fala analisadas, podemos encaixá-las nessa primeira fase, uma vez que as for-mas do futuro podem ter sido adquiridas pelo input no processo

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de TLI. Por outro lado, isso também explicaria o uso do tempo presente pelos falantes do português urbano, uma vez que es-tes, mesmo que muitos não tenham passado por uma educação formal, mantêm sempre contato com os meios difusores da norma culta.

3.1.3 Morfologia verbalEsperávamos que, por influência do material fonético

envolvido na diferença entre a forma do subjuntivo nos verbos regulares e irregulares, fosse mais empregada a marca de sub-juntivo nestes. No entanto, os verbos regulares favorecem mais o uso das formas do subjuntivo do que os verbos irregulares, como podemos verificar na Tabela 3:

Tabela 3 – O uso do subjuntivo nas orações relativas no português afro-brasileiro segundo a morfologia flexional do verbo

(Nível de Significância: .044)FLEXÃO VERBAL Nº de oc./Total Freq. P.r.1. regular 14/50 28% .662. Irregular 24/112 21% .42TOTAL 38/162 23%

Essa realidade pode ser explicada da seguinte forma: le-vando em consideração o fato de que o futuro teve um maior percentual de uso nessas comunidades rurais (55%), com um peso relativo de .78 e de que as formas desse tempo verbal coincidem com as formas do infinitivo, o emprego das marcas de subjuntivo nos verbos regulares também coincide com as marcas de futuro e de infinitivo, o que teria facilitado o processo de aquisição por parte dos falantes. A ocorrência “Mas a criação que ‘ocê... ‘ocê sustentá na mão, ‘cê é obrigado tê a mandioca” (Cinz., 12) é exemplo do uso do subjuntivo em verbos regulares, ao passo que “Se eu topá ôta pessoa que me dá assistênça e me ajuda é o pai a mesma coisa” (Cinz., 06) exemplifica o não uso desse modo em verbos irregulares.

3.1.4 O fenômeno sob a perspectiva socialCom relação à variável comunidade, consideramos neces-

sário distinguir entre as quatro comunidades afro-brasileiras (duas que estão mais sujeitas à influência externa e duas cujo contexto era de origem quilombola ou que se registrou vestígios de fala crioulizada) a que apresentava o maior peso relativo no uso do subjuntivo nas relativas. No entanto, este item não foi considerado significativo pelo programa, o que não nos impede de tecer alguns comentários sobre esta variável.

As comunidades de Rio de Contas (Barra e Bananal), de-vido à estrutura turística propiciada pela região da Chapada

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Diamantina, não apresentam uma história de isolamento tão acentuada quanto a comunidade de Cinzento. Como podemos verificar, na Tabela 4, Rio de Contas apresentou o maior índice de uso do subjuntivo, ficando um pouco acima da média geral, ao passo que registramos em Cinzento o menor índice, já que a história dessa comunidade está relacionada com uma origem quilombola, o que a distingue das demais. Em Sapé foi registrado um total de 28% de uso do subjuntivo, o que poderia ser explica-do pelas alterações na estrutura social, propiciadas pela difusão dos meios de comunicação. Helvécia está praticamente na média geral de uso do subjuntivo. observemos a tabela a seguir:

Tabela 4 – O uso do subjuntivo nas orações relativas no português afro-brasileiro em cada comunidade de fala

FORMA PREVISTA NO USO CULTO Nº de ocorrências/Total Freqüência1. Rio de Contas 09/29 31%2. Sapé 08/29 28%3. Helvécia 09/37 24%4. Cinzento 12/67 18%TOTAL 38/162 23%

3.1.4.1 Estada fora da comunidadeDas variáveis sociais, o VARBRUL só selecionou como es-

tatisticamente relevante a estada fora da comunidade, confirmando os valores das freqüências absolutas, como podemos visualizar na tabela 5:

Tabela 5 – O uso do subjuntivo nas orações relativas no português afro-brasileiro segundo a variável social estada fora da comunidade (pelo menos seis meses).

(Nível de Significância: .044)ESTADA FORA DA COMUNIDADE Nº de oc./Total Freq. P.r.

1. Não 28/92 30% .692. Sim 10/70 14% .26

TOTAL 38/162 23%

Esses resultados contrariam a expectativa, pois aqueles que não saíram da comunidade usam mais o subjuntivo do que aqueles que já viveram fora da comunidade. Entretanto, devemos salientar que, com um número de ocorrências tão baixo como o que se obteve nos corpora analisados, dificilmente poderíamos chegar a resultados confiáveis no plano das variáveis sociais.

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3.2 A análise dos dados das completivas: as variáveis lingüísticas

Registramos apenas 80 orações de contextos variáveis de uso do subjuntivo em orações completivas. a base de dados restante ficou bastante reduzida, não possibilitando a obtenção de resultados consistentes no nível da análise probabilística do Programa das Regras Variáveis – VARBRUL. Por isso, os resul-tados apresentados serão baseados apenas na freqüência relativa expressa nos resultados percentuais.

3.2.1 Tipo da oração em que a completiva está encaixadaCom essa variável, amalgamamos os fatores, reunindo-os

em apenas três: afirmativo, negativo e a junção entre os fatores condicional e oração com verbo modal. Esperávamos com essa variável verificar se o contexto semântico do evento referido na oração principal tende a influenciar a aquisição das formas de subjuntivo pelos falantes das comunidades de fala analisadas, pois predicações hipotéticas e não factivas estão mais associadas ao valor irrealis, que, por sua vez, está relacionado ao modo sub-juntivo. Levando em conta o fato de a oração condicional estar impreterivelmente associada a hipóteses e eventos duvidosos, nossa expectativa era a de que os falantes tendessem a fazer uso do subjuntivo quando a oração principal apresentasse uma condição hipotética sobre um evento. além disso, temos também as negativas que modificam a modalidade de predicação, pois um evento tido como possível quando negado passa ao seu con-traditório. Por outro lado, as orações afirmativas parecem estar mais relacionadas a eventos reais, o que poderia contribuir para desfavorecer o uso das formas do subjuntivo. Os resultados são apresentados na tabela a seguir e confirmam a relação do modo subjuntivo com o valor semântico de irrealidade:

Tabela 6 – O uso do subjuntivo nas orações completivas no português afro-brasileiro segundo o tipo de oração

em que a completiva está encaixadaTIPO DE ORAÇÃO n.º de ocorrências/Total Freqüência

1. Condicional 03/07 43%2. Negativa 06/18 33%3. Afirmativa 14/55 25%

TOTAL 23/80 29%

observamos que quando está dependente de uma oração condicional ou de uma oração negativa (cf. exemplo “se você num quisesse que ela fosse, você ficava queto, num mandava ela arrumá” (Sapé, 01), com respectivamente 43% e 33% de uso do subjuntivo, a completiva favorece mais o uso do subjuntivo do que quando está subordinada a uma oração afirmativa (cf.

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exemplo “...e se ela vem na nova, ...a gente esperaqu’elavem na-quele mesmo... naquela mesma base, né, é por isso qu’a gente tá visano, né?” (Cinz., 06).

3.2.2 Tipo do verbo da oração em que a completiva está encaixada

Tendo em vista o fato de que o subjuntivo se relaciona com o valor semântico de irrealidade, esperávamos que os contextos semânticos de desejo, sentimento, pedido e ordem propiciados respectivamente pelos verbos volitivos, avaliativos, inquiritivos e causativos condicionassem o uso das formas do modo subjuntivo, uma vez que nestes o fato expresso pela oração principal está associado a eventos irreais ou duvidosos. Por outro lado, verbos cognitivos, por se relacionar a eventos em que o falante tenha de se posicionar a respeito de um fato e daí tendem a acreditar em seu posicionamento, terminam selecionando o modo indicativo, que, por sua vez, está associado a valores certos e reais.

As ocorrências dos verbos declarativos e perceptivos foram descartadas por se tratar de contextos categóricos de uso do indicativo nas comunidades de fala analisadas. Por outro lado, as ocorrências de verbos volitivos, avaliativos e inquiritivos foram reunidas em um mesmo fator em função do seu baixo número de ocorrência. Feitos esses ajustes, os resultados desse grupo de fatores são apresentados na seguinte tabela:

Tabela 7 – O uso do subjuntivo nas orações completivas no português afro-brasileiro segundo o tipo do verbo da oração

em que a completiva está encaixadaTIPO DO VERBO nº de ocorrências/Total Freqüência

1. Volitivos, avaliativos e Inquiritivos 10/23 43%2. Causativos 07/18 39%3. Cognitivos 03/32 09%TOTAL 23/80 29%

Como podemos notar, o uso do subjuntivo é favorecido quando a completiva é subcategorizada por verbos volitivos, avaliativos (cf. exemplo “Quem sabe? Eles num gostam que ande entrano no mato pa caçá não?” (Sapé, 04)., inquiritivos (43%) e causativos (39%), como exemplificado em “Aí ele rezô ela e mandô que fosse po hospital, que essa menina tava muito ruim” (RC, 13), sendo desfavorecido quando a completiva está subordinada aos verbos cognitivos – conforme exemplo “Aí ela pensava que era brincadêra, né?” (Sapé, 01), com os quais registramos apenas 09% de uso do subjuntivo.

Mais uma vez a relação do uso do subjuntivo em proposi-ções com o traço semântico [-realis] foi ratificada, em função do seu menor uso com verbos do tipo pensar, crer, achar em que o nível de incerteza do falante em relação à proposição expressa

VívianMeira

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na oração completiva é menor do que quando essa oração está ligada a verbos do tipo gostar, querer, perguntar etc., que tendem a subcategorizar mais proposições com um maior grau de in-certeza, ou mesmo irrealidade.

Com relação ao português urbano, apesar de o grupo relacionado à natureza semântica da forma verbal não ter sido selecionado como estatisticamente significativo pelo VARBRUL, Pimpão (1999) encontrou, em seus dados, ocorrências de uso do subjuntivo em completivas selecionadas por verbos cognitivos, afirmando que esse tipo de contexto instaura o escopo da baixa certeza e assim assinala “[...] o não comprometimento do falante com que é dito. Estratégias lingüísticas dessa natureza codificam a fraca proximidade do falante com o conteúdo proposicional” (PIMPÃO, 1999, p. 92).

3.2.3 Tempo do subjuntivo previsto no uso cultoA partir da variável tempo do subjuntivo previsto no uso culto,

tínhamos em vista verificar se o material fonético envolvido na diferença entre a forma do imperfeito e a do presente do subjuntivo na oposição subjuntivo/indicativo contribuiria para a aquisição da norma culta pelos falantes das comunidades analisadas. Nossa expectativa era a de que a forma mais perceptível (a do imperfeito) favorecesse o uso das formas do subjuntivo.

Nas comunidades de fala analisadas, o subjuntivo é mais usado nos contextos do imperfeito do que nos contextos de pre-sente, como podemos observar na seguinte tabela:Tabela 8 – O uso do subjuntivo nas orações completivas no português afro-brasileiro segundo o tempo do subjuntivo previsto no uso culto

CONTEXTO DE USO nº de ocorrências/Total Freqüência1. Contexto de Imperfeito do Subjuntivo 11/33 33%2. Contexto de Presente do Subjuntivo 11/45 24%TOTAL 22/78 28%

Confirmamos a aplicação do princípio da saliência fônica, visto que a alta freqüência de uso do subjuntivo nos contextos de imperfeito (cf. explicitado em “Eu queria que estudasse, eu tinha dois menino... os dois menó tá estudano (Sapé, 05) se deve à maior força morfofonológica desse tempo verbal; na verdade, o morfema do imperfeito -sse- apresenta um padrão CV mais consistente em termos de seu material fonético do que a alter-nância vocálica que indica o presente do subjuntivo (cf. exemplo “Tá difícil... e essas aí, eles num qué que tire não...” (Hel., 07)

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3.2.4 Avaliação do falante acerca do nível de realidade do evento referido na oração completivaEsperávamos verificar, com essa variável, que contextos

semânticos poderiam em maior intensidade influenciar o uso do subjuntivo. A nossa expectativa era a de que as formas de subjuntivo fossem mais recorrentes nos contextos de irrealidade, visto que há tradicionalmente uma associação entre este contexto e o modo subjuntivo.

A fim de avaliarmos o grau de variação no uso do sub-juntivo em função desta variável, foram retiradas as ocorrên-cias de eventos efetivamente ocorridos e pressupostos,porque se mostraram contextos de uso categórico do indicativo. A Tabela 9 apresenta os resultados obtidos na quantificação dos dados.Tabela 9 – O uso do subjuntivo no português afro-brasileiro de acordo com a variável nível de realidade do evento referido na oração comple-tiva

NÍVEL DE REALIDADE DO EVENTO nº de ocorrências/Total Freqüência

1. Irreal 08/23 35%2. Hipotético 07/26 27%3. (In)desejado 08/30 27%TOTAL 23/79 29%

Como exemplo de ocorrência de fato considerado irreal, temos 1a.; 1b., de fato hipotético; e 1c., de fato (in)desejado:

1a. Eu tive lá nove dia, fiz um exame, a médica num queria que euviesse. Eu falei: não, neném, eu preciso ir embora, minha fía... tem a casa, tem as criação, num tem quem cuide, antonce eu preciso ir embora (RC, 24).

1b. tá bonito... cemitéro era como daí pra lá, pro dentro des-ses eucalipe. Ieu...Ieu fui lá quando tava pequeno ‘inda. Até... pode sê que eu vô quand’eu tivé...quand’eu morrê, [às vez] vô contente, porque a tera de nós verdadêra é esse lá (Hel., 13).

1c....e se ela vem na nova, ...a gente espera qu’ela vem naquele mesmo...né? (Cinz., 06).

O contexto de irrealidade pode ser considerado um fator fa-vorável ao uso desse modo verbal. Assim, a forma de subjuntivo nas comunidades de fala analisadas é também condicionada por um parâmetro semântico. Observamos que as formas de sub-juntivo, nos contextos marcados pelo traço de irrealidade, vem ganhando ambiente junto ao modo indicativo. observe que os valores hipotético e (in)desejado apresentam uma percentagem (27%) abaixo da média geral (29%) de uso do subjuntivo e que o fator irrealapresenta apenas 35% de uso do subjuntivo, per-centagem reduzida quando comparado com o uso desse modo verbal no português urbano.

VívianMeira

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tendo isso em vista, podemos citar a teoria da transparên-cia semântica, segundo a qual a reestruturação da gramática por parte de falantes de línguas pidgins e crioulas tem como base estruturas cognitivas, semânticas e não apenas gramaticais. Nesse sentido, a estrutura semântica, por ser mais universal, transparente e menos marcada, tende a ser mais fácil de ser aprendida do que as estruturas de superfície. Na verdade, tais falantes fazem uso de variados meios expressivos com o intuito de se comunicarem. Daí podermos entender o porquê de nestas comunidades haver uma associação entre o subjuntivo e o valor irrealis e, assim, a reestruturação da gramática se dá também a partir da estrutura semântica, indo ao encontro do padrão da língua alvo. Em outras palavras, as estruturas semânticas uni-versais tendem a influenciar a aquisição e o uso das formas de subjuntivo nessas comunidades.

3.2.5 Morfologia do verbo da oração completivaa variável morfologia do verbo da oração completiva diz

respeito à diferença de material fônico nas formas dos verbos regulares e irregulares no uso do modo subjuntivo. a tabela a seguir apresenta os resultados dessa variável:

Tabela 10 – Uso do subjuntivo no português afro-brasileiro segundo a morfologia do verbo da oração completiva

TIPO MORFOLÓGICO DO VERBO n.º de ocorrências/Total Freqüência

1. Irregular 15/49 31%

2. regular 08/30 27%

TOTAL 23/79 29%

A partir dos resultados, verificamos que nos verbos ir-regulares, que apresentam alto nível de saliência na oposição subjuntivo versus indicativo, a freqüência de uso do subjuntivo é maior, 31%, conforme exemplo “Norberto mandô dizê o senhô, meu compade, que o senhô me desse cinqüenta mil… pra minha viage!” (Hel., 20), do que nos verbos regulares, que apresentam um nível baixo de saliência fônica na oposição subjuntivo-indi-cativo, demonstrando apenas 27% de uso do subjuntivo, abaixo da média geral, como em “E aí num qué que ela moramá... má o marido dela” (Sapé, 05).

3.2.6 As variáveis sociaisCom o baixo número de ocorrências dos corpora, decorrente

da reduzida faixa de variação encontrada, não obtivemos resul-tados consistentes no plano do encaixamento social da variável analisada. Nenhuma variável social, portanto, foi selecionada pelo Programa VARBRUL.

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Considerações finaisPara compreendermos o português do Brasil, é necessá-

rio conhecer a história tanto do português urbano, quanto do português rural, observando a origem e a constituição dessas realidades lingüísticas. Temos os negros e seus descendentes como um dos agentes na difusão do PPB, em partes do terri-tório brasileiro. Os negros adquiriram o português de forma irregular, sem auxílio de meios normatizadores, produzindo uma variedade da língua portuguesa marcada pela redução na morfologia flexional do verbo. Em decorrência da urbanização e da difusão dos meios de comunicação, as comunidades rurais, especificamente as afro-brasileiras, passaram por um proceso de mudança em direção à aquisição das formas de subjuntivo.

Diante do exposto, identificamos, em nossa análise varia-cionista dos padrões de comportamento lingüístico das comu-nidades afro-brasileiras do interior do Estado da Bahia, que a aquisição do subjuntivo por falantes de comunidades constitu-ídas por afro-descendentes desencadeia-se, do ponto de vista lingüístico, a partir de dois fatores: (i) um de base morfológica, em que a forma mais saliente, em termos morfofonológicos (tan-to os verbos quanto os tempos), favorece a implementação das formas do subjuntivo; (ii) outro fator semântico: as formas do subjuntivo começam a ser empregadas nas referências a eventos claramente irreais. Na verdade, partindo da idéia de que, na oposição entre indicativo e subjuntivo, este estaria associado ao traço semântico irrealis e aquele ao traço realis, acreditamos que o princípio da transparência semântica pode explicar o incremento das formas do subjuntivo, a partir do momento em que o falante percebe uma oposição entre um modo relacionado com o realis e outro associado ao irrealis, passando a dispor de diferentes meios expressivos para efetivar a comunicação. Sendo assim, nas co-munidades afro-brasileiras analisadas, a aquisição do subjuntivo tem, apriori, base tanto morfológica quanto semântica.

VívianMeira

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AbstractThis works presents a study of the variation of the usage of subjunctive mood in relative and completive clauses on the speaking of four black rural Brazilian communities at the countryside of Bahia. Based on the theoretical and methodological framework of the Sociolinguistics of varieties and by means of VARBRUL software-set for the quan-titative processing of the linguistic data, this work analyzed the adequacy of that variable process in the social and linguistic structure of the speaking communities. From the linguistic point-of-view, the subjunctive-mood forms occur more widely in two situations: (1) one of a morphological compo-nent, in which subjunctive forms are compatible with both verbs and with time when subjunctive X indicative opposition is more prominent; (2) the other of semantic component, in which the context of unreality tends towards a wider usage of subjunctive mood.

Keywords: sociolinguistics, Portuguese langua-ge – subjunctive mood; black Brazilian commu-nities – Bahia.

Referências

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 2��-301, 2. sem. 2006

o papel da mesclagem conceptual na construção do significado

do angulador umtipodeAngelina Aparecida de Pina

Recebido 15, jun. 2006/Aprovado 15, ago. 2006

ResumoBaseado na teoria dos espaços mentais, o principal objetivo deste artigo é verificar o papel que a mes-clagem conceptual desempenha na construção do significado do angulador do português um tipo de. Analisando sentenças contendo esse angula-dor, é possível concluir que o significado de um tipo de depende da mesclagem conceptual que ele incita: um mapeamento entre um espaço ‘input’ (entidade) e um outro espaço ‘input’ (categoria / membro mais prototípico de uma categoria), um espaço genérico, uma projeção parcial para o espaço mescla (a entidade, a categoria / membro mais pro-totípico de uma categoria e algumas propriedades partilhadas) e uma estrutura emergente (categoria flexível / hiperonímia).

Palavras-chave: angulador um tipo de; mescla-gem conceptual; construção do significado.

Angelina Aparecida de Pina

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1. Introduçãotomando por base a teoria dos espaços mentais, este artigo

pretende verificar o papel que a mesclagem conceptual desem-penha na construção do significado do angulador do português umtipode, em sentenças como “A baleia é um tipo de peixe” e “O órgãoé um tipo depiano”.

A teoria dos espaços mentais fornece um modelo para investigar a interação entre conexões cognitivas e a linguagem. Segundo Fauconnier & Sweetser (1996, p. 8), as conexões cogni-tivas desempenham um papel central na semântica e, de modo mais geral, na organização do pensamento.

No modelo de espaços mentais, a construção do significado e o valor das formas lingüísticas dependem de três operações básicas (FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 6):

(1) Identidade: reconhecer semelhanças e diferenças, isto é, estabelecer iden-tidade e oposição.

(2) Integração: realizar integração (mesclagem) conceptual, que tem estrutura elaborada, propriedades dinâmicas e restrições operacionais.

(3) Imaginação: o produto da integração conceptual é sempre imaginativo e criativo.

Essas complexas operações são realizadas inconsciente-mente e ativadas na mente através de formas lingüísticas. Em outras palavras, “as formas lingüísticas são instruções (parciais e subdeterminadas) para construir domínios interconectados com estrutura interna.” (FAUCONNIER, 1997, p. 35, grifos do autor)

Portanto, este artigo tem como principais hipóteses:(a) A linguagem reflete aspectos e mecanismos da cognição humana;

(b) A escassez do significante é inerente à linguagem;

(c) a mesclagem conceptual é uma operação mental básica que determina a construção do significado;

(d) a impossibilidade de uma análise composicional do angulador umtipode decorre da estrutura elaborada na mescla;

(e) o angulador umtipode promove mesclas conceptuais, a fim de flexibilizar fronteiras categoriais e suspender condições de verdade.

O artigo está organizado da seguinte forma: Na Seção 2, será apresentada uma breve revisão da literatura sobre angula-dores. Na Seção 3, serão explicados, de modo simples e conciso, a teoria dos espaços mentais e seus avanços mais recentes. Na Seção 4, serão analisados três exemplos contendo umtipode, a fim de explicitar o papel decisivo que a mesclagem conceptual desempenha na construção do significado. Na Conclusão, serão expostas as principais conclusões do estudo.

O papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de

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2. Anguladores: breve revisão da literaturao assunto “anguladores” (hedges) foi introduzido nas in-

vestigações lingüísticas por Lakoff (1972). O autor não estava interessado no valor comunicativo do emprego de angulado-res, mas preocupado com as propriedades lógicas de palavras e sintagmas como rather, largely, a kind of, e loosely speaking, em sua habilidade para tornar os significados “mais imprecisos ou menos imprecisos”. Como define o autor (LAKOFF, 1972, p. 195), o significado dos anguladores “implicitamente envolve imprecisão ( fuzziness)”.

Do ponto de vista da cognição, em uma pesquisa centrada em protótipos semânticos, Rosch (1978) afirma que os angulado-res são mecanismos lingüísticos para “codificar” gradações de pertencimento categorial. Sob essa perspectiva, a formulação de conceitos na comunicação diária requer o emprego de angulado-res porque conceitos (ex. ‘peixe’) evocam imagens prototípicas em nossas mentes, de sorte que é necessário marcar seus repre-sentantes menos prototípicos. Isto é, se marcamos um conceito com um angulador, não nos referimos a um representante pro-totípico da classe, mas a um representante não-prototípico. Por-tanto, uma sentença como A baleia é um tipo de peixe é aceitável, uma vez que o anguladorumtipodeflexibiliza as fronteiras da categoria ‘peixe’ (focalizando apenas características periféricas, como tem habitat aquático, tem nadadeiras, etc.), permitindo que a baleia seja incluída nessa categoria.

Segundo Kay (1997), na sentença Amplamente falando, o primeiro homem nasceu no Quênia, o angulador amplamentefalando suspende as condições de verdade do enunciado, na medida em que, na cadeia evolucionária, o primeiro homem teria sido diferente do homem moderno e, na configuração geopolítica do mundo, não havia o Quênia.

Ao longo dos anos, o conceito de angulador foi sendo am-pliado, especialmente desde de que foi adotado por pragmatistas. Nos dias de hoje, o termo não se restringe apenas a expressões que modificam o pertencimento de um predicado ou sintag-ma nominal a uma categoria. Em pragmática, os anguladores modificam o valor de verdade da proposição inteira, em vez de tornar mais imprecisos os elementos individuais da proposição (cf. FRASER, 1975; VANDE KOPPLE, 1985; MARKKANEN; SCHRÖDER, 1992; CLEMEN, 2002; entre outros), ou modificam o grau de comprometimento do falante/escritor com relação à verdade da proposição, instanciando modalidade epistêmica (cf. PALMER, 1988), ou servem a propósitos de polidez para preservação de face (cf. BROWN; LEVINSON, 1987).

Tomando como fundamentação teórica os pressupostos básicos da lingüística cognitiva, Almeida (1999, 2004) vem se dedicando a caracterizar os anguladores como construções

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gramaticais que formam uma categoria funcional híbrida, rea-lizada por elementos provenientes de diferentes classes lexicais (adjetivos, advérbios, locuções prepositivas e adverbiais, verbos, orações reduzidas e desenvolvidas).

Tendo em vista as diferenças morfológicas e sintáticas dos anguladores, a autora trabalha com a noção de radialidade cate-gorial, segundo a qual uma categoria pode ter elementos mais centrais (que expressam mais as propriedades da categoria) e elementos mais periféricos (que se afastam mais ou menos desse centro).

Ao investigar o funcionamento dos anguladores em por-tuguês, a autora (1999, p. 135) descobre que um aspecto comum a todos os anguladores é o fato de “serem sempre recurso para o falante exprimir sua opinião sobre o que está proferindo”, introduzindo um comentário a respeito do item escopado.

São exemplos de anguladores do português: umaformade, umtipode, praticamente, deummodogeral, estritamentefalando, de cer-tamaneira, em certos aspectos, ser de (se) Vinf. (cf. PINA, 2004),etc.

3. Teoria dos espaços mentaisA teoria dos espaços mentais (FAUCONNIER; SWEETSER,

1996; FAUCONNIER, 1997), desenvolvida à luz da lingüística cognitiva, tem como foco a interação entre estruturas lingüísticas e cognitivas. a compreensão, ou melhor, a construção do signi-ficado é operada por mapeamentos entre domínios cognitivos localmente estruturados, que se denominam espaçosmentais. Eles são dinâmicos, no sentido de que, “à medida que pensamos e falamos, espaços mentais são construídos, estruturados e co-nectados sob a pressão da gramática, do contexto e da cultura.” (FAUCONNIER; SWEETSER, 1996, p. 11) Os espaços mentais são parcialmente estruturados por bases de conhecimento relativa-mente estáveis (os frames e os modelos cognitivos Idealizados ou MCIs). A conexão entre espaços mentais se realiza principalmen-te por mapeamentos de identidade, que conectam um elemento no espaço-base com sua contraparte no espaço-alvo.

os construtores de espaços mentais são mecanismos lingüís-ticos que abrem um novo espaço ou deslocam o foco para um espaço já existente. Podem ser sintagmas preposicionais, advérbios, conectivos, anguladores, etc. Na sentença No filme Titanic, Leonardo DiCaprio morre, o sintagma preposicional “no filme Titanic” cria um espaço mental de drama (peças teatrais, filmes e afins). No espaço-base, o espaço de realidade, Leonardo DiCaprio é um ator. O ator não morreu; quem morreu foi Jack Dawson, seu personagem no filme. O espaço de realidade e o espaço de drama são conectados por um link de identidade entre Leonardo DiCaprio e seu personagem, isto é, entre um elemento do espaço-base e sua contraparte no espaço-alvo.

O papel da mesclagem conceptual na construção do significado do angulador um tipo de

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Todo esse processo cognitivo é possível devido ao princípio de acesso (ou princípio de identificação), o qual regula a relação entre uma entidade (= alvo) e a forma lingüística utilizada para se referir a ela (= gatilho). Em outras palavras, a forma lingüística empregada para nomear uma entidade do domínio-base deve permitir o acesso a uma entidade no domínio-alvo. O nome Leonardo DiCaprio permite o acesso a seu personagem no filme Titanic. Essa relação de identidade está representada na Fig. 1.

Figura 1 – Link de identidade entre a (Leonardo DiCaprio) e sua contraparte a’ (Jack Dawson)

a estrutura interna do espaço-alvo é representada por um valor mnemônico (escrito em letras maiúsculas) referente à cena experiencial evocada pelo verbo + seu(s) participante(s). No caso do exemplo visto anteriormente, a notação seria MORTE a’.

além do espaço de drama, é possível construir espaços mentais de tempo, de lugar, de crença, de hipótese, de contra-factualidade, entre outros. Sob esse prisma, o significado da forma lingüística é escasso, na medida em que o significado é resultado de complexas operações cognitivas de mapeamentos entre espaços mentais.

À medida que o discurso se desdobra, é criada uma rede de espaços mentais através da qual os participantes do discurso metaforicamente se movem. Esse deslocamento é determinado por três conceitos-chave: base (espaço que fornece um Ponto-de-vista e um Foco iniciais), ponto de vista (espaço a partir do qual outros podem ser acessados ou criados) e foco (espaço no qual estruturas estão sendo adicionadas) (FAUCONNIER; SWEET-SER, 1996, p. 12; FAUCONNIER, 1997, p. 38, p. 49).

a teoria obtém avanços importantes a partir da “descober-ta” de uma operação cognitiva básica do homem, que governa uma parte da criatividade (produção de novos links, novas confi-gurações e novos significados e conceitos correspondentes) e que depende dos mapeamentos cognitivos entre espaços mentais: a mesclagem conceptual. (FAUCONNIER, 1997; FAUCONNIER; TURNER, 2002)

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a mesclagem opera sobre dois espaços mentais: inputI1 e I2, sob as seguintes condições:

(a) Mapeamento entre espaços − Há um mapeamento parcial de contrapar-tes entre os dois espaços input.

(b) Espaço genérico − Há um espaço genérico, que mapeia em cada espaço input. Esse espaço genérico reflete a estrutura e a organização (comuns e abstratas) partilhadas pelos espaços input e define o mapeamento central entre os espaços.

(c) Mescla − os inputs I1 e I2 são parcialmente projetados em um novo espaço, a mescla.

(d) Estrutura emergente − a mescla tem uma estrutura emergente que não é fornecida pelos espaços input. Isso ocorre de três maneiras inter-relacionadas:(1) Composição: Em conjunto, as projeções dos inputs criam novas

relações, inexistentes nos inputs separados.(2) Completamento: O conhecimento dos frames, modelos cognitivos e

culturais permite que a estrutura compósita projetada na mescla pelos inputs seja vista como uma parte da estrutura mais complexa contida na mescla. o padrão na mescla ativado pelas estruturas herdadas é “completado” na estrutura emergente, mais complexa.

(3) Elaboração: Consiste na tarefa cognitiva realizada dentro da mescla, de acordo com sua própria lógica emergente. Em outras palavras, consiste em “operar a mescla”.

Portanto, as características centrais da mesclagem são o mapeamento entre espaços mentais, a projeção parcial dos inputs, o espaço genérico, a integração de eventos ou entidades, e a estrutura emergente. (FAUCONNIER, 1997, p. 157)

Considere-se o exemplo da corrida de barcos (cf. FAUCON-NIER, 1997, p 155; FAUCONNIER; TURNER, 2002, p. 63), que envolve um barco à vela moderno Great America II viajando de São Francisco à Boston em 1993, sendo comparado a um barco à vela antigo Northern Light, que fez a mesma viagem em 1853. Poucos dias antes do Great America II chegar a Boston, observa-dores podiam dizer: Neste ponto da viagem, o Great America II está 4,5 dias mais adiantado que o Northern Light. A expressão “mais adiantado que” coloca ambos os barcos viajando no mesmo curso durante o mesmo período de tempo em 1993. Ela mescla os even-tos de 1853 e de 1993 em um único evento. Há um mapeamento entre espaços que conecta as duas trajetórias, os dois barcos, os dois períodos de tempo, as posições no curso, etc. a projeção dos inputs na mescla é parcial: a data de 1853, as condições do tempo em 1853 e o motivo da viagem são desprezados. Devido à estrutura emergente do espaço mescla, os dois barcos podem ser comparados, de modo que um pode estar “mais adiantado que” o outro. Essa estrutura de dois barcos viajando na mesma direção, no mesmo curso, partindo de São Francisco no mesmo dia, evoca um frame cultural familiar: uma corrida. Isso fornece uma estrutura emergente adicional por completamento. Uma im-portante propriedade do frame de corrida é seu valor emocional, que pode ser projetado para o espaço input do Great America II,

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cuja tripulação pode experienciar as emoções de uma competi-ção. Além disso, inferências a partir da mescla podem retornar aos inputs: as velocidades e posições dos dois barcos em suas respectivas viagens, separadas por 140 anos. (cf. Fig. 2)

Segundo Fauconnier e Turner (2002, p. 92), através da mes-clagem, uma gama de informações sofre compressão, definida como um mecanismo conceptual que promove insight global, entendimento em escala humana e novo significado.

a compressão opera sobre relações vitais, isto é, relações conceptuais básicas, que se baseiam na neurobiologia humana e na experiência social compartilhada. Há 15 relações vitais, a saber: Mudança, Identidade, Tempo, Espaço, Causa-Efeito, Parte-todo, representação, Papel, analogia, Desanalogia, Propriedade, Similaridade, Categoria, Intencionalidade e Unicidade. Uma relação pode ser comprimida em uma versão mais curta dela mesma, uma ou mais relações podem ser comprimidas em outra relação, ou novas relações comprimidas podem ser criadas. No exemplo da corrida de barcos, o tempo é comprimido em simulta-neidade e a Intencionalidade (do Great America II) é comprimida em intencionalidade consciente por parte das tripulações de ambos os barcos.

Figura 2 – Rede de mesclagem da corrida dos barcosEm síntese, a mesclagem opera a integração de estruturas

parciais de dois espaços mentais separados em uma estrutura única com propriedades emergentes dentro de um espaço mes-cla, cuja estrutura é tipicamente mais rica que as estruturas dos espaços input.

Angelina Aparecida de Pina

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4. Análise de exemplostendo em vista que o conceito de mesclagem conceptual

constitui instrumental teórico recente e apurado para explicar a construção do significado, e que o objetivo deste artigo é verificar o papel que a mesclagem conceptual desempenha na constru-ção do significado do angulador umtipode, o primeiro exemplo analisado será a clássica sentença A baleia é um tipo de peixe.

Para construir o significado dessa sentença, é realizada a mesclagem de dois espaços mentais input: no primeiro, há a en-tidade ‘baleia’ com suas propriedades específicas e, no segundo, a categoria ‘peixe’ com suas propriedades definitórias. O espaço genérico define o mapeamento entre os espaços input, conectando as propriedades da baleia e as propriedades dos peixes (ou da categoria ‘peixe’). A projeção para o espaço mescla é seletiva: a entidade ‘baleia’, a categoria ‘peixe’ e algumas de suas proprie-dades, as quais são partilhadas pela baleia (vertebrado, habitat aquático, locomoção por nadadeiras e forma hidrodinâmica), são projetadas para a mescla. a mescla tem estrutura emergente pró-pria, permitindo que a ‘baleia’ seja incluída na categoria ‘peixe’, na medida em que a categoria tem suas fronteiras flexibilizadas, focando apenas propriedades periféricas. (cf. Fig. 3)

A baleia e os peixes são análogos em alguns aspectos e desanálogos em outros. Na mescla, as analogias entre a entidade ‘baleia’ e a categoria ‘peixe’ são comprimidas em Similaridade (conecta elementos com propriedades partilhadas). a Similari-dade é comprimida em Categoria, pois uma categoria é definida por propriedades comuns e partilhadas entre seus membros. A categoria criada na mescla é uma flexibilização da categoria existente no espaço input 2. a mescla se mantém solidamente conectada aos espaços input, de modo que as Desanalogias entre a entidade ‘baleia’ e a categoria ‘peixe’ ainda estão presentes na sentença A baleia é um tipo de peixe. Essa sentença difere de A ba-leia é um peixe, que é simplesmente falsa. Até mesmo uma pessoa ciente de que a baleia é um mamífero cetáceo pode produzir a sentença A baleia é um tipo de peixe, pois o angulador umtipode suspende as condições de verdade do enunciado. Isso constitui apenas uma forma de definir, de modo simples e inexato, uma entidade (‘baleia’) em termos de uma categoria conhecida (‘pei-xe’), tendo em vista suas propriedades conhecidas pelo senso comum. Entretanto, uma pessoa que desconhece a que classe a baleia pertence pode afirmar que A baleia é um peixe, da mesma maneira que pode afirmar que A baleia é um tipo de peixe, Asardi-nha é um tipo de peixe, A corvina é um tipo de peixe, etc. Nesse caso, umtipode não é angulador e seu significado corresponde a uma forma de exemplificar a categoria (tipo equivale a exemplo).

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Figura 3 – Rede de mesclagem de “A baleia é um tipo de peixe”Sendo assim, o angulador umtipode nos incita a realizar

uma mesclagem, através da qual é construído o significado da sentença: a flexibilização da fronteira categorial. Considerando que umtipode suspende as condições de verdade do enunciado, ele é freqüentemente empregado para reduzir o comprometimen-to do falante/escritor com a verdade (ou falsidade) do enunciado, a fim de preservar a face nas interações verbais.

Como o exemplo 1, a sentença O órgão é um tipo de piano também promove mescla conceptual. Há dois espaços mentais input: no primeiro, há a entidade ‘órgão’ com suas propriedades específicas e, no segundo, a entidade ‘piano’ com suas proprie-dades específicas. No espaço genérico, há um mapeamento entre os espaços input, conectando as propriedades do órgão e as pro-priedades do piano. No espaço mescla, são projetadas seletiva-mente: a entidade ‘órgão’, a entidade ‘piano’ e algumas de suas propriedades, as quais são partilhadas pelo órgão (instrumento musical dotado de teclas). a mescla tem estrutura emergente própria, permitindo que a entidade ‘órgão’ seja definida em termos da entidade ‘piano’, que é o membro mais prototípico da categoria ‘instrumento musical dotado de teclas’, de acordo com o senso comum. Dessa forma, o angulador umtipode fle-xibiliza as fronteiras expressivas do ‘piano’ e transforma-o em um hiperônimo de todos os membros da categoria ‘instrumento musical dotado de teclas’, na medida em que focaliza apenas propriedades periféricas. (cf. Fig. 4)

a mesclagem incitada pela sentença O órgão é um tipo de piano apresenta os mesmos tipos de compressão realizados pela

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sentença A baleia é um tipo de peixe, bem como a mesma construção do significado. Portanto, é possível que o angulador umtipode incite sempre o mesmo tipo de mesclagem: mapeamento entre uma entidade e suas propriedades no espaço input 1 e uma ca-tegoria (ou membro mais prototípico de uma categoria) e suas propriedades no espaço input 2, sendo projetadas para a mescla a entidade do input 1 e a categoria (ou membro mais prototípico de uma categoria) do input 2, apenas com as propriedades parti-lhadas entre ambas. Essa mesclagem conceptual é responsável pela construção do significado do angulador umtipode.

Figura 4 – Rede de mesclagem de “O órgão é um tipo depiano”Outro exemplo interessante pode ser encontrado no corpus

do Grupo de Estudos Discurso & Gramática, no qual a infor-mante descreve oralmente a cozinha de sua casa.

I: e em cima dessa pia tem... uma/ ah... é um tipo deumaprate-leira só que não é uma prateleira... é uma parada bem alta... onde a gente pendura as panelas... tem várias panelas que... minha mãe comprou e que a gente pendura... é prático à beça... (regina)

Como se pode observar a informante está definindo uma entidade desconhecida, que não sabe conceituar (‘uma parada bem alta’), em termos de uma entidade conhecida pelo senso co-mum (‘prateleira’), mas adverte que não é uma prateleira. Nesse caso, há dois espaços mentais input: no primeiro, há a entidade desconhecida com suas propriedades específicas (sabemos ape-nas que é alta e serve para pendurar panelas, mas a informante dispõe de mais evidências) e, no segundo, a entidade ‘prateleira’ com suas propriedades específicas. No espaço genérico, há um mapeamento entre os espaços input, conectando as propriedades da entidade desconhecida e as propriedades da prateleira. No espaço mescla, são projetadas seletivamente: a entidade desco-nhecida, a entidade ‘prateleira’ e algumas de suas propriedades,

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as quais são partilhadas pela entidade desconhecida (alta, serve para guardar objetos, etc.). a mescla tem estrutura emergente própria, flexibilizando as fronteiras expressivas da ‘prateleira’ e transformando-a em um hiperônimo de toda espécie de tábua ou estante em que se guardam diferentes objetos.

5. ConclusãoConsiderando a mesclagem conceptual uma operação

mental básica que determina a construção do significado, este artigo desenvolveu a análise de dois exemplos contendo o angu-lador umtipode. Em linhas gerais, é possível listar as seguintes conclusões:

(1) angulador umtipode incita uma mesclagem que envolve dois espaços mentais input (uma entidade e uma catego-ria / membro mais prototípico de uma categoria), um espaço genérico, projeção seletiva para o espaço mescla (a entidade, a categoria / membro mais prototípico de uma categoria e algumas propriedades partilhadas por ambas) e uma mescla com estrutura emergente própria (flexibilização da categoria / hiperonímia);

(2) Na mescla, as analogias entre a entidade e a categoria são comprimidas em Similaridade, a Similaridade é compri-mida em Categoria, e as Desanalogias entre a entidade e a categoria não são comprimidas.

(3) o angulador umtipode suspende as condições de verdade do enunciado;

(4) o angulador umtipode é uma forma de definir, de modo simples e inexato, uma entidade em termos de uma cate-goria conhecida.

(5) A construção do significado do angulador umtipode é determinada pela mesclagem conceptual e, em especial, pela estrutura emergente contida na mescla.

Por fim, convém ressaltar que o papel da mesclagem con-ceptual na construção do significado dos anguladores ainda demanda muito estudo e, portanto, a análise apresentada para o angulador umtipode não pretende ser exaustiva. Outros aspectos desse angulador ficam reservados para trabalhos futuros, bem como a análise de outros anguladores do português.

Angelina Aparecida de Pina

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AbstractBased on Mental Space Theory, the main purpose of this article is to verify the role that conceptual blending plays in meaning construction of Por-tuguesehedgeum tipo de. Analysing sentences containing that hedge, we conclude that the meaningofum tipo de depends on conceptual blending that it prompts: a cross-space mapping between an input space (entity) and another input space (category / prototype of a category), a generic space, a partial projection to the blend (the entity, the category / prototype of a category and some shared properties) and an emergent structure (flexible category / hyperonymy).

Keywords: hedge um tipo de; conceptual blen-ding; meaning construction.

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Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

Christina Abreu GomesAline Rodrigues Benayon

Márcia Cristina Pontes Vieira

Recebido 5, jun. 2006/Aprovado 5, ago. 2006

ResumoEsse artigo apresenta os resultados de três pesqui-sas focalizando a aquisição da variação estruturada de padrões fonológicos por crianças na comuni-dade de fala do Rio de Janeiro, tendo os Modelos Baseados no Uso como referencial teórico. Nessa abordagem, assume-se que a variação sociolingü-ística é representacional, não uma regra, conforme a tradição dos estudos sociolingüísticos, e é parte do conhecimento lingüístico do falante, que deve ser adquirido. Distribuições de freqüências das variantes observadas na produção das crianças por faixa etária podem ser vistas como reflexos da ma-neira como as variantes estão sendo armazenadas e adquiridas. Gradualidade e efeitos de freqüência permeiam o processo aquisitivo.

Palavras-chave: variação, aquisição, freqüência

Christina Abreu Gomes, Aline Rodrigues Benayon, Márcia Cristina Pontes Vieira

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1. IntroduçãoEsse artigo discute resultados sobre a aquisição de estru-

turas variáveis do português brasileiro por crianças da comu-nidade de fala do Rio de Janeiro, tendo como base pressupostos teóricos dos Modelos baseados no Uso e da Lingüística Probabi-lística. os resultados observados apontam para a gradualidade da aquisição dessas estruturas e a importância do papel do input, no que diz respeito à distribuição das ocorrências das variantes envolvidas, para explicar as diferenças de desenvolvimento aquisitivo observadas.

os estudos sobre a aquisição da variação estruturada são mais recentes (ROBERTS, 2002) e a variação passou a ter um novo status dentro dos modelos multirepresentacionais (PIEr-REHUMBERT, 2001; BYBEE, 2001). Com os resultados aqui apre-sentados, pretendemos demonstrar a contribuição dos estudos sobre aquisição de estruturas variáveis para a compreensão da aquisição lingüística.

2. Fundamentos conceptuais dos Modelos Multirepresentacionais

Modelos baseados no Uso, Modelos emergentistas e Lin-güística Probabilística são rotulagens que definem teorias lin-güísticas que compartilham diversos pressupostos teóricos, mas com focos diferentes. Os diversos modelos compartilham o fato de que o conhecimento lingüístico do falante não é invariante, conforme já havia sido postulado por Weinreich, Labov e Herzog (1968). Os falantes não abstraem uma gramática invariante, e a variação de qualquer tipo, tanto as identificadas com a concep-ção laboviana como as de outra natureza, estão representadas na gramática abstraída pelos falantes.

os modelos pretendem equacionar a relação entre gramá-tica e uso, estabelecendo uma relação diversa da encontrada no formalismo gerativista, definindo a gramática como a organiza-ção cognitiva da experiência de uma pessoa com a linguagem, e as facetas dessa experiência, como, por exemplo, a freqüência de uso de certas construções ou ocorrências específicas de cer-tas construções, têm impacto nas representações, na aquisição, mudança e processamento (BYBEE, 2005). A proposta é que capacidades cognitivas gerais do cérebro humano, que permi-tem a categorização por identidade, similaridade e diferença, trabalham nos eventos lingüísticos de que a pessoa participa, categorizando e registrando na memória essas experiências. O resultado é uma representação cognitiva denominada gramática. A gramática, embora abstrata, uma vez que todas as categorias cognitivas são, está fortemente ligada à experiência que o falante tem com a língua.

Aquisição lingüística sob a ótica dos modelos multirepresentacionais

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Para dar conta da representação mais detalhada, os mode-los propõem uma organização probabilística do conhecimento lingüístico. O conhecimento da linguagem é entendido, não como um conjunto mínimo de restrições ou regras categóricas, mas como um conjunto redundante de informações gradientes, que podem ser caracterizadas por uma distribuição estatística (BOD; RENS; JANNEDY, 2003). Assim, as estruturas emergem do sistema de armazenagem e não são apriorísticas. Essas pro-posições têm como base diversos resultados obtidos em estudos sobre percepção, aquisição, variação sociolingüística, mudança, processamento (cf. BOD; HAY; JANNEDY, 2003). Em função do caráter probabilístico do conhecimento lingüístico, as freqüên-cias terão papéis importantes na organização interna do léxico, pois afetam a produção lingüística e a representação mental dos itens lexicais. A freqüência de ocorrência (token frequency) refere-se a quantas vezes uma determinada palavra ocorre em um corpus, seja este oral ou escrito. As entradas lexicais exibirão diversos graus de força lexical em função da sua freqüência de uso. Logo, palavras muito freqüentes têm ótima autonomia lexi-cal e formam conexões mais fracas, já que itens mais freqüentes no inputpodem ser aprendidos independentemente de outros, e, por isso, exibirão uma independência semântica e uma auto-nomia que faz com que elas sejam facilmente acessadas e que resistam a qualquer tipo de mudança analógica. Por outro lado, palavras que são altamente freqüentes são mais suscetíveis a mudanças foneticamente motivadas, já que este efeito é relacio-nado ao fato de que a língua muda em tempo real, e, portanto, quanto mais uma palavra for usada, mais chances ela terá de ser modificada (BYBEE, 2001, p. 11). A freqüência de tipo (type frequency) refere-se à freqüência de dicionário de um padrão particular. Sabe-se que quanto mais uma estrutura for recorrente, mais ela será produtiva, tendo, portanto, mais chances de ser atribuída a novos itens. Logo, os diversos tipos de freqüência apresentam papéis importantes na organização interna do léxico com reflexos na percepção, produção, aquisição, processamento e mudança (BYBEE, 2001).

além de procurar equacionar a relação entre uso e conhe-cimento abstrato diferentemente do que foi postulado inicial-mente no estruturalismo, com o estabelecimento da dicotomia langue e parole e, depois, no formalismo gerativista, através dos conceitos de competência e desempenho e, posteriormente, lín-gua-I e língua-E, esses modelos propõem também o abandono da doutrina do dualismo que separa a discussão em torno de duas perspectivas conhecidas como nature x nurture, situando os modelos teóricos ou em função de uma concepção estritamente biológica e inata da linguagem humana em oposição a uma visão que enfoca a importância da experiência com o uso. O abandono da doutrina do dualismo implica considerar a linguagem, ao

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mesmo tempo, em seu aspecto cognitivo e sua interação com o meio ambiente, isto é, a sociedade, conforme sumarizado na citação a seguir:

Language as a cognitive system imputed to individuals is thus to be explained in terms of general facts about the physical world (such as the fact that the resonances of an acoustic tube are determined by its shape); in terms of specific capabilities of the human species which arose through evolution (including both gross anatomical properties, such as the position of the larynx, and neurophysiological properties); and in terms of the interactions of the organism with its environment during development. In this view, social interaction is subsumed un-der the same umbrella, as a phenomenon of nature. Human societies, like all other mammalian social groups, are natural collections of individuals. And social interactions form part of the natural environment for the species, which influence individual members through natural (physical) mechanis-ms, such as propagation of sound and light waves, physical contact, and pheromones. On the basis of this viewpoint, we reject the traditional distinction between knowledge of natural phenomena and knowledge of social conventions (with social conventions differing from natural phenomena in being arbi-trary). (PIERREHUMBERT; BECKMAN; LADD, 2001, p. 2)

Nos Modelos baseados no Uso, a aquisição é definida como um processo progressivo e gradual de abstração de categorias lingüísticas a partir de generalizações feitas a partir da arma-zenagem de estruturas concretas. Isto é, em relação à fonologia postula-se que (VIHMAN; CROFT, 2006; PIERREHUMBERT, 2003) as categorias emergem gradualmente a partir do léxico adquirido, e categorias sintáticas são gradualmente abstraídas de construções específicas que as crianças armazenam (hipó-tese do “verbos-ilha” de TOMASELLO, 2000). Assumir que o conhecimento lingüístico emerge do armazenamento gradual realizado pela criança no período aquisitivo implica uma ar-quitetura de gramática em que os diversos níveis lingüísticos estão conectados através de redes de associações em função de critérios de similaridade e semelhança.

Ainda, essa abordagem não se posiciona a favor da descon-tinuidade entre a gramática da criança e a gramática do adulto. Para tomasello (2000, p. 237), a continuidade entre a gramática da criança e a do adulto está no próprio processo de armazena-mento e abstração de categorias, que é o mesmo na aquisição e na gramática constituída, e não na posse de categorias abstratas previstas na GU.

3. Aquisição de estruturas lingüísticas variáveis do PBTrabalhos como os de Foulkes, Docherty e Watt (2002) e

roberts (1996, 2002) têm apresentado evidências de que a va-riabilidade observada nas crianças é em parte estruturada, e

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essa sistematização está em conformidade com oinputque elas recebem. Os trabalhos de Benayon (2006), Gomes et al. (2006) e Vieira (2006) observaram a aquisição de estruturas variáveis do PB em crianças adquirindo o português carioca.

Os dados foram coletados da Amostra AQUIVAR/UFRJ (amostra para o estudo da aquisição da variação estruturada). trata-se de uma amostra transversal, constituída por 19 crianças de faixas etárias diversas, visando abarcar o continuum etário de 2;0 a 5;0 anos. É uma amostra em constituição, que se pretende que seja estratificada, além dos pontos etários, em função do sexo e da classe sócio-econômica, a qual foi estabelecida em relação à renda familiar, segundo o IBGE. Um dos objetivos da amostra é observar o desenvolvimento da aquisição em crianças com níveis sociais diferentes. Os trabalhos aqui apresentados focalizaram a distribuição das variantes em função somente da faixa etária, além dos aspectos lingüísticos relevantes para cada estudo. Cada trabalho utilizou uma sub-amostra do total não necessariamente com as mesmas crianças.

A pesquisa de Benayon (2006) analisou a aquisição dos ditongos orais decrescentes categóricos e variáveis do dialeto carioca.1 Estudos recentes sobre a fonologia da criança, como os de Bates e Goodman (1997) e de Beckman (2004), questionam a postulação gerativista de que a aquisição ocorreria a partir de um curso maturacional característico, no qual os componentes gramaticais emergiriam de acordo com uma programação fixa e ordenada (CHOMSKY, 1975, p. 53) e postulam a determinação do tamanho do vocabulário sobre as formas fonológicas, isto é, propõem uma estreita ligação entre a gramática abstraída e a ampliação do léxico. Com isso, a emergência das estruturas fonológicas ocorreria a partir da armazenagem de uma quanti-dade de itens lexicais suficiente para a abstração de determinada categoria.

tendo como ponto de partida a importância do input e o papel do léxico na aquisição de ditongos categóricos, obser-vou-se a freqüência dos ditongos orais na comunidade adulta,2 obtendo-se a seguinte distribuição: ditongos mais freqüentes, [ej], [aj], [aw] e [oj], por ocorrerem em um número de itens lexi-cais bem mais elevado que os de freqüência baixa, que, por sua vez, são: [ew], [uy], [Óy] e [εw]. Há ainda aqueles de freqüência baixíssima, [εy] e [iw], que estão diretamente relacionados com o status morfológico que carregam, respectivamente, são parte da flexão nominal e flexão verbal, razão pela qual foram exclu-ídos desse estudo. Uma vez que se postula que as crianças não adquirem sons ou estruturas isoladas, mas itens lexicais a partir dos quais os segmentos e as estruturas fonológicas abstratas se realizam, é de se esperar que, no período aquisitivo, em que o léxico das crianças está em expansão, haja uma preponderância na freqüência de ocorrência dos itens lexicais com ditongo em

1 Ditongos de realização categórica no dialeto carioca[ay]- pai, papai, praia, bai lar ina, papagaio, maior, maiô, gaiola, Caio[ey]- areia, sereia, feia, feio rei, peito, leite, cheia, cheio, deito, di-reito, meio, veio, leitão, deitado[ou]- dois, coisa, biscoi-to, depois, coisinha[aw]- mau, pau, tchau, degrau, bacalhau[ew]- eu, meu, meus, seu, seus romeu, Deus, Mateus[uj]- muito, muitos, mui-ta, muitas, muitão, cui-do, cuidado[Óy]- dodói, bóia[εw]-céu, chapéu e cha-peuzinho[uy]- fui, riu, saiu, caiuDitongos de realiza-ção variável no dialeto carioca[ey] peixe, beijar, queijo, cadeira, lareira, feijão, primeiro, queimou[ay] baixo, baixa, embai-xo, caixa, caixinha,2 Para o estudo da freqü-ência de tipo na comu-nidade de fala adulta, analisou-se a amostra Censo (1980- UFRJ/PEUL) com o apoio do programa computacio-nal Concappv4.

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relação à freqüência de tipo dos ditongos na aquisição dessas estruturas.

A partir da Amostra AQUIVAR, foram coletados 771 dados, considerando todos os tipos de ditongos e todas as ocorrências em itens lexicais diferentes ou repetidas do mesmo item lexical. Como um dos objetivos era o de comparar os resultados da aquisição no português carioca com os encontrados no estudo de Bonilha (2003), foi utilizada a mesma metodologia usada em seu estudo. Os dados foram computados considerando a ocorrência do ditongo em palavras diferentes, sem levar em consideração a produção em palavras repetidas.

Os dados foram analisados agrupando os ditongos em função da freqüência de ocorrência no léxico adulto. A tabela 1 a seguir, que agrupa os ditongos mais freqüentes, mostra que não há estabilização plena desses ditongos até a idade de 3 anos, uma vez que não apresentaram categoricidade, exceto para o ditongo [aw]. Notou-se, entretanto, a estabilização destes ditongos nas faixas etárias posteriores, onde parece também ocorrer aumento relativo dos itens lexicais que possuem tais ditongos. Vale res-saltar, no entanto, que no caso do ditongo [oy] tal aumento não é tão expressivo quando comparado aos outros.

Tabela1 – Freqüência de tipo nos ditongos [ej], [aw], [aj] e [oj]

Idade[ej] [oj] [aj] [aw]

Possibilidade % Possibilidade % Possibilidade % Possibilidade %ocorrência ocorrência ocorrência ocorrência

2 2/3 67 0/2 0 ½ 50 2/2 1002,3 ¾ 75 2/3 67 2/4 50 2/2 1002,7 4/5 80 2/2 100 2/3 67 2/2 1003 6/6 100 ¾ 75 2/3 67 2/2 100

3,3 9/9 100 3/5 60 4/4 100 3/3 1003,7 6/7 86 2/3 67 6/6 100 3/3 1004 8/8 100 3/4 75 7/7 100 4/4 100

4,6 9/9 100 6/6 100 8/8 100 4/4 100

Por outro lado, os ditongos menos freqüentes, na Tabela 2, apresentaram um comportamento de ocorrência categórica em todos os itens observados desde a faixa etária inicial da amostra. Nota-se, também, que não podemos dizer que houve um au-mento do vocabulário, pois esses ditongos possuem ocorrências semelhantes em todas as faixas etárias.

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Tabela 2 –Freqüência de tipo nos ditongos [ew], [uj], [Ój] e [Éw]

Idade

[ew] [uj] [Ój] [εw]Possibilidade ocorrência % Possibilidade

ocorrência % Possibilidadeocorrência % Possibilidade

ocorrência%

2 2/2 100 1/1 100 - - 2/2 1002,3 2/2 100 2/2 100 1/1 100 1/1 1002,7 1/1 100 1/1 100 - - - -3 3/3 100 3/3 100 2/2 100 2/2 100

3,3 4/4 100 3/3 100 1/1 100 3/3 1003,7 3/3 100 3/3 100 1/1 100 3/3 1004 3/3 100 2/2 100 - - 2/2 100

4,6 5/5 100 3/3 100 1/1 100 3/3 100

A comparação das duas tabelas revela que a freqüência de tipo é bem distribuída nos diversos ditongos e equilibrada nas faixas etárias, apresentando apenas uma pequena diferenciação no [ej], a partir dos 3 anos, no [aj] aos 3 e 7 meses e no [Ój] somente na última fase. Na verdade, dentro dos postulados dos Modelos Multirepresentacionais, a freqüência de tipo só desempenha um papel importante na produtividade e na generalização de estru-turas lingüísticas quando podem ser estabelecidas quais formas são mais freqüentes e quais são menos freqüentes, isto é, quais possuem um número de itens lexicais alto e quais apresentam um índice de palavras relativamente baixo no léxico adquirido. Em outras palavras, as estruturas fonológicas não são abstraídas diretamente do input, mas do léxico armazenado. O comporta-mento das crianças entrevistadas, no entanto, parece demonstrar que ainda não ocorreu totalmente tal definição, uma vez que se trata de um período de expansão lexical. Esta postulação pode ser reforçada por outro aspecto: nota-se que a categorização e estabilização dos ditongos [ej], [aj] e [oj] ocorrem juntamente com o relativo aumento do número de itens lexicais produzidos, isto é, a partir das faixas entre 3 anos e 3 e 7 meses, dependendo do ditongo. Isso pode indicar, então, que a freqüência de tipocomeça a determinar a aquisição dos ditongos decrescentes orais a partir somente de uma quantidade específica de palavras no léxico. Como se explicaria, então, as ocorrências categóricas dos ditongos menos freqüentes?

as tabelas 3 e 4 a seguir apresentam o conjunto de ocor-rências do ditongo (agora incluindo as ocorrências repetidas e o número de itens lexicais diferentes em que ocorrem). Na tabela 3, com os ditongos mais freqüentes, observa-se que [ey], [ay] e [oy], no decorrer do processo aquisitivo, apresentam uma incidência equilibrada de palavras, não havendo nenhum item lexical que se destaque em termos de ocorrência, isto é, não há uma alta concentração desses ditongos em poucos itens lexicais. Tal análise permite postular uma freqüência de ocorrência re-lativamente baixa dessas palavras.

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Tabela 3 – Freqüência de ocorrência nos ditongos [ej], [aw], [aj] e [oj]

Idade

[ey] [aw] [ay] [oy]

O / PNº de

palavras diferentes

% O / PNº de

palavras diferentes

% O / PNº de

palavras diferentes

% O / PNº de

palavras diferentes

%

2 4/5 3 80 2/2 2 100 7/8 2 87 0/3 2 0

2,3 7/8 4 87 2/2 2 100 11/14 4 78 7/9 3 77

2,7 6/6 4 100 2/2 2 100 9/10 3 90 2/2 2 100

3 7/8 5 87 2/2 2 100 12/13 3 92 7/8 4 87

3,3 13/13 7 100 3/3 3 100 13/13 4 100 10/11 5 91

3,7 16/17 9 94 6/6 3 100 19/19 6 100 5/6 3 83

4 15/15 8 100 7/7 4 100 26/26 7 100 5/6 4 83

4,6 17/17 9 100 12/12 4 100 28/28 8 100 26/26 6 100

85/89 95 36/36 100 125/131 95 62/71 87

Nos ditongos menos freqüentes (tabela 4), observamos uma relação inversa: há uma distribuição concentrada em determi-nadas palavras. Assim, notamos, desde as faixas iniciais, uma produção considerável desses ditongos, porém todos concentra-dos em pouquíssimos itens lexicais. Isso nos permite dizer que a freqüência de ocorrência desses itens é bem alta.

Tabela 4 – Freqüência de ocorrência nos ditongos [ew], [uj], [ j] e [εw]

Idade

[ew] [uy] [Óy] [εw]

O / PNº de

palavras diferentes

% O / PNº de

palavras diferentes

% O / PNº de

palavras diferentes

% O / PNº de

palavras diferentes

%

2 30/30 2 100 5/5 1 100 - - - 5/5 2 1002,3 23/23 2 100 8/8 2 100 2/2 1 100 3/3 1 1002,7 10/10 2 100 4/4 1 - - - - - - -3 34/34 3 100 9/9 3 100 7/ 7 2 100 4/4 2 100

3,3 39/39 3 100 20/20 3 100 3/3 1 100 6/6 3 1003,7 25/25 3 100 11/11 2 100 5/5 1 100 7/7 3 1004 46/46 3 100 15/15 2 100 - - - 7/7 2 100

4,6 79/79 5 100 23/23 3 100 1/1 1 100 13/13 3 100286/286 100 95/95 100 18/18 100 45/45 100

O referencial teórico adotado permite a postulação de que os itens lexicais em que se encontram os tipos de ditongos mais freqüentes possuem baixa autonomia lexical e, portanto, a emergência de [ey], [ay] e [oy] parece ser dependente da armaze-nagem de um determinado número de itens lexicais. Essa pode ser uma explicação possível para o fato de esses ditongos não apresentarem realização categórica nas primeiras faixas etárias. Os itens lexicais que abarcam os ditongos menos freqüentes e o [aw], por apresentarem uma freqüência de ocorrência bem alta, possuem relativa autonomia lexical. Isto significa dizer que essas palavras não necessariamente precisam estar relacionadas com várias outras. Tais itens lexicais parecem ser adquiridos como

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tais. Com isso, não se pode afirmar que a generalização desse padrão fonológico ocorreu completamente, mas sim que se ma-nifesta em função das palavras que foram adquiridas.

Em relação à aquisição dos ditongos variáveis, observou-se que as crianças parecem adquirir a variação existente entre [ey] ~[e] e [ay] ~ [a]. Na verdade, as crianças dão preferência à variante mais freqüente do input: o núcleo simples (CV). A freqüência da estrutura complexa CVV é muito baixa nesses contextos e, conseqüentemente, sua generalização é mais difícil de ocorrer nesse período, já que suas conexões seriam abarcadas por poucos itens lexicais sendo, portanto, muito fracas. Durante o processo aquisitivo, observou-se, a partir de 3 anos e 3 meses para [ey] e 3 anos e 7 meses para [ay], a produção da forma ditongada. Isso pode ser explicado pelo fato de que mais itens lexicais com os ditongos foram adquiridos, permitindo, assim, o reforço das conexões relativas ao padrão CVV em contexto variável. Notou-se também que nas fases em que ocorreram as produções dos ditongos, houve um aumento do número de itens lexicais produzidos, o que permite dizer que ocorreu uma expansão do léxico.

GoMES et al. (2006) investigaram a aquisição dos grupos consonantais formados por obstruinte + líquida, em relação aos quais se observa a existência de dois processos variáveis corren-tes na comunidade de fala do Rio de Janeiro: a alternância [l] ~ [r], como em [globu] ~ [grobu] e o cancelamento da vibrante, como em [outru] ~ [outu], conforme detectados nos trabalhos sobre a comunidade de fala. Estudos sobre a manifestação des-sas alternâncias em adultos indicam como em Mollica e Paiva (1991), condicionamento lingüístico em função da 1ª consoante do grupo e da ocorrência de outra líquida na palavra, ao passo que Gomes (1987) e Cristófaro-Silva (2002) apontam para forte correlação com condicionamento lexical no caso da alternância entre (l) e (r). Existem evidências de que, no processo aquisitivo do PB (LAMPRECHT, 1991), a estrutura CCV é uma das últimas estruturas silábicas adquiridas. No final do processo, as crianças deverão apresentar dois tipos de grupo: um com alternância entre lateral e vibrante alveolar e outro com alternância entre realização e cancelamento da vibrante alveolar (C/l/ -plástico ~ prástico, C/r/ -prato). A autora não menciona o aspecto va-riável da estrutura silábica em questão, mas observa que, no processo aquisitivo, as crianças escolhem uma das líquidas como estratégia para a fixação do padrão CCV. De acordo com Ribas (2004) não há ordem de domínio dos diferentes grupos de onset complexo.

A distribuição da ocorrência da sílaba CCV por faixa etá-ria em função do alvo – grupo consonantal formado por lateral (globo ~ grobo) ou formado pelo tap (livro ~ livu) – revelou que os itens lexicais com grupo alvo com lateral são realizados mais

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freqüentemente com a estrutura CCV do que os que têm o tap com o alvo. Há tanto a possibilidade de ocorrer a lateral como o tap nos dois tipos de alvo. A acuracidade na realização da palavra com a segunda consoante do grupo consonantal, observada nas taxas percentuais mais altas de ocorrência dessa estrutura, se dá antes de as crianças obterem os mesmos percentuais para as palavras que têm o tap como alvo. a interpretação é a de que a va-riação lingüística detectada na comunidade de fala que envolve manutenção do tipo silábico CCV na alternância globo ~ grobo, mas que implica alternância de type em livro ~ livu, interfere na abstração do padrão CCV. Os resultados para a realização do grupo somente em sílaba tônica confirmam o que foi encontrado para os dados observados em conjunto (gráficos 1 e 2):

Gráfico 1 – Ocorrência de CCV em função da líquida por idade

Gráfico 2 – Ocorrência de CCV na sílaba tônica em função da líquida por idade

Esses resultados apontam para uma explicação das diferen-ças desenvolvimentais observadas em função de aspectos lingüís-ticos específicos da ocorrência das formas no input ao invés de restrições universais, que seriam gerais para a estrutura CCV. A acuracidade progressiva na realização da estrutura silábica em questão está relacionada às variantes disponíveis no input, que envolvem competição entre realizações fonéticas diferentes da mesma palavra e competição entre tipos estruturais diferentes, como no caso da alternância CCV – CV das palavras que têm o tap como alvo.

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O estudo de Vieira (2006) focalizou a aquisição da flexão variável de 3ª pessoa do plural, que constitui uma variável sociolingüística na comunidade de fala do Rio de Janeiro. De acordo com Naro e Scherre (1996, 2000) Scherre e Naro (1993, 1997, 1998, 2000), o português vernacular do Brasil tem sido um campo fértil para a análise do fenômeno da concordância verbal, já que apresenta uma vasta variação na produção da fala, podendo produzir tanto formas como “todos os técnicos levam a equipe” quanto “todos os técnicoØ levaØ a equipe”; “nós vamos à praia” quanto “nós vaiØ à praia”. a partir, então, desses trabalhos, verificou-se que há uma variação sistemática nos processos de concordância de número, podendo a forma verbal exibir tanto a marca explícita de plural, bem como sua ausência. a concordância pode, portanto, ser analisada com base nos princípios da teoria da variação (LABOV, 1972), na qual a língua passa a ser concebida como uma estrutura inerentemente variável, e a variação como passível de descrição sistemática, em função de restrições lingüísticas e não-lingüísticas. Vale destacar, também, que a variação na concordância no português brasileiro representa uma deriva latente, de longo prazo, docu-mentada até mesmo antes da fase clássica do latim e das línguas européias que a precederam, conforme atestaram Scherre e Naro (2000), que encontraram evidências que indicam que a concordância entre o sujeito e o verbo na 3ª pessoa do plural já era variável nos textos pré-clássicos.3 o estudo sistemático dos dados da comunidade de fala, portanto, torna-se importante na medida que esta constitui o inputpara a fala das crianças, direcionando-as a uma determinada estrutura em detrimento de outras, indicando que o resultado do processo aquisitivo não pode ser exclusivamente a abstração de um sistema invariável de estruturas exclusivamente categóricas.

as ocorrências de 3ª pessoa do plural coletadas na amos-tra foram classificadas e analisadas em função das variáveis já observadas para a fala dos adultos, a saber: posição do sujeito em relação ao verbo, saliência fônica, traço humano do núcleo do sujeito, tempos verbais, efeito gatilho (presença da marca de plural em forma verbal da fala do entrevistador imediatamente anterior à da criança), marcas do sujeito no nível oracional e faixa etária. Os dados foram submetidos à análise multivariacional pelo programa VABRUL, versão MS-DOS, que selecionou as se-guintes variáveis independentes: efeito gatilho; posição do sujei-to; saliência fônica e idade, tendo como inputde concordância .57. Os seguintes grupos de fatores não foram selecionados: tempo verbal, os marcadores discursivos oracionais e o traço humano. Uma vez que um dos objetivos é verificar a aquisição gradual dos condicionamentos da concordância verbal no período aqui-sitivo, foram realizadas rodadas subseqüentes com cruzamento de fatores (faixa etária x efeito gatilho, faixa etária x saliência

3 - a todos aqueles que se fazem (3ª pl.) afora da carreira do pecado e TORNA (3ª sg.) a direita da carreira. (a Deman-da do Santo Graal, XXI, 160, p. 223)- Entom os parentes OUVE (3ª sg.) conselho e confessaron (3ª pl.) (os Diálogos de São Gregó-rio, 1.24.23 (35))

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fônica, faixa etária x posição do sujeito). Para os objetivos desse artigo serão comentados os resultados para saliência fônica.

De acordo com Scherre e Naro (1997), a saliência fônica controla o uso variável da marca de 3ª pessoa do plural na fala dos adultos. O efeito da saliência fônica é definido em função de que itens mais salientes favorecem o uso da marca (maior diferença entre a forma não marcada e a forma marcada – fez/fizeram, é/são), e itens menos salientes desfavorecem-na (menor diferença entre forma não marcada e a marcada - fala/falam). Como a variação é inerente ao sistema, postula-se, então, que tanto a variação quanto seus condicionamentos também farão parte do processo aquisitivo e serão adquiridos gradualmente, tal como outras estruturas lingüísticas. Com relação a esse controle da concordância verbal no PB, Vieira (2006) observou se o efeito da saliência fônica se mantinha o mesmo, independente da faixa etária, ou se haveria diferença em função do período aquisitivo. Tal correlação pode ser observada na tabela 5 a seguir. Em função do número de dados obtidos, os seis níveis de saliência fônica foram reagrupados nos dois níveis principais:

Tabela 5 – Efeito da saliência fônica em função da faixa etária1; 11 - 2;01 2;10 – 3;0 3;07 4;0 – 4;04 4;11 – 5;0

Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR Apl/Tot % PR[-saliênc. fon.] 1/16 6 .12 0/5 0 0/9 0 32/55 58 .48 7/16 44 .27[+saliênc.fon.] 25/44 37 .41 6/7 86 .60 0/4 0 49/69 71 .56 22/28 79 .86

Como se observa na tabela, não há diferença entre os ní-veis de saliência na faixa etária de 1;11-2,0, com os dois grupos desfavorecendo a marca. Na segunda faixa, de 2;10-3;0, não há dados com verbos [- salientes], ao contrário do que ocorre com os de [+ salientes]; entretanto, não se pode falar ainda em uma aquisição do condicionamento já que não há uma grande quan-tidade de dados. Na faixa de 3;08, não houve quaisquer dados com a marca de plural. Na de 4;0 – 4;04, embora não apresentem uma diferença muito grande no peso relativo, já se percebe uma tendência em verbos [+ salientes] favorecerem a marca explícita de plural. Já na última faixa etária, 4;11-5;0, observa-se claramen-te que, quanto mais saliente for o verbo, mais freqüente será a marca de concordância.

Esses resultados espelham, de forma geral, os mesmos resultados encontrados no estudo da Amostra Censo – comu-nidade de fala adulta, em que os itens mais salientes favorecem mais a concordância do que itens menos salientes. Como já era previsto, à medida que a criança for tendo mais contato com o input, a marca de concordância será mais freqüente naqueles contextos em que é mais favorecida na comunidade de fala. Vê-se, então, que desde o começo do período aquisitivo, já há uma manifestação do efeito dos condicionamentos observados na co-munidade de fala adulta. Pode-se, então, deduzir que as crianças

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estão adquirindo gradualmente os padrões de distribuições das variantes em função dos contextos lingüísticos.Esses resultados apontam para o fato de que os contextos de condicionamento de uma variável lingüística são adquiridos gradualmente ao longo do processo aquisitivo.

4. Considerações finaisos resultados apresentados sobre a aquisição de padrões

fonológicos e a flexão variável de 3ª pessoa do plural, estuda-dos em crianças adquirindo o dialeto carioca, evidenciam a necessidade de se incluir a perspectiva da variação lingüística nos estudos sobre aquisição. além disso, demonstram também sua importância para a compreensão das diferenças desenvol-vimentais, observadas através da freqüência de ocorrência das variantes ao longo das faixas etárias.

as evidências aqui apresentadas demonstram a graduali-dade da aquisição lingüística, observada na aquisição gradual de condicionamentos variáveis (o caso da saliência fônica para a flexão verbal), na influência da distribuição das variantes no input em função da variável sociolingüística (variantes do ditongo [ey] e alternância nos grupos consonantais), e na relação entre léxico armazenado e freqüência de tipo e de ocorrência de itens lexicais (realizações categóricas dos ditongos orais decrescentes).

Henry (2002, p. 280-281) observa que as crianças não só adquirem formas variáveis cedo no período aquisitivo como também refletem a proporção de distribuição em que as variantes ocorrem no input a que estão expostas. Isso significa, de acordo com Henry, que as crianças adquirem propriedades estatísticas das estruturas lingüísticas (seu foco é a sintaxe) como parte do processo aquisitivo. acreditamos, no entanto, que o tipo de pro-porção de distribuição das variantes durante o período aquisitivo e ao final esteja ligado não só à distribuição das variantes no input, mas também ao fato de a variável sociolingüística cons-tituir-se em variação estável ou mudança em progresso. Henry (2002) conclui que o dispositivo de aquisição da linguagem da criança não só deve estar apto a incorporar a variação como também é sensível à freqüência.

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AbstractThis paper presents the results of three researches focusing on the acquisition of structured variation of phonological and morphological patterns by children in the speech community of Rio de Janeiro taking the theoretical assumptions of the Usage-based Models. In this approach, sociolinguistic variation is assumed to be representational, not a process or a rule as stated in the main tradition of sociolinguistic studies, and it is also part of the speaker’s knowledge, which must be acquired. Frequency distributions of variants observed in children production across age levels can be seen as reflexes of the way the variants are being stored and acquired. Gradualness and effects of frequency encompass acquisition process.

Keywords: variation, acquisition, frequency

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A construção da referência e do sentido: uma atividade sociocognitiva e interativa*

Cláudia Roncarati SílviaReginaNevesdaSilva

Recebido 10, jun. 2006/Aprovado 10, ago. 2006

ResumoEste artigo trata da noção de cadeia referencial na progressão textual e discute a questão dos usos referenciais e atributivos no processo de constru-ção do objeto-de-discurso. A partir do enfoque da teoria da referenciação de base sociocognitiva interativa, demonstramos que o estabelecimento de cadeias referenciais constitui um dos mecanismos mais eficazes de que a língua dispõe para produzir efeitosdesentido.

Palavras-chave: processos referenciais; cadeia referencial; uso referencial; uso atributivo.

* o presente artigo con-tou com a colaboração do bolsista de IC/CNPq Ronaldo Eduardo Ferri-to Mendes, do Curso de Graduação em Letras da UFF, como auxiliar de pesquisa.

Cláudia Roncarati, Sílvia Regina Neves da Silva

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IntroduçãoNeste artigo, focalizamos processos de constituição e de

funcionamento das cadeias referenciais (CRs) no processamento textual e discutimos o problema da distinção entre os empregos referencial e atributivo com base em textos de gêneros diversifi-cados. Inicialmente, contextualizamos as tendências em pesquisa sobre referência. A seguir, apresentamos as noções de progres-são referencial e de cadeia referencial, assim como um quadro resumitivo das relações anafóricas que norteiam as análises das CRs. Por fim, apontamos questões relativas à adequabilidade do enfoque metateórico aqui adotado, pautado na teoria da referen-ciação de base sociocognitiva interativa.

O estudo da referência textual tem sido alvo de inúmeras pesquisas e, conseqüentemente, de reformulações teóricas. É truísmo afirmá-lo como um tema em que se debruçam estudio-sos de diferentes domínios do conhecimento, como a filosofia, a lógica, a semântica, a lingüística, a pragmática, a psicolingüística, a sociolingüística, a semiótica, a cognição, a análise do discurso e as ciências sociais.

Entretanto, os pesquisadores e os teóricos que se ocupam desses estudos se dividem basicamente em duas tendências pre-dominantes quanto ao tratamento e à concepção da referência: uma, a mais tradicional, concebida segundo uma perspectiva lógico-semântica e outra, pautada em uma perspectiva sociocog-nitiva interacionista, surgida mais recentemente.

Por longo tempo, a concepção dominante foi aquela dos estudos lógico-semânticos, para os quais a linguagem é uma representação extensional (dêitica, apontadora) da realidade ob-jetiva e circundante, e a referência, uma forma de representação do mundo. Nessa vertente, o processo de constituição de elos referenciais se reduz, então, a uma operação ou mecanismo de atamento de uma forma nominal ou pronominal ao seu referente no âmbito da sentença, e o referente é tratado como uma entidade apriorística e estável, um objeto do mundo extralingüístico:

Neste caso, tanto a linguagem como o mundo estão previa-mente discretizados e podem ser correlacionados por proces-sos referenciais de correspondência. A referência seria uma contraparte extramente de um conceito ou uma expressão lingüística. As significações teriam uma referência no mundo objetivo. Os referentes, nesta teoria, são objetos do mundo e a atividade de referi-los é um processo de designação extensio-nal. (MARCUSCHI, 2000, p. 11)

Tal noção de referência ainda conta com muitos adeptos. Todavia, cada vez mais, aumenta o número de seguidores que, ao conceberem a linguagem como uma atividade interativa e so-ciocognitiva, passam a ver a referência como um contrato discur-sivamente produzido, em que os referentes são imanentemente

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objetos-de-discurso, entidades alimentadas e sancionadas pela atividade discursiva. Neves da Silva (2002, p. 18), em consonância com este enfoque metateórico, considera que

[...] a referência é a base da significação, a fonte contextual da produção de sentidos que viabiliza a construção do referente como objeto-de-discurso. A referência é uma entidade de existência discursiva, criada pelos sujeitos, à medida em que eles identificam e designam indivíduos, fatos, ações, estados de coisas, sejam eles concretos ou abstratos, seres reais ou virtuais. A referência é, pois, aquilo que o referente designa. É um tipo de materialidade ou representante virtual do refe-rente. No entanto, sua existência no texto não a constitui como entidade independente, autônoma, com existência garantida fora do mundo discursivo.

Sendo a referência constituída através de relações semân-ticas variadas no processamento de retomadas ou remissões da cadeia referencial, a sua própria significação (cf. MARCUSCHI, 1999) pressupõe o acesso a uma série de domínios, quais sejam: ideacional (informativa e de base lexical); discursivo (informa-tiva e de base co(n)textual); interacional (interpessoal, de base interativa e cognitiva) e situacional (de base pragmática). a sig-nificação da referência não é um construto pronto e acabado, ao contrário, ela se sujeita a revisões e alterações em função mesmo dos quadros cambiantes dos domínios em que se inscreve. Vá-rios fatores contribuem para a significação da referência: o uso lingüístico (léxico-semântico), a intencionalidade e a situação (contexto). A significação lingüística, que diz respeito à seleção de itens lexicais, à intencionalidade e à experiência cognitiva representadas na memória histórica e social dos interlocutores, sofre, portanto, a pressão desses domínios.

Assim, por exemplo, quando o significado da referência é implícito, a interpretação passa a depender quase crucialmente de processos inferenciais que se apóiam no saber partilhado. Eventualmente, a recuperação do sentido referencial (a inter-pretação) pode torna-se impraticável, caso em que o interlocutor não consegue acessar e ativar, em sua memória sócio-discursi-va, os esquemas conceituais implícitos no texto, ou parte deles, condição sine qua non à ativação de operações inferenciais. É senso comum que as condições de acesso ao conhecimento enciclopédico possam restringir as possibilidades de produção de sentido. As possibilidades de atribuição de significação às cadeias referenciais, são, portanto, sujeitas a uma série de fatores intervenientes: nas cadeias de remissão de um mesmo referente, os elementos de significação relacionados podem partilhar uma ou outra propriedade referencial, explícita ou implícita, podendo haver entre eles apenas relações de associação, inclusão e conti-güidade, entre outras (BRONCKART, 1999, p. 269).

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A significação da referência, cumpre novamente enfatizar, não constitui um processo definitivo e nem se calca em esquemas conceituais previamente fixados, uma vez que a relação de sig-nificação entre referência e referente se realiza a cada passo no fluxo informacional. Em princípio, todos os referentes evoluem – mesmo em retomadas por paráfrase, sinônimo ou repetição – já que em cada remissão novas molduras comunicativas e reorien-tações argumentativas se estabelecem. assim, na continuidade referencial, o referente pode ser lexicalmente recategorizado e exibir eventuais modificações em sua predicação atributiva, em função da negociação interacional, dos movimentos variáveis de enquadres comunicativos e das intencionalidades argumen-tativas.

A lingüística textual tem revitalizado, com novos ares e promissor alento, o conjunto de conhecimento já produzido so-bre a organização da informação, da estruturação textual e da referência. Os resultados das pesquisas nessa área nos levam a considerar a existência de uma teoria da referenciação, funda-mentada em uma semântica do texto sócio-interativamente con-cebida (cf. KOCH; MARCUSCHI, 1998, p. 173). A interpretação de uma expressão referencial anafórica nominal ou pronominal, portanto, não implica a localização de um antecedente ou de um objeto específico no mundo, mas de um objeto ou informação anteriormente produzida na memória discursiva compartilhada e publicamente alimentada pelo próprio discurso (cf. APOTHÉ-LOZ; REICHELER, 1999).

Como constituir cadeias referenciais na progressão referencial

Segundo Koch e Marcuschi (1998, p. 170) e Marcuschi (1999, p. 2), a progressão referencial diz respeito à introdução, identificação, preservação, manutenção e retomada de referen-tes textuais, correspondendo às estratégias de designação de referentes e formando o que se pode denominar cadeia referen-cial. A interpretação dessas cadeias, um dos fatores atuantes na interpretação da progressão tópica, ou seja, na compreensão da evolução dos assuntos tratados ao longo do fluxo discursivo, revela-se como uma estratégia de relevância didático-pedagó-gica para a compreensão/produção textual, área de estudos interdependentes e com grande concentração de dificuldades. Problemas de rastreamento da evolução dos assuntos tratados ao longo do fluxo discursivo, de falta de concordância verbal e nominal e ocorrência de frases truncadas e trechos sem coesão e, não raro, sem coerência podem resultar, entre outros fatores intervenientes, da não percepção de diferenças entre estraté-gias de designação e de encadeamentos de referentes nos usos discursivos.

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O tema da progressão referencialainda apresenta muitas questões em aberto, tornando-se realmente convidativo à pes-quisa. o recorte aqui adotado − análise das cadeias referenciais na produção discursiva oral e escrita − é ainda pouco explorado como instrumento de análise das transformações de designação que um mesmo referente pode apresentar em sua cadeia de remissão (por exemplo, por retomada através de repetição de item lexical, pronominalização, elipse, ou ainda, por diferentes mecanismos de recategorização: associação, sinonímia, paráfra-se, metonímia, metáfora, hiponímia, hiperonímia, etc.).

A progressão referencial, segundo Neves da Silva (2002, p. 29), é um dos fatores relevantes na formação de cadeias re-ferenciais que influem na evolução e tessitura do texto. Essas cadeias estabelecem relações semânticas e cognitivas entre os itens lexicais que as constituem e contribuem para discriminar, seqüencializar e entrelaçar os estágios de um argumento na progressão temática. No fluxo da informação ingressante, o foco de consciência se desloca continuamente de uma porção ou segmento de unidade informacional para outro, deslocamento este que regula a manutenção do referente na memória de cur-to e longo termo (CHAFE, 1994, p. 98) integrando informações velhas com novas, com suporte da argumentação. Eis aqui esses princípios de referenciação envolvidos no foco de consciência, tal como detalhados por Koch (2002, p. 83): ativação - um referente até então não mencionado é introduzido no fluxo discursivo (primeira menção); reativação- um referente já introduzido é novamente ativado na memória de curto termo, por meio de uma forma referencial; deativação - um outro referente é introduzido, deslocando a atenção do referente anteriormente em foco.

É nesse aspecto, por conseguinte, que se diz que a continui-dade referencial e o desenvolvimento do tópico contribuem para alicerçar a organização e progressão discursiva ao longo do texto. Um dos problemas mais comuns na produção/compreensão textual é a dificuldade de manutenção dos referentes na memó-ria discursiva, processo este balizado nas relações anafóricas e catafóricas responsáveis pelas estratégias de designação e encadeamento referencial. Mas também, como já ressaltamos, muitos dos problemas de estabelecimento de progressão refe-rencial podem estar relacionados ao grau de capacidade de mo-bilização e reelaboração de conhecimentos socioculturalmente compartilhados e registrados ou não na memória discursiva, importante fonte de atribuição de coerência e orientação dis-cursivo-argumentativa.

As cadeias referenciais, ao facilitarem a construção de uma rede multidimensional de pistas prospectivas e retrospectivas na superfície textual, contribuem para a identificação e o domínio de estratégias sociocognitivas de seleção, antecipação, inferência e verificação no processamento textual.

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A noção de Cadeia Referencial (CR) corresponde à noção de cadeia anafórica. Ambas foram conceituadas por Chastain (1975, p. 205) e retomadas por Corblin (1995, p. 151). Em um enunciado ou um texto, chamamos de CR toda seqüência de itens que remete a um mesmo referente. A CR constitui, portanto, um mecanismo de progressão referencial, através do qual se procede à categorização do estatuto dos referentes.

No entanto, conforme têm demonstrado Neves da Silva (2002), Roncarati, Cavalcante e Mendes (2004) e Roncarati (2005), o teste da aplicação das CRs em diferentes gêneros textuais da fala e da escrita envolve uma série de problemas de ordem semântico-argumentativo associados ao emprego referencial e atributivo dos referentes textuais.

A determinação do estatuto teórico dos itens lexicais, na avaliação de Koch e Marcuschi (1998, p. 177-179), é uma ativida-de de categorização dos referentes no discurso que, por não se circunscrever a uma mera etiquetagem de operações de desig-nação, desloca o problema da significação literal para aspectos estratégicos e processuais, já que o estabelecimento das CRs se processa em uma rede multidimensional de relações semântico-argumentativas. A constituição de uma CR põe em foco o estado discursivo das designações referenciais.

Portanto, a determinação do estatuto dos referentes textu-ais em uma CR nos leva a rever a noção de que somente os sin-tagmas nominais utilizados referencialmente são suscetíveis de empregos anafóricos. Esta noção, para Halliday e Hasan (1976), diz respeito à visão estreita de anáfora – o caso da anáfora direta – que constitui sempre uma co-referenciação. O enfoque que aqui adotamos, no entanto, se baseia numa visão ampla de anáfora, usada “[...] para designar expressões que, no texto, se reportam a outras expressões, enunciados, conteúdos ou contextos textuais (retomando-os ou não) contribuindo assim para a continuidade tópica e referencial” (MARCUSCHI, 2005, p. 54-55).

Nesse sentido, há que se considerar a função de expressões atributivas no processo da construção da referência e de seu sentido, uma vez que a referência constitui o próprio objeto-de-discurso e este, por sua vez, é construído no interior do texto. Portanto, parece pertinente que sua constituição deve levar em conta também os atributos de predicação que lhe são remeti-dos. O uso de expressões atributivas pode oferecer recursos de sentido importantes para a construção do objeto-de-discurso, a depender da tipologia das seqüências discursivas que compõem a estrutura dos gêneros. Por exemplo, seqüências descritivas tendem a apresentar aporte de novas informações por meio de atributos predicativos, como demonstramos mais adiante na análise dos textos. Nesses casos, observa-se, ainda, que essas expressões atributivas podem ser remetidas e retomadas na CR. Segundo Koch e Elias (2006, p. 137), muitas pesquisas têm evi-

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denciado que as expressões nominais referenciais desempenham funções cognitivo-discursivas, que, como formas de remissão, possibilitam ativação e reativação na memória do interlocutor. Nesse sentido, as autoras admitem que há “[...] formas híbridas, referenciadoras e predicativas, isto é, veiculadoras não só de informação dada, mas também de informação nova” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 138).

No entanto, a questão é controversa na literatura. a dis-tinção entre emprego referencial e emprego atributivo se deve a Donnellan (1966). Vejamos o caso clássico, apontado por este e retomado por Lyons (1977) e Apothéloz (2003). Lyons (1977, p 153-154) considera que

Não se deve pensar que a única função dos sintagmas nomi-nais definidos seja fazer referência a indivíduos (ou classe de indivíduos) específicos. Um sintagma nominal definido pode ocorrer como o complemento do verbo ‘ser’, podendo então ter uma função predicativa, e não referencial. Isto poderá ser ilustrado pela seguinte frase:

(2) Gisgard d’Estaing é o Presidente de França.

assim, (2) pode ser compreendida de diversas maneiras e, em particular, como exprimindo uma proposição comparável a proposições como: Gisgard d’Estaing é oriundo de auvergne, gosta de jogar tênis, etc. Nesta interpretação de (2), o sintagma ‘o Presidente de França’ não é usado para referir um indivíduo, mas com função predicativa, para dizer alguma coisa acerca do indivíduo que é referido por meio da expressão-sujeito ‘Gisgard d’Estaing’.

A nosso ver, cabe ressaltar aqui que esta ‘alguma coisa’ dita acerca do referente, em forma de atributo predicativo, delimita seu sentido referencial e contribui para a evolução do referente.

Mais adiante, Lyons (1977, p. 153-154) admite:Mas há uma outra interpretação de (2), segundo a qual tanto ‘Gisgard d’Estaing’ como ‘o Presidente da França’ funcionam como expressões referenciais, estabelecendo a cópula uma relação de identidade entre os dois referentes. Assim, acontece que em Inglês e em muitas outras línguas, embora nem todas, a cópula predicativa e a cópula equativa são idênticas: o verbo ‘ser’ é usado em ambos os casos. Não obstante, há diferenças importantes entre as frases predicativas e as frases equativas que contêm o verbo ‘ser’: se (2) for tomada como uma frase equativa, as duas expressões referenciais são intermutáveis (tal como os dois termos numa equação como 32= 9) e o artigo definido é uma componente obrigatória de ‘o Presidente da França’; se (2) for considerada uma frase predicativa, os dois sintagmas nominais não são intermutáveis e o artigo é facul-tativo no sintagma nominal predicativo.

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O problema reside, pois, no fato de se considerar a possi-bilidade de haver relações anafóricas também para expressões predicativas e não somente para expressões referenciais.

Neste aspecto, Apothéloz (2003, p. 61) considera que, para Halliday e Hasan (1976),

a referência só é um tipo de relação anafórica, dentre outras. Mas certos autores só utilizam o termo anáfora para designar as expressões referenciais. Neste sentido restrito do termo, somente os sintagmas nominais utilizados referencialmente são suscetíveis de empregos anafóricos.

Neves da Silva (2002, p. 20), com base em evidência empí-rica extraída de diferentes gêneros textuais da fala e da escrita, destaca a possibilidade de uma mesma referência “operar sele-ções lexicais variadas, a depender dos atributos que vão sendo colocados e que, não raro, geram evoluções referenciais, recate-gorizações e reorientações discursivas e argumentativas”. Não há dúvida de que não se pode confundir o uso referencial com aquele atributivo, mas, por outro lado, o uso atributivo fornece novas informações sobre o referente, contribuindo para uma construção mais detalhada do objeto-de-discurso. Por fim, de acordo com Mondada (2005, p. 12), a referência é “um fenômeno que concerne simultaneamente à cognição e aos usos de lingua-gem em contexto e em sociedade”.

Esse conjunto de argumentos metateóricos nos leva nos leva a considerar que nenhum dado informativo relativo ao re-ferente, seja ele referencial ou atributivo, deve ser descartado na construção da referência. Desse modo, parece-nos teoricamente coerente considerar a remissão de atributos predicativos como dados informativos de valor referencial. Apesar disso, pouca atenção se tem dado à predicação atributiva, que também tem seu papel no sentido de transformar e fazer evoluir o objeto-de-discurso no desenvolvimento da CR.

As CRs e os mecanismos de referenciação estabelecidos por relações endofóricas

O estabelecimento e funcionamento das CRs são esque-matizados a partir do seguinte quadro de relações anafóricas proposto por Marcuschi (1999) e já adaptado e aplicado por Neves da Silva (2002) em diferentes gêneros textuais da fala e da escrita:

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Quadro das relações endofóricasRelação anafórica Esquema categorial{1} Retomada explícita de antecedente por repetição de item ou construção lingüística com estabilidade/ continuidade referencial

± correferência*− recategorização+ co-significação

{2} Retomada explícita do antecedente por pronome com estabilidade / continuidade referencial

+ correferência− recategorização− co-significação

{3} retomada implícita de antecedente por sinonímia, paráfrase, associação, meronímia e metonímia com estabilidade/ continuidade referencial

± correferência*+ recategorização− co-significação

{4} Com remissão e retomada implícita de antecedente não pontualizado e com reorientação referencial realizada por dêiticos textuais

− correferência+ recategorização− co-significação

{5} Com remissão e retomada implícita de antecedente e reorientação referencial por nominalização/verbo ou hipo/ hiperonímia

− correferência+ recategorização− co-significação

{6} Com remissão sem retomada de antecedente e reorientação referencial por rotulações metalingüísticas ou de força ilocutória

− correferência(?) recategorização(?) co-significação

{7} Sem remissão e sem retomada de antecedente, com construção referencial induzida por pronome/nome ou construção nominal

(?) correferência(?) recategorização(?) co-significação

{8}Elipse. Retomada implícita de antecedente por elipse do referente (argumento do verbo: sujeito ou objeto) com estabilidade / continuidade referencial. Trata-se de anáfora zero.

+ correferência− recategorização− co-significação

Esse quadro apresenta os mecanismos de remissão, retomada e referência, em processos de relações endofóricas que podem garantir continuidade referencial ou não, a depender do estabelecimento de correferência, recategorização e co-significação. A correferenciação é uma remissão com retomada do referente já introduzido, através de repetição, sinônimo ou de designação alternativa para um mesmo referente; a co-significação, uma relação de identidade léxico-semântica estabelecida entre elementos lingüísticos e constituída por relações anafóricas ou catafóricas; a recategorização, a remissão a um aspecto co(n)textual antecedente (item lexical ou co(n)texto), operando como espaço informacional para a inferenciação; pode ou não envolver retomada implícita (parcial, total ou similar).

Para demonstrar a constituição e organização das CRs selecionamos três textos: um fragmento de romance de Júlio Verne, A volta ao mundo em oitenta dias; uma fábula de La Fontaine e um trecho de uma entrevista semi-informal de uma informante com ensino superior incompleto.

Eis o primeiro texto em análise, em que destacamos somente a CR concernente à personagem de Jean Passepartout.

Sem ser suntuosa, a casa de Saville Row destacava-se pelo ex-tremo conforto. Aliás, pelos hábitos invariáveis do locatário, o serviço reduzia-se a pouco. No entanto, Phileas Fogg exigia de seu único criado uma pontualidade e uma regularidade extraordinárias.

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Naquele mesmo dia, 2 de outubro, Phileas Fogg havia despedido James Foster – acusara o rapaz de ter-lhe trazido a água para fazer a barba a oitenta e quatro graus Fahrenheit, ao invés de oitenta e seis -, e esperavaseu sucessor, que devia se apresentar entre onze horas e onze e meia.

Phileas Fogg, confortavelmente instalado em sua poltrona, os dois pés juntos, como os de um soldado numa parada, as mãos apoiadas nos joelhos, o corpo ereto, a cabeça erguida, olhava a marcha dos ponteiros de seu relógio de pêndulo – aparelho complicado que indicava as horas, os minutos, os segundos, os dias, as datas do mês e o ano. Às onze e meia em ponto, de acordo com seus hábitos cotidianos, o senhor Fogg deveria deixar sua casa para ir ao Reform Club.

Naquele momento, bateram à porta da sala onde estava Phileas Fogg.

James Forster, o dispensado, apareceu.–o novo criado–disse.Um rapaz de cerca de trinta anos apresentou-se e cumpri-

mentou-o.–O senhor é francês e se chama John? – perguntou-lhe Phileas

Fogg.– Jean, com o seu perdão – respondeu o recém-chegado.–Jean

Passepartout, um apelido que permaneceu, e que justifica minha aptidão naturalparame∅ livrar de confusões. ∅Creioser um rapaz honesto, senhor, mas para ∅serfranco∅ exerci muitas profissões. ∅Fuicantor ambulante, picador de um circo∅ andei na corda bamba, comoLéotard, e ∅ dancei como Blondin; depois ∅metorneiprofessor de ginásticaparaempregarmeus talentos e, finalmente, ∅fui sargento do Corpo de Bombeiros em Paris.Emmeu dossiêconstam até incêndios notáveis. Mas eis que ∅ abandonei a França há cinco anos e, ∅ querendo gozar da vida familiar, ∅ acabei como criado de quarto na Inglaterra. Ora, ∅ encontrando-me desempregado e ∅tendo ouvido dizer que o senhor Phileas Fogg era o homem mais regular emaissedentáriodoReino Unido, ∅ apresentei-me em sua casa, senhor, com a esperança de aqui ∅vivertranqüiloeaté∅ me esquecer deste nome de Passepartout...

(VERNE, Júlio. A volta ao mundo em oitenta dias. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1996. p. 11-12).

CR: Jean PassepartoutCR: {6} seu sucessor que devia se apresentar entre onze

horas e onze e meia > {3} o novo criado > {3} um rapaz de cerca de trinta anos > {2} o senhor > {3} francês > {3} John > {1} Jean > {3}o recém-chegado > {1} Jean Passepartout, um apelido que permaneceu > {3} minha aptidão natural > {8 } ∅ livrar > {8} ∅ creio ser > {6} um rapaz honesto > {8}∅ ser > {8} ∅ exerci {8} ∅ fui > {6} cantor ambulante > {6} picador de um circo > {8} ∅ andei > {8} ∅ dancei > {6} > {8} ∅ tornei > {6} professor de gi-nástica > {3} meus talentos > {8} ∅ fui > {6} sargento do Corpo

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de Bombeiros em Paris > {6} meu dossiê > {8} ∅ abandonei > {8} ∅ querendo > {8} ∅ acabei > {6}como criado de quarto na Inglaterra > {8} ∅ encontrando-me > {6} desempregado > {8} ∅ tendo > {8} ∅ apresentei-me > {8} ∅ me esquecer > {4} deste nome de Passepartout.

Este excerto presta-se para discutir o problema do emprego referencial e atributivo na constituição da CR, tendo em vista o processo de construção da referência e de seu sentido, ou seja, a construção do objeto-de-discurso.

Na progressão referencial, as formas híbridas, referencia-doras e atributivas (cf. KOCH; ELIAS, 2006, p. 138) veiculam informações novas que contribuem para desenhar o perfil da personagem (o novo criado), com base na memória discursiva sociocognitiva, através de uma construção dialógica em que participam diferentes vozes, agentes do percurso temático (narrador, PhileasFogg, JamesFoster e onovo criado). assim, cada participante da trama narrativa vai aduzindo novas informações que são compartilhadas pelo leitor ao tempo em que constroem interativamente o objeto-de -discurso (JeanPassepartout). ressal-te-se que a alternância de locutores incorpora a referenciação dêitica, a partir do momento em que o próprio Jean Passepartout toma o turno e faz uma apresentação de si mesmo, a modo de um dossiê ( fui cantor ambulante, etc...), com o emprego da dêixis (referenciação dêitica em 1ª p.), codificada por anáfora zero, estratégia {8}: ∅livrar,∅ creio ser,∅ ser, ∅ exerci, ∅ fui, ∅andei,∅ dancei,∅ me tornei, ∅fui,∅ abandonei,∅ querendo,∅ acabei,∅encontrando-me,∅tendoouvidodizer,∅ apresentei-me, ∅viver,∅me esquecer.

Em {6} seu sucessor que devia se apresentar entre onze horas eonzeemeia (realizada por expressão referencial formada por determinante + nome + oração relativa), temos a primeira men-ção do referente ativado por predicação atributiva de função catafórica, com remissão a referente antecedente sem retomada. Além da função atributiva, o sintagma nominal ‘seu sucessor’ remete, por catáfora, a ‘o novo criado’. Em {3} o novo criado, te-mos a identificação do referente, por associação, com remissão e retomada implícita do antecedente (seu sucessor) e aporte de nova informação. Já em {3} um rapaz de cerca detrintaanos, temos uma retomada implícita ao modo de introdução de novo refe-rente (expressão nominal indefinida) com função predicativa que carreia informação nova a referente já introduzido. Em {2} O senhor, temos retomada explícita do antecedente por prono-me de tratamento com continuidade referencial. Em {3} francês, John temos remissão e retomada implícita de antecedente por associação com busca de identificação por dêixis social (origem e nome próprio) através de uma pergunta feita por Phileas Fogg. Em {1} Jean e Jean Passepartout, um apelido que permaneceu, temos retomadas explícitas de antecedente (John), no primeiro caso, por

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repetição de item lexical com reparo e preservação de face, em relação à origem de seu nome, feito pelo próprio Passepartout e, no segundo, retomada explícita com aporte de novos dados (um apelido que permaneceu) com continuidade referencial. Em {3} o recém-chegado, temos uma retomada implícita por paráfrase com aporte de informação nova. Em {3} minhaaptidãonatural e meus talentos, temos retomadas implícitas do antecedente por associação meronímica (parte do referente que o identifica) de valor atributivo sem correferencialidade. Em {6} um rapazhonesto, cantor ambulante, picador de um circo, professor de ginástica, sargento do Corpo de Bombeiros em Paris, como criado de quarto na Inglaterra desempregado, temos uma série enunciativa de força ilocutória, por aporte de predicações atributivas, que, acrescentadas no percurso da CR, contribuem para compor o objeto-de-discurso (o novo criado), tipificando um caso de evolução do referente na progressão textual. Em {6} franco e tranqüilo, temos remissão sem retomada de antecedente por reorientação atributiva de força ilocucionária que oferece dados para a caracterização psicológica da personagem. Em {6} meu dossiê, temos um caso de remissão sem retomada do antecedente com reorientação referencial por rotulação metalingüística ou metadiscursiva (dossiê) que resume e encapsula os atributos predicativos apresentados na compo-sição da personagem pelo próprio Passepartout. Por fim, em {4} destenomedePassepartout, temos remissão e retomada implícita de antecedente por dêitico textual (deste) associado a uma rotu-lação que encapsula todos os atributos que remetem ao perfil da personagem, perfil este encarnado no nome simbólico e de recurso semiológico da personagem, que indiciará seu papel fulcral na estória: o de passe-partout, ‘a chave-mestra’, que há de solucionar os problemas com quais a narrativa se enredará. Neste ponto da trama, observa-se que a personagem quer se livrar do estigma do seu nome lhe confere.

Agora, vamos ao segundo texto, a fábula Os Ladrões e o Jumento, numa versão de La Fontaine.

Os Ladrões e o Jumento

1 a Transilvânia era um estado vassa-lodo Sublime Portal (o Império otoma-no), quando entrou em um período de ampla autonomia. Como um vassalo, a transilvânia pagava ao Portal um tribu-to anual e fornecia assistência militar; em troca, os otoma-nos compromete-ram-se em proteger a transilvânia de ameaças externas. Príncipes nativos a governaram de 1540 a 1690. as poderosas famílias dominantes da transilvânia, em sua maioria hún-garas, cuja posição ironicamente se for-taleceu com a queda da Hungria, geral-mente escolhiam o príncipe, sujeito à aprovação do Portal; em alguns casos, po-rém, os turcos indi-cavam diretamente o príncipe.2 o Império Otomano, fundado por Osman I (em árabe Uthman, de onde deriva o nome “otomano”), foi um estado que existiu entre 1281 e 1923 e que, no seu auge, compreendia um vasto domínio. Nos séculos XVI e XVII, o Império otomano constava entre as principais potências políticas européias. Foi nesta época em que La Fontaine escreveu suas fábulas ideadas no espírito clássico racional do humor e da crítica. a dinastia osmanli era, por ve-zes, referida em cír-culos diplomáticos como a da Sublime Porte ou, simples-mente, como aPorte, devido à cerimônia de acolhimento com que o Sultão agra-ciava os embaixa-dores à entrada do palácio.

Dois ladrões brigavam por causa de um jumento roubado.Enquanto ∅trocavam bofetões, apareceu um terceiro ladrão que levouo asno.

o jumento desta históriapodeseralguma infeliz provín-cia.os ladrões sãopríncipes, como o da transilvânia,1 da Hungria ou do império oto-mano.2

Paísesromenosduranteogovernode Mihailviteazul (1593-1601).

Pode-se ver, acima, a Transilvânia.

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Emlugardedois, apareceram três,3ejásãobastantes.Aprovín-cia conquistada não ficou para nenhum deles.Chegaoquarto ladrão, que deixa os outros de mãos vaziase∅leva o jumentinho.

(PEIXoto, Paulo Marcos (org.). Fábulas de La Fontaine. São Paulo: Ed. Paumapé, 1993. p. 13)

O Império Otomano (Portal) no auge de seu domínio (1683).Para analisar as CRs nesse fábula, optamos por segmentar

o texto em duas partes: tomamos a primeira como uma síntese da versão clássica da fábula e a segunda, como uma paráfrase contextualizada no século XVII.

assim, na primeira parte, distinguimos três CRs: (1) os ladrões; (2) o jumento e (3) um terceiro ladrão.

CR1: os ladrões (1ª menção) > {1} dois ladrões > {8} ∅ tro-cavam

CR2: o jumento (1ª menção) > {1} um jumento roubado > {3} o asno

CR3: um terceiro ladrão (1ª menção) > {2} queNa CR1, a primeira menção, Os ladrões, constituída por

uma expressão nominal definida, ocorre no título; a retomada do referente, no início do texto, se realiza por expressão nomi-nal definida, com repetição de item lexical e especificador de quantidade, {1}Doisladrões; a seguir, a retomada por elipse, {8} ∅ trocavam, garante a continuidade referencial.

Segundo Chafe (1994, p. 98), a primeira menção do parti-cipante no discurso deve ser codificada através de uma forma nominal indefinida, caracterizando um referente ainda não co-nhecido, o qual é subseqüentemente retomado através de forma nominal definida, por já ser então conhecido. Mas, nas fábulas, em geral, a primeira menção se realiza no título por expressão nominal definida (cf. O ladrão e o corvo, A cigarra e a formiga, Aostra e o camundongo, O leão e o cordeiro, etc...). Isso se explica talvez pelo fato de que as fábulas fazem parte de um universo textual de longa tradição cultural sabidamente compartilhada na me-mória coletiva entre diferentes povos. Trata-se de gênero textual originado na oralidade e fixado através de padrões estruturais em que se antropomorfizam animais, tratados como referentes conhecidos. De qualquer modo, vale ressaltar que, em geral, a codificação de títulos é variável, a depender da intencionalidade do enunciador, que pode sugerir que o referente já é conhecido,

3 Possivelmente, a associação aqui es-tabelecida por La Fontaine, ao citar os três príncipes (Hun-gria, transilvânia e Império otomano), diz respeito à teia de poder, cuja instân-cia superior eram os otomanos, grandes imperialistas.

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utilizando, para tanto, a expressão definida, ou fazer uso de expressão nominal indefinida, quando nomeia um referente novo, a ser apresentado no corpo do texto.

Na CR2, a primeira menção,ojumento, também se dá, no título, por uma expressão nominal definida; a retomada, no entanto, é realizada por uma expressão nominal indefinida, {1} um jumento roubado, que caracteriza a particularização do refe-rente: não se trata de um jumento qualquer, mas daquele que foi roubado; a terceira ocorrência constitui uma retomada por uma expressão nominal definida por sinonímia, {3} oasno, logo, com continuidade referencial.

Já a CR3 segue o padrão previsto por Chafe (1994) com in-trodução de um novo referente por expressão nominal indefinida um terceiro ladrão, que, a modo de uma personagem desestabili-zadora, abre nova possibilidade interpretativa, reorientando o percurso argumentativo para uma direção imprevista, instau-rando uma intertextualidade de conteúdo com o ditado latinointer duos litigantes, tertius gaudet (entre dois litigantes, o terceiro se alegra): o terceiro ladrão acaba “levando a melhor” ao ficar com o asno.

Na segunda parte da fábula, há uma retomada temática dos referentes, mas não há correferenciação, ou seja, os referen-tes não constituem os mesmos objetos-de-discurso da primeira parte da fábula, pois as CRs exibem uma releitura metaforizada no cotexto com remissão a um espaço histórico-geográfico de-terminado, que permite inferir, através de conhecimento cultu-ralmente compartilhado ou enciclopédico, os dados da situação extralingüística em foco, desde que o leitor tenha acesso a esses dados: por conhecimento prévio ou pesquisa direcionada.

Passemos, agora, à análise da segunda parte da fábula:CR1: o jumento (1ª menção) > {1} o jumento desta história > {6}

alguma infeliz província > {1} o jumentinhoCR2: os ladrões (1ª menção) > {1} os ladrões > {6} príncipes, como

o da Transilvânia, da Hungria ou do império otomano > {8} dois ∅ > {8} três ∅ > {6} bastantes > {2} nenhum deles > { 2} os outros > { 3} de mãos vazias

CR3: {7} o quarto ladrão > {2} que > {8} > ∅ levaNesta segunda versão, o referente o jumento, da primeira

parte, é retomado por repetição de item lexical, {1} ojumentodestahistória, com continuidade referencial sem correferencialidade; a terceira ocorrência, {6} alguma infeliz província, constitui uma reo-rientação por construção metafórica com atributo predicativo, de força ilocutória; a seguir, {1} o jumentinho realiza uma retomada por repetição de item lexical, com continuidade referencial, com base na primeira menção.

Na CR2, o referente osladrões do primeiro segmento do texto é igualmente retomado por {1} osladrõespor repetição de item lexical, com retomada sem correferencialidade; a seguir, {6}

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príncipes, como o da Transilvânia, da Hungria ou do império otomano constitui uma reorientação do referente por construção meta-fórica com aporte de atributo predicativo e recategorização; na seqüência referencial {8} dois∅retoma o referente, por meio de especificador de quantidade, com elipse do núcleo referencial; em {8} três ∅, a retomada segue a mesma estratégia, entretanto, apresenta evolução referencial de atribuição predicativa quan-titativa (não são mais aqueles dois ladrões iniciais e, sim, três); na seqüência, {2} bastantes, para nenhum deles, os outros constituem retomadas explícitas de antecedente por pronominalização; finalmente, {3} demãosvazias faz uma reorientação referencial com remissão e retomada implícita por meio de meronímia, com aporte de atribuição predicativa: os ladrões ficam de mãos vazias.

Na CR3, {1} o quarto ladrão, embora se trate de referente novo, é introduzido ao modo de referente conhecido, uma vez que retoma o terceiro ladrão da primeira parte, no sentido de se tratar igualmentede personagem desestabilizadora (o que leva o jumentinho), que abre nova possibilidade interpretativa reorien-tando o percurso argumentativo para uma direção imprevista; na seqüência, {2} que realiza retomada explícita por pronome com continuidade referencial; e, finalmente, {8} ∅levaretoma o referente com elipse do sujeito referencial.

A fábula, termo equivalente do grego “mito”, segundo Moisés (1974, p. 226-227), designa no interior do pensamento aristotélico, a imitação das ações, a intriga, sendo considerada um elemento da tragédia. De narrativa curta e alegórica, a fábula, usualmente identificada com a parábola, encerra uma moral, implícita ou explícita. Na avaliação de Aveleza (2002, p. 28), “Por vezes, a Fábula propõe imaginosas explicações sobre a origem de certos comportamentos, ou situações, relaciona-dos com animais ou com coisas ou objetos, assumindo, assim, intenções etiológicas”. De longeva origem, provavelmente oriental, a fábula, comum na antigüidade clássica, foi cultivada notadamente por Esopo (século VI a. C.), por Fedro (séc. I d. C.) e por La Fontaine, um dos mais destacados fabulistas da idade moderna (1668 a 1694).

A fábula em questão apresenta um aspecto vário: trata-se de uma ressignificação do papel que, tradicionalmente, caberia à moral. Mas, na fábula de que tratamos, temos uma outra leitura ou versão calcada no contexto sócio-histórico epocal, conforme detalhado nas notas. Poderíamos considerar que a fábula tra-dicional (primeiro segmento ou parte) se comporta como uma epígrafe que inspira a outra versão. Neste sentido, ambos os seg-mentos apresentam um dialogismo inerente, corporificado em um tipo de metafábula. Em função dessa estrutura intertextual, cada segmento exibe uma rede dimensional de CR específica que se amalgama em uma mais ampla, com recategorizações

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referenciais de cunho metafórico, com redirecionamento de possibilidades interpretativas; o enunciador inaugura uma linha argumentativa preferencial (veja-se a força ilocucionária do modal sugerindo um recorte dessas possibilidades: ojumentodesta história pode ser alguma infeliz província.), sem, no entanto, obstar outras interpretações ou releituras.

O último texto em análise é de uma entrevista semi-infor-mal, de uma informante de 33 anos, com terceiro grau incom-pleto, gravada em 1999 no bairro de Água Santa, Rio de Janeiro, pertencente ao acervo do Projeto Programa de Estudos dos Usos da Língua (PEUL/UFF/UnB).

F- (...) Então, o meu primeiro trabalho foi para alfabetização.Olha, eu tenho o prazer de dizer que alfabetizei em três meses segundo a própria alfabetizada–uma moça de dezoito anos, pobre, (“uma”) empregada doméstica.Maselaédessas pessoas–eunãotenhomais contato com ela, não (carro passando) sei notícias dela, não sei seela subiu a escada para um bem ou para um mal. Ela queria vencer. (est) Então ela andava - parecia uma filhinha de madame , como diz, bem arrumadinha.Ela queria vencer a todo custo. Eu acho que foi a força de vontade dessa moça que ela aprendeu em três meses a ler. Porque ela queria sair da casa da patroa para empregar-se no comércio. (bonde passando) e diz ela que conseguiu (est) depois (“não tive”). (f) Issofoiháunsdozeanosatrás.

CR:Jovem alfabetizadaCR: {5} alfabetização (referente temático) > {3} a própria

alfabetizada - uma moça de dezoito anos, pobre, (“uma”) em-pregada doméstica >{2} ela > {5} dessas pessoas > {2} ela > {2} (notícias) dela > {2} ela > {2} Ela > {2} ela > {6} uma filhinha de madame > {6} bem arrumadinha > {2} Ela > {3} a força de vontade dessa moça > {2} ela > {2} ela > {2} ela > {2} Isso.

Neste excerto, destacamos somente uma CR, na qual o falante relata sua experiência em alfabetizar uma pessoa adulta (de dezoito anos, que conseguiu alfabetizar-se em três meses). trata-se de um relato breve, em que se observa variação nas estratégias de progressão referencial.

Em {5} alfabetização, temos a introdução do referente-fonte ou matriz, com remissão e retomada implícita e reorientação referencial por hiponímia (retomada de termo mais genérico “trabalho” por termo mais específico “alfabetização”). Em {3} aprópria alfabetizada, uma moça de dezoito anos, pobre, (“uma”) empregada doméstica, temos a introdução de referente novo, por anáfora indi-reta, de tipo semântico, ou seja, baseada no léxico, com vinculação de atributos predicativos e rotulações. Em {2} ela, ela (notícias) dela, ela, Ela, ela, Ela, ela, ela e ela, temos a retomada explícita de antecedente a própria alfabetizada - uma moça de dezoito anos, pobre, (“uma”) empregada doméstica por pronominalização com continuidade referencial. Em {5} dessaspessoas, temos a – reto-

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mada implícita de antecedente com reorientação referencial por hiperonímia (retomada de termo mais específico “uma moça de dezoito anos” por termo mais genérico “pessoas”), opera-da por expressão referencial definida com menção a referente estereotipado, situacionalmente evocado e, que pressupõe um certo conhecimento compartilhado pelos interlocutores; no caso, remete a um tipo de pessoa que se esforça por superar dificuldades. Trata-se de referente culturalmente evocado, de acordo com roncarati (2003, p. 149). Em {6} uma filhinha de mada-me, bem arrumadinha, temos retomada com remissão a atributos predicativos por construção nominal de força ilocutória, que supõe conhecimento compartilhado por parte do interlocutor. Em {3} a força de vontade dessa moça, temos a retomada implícita de antecedente por associação meronímica (parte do referente que o identifica) de valor atributivo sem correferencialidade. Em {2} isso, temos aretomada implícita de discurso precedente por pronome demonstrativo, com função resumitiva.

Esperamos ter evidenciado, com base nessas análises, que, além das expressões referenciais, a predicação atributiva também pode ser incluída no estabelecimento das CRs, com a finalidade de melhor depreender as relações semânticas e cognitivas entre os itens lexicais que colaboram para a construção do objeto-de-discurso na memória sócio-cognitiva do interlocutor.

AbstractIn this paper, we deal with the concept of referential chain in the textual progression, and we discuss the problem of the referential and attributive usages in the process of the construction of the discour-se-object. Based on a theory of referentiation of social-cognitive interaction basis, we show that the constitution of the referential chain is one of the most efficient mechanisms of the language to produce effects of meaning.

Keywords: referential processes; referential chain; referential usage; atributive usage.

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 33�-3�4, 2. sem. 2006

Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence

communicationnellePatrick Charaudeau

Recebido 20, jun. 2006/Aprovado 20, ago. 2006

Résumé La question identitaire est une question complexe. D’une part parce qu’elle résulte d’un croisement de regards: celui du sujet communiquant qui cherche à la construire et à l’imposer à son partenaire, le sujet interprétant, lequel ne peut s’empêcher, à son tour, d’attribuer une identité à celui-ci en fonction de ses propres a priori. D’autre part parce qu’on a beau vouloir éviter le piège de l’essentialisation, tout sujet a le désir de se voir (ou de voir l’autre) constitué en une identité unique, c’est-à-dire une essence.

Mots clefs: identité, sujets du discours, acte de communication

Patrick Charaudeau

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Trois raisons, au moins, font que ce thème des identités sociales et discursives me semble particulièrement important. La première est que dans le domaine des sciences humaines et sociales, et face à la montée en force de la sociologie, il justifie l’existence d’une discipline du langage comme ayant une position centrale, comme tissant un lien entre elles: pas de sociologie, pas de psychologie sociale, pas d’anthropologie sans prise en compte des mécanismes langagiers. La deuxième concerne les sciences du langage elles-mêmes, car ce thème montre la nécessité de dis-tinguer la langue du discours, dans un sens quelque peu inverse à celui d’une certaine représentation qui veut que la langue soit première et le discours second: c’est, en fait, le discours qui est fondateur de la langue. Et si l’on veut dire que c’est par la langue que l’on met en œuvre du discours, il faut préciser que c’est la langue en tant qu’elle est discours, en tant qu’elle a enregistré du discours. Cependant, cette position ne dit encore rien sur le sujet qui parle. Et c’est en effet le troisième aspect que ce thème met en évidence, celui de l’existence d’un sujet, d’un sujet qui se construit à travers son identité discursive, une identité discursive qui cependant ne serait rien sans une identité sociale à partir de quoi se définir. C’est en tout cas ce que je voudrais montrer ici.

1. De l’identité en généralLa philosophie contemporaine —principalement la phé-

noménologie— a largement traité cette question comme fonde-ment de l’être: l’identité est ce qui permet au sujet de prendre conscience de son existence qui se constitue à travers la prise de conscience de son corps (un être-là dans l’espace et le temps), de son savoir (ses connaissances sur le monde), de ses jugements (ses croyances), de ses actions (son pouvoir de faire). L’identité va donc de pair avec la prise de conscience de soi.

Mais cette prise de conscience, pour qu’elle se fasse, a be-soin de différence, de différence vis-à-vis d’un autre que soi. Ce n’est qu’en percevant l’autre comme différent que peut naître la conscience identitaire. La perception de la différence de l’autre constitue d’abord la preuve de sa propre identité qui devient alors un: “être ce que n’est pas l’autre”. Dès lors, la conscience de soi existe à proportion de la conscience que l’on a de l’existence de l’autre. Plus cette conscience de l’autre est forte, plus fortement se construit la conscience identitaire de soi. Il s’agit là de ce que l’on appelle le principe d’altérité. Cette relation à l’autre s’institue à travers des échanges qui font que chacun des partenaires se reconnaît semblable et différent de l’autre. Semblable en ce que pour qu’une relation existe entre les êtres humains il faut que ceux-ci partagent, du moins en partie, des mêmes motivations, des mêmes finalités, des mêmes intentions. Différent en ce que chacun joue des rôles qui lui sont propres et que, dans sa singu-larité, il a des visées et des intentions qui sont distinctes de celles

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de l’autre. ainsi, d’après ce principe, chacun des partenaires de l’échange est engagé dans un processus réciproque (mais non symétrique) de reconnaissance de l’autre et de différenciation vis-à-vis de cet autre, chacun se légitimant et légitimant l’autre à travers une sorte de «regard évaluateur» qui permet de dire que l’identité se construit à travers une croisée des regards: “il y a l’autre et il y a moi, et c’est de l’autre que je tiens le moi”.. Si l’on voit les choses du point de vue de la communication langagière, on dira en reprenant E. Benveniste qu’il n’y a pas de je sans tu, ni de tu sans je: le tu constitue le je.

La différence étant perçue, il se déclenche alors chez le sujet un double processus d’attirance et de rejet vis-à-vis de l’autre. D’attirance, d’abord, car il y a une énigme à résoudre, l’énigme du Persandont a parlé Montesquieu, qui revient à se deman-der: “comment peut-on être différent de moi ?” Car découvrir qu’il existe du différent de soi, c’est se découvrir incomplet, imparfait, inachevé. D’où cette force souterraine qui nous meut vers la compréhension de l’autre ; non pas au sens moral, de l’acceptation de l’autre, mais au sens étymologique de la saisiede l’autre, de sa maîtrise, qui peut aller jusqu’à son absorption, sa “prédation” comme disent les éthologues. Nous ne pouvons échapper à cette fascination de l’autre, à ce désir d’un autre soi-même. De rejetensuite, car cette différence, si comme on l’a dit est nécessaire, n’en représente pas moins pour le sujet une menace. Cette différence ferait-elle que l’autre m’est supérieur ? qu’il serait plus parfait ? qu’il aurait davantage de raison d’être que moi ? C’est pourquoi la perception de la différence s’accom-pagne généralement d’un jugement négatif.Il y va de la survie du sujet. C’est comme s’il n’était pas supportable d’accepter que d’autres valeurs, d’autres normes, d’autres habitudes que les siennes propres soient meilleures, ou, tout simplement, exis-tent. Lorsque ce jugement se durcit et se généralise, il devient ce que l’on appelle traditionnellement un stéréotype, un cliché, un préjugé. Le stéréotype joue d’abord un rôle de protection, il constitue une arme de défense contre la menace que représente l’autre dans sa différence.

On voit le paradoxe dans lequel se construit l’identité. Chacun a besoin de l’autre dans sa différence pour prendre conscience de son existence, mais en même temps il se méfie de cet autre et éprouve le besoin soit de le rejeter, soit de le rendre semblable pour éliminer cette différence. Le risque est, dans le premier cas, que, à rejeter l’autre, il ne dispose plus de différence à partir de laquelle se définir; dans l’autre cas, à le rendre sem-blable il perd du même coup un peu de sa conscience identitaire puisque celle-ci ne se conçoit que dans la différenciation. D’où ce jeu subtil de régulation qui s’instaure dans toutes nos sociétés (seraient-elles les plus primitives) entre acceptation ou rejet de l’autre, valorisation ou dévalorisation de l’autre, revendication

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de sa propre identité contre celle de l’autre. Il n’est donc pas simple d’être soi, car être soi passe par l’existence et la conquête de l’autre. “Je est un autre” disait Rimbaud; il faudrait préciser: “Je est un autre moi-même semblable et différent”.

2. Les composantes de l’identitéSi l’on accepte que l’identité résulte d’un mécanisme com-

plexe au terme duquel se construisent, non pas des identités globales, mais des traits d’identité, il convient de se demander quelle est la nature de ces traits. Et pour ce faire, je partirai de quelques exemples.

1° exemple:

Un père de famille rentre chez lui, et voyant son fils en train de faire des constructions avec les assiettes en porcelaine de Limoges héritées de la grand-mère, lui dit: “Ah ben, au moins elles auront servi à quelque chose ces assiettes !”. Et l’enfant remet les assiettes dans l’armoire.

Un père a une identité sociale à la fois par filiation biolo-gique (géniteur de tel enfant) et par ce que dit la loi (il jouit de certains droits et doit se soumettre à certains devoirs). C’est cet ensemble qui lui donne une autorité parentale, au niveau de ce que l’on nommera «identité sociale». Mais chaque père se construit, en outre, par ses comportements et ses actes lan-gagiers, différentes identités de père autoritaire, protecteur, compréhensif, castrateur, indifférent, etc…. Ces identités sont construites à travers des actes de discours. au total, son identité d’être résultera de la combinaison des attributs de son identité sociale avec tel ou tel trait que construisent ses actes langagiers. Dans cet exemple, le père se construit une identité de père non autoritaire, ironique et, vraisemblablement, de personne réglant ses comptes avec ce que représentent ces assiettes. Mais en plus il obtient de son fils qu’il range l’objet de son forfait.

2° exemple:

[Dans une réunion de travail, après avoir élaboré un projet de recherche qui doit être soumis à l’évaluation d’une com-mission, l’un des membres du groupe suggère qu’il faudrait savoir qui fait partie de ladite commission.] S’ensuit le dialogue suivant:

A - Moi, je connais FP qui en fait partie.

B - Ah, ben moi aussi, je connais FP, et je te conseille de ne rien lui dire car c’est une personne intègre qui a horreur qu’on fasse pression sur lui.

a - Mais je n’ai pas dit que j’allais lui parler, j’ai seulement dit que je le connaissais.

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B - Non, mais je n’ai pas dit non plus que tu allais lui parler, j’ai seulement dit qu’il fallait être prudent.

Ici, il s’agissait entre autres, pour B, de montrer qu’elle (il s’agit d’une femme) connaissait mieux FP que A, qu’elle était plus sage ou lucide que a, prenant une position haute par rapport à A de «conseilleur». Si l’on sait en plus que, dans ce groupe, B est la supérieure hiérarchique de a, on comprend que sa visée était de rappeler à A, et au groupe, quel était son statut. L’identité construite par les actes de langage sert ici à réactiver l’identité sociale.

3° exemple:

[En 1988, à l’occasion de la campagne électorale pour la pré-sidence de la République, F. Mitterand et J. Chirac se sont trouvés confrontés dans un face à face télévisé. Au cours du débat, F. Mitterand s’adressait à son adversaire en lui donnant constamment du “Monsieur le Premier ministre”, puisqu’il était en effet son Premier ministre en exercice]

— J.Chirac (quelque peu agacé): “Cessez, monsieur Mitterand, de me traiter de Premier ministre. Ici, je ne suis pas votre Premier ministre, et vous n’êtes pas le Président de la République. Nous sommes seulement deux candidats qui se présentent aux suffrages des électeurs”.

—F. Mitterand (avec un léger sourire): “ Bien sûr, vous avez tout à fait raison, monsieur le Premier ministre”.

Voilà un cas où l’homme politique, par sa réplique, se construit une image de personne à la fois dominatrice, sûre d’elle-même; mais aussi distante et enjouée, pouvant se per-mettre de jouer avec son adversaire, faisant un clin d’œil aux téléspectateurs en pratiquant l’ironie; mais aussi paternaliste (“allons, allons, tout cela n’est qu’un jeu”) comme l’aiment bien les Français. Ici, tout se joue dans une stratégie de discours qui construit divers masques d’identité psychologique.

4° exemple:

Enfin, je rappellerai le slogan publicitaire d’une des campagnes de la banque BNP en France: “Votre argent m’intéresse”. Ce slogan apparaissait sur une affiche de rue, à côté d’un homme représentant le cadre supérieur (costume-cravate et cheveux gominés vers l’arrière), en position frontale, dans une sorte de clair-obscur austère, et regardant le passant bien droit dans les yeux.

Il s’agissait, à l’époque, de construire une certaine image du banquier qui était censée correspondre à celle qui circule dans les représentations sociales (et confortée par une enquête préalable), mais généralement non dite: «le banquier n’est pas un altruiste, il profite de notre argent».

Patrick Charaudeau

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L’identité construite par le slogan était, semble-t-il, des-tinée à produire un effet de sincérité: à ne pas masquer une certaine identité sociale du banquier (celle qui circule dans les représentations), on pouvait entendre un discours implicite du genre: “moi, au moins, je vous dis la vérité; donc vous pouvez avoir confiance”.

On voit par ces exemples d’une part que l’identité du sujet communiquant est composite. Elle se compose de données bio-logiques (“on est ce qu’est notre corps”), de données psychoso-ciales qui sont attribuées (“on est ce que l’on dit que vous êtes”), de données construites par notre propre comportement (“on est ce que l’on prétend être”). Mais comme, du point de vue de la signification, les données biologiques acquièrent celles que leur donnent les groupes sociaux, on peut dire que ces composantes se ramènent à deux: celle que l’on nommera, par commodité, identité sociale, et celle que l’on nommera identité discursive. De plus, ces exemples nous montrent d’une part que l’identité sociale n’est pas le tout de la signification du discours, l’effet possible d’influence de celui-ci n’étant pas entièrement donné par avance, d’autre part que le discours n’est pas que langage, sa signification dépendant, pour une part, de l’identité sociale de celui qui parle. L’identité sociale a besoin d’être confortée, renforcée, recréée ou, au contraire, occultée par le comportement langagier du sujet parlant, et l’identité discursive, pour se construire, a besoin d’un socle d’identité sociale. On posera donc qu’existe une différence entre ces deux types d’identité, et que c’est du fait de leur combi-naison que se construit le pouvoir d’influence du sujet parlant.

L’identité socialeElle a cette particularité de devoir être reconnue par les

autres. Elle est ce qui donne au sujet son «droit à la parole», ce qui le fonde en légitimité. Il faut donc voir en quoi consiste cette légitimité

La légitimité est une notion qui n’est pas exclusive du domai-ne politique. D’une façon générale, elle désigne l’état ou la qualité de qui est fondé à agir comme il agit. On peut être légitimé ou non à prendre la parole dans une assemblée ou une réunion, à édicter une loi ou une règle, à appliquer une sanction ou donner une gratification. Le mécanisme par lequel on est légitimé est un mécanisme de reconnaissance d’un sujet par d’autres sujets, au nom d’une valeur qui est acceptée par tous; ainsi en est-il dans les exemples précédemment cités. Aussi, la légitimité dépend-elle des normes institutionnelles qui régissent chaque domaine de pratique sociale et qui attribuent des statuts, des places et des rôles à ceux qui en sont investis.

Par exemple, dans le domaine juridique, qui est régi par une logique de la loi et de la sanction, les acteurs sont légitimés par l’obtention d’un diplôme et le statut institutionnel acquis

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du fait d’un système de recrutement par concours accompagné d’un système de nomination par les paires ou les supérieurs hiérarchiques. La profession est donc protégée par les règles de l’institution. Mais qu’une entorse soit faite à l’une d’entre elles (le secret professionnel) ou qu’un comportement semble diver-ger d’une norme attendue (comme ce que d’aucuns appellent le “harcèlement juridique”), et immédiatement se trouve mise en cause la légitimité de l’action des juges. Il en est de même dans le domaine de certaines professions libérales comme la profes-sion médicale qui, soumise à une logique d’expertise en relation avec une finalité de lutte contre la souffrance et la mort, verrait mise en cause la légitimité de certains de ses acteurs si ceux-ci venaient à commettre des erreurs médicales ou à faire passer leur intérêt financier devant leur activité de médecin.

Dans le domaine économique, qui est régi par une logique du profit, les acteurs sont tenus de respecter des règles de con-currence, et dans le domaine de l’entreprise qui lui est lié, les lois du travail. au nom de cette logique, il n’est pas illégitime que l’on licencie, que l’on cherche à prendre la plus grande part d’un marché, ou même que l’on fasse de la culture extensive. Mais qu’une entreprise fasse travailler les enfants, qu’elle exploite son personnel, qu’elle licencie abusivement sans reclasser, qu’elle exerce un monopole sur un marché, ou que l’on découvre les effets néfastes d’une politique économique (culture extensive), et voilà que l’on peut l’attaquer du côté de sa légitimité (ne pas avoir le droit d’agir de la sorte). Cependant, il s’agit d’une illégitimité au regard de la morale et non du profit.

Dans le domaine médiatique, encore, qui est régi par une double logique d’information citoyenne et de concurrence com-merciale1 la mise en cause de la légitimité de ses acteurs est plus difficile à obtenir, tant la machine médiatique a un pouvoir de récupération de ses propres dérives.2 Mais la course effrénée pour obtenir et diffuser un scoop (le syndrome paparazzi), la diffusion d’informations fausses et non vérifiées (le syndrome de timisoara), la trop grande spectacularisation de la mise en scène de l’information peuvent remettre en cause le sacro-saint devoir d’informer.

Mais il est également une autre légitimité, celle qui est at-tribuée defait, par la seule force de la reconnaissance, de la part des membres d’une communauté, de la valeur de l’un des leurs. C’est la légitimité que donne l’attribution d’un prix (comme dans les festivals) ou d’un titre honorifique, ou l’intronisation dans une société savante (l’Académie), ou, dans un autre type d’acti-vité, la performance ou la victoire dans la compétition sportive. Il peut aussi se produire, parfois, un glissement curieux entre cette légitimité attribuée au nom d’un certain savoir-faire et une «légitimité à dire»: celle des anciens sportifs devenant des journalistes ou des réalisateurs de films devenant des critiques

1 Voir notre Le discours d’ information médiati-que: la construction du miroir social. Paris: Na-than-INa, 1997. chap.4.2 Voir notre Le discours d’ information médiati-que: la construction du miroir social. Paris : Na-than-INa, 1997. chap.13 et 14.

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de cinéma, etc.; celle de l’engagement personnel qui permet de parler au nom de sa pratique (“je suis du parti communiste, je sais de quoi je parle”); celle du témoignage qui permet de parler au nom de son vécu (“ça m’est arrivé” ou “j’y étais”, “je peux en témoigner”). C’est que le primé, le médaillé, l’honoré, l’engagé et le témoin sont comme placés sur un piédestal, c’est en eux qu’une communauté peut se regarder et se reconnaître. Cette «légitimité à dire» procède d’un «savoir-faire».

L’identité sociale(psycho-sociale, faudrait-il dire car elle est empreinte de traits psychologiques) est donc un «attribué-re-connu», un «construit par avance» au nom d’un savoir reconnu par institutionnalisation, d’un savoir-faire reconnu par la per-formance de l’individu (expert), d’une positiondepouvoir recon-nue par filiation (être bien né) ou par attribution (être élu/être décoré), d’une positiondetémoin pour avoir vécu l’événement ou s’être engagé (le militant/le baroudeur). L’identité sociale est en partie déterminée par la situation de communication: elle doit répondre à la question que se pose le sujet parlant lorsqu’il prend la parole: “Je suis là pour quoi dire, en fonction du statut et du rôle qui m’est assigné par la situation ?”. Mais on va voir que cette identité sociale peut être reconstruite, masquée ou déplacée.

L’identité discursiveL’identité discursive a la particularité d’être construite

par le sujet parlant en répondant à la question: “Je suis là pour comment parler ?”. De là qu’elle corresponde à un double enjeu de “crédibilité” et de “captation”.

Un enjeu de crédibilité qui repose sur le besoin pour le sujet parlant d’être cru, soit par rapport à la vérité de son propos, soit par rapport à ce qu’il pense réellement, c’est-à-dire sa sincérité. Le sujet parlant doit donc défendre une image de lui-même (un «ethos») qui l’entraîne stratégiquement à répondre à la question: “comment puis-je être pris au sérieux ?”. Pour ce faire, il peut adopter plusieurs attitudes discursives:

• deneutralité, attitude qui l’amène à effacer dans son dis-cours toute trace de jugement ou d’évaluation personnelle. Cette attitude est celle du témoin qui parle sur le mode du constat, rapporte ce qu’il a vu, entendu, éprouvé. Evi-demment, il ne faut pas que l’on puisse avoir le moindre soupçon sur les motifs qui animent le témoin à parler, et surtout qu’on ne puisse pas penser qu’il a été com-mandité par quelqu’un pour servir sa cause. Hors de ce cas, le discours testimonial est un discours de vérité «à l’état brut» qui ne peut, par définition, être mis en cause. Dans la communication médiatique, l’enjeu de crédibilité se traduit par un discours d’authentification des faits, à grand renfort de témoignages.3

3 Voir notre Le discours d ’ informat ion média -tique: la construction du miroir social. Pa-ris : Nathan-INa, 1997. chap.11.

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• de distanciation, qui conduit le sujet à adopter l’attitude froide et contrôlée du spécialiste qui raisonne et analyse sans passion, comme le ferait un expert, que ce soit pour expliquer les causes d’un fait, commenter les résultats d’une étude ou démontrer une thèse.

• d’engagement, qui amène le sujet, contrairement au cas de la neutralité, à opter (de façon plus ou moins consciente) pour une prise de position dans le choix des arguments ou le choix des mots,4 ou par une modalisation évalua-tive apportée à son discours. Cette attitude est destinée à construire l’image d’un sujet parlant «être de conviction». La vérité, ici, se confond avec la force de conviction de celui qui parle, et celle-ci est censée influencer l’interlo-cuteur.

tout cela au service d’une attitude démonstrative en imposant à l’autre des arguments et un certain mode de raisonnement, que celui-ci devrait accepter sans discussion. Car il s’agirait ici d’une vérité incontournable, indépendante des sujets qui la défendent, et à laquelle tout un chacun doit se soumettre. Persuader l’autre revient dans ce cas à placer cet autre dans un univers d’évidence qui ne souffre aucune discussion.

Un enjeu de captation qui naît chaque fois que le Je-par-lant n’est pas, vis-à-vis de son interlocuteur, dans une relation d’autorité. Si cela était le cas, il lui suffirait de donner un ordre pour que l’autre s’exécute. L’enjeu de captation repose donc sur la nécessité pour le sujet de s’assurer que le partenaire de l’échange communicatif entre bien dans son projet d’intentionnalité, c’est-à-dire partage ses idées, ses opinions et/ou est «impressionné» (touché dans son affect).5 Il lui faut donc répondre à la question: “comment faire pour que l’autre puisse «être pris» par ce que je dis”. Dès lors, la visée du sujet parlant devient une visée de «faire croire» pour que l’interlocuteur se trouve dans une position de «devoir croire». Il lui faudra tenter de persuader (faire penser en ayant recours à la raison) ou de séduire (faire ressentir en ayant recours à l’émotion) l’autre qui devra donc penser ou ressentir comme cela lui est signifié. Pour ce faire, le sujet peut choisir entre plusieurs attitudes discursives parmi lesquelles:

• une attitude polémique, en essayant d’imaginer, pour les le-ver, les objections possibles que l’autre (ou d’autres) pour-rait présenter, ce qui amènera le sujet parlant à mettre en cause certaines des valeurs que défend l’interlocuteur ou un tiers. Il s’agit ici de «détruire un adversaire» en mettant en cause ses idées, et, si besoin est, sa personne.

• une attitude de séduction en proposant à l’interlocuteur un imaginaire dont l’interlocuteur pourrait être le héros bénéficiaire. Cette attitude se manifeste la plupart du temps par un récit dans lequel les personnages peuvent

4 Exemple : l’homme politique de l’extrême droite française, J.M. Le Pen, choisit d’attaquer ses adversaires par le choix du terme “l’éta-blissement” au lieu de “l’establishment”.5 Voir notre problémati-que discursive de l’émo-tion: a propos des effets de pathémisation à la télévision, dans le Les émotions dans les interac-tions,Lyon, 2000.

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jouer le rôle de support d’identification ou de rejet pour l’interlocuteur.

• une attitude de dramatisation, qui amène le sujet à décrire des faits qui concernent les drames de la vie, racontés avec force analogies, comparaisons, métaphores, etc.. La façon de raconter s’appuie davantage sur des valeurs d’affect socialement partagées car il s’agit de faire ressentir cer-taines émotions.

Cette identité discursive est construite à l’aide des modes de prise de parole, de l’organisation énonciative du discours et du maniement des imaginaires socio-discursifs. Et donc, à l’inverse de l’identité sociale, l’identité discursive est toujours un «à construire-construisant». Elle résulte des choix du sujet, mais en tenant compte évidemment des données de l’identité sociale. Ainsi, en reprenant les exemples de départ, on constate que tantôt l’identité discursive réactive l’identité sociale (ex 2), tantôt elle la masque (ex 1), tantôt elle la déplace (ex 4).

C’est dans ce jeu de va-et-vient entre identité sociale et identité discursive que se réalise l’influence discursive. Selon les intentions du sujet communiquant ou du sujet interprétant, l’identité discursive collera à l’identité sociale formant une iden-tité unique «essentialisée» (“je suis ce que je dis”/“il est ce qu’il dit”), ou s’en différenciera formant une identité double d’«être» et de «dire» (“je ne suis pas ce que je dis”/“il n’est pas ce qu’il dit”). Dans ce dernier cas, soit on pense que c’est le «dire» qui masque l’«être»(mensonge, ironie, provocation), soit on pense que le «dire» révèle un «être» qui s’ignore (dénie, révélation malgré soi: “sa voix le trahit”).

3. Les identités en situation de communicationCe jeu entre identité sociale et identité discursive, et l’in-

fluence qui en résulte, ne peut être jugé en dehors d’une situation de communication. C’est la situation de communication, en son dispositif, qui détermine par avance (de par le contrat6 qui la dé-finit) l’identité sociale des partenaires de l’acte d’échange verbal, et qui, en outre, leur donne des instructions quant à la façon de se comporter discursivement, c’est-à-dire définit certains traits de l’identité discursive. restera au sujet parlant la possibilité de choisir entre se montrer conforme à ces instructions en les respectant, ou décider de masquer ces instructions, les subvertir ou les transgresser.

Il est donc nécessaire, en préalable à l’analyse des stratégies qui relèvent de l’identité discursive, de considérer quelles sont les caractéristiques de l’identité sociale de chaque situation et les instructions fournies à l’identité discursive.

On en donnera un exemple en comparant les situations de communication politique et publicitaire.

6 Pour cette notion voir notre article “ Le dia-logue dans un modèle de discours ”, Cahiersde linguistique française, Genève, v. 17, p. 141-178, 1995.

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La situation politiqueS’agissant du sujet politique, la question serait: “Je suis là

pour défendre quelles idées, et pour comment faire adhérer à ces idées”. En effet, le sujet politique se trouve dans une position double: d’une part, il doit être le porteur et le garant de valeurs fondatrices d’une certaine «idéalité sociale», d’autre part, il doit faire adhérer le plus grand nombre de citoyens à ces valeurs. L’homme politique est donc pris entre «le politique» siège d’une pensée sur le comment vivre en société, et «la politique» qui concerne la gestion du pouvoir.

on comprend du même coup que le résultat de cette combi-naison produise un «Je-nous», une identité du singulier-collectif. L’homme politique, dans sa singularité parle pour tous en tant qu’il est porteur de valeurs transcendantales: il est la voix de tous à travers sa voix (“Ensembles, nous bâtirons une société meilleu-re”). Mais en même temps, il s’adresse à ces «tous» comme s’il n’était que le porte-parole de la voix d’un tiers énonciateur d’une idéalité sociale. Dès lors, il établit un «pacte d’alliance» entre ces trois types de voix (la voix du Tiers, la voix du Je, la voix du Tu-tous) qui finissent par se fondre dans un corps social abstrait, souvent exprimé par un «on» qui joue le rôle de guide (“On ne peut accepter que soient bafoués les droits légitimes de l’indi-vidu”) ou par un «nous» (“Si nous voulons pouvoir défendre nos intérêts et sauvegarder notre indépendance…”).

L’identité sociale de l’instance politique se définit à travers un principe de légitimité qui lui-même se fonde en souveraineté. Cela dit, la légitimité par souveraineté institutionnelle n’est pas une. Elle varie en fonction de la «position» et des «rôles» que les acteurs sont amenés à tenir selon les situations d’échange social dans lesquelles ils sont engagés, ce qui fait varier les discours qu’ils sont amenés à tenir. On peut considérer qu’il existe deux situations bien distinctes: celle de candidature au suffrage des élec-teurs et celle de gouvernance. La première place le sujet politique dans une position d’avoir à défendre et promouvoir un projet de société idéal qui doit s’inscrire dans le droit-fil de certaines valeurs, d’avoir à proposer un programme de réalisation de ce projet, et de devoir s’engager sans faille pour la réalisation de ce projet. La seconde place le sujet politique dans une position d’avoir à décider (prendre des mesures concrètes, édicter des décrets, faire appliquer les lois, engager des actions de défense, d’hostilité, de répression) et d’avoir à justifier le bien fondé de ces décisions. Ce qui fait que les types de discours qui s’attachent à cette position sont pour une part performatifs, puisque dans la décision “dire c’est faire”, et pour une autre part de justification puisqu’il faut produire des explications soit par anticipation (prévoir des objections), soit a posteriori (répondre à des critiques et autres réactions de protestation).

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Cette identité sociale joue donc un double rôle: d’une part, elle donne au sujet des instructions qui l’obligent à construire à travers son discours un «nous» énonciateur rassemblant le Je-instance politique, le Tu-instance citoyenne et un Il-voix d’un Tiers de référence qui fonde les valeurs sur lesquelles il s’appuie; d’autre part elle constitue la base sur laquelle le sujet politique pourra tenter de se construire une crédibilité, soit en rejetant les valeurs auxquelles il s’oppose, soit en renforçant les valeurs qu’il défend soit en justifiant les valeurs et actions qu’il a accomplies et qui sont mises en cause.

La situation publicitaireL’identité sociale de l’instance publicitaire est —malgré

ce qu’on en dit parfois— bien différente de celle de l’instance politique. L’instance publicitaire est pourvoyeuse d’un rêve («rester jeune») tout en étant extérieure au destinataire dont la voix —voix du désir— est ce qui construit le rêve. Ici pas de pacte d’alliance, la publicité s’adressant à l’individu (“Votre beauté est différente”), pas d’idéalité sociale, que de la singularité du désir (“Gillette, une caresse amoureuse”).7 Trois grandes différences apparaissent entre discours politique et discours publicitaire.

La première est que les deux activités discursives de persuasion et de séduction se trouvent en proportion inverse dans ces deux types de situation de communication. Dans le discours publicitaire, domine l’activité de séduction, dans le discours politique l’activité de persuasion pour des raisons fa-ciles à comprendre: le premier de ces discours tente de toucher le singulier de l’individu en s’adressant au désir, le second traite l’individu en sujet collectif en s’adressant à la raison. Il s’agit donc pour le sujet politique de mettre en avant le sérieux de l’activité persuasive. Cela explique d’ailleurs, que chaque fois que la visée séductrice se montre de façon exagérément ostensible, apparaissent des commentaires ironiques, des caricatures, des moqueries susceptibles de jeter le discrédit sur celui qui en est l’auteur8. Ce qui n’est pas le cas du sujet publicitaire, jamais pris en défaut d’excès de tentative de séduction.

La deuxième différence réside dans le fait que dans le dis-cours publicitaire l’annonceur ne se confond pas avec le produit, alors que l’homme politique est à la fois l’auxiliaire de l’idéalité sociale (il se met au service de celle-ci) et celui qui propose le projet politique. Voter pour tel homme politique, c’est voter à la fois pour lui et pour son programme. Acheter telle marque d’un produit, ça n’est jamais qu’acheter le produit sous une cer-taine marque. Cela explique que le sujet politique doive faire montre de conviction, adhérant à son propre projet, s’engageant lui-même dans la quête qu’il propose aux citoyens, alors que l’instance publicitaire, elle, doit se montrer une instance frivole, pourvoyeuse de plaisir.

7 Il s’agit ici des carac-téristiques générales du contrat publicitaire, ce qui n’empêche qu’il soit toujours possible, à des fins stratégiques, de jouer avec les termes du contrat, voire de les transgresser comme l’a fait Benetton avec ses campagnes de promo-tion. Voir notre article “Le discours publici-taire, genre discursif”, Mscope, Versailles , v. 8, p. 34-44, 1994.8 Cela commença de façon nette en France, en 1959, avec la première campagne télévisée pour l’élection au suffrage universel du Président de la république. Jean Lecanuet, qui apparais-sant pour la première fois aux téléspectateurs, avait pris des leçons de maintient et de diction pour y apparaître à son avantage. Les humo-ristes, caricaturistes et autres commentateurs s’en donnèrent à plein joie sur le côté pantin de l’homme politique, ce qui, après avoir créé la surprise, lui fut fina-lement défavorable.

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La troisième est que l’instance publicitaire n’a besoin, à priori, d’aucune légitimité. Plus exactement, c’est son succès comme acte de séduction-persuasion qui la rend légitime (c’est pourquoi elle n’a pas besoin non plus d’être crédible). alors que l’instance politique présupposant une position de légitimité a constamment besoin de la conforter, puis, celle-ci étant renforcée, d’y ajouter par-dessus de la crédibilité.

4. Identités et modèle d’analyseCette réflexion sur la différence entre ces deux types

d’identité conforte le modèle communicationnel d’analyse du discours que je propose, et que j’ai récemment redéfini autour de trois types de compétence, et de trois types de stratégies que je rappellerai ici.

Une compétence communicationnelle (ou situationnelle) qui correspond, pour le sujet, à son aptitude à reconnaître la struc-turation et les contraintes de la situation de communication où, entre autres choses, sont déterminées les caractéristiques de l’identité sociale des partenaires de l’échange langagier, et où les relations qui doivent s’instaurer entre ces partenaires sont organisées à l’intérieur d’un dispositif: leur statut, leur rôle social et la place qu’ils occupentdans la relation communicationnelle. C’est d’après cet ensemble de traits qui constituent l’identité communicationnelle de ces sujets que seront déterminés leur légitimité —c’est-à-dire ce qui justifie leur “droit à la parole”—, et le rapport de force qui s’instaure entre eux. Cette identité est sociale (attribuée par statut) mais elle comporte également les instructions qui président à la construction de l’identité discur-sive. Une compétence sémantique qui correspond, pour le sujet, à son aptitude à organiser les différents types de savoirs dont il a connaissance et constituent ses références, et à les “thémati-ser”.9 Une compétence discursive qui correspond aux possibilités d’organisation énonciative, narrative et argumentative du dis-cours, en fonction des contraintes du cadre communicationnel, organisation à l’aide de laquelle se construit, entre autres choses, l’identité discursive du sujet. Mais il faut également au sujet une compétence sémiolinguistique, laquelle lui permet d’agencer des formes (choix des formes en relation avec leur sens et leurs règles de combinaison), en fonction des contraintes de la langue, et en relation avec les contraintes du cadre situationnel et des données de l’organisation discursive. L’identité discursive y trouve ici sa “mise en corps”.

Les stratégies discursives, elles,se définissent par rapport au contrat de communication. Elles consistent, pour le sujet, d’abord, à évaluer la marge de manœuvre dont il dispose à l’intérieur du contrat pour jouer entre, et avec, les contraintes situationnelles, et les instructions de l’organisation discursive et formelle. Ensuite, à choisir parmi les modes d’organisation du discours et les modes

9 Pour cette question de l’organisation des savoirs, voir notre ar-ticle « Les non-dits du discours : la voix cachée du Tiers. Paris: L’Har-mattan, 2004. »

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de construction textuelle, en rapport avec différents savoirs de connaissance et de croyances dont il dispose, les procédés qui correspondent le mieux à son propre projet de parole, aux visées d’influence qu’il a vis-à-vis de l’interlocuteur et aux enjeux qu’il se donne. Ces stratégies sont multiples, mais elles peuvent être regroupées dans trois espaces dont chacun correspond à un type d’enjeux. Ces enjeux ne sont pas exclusifs les uns des autres, mais se distinguent par la nature de leur finalité. On parlera d’enjeux: de légitimation, de crédibilité et de captation. L’enjeu de légitimation repose sur la nécessité de créer ou de renforcer la position de légitimité du sujet parlant. Nécessité qui apparaît lorsque le sujet parlant a des doutes sur la façon dont l’autre perçoit son “droit à la parole”. Il lui faut alors persuader son interlocuteur que sa prise de parole et sa manière de parler correspondent bien à la position d’autorité qui lui est conférée par son statut. L’enjeu de crédibilité entraîne le sujet parlant, non plus à assurer sa légitimité (bien que souvent les deux soient liés), mais à faire croire à l’interlocuteur que ce qu’il dit est “digne de foi”. L’enjeu de captation entraîne le sujet parlant à faire en sorte que l’inter-locuteur adhère de façon absolue (non rationnelle) à ce qu’il dit, et, au-delà, à sa propre personne.

Ces trois types de stratégies construisent une identité dis-cursive propre au sujet, alors que le contrat de communication construit par ses instructions une identité discursive convenue, celle de la conformité au contrat. Ainsi, au niveau des stratégies, le sujet communiquant peut choisir de parler de façon conforme ou non aux instructions données par les contraintes du contrat de communication, et jouer sa spécificité identitaire.

* * *Je terminerai en proposant un nouveau schéma qui reprend

l’idée d’une représentation pyramidale du fonctionnement de la communication langagière:

Commentaires

(1) La base des imaginaires socio-discursifs est le lieu de struc-turation des diverses représentations sociales. Celles-ci sont appelées «socio-discursives» car il s’agit des représentations qui sont construites par du dire, et donc repérables et iden-tifiables dans et par les discours qui circulent dans les grou-pes sociaux. Elles relèvent tantôt d’un savoir de croyance, tantôt d’un savoir d’expérience, tantôt d’un savoir savant, et souvent d’un mélange entre ces différents types de savoir.10 Parmi ces représentations, et sans qu’on puisse toujours bien distinguer ces différentes dimensions, certaines sont d’ordre culturel, d’autres d’ordre sociétal, d’autres encore d’ordre communautaire et d’autres d’ordre groupal.11 Ces imaginaires socio-discursifs exigent de la part du sujet une compétence sémantique.

10 Vo i r n o t r e a r t i -cle «Tiers, où es-tu ? a propos du tiers du discours», en «Les non-dits du discours: la voix cachée du tiers. Paris: L’Harmattan, 2004.»11 Evidemment, il n’est pas toujours facile de faire le départ entre ces quatre ordres.

Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle

Niterói, n. 21, p. 33�-3�4, 2. sem. 2006 353

(2) Le cadre socio-communicationnel est le lieu où se stabilisent les échanges sociaux en constituant des dispositifs d’échange qui jouent le rôle de contrats de communication et fournissent des instructions sur les façons de se comporter langagièrement. on peut également dire qu’il est le lieu de la constitution des genres, mais qu’on appellera “genres situationnels” pour bien signifier que ce n’est qu’un lieu d’«instruction du comment dire». Il exige une compétence communicationnelle (ou si-tuationnelle).

(3) Le niveau de la mise en scène discursive est le lieu où le sujet, ayant plongé dans les imaginaires socio-discursifs, et compte tenu des contraintes du cadre communicationnel et de ses instructions, procède à l’organisation de son discours, et partant se construit une identité plus ou moins «individuée». Ici doivent être mises en œuvre les compétences discursive et sémiolinguistique.12

on peut donc conclure dans un premier temps que la distinction entre identité sociale et identité discursive est pour le moins opératoire: sans identité sociale pas de repérage possi-ble du sens et du pouvoir de l’identité discursive; sans identité discursive différente de l’identité sociale et révélatrice du «posi-tionnement» du sujet, pas de possibilité de stratégies discursives, et sans stratégies discursives pas de possibilités pour le sujet de s’individuer, c’est-à-dire que l’on aurait affaire à un sujet sans désir.

Dans un deuxième temps, on peut conclure que l’on n’est jamais sûr de pouvoir saisir la totalité d’une identité, et donc la prudence voudrait que l’on parle de «traits identitaires», les uns psycho-sociaux, les autres discursifs pour éviter de tomber dans le piège de l’«essentialisation».

Mais la question identitaire est une question complexe. D’une part parce qu’elle résulte d’un croisement de regards: celui du sujet communiquant qui cherche à la construire et à l’imposer à son partenaire, le sujet interprétant, lequel ne peut s’empêcher, à son tour, d’attribuer une identité à celui-ci en fonction de ses propres a priori. D’autre part parce qu’on a beau vouloir éviter le piège de l’essentialisation, tout sujet a le désir de se voir (ou de voir l’autre) constitué en une identité unique, le désir de se savoir «être quelque chose», c’est-à-dire une essence. C’est ce mouvement d’essentialisation constitutif du processus identitaire qui fait dire à certains que l’identité n’est qu’une il-lusion.13 Comme un masque qui serait donné à voir à l’autre (et à soi-même), mais un masque qui, si on le retire, laisse voir un autre masque, puis un autre masque et un autre encore,… Peut-être que nous ne sommes qu’une succession de masques. Mais faute de pouvoir résoudre cette énigme, on maintiendra que la distinction entre identité psychosociale et identité discursive

12 Pour ces différents types de compétence, voir notre article “De la compétence sociale de communication aux compétences de dis-cours”, en COLLES L. et al. (Éd.). Didactique des langues romanes : le développement de compétences chez l’ap-prenant. Louvain-la-Neuve: DeBoeck-Du-culot, 2001. p. 34-43.13 BAYART, J.F. L’ illu-s ion id e nt ita ire . Pa-r i s : F a y a r d , 19 9 6 .

Patrick Charaudeau

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Referências

BAYART, J.F. L’illusion identitaire. Paris: Fayard, 1996.CHARAUDEAU, P. Da competência social de comunicação às competências de discurso. In: COLLES, L. et al. (Éd.). Didactique deslanguesromanes: le développement de compétences chez l’ap-prenant. Louvain-la-Neuve: DeBoeck-Duculot, 2001. p. 34-43.

. Le discours d’information médiatique: la construction du miroir social. Paris: Nathan-INa, 1997.

. Le dialogue dans un modèle de discours. Cahiersdelinguistique française, Genève, v. 17, p. 141-178, 1995.

. Le discours publicitaire, genre discursif. Mscope, Ver-sailles, v. 8, p. 34-44, 1994.

. Tiers, où es-tu? A propos du tiers du discours. In:

. Les non-dits du discours: la voix cachée du Tiers. Paris: L’Harmattan, 2004.

. Une problématique discursive de l’émotion: à propos des effets de pathémisation à la télévision. Les émotions dans les interactions,Lyon, 2000.

permet de comprendre comment se joue ce jeu social de subs-titution de masques.

ResumoA questão da identidade é complexa porque resulta de um entrecruzamento de olhares: o do sujeito comunicante que busca construí-la e impô-la a seu parceiro, o sujeito interpretante; este, por seu turno, não pode deixar de atribuir uma identidade ao comunicante em função de seus olhares, a priori. Em contrapartida, todo sujeito deseja ver a si mes-mo (e ao outro) constituído com uma identidade única, ou seja, uma essência.

Palavras- chaves: identidade, sujeitos do discur-so, ato de comunicação.

Gragoatá Niterói, n. 21, p. 3��-3�2, 2. sem. 2006

representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

Décio Rocha

Recebido 10, jun. 2006/Aprovado 10, ago. 2006

ResumoCom base em declarações concedidas pelo presiden-te dos Estados Unidos da América, G. W. Bush, em entrevista realizada em 16 de setembro de 2001, precisamente cinco dias após o ataque terrorista ao World Trade Center, este artigo discute o duplo papel da linguagem – linguagem-representação e linguagem-intervenção – nas relações estabeleci-das entre sujeito emundo.Nosso interessepelaanálise do referido texto se justifica pelo fato de Bush fazer referência a uma “cruzada” contra o inimigo, expressão inadequada que suscitou uma vigorosa reação da comunidade islâmica. O conceito de cenografia proposto por Maingueneau mostra-se produtivo para pensar a dimensão de intervençãodalinguagem.

Palavras-chave: representação, subjetividade, alteridade, cenografia, terrorismo.

Décio Rocha

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A leitura de textos que problematizam a produção de subjetividade na perspectiva assumida por Deleuze e Guattari tem-se constituído em verdadeiro desafio nos estudos voltados para as práticas de linguagem. O que pode, afinal, a linguagem, para além de seu poder de representação de um dado estado de realidade? Que papel desempenha na produção de diferentes modos de subjetivação? Eis algumas das questões que soam como verdadeira provocação e que abordarei neste trabalho.

Com efeito, sabemos, desde Nietzsche, que os conceitos que produzimos para fazer referência à realidade permitem-nos apresentá-la como sempre idêntica a si mesma, reconhecível porque estabilizada em uma forma passível de ser comunicada. tal prática implica o aprisionamento do real, o aprisionamento daquilo que sempre devém, em fórmulas identitárias que corres-pondem tão-somente a uma das faces da linguagem: seu poder de falar do mundo, produto de uma consciência vista como “lugar da interioridade e da organização centralizadora do eu” (MOSÉ, 2005, p.116). Linguagem-representação.

Porém, esse mesmo poder de falar do mundo significa que nele encontramos não exatamente uma realidade perse, mas fundamentalmente algo que nos afeta; tal encontro corresponde à atividade de interpretação exercida pelo sujeito que vai buscar no mundo ressonâncias suas, uma vez que, como o afirma Na-ffah Neto (1998), é real aquilo que nos toca em nossos interesses. Linguagem-intervenção.

Desde já, pressentem-se alguns ecos desse duplo modo de atualização da linguagem no fragmento que transcrevo a seguir:

[...] o mundo não é tão-somente exterior, nem tão-somente in-terior; está sempre fora e dentro ao mesmo tempo ou, melhor dizendo, constitui-se nessa imbricação de um exterior e de um interior, fluindo e refluindo por movimentos de projeção e intro-jeção [...] Fora e dentro participam, pois, da mesma substância, o dentro constituindo-se como uma envergaduradofora; o fora como uma multiplicidade de perfis projetados de dentro. ao fora aprendemos a chamar de mundo; ao dentro, de subjetividade. (NAFFAH NETO, 1998, p. 70-1)

Eis, assim, relativizada a distância que separa o sujeito e o mundo: o dentro e o fora como invenções de diferentes conjuga-ções de forças, cujos resultados são marcados pela instabilidade e transitoriedade. Qual pode ser precisamente o interesse do fragmento citado para quem trabalha com práticas linguageiras em uma perspectiva discursiva?

De modo sucinto, uma resposta à questão formulada implicaria um duplo caminho de investigações: (i) explicitar a natureza dos laços que se verificam entre o sujeito e seu en-torno, vistos como formas em permanente interdelimitação; (ii) circunscrever o lugar ocupado pelas práticas de linguagem

Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

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junto à produção de subjetividade e junto à articulação entre o sujeito e o mundo.

Dada a impossibilidade de cumprir esse duplo itinerário nos limites do presente artigo, é opção minha deixar em suspen-so a primeira via de investigação – não, é claro, sem dizer um mínimo a seu respeito – e propor, como objetivo central deste tra-balho, uma possível cartografia da segunda via identificada.

O itinerário realizadoPela extensão do caminho que ora proponho percorrer,

considero importante oferecer desde já ao leitor um mínimo de informação a respeito das escolhas que faço e, desse modo, deixar claro o que esperar ou não destas reflexões.

assim, em “Sobre a produção de subjetividade e noções afins”, apresento algumas poucas definições relevantes para si-tuar a noção de subjetividade e o modelo de inconsciente que lhe é subjacente. A seguir, em “Construção de um córpus e engendra-mento de efeitos de sentido”, enfatizo a articulação entre práticas linguageiras e evento da atualidade, sendo contextualizado o tipo de investigação proposta, cuja “motivação temática” pode ser assim apresentada: a partir do evento de 11 de setembro de 2001 (ataque aéreo ao World Trade Center), a convocação feita por G. W. Bush, presidente dos Estados Unidos da América, de uma “cruzada” contra os “agentes do mal” é vista como elemento desestabilizador de uma dada ordem.

Uma vez apresentado e justificado o contexto das práticas textuais midiáticas que servirão de suporte ao trabalho, inicio, no item intitulado “Ensaios de leitura: caminhos da produção de subjetividade nas práticas linguageiras”, um exercício de análise dos dados selecionados (entrevista concedida por Bush em 16/09/2001),1 propondo-me acompanhar os deslocamentos que se operam em um duplo modo de funcionamento da lin-guagem: por um lado, a linguagem-representação e, por outro, o que denominarei linguagem-intervenção. Dentre outras con-siderações, será conferida ênfase especial à noção de cenografia (MAINGUENEAU, 1989) como dispositivo discursivo compatível com o modo pelo qual a linguagem intervém na produção de um mundo. No último item, em tentativa (provisória) de conclu-são, argumenta-se a favor de uma certa concepção de alteridade que nos parece muito compatível com a função de intervenção da linguagem e, finalmente, reitera-se a dimensão política de alguns dos desdobramentos possibilitados pelo recurso à noção de cenografia.

Sobre a produção de subjetividade e noções afinsEm cumprimento ao que enunciei anteriormente, apre-

sento de modo sucinto algumas das posições que vêm sendo reafirmadas a respeito do caráter necessariamente coletivo (isto

1 Fonte: <http://www.whitehouse.gov/news/release>

Décio Rocha

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é, do caráter nem individual, nem grupal) das práticas de enun-ciação, as quais pressupõem a participação de fatores da ordem do extrapessoal e do infrapessoal (respectivamente, o “além” e o “aquém” do humano).2

A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação, de semiotização – ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica – não são centra-dos em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes gru-pais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual ..., quanto de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal [...]. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 31)

Percebe-se aqui o projeto de desenvolver uma concepção mais transversalista de subjetividade, sendo ultrapassada a opo-sição clássica entre sujeitoindividual e sociedade. Eis, desse modo, uma das definições que acolhemos para subjetividade:

[...] o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. (GUATTARI, 1992, p. 19)

o autor indica, deste modo, o jogo incessante de alternância entre formas mais ou menos individuadas da subjetividade:

[...] em certos contextos, a subjetividade se individua: uma pes-soa, responsável por si mesma, se posiciona frente a relações regidas por usos familiares, costumes locais, leis jurídicas [...] Em outras condições, a subjetividade se faz coletiva, o que não significa que ela se torne por isso exclusivamente social. Com efeito, o termo “coletivo” deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos [...] A subjetividade não é fabricada apenas através das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos « matemas do Inconsciente », mas também nas grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, lingüísticas, que não podem ser qualificadas de humanas. (GUATTARI, 1992, p. 19-20)

Tal concepção de subjetividade em processo exercerá uma ação não negligenciável sobre o modo como entendemos a pro-dução de (efeitos de) sentido, além de implicar um modo próprio de caracterização do funcionamento daquilo que denominamos inconsciente. a estreita correlação entre inconsciente e produção de subjetividade, assim como o lugar que nela ocupam os agen-ciamentos coletivos de enunciação, podem ser identificados, por exemplo, na seguinte citação:

os processos inconscientes não podem ser analisados em termos de conteúdo específico, ou em termos de sintaxe estru-

2 tal problemática, que remete aos agenciamen-tos coletivos de enun-ciação, é discutida em rocha (2005).

Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

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tural, mas antes de mais nada em termos de enunciação, de agenciamentos coletivos de enunciação. Estes, por definição, não coincidem com as individualidades biológicas. (GUATTARI, 1985, p. 171)

Mas, afinal, de que inconsciente falamos? Qual o modelo de inconsciente que subjaz à referida produção de subjetividade?

Para se referir a esse campo que ultrapassa os limites da racionalidade do homem, Guattari fará a opção por um modelo de inconsciente que se diferencia do modelo freudiano (também dito clássico ou psicanalítico): à interioridade do modelo persono-lógico, familiarista, do inconsciente freudiano, lugar de fixações arcaicas do passado (narcisismo, instinto de morte, medo à cas-tração), Guattari preferirá um inconsciente desterritorializado, permeável às instituições e às forças do campo social, voltado tanto para o presente, para o passado quanto para o futuro; um inconsciente concebido como lugar de interação entre compo-nentes semióticos e sistemas de intensidade diversificados.3 Um modelo de inconsciente assim concebido Guattari chamou de “maquínico” ou “esquizoanalítico”, o qual foi definido por Na-ffah Neto com especial sensibilidade: “[...] a noção de Inconsciente se amplia consideravelmente, rompendo a dicotomia individual / coletivo, para designar o conjunto dos diferentes campos de forças mobilizados na produção do real, em suas articulações contingentes e singulares.” (NAFFAH NETO, 1985, p. 25)

Construção de um córpus e engendramento de efeitos de sentido

Diante da opção de aprofundar a questão referente ao papel da linguagem na produção de subjetividade, trabalhamos com o texto de uma entrevista concedida por G.W. Bush aos 16 de setembro de 2001, exatamente cinco dias após o ataque aéreo às torres-gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, aconte-cimento que, como dissemos, deu origem a um pronunciamento do presidente G. W. Bush versando sobre a necessidade de uma “cruzada”: “Este é um novo tipo ... de mal. E nós compreendemos. o povo americano está começando a compreender. Essa cruzada, essa guerra contra o terrorismo levará algum tempo. E o povo americano precisa ser paciente. Eu serei paciente.”4

Os efeitos de sentido que se produzem a partir do referido pronunciamento são desastrosos: o termo “cruzada” desperta, como memória discursiva, ressonâncias não desejáveis no que se refere aos embates ocorridos entre o mundo ocidental e o mundo muçulmano entre os séculos XI e XIII. Senão, vejamos algumas das informações que figuram no verbete cruzada no dicionário:

cruzada 1 HIST.REL expedição militar e religiosa, conduzida principalmente por nobres cristãos na Idade Média entre os anos de 1095 a 1270, com o fim de fazer a guerra denominada

3 Na caracterização do duplo modelo de incons-ciente que ora apresento, recorri a Guattari (1985, p. 166-71).4 tradução nossa.

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santa contra os muçulmanos, e reconquistar Jerusalém e o túmulo de Cristo 2 p.ext. HIST.REL qualquer movimentação militar de intuito religioso, esp. contra os representantes de determinadas heresias na Idade Média <a c. contra os cátaros> 3 p.ext.fig. qualquer empreendimento mais ou menos grandioso no sentido de se solucionar um mal, um problema de cunho social etc. ou ainda de se defender alguma idéia, princípio ou algum interesse próprio <os médicos fizeram uma c. contra a febre amarela>.5

Observe-se que a tematização de “cruzada” não é exata-mente um ato de criatividade de Bush: a referência aos «cruza-dos» era bastante viva, pelo menos desde maio de 1998, quando Bin Laden anuncia a criação de uma organização da qual a Al-Qaeda passaria a fazer parte, intitulada «Frente Mundial Islâmica contra os judeus e os cruzados”.6

ao perceber a inadequação da declaração prestada, o go-verno americano, em novo pronunciamento oficial assumido dessa vez por Ari Fleischer, porta-voz da Casa Branca, faz o possível para desfazer o “mal-entendido”: a ação pretendida pelo governo tem por alvo o terrorismo, e não o mundo islâmico. Assim, justifica o porta-voz da presidência:

[...] à medida que essa palavra [cruzada] tem conotações que irritariam alguns de nossos parceiros ou qualquer um no mundo, o presidente lamenta que qualquer coisa assim tenha sido implicada. O sentido de sua declaração foi o tradicional em inglês, de uma causa ampla.7

É interessante uma breve reflexão acerca do que Fleischer denomina uso “tradicional” do termo: o porta-voz da Casa Bran-ca tenta um deslocamento dos efeitos de sentido produzidos por intermédio da escolha de cruzada, que conteria “conotações que irritariam alguns de nossos parceiros”, e, arvorando-se de filó-logo ao aludir a um pretenso uso tradicional do termo, propõe a produção de um novo efeito de sentido, desta vez suficientemente premeditado. Ora, o que Fleischer denomina “uso tradicional” do termo coincide justamente com o que o dicionário considera como uso figurado: “empreendimento mais ou menos grandioso no sentido de se solucionar um mal”. Resultado: a ‘cruzada’ foi (verbalmente) desqualificada, e Bush, em busca de adesões es-tratégicas à sua ‘coalizão contra o terror’, passou a fazer de tudo para convencer o mundo de que os Estados Unidos não estariam em guerra contra o islã (MAGNOLI, 2005).

Como entender tudo isso? De que modo pode esse relato contribuir para a questão que abordamos neste artigo?

Pode-se dizer que, da dupla desestabilização a que assis-timos – desestabilização decorrente da destruição do World Trade Center e desestabilização produzida por um determinado uso do termo cruzada –, trataremos neste trabalho do segundo, tendo em vista nosso interesse em discutir a pertinência de um

5 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.6 Em outros textos da Internet, diz-se que a Frente era o nome oficial da al-Qaeda, criada por um decreto reli-g ioso de Bin Laden em 23/02/1998, com o objetivo de «matar os americanos, civis e mi-litares».7 Informações presta-das pela associated Press, citada pela Dow Jones, Estadão.com.br – 18/9/01.

Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

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enfoque que explicite esta dupla função da linguagem: por um lado, representar, falar de um dado estado de coisas no mundo; por outro, intervir nesse mesmo mundo, contribuindo para produzi-lo.

Com efeito, poderíamos supor que, se tal função de in-tervenção não tivesse sido acionada, isto é, se tudo pudesse ser explicado pelo simples “mal-entendido” cometido por um sujeito (individualizado) de enunciação, o episódio não teria certamente tido a repercussão que teve e o pequeno “lapso” teria passado por despercebido, ou, no máximo, teria sido facilmente retifica-do, sem maiores conseqüências. Decididamente, não foi isso o que se deu à época: conquanto tivéssemos diante dos olhos as evidências oferecidas pela individualização de um corpo-Bush falando (“ingenuamente”) de uma dada configuração de mundo, algo denunciava a inconsistência, a transparência desse mesmo corpo em seu dispositivo de enunciação,8 o qual, antes de falar do mundo circundante, instituía-se como um dos mais poderosos fatores de produção de tal estado de coisas. Desse modo, a en-trevista selecionada para análise é particularmente interessante sob essa ótica de uma dupla função da linguagem: representar o mundo e intervir no mundo. O elemento deflagrador de toda a querela – a menção a uma “cruzada” – possui, de fato, um poder de representação (pois fala de uma realidade que pode ser buscada na história medieval), mas também, certamente, um poder de intervenção (pois é capaz de “tornar real” mais uma vez o “extermínio dos infiéis”, justificando-o como ação “natural” e “necessária” do mundo “civilizado”).

as reações do mundo islâmico ao uso inadvertido do vo-cábulo parecem testemunhar uma leitura que privilegia a força do mencionado plano de intervenção da linguagem. Com efeito, a reação contra a escolha de “cruzada” denuncia o “estado de mundo” que a alguns interessa produzir, um “estado de mundo” resultante de forças interpretantes, de afetos: um mundo no qual o verdadeiro alvo parece não ser a ação dos terroristas, mas os poderes exercidos pelo mundo árabe da atualidade.

Como recuperar a referida dimensão de intervenção da linguagem sobre as práticas cotidianas em questão? Como oportunizar a apreensão dessa língua dos afetos, a linguagem-intensidade (NAFFAH NETO, 1998) que coloca em jogo forças potencializadoras do homem?

Ensaios de leitura: caminhos da produção de subjetividade nas práticas linguageiras

Conforme foi dito, o objetivo que ora se persegue é apre-ender, para além das evidências da linguagem-representação (dimensão à qual facilmente se reconhece “direito de cidadania”), uma outra dimensão, que denomino “linguagem-intervenção”. assim, não discutirei o poder de remeter ao real que a linguagem

8 o leitor encontrará um maior detalhamento das diversas vozes que po-dem ser apreendidas no referido pronunciamen-to em rocha (2005).

Décio Rocha

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exerce, mas indagarei acerca do que mais a linguagem é capaz de realizar. Ou melhor: indagarei sobre o que mais a linguagem faz quando parece tão-somente falar de uma “realidade em es-sência” que lhe preexistiria.

Linguagem-representaçãoEste primeiro plano é suficientemente nítido e evidente na

entrevista escolhida para análise. Com efeito, são fortíssimos os vínculos que ligam o tema da referida entrevista a fatos ocorridos naquela mesma semana nos Estados Unidos. Não há como não perceber o projeto de reconstruir um evento da atualidade, isto é, de re-apresentar aos interlocutores da entrevista uma deter-minada configuração, uma forma que dê conta do modo como se entende / entendeu o ocorrido no dia 11. É possível recuperar passagens do texto que ilustram tal “congelamento de formas” e que resgatam o fato-tragédia: em (i), a presteza das ações do governo americano diante do ocorrido e o apoio financeiro ne-cessário para fazer face à dura situação; em (ii), a iniciativa de contatos internacionais importantes para combater o inimigo; em (iii), a breve reconstituição do episódio do ataque às torres do World Trade Center. Vejamos os fragmentos anunciados:

(i) Obviously, New York City hurts. Congress acted quickly. We worked together, the White House and the Congress, to pass a significant supplemental. A lot of that money was dedicated to New York, New Jersey and Connecticut, as it should be.

(ii) I made a call to the leader of Pakistan.

(iii) No one could have conceivably imagined suicide bombers burrowing into our society and then emerging all in the same day to fly their aircraft - fly U.S. aircraft into buildings ...

Um outro lugar de inscrição de um plano predominante-mente representacional em nosso córpus pode ser identificado nos diferentes valores assumidos pelo termo people. Há, pelo menos, quatro diferentes valores que podemos resgatar para o referido vocábulo: em (i), o povo americano que protagoniza o evento; em (ii), os aliados dos americanos, “pessoas que amam a liberdade”; em (iii), o inimigo que declarou guerra e que será punido; em (iv), as vítimas do evento. Vejamos os seguintes fragmentos:

(i) the good people of America go back to their shopsthe American people are beginning to understand.

(ii) We will call together freedom loving people to fight terrorism.

(iii) We’ve been warned there are evil people in this world. people have declared war on America

Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem

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... to bring people to justicewe’re facing people who hit and run

(iv) ... they would fly airplanes into buildings full of innocent people.

Penso que o referido plano das representações esteja su-ficientemente concretizado nos fragmentos que transcrevo em negrito. Veremos, a seguir, que tal plano ocupa um lugar bas-tante reduzido no texto-entrevista do presidente americano, se o compararmos aos fragmentos que se afastam de tal “projeto de re-apresentação” de um dado estado de realidade. É de tal diferença que trataremos no próximo subitem.

Linguagem-intervençãoUm olhar mais minucioso dirigido ao texto-entrevista de

Bush mostrará que, contrariamente, talvez, ao que pudéssemos esperar, a superfície ocupada por um projeto de linguagem vol-tada para a representação é mínima, se comparada à ocupada por aquela que se volta para a intervenção. Com efeito, ao falar do referido episódio em sua entrevista, Bush não apenas o re-apresenta, mas participa efetivamente de sua construção.

Em primeiro lugar, quero deixar claro o que pretendo dizer quando falo da construção linguageira de um dado episódio. Com certeza, não pretendo reduzir a multiplicidade do real, encarcerando-o nas malhas do verbal, sob cuja ótica tudo não passaria de mero “artefato de linguagem”. Pelo contrário: sabe-mos que o episódio em tela – ataque às torres gêmeas do W.T.C. em Nova Iorque – foi produzido por (e, diríamos também, foi produtor de) diferentes “misturas de corpos” que atualizaram modos de sentir, de pensar, de agir, que não se limitaram a prá-ticas verbais: se é verdade que, na ocasião, foram produzidos enunciados, é igualmente verdade que também se produziram expressões de dor, de sofrimento, gestos de desespero, gritos, esperanças, compaixão, enfim, toda a sorte de ações e paixões resultantes do encontro de forças diversas.

Em meio a tal profusão de modos de significar o real, quero apenas reafirmar que, se o campo ao qual se refere a linguagem “é muito mais mutante, muito mais polivalente do que uma palavra seria capaz de exprimir” (NAFFAH NETO, 1991, p. 47), também é certo que nem toda prática linguageira cumpre tão-somente uma “vocação representacional”.

O texto-entrevista é bastante revelador de tal “poder de intervenção” do lugar ocupado pelas práticas de linguagem na produção de uma dada configuração de real. Com efeito, a intervenção já se faz insidiosamente presente no modo como são apresentados os aliados de Bush: simulando uma atividade de mera referenciação daqueles que combaterão o terrorismo, o enunciador coloca em cena os que “amam a liberdade” – de-

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signação que, longe de remeter a uma “imagem objetiva de realidade”, já é a expressão de uma certa “qualidade de mundo” que se deseja produzir.

Por importante que seja a presença da linguagem-interven-ção em situações como a que acabo de expor, penso que o locus por excelência de produção de um viés não representacional no texto-entrevista deva ser localizado em seus cinco primeiros parágrafos. Tomemos, pois, conhecimento do fragmento pelo qual Bush inicia suas declarações:

THE PRESIDENT: Today, millions of Americans mourned and prayed, and tomorrow we go back to work. Today, people from all walks of life gave thanks for the heroes; they mourn the dead; they ask for God’s good graces on the families who mourn, and tomorrow the good people of America go back to their shops, their fields, American factories, and go back to work.

Our nation was horrified, but it’s not going to be terrorized. We’re a great nation. We’re a nation of resolve. We’re a nation that can’t be cowed by evil-doers. I’ve got great faith in the American people. If the American people had seen what I had seen in New York City, you’d have great faith, too. You’d have faith in the hard work of the rescuers; you’d have great faith because of the desire for people to do what’s right for America; you’d have great faith because of the compassion and love that our fellow Americans are showing each other in times of need.

I also have faith in our military. And we have got a job to do - just like the farmers and ranchers and business owners and factory workers have a job to do. My administration has a job to do, and we’re going to do it. We will rid the world of the evil-doers. We will call together freedom loving people to fight terrorism.

And on on this day of - on the Lord’s Day, I say to my fellow Americans, thank you for your prayers, thank you for your compassion, thank you for your love for one another. And to-morrow when you get back to work, work hard like you always have. But we’ve been warned. We’ve been warned there are evil people in this world. We’ve been warned so vividly - and we’ll be alert. Your government is alert. The governors and mayors are alert that evil folks still lurk out there.

As I said yesterday, people have declared war on America, and they have made a terrible mistake, because this is a fabulous country. Our economy will come back. We’ll still be the best farmers and ranchers in the world. We’re still the most inno-vative entrepreneurs in the world. On this day of faith, I’ve never had more faith in America than I have right now.

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De que pistas podemos nos servir para afastar qualquer entendimento do texto produzido enquanto mera representação de um dado estado de coisas?

Uma primeira pista lingüística é a que podemos localizar na oposição entre hoje (today) e amanhã (tomorrow). Não é difícil perceber que não se trata de dêiticos remetendo a referências coincidentes com o momento da enunciação: se assim o fosse, o hoje estaria circunscrito ao dia da realização da entrevista (a qual foi concedida por Bush em 16 de setembro) e, da mesma forma, o amanhã estaria confinado ao dia seguinte, a saber, 17 de setembro. Não parece ser essa a situação: ao hoje parece cor-responder predominantemente o momento das angústias, da dor e da fé no povo americano; tempo do lamento e das preces; ao amanhã, o momento da superação de todos os entraves, mo-mento da afirmação da supremacia de uma nação, quando todos retornarão a seu cotidiano de labor.

Uma outra pista lingüística que se pode depreender consis-te nas escolhas lexicais para designar uma dupla conformação do espaço: o espaço de grandeza e de determinação que caracteriza os Estados Unidos (agreatnation, anationofresolve, thestrongestnation in the world) contra os espaços desprestigiosos e sombrios, os subterrâneos onde se esconde a indignidade inimiga (they hide in caves, to smoke out of their holes the terrorist organization).

A esse respeito, não é difícil perceber que lidamos não com as coordenadas temporais ou espaciais de um plano do real atualizado, mas com as de um plano cenográfico, o qual, segundo formulação de Maingueneau (2004b), não é imposto pelo tipo ou pelo gênero de discurso, sendo, antes, instituído pelo próprio discurso:

A cenografia é ... ao mesmo tempo aquilo de onde vem o dis-curso e aquilo que esse discurso engendra; ela legitima um enunciado que, em troca, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cenografia da qual vem a fala é, precisamente, a cenografia necessária para contar uma história, denunciar uma injustiça, apresentar sua candidatura em uma eleição, etc. (MAINGUENEAU, 2004b, p. 96)

O que já foi dito acerca do tempo e do espaço – respectiva-mente, cronografia e topografia pressupostos por uma cenografia, segundo Maingueneau (1989) – também pode ser localizado na produção dos coenunciadores: às virtudes que caracterizam o americano, a saber, paciência, determinação, poder (theAmeri-can people must be patient, they [the enemies] have roused a mighty giant) vem se opor um perfil de inimigo altamente desfavorável (evil-doers, evil folks, somebody barbaric, terrorists, people who hit and run).

Em função do exposto, argumento no sentido de associar o referido plano da cenografia ao que anteriormente denominei “plano da linguagem-intervenção”. E desde já se percebe quão

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oportuna é a possibilidade de operar com o referido plano, uma vez que apreender os textos produzidos por Bush em sua entrevista como elementos da ordem da representação seria dar guarida a uma certa posição assumida pelo referido ator no campo de lutas que se travam na atualidade. Com efeito, assu-mir que “as palavras de Bush apenas falam de um real, apenas representam o real”, significaria, no mínimo, fazer uma opção política: alinhar-se aos discursos proferidos pela Casa Branca. alinhamento que, por motivos óbvios, já não pode estar contido no plano desinteressado da mera representação! É nesse senti-do que indiquei como oportuna a inquirição desses discursos enquanto produtores de um dado estado de real: algo como “o discurso não é um ‘poslúdio’, não vem depois do ocorrido, mas contribui, a seu turno, para dar visibilidade, inteligibilidade, a uma dada situação de conjugação de forças”. Assim, pelo viés do investimento cenográfico que se atualiza nos discursos, o texto-entrevista é mais um elemento que concorre para a pro-dução de um certo “modo americano de afrontar o perigo” e de responder às agressões “injustamente sofridas”, bem como para a produção de um perfil opositor de extrema maldade e covardia – o perfil insidioso de alguém que, sob vários aspectos, com seu modo de ser sombrio e escuso, encarna uma forma de existência subumana.

Ainda sobre cenografia, linguagem-intervenção e produção de subjetividade

O plano cenográfico parece encontrar-se, pois, diretamente ligado à produção de uma dada “condição de realidade” que não mantém necessariamente um vínculo com o empírico. Com efeito, se é verdade que o texto-entrevista de Bush remete a um evento da atualidade, também é certo que essa atualidade é ma-téria sobre a qual o próprio discurso deve investir, modelando-a. Como o próprio autor o indica, “a cenografia leva o quadro cêni-co a se deslocar para o segundo plano [...]” (MAINGUENEAU, 2004a, p. 87), isto é, a cenografia funciona como uma espécie de cilada ao se superpor ao que o autor denomina quadro cênico (tipo e gênero de discurso), mitigando-lhe a presença.

Como vimos anteriormente, o investimento cenográfico nesse texto-entrevista se dá por intermédio da produção de um tempo-espaço que não mantém qualquer compromisso necessá-rio com as coordenadas do empírico: de modo conciso, diremos tratar-se de um tempo das provações, de um hoje que vem prepa-rar o momento da vitória em um amanhã dado como certo, uma vez que se conta com a determinação de atores valorosos, cuja força de vontade será decisiva para a reconstrução de um espaço apenas momentaneamente conturbado pelos “agentes do mal”.

retomando a própria noção de cenografia, lembro que, segundo Maingueneau, trata-se de um plano de “enlaçamento

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paradoxal”, uma vez que “a fala supõe uma certa situação de enun-ciação que, na realidade, vai sendo validada progressivamente por intermédio da própria enunciação” (MAINGUENEAU, 2004a, p. 87). A reflexão do autor nos reenvia, desse modo, aos estreitos laços que se verificam entre cenografia e uma certa pers-pectiva das práticas linguageiras segundo a qual os enunciados não “contam” o real, mas, antes, o “produzem”.9 Isso porque “a cenografia não é [...] um cenário, como se o discurso apareces-se inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele” (MAINGUENEAU, 2004a, p. 87), mas, ao contrário, institui progressivamente a cena a partir da qual será legítimo enunciar.

além da produção de um tempo-espaço e de um certo perfil de atores protagonizando o evento do qual se fala, assis-te-se ainda ao acionamento de outros dispositivos cenográficos no texto-entrevista. Citaremos apenas dois desses dispositivos que se revelam absolutamente complementares: a escolha de um dado campo lexical dos discursos religiosos e uma certa confi-guração sintática (também em sintonia com o plano religioso, conforme veremos) em que a repetição parece desempenhar um papel de relevo.

O primeiro dos dispositivos indicados – campo lexical que privilegia o religioso – pode ser facilmente evidenciado em alguns fragmentos:

(i) Today, millions of Americans mourned and prayed, ...

(ii) Today, people from all walks of life gave thanks for the heroes; [...] they ask for God’s good graces on the families who mourn, ...

(iii) If the American people had seen what I had seen in New York City, you’d have great faith, too. You’d have faith in the hard work of the rescuers;

(iv) And on this day of - on the Lord’s Day,10 I say to my fellow Americans, thank you for your prayers, thank you for your compassion, ...

Como se percebe, é bastante recorrente a escolha de termos que remetem à produção de uma atmosfera de fé e de devoção, a qual é absolutamente compatível com os dispositivos ceno-gráficos anteriormente apresentados: pessoas de bem lutando contra as adversidades de um tempo de provações, sem perder a fé no que de mais precioso possuem, a saber, o sentimento de compaixão, de solidariedade, de confiança.

Contudo, esse dispositivo cenográfico, que passamos a denominar “testemunho de fé”, se constrói ainda por meio de um investimento em uma dada configuração sintática do texto: a sintaxe da repetição. Vejamos algumas de suas manifestações:

9 Poderíamos ainda dizer que os enunciados não “contam” senão aqui-lo que afeta o sujeito, aquilo que se torna um objeto de investimento desse sujeito. o que não significa, a meu ver, que a cenografia seja uma questão de “opção”, de “decisão” tomada pelo sujeito: o investimento em uma dada cenografia (e não em outra) é sem-pre regido por coerções tão importantes quanto as que definem um gê-nero de discurso, por exemplo.10 a entrevista em ques-tão com o presidente americano foi concedida em 16/09/2001, domin-go, razão pela qual se faz referência ao Lord’s Day.

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(i) Today, millions of Americans mourned and prayed, and tomorrow we go back to work. Today, people from all walks of life gave thanks for the heroes; [...] and tomorrow the good people of America go back to their shops, their fields, American factories, and go back to work.We need to go back to work tomorrow and we will.

(ii) We’re a great nation. We’re a nation of resolve.

We’re a nation that can’t be cowed by evil-doers.

(iii) I’ve got great faith in the American people. If the American people had seen what I had seen in New York City, you’d have great faith, too. You’d have faith in the hard work of the rescuers; you’d have great faith because of the desire for people to do what’s right for America; you’d have great faith because of the compassion and love that our fellow Americans are showing each other in times of need. [...]I also have faith in our military. [...]On this day of faith, I’ve never had more faith in America than I have right now. [...] ... I have great faith in the resiliency of the economy.

(iv) And we have got a job to do - just like the farmers and ranchers and business owners and factory workers have a job to do. My administration has a job to do, and we’re going to do it.

(v) I say to my fellow Americans, thank you for your prayers, thank you for your compassion, thank you for your love for one another.

(vi) But we’ve been warned. We’ve been warned there are evil people in this world. We’ve been warned so vividly - and we’ll be alert. Your government is alert. The governors and mayors are alert that evil folks still lurk out there.

(vii) And we understand. And the American people are beginning to understand. [...] and the american people must be patient. I’m going to be patient.

(viii) We will continue to work with Pakistan and India. We will work with Russia. We will work with the nations that one would have thought a couple of years ago would have been impossible to work with ...

(ix) They [Pakistan, India, Saudi Arabia] know what my intentions are. They know my intentions are to find those who did this, find those who encouraged them, find them who house them, find those who comfort them, and bring them to justice.

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Se dizemos que a cenografia que ora se atualiza é a do “testemunho de fé” (fé na atitude dos americanos, no poder de recuperação da economia do país, nos valores de justiça e liberdade), em estreita afinidade com a retórica dos sermões religiosos, isso se deve em grande parte à insistência nos paralelismos sintáticos que transcrevemos. Paralelismos que não ocorrem por acaso! Com efeito, em estudo sobre a repetição nos sermões do padre Vieira, Lopes (1997) indica, a partir da análise do Sermãodaprimeira sexta-feira da Quaresma, alguns objetivos da repetição: “ativar a imaginação, sustentar uma idéia ou pensamento por um determinado tempo, imprimir uma imagem na mente mediante o martelar constante de determinadas palavras ou frases e até, conforme o caso, persuadir o receptor da mensagem, envolvendo-o emocionalmente”. A repetição configura-se, pois, como procedimento que imprime uma certa ritmicidade, garantindo a “variação na unidade”, a expressão da “pluralidade de forma unitária” (HADDAD, 1968, p. 12):11 diz-se o mesmo repetidas vezes, procedimento que não deixa de exercer um papel relevante no que concerne à produção de subjetividade.

Conclusõesa partir de uma perspectiva discursiva para o tratamento

das práticas linguageiras, o objetivo deste artigo era aprofun-dar, por intermédio de uma concepção de sujeitoe mundo vistos como posições relativas ocupadas por um dentro e um fora em permanente movimento de reconfiguração, o debate acerca de uma dupla função da linguagem – representação e intervenção – face à produção de subjetividade e à articulação entre o su-jeito e o mundo: investigação que remete a uma concepção não essencialista do real segundo a qual sujeitoe mundo resultam de dobras12 que se refazem continuamente. O que concluir, então, a respeito de tal modo de pensar a produção de subjetividade a partir das análises realizadas?

Diríamos que, no texto-entrevista analisado, assistimos a uma dobra do religioso,13 a qual é responsável pela formação de um dentro (promotor de uma subjetividade que acima de tudo se caracteriza pela fé na atitude do povo americano, no poder de recuperação da economia do país, nos direitos civis e nos valores de justiça e liberdade) e de um fora (o infiel, o que não tem remorsos, o que não pode suportar a idéia de liberdade, o bárbaro).

tal modo de articulação entre sujeito e mundo (vistos como elementos relacionais) como o que ora se propõe parece contri-buir significativamente para problematizar identidade e alteridade: com efeito, inexistiria uma diferença fundamental entre o mesmo e o outro,14 uma vez que a forma de alteridade que ora se discute é a da alteridade que habita o mesmo:

Não existe outro senão na medida em que ele constitui o ensejo de um eu tornar-se outro. Se estou triste e alguém me sorri, o que posso desejar, nesse instante, senão um mundo possível de alegria? Da mesma forma, é exatamente o mundo de alegria que faz passar o mundo de tristeza. [...] Fique claro então que alteridade não é propriamente aquilo que constitui

11 Em seu ensaio sobre os sermões do padre Antônio Vieira, Haddad explicita que a repetição vem atu-alizar uma das marcas do autor: �a tendência à circularidade do estilo, expressão da mais absoluta unidade� (HADDAD, 1968, p. 12).12 Segundo Silva (2004), “modo singular de flexão ou curvatura de um deter-minado estado de relação de forças que se atualiza nos �processos de subje-tivação’ ”.13 Vimos que a produção dessa dobra do religioso era possibilitada por in-termédio das escolhas lexicais e da repetição de estruturas sintáti-cas, procedimento que mimetizava os sermões religiosos.14 É assim que entende-mos a afirmação de que terrorismo e globalização caminham pari passu: “O terrorismo atual não descende de uma história tradicional da anarquia, do niilismo e do fanatis-mo. É contemporâneo da globalização ...” (BAU-DRILLARD, 2003, p. 51). acrescento que, nesse mesmo modo de con-ceber identidade e alteri-dade, particularmente feliz é a “descoberta” da expressão “outr’em-mim” por Naffah Neto (1998).

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o outro, sua qualidade, mas sim a relação do eu com aquilo que o altera. (LAMBERT DA SILVA, 2001)

É possível ainda reafirmar a consubstancialidade entre o outro e o mesmo por outra via de argumentos: a alteridade pode efetivamente ser apreendida em diferentes planos de atu-alização, e não apenas em suas macroformas já sedimentadas e tornadas familiares. É assim que compreendemos a reflexão de Baudrillard acerca da distância (uma distância que, paradoxal-mente, implica proximidade) entre terror e terrorismo: “Quanto ao terror, sabemos que já se encontra em toda parte, na violência institucional, mental e física, em doses homeopáticas. O terro-rismo apenas cristaliza todos os ingredientes em suspenso”. (BAUDRILLARD, 2003, p. 31)

Em um mesmo sentido parecem caminhar as observações de Guattari:

[...] há uma política que se dirige tanto ao desejo do indivíduo quanto ao desejo que se manifesta no campo social mais amplo. [...]. [É preciso] intervir ativamente contra todas as máquinas de poder dominante, quer se trate do poder do Estado burguês, do poder das burocracias de toda e qualquer espécie, do poder escolar, do poder familial, do poder falocrático no casal, e até mesmo do poder repressivo do superego sobre o indivíduo. (GUATTARI, 1985, p. 174)

No que concerne ao papel desempenhado pela linguagem na produção de um dado modo de subjetivação e no encontro entre sujeito e mundo, explicitamos a função dos dispositivos cenográficos em seu poder de linguagem-intervenção. Com efeito, vimos que, no texto-entrevista de Bush, a cenografia de sermãoreligioso parecia cumprir adequadamente sua função de “armadilha”: trabalhando no sentido de “apagar” o quadro cênico original (no qual teríamos o discurso político como cena englo-bante e a entrevista como cena genérica), promovia uma outra composição de forças na qual uma nova cena genérica (sermãode conforto aos fiéis diante da ameaça do inimigo) vinha se inscrever em uma cena englobante atinente aos discursos religiosos. Eis, desse modo, a concretização de um dispositivo de cenografia que funciona como agente de fluidificação de formas instituídas, como promotor de uma linguagem-intervenção.

Que nova configuração de forças se dá mediante tal “des-locamento” cenográfico? Não nos alongaremos nessa questão. Diremos apenas, à guisa de conclusão, que, na passagem da cena política à cena religiosa, da entrevista midiática ao “sermão de admoestação aos ímpios”, o que ocorre é uma significativa alteração dos efeitos de sentido até então produzidos: a punição ao agressor, prometida em tom de ameaça pelo presidente, que a infligiria por iniciativa própria, deixará de ser assumida pela mão do homem e passará diretamente às mãos de Deus. Dis-

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cursos que deixam entrever afetos e desejos, que buscam legiti-mação instituindo a cena enunciativa que anuncia um mundo apenas entrevisto no momento (e no qual terá lugar, em futuro próximo, a redentora invasão de um certo país do oriente); um mundo que, a seu turno, legitimará o direito de enunciar como o faz o orador-presidente. God bless America!15

15 Canção escrita origi-nalmente em 1918 por Irving Berlin, imigrante nascido na Sibéria, e revisada pelo próprio autor em 1938, reite-radamente lembrada como expressão do pa-triotismo americano nos dias subseqüentes aos ataques de 11/09/2001 (Fonte: <http://www.answers.com/topic/god-bless-america>).

AbstractBased on a corpus composed of an interview with G. W. Bush, president of the U.S.A., which took place on the 16th September 2001, precisely five days after the terrorist attack to the World Trade Center, this paper discusses the double role of language, representing and intervening, in its mediation between subject and world. The main reason to explain the interest of the analysis of this interview is the fact that Bush speaks of a “cru-sade” against the enemy, inadequate expression which brought about a vigorous reaction from islamitic community. The concept of scenography conceived by Maingueneau shows itself productive in putting forward the intervening dimension of language.

Keywords: representation, subjectivity, alterity, scenography, terrorism.

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Gragoatá Niterói, n. 21, p. 3�3-3��, 2. sem. 2006

Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no

tratamento editorial de textosLuciana Salazar Salgado

Recebido 15, jun. 2006/Aprovado 15, ago. 2006

ResumoMuitos projetos editoriais têm investido na com-preensão da autoria, de seu processo de consti-tuição: no tratamento editorial de textos, dá-se, na matéria textual que irá a público, uma espécie de debate sobre as idéias e seu arranjo, uma in-terlocução que se registra no corpo do original, propondo correções, mudanças, questões diver-sas. Entendido no âmbito da discursividade, esse trabalho editorial se faz em manobras lingüísticas reveladoras do quanto, nessa altura, o texto está em construção. Embora se tenha estruturado como versão final, ao passar por essa leitura/co-enun-ciação, ele se move – às vezes em novas direções, às vezes tornando contundentes certos traços, ou abrindo mão de outros. Com base nisso, considero a noção de ethos para a qual “o texto não é para ser contemplado, ele é uma enunciação voltada para um co-enunciador que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir ‘fisicamente’ a um certo universo de sentido” (Maingueneau, 2005a) e analiso excertos detratamentoeditorialdeumaversãodosDozeTrabalhos de Hércules, nos quais alterações sutis da cenografia discursiva necessariamente alteram o ethos que dela participa, matizando o mito.

Palavras-chave: autoria, edição de textos, dis-cursividade, ethos

Luciana Salazar Salgado

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“Cedo compreendi que o bom fra-seado não é o fraseado redondo, mas aquele que em cada palavra

tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente musical, e não serve senão a palavra cujos

fonemas fazem vibrar cada parce-la da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores. Não sei

se estou sutilizando demais, mas é tão difícil explicar por que num desfecho ou num verso esta linha

é viva, aquela é morta.” (Manuel Bandeira. itineráriodePa-

sárgada)

Textualização e produção dos sentidosOs atuais estudos da linguagem, dentro e fora da lingüís-

tica, sobretudo aqueles desenvolvidos nas fronteiras epistemo-lógicas, têm se voltado muito especialmente para a produção dos sentidos. No que diz respeito aos estudos dos textos e dos discursos, cada vez mais se estudam questões relativas à opa-cidade das línguas e à heterogeneidade dos dizeres, das quais se desdobram discussões sobre as condições de produção dos enunciados – o material extra-lingüístico como constitutivo do lingüístico, a instituição da subjetividade e da alteridade como fundantes das enunciações, as dinâmicas que alimentam as interlocuções, as coerções que orientam tais dinâmicas.

Para abordar a produção dos sentidos num texto, do modo como esse objeto interessa aqui, consideramos que os textos têm sido definidos em toda teoria textual, desde a Antigüidade, tanto por sua condição de inteireza quanto por sua condição de abertura; em seu duplo funcionamento, um texto é uma unidade e éinacabável, uma composição que é também possi-bilidade de recomposições (aDaM, 1999, p. 07 et seq.). trata-se de considerar a textualização, sua dinâmica de construção, que é sempre balizada por condicionantes sociais e históricas. Numa perspectiva discursiva, este artigo se propõe observar a pro-dução dos sentidos num texto destinado a publicação ou, mais precisamente, os sentidos que se produzem numa textualização que irá a público.

Para tanto, esta reflexão assenta-se em noções da análise do discurso de linha francesa, em seus desenvolvimentos teó-ricos que propõem os discursos como práticas discursivas, isto é, como sistemas de restrições semânticas indissociáveis das práticas sócio-históricas e verificáveis na matéria lingüística. Considera-se, aqui, que tal indissociabilidade se deve ao fato de que “os discursos não só surgem apenas se certas condições são satisfeitas, mas também que eles podem afetar essas mesmas

Um ethos para Hércules: considerações sobre a produção dos sentidos no tratamento editorial de textos

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condições” (PoSSENtI, 2003, p. 221). Essa análise do discur-so, estribada nas questões de linguagem, formula uma teoria da leitura que supõe a língua como constitutivamente opaca e polissêmica, os sujeitos como clivados e as conjunturas de interlocução marcadas por lugares sociais definidos na sobrepo-sição de tempos e funções de que se faz a história (POSSENTI, 2004). Trata-se, então, de uma proposta teórica que examina as textualizações sempre em sua condição de interpretação, sendo esta não uma decodificação de signos ou um desvendamento do exterior textual, mas a leitura dos vestígios da rede de dis-cursos que envolvem os sentidos, que levam a outros textos, que estão sempre à procura de suas fontes [...]. Por isso os sentidos nunca se dão em definitivo; existem sempre aberturas por onde é possível o movimento da contradição, do deslocamento e da polêmica (GREGOLIN, 2003, p. 48-49).

Mesmo em textos supostamente neutros, nos quais se faz crer num verdadeiro apagamento do sujeito e na plena objetivida-de dos problemas formulados – como freqüentemente se crê que aconteça nas ciências naturais ou na matemática –, o que se verifica é uma longa história de convenções estabelecidas e sobretudo um treinamento dos cientistas, para que se ate-nham a um modo de dizer, a um modo de manobrar sentidos convencionados, pretendendo uma univocidade. E, se é feita de convenções, essa univocidade pretendida “depende de uma certa quantidade de repressão das idiossincrasias do leitor”, pois “é nesses discursos, e como conseqüência de um longo trabalho histórico, que tais palavras e tais enunciados têm uma leitura unívoca, e não em língua portuguesa ou inglesa etc.” (POSSENTI, 2002, p. 248).

Autoria e produção dos sentidosEssa abordagem discursiva parece bastante proveitosa para

o estudo do processo de constituição da autoria de um texto, pois permite examinar a inextricabilidade entre práticas sociais de textualização, subjetividade e alteridade. No que tange à autoria de textos destinados a publicação, produzidos para circular entre diversos leitores, essa perspectiva permite observar as manobras de textualização por que passa o “original” de um autor quando entra em processo editorial. Nos apontamentos que a leitura de um outro (no lugar de editor/preparador de textos) assinala na matéria lingüística, no próprio corpo do texto, podemos ver o que Chartier freqüentemente afirma: que a publicação de uma obra “implica sempre uma pluralidade de atores sociais, de lugares e dispositivos, técnicas e gestos” (CHARTIER, 2002a, p. 10). São bastante conhecidos seus estudos que relatam o quanto os tipógrafos (encarregados até de pontuar os textos e decidir sobre sua disposição) e os doutos correctores (eruditos contratados ou convidados para o que hoje chamamos revisão de provas) atuavam sobre a composição dos textos autorais, definindo-lhe

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as feições públicas (CHARTIER, 1994, 2002a, 2002b, 2003). Tais práticas, verificadas já antes do século XVII, mas marcadamente nesse período e cada vez mais sistematizadas na crescente pro-dução de cópias ao longo do século XVIII, foram sendo neces-sariamente discutidas e reorganizadas até se promulgarem as primeiras providências legais – como o copyright na Inglaterra (1709) e certas medidas de proteção do autor na França (1777) – que anunciaram a propriedade intelectual dos autores e, as-sim, os modos pelos quais eles podiam dispor de suas criações e negociar as características da versão a ser distribuída pelos livreiros, quase sempre tipógrafos-livreiros, os únicos que co-mercializavam os livros e que, por isso, detinham o poder sobre as cópias, sobre a versão a ser copiada e sua circulação.

No século XIX, a designação editor aparece, institucionali-zando lugares no mercado editorial e oficializando práticas de publicação. Desde aí, ao editor cabe coordenar o processo de edição e circulação pública, o que é, então, uma nova forma de captar material a ser publicado e de compor equipes com traba-lhadores especializados na edição de textos, inclusive em seus aspectos gráficos e relativos ao suporte (BRAGANÇA, 2005). O percurso histórico que institui a figura do editor revela que a publicação de um texto nunca foi mera reprodução gráfica de um material tal qual apresentado por seu autor.

No ocidente, desde que a prática da leitura saiu dos monás-ticos scriptoria medievais e se aprimorou o formato codex (folhas dobradas em cadernos, que são costurados uns nos outros e protegidos por uma encadernação) para a circulação dos textos, mesmo quando as cópias eram todas manuscritas, a constituição da autoria de textos produzidos com o fim de circular envolve explícita e oficialmente gestos outros além dos do autor. Diversos profissionais atuam como co-enunciadores trabalhando para garantir a autoridade do autor, a proficiência do texto que lhe confere esse lugar. Desse modo, embora a versão “original”, ao passar por tratamento editorial, se movimente – às vezes em novas direções, às vezes tornando contundentes certos traços, ou mesmo abrindo mão de outros –, esse movimento do texto não destitui seu autor, não se transforma em co-autoria, e não é propriamente uma reescritura; é ainda escritura do autor, que, por meio da leitura desse outro, anotada pontualmente, navega águas que seu próprio texto permite e, com isso, se não pode fechá-lo definitivamente (porque ele será sempre textualização, movimento de produção dos sentidos diante de cada leitor futu-ro), procurando garantir que certas leituras estejam mais auto-rizadas que outras, e que certas memórias discursivas tendam a se atualizar, filiando o texto a uma dada rede de dizeres.Nos três últimos séculos, a leitura se tornou um gesto dos olhos, e não mais do corpo todo (como fora por milênios, sobretudo na prática freqüente da declamação de textos interiorizados). Contribuíram para

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isso a disseminação do codex em lugar do volumen (livro de rolo, cuja leitura ocupa as duas mãos simultaneamente) e, depois, os tipos móveis, multiplicando velozmente as cópias de um mesmo texto. Isso faz com que os textos não imponham a seus leitores um ritmo e as ênfases de apropriação; forja-se, assim, uma distância entre leitor e texto que é uma espécie de autonomia ou um habeas corpus do leitor, conforme a formulação de De Certeau (2004, p. 272). Entretanto, é bom lembrar, um habeas corpus não é uma liberação para qualquer passo adiante, e as características desses textos que se dão a ler por um público vasto, inferido e liberto de algumas imposições, se abrem brechas para derivas – a condição de abertura de todo texto –, firmam também um curso, uma linha-mestra – sua condição de unidade.

o tratamento editorial procura, então, ao mesmo tempo, apontar nessas características o que parecem ser brechas para deriva e o fio condutor, propondo ajustes e alterações sempre pautados pelo projeto editorial, conforme o gênero de publica-ção que se está preparando, e o editor de textos faz isso como um co-enunciador inscrito na interdiscursividade em que essa alteridade se põe. De fato, estão em jogo práticas da ordem do discurso: a alteridade que se institui na composição da autoria, junto com o autor, trabalhando pelo texto dele, no texto dele, opera sobre a matéria lingüística (opaca e heterogênea), em sua condição textual (una e inacabada), com base em modos de ler e interpretar (que são históricos). observando esse trabalho, vemos que os sentidos se produzem não nesta ou naquela manobra, na troca de uma palavra por outra ou numa nova pontuação, mas no conjunto desses movimentos, com as coerções genéricas que lhes delimitam.

Textualização, autoria e semântica globalPara observar esse trabalho editorial, que se dá numa inter-

locução discursiva anotada na matéria lingüística, apresentarei exemplos de manobras propostas no tratamento editorial de um texto, pondo em relevo o modo como elas penetram a autoria e dela participam, legitimando-a.

Nos excertos a seguir, é possível examinar aspectos da semântica global do texto instaurados pelas propostas do editor/preparador, dos quais focalizarei um, detendo-me em manobras lingüísticas que fazem mover-se o ethos do herói em cena. Evidentemente, “um procedimento que se funda sobre uma semântica ‘global’ não apreende o discurso privilegiando tal ou tal de seus ‘planos’, mas integrando-os todos, tanto na ordem do enunciado quanto na da enunciação” (MAINGUENEAU, 2005b, p. 79); aqui, o recorte de observação não perde de vista essa integração dos diversos elementos e instâncias que produzem sentido num texto. Tais excertos foram selecionados justamente por se tratar de um “original” sem infrações à norma culta ou falhas de encadeamento lógico, mas de material traduzido ao

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qual era preciso imprimir uma cadência de narrativa mítica contada na variante padrão do português brasileiro contem-porâneo, destinada à difusão entre jovens do ensino médio e interessados em geral.

Embora difusa, essa é uma diretriz nada incomum no meio editorial. Há materiais que não demandam propriamente correções, mas uma formulação textual afinada com o perten-cimento a um gênero e a uma rede de memória, que leve em conta o “sistema que investe o discurso na multiplicidade de suas dimensões” (MAINGUENEAU, 2005b, p. 80). Na verdade, talvez a diretriz não possa ser mais precisa, pois só no contato com a malha textual, com seus nós e costuras, é que se saberá como se tece essa cadência, ensejada para tal destino. Importante notar que há um trabalho técnico; não é a súbita percepção de alguém especialmente sensível que dita as manobras. Uma leitura cri-teriosa, mobilizadora de certas redes de memória, de técnicas e de práticas, ainda que não firme um trajeto seguro, convida a dados percursos, traçando alamedas e boulevares. Uma breve ilustração desse trabalho que é pontual e toca necessariamente o global: no material de onde se reproduzem as passagens ana-lisadas a seguir, procedeu-se à supressão de muitos pronomes pessoais na posição de sujeito do verbo, imprescindíveis em inglês mas freqüentemente dispensáveis em português, e isso tornou a narrativa mais ágil e talvez se pudesse dizer verossímil (para o público a que se destina), considerando-se o conjunto de episódios aventurosos que são narrados – trata-se de uma versão dos Doze Trabalhos de Hércules.

Não havia qualquer orientação editorial para modificar o ethos do herói em cena. Aliás, seria possível supor que ele faz parte do “núcleo duro” do texto: o mito já existe muito antes de ser contada essa versão – quem não conhece Hércules, o bravo herói grego, o único a passar pelo rito dos famosos Doze Tra-balhos? Bem, se se pensa nas tantas versões, em tantas línguas distintas (e mesmo em grego), nas variações destinadas a esse ou àquele público, nas versões cinematográficas – de Hollywood a Bollywood –, já não se pode presumir um núcleo que não se move com tudo o mais.

Pressuposta a semântica global, com a imbricação de to-dos os elementos que compõem um texto, o ethos pode ser visto como o aspecto dos sentidos que designa a imagem de si que um locutor constrói em seu discurso de modo a autorizar-se pe-rante seu alocutário (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 220). No caso de um mito que se conta, no qual, por definição de gênero, há apagamento do locutor e ênfase noutros elementos narrativos, o fiador do discurso – aquele que dá cobertura, que garante, entre outras coisas, o ethos discursivo, avalizando o dizer – apresenta-se numa voz que “o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens” e que se investe

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“de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme o texto” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 72). Tal corporalidade, uma espécie de compleição evocada, inclui mo-dos de portar-se, de ocupar o espaço, que são apreendidos por meio de um comportamento global amparado num “conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos sobre os quais a enunciação se apóia e, por sua vez, contribui para reforçar ou transformar” (Idem, ibidem).

o ethos está, assim, implicado na cenografia discursiva (MAINGUENEAU, 1997, p. 42 et seq.). Para entender essa impli-cação, consideremos como cenografia discursiva a conjugação de uma dêixis discursiva (com os interlocutores, uma cronogra-fia e uma topografia próprias) a uma dêixis fundadora (com sua locução fundadora, cronografia e topografia fundadoras) que lhe é anterior e, de algum modo, repete-se na cena discursiva atual atribuindo-lhe “boa parte de sua legitimidade” (MaIN-GUENEAU, 1997, p. 42 et seq.). Resultando dessa conjugação, a cenografia “é, ao mesmo tempo, a fonte do discurso e aquilo que ele engendra” (MAINGUENEAU, 2004, p. 99) e abriga um “tom” que lhe dá autoridade. Uma “maneira de dizer” evoca uma “maneira de ser”, noutros termos: os “conteúdos” enunciados não são independentes da cena de enunciação que os sustenta. Quem avaliza essa cena é o fiador, a voz que assume um tom e assim constrói o mundo do qual participa, diz do mundo o que esse mesmo mundo lhe permite e lhe propõe dizer; trata-se de um “paradoxo constitutivo: é por meio de seu próprio enunciado que o fiador deve legitimar sua maneira de dizer”, incorporando um ethos (MAINGUENEAU, 2005a, p. 73). E essa incorporação supõe que “o texto não é pra ser contemplado, ele é enunciação voltada para um co-enunciador que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir ‘fisicamente’ a um certo universo de sentido” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 73).

Vejamos, nas passagens selecionadas, como se movimenta a encarnação de Hércules entre o excerto original e as propostas do tratamento editorial, a partir dos traços com que um fiador es-trategicamente apagado enobrece a figura do herói, sofisticando os perigos que ele enfrenta, imprimindo prontidão a suas ações e precisando configurações do ambiente com que dialoga.

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I. o Leão de Neméia (primeiro trabalho de Hércules)original alteração propostaDe repente, quando começava o crepúsculo, ouviu-se um rugido terrível, seguido de um segundo e de um terceiro. os rugidos vinham de longe e mostravam que o Leão tinha ido para a outra entrada da cova, e, encontrando-a bloqueada, estava agora dando vazão a sua fúria. Quando finalmente ele voltou à primeira entrada, a noite já tinha caído. Hércules percebeu que não seria inteligente enfrentar o monstro no escuro; assim, deixou-o entrar na cova sem ser perturbado e esperou escondido até a chegada da aurora.

Caía o crepúsculo.1 Ouviu-se um rugido impiedoso, seguido de outro e mais outro2. Vinham de longe e mostravam a fúria do leão diante do bloqueio que encontrara3. Quando finalmente o animal voltou à primeira entrada, a noite caíra. Hércules percebeu que não seria inteligente enfrentar o monstro no escuro; assim, deixou-o entrar na cova sem ser perturbado e esperou, escondido, a nova aurora.

1) Crepúsculo é um termo ligado à noção de processo: é uma luminosidade crescente ou decrescente, não tem traços de “começo” propriamente, tampouco se costuma pensar num crepúsculo repentino. Em português, como noutras línguas latinas, há um uso consagrado para o termo com acepção de ocaso, decadência, declínio do bem e da força. assim, o encurtamento do período parece pôr em relevo essa noção, e instaura um clima de obscurecimento e ten-são – o herói está vivendo aí o prenúncio de um grande perigo, o primeiro dos ritos que cumprirá.

2) o monstro, já dito terrível, e indicado em passagens anteriores como sem dó nem piedade, deu muitos gritos ou pareceu serem muitos, dada a duradoura situação de enfrentamento. A formulação proposta sugere que não se contariam precisamente três rugidos identificáveis; a troca de numerais por um pronome indefinido sugere uma experiência menos racional que, com a recorrência, cresce retumbante – ouviu-se um rugido impiedoso, seguido deoutroemaisoutro, num sem-fim que exprime a ira do Leão de Neméia.

3) Linhas acima se descreveu pormenorizadamente a estra-tégia de Hércules para cerrar uma das entradas da cova, assim, o termo bloqueio retoma o complexo procedimento, buscando no elemento já dado (a empresa de bloquear a cova) o impulso para o novo: o leão topou com a en-trada bloqueada; o herói obteve êxito em sua estratégia. Aparece-nos diferente a cena quando, em vez de o leão encontrar a cova bloqueada, encontra o bloqueio da cova, obra substantiva de Hércules.

1 De fato há muitas con-siderações interessantes a fazer sobre autoria e tradução num caso como esse, mas tal dis-cussão foge ao escopo deste artigo, que consi-dera como texto original aquele que, em portu-guês, recebeu tratamen-to editorial. Uma prática freqüente no mercado editorial.

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II. as aves do lago Estínfalo (terceiro trabalho de Hércules)original alteração propostaNenhuma das flechas do herói errou o alvo. Muitas delas chegaram até a derrubar duas aves de uma só vez, porque o veneno da hidra, no qual suas pontas tinham sido mergulhadas, significava que um mero arranhão era suficiente para matar. as aves caíam mortas do céu, algumas para serem tragadas pelas águas verdes do lago, outras chocando-se contra os juncos, outras, ainda, batendo contra as pedras abaixo com um estrondo de penas de bronze.

Nenhuma das flechas do herói errou o alvo. Muitas delas chegaram até a derrubar duas aves de uma só vez, porque o veneno da hidra, no qual suas pontas tinham sido mergulhadas, num mero arranhão inoculava o suficiente para matar1. as aves caíam mortas do céu, algumas para serem tragadas pelas águas verdes do lago, outras chocando-se contra os juncos, outras, ainda, batendo contra os penhascos2 com o estrondo do bronze de que eram feitas3.

1) trata-se da descrição do poder de um veneno letal, possivelmente o mais letal dos venenos – o da Hidra de Lerna. Na proposta de alteração, ele não significa, mas mata efetivamente. Procedeu-se à personificação do veneno: ele, num mero arranhão, é quem inocula. além disso, o termo inocula retoma tanto o universo de víboras e assemelhados quanto uma terminologia científica que também tecnifica e tecnologiza a ação do envenenamento, potencializando-a, pondo em relevo sua eficiência.

2) Seria possível, aí, modificar o provável calco de tradução batendo contra pedras abaixo por rolando pedras abaixo. Mas parece que soam mais dramáticos (tanto quanto outros elementos da cena) os penhascos; com essa palavra, o movimento se alonga, e a duração do evento também, inclusive pela evocação da sonoridade da queda. E o que há de sinistro e perigoso nos penhascos pertence a uma memória literária e filmográfica de largo alcance. Essa circunscrição combina com o caráter espetacular do desfecho desse episódio.

3) a palavra penasdo original pôde ser suprimida, pois é o que se espera sobre as aves, e, assim, a passagem umestrondo de penas de bronze, que refere um tipo de estrondo, pode ser substituída por o estrondo do bronze de que eram feitas, que particulariza tanto o som do estrondo como a fatalidade do evento, remetendo à rijeza física das aves e à severidade de suas ações.

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III. o Touro de Creta (sétimo trabalho de Hércules)original alteração proposta

Com toda sua força terrível, Hércules forçou a cabeça do touro para baixo até suas narinas rasparem o chão. o ani-mal lutava furiosamente, mas em vão: por mais que tentasse, não conseguia levantar a cabeça de novo. Seus cascos traseiros arranhavam desesperadamen-te a terra tentando encontrar um ponto de apoio, mas nada podia desalojar o filho de Zeus ou fazê-lo perder o equilí-brio. Uma espuma borbulhava na boca do touro em sua raiva impotente, mas não havia nada que ele pudesse fazer. Em pouco tempo suas últimas forças esgotaram-se e ele se entregou a seu oponente sem resistir mais.

Com toda sua força temível,1 Hércules empurrou a cabeça do touro para bai-xo até suas narinas rasparem o chão. o animal lutava raivoso,2 mas em vão. Por mais que tentasse, não conseguia levantar a cabeça de novo. Seus cascos traseiros arranhavam desesperadamen-te a terra, tentando encontrar um pon-to de apoio, mas nada podia desalojar o filho de Zeus ou fazê-lo perder o equilíbrio. Uma espuma borbulhava na boca do touro, cheio de raiva im-potente,3 mas não havia nada que ele pudesse fazer. Em pouco tempo suas últimas forças esgotaram-se, e ele se entregou extenuado4 a seu oponente.

Neste episódio, o corpo-a-corpo vivido por Hércules é bastante mais sofisticado que os havidos antes, contra monstros e feras. O Touro de Creta deve ser freado em sua fúria, instilada por Possêidon ofendido, mas, sendo um animal caro a um grande deus, Hércules tem de dominá-lo e conduzi-lo sem jamais feri-lo. É particularmente importante a distinção entre esse animal furioso mas divino e os outros combatidos até aqui; vê-se que a adjetivação e a predicação são elementos-chave nas propostas de reformulação.

1) Forçaterrível tem tom algo abrutalhado para a sutileza com que Hércules deve empreender essa tarefa. Aliás, na progressão do mito, a iniciação do herói se vai cum-prindo em estágios de sofisticação da enorme força que ele tem desde nascido. a essa altura, tornara-se temível: ele já impõe respeito por sua fama e glória, e não deve mais provocar terror com seu tamanho descomunal ou sua força bruta.

2) A substituição remete a tudo que se vem dizendo sobre a força desse herói, retomando, numa continuidade tó-pica, a evolução moral de Hércules. a luta já transcorria há muito tempo, e o touro, prestes a ser vencido, lutava com raiva, não exatamente de modo enfurecido, pois sua fúria já perdia tônus. Observe-se, ainda, que trocar o ad-vérbio furiosamentepelo adjetivo enraivecido daria a idéia de tornado com raiva, de tomado por raiva àquela altura, enquanto a terminação –ososugere uma condição mais perene. retoma-se, lá do início da história, que esse touro é um ser com raiva – a raiva instilada por Possêidon. Ele não ficou com raiva de Hércules; vivia constantemente nesse estado.

3) A construção original é longa, o que esvazia o impacto da imagem, e a ambigüidade do pronome sua contribui para

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esse esvaziamento. Nas alterações propostas, parece que se busca garantir ao touro a raiva, ainda raiva, embora impotente – afinal, o touro era sempre assim, esse era o problema que Hércules deveria resolver.

4) Um touro tão assombrosamente forte e raivoso não se entregaria desistindo da contenda; ele lutou até esgota-rem-lhe as forças e foi rendido quando perdeu qualquer possibilidade de ação. o termo extenuado compõe, no fim do parágrafo e da luta, a expansão lexical da cena, numa gradação que configura a mais importante informação dessa passagem: o registro da rendição processual do touro – raivoso, cheio de raiva impotente, extenuado. Ele não parou de resistir, foi vencido. Suas forças sucumbiram à astúcia dos golpes do herói.

IV. os cavalos de Diomedes (oitavo trabalho de Hércules)original alteração propostao herói e seus companheiros chega-ram à trácia pelo mar. Hércules logo descobriu o estábulo onde os cavalos estavam e, enquanto seus companhei-ros caíam sobre os guardas e os amara-ram, ele desacorrentou rapidamente os animais de suas baias e, segurando-os pelas rédeas, os conduziu até o navio.

o herói e seus companheiros chega-ram à trácia pelo mar. Hércules logo descobriu o estábulo Øi e, enquanto os outros desabavam2 sobre os guardas para amarrá-los, ele desacorrentou Øii os animais3 de suas baias e, seguran-do-os pelas rédeas, conduziu o tropel até o navio.

1) Elipses coesivas: i. nos parágrafos anteriores, falou-se em “cavalos de

Diomedes” algumas vezes; aqui, o termo estábulo, pela afinidade semântica sustentada por uma memória discur-siva, logo remete aos cavalos de Diomedes, imprimindo agilidade à cena, evitando repetições desgastantes.

ii. o longo termo rapidamente tira agilidade da ação em-preendida e é desnecessário como informação, posto que outros elementos da cena satisfazem a idéia de que os animais foram desacorrentados no justo tempo que havia: enquanto os outros desabavam..., ele desacorrentou...

2) a substituição de caíam por desabavam mantém a idéia do assalto, mas, por seus traços semânticos de precisão, o verbo desabar registra ao mesmo tempo a grande surpresa do ato e sua proficiência.

3) Explorou-se a expansão lexical sugerida no excerto ori-ginal: os famigerados cavalos de Diomedes, sob o poder de Hércules, são simples animais, depois, rendidos, são retomados por um sucinto pronome no plural –seguran-do-os –, para se tornarem, enfim, um tropel, no singular. É interessante notar que freqüentemente o termo tropel, quando utilizado na composição de uma cena com gente, assume a acepção de balbúrdia, mas utilizado para refe-rir cavalos, assume a acepção de muitos e barulhentos,

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mas tangíveis e administrados. A destreza de Hércules se refina a cada trabalho.

V. o cinto de Hipólita (nono trabalho de Hércules)original alteração propostao navio de Hércules agora havia che-gado perto da margem, onde uma mul-tidão de amazonas tinha se juntado, muitas delas montadas em seus cava-los. Talvez fosse a mera curiosidade que as levara para lá – ou talvez fosse um pressentimento.

o navio de Hércules já margeava as ter-ras1 onde uma multidão de amazonas se formara2, muitas delas montadas Ø3. Talvez fosse a mera curiosidade a tê-las levado até lá, talvez fosse um pressen-timento...4

1) o navio de Hércules não atracará tão cedo, no decurso do enredo. É que os mistérios e lendas em torno das amazonas incitam um espírito de cautela. Considere-se, ainda, que a nau vinha pelo mar: pertodamargem não parece designar essas águas sem limites, cuja mística está ligada à falta de forma definida e à impossibilidade de sua contenção. Já o verbo margeavasoa compatível com a maritimidade ao referir um movimento cauteloso da embarcação: margear é também aproximar-se hesitante, e essa hesitação se reforça com o pretérito imperfeito marcando uma ação não acabada.

2) No original, o navio de Hércules chega a uma terra em que uma multidão tinhasejuntado. Além da inespecifici-dade da terra de que se aproximou a nau, essa construção sugere uma ingênua curiosidade das amazonas. Mas elas são famosas por seus belicosos procedimentos, o que fica marcado quando formam a multidão, donas de si. Hér-cules sabia disso, assim como sabia aonde chegava, pois partira rumo a essa terra. a proposta de uma restritiva introduzida pela conjunção onde define isso.

3) Montadas permite a inferência, na cena que se compôs, de cavalos ou algo semelhante. Não bastasse isso, o termo amazonas, numa rede de memória bastante difundida, refere-se a mulheres guerreiras que montam vigorosos cavalos.

4) É muito expressiva a transformação da pontuação que fecha esse parágrafo. Talvez não coubessem bem essas reticências catafóricas no original como no texto refor-mulado, no qual, retirada a sugestão de ingenuidade ou curiosidade daquela multidão que seformara, parece proveitoso enfatizar o clima de tensão e iminente batalha. trata-se da súbita chegada de homens a uma terra só de mulheres, e a tarefa é nada menos que roubar à impera-dora dessas guerreiras um cinto que legitimamente lhe pertence. as reticências não só sugerem uma aguçada intuição das amazonas, como também enfatizam o cará-ter duvidoso dessa tarefa imposta a Hércules.

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VI. os pomos das Hespérides (décimo primeiro trabalho de Hércules)

original alteração propostaIsso era tudo que Nereu tinha a dizer. Hércules desamarrou-o e saiu sentindo-se muito deprimido. Ele ficara sabendo onde estava a árvore, mas ele não sabia como poderia pegar os pomos se eles eram guardados por um monstro tão ter-rível. Ele não sabia o que fazer. Pela pri-meira vez, não tinha vontade de ir aonde o dever conduzia. Muito desanimado, deixou que seus passos o guiassem para onde quisessem e por fim viu-se no Cáu-caso rochoso e selvagem.

Isso era tudo que Nereu tinha a di-zer. Hércules desamarrou-o e saiu deprimido. Ficara sabendo onde es-tava a árvore, mas não sabia como pegar os pomos, se eram guardados por um monstro tão terrível. Que fazer? Pela primeira vez, não tinha vontade de seguir ao cumprimento do dever.1 Muito desanimado, dei-xou que seus passos o guiassem e, lá pelas tantas,2 viu-se no Cáucaso rochoso e agreste3.

1) a introdução de um discurso indireto livre permite rele-vo da condição de conflito interno vivida por Hércules, um herói que, além de talentoso e destemido, muito já aprendeu e agora se vê diante não de um enigma, mas de um impasse. Daí a pertinência da alteração do período subseqüente à pergunta que ele se faz: o herói não tem vontade de seguir ao cumprimento do dever – essa expres-são designa, no universo mitológico, particularmente nos episódios iniciáticos, o percurso a empreender ou os lugares aos quais se dirigir. Sem essa orientação, não há vontade que mova. Mas veja-se que justamente isso é que permite a Hércules seguir a mais refinada intuição: seus passos o guiam, ele se deixa estar, prenhe de conhe-cimentos, não à deriva, mas à mercê de uma sabedoria que só assim descobrirá ter.

2) Com base nas alterações comentadas em 1 é que a ex-pressão lápelastantas faz sentido: ela retoma o ar de ne-bulosidade em que Hércules está imerso: trata-se de uma expressão adverbial temporal anunciadora de que afinal algo acontecerá depois de um decurso não exatamente cronológico. Um tempo passou, houve acontecimentos e haverá mudança no estado de coisas. Hércules está operando com a intuição, com suas habilidades menos objetivas, não é guiado pela consciência. além disso, a surpresa do Cáucaso em que vai dar se esvaziava, no original, com a expressão e por fim. O desfecho não está próximo; ele acaba de chegar ao local onde enfrentará ainda muitas agruras, o décimo primeiro trabalho está apenas começando.

3) a propósito do comentário 2, vem bem a sugestão de alte-ração do adjetivo final da cena. O ambiente é campestre, não-cultivado, pode evocar a intuição virgem com que o herói toma contato só nesse episódio; é tosco, rústico, desabrido e algo difícil, mas não exatamente agressivo ou feroz. Tampouco se trata de região de selva. Diga-se

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ainda que já há, em muitas passagens do texto, o recurso ao termo selvagem para referir as mais diversas criaturas animalescas, desenfreadas ou torpes.

Considerações finaisNas reformulações propostas, não se funda um novo mito,

mas é possível perceber que Hércules se tornou mais ágil, mais viril e arguto; os espaços de ação mais sinistros ou intensos; os rivais mais rudes ou cruéis. De todo modo, não se desfaz a versão do autor/tradutor, tampouco seu lugar. Nem se pode dizer que se trata de um novo texto, embora se tenha proposto uma textualização outra. Algo se moveu e o ethos de Hércules parece vivificado – o que se produziu num conjunto dinâmico de manobras lingüísticas pontuais.

Nessa textualização, vemos como “a enunciação não tem só ‘um rio acima’, ela tem também um ‘rio abaixo’, a saber, as condições de emprego dos textos do discurso. Pode-se mesmo dizer que essa distinção entre nascente e foz não opõe realidades inde-pendentes: a maneira pela qual o texto é produzido e pela qual é consumido estão ligadas” (MAINGUENEAU, 2005b, p. 140). Embora o editor de textos não possa, por definição, pretender que sua leitura antecipe todas as leituras futuras das experiências de Hércules narradas nesse texto, o que ele diz do que lê, ao propor que imagens se enxuguem ou se prolonguem, que dificuldades se intensifiquem ou se resolvam etc., dá feições novas ao texto-primeiro. a autoria se compõem também delas agora, e o autor tem de aprovar esse movimento proposto ou dialogar com ele, movimentando mais a textualidade. Vê-se, porém, que mesmo assim esse leitor-especialista não passa a autor do texto, a co-au-tor ou mesmo a ghost writer; ele oferece em suas notas alterações de elementos da cenografia e, com isso, alteram-se aspectos da semântica global, ainda que o mito de Hércules siga sendo o mesmo, os mesmos Doze Trabalhos, o mesmo rito iniciático, a marcha de um herói de estirpe helênica.

Apesar de o texto traduzido, antes do tratamento editorial, procurar ser bem próximo das construções do original inglês, é possível que não resulte, provavelmente não pode resultar, tão próximo do que se conta lá, afinal contar é já um modo de estar no mundo e simultaneamente instaurar esse mundo, ocupando nele um lugar. os aspectos de recepção importam muito e é importante também entender que a “recepção” não é um pro-cessamento maquinal, baseado numa língua-default. Afinal, o caráter de default é já uma convenção e se estabelece nos usos e empregos, históricos, balizados por práticas sociais que incluem modos de escritura e de leitura, portanto de textualização.

No caso analisado, é bastante claro que o trabalho se dá em termos de semântica global. O texto traduzido recebeu um tratamento lingüístico em português que operou em diversos

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âmbitos do texto localizadamente, mas com o todo sempre em vista. Por isso é interessante observar como o ethos se movi-menta sutilmente com a participação de um leitor explícito, que também trabalha como fiador do discurso e procura, com isso, amadurecer certas orientações do texto-primeiro. Vemos nesses excertos o quanto é pertinente para as reflexões sobre a produção editorial e para uma prática de edição proveitosa compreender o “processo pelo qual os diferentes atores envolvidos com a publicação dão sentido aos textos que transmitem, imprimem e lêem” (CHARTIER, 2002b, p. 61). E é preciso levar em conta, ainda, quanto esse leitor-primeiro, co-enunciador, não determi-na o texto, embora o faça pender para um lado ou outro, pois “não é o leitor que é seu autor essencial, mas o próprio texto, concebido como um dispositivo que organiza os percursos de sua leitura”; o leitor é “o ‘lugar’ a partir do qual [o texto] pode mostrar sua enunciação descentrada” (MAINGUENEAU, 1996, p. 59). No caso do tratamento editorial, trata-se de explicitar esse descentramento ainda em etapa autoral, de maneira que a versão oferecida a futuros leitores enseje firmemente sua legitimação, reconhecendo desde a formulação de sua tessitura a alteridade que todo texto publicado aspira a renovar constantemente.

AbstractMany editorial projects are looking forward to comprehend the processes involved in the cons-titution of authorship. Many evidences point out to the fact that the publication of a book implies many different social actors and technical devices. In terms of the editorial treatment of texts, on the textual materiality that will be published, there is a kind of debate about its ideas and organization, i.e. a kind of dialogue that takes place on the text body in which are proposed corrections and changes, and many questions are raised. Within the ambit of discursivity, this editorial practice implies lin-guistic maneuvers that reveal how, at this point, this text is still under construction. Despite the fact that the text has been structured as a final version, after going through this reading/diolo-gue process, it moves – sometimes towards new directions, sometimes emphasizing some traces or abandoning others. Considering all the aspects above, I take into account the notion of ethos as proposed by Dominique Maingueneau to analyze excerpts of the editorial treatment given to one version of “The Twelve Labors of Heracles”, for

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Referências

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which subtle changes in the discursive cenography necessarily change the ethos that take part of it, shading the myth.

Keywords: authorship, text edition, discursivity, ethos

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MAINGUENEAU, D. Pragmática para o discurso literário. trad. Mariana Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1996.POSSENTI, S. Observações esparsas sobre discurso e texto (notas de trabalho). Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, v. 44, p. 211-222, jan./jun. 2003.

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Colaboradores deste Número

ALINE RODRIGUES BENAYONDoutoranda e mestre em Lingüística pelo Programa de Pós-Graduação em Lingüística da UFRJ. Graduada em Letras (Português- Literatura) pela UFRJ.

ANA LÚCIA DOS PRAZERES COSTAMestre em Lingüística e Filologia pela UFRJ e o doutora em Lingüística pela mesma universidade. Leciona as disciplinas de Língua Portuguesa e Lingüística na Universidade Castelo Branco. Tem experiência de pesquisa na teoria da variação e mudança associada a hipóteses funcionalistas.

ANGELINA APARECIDA DE PINADoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas-Língua Portuguesa da UFRJ e professora substituta de Filologia Românica na UFRJ. autora da resenha de Desvendando os segredos do texto (revista Leitura: Te-oria & Prática), dos artigos “Iniciação às investigações sobre anguladores” (revista Soletras), “Da Lógica Formal à Semântica Cognitiva: considerações sobre as modalidades” (Revista Eletrônica do IH), e de trabalhos em anais de congressos.

CARLOS ALEXANDRE GONÇALVESDoutor em Lingüística pela UFRJ e professor de Língua Portuguesa da UFRJ. Pesquisador-bolsista do CNPq e estágio de pós-doutoramento em Lingüística na UNICAMP. Autor do livro “Flexão e derivação em português”, publicado pela Editora da Fac. de Letras da UFRJ em 2005 e coordenador, ao lado de Maria Lúcia Leitão de Almeida, do NEMP (Núcleo de Estudos Morfosse-mânticos do Português).

CÉLIA MARIA MEDEIROS BARBOSA DA SILVAMestre em Estudos da Linguagem, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é professora e diretora do Curso de Letras da Universidade Potiguar – UnP, pesquisadora do grupo D&G/UFRN e co-autora dos seguin-tes livros: Comunicação e Expressão I. Natal/RN: NEAD/UnP, 2006, v. 1. p. 162; e Comunicação e Expressão II. Natal/RN: NEAD/UnP, 2006, v. 2. p. 156.

CHRISTINA ABREU GOMESDoutora em Lingüística pela UFRJ e professora do Departamento de Lin-güística e Filologia da UFRJ, com pós-doutoramento na University of York, Inglaterra. tem publicado regularmente capítulos de livros e artigos em periódicos especializados na área da sociolingüística, mudança e variação lingüística, como Aquisição lingüística em contexto de input variável: a emergência dasvariantesdedativo. Revista de Estudos da Linguagem, v. 12 (2004) e Varia-ção e mudança na expressão do dativo no português brasileiro. In: MudançaLingüística em Tempo Real, Contracapa/Faperj (2003).

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CLÁUDIA RONCARATIProfessora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Univer-sidade Federal Fluminense, pesquisadora I do CNPq e membro da equipe científica do Projeto Estudos Sobre os Usos da Língua (UFRJ/UFF/UnB). Organizou livros e tem publicado artigos em capítulos de livros e revistas especializadas. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre variação sintática e processamento textual de base sócio-cognitivista, cujos resultados estão divulgados em artigos publicados e outros no prelo. É autora do livro O discurso do câncer (2004).

DÉCIO ROCHADoutor em Lingüística pela PUC-SP. Professor da UERJ. Publicou, entre outros títulos, Une approche discursive de la classe de langue étrangère en tant que lieu de travail, na D.E.L.T.A., vol. 19, fasc. 1, 2003; Enlaçamentos nos discursos da mídia sobre videojogos, em The ESPecialist, vol. 24, Número especial, LAEL, PUC-SP, 2003; co-autor de Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: o lingüístico e seu entorno, na D.E.L.T.A., , vol. 22, no. 1, 2006, e AC e AD: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. ALEA, UFRJ, vol. 7, no. 2, 2005.

IDA REBELODoutora em Linguística pela PUC-Rio. É professora na mesma instituição. Tem apresentado trabalhos em inúmeros congressos (no Brasil e no exterior) e tem feito conferências em diversas universidades, nomeadamente em Portugal. Publica, regularmente, em revistas da especialidade e é membro de projetos internacionais.

JOSÉ ROMERITO SILVAMestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutorando em Lingüística Aplicada pela mesma universidade. É profes-sor do curso de Letras da Universidade Potiguar, em Natal e coordenador pedagógico da Escola Estadual Dr. Antônio de Souza, em Parnamirim, RN. Publicou: Comunicação e expressão I. Natal, RN:NAD/UnP, 2006, v. 1. e Comu-nicação e expressão II. Natal, RN: ENAD/UnP,2006, v.2.

LUCIANA SALAZAR SALGADODoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Unicamp. Publicou: A inclusão personalizada, in Antas Jr., Dowbor & Silva (orgs), Desafios do consumo, São Paulo: Vozes, 2006; A interlíngua de ‘Atrás da catedral de Ruão’, Critica & Companhia, ano II, 2006; Um acontecimento discursivo sobre a terra, in Fernandes & Santos (orgs.), AD: objetos literários e midiáticos, Goiânia: Trilhas Urbanas, 2006; A jurisdição semântica de uma teoria que vai parar na escola”, Estudos Lingüísticos, v. 34, 2005; Um discurso da terra, um acontecimento, in AvePalavra, alto araguaia, v. 1, n. 5, 2004.

MÁRCIA CRISTINA PONTES VIEIRAMestre em Lingüística pelo Programa de Pós-Graduação em Lingüística da UFRJ. Especialista em Literatura Brasileira pela UERJ.

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MARIA ALICE TAVARESDoutora em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina, profes-sora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de Lingüística , com ênfase em Teoria e Análise Lingüística. Entre suas publicações mais recentes, encontram-se: Abordagem sociofuncionalista da mudança em tempo aparente. Revista do GELNE, v.6, nº1, João Pessoa, 2005, p.91-110; Então inferidor como marca de constituição da subjetividade e da instaciação de sentidos na entrevista sociolingüística. D.E.L.T.A., v20, nº1, São Paulo, 2004, p.77-95.

MARIA ANGÉLICA FURTADO DA CUNHAProfessora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Suas publica-ções mais recentes são: Corpus Discurso &Gramática: a língua falada e escrita na cidade de Natal. Natal:EDUFRN, 1998 (org.); Procedimentos discursivos na fala deNatal.Natal:EDUFRN, 2000 (org.); Lingüística Funcional: teoria e prática. rio de Janeiro:DP&A, 2003 (em co-autoria); Anais do X SEMINÁRIO DO GRUPO DE ESTUDOS DISCURSO & GRAMÁTICA. Natal:EDUFRN, 2006 (org.).

MARIA BEATRIZ NASCIMENTO DECATDoutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos da UFMG, onde de-senvolve pesquisas em sintaxe funcionalista, de orientação norte-americana, com ênfase na interação entre Gramática e Discurso. É autora de vários artigos, publicados no Brasil e no exterior e co-autora do livro Aspectos da Gramática do Português: uma abordagem funcionalista, Editora Mercado de Letras, publicado em 2001.

MARIO EDUARDO MARTELOTTADoutor em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994), onde atua como professor. Tem experiência na área de Lingüística, com ên-fase em Teoria e Análise Lingüística e Lingüística Histórica, pesquisando, principalmente, os seguintes temas: funcionalismo, mudança lingüística, gramaticalização, ordenação vocabular e advérbio. Mais recentemente publicou: Lingüística funcional: teoria e prática. Rio e Janeiro: DP&A, 2003 (em co-autoria); Gramaticalização. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2004 (em co-autoria).

MARIA ELIZABETH FONSECA SARAIVA Doutora em Letras pela UFMG, atua como professora dos cursos de gradu-ação e pós-graduação na mesma universidade. Dentre outras publicações de sua autoria, destacam-se: Buscar menino no colégio: a questão do objeto incor-porado em português(Ed. Pontes, 1997 ); Aspectos da gramática do português: uma abordagem funcionalista, Editora Mercado de Letras, 2001. Organizou, junto com Janice Helena C. Marinho, o livro Estudosdalínguaemuso: relações inter e intra-sentenciais, FALE/UFMG, 2005.

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MARIA DA CONCEIÇÃO AUXILIADORA DE PAIVA

Doutora em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Lingüística , com ênfase em Sociolingüística e Dia-letologia. Atuando principalmente nos seguintes temas: ordenação, função, cláusulas causais.

MARIA LUIZA BRAGADoutora em Linguistica pela University of Pennsylvania. Atualmente é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Teoria e Análise Lingüística, atuando principalmente nos seguintes temas: português do Brasil, gramaticalização, categorias cognitivas e orações de tempo.

NUBIACIRA FERNANDES DE OLIVEIRA. Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é profes-sora de Lingüística da mesma universidade. Entre suas publicações mais recentes, constam: Mecanismos de manifestação da subjetividade no texto argumentativo. In: FURTADO DA CUNHA, M.A. (org.); Procedimentos discursivos na fala de Natal: uma abordagem funcionalista. Natal. EDUFRN: 2000. (p. 111-169); Limitações da gramática tradicional quanto aos recursos de impessoalização. In: MOURA, D. (org.). Os múltiplos usos da língua. Maceió: EDUFAL: 1999. (p. 175-178).

PAULO OSÓRIODoutor em Linguística Portuguesa, com pós-doutoramento na PUC-Rio na área de Letras – Estudos da Linguagem. É professor na Universidade da Beira Interior (Covilhã, Portugal) e investigador, em Linguística Comparada, no Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa. É autor de livros e artigos (em Portugal e no estrangeiro) em revistas da especialidade. tem proferido conferências em universidades portuguesas e estrangeiras (no-meadamente PUC-Rio; UFF; UFRJ; USP; Heidelberg; Bonn; Caracas, entre outras). apresenta, regularmente, comunicações em congressos nacionais e internacionais

PATRICK CHARAUDEAUProfessor de Ciências da Linguagem na Universidade Paris Nord (Paris XIII) e diretor do CAD (Centre Dánalyse du Discours). Desenvolve pesquisas em análise do discurso sob a perspectiva comunicacional e seu objeto de estudo são os discursos midáticos. Autor de uma gramática francesa : Grammairedusens, publicada pela Hachette Paris, 1992; tem publicado inúmeros artigos e livros sobre o discurso. recentemente publicou um Dicionário de análise do Discurso com Dominique Mainguenaeau, traduzido e publicado pela Editora Contexto em 2004.

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ROBERTO GOMES CAMACHODoutor em Lingüística e Língua Portuguesa pela UNESP, Campus de Araraquara, com estágio de Pós-Doutorado na Universidade de Amster-dã. É professor do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da UNESP, campus de São José do Rio Preto. Atua como vice-coordenador do Grupo de Pesquisa em Gramática Funcional e como membro da equipe de pesquisadores do Projeto de Gramática do Português Falado nas áreas de Sociolingüística e Sintaxe Funcional. Publicou inúmeros artigos em revistas nacionais e internacionais, além de capítulos de livros em obras coletivas.

SANDERLÉA ROBERTA LONGHIN-THOMAZIDoutora em Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNI-CAMP), é professora do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da UNESP de São José do Rio Preto. Tem publicações em vários periódicos nacionais, tais como Estudos Lingüísticos, Sínteses, Alfa, Revista da Anpoll eVeredas.

SEBASTIÃO CARLOS LEITE GONÇALVESDoutor em Lingüística pela UNICAMP e professor do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da UNESP – Campus de São José do Rio Preto. É coordenador do Projeto ALIP (Amostra Lingüística do Interior Paulista), financiado pela FAPESP, e integra o Grupo de Pesquisa em Gra-mática Funcional do IBILCE/UNESP. Tem publicação em vários periódicos de circulação nacional, como ALFA – Revista Lingüística, Estudos Lingüísticos; RevistaSínteses, Revista Scripta, Revista Veredas, Cadernos de Estudos Lingüísticos, Revista Delta, Boletim da Abralin etc.

SÍLVIA REGINA NEVES DA SILVAMestre em Língua Portuguesa e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense. É professora das Faculdades Integradas Campo Grandenses. Desenvolve pesquisas na área da referencia-ção e de progressão textual em gêneros textuais da fala e da escrita.

VÍVIAN MEIRAMestre em Lingüística Histórica pela UFPB. Professora assistente de Língua Latina e Diversidade Lingüística do Brasil da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, campus XX. Publicou A variação no uso do modo subjuntivo: Um estudo sociolingüístico do português rural da comunidade de Morrinhos – BA no IV Congresso Internacional da Associação Brasileira de Lingüística - ABRALIN, 2005, Brasília, e Encontros e desencontros na realização da vibrante em coda silábica no Encontro Internacional de Fonética e Fonologia, Associação Brasileira de Fonética e Fonologia, 2004, São Luis, Maranhão.

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Normas de apresentação de trabalhos

1 a revista Gragoatá, do Programa de Pós-graduação em Letras da UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de interesse para estudos de língua e literatura.

2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo.

3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8 páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas cópias impressas sem identificação do autor, bem como em disquete, com indicação do autor, no programa Word for Windows 7.0, em fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer tipo de formatação, a não ser:

3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico).3.2 Margens de 3 cm.3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.3.4 recuo de 2 cm nas citações.3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA).3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e perí-

odicos.4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre

parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).

5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser apresentadas no final do texto.

6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do texto, obedecendo às normas da ABNT(NBR-6023).

Livro: sobrenome do autor, título do livro (itálico), local de publicação, editora,data.

Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

artigo: nome do autor, título do artigo, nome do periódico (itálico), volume e nº do periódico, data.

Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódi-cos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1, p. 81-104, jan./abr. 1989.

7 as ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa re-produção gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda, e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig. 2 etc).

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINEN-

SEInstituto de Letras

RevistaGragoatáav. Visconde do rio

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Próximos númerosNúmero 22tema: Relações latino-americanas: língua e literaturaOrganizadores: Eurídice Figueiredo e Lívia ReisPrazo para entrega dos originais: 30 de janeiro de 2007Ementa: A interlocução entre Brasil e América Hispânica: história, principais embates, pers-

pectivas. Exploração dos conceitos de América Latina e de região. O grande Caribe. Textualidades indígenas. Diglossia, monolingüismo: políticas lingüísticas. As línguas ocidentais e suas variações na américa. o ensino de língua estrangeira.

Número 23tema: Releituras da tradiçãoOrganizadores: Silvio Renato Jorge e Solange Coelho VerezaPrazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2007Ementa: Conceitos de tradição. Paradigmas da pesquisa em lingüística e literatura re-

visitados. Contribuições da tradição para a análise interpretativa e a leitura do contemporâneo. redimensionamento de pressupostos teóricos e metodológicos da investigação atual na área de Letras e Lingüística. Teóricos e pensadores – legados para o novo milênio.

Número 24tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destinoOrganizadores: Laura Padilha e Lucia HelenaPrazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na

estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas. O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África. Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias.

8 Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e abstract, em inglês, que não ultrapassem 250 palavras, bem como de 3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês.

9 Os autores deverão encaminhar, em folha separada, sua identifica-ção (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações etc.) em texto que não ultrapasse 6 linhas. Na mesma folha, devem constar o endereço, o telefone e o e-mail.

10 Os colaboradores terão direito a 2 exemplares da revista.11 os originais não aprovados não serão devolvidos.

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General Instructions for Submission of Papers1 The Editorial Board will consider both articles and reviews in the

areas of language and literature studies.2 In considering the submitted papers, the Editorial Board may

suggest changes in their structure or content. Papers should be submitted in floppy disks together with two printed copies, typed in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font 12, without any other formatting except for:

2.1 bold and italics indication;2.2 3cm margins;2.3 1cm identation for paragraph beginning;2.4 2cm identation for long quotations;2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)

for emphasis;2.6 italics for foreign words and book or journal titles.

3 Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no more than 8 pages.

4 Authors are requested to resort to as few footnotes as possible, which are to be placed at the end of the text. As for references in the body of the article, they should contain the author’s surname in uppercase as well as date of publication and page number in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).

5 Bibliographical references should be placed at the end of the text according to the following general format:

Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understandingse-cond language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994).

Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal (italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts. TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994).

6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend, and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.).

7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to 5 keywords, also in Portuguese and in English, are required.

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMI-

NENSEInstituto de Letras

RevistaGragoatá

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Niterói, n. 21, p. 3��-400, 2. sem. 2006400

8 Authors are requested to send in an abridged CV (name, institution, post, degrees, titles, latest publications, research interests, etc.), no more than 5 lines in length.

9 Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.