dislexia- visão fonoaudiológica e psicopedagógica

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1 Dislexia: Visão fonoaudiológica e psicopedagógica Sônia Moojen- Macio França in Transtornos da aprendizagem - Abordagem neurobiológica e multidisciplinar Newra Tellechea Rotta Desde o momento em que a alfabetização passou a ser um dos grandes objectivos da sociedade, a preocupação da comunidade cientifica tem-se centrado no desenvolvimento de estudos sobre o processo da aprendizagem e, particularmente, da não aprendizagem. Especialmente, o termo dislexia, na actualidade tem despertado muito interesse pela discrepância existente entre o conceito de inteligência e o desempenho escolar. Como explicar que alunos com condições intelectuais evidentes possam desempenhar-se tão mal diante de tarefas de leitura e de escrita? Uma pequena parcela de disléxicos, rompendo com todas as barreiras impostas, está entrando na universidade e requerendo o direito de promoção académica. O tema tem gerado questionamentos e a atenção de muitos especialistas, que ao mesmo tempo trazem significativos aportes diferenciados, criando nomenclaturas variadas e abrangências diferentes ao termo. Em primeiro lugar é necessário destacar a dislexia dentro de um amplo espectro de problemas de aprendizagem. O Quadro 12.1 criado a partir da classificação proposta por Moojen (1996; 1999;2004a.b), ilustra os diversos tipos de problemas capazes de interferir no desempenho escolar, que deveriam ser tratados com mais atenção por educadores, familiares e profissionais na avaliação do desenvolvimento humano geral. Neste quadro, situa-se a dislexia, na perspectiva que será tratada neste capítulo. O objectivo é apresentar a visão fonoaudiológica e psicopedagógica da dislexia, enfatizando o papel da linguagem no seu diagnóstico. São dimensionadas suas principais características, tipologia, avaliação e orientações específicas à escola. Ao final, o capítulo é ilustrado com apresentação de dois casos clínicos.

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Page 1: Dislexia- Visão fonoaudiológica e psicopedagógica

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Dislexia: Visão fonoaudiológica e psicopedagógicaSônia Moojen- Macio França

in Transtornos da aprendizagem - Abordagem neurobiológica e multidisciplinar Newra Tellechea Rotta

Desde o momento em que a alfabetização passou a ser um dos grandes objectivos da sociedade, a

preocupação da comunidade cientifica tem-se centrado no desenvolvimento de estudos sobre o

processo da aprendizagem e, particularmente, da não aprendizagem. Especialmente, o termo dislexia,

na actualidade tem despertado muito interesse pela discrepância existente entre o conceito de

inteligência e o desempenho escolar. Como explicar que alunos com condições intelectuais evidentes

possam desempenhar-se tão mal diante de tarefas de leitura e de escrita? Uma pequena parcela de

disléxicos, rompendo com todas as barreiras impostas, está entrando na universidade e requerendo o

direito de promoção académica. O tema tem gerado questionamentos e a atenção de muitos

especialistas, que ao mesmo tempo trazem significativos aportes diferenciados, criando nomenclaturas

variadas e abrangências diferentes ao termo.

Em primeiro lugar é necessário destacar a dislexia dentro de um amplo espectro de problemas de

aprendizagem. O Quadro 12.1 criado a partir da classificação proposta por Moojen (1996;

1999;2004a.b), ilustra os diversos tipos de problemas capazes de interferir no desempenho escolar, que

deveriam ser tratados com mais atenção por educadores, familiares e profissionais na avaliação do

desenvolvimento humano geral. Neste quadro, situa-se a dislexia, na perspectiva que será tratada neste

capítulo.

O objectivo é apresentar a visão fonoaudiológica e psicopedagógica da dislexia, enfatizando o

papel da linguagem no seu diagnóstico. São dimensionadas suas principais características, tipologia,

avaliação e orientações específicas à escola. Ao final, o capítulo é ilustrado com apresentação de dois

casos clínicos.

Caracterizando a dislexia Actualmente, observa-se um fenómeno de “vulgarização” do termo dislexia, devido a uma não -

uniformização nos critérios de abrangência do termo, o que gera uma confusão tanto no meio

académico quanto clínico. Em consequência, há um reflexo na forma como as informações são

veiculadas no meio científico e de comunicação social.

Há um sector que emprega o termo dislexia a todos os níveis de transtornos de aprendizagem da

leitura e escrita, enquanto em uma outra perspectiva, conforme explicita o Quadro 12.1

Quadro 12.1

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Os problemas na aprendizagemClassificação Características Prognóstico

Dificuldades de aprendizagem

Evolutivas

Dificuldades passageiras, relacionadas

com metodologia de ensino inadequada,

falta de assiduidade e problemas pessoais

ou familiares temporários

BOM - tendem a regredir com maior esforço do aluno ou ajuda pedagógica.

secundárias

Repercussão primariamente no

desenvolvimento humano em geral (de

ordem cognitiva, emocional e/ou

neurológica) e secundariamente no

desempenho escolar global. As queixas

principais são de carácter geral e

referem-se à falta de motivação,

desatenção, etc.

Depende do grau de gravidade dos quadros associados.

Transtornos da aprendizagem da leitura, escrita e matemática

Leve e moderado Problemas específicos na leitura, escrita

e matemática não decorrentes de

comprometimentos neurológicos,

emocionais ou sensoriais não corrigidos.

Observa-se remissão dos sintomas com o

tratamento. A diferença entre leve e

moderado é apenas quantitativa.

BOM com acompanhamento terapêutico.

Grave Gravidade dos sintomas (na ausência de

outros estressores ) e persistência ao

longo da vida, embora podendo ser

atenuada, mas não curada.

Dislexia

- Adquirida (secundária à lesão)

- Desenvolvimento (congénito)

RESERVADO (na dependência do nível de QI).

o termo dislexia está reservado ao nível grave dos transtornos da aprendizagem que, diferentemente

dos transtornos leves e moderados não é possível de cura.

Na comparação das duas concepções, tem-se uma consequência directa no estudo dessa

população, estabelecendo confusão sobre as estimativas e os dados de prevalência. Na mesma ordem

quantitativa, observa-se uma larga diferença entre os números apresentados por pesquisadores.

- Tallal e colaboradores (1997) referem que 20% da população mundial tem dislexia.

- A Associação Brasileira de Dislexia lança dados entre 10 e 15% da população mundial.

- Alvarez e colaboradores (1999) apontam 10% da população e, desses, 60 a 80% seriam do sexo

masculino.

- Morris (2002) reconhece que, nos Estados Unidos, cerca de 5 a 6% dos alunos de escolas publicas têm

transtorno da aprendizagem, dos quais 80% desses teriam dislexia (ou seja, de 4 a 4,85 dessa

população). Outros estudos falam que cerca de 205 da população pode ter “algum grau de dislexia”.

- Toro (1999), na Espanha, estima que cerca de 5% da população seja disléxica.

Page 3: Dislexia- Visão fonoaudiológica e psicopedagógica

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Nessas fontes de referência, muitas vezes não fica explicito se o percentual se refere à

população geral ou estritamente escolar.

Essa dessintonia merece uma reflexão. Seria necessário avolumar o número de disléxicos para

que seja tomada alguma atitude? Afinal, mesmo um transtorno que atinja 15 da população já configura

sua importante dimensão social. Com base nesse percentual, por exemplo, uma escola com 500 alunos

teria a chance de abrigar 5 disléxicos. Isso é relevante e mereceria um trabalho adaptativo às

necessidades desses alunos. Agora, se forem considerados os dados que indicam que 15%, na mesma

escola haveriam 75 disléxicos (conforme características e prognóstico reservado apresentado no Quadro

12.19. Na transposição para todas as escolas brasileiras, haveria, para cada 1 milhão de escolares, 10 mil

disléxicos, o que significa verdadeiramente uma situação catastrófica. Talvez o mais aceitável fosse

considerar os altos percentuais englobando todos os problemas de linguagem e aprendizagem, e nesse

caso, a dislexia provavelmente não atingiria 1% da população escolar.

Guardadas as especificidades de cada patologia, alguns erros inatos do metabolismo são de

prevalência menor do que 1% e já desencadearam uma mobilização capaz de criar uma lei sobre um

teste específico para o recém-nascido, o Teste do Pezinho. Diante do exposto e voltando à realidade das

escolas brasileiras, é possível repensar sobre dados de prevalência da dislexia. Da mesma foram, seria

de grande valia um estudo de base epidemiológica, com instrumentos padronizados na língua

portuguesa, que pudesse clarear o horizonte quantitativo.

Na actualidade, parece haver um consenso na comunidade científica e na prática clínica que as

características a seguir se relacionam à dislexia do desenvolvimento. Portanto:

É um transtorno específico das operações implicadas no reconhecimento das palavras (precisão

e rapidez) que compromete, em maior ou menor grau, a compreensão da leitura. As

habilidades de escrita ortográfica e de produção textual também estão gravemente

comprometidas. Normalmente, segundo Pavlidis (1990), os disléxicos estão atrasados na leitura

e na escrita, com relação a seus pares, em dois anos no mínimo (se a criança tem mais de 10

anos) e em um ano e meio (se tem menos de 10 anos). Esta consideração é importante, pois

condiciona a época do diagnóstico para o final da 2.ª ou início da 3.ª série.

É um problema persistente até a vida adulta (com atenuações), mesmo com tratamento

adequado, o que torna o prognóstico reservado. Os disléxicos podem chegar até à

universidade, mas isso exige um considerável esforço próprio. Margie Bruck (1990), em um

estudo comparativo entre disléxicos universitários e alunos de 6ª série (não disléxicos),

constatou que os disléxicos são mais lentos para ler palavras e pseudopalavas, beneficiando-se

mais do contexto ao ler, enquanto os alunos de 6ª série evidenciam rapidez igual para leitura

de palavras isoladas e em contexto. Portanto, apesar de um esforço continuado ao longo dos

anos, os disléxicos não automatizam plenamente as operações relacionadas ao

reconhecimento de palavras, empregando mais tempo e energia em tarefas de leitura, ou seja,

os leitores hábeis automatizam o reconhecimento de palavras, e os disléxicos, não.

Afecta um subconjunto, claramente minoritário, dos alunos com problemas na aprendizagem

da leitura e da escrita.

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Está presente desde os primeiros anos de escolaridade. Nos casos em que surgir mais tarde e

em decorrência de uma lesão cerebral, configura-se uma dislexia adquirida.

É um distúrbio com evidências genéticas que surge por estar associado a difernças funcionais

no hemisfério esquerdo.

- Um projecto realizado na Universidade de Colorado estudou a incidência de problemas de

leitura em gémeos monozigóticos e gémeos dizigóticos, justificando a existência de uma

influência genética nas habilidades implicadas no reconhecimento de palavras (Rack; Olson,

1993). Em outras investigações, cuja população estudada foi a de famílias com importante

número de disléxicos, os resultados encontrados definiram dois marcadores: no cromossoma

15 (Smith e tal., 1993) e no cromossoma 6 (Cardo e tal., 1994). Segundo Grigorenko e

colaboradores (1997), o fenótipo de dislexia que está ligada inabilidade para a leitura global da

palavra (uso da rota lexical) se relacionaria com a alteração do cromossoma 15, enquanto a

disfunção fonológica estaria ligada ao cromossoma 6. Outro importante pesquisador da

neurogenética, Galaburda (1999), em seus estudos de anatomia, demonstrou uma simetria no

plano temporal como suporte anatómico da dislexia.

É diagnosticada em indivíduos com capacidade intelectual normal. A maioria dos autores

Estabelece o nível acima de 85 na escala de WISC para o diagnóstico da dislexia, uma vez que

um QI dessa cifra poderia determinar as dificuldades nas habilidades nucleares da leitura,

particularmente para a compreensão. Quando a capacidade intelectual for abaixo de 85, as

dificuldades na leitura e escrita são diagnosticadas como dificuldades secundárias.

Ocorre em sujeitos que têm visão e audição normal ou corrigida e que não são portadores de

problemas psíquicos ou neurológicos graves que possam justificar, por si só, as dificuldades

escolares.

Pode estar presente mesmo em indivíduos que tiveram escolarização adequada, ou seja, não

trocaram de escola (língua materna) mais de duas vezes nos três primeiros anos escolares e não

faltaram mais de 10% de aulas nessa época, considerando também que estejam submetidos à

metodologia de ensino adequada (Rueda, 2003).

Supõe, como deficit primário, inabilidade do processamento fonológico e da memória.

- O comprometimento da linguagem dos disléxicos é específico do processamento fonológico,

enquanto outros sistemas da linguagem se encontram relativamente intactos. Lembrando que

toda a língua alfabética é fundamentada na relação fonema -grafema, os disléxicos, ao exibirem

representações fonológicas mal especificadas, adoptam um modelo diferente de descodificar

ou representar os atributos falados da palavra. Portanto, essa falta de sensibilidade fonológica

inibe a aprendizagem dos padrões de codificação alfabética subjacentes ao reconhecimento

fluente de palavras.

- Os problemas na representação fonológica têm como consequência a limitação da capacidade

de armazenar informações verbais na memória de curto prazo. Os disléxicos demonstram

deficiência para mapear sequências de fonemas e letras de palavras e dificuldades de

nomeação, ou seja, para encontrar palavras que requerem um acesso rápido a um rótulo verbal

, usando, muitas vezes por tentativa de adivinhação, palavras ligeiramente adequadas.

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Representa, em uma linha de desempenho quantitativo para a leitura, o extremo oposto da

população de hábeis leitores. É importante salientar que os disléxicos não diferem

qualitativamente dos sujeitos normo-leitores,

Requer um tratamento que envolve um processo lento, laborioso com as habilidades nucleares

envolvidas na leitura, conforme sugerem os dados dos estudos longitudinais de sujeitos

reabilitados (Rueda; Sanchez, 1994).

Necessita de um equipa multidisciplinar para seu diagnóstico e tratamento, bem como um

trabalho de apoio com a família e a escola.

- Os profissionais da equipa que trabalha com um disléxico, sejam neurologistas,

fonoaudiólogos, psicopedagogos e/ou psicólogos, devem procurar uma formação específica

nesta área, complementando sólido conhecimento teórico com a prática sobre esse tema.

Tipos de dislexia

Para classificar os tipos de dislexia, é necessário descrever as duas vias independentes

que possibilitam o reconhecimento de uma palavra escrita.

a via léxica, ou directa – na qual se estabelece uma conexão directa entre a forma

visual da palavra, a pronúncia e os significado na memória lexical (como se fosse uma

fotografia da palavra). Ocorre diante palavras familiares;

a via fonológica, indirecta, pré-léxica ou de subpalavras – é um processo de

recodificação fonológica que envolve a aplicação de um conjunto de regras de

conversão letra-som. Ocorre diante de palavras desconhecidas.

A Figura 12.1 apresenta o Modelo Dual, em que se pode observar, de forma objectiva, o percurso

das rotas lexicais.

Palavra escrita Codificação visual Léxico interno

Resposta falada

Recodificação fonológica

(b)(C)

(C)

(a) (a)

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Em princípio, um leitor experiente e fluente deve utilizar independentemente as duas vias. Ao

depender exclusivamente de uma ou de outra, estará sinalizando pouca destreza leitora, o que poderá

ou não fazer parte de um quadro de dislexia.

A partir do Modelo Dual é possível classificar a dislexia em três tipos:

1) Dislexia fonológica (sublexical ou disfonética)- caracterizada por uma dificuldade selectiva para opera

a rota fonológica durante a leitura, apresentando, não obstante, um funcionamento aceitável da rota

lexical; com frequência os problemas residem no conversor fonema-grafema e/ou no momento de

juntar os sons parciais em uma palavra completa. Sendo assim, as dificuldades fundamentais residem na

leitura das palavras não-familiares, sílabas sem sentido ou pseudopalavras, mostrando melhor

desempenho na leitura de palavras já familiarizadas. Subjacente a essa via, encontra-se dificuldade em

tarefas de memória e consciência fonológica. Considerando o grande esforço que fazem para

reconhecer as palavras, portanto, para manter uma informação na memória de trabalho, são obrigados

a repetir os sons para não perdê-los definitivamente. Como consequência, toda essa concentração

despendida no reconhecimento das palavras acarreta em dificuldades de compreensão do que foi lido.

2) Dislexia lexical (de superfície). – As dificuldades residem na operação da rota lexical (preservada ou

relativamente preservada a rota fonológica), afectando fortemente a leitura de palavras irregulares.

Nesses casos, os disléxicos lêem lentamente, vacilando e errando com frequência, pois ficam escravos

da rota fonológica, que é morosa em seu funcionamento. Diante disso, os erros habituais são silabações,

repetições e retificações, e, quando pressionados a ler rapidamente, cometem substituições e

lexicalizações; às vezes situam incorrectamente o acento prosódico das palavras.

3) Dislexia mista. – Nesse caso, os disléxicos apresentam problemas para operar tanto com a rota

fonológica quanto com a lexical. São assim situações mais graves e exigem um esforço ainda maior para

atenuar o comprometimento das vias de acesso ao léxico.

O papel da linguagem na aquisição da leitura e escrita: manifestações linguísticas nas diferentes fases da vida do disléxico.

Vários estudos têm demonstrado a estreita conexão entre a fonologia e o domínio da escrita e

leitura (Ferreiro; Teberosky, 1985: Rego; Buarque,1997; Cielo, 1998; Cupello, 1998; Capovilla 1999;

Menezes, 1999; Capellini; Ciasca, 2000; Meister e tal, 2001; Capellini; Oliveira, 2003). Essa questão

estimula trabalhos que levantem novas indagações e contribuições a respeito dos factores preditivos e

associativos aos problemas de aprendizagem. Ao mesmo tempo, observa-se um número

significativamente pequeno de pesquisas longitudinais com metodologia quantitativa abordando temas

como o desenvolvimento da linguagem oral e escrita, deixando uma lacuna importante na análise do

desenvolvimento humano (França,2003).

Com relação aos aspectos fonológicos da linguagem, a perspectiva realizada por França e

colaboradores (2004) estudou longitudinalmente a relação entre esse aspecto e alterações ortográficas

em uma escola particular da cidade de Porto Alegre. Aos seis anos de idade, 23 crianças da educação

infantil foram avaliadas quanto à aquisição da linguagem oral e divididas em dois grupos: aquisição

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fonológica completa (grupo-controle) e incompleta (grupo casos). No seguimento, aos nove anos de

idade, foram avaliadas quanto à escrita ortográfica (ditado e produção textual). Na comparação dos

resultados, verificou-se diferença estatisticamente significativa na quantidade de erros cometidos na

avaliação da escrita, apontando para a aquisição da linguagem oral como factor preditivo para o

desenvolvimento ortográfico. A Tabela 12.1, apresenta os resultados da comparação por meio de

ditado, o que permite investigar as dificuldades encontradas para escrever palavras eleitas pelo

avaliador.

Já na Tabela 12.2, os grupos foram comparados por meio da avaliação de uma produção textual

dirigida; portanto, os sujeitos usavam seu vocabulário e elegiam livremente as palavras que queriam

escrever, dentro da temática aplicada. Por tratar-se de uma actividade que não restringia o tamanho do

texto, o número de erros de cada criança foi transformado em percentual, considerando a quantidade

total de palavras escritas em sua redacção.

Com esses resultados, França e colaboradores (2004) consideraram que a linguagem é um

continuum, embora não afirmando que o mesmo tipo de alteração fonológica – troca ou omissão –

encontrada na fala se irá repetir exactamente na escrita.

Assim, considerando a dislexia um transtorno linguístico e a sua característica de persistência

dos problemas da infância à vida adulta, é possível que se descrevam manifestações nas diferentes

fases, traçando o caminho (ou descaminho) do desenvolvimento da linguagem. É importante destacar

que a presença dessas características, particularmente na pré-escola e séries iniciais, não determina o

quadro disléxico por si só. Servem, contudo de sinal de alerta para problemas presentes ou futuros no

desenvolvimento da linguagem escrita em geral.

TABELA 12.1ERROS NO DITADO: COMPARAÇÃO ENTRE OS GRUPOS

Erros/ tiposGrupo casos Grupo controle Teste t M-WMédia± dp Mediana Média± dp Mediana P P

Relação fonema-grafema 3,7± 3,0 2,0 1,8± 2,0 1,0 0,035* 0,013*

Regras contextuais 13,3± 5,1 13,0 8,8± 4,7 8,0 0,002* 0,002*

Regras arbitrárias 12,5± 6,1 13,0 8,9± 5,4 9,0 0,028* 0,032*

Total de erros 29,6± 11,6 33,0 19,5± 10,8 18,0 0,002* 0,002**P < 0,05, MW= Teste não-parametrico de Mann-Whitney

Figura 12.1 Representação do Modelo Dual, segundo versão de Jorm e Share (1983). (a) Via directa ou léxica. (b) e (c) via indirecta ou fonológica.

Na educação infantil (0 a 6 anos) observa-se:

certa lentidão no desenvolvimento das habilidades da fala e linguagem expressiva – de modo

geral, atrasando a aquisição dos fonemas e a automatização de uma fala semelhante ao padrão

dos adultos;

dificuldade em tarefas que exijam habilidades fonológicas, tais como dividir uma palavra em

pedaços e brincar com rimas;

dificuldades para conhecer as letras e evocar palavras (vocabulário restrito).

No período escolar observa-se:

desempenho inferior nas tarefas de habilidades fonológicas.

déficits na nomeação rápida;

Page 8: Dislexia- Visão fonoaudiológica e psicopedagógica

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dificuldades em aprender a ler e a escrever;

memória verbal de curto de curto prazo deficiente;

dificuldade de aprender sequências comuns (dias da semana, meses do ano):

dificuldades em língua estrangeira;

TABELA 12.2PERCENTUAL DE ERROS NA PRODUÇÃO TEXTAUL: COMPARAÇÃO ENTRE OS GRUPOS

Erros/ tiposGrupo casos Grupo controle Teste t M-WMédia± dp Mediana Média± dp Mediana P P

Relação fonema-grafema 3,8± 4,5 2,0 1,9± 2,7 0,8 0,134 0,174

Regras contextuais 5,9± 3,9 5,6 3,5± 3,8 2,5 0,035* 0,015*

Regras arbitrárias 2,1± 2,4 0,9 1,4± 1,9 0,8 0,269 0,477

Total de erros 12,6± 8,4 9,6 7,8± 7,3 5,9 0,033* 0,033**P < 0,05, MW= Teste não-parametrico de Mann-Whitney

dificuldades na matemática não aparecerão na capacidade de desenvolver o cálculo aritmético,

mas, em alguns casos, durante a tentativa de interpretar o problema lido.

Na fase adulta :

tendência de leitura lenta, embora alguns sejam capazes de ler correctamente;

dificuldade com a ortografia e produção textual;

dificuldade com língua estrangeira.

Avaliação da linguagem escrita do léxico

Inicialmente, tanto o fonoaudiólogo como o psicopedagogo podem avaliar a linguagem escrita do

disléxico, desde que relacionem os conhecimentos de aquisição de leitura, escrita e habilidades

fonológicas (Quadro 12.2). Os seguintes procedimentos são básicos:

Anamnese com pais ou cuidadores

Esse procedimento tem a finalidade sobre de obter sobre a história da criança, verificar se a experiencia

educativa foi normal, descartar problemas auditivos ou visuais, bem como examinar a ocorrência de

problemas semelhantes em familiares. O profissional precisa de estar seguro quanto à experiência

educativa da criança e a sua assistência às classes. Por isso também se justifica a investigação do

contexto educativo e familiar, identificando o que é exigido para a função de ler e escrever, que tipo de

ajuda a criança recebe para realizá-la e em que grau se responsabiliza.

Testes de leitura

A aplicação de um teste de descodificação de sílabas complexas, palavras e pseudopalavras tem a

finalidade de revelar o uso das vias de reconhecimento, a velocidade, a presença de substituições,

omissões, inversões, transposições, adições e ratificações.

A observação da leitura (silenciosa e oral) de textos tem como objectivo a análise de estratégias de

reconhecimento de palavras e de compreensão, velocidade, nível de esforço, tipos de erros, ritmo e

expressão, aproximação texto - olhos, movimento de olhos e cabeça, sentimentos expressos durante e

depois da leitura.

Testes de escrita

Page 9: Dislexia- Visão fonoaudiológica e psicopedagógica

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A aplicação de um ditado balanceado e padronizado e um ditado de texto, acompanhado de uma

análise quantitativa e qualitativa dos erros (vacilações, reescritas, sentimentos expressos) propõe-se a

avaliar a escrita. Também se analisa a produção textual para avaliar coerência, coesão, uso de

pontuação, concordância nominal e verbal, ortografia, etc.

Muitas vezes, é útil a análise de uma cópia de texto (máximo 5 minutos) para observar a distância

texto-olhos, porções copiadas, velocidade, tipos de erros, qualidade do grafismo, postura, etc.

Habilidades metafonológicas

Um teste de consciência fonológica que busca particularmente analisar habilidades se síntese,

segmentação, identificação, omissão, acréscimo, transposição de sílabas, fonemas e unidades

intrassilábicas, entre outras.

Outros

Há necessidade de testes referentes a habilidades de seriação, memória, fluência verbal ,

processamento auditivo, bem como uma análise minuciosa do material escolar e das fichas de avaliação,

desde o início da sua vida escolar.

Esse procedimento necessita ser complementado pelas avaliações neurológica, psiconeurológica,

psicodiagnóstica, entre outras, conforme a necessidade (processamento auditivo, ortóptica, etc.).

O resultado dessa exploração, depois de discutido em equipa leva:

1) ao estabelecimento de um ou mais diagnósticos (que poderão ser provisórios, inicialmente);

2) à determinação de prioridades de atendimento;

3) à descrição de estratégias para ler, reconhecer palavras escritas; à descrição do modo de

proceder ante textos e do nível de compreensão;

4) à valoração do contexto e, portanto, da distância entre o que é pedido à criança para fazer e o

que realmente está em condições de realizar com ou sem ajuda;

5) à orientação pontual aos pais e à escola;

6) à possibilidade de reavaliações e mudanças de prioridades.

Quadro 12.2ANÁLISE DA LINGUAGEM ESCRITA

Testes Observar

De leitura

De sílabas, palavras, pseudopalavras.

Uso das duas vias, velocidade, conversor grafema-fonema, substituições, omissões, inversões, transposições, adições, rectificações.

De textos(silenciosa e oral)

Estratégias de compreensão, compensação, uso das duas vias, velocidade, nível de esforço, tipos de erros, ritmo e expressão, aproximação texto-olhos, movimentos de olhos e cabeça, sentimentos expressos antes, durante e depois da leitura, etc.

De escrita

Cópia Distância texto-olhos, porções copiadas, velocidade, tipos de erros, qualidade do grafismo, postura.

Ditado balanceado análise quantitativa e qualitativa dos erros, vacilações, reescritas, sentimentos expressos

Ditado de texto Idem

Produção espontânea ou semidirigida

Clareza e conexão entre as ideias, coesão, uso de pontuação, concordância nominal e verbal, etc

Entrevista Sensações e sentimentos ao ter e escrever, tipo de leitura preferida, competências e dificuldades ao ler e escrever

O disléxico na escola

Page 10: Dislexia- Visão fonoaudiológica e psicopedagógica

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Durante o acompanhamento do disléxico, é necessário estabelecer uma sintonia entre todos os que

estão envolvidos com as questões de aprendizagem desse indivíduo. A família deve estar orientada

quanto às dimensões que envolvem o problema para poder melhor estabelecer o trânsito de

informações com o(s) especialista(s) e com a escola. Segundo Sanchez (1996), a formação dessa rede é

indispensável para avaliar os progressos, os pontos de dificuldades, os tropeços e a necessidade de

mudança de estratégias.

Considerando que é no ambiente escolar que as dificuldades aparecem de forma crucial, que as

condições intelectuais estão preservadas no disléxico e que não há cura plena para esse transtorno, uma

das tarefas mais importantes do psicopedadogo ou do fonoaudiólogo é garantir uma série de

adaptações pedagógicas na escola. O disléxico deve progredir na escolaridade, independentemente de

suas dificuldades em leitura e escrita. Deve estar muito claro que o problema não é devido à falta de

motivação ou à preguiça.

A seguir recomenda-se uma série de normas que poderão ser individualizadas para cada caso com o

objectivo de optimizar o rendimento e, ao mesmo tempo, tentar evitar problemas de frustração e baixa

auto-estima, muito frequentes nos disléxicos. Essas normas foram elaboradas com base em Artigas

(1999) e Schawytz (2006).

1) Atitudes

Dar a entender ao disléxico que o seu problema é conhecido e que será feito o possível para ajudá-lo.

Dar-lhe uma atenção especial e encorajá-lo a perguntar em caso de alguma dúvida. Para tanto seria

recomendável que o disléxico se sentasse perto do professor para facilitar a ajuda.

Comprovar sempre que o material oferecido para ler é apropriado para o seu nível leitor, não

pretendendo que alcance um nível leitor igual ao dos colegas.

Destacar sempre os aspectos positivos em seus trabalhos e não fazê-lo repetir um trabalho escrito

pelo facto de tê-lo feito mal.

Evitar que tenha que ler em público. Em situações em que isso é absolutamente necessário,

oportunizar que ele prepare a leitura em casa.

Aceitar que se distraia com maior facilidade que os demais, posto que a leitura lhe exige um

superesforço.

Nunca ridicularizá-lo.

2) Proposta de acção pedagógica

Ensinar a resumir anotações que sintetizem o conteúdo de uma explicação.

Permitir o uso de meios informáticos e de corretores.

Permitir, se necessário, o uso de calculadora e de gravador. Particularmente no ensino superior, o

disléxico é beneficiado ao gravar as aulas já que tem dificuldade para ouvir e escrever ao mesmo

tempo. A fita gravada lhe garantirá tranquilidade no momento de participar da aula e, ao mesmo

tempo, possibilitará ouvi-la diversas em casa para aprender, melhor o conteúdo.

Usar materiais que permitem visualizações (figuras, gráficos, ilustrações) para acompanhar o texto

impresso.

Evitar, sempre que possível, a cópia de textos longos do quadro de giz, dando-lhe uma fotocópia.

Diminuir os deveres de casa envolvendo a leitura e escrita.

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3) Aprendizagem de línguas estrangeiras

Considerando o esforço que os disléxicos fazem para dominar a fonologia de sua língua materna desde o

nascimento, é difícil também que eles dominem uma nova língua. Shaywitz (2006) sugere que, em caso

de muita dificuldade, seja requerida isenção de língua estrangeira, substituindo essa disciplina pela

elaboração de projectos independentes sobre conhecimentos relativos à cultura do país em que falam

esta língua.

4) Avaliação escolar

Realizar, sempre que possível, avaliações orais – conduta válida em todos os níveis de ensino,

particularmente no ensino superior.

Prever tempo extra como recurso obrigatório, não opcional, pois a capacidade de aprender do

disléxico está intacta e ele simplesmente precisa de tempo para acessá-la. Como o disléxico não

automatizou a leitura, terá que ler pausadamente, com muito esforço, e se apoiar nas suas habilidades

mais altas de pensamento. Ele precisa utilizar o contexto para entender o significado da palavra, um

caminho mais longo e indirecto e que requer um tempo extra.

Evitar a utilização de testes de múltipla escolha que, pelo facto de descontextualizarem as informações

e reduzirem o tempo de execução, tornam-se muito difíceis para o disléxico. Esses testes não são

indicadores do conhecimento adquirido por ele.

Valorizar sempre os trabalhos pelo seu conteúdo e não pelos erros de escrita.

Oportunizar um local tranquilo ou sala individual para fazer testes ou avaliações para que o disléxico

possa focar a sua atenção na tarefa que tem para realizar. Qualquer barulho ou distracção atrapalhará

a leitura, fazendo com que ele mude a atenção da leitura, o que interfere na performance no teste.

Estudos de caso

Com a finalidade de ilustrar os aspectos teóricos discorridos, seguem-se dois casos clínicos que

exemplificam a complexidade do estudo e o manejo das situações decorrentes da dislexia.

Caso 1: CRIANÇA

Daise foi encaminhada por uma psicóloga que avaliou a menina e suspeitou que tivesse dislexia pelas

dificuldades enfrentadas na alfabetização. A testagem psicológica (WISC) evidenciou condições

intelectuais adequadas. Depois de encaminhada à neuropediatria que encontrou “quadro compatível

com dislexia”, foi sugerida avaliação de linguagem escrita para confirmação do diagnóstico.

Conforme seu histórico escolar, Daise cursou a 1.ª série em 1993 e passou para a 2.ª com a

expectativa da família e da escola de que faltasse pouco para sedimentar a entrada no processo

alfabético. Teve aulas de reforço na escola mas foi reprovada ao final do ano. Durante o ano em que

repetia a 2.ª série, iniciou um tratamento psicopedagógico de orientação psicológica a fim de atenuar

sobre possíveis bloqueios que impediam o progresso escolar, conforme relatou a especialista. Ao final

do ano, Daise estava ameaçada de ser reprovada novamente e a mãe conseguiu, invocando uma lei, que

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ela fizesse provas em Março/96. Por essa razão, na mesma época, foi encaminhada para nova avaliação

para decidir, de facto, se ela repetiria a 2.ª série ou iria para a 3.ª.

Dos dados de anamnese, os mais significativos foram a história gestacional não-planejada, a

presença de muitas dores e a exigência de repouso; nasceu de parto demorado, mas obteve apgar 9;

custou a adaptar-se ao leite e utilizou o bico e mamadeira até aos cinco anos; tinha alterações do sono:

pesadelos e solilóquio. Na família, a mãe teve dificuldades de fala, o pai trocava sonoras por surdas na

escrita, e o irmão de 13 anos teve dificuldades de aprendizagem e foi reprovado na 1.ª, 3.ª e 5ª séries. A

síntese da avaliação da linguagem escrita demonstrou dificuldades significativas na evocação do nome e

do som das letras e, consequentemente, na descodificação de sílabas, palavras e pseudopalavras. Por

exemplo: na leitura de texto, na tentativa de reconhecer a palavra CUIDADO, verbalizou “su-i-do-da-do”,

para SOZINHO, “ co-ze-i-lho”. Essa descodificação, pela via fonológica e com erros de conversor fonema-

grafema, impedia o acesso ao léxico e a interpretação do texto. Dentre as avaliações de escrita, foi

apresentada a proposta de escrever a partir do livro ilustrado “A casa mal-assombrada”. Uma cópia da

sua produção escrita é apresentada na Figura 12.2.

Figura 12.2 Escrita espontânea de Daise a partir do livro “A casa mal-assombrada”

Merece destaque o modo como Daise escreveu a última frase, demonstrando seu cansaço na tarefa

de associar fonema-grafema e impedindo ao leitor identificar sua produção.

A equipe de especialistas, constituído por psicóloga, neurologista e psicopedagoga, estabeleceu,

então, o diagnóstico de transtorno grave da leitura e escrita (ou dislexia) do tipo misto, considerando-se

a sua evolução, bem como os critérios expressos pela CID-10:

grau clinicamente significativo de comprometimento nas habilidades escolares de leitura e

escrita bastante abaixo do esperado para uma criança de mesma idade, nível mental e

escolarização;

comprometimento desde os primeiros anos de escolaridade;

problemas persistentes sem evolução significativa, apesar de um trabalho refoprçado

pedagógico e tratamento psicopedagógico;

inteligência, medida pelo WISC, com a pontuação de 98 (nível médio);

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presença de antecedentes familiares com dificuldades escolares;

dificuldades que não sejam decorrentes de uma falta de oportunidade de aprender, de

descontinuidades educacionais (resultantes de mudanças de/na escola), de qualquer forma

de traumatismo de doença cerebral adquirida ou de comprometimentos na inteligência

global, bem como de comprometimentos visuais ou auditivas não-corrigidos.

O ano de 1996 foi marcado por um novo tratamento psicopedagógico e a troca de escola (de

carácter mais inclusivo), onde frequentou uma classe intermediária. Ao final do ano foi aprovada para a

3.ª série regular. A partir de 1997, houve progresso académico apesar da persistência das dificuldades

de leitura e escrita. Periodicamente era reavaliada, e as escolas por onde passou receberam

informações a respeito da dislexia e sobre o manejo da situação.

A Tabela 12.3 ilustra a evolução de seu perfil ortográfico e constata a persistência do

problema (embora com atenuações), o que caracteriza o portador de dislexia. Daise foi

reavaliada ao final do ano de 96, em Março de 1999 e em Julho de 2002.

TABELA 12.3DADOS COMPARATIVOS DAS FALHAS ORTOGRÁFICAS DE DAISE EVIDENCIADAS EM DITADO BALANCEADO DE MOOJEN -1996 A 2002

Março/1996 Dezembro/1996 Março/1999 Julho/2002

CONVERSOR FONEMA/GRAFEMA

Surda/sonora

Substituição aleatória

Inversão

Transposição

Omissão

Adição

80

1

11

0

5

63

0

9

2

0

0

1

4

2

6

0

4

0

0

1

1

0

0

0

0

0

0

0

REGRAS CONTEXTUAIS

r/rr; c/qu; g/gu; m/n

Transcrição da fala

Nasalização

Acentuação

18

3

2

8

5

30

6

5

11

8

16

5

1

2

8

18

3

2

4

9

REGRAS ARBITRÁRIAS

H J/g 1, li/lh

[X]

[S]

16

5

3

8

29

4

10

15

20

3

7

10

18

1

5

12

TOTAL DE FALHAS 114 68 42 36

Houve um progresso no desempenho ortográfico de Março a Dezembro de 1996. De 114 erros,

progrediu para 68. Em Março de 1999, fez 42 erros e em Julho de 2002, 36. Nessa ocasião, estava na 5.ª

série e ainda estava desfasada, uma vez que para esse instrumento a média esperada é de 16

erros e o desvio-padrão (DP) é de 13 erros. Sendo assim, Daise se encontrava a mais de um

DP da média para a 5.ª série. Com a orientação sempre dada às escolas que frequentou, ela

pode avançar no rendimento académico, apesar dos problemas para ler e escrever, sem baixar

a auto-estima e sem perder a vontade de aprender. Segue transcrição do depoimento escrito

recentemente.

Minha história escolar

Quando tinha 6 anos, enterei na primeira sere, mesintir mal. Porque meus colegas sabião, ler e escrever e eu não. A profesora me pasou, fiquei felis mas não sabia ler nem escrever.

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Sigundasere la foi rum rodei pela primeira vês e nova mente rodei soque ai fui para outro colejio chamado… fis CI uma clase especia para otipo de problema que eu tina e otros tipos de problemas mas o meu era deslequicia.Do CI pasei para a terseira sere gostei de fazer a terceira sere.Depoi a quarta sere e umpoco mas complicado mas foi bom também porque quando tinha duvidas perguntava e sempre me explicarão. Quinta sere foi bom cadaves aprendendo adorei terleito a quita sere.Sesta sere Mais matérias mais coisas para aprender e cadaves mai gostado de aprender.Sai do… e fui para o … fis supletivo pasci so que tive que prestar bastante a tensão porque estava fasendo na metade do ano dua seres sétima e oitava.Pasei para a escola… e fis na outra metade o primeiro ano do sigundo grau.E agora estou terminando a outra metade do segundo grau foi bom terpasado por todas as seres e espero continua gostando e aprendendo cadaves mais (sic).

Caso 2: ADULTO

Mário, 24 anos, cursando História em uma universidade do interior do Rio Grande do Sul, procurou

avaliação psicopedagógica em Junho de 2004, por suspeita de dislexia. Está fazendo disciplinas do

mestrado de Educação como aluno especial e expressa receio em fazer a prova escrita de acesso ao

curso.

Seu histórico é típico do quadro disléxico: achava-se “burro”, não entendendo como tinha que fazer

mais esforço que os demais para estudar.

Como é hábil na linguagem oral, conseguia “enrolar” os professores. Participava dos grupos de

estudo muito bem oralmente, apresentava trabalhos orais, mas evitava escrever.

Na avaliação da linguagem escrita, foi considerado:

dificuldade na descodificação de sílabas complexas – 11% de falhas (4% seria o esperado

para a 2.ª série, envolvendo substituições aleatórias e trocas de sonora-surda;

Dificuldade para descodificar palavras e pseudopalavaras: 8% de falhas. Chama a atenção a

dificuldade para descodificar a palavra “barulho” (buraco/baralho);

Leitura oral vacilante, inexpressiva, sem ritmo e com substituição de palavras

(egípcio/persa; espera/esperança; experiência/experimento, entre outras). Velocidade lenta

(média de 87 palavras por minuto), mas interpretação em muito bom nível.

Frequência significativa de erros ortográficos em ditado para adultos: 28 (média esperada

para o 3.º ano do 2.º grau: 7). Chamam a atenção erros primitivos como quimax/ clímax,

susuros, auparadágima, nessecidade, comfequição, cruucifiquiço;

Produção textual com falhas na estruturação do texto, além dos erros ortográficos

significativos.

O texto está transcrito a seguir:

No ano de 2001 prestei vestibular para o curço de relações publicas na iniversidade de …

passei e comecei a cruçar trez cadeiras na outra metade passei para o curço de História e deste

momento em diante passei a curçar 11 cadeiras para poder tirar o atrazo dos anos que na

frequentei a escola porque fiquei quatro anos parado em casa que morava em … com meus pais.

Fiz o meu curso em e meio ou melhor 3 anos meio tive que esperar devido ao tempo

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mínimo ezigído pelo meque.

No 3º semestre fiz 9 cadeiras, onde uma delas era a monografia. Tive que trancar devido

que não conseguia a escrever o que propunha ao professor no 4º semestre fiz denovo e mais

uma vez tive que trancar agora estou tentando de novo o professor num dia dise para eu

procurar a professora T, porque achava que eu era Dislequiso eu fui mas ela não pode me

ajuadar muito fez o que era possível ao alcance.

Os dados da avaliação, bem como a análise da história escolar pregressa e das condições

adequadas de inteligência do jovem, permitem diagnosticar um quadro de transtorno grave da

aprendizagem da leitura e escrita (dislexia) do tipo misto.

Mário tem plenas condições de prosseguir seus estudos académicos, desde que a universidade

seja sensível às suas dificuldades e permita condições especiais como não ter seus erros ortográficos

considerados e ser avaliado, preferencialmente, em arguição oral.

Considerações finais

Por certo, muito ainda deve ser investigado, particularmente nas questões neurológicas pertinentes

à dislexia. Além disso, a escola tem de entender melhor o quadro e organizar adaptações que façam

justiça às necessidades do disléxico, não o discriminando e promovendo sua auto-estima.

Ao analisar as políticas de educação, os disléxicos acabam se enquadrando no que a Lei de

Directrizes e Bases da Educação Nacional descreve como portadores de necessidades especiais. Não

obstante, sua situação requer pareceres específicos com o intuito de justificar recursos materiais e

humanos para implementar uma inclusão escolar eficaz. Também devem ser incrementados recursos

tecnológicos que possam auxiliar no desempenho da leitura e escrita por meio do incentivo ao

desenvolvimento de pesquisas na área.

Os casos aqui apresentados são evidência de que muitos disléxicos não perdem a vontade de

aprender e, por isso mesmo, estão entrando nas universidades, embora com enorme esforço pessoal.

Estará o ensino superior preparado para receber essa clientela?

Há um reconhecimento da sociedade de que a leitura e a escrita são habilidades importantes para o

sucesso profissional. Entretanto, portadores de dislexia poderão desenvolver outras habilidades e terem

sucesso profissional e social, sobretudo se forem diagnosticados precocemente e receberem orientação

adequada.

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA