discurso anticomunista católico imprensa rs

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA NÍVEL MESTRADO Ianko Bett A (RE)INVENÇÃO DO COMUNISMO Discurso anticomunista católico nas grandes imprensas brasileira e argentina no contexto dos golpes militares de 1964 e 1966 São Leopoldo, RS 2010

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA NVEL MESTRADO

    Ianko Bett

    A (RE)INVENO DO COMUNISMO Discurso anticomunista catlico nas grandes imprensas brasileira

    e argentina no contexto dos golpes militares de 1964 e 1966

    So Leopoldo, RS 2010

  • Ianko Bett

    A (RE)INVENO DO COMUNISMO Discurso anticomunista catlico nas grandes imprensas brasileira

    e argentina no contexto dos golpes militares de 1964 e 1966

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos.

    Orientadora: Prof. Dra. Helosa Jochims Reichel

    So Leopoldo, RS 2010

  • Ficha Catalogrfica

    Catalogao na Publicao: Bibliotecria Camila Rodrigues Quaresma - CRB 10/1790

    B565r Bett, Ianko A (re)inveno do comunismo: discurso anticomunista catlico nas grandes imprensas brasileira e argentina no contexto dos golpes militares de 1964 e 1966 / por Ianko Bett. 2010.

    261 f. ; 30cm.

    Dissertao (mestrado) Universidade do Vale do Rio dos

    Sinos, Programa de Ps-Graduao em Histria, So Leopoldo,

    RS, 2010.

    Orientao: Prof. Dr. Helosa Jochims Reichel, Cincias

    Humanas.

    1. Anticomunismo. 2. Anticomunismo - Igreja catlica. 3. Imprensa. 4. Golpe militar. I. Ttulo.

    CDU 282:329.15

  • Ianko Bett

    A (RE)INVENO DO COMUNISMO Discurso anticomunista catlico nas grandes imprensas brasileira

    e argentina no contexto dos golpes militares de 1964 e 1966

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre pelo Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos.

    Aprovado em / /2010

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________

    Orientadora: Prof. Dra. Helosa Jochims Reichel

    ____________________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Alfredo Gadea Castro (PPGCS UNISINOS)

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Claudio Pereira Elmir (PPGH UNISINOS)

    ___________________________________

    Prof. Dr. Rodrigo Patto S Motta (UFMG)

    So Leopoldo, RS 2010

  • A meus pais, Belmiro e Sonia, minha esposa Tais e

    a meus irmos Fabio e Fabiano. Pessoas fundamentais na minha vida.

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente agradeo a meus pais. Somente com a educao e todos os ensinamentos do Seu Belmiro (o negro) e da Dona Sonia que pude chegar at aqui. Com meu pai, tentei aprender que se uma coisa deve ser feita, ela deve ser muito bem-feita. Com minha me, aprendi que possvel fazer vrias coisas ao mesmo tempo (ela foi e tima me, tima dona de casa e tima profissional) e faz-las todas bem. Agradeo a meus irmos, Fabio e Fabiano. Com os dois, aprendi a ter persistncia na busca pelos objetivos, mesmo quando os obstculos se tornavam quase intransponveis. Alm de irmos, tenho dois grandes amigos, parceiros dos momentos de alegrias nas arquibancadas do Gigante da Beira-Rio, parceiros de praia, de churrascos e das nossas famosas loucuras de vero.

    minha esposa Tas, que teve toda a pacincia e compreenso nesses dois anos de muitas ausncias em que me dediquei ao mestrado. A sua constante manifestao de amor, que me proporciona alegria, tranquilidade e satisfao, em todos os instantes, foi fundamental nesse perodo. Tambm devo agradecer pelas pequenas coisas, desde as guloseimas e cafs trazidos nas horas de confinamento, pela boa vontade em ler todos aqueles chatos e extensos artigos de Histria, abrindo mo de seus afazeres profissionais e acadmicos, e at pelo seu companheirismo incondicional nas nossas sofridas corridas. Aos doutorandos e amigos Enildo de Moura Carvalho e Miguel ngelo da Costa, por terem me ajudado a pensar o projeto desta pesquisa. Agradeo, fundamentalmente, pelo incentivo, que fez com que eu acreditasse que seria possvel minha aprovao na seleo de mestrado. Aos colegas de curso Melina, Carina, Caroline (Ritinha), Joo, Jnatas, Mariluci e Jlio. Durante as discusses mais tericas e nas conversas informais que tivemos, por vezes regadas com boas doses de cevada, pude crescer e aprender muito. Tentei torn-los foucaultianos, mas, infelizmente, no obtive xito. Agradeo, tambm, nossa amiga e colega Ana Carla que, generosamente, abriu sua casa e nos recebeu, nos hospedou, e mostrou o caminho da diverso (nos horrios sem atividades da Anpuh) na longnqua e quente Fortaleza. professora Helosa Reichel, por sua orientao segura e sempre atenciosa. Agradeo, sobretudo, pela confiana, seriedade e autonomia concedida ao longo das etapas da pesquisa e pela disponibilidade com que me recebeu em sua casa, at mesmo nos momentos de seu descanso.

  • Aos professores do PPGH da Unisinos, dos quais tive o privilgio de ser aluno, em especial ao professor Claudio Pereira Elmir, pelas inmeras sugestes e contribuies em meu trabalho.

    Agradeo a todas as pessoas que contriburam direta ou indiretamente para minha participao no intercmbio entre a Unisinos e a Universidade del Centro de la Provncia de Buenos Aires (UNCPBA), em particular professora Marluza Marques Harres, coordenadora do PPGH da Unisinos, s professoras Mnica Blanco (minha orientadora em terras platinas) e Andrea Regera, pela cordial receptividade, e aos doutorandos Juan Manuel Padron e Victria Arrascaete, pelas sugestes na pesquisa e pelos agradveis momentos de confraternizao. secretria do PPGH, nossa querida Janana, sempre pronta a solucionar nossos problemas e sempre antecipando nossas obrigaes burocrticas.

    Aos meus professores da graduao Jos Remedi, Mozart Linhares da Silva e Slvio Correa, por despertarem em mim a paixo pela pesquisa em Histria.

    Aos companheiros de trabalho, Edson Melo (Melinho), Marcelo Moom Vasconcelos, Fbio Silva e Gerson Guimares, por terem proporcionado todo apoio e ajuda nesses dois anos. Seguraram a barra na minha ausncia sem nunca cobrar algo em troca. Tenho neles quatro leais amigos. Posso dizer (apropriando-me de uma frase do Melinho) que, sem dvida, eu os levaria para a guerra.

    Ao amigo (e afilhado) Rafael Farias, por ser um exemplo de profissional dedicado e ser um dos grandes incentivadores dos meus estudos.

    Aos ex alunos e, agora, grandes amigos Daniel, Verssimo, Caldas, Tonho, Paludo. Com esse quinteto o aprendizado constante.

    Aos amigos de toda hora, Renato e Camila, sempre prontos para um bom bate-papo, e para os amigos mais distantes, Irineu e Barboza, pela amizade incondicional h mais de dez anos.

    E, finalmente, Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), pela concesso da bolsa de estudos, sem a qual este trabalho no seria possvel.

  • [...] em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relaes de poder mltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e

    que estas relaes de poder no podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produo, uma acumulao, uma circulao e um funcionamento do discurso. No

    h possibilidade de exerccio do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla exigncia. Somos submetidos pelo

    poder produo da verdade e s podemos exerc-lo atravs da produo da verdade.

    Michel Foucault

  • RESUMO

    Brasil e Argentina, na dcada de 1960, estiveram mergulhados em profundas crises polticas, econmicas e sociais que culminaram com a deposio dos presidentes civis pelas respectivas Foras Armadas Joo Goulart, em 1964, no Brasil e Arturo Illia, em 1966, na Argentina. Paralelamente a este momento poltico, o catolicismo mundial sofreria intensas e profundas transformaes suscitadas pelas primeiras Encclicas Sociais de Joo XXIII (Pacem in Terris e Mater et Magistra) e pela realizao do Conclio Ecumnico Vaticano II (1962 a 1965). O foco da pesquisa recaiu sobre o discurso anticomunista catlico que, presente nos contextos acima citados, foi difundido na grande imprensa de Porto Alegre (Correio do Povo e Dirio de Notcias) e Buenos Aires (La Nacin, La Razn e Clarn) no interregno que abrange os anos de 1961 a 1967. Mediante a anlise das fontes, numa perspectiva que compreendeu trs nveis terico-metodolgicos complementares entre si, quais sejam, ao nvel do imaginrio, das representaes e dos discursos, e duas realidades (Brasil e Argentina), a pesquisa buscou identificar e analisar a manifestao anticomunista catlica nos jornais selecionados. Tendo como base o perodo que abrangeu as crises polticas anteriores aos golpes militares, o primeiro captulo demonstrou a variedade da presena do anticomunismo catlico na imprensa dos dois pases, as intensas repercusses e os debates travados neste contexto, a participao efetiva da imprensa na divulgao do anticomunismo catlico e, por fim, o arcabouo de representaes que foram operacionalizadas para a demarcao das identidades dos comunistas e dos anticomunistas. O debate surgido a partir da disjuno interna do catolicismo com as renovaes doutrinais e tericas na dcada de 1960, assunto desenvolvido no segundo captulo, mostrou que este aspecto repercutiu diretamente nas manifestaes anticomunistas dos catlicos. Nesse sentido, foi possvel identificar que o conflito interno da instituio configurou-se como um dos principais vetores das argumentaes anticomunistas construdas para representar grupos e sujeitos pertencentes aos quadros da Igreja considerados dissidentes ou progressistas, fossem eles hierarquizados ou componentes do apostolado laico. A anlise do perodo ps-golpes militares nos governos de ambos os pases foi desenvolvida no terceiro captulo. Alm de demonstrar a influncia, o apoio e a participao dos catlicos nos golpes militares, este trabalho identificou as principais reestruturaes sofridas pelo discurso anticomunista catlico a partir da representatividade da presena dos militares no poder. Na concluso, a pesquisa, alm de visualizar a predominncia e recorrncia do discurso anticomunista catlico nas grandes imprensas, possibilitou a compreenso da importncia e presena atuante do mesmo na consolidao de um imaginrio conservador, do ponto de vista poltico e religioso, e na experimentao de governos ditatoriais nas sociedades afetadas.

    Palavras-chave: anticomunismo catlico. grande imprensa. Brasil. Argentina. golpes militares

  • ABSTRACT

    During the decade of 1960, Brazil and Argentina were going through a deep political, social and economic crisis that took to the deposition of the civil presidents by the Army - Joo Goulart, in 1964, in Brazil and Arturo Illia, in 1966, in Argentina. Simultaneously to this political moment, the world catholicism was under intense transformations due to the first Social Encyclicals of John XXIII (Pacem in Terris e Mater et Magistra) and to the Ecumenical Council Vatican II (1962 - 1965). The focus of the research was the catholic anti-comunist discourse that was spread in the press of the city of Porto Alegre ("Correio do Povo" and "Dirio de Notcias) and of the city of Buenos Aires ("La Nacin", "La Razn" and "Clarn), between the years of 1961 and 1967. Through the analysis of the sources in a perspective that deemed three theoretical-methodological levels that are complimentar to each other - the imaginary, the representations and the discourse levels - and two realities - Brazil and Argentina - the study aimed to identify and analyse the catholic anti-comunist manifestation in the newspapers above mentioned. Based on the period of political crisis before the military coups, the first chapter of this work shows the variety of the presence of the catholic anti-comunism in the press of these two countries, the intense impact and the debates that were done in this context, the effective participation of the press in the divulgation of the catholic anti-comunism and, finally, the representations that were operationalized in order to define the identities of the comunists and the anti-comunists. The second chapter is about the discussion that emerged from the internal split of the catholicism due to the doutrinary and theoretical renovation in the decade of 1960. It had a direct influence in the catholic anti-comunism manifestations. In this way, it was possible to identify that the internal conflicts of the institution became one of the main vectors of anti-comunist manifestations built to represent groups and individuals that belonged to the Church and that were considered as "dissidents" or "progressists", either from the church hierarchy or from the laic apostolate. The analysis of the period after the military coups in the government of both countries was developed in the third chapter. Besides the demonstration of the influence, the support and the participation of catholic people in the military coups, this study identified the main reestructurations that the catholic anti-comunist discourse went through due to the representative presence of militars in charge. In the conclusion of this study, it is possible to realize the predominace and recurrence of the catholic anti-comunist discourse in the press, and to comprehend the importance and active presence of this discourse in the consolidation of the conservative imaginary - from a political and religious point of view - and to understand the experience of dictatorial governments.

    key words: catholic anti-comunism. Press. Brazil. Argentina. military coup.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    ADF Ao Democrtica Feminina

    AC Ao Catlica

    ALEF Aliana Eleitoral Pela Famlia

    AP Ao Popular

    CBA Cruzada Brasileira Anticomunista CELAM Conselho Episcopal Latino-Americano

    CGT Central Geral dos Trabalhadores CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNTI Confederao Nacional dos Trabalhadores da Indstria CL Clarn

    CP Correio do Povo DN Dirio de Notcias DSN Doutrina de Segurana Nacional FADEA Federao Argentina de Estudantes Ativos FAEDA Federacin Argentina de Entidades Democraticas Anticomunistas FLN Frente de Libertao Nacional JDC Juventude Democrtica Crist IBAD Instituto Brasileiro de Ao Democrtica IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais IPM Inqurito Policial Militar

    JEC Juventude Estudantil Catlica JOC Juventude Operria Catlica JUC Juventude Universitria Catlica LN La Nacin

    LR La Razn

    OEA Organizao dos Estados Americanos OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte RS Rio Grande do Sul TFP Tradio Famlia e Propriedade UJC Unio Juventude Comunista UCRI Unio Cvica Radical Intransigente

  • UCRP Unio Cvica Radical do Povo UDEA Unin Democrata de Entidades Anticomunistas UNE Unio Nacional dos Estudantes UNITAS Unidos en Cristo Frente al Comunismo

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ...................................................................................................................14 O Anticomunismo de Guerra Fria.........................................................................................14 O Anticomunismo Catlico ..................................................................................................17 O Anticomunismo em Perspectiva Historiogrfica ..............................................................19 Imaginrio, Representaes e Discursos: O Anticomunismo Catlico em Perspectiva Terica ..................................................................................................................................24 O Imaginrio Social ..............................................................................................................25 As Representaes Sociais....................................................................................................26 Os Discursos Enquanto Prticas Sociais...............................................................................28 Fontes de Pesquisa ................................................................................................................32

    2 O ANTICOMUNISMO CATLICO NAS GRANDES IMPRENSAS DE PORTO ALEGRE E BUENOS AIRES NO PERODO PR-GOLPE MILITAR.........................35

    2.1 JOO GOULART: DA CRISE DA LEGALIDADE (1961) AO GOLPE MILITAR (1964) ............................................................................................................................................... 35 2.2 ANTICOMUNISMO CATLICO NA IMPRENSA PORTO-ALEGRENSE ............... 40

    2.2.1 D. Vicente Scherer e as alocues semanais............................................................41 D. Vicente Scherer e a infiltrao comunista no governo do RS ..................................45

    2.2.2 D. Jaime de Barros Cmara nas pginas dos jornais porto-alegrenses ....................51 2.2.3 Os catlicos frente opresso comunista.................................................................54 2.2.4 Das notcias que vm de Roma ................................................................................55

    2.3 PRINCIPAIS TEMTICAS DO ANTICOMUNISMO CATLICO NA IMPRENSA PORTO-ALEGRENSE.................................................................................................................. 56 2.4 A POLARIZAO POLTICA NA ARGENTINA DA DCADA DE 1960 E O ANTICOMUNISMO CATLICO NA IMPRENSA PORTENHA ....................................... 66

    O Dr. Arturo Illia e a segunda experincia constitucional ps-Pern ...........................69 2.4.1 As Vozes do Anticomunismo Catlico na Imprensa de Buenos Aires ................74 2.4.2 Entidades Democrticas (Anticomunistas) da Argentina na Dcada de 1960 .........77

    As solicitadas da FAEDA .............................................................................................81 2.5 O PAPEL DA IMPRENSA NA DIFUSO DO ANTICOMUNISMO CATLICO .... 87 2.6 CONTEDO DAS REPRESENTAES DO ANTICOMUNISMO CATLICO NAS IMPRENSAS DE PORTO ALEGRE E BUENOS AIRES ...................................................... 98

    3 DISSENSOS E DISPUTAS NO SEIO DO CATOLICISMO VISTOS ATRAVS DA IMPRENSA...........................................................................................................................117

    3.1 O CONCLIO VATICANO II E AS ENCCLICAS DE JOO XXIII: RENOVAO E DIVISO DO CATOLICISMO ............................................................................................. 117

  • 3.2 EM RESPOSTA INDISCIPLINA: O DISCURSO CATLICO CONSERVADOR NAS PGINAS DOS JORNAIS ............................................................................................... 126

    3.2.1 Condenao ao Comunismo Continua em Pleno Vigor .....................................127 3.2.2 Quando os Progressistas se Tornaram Comunistas................................................140

    Crisis en la Iglesia Posconciliar? .............................................................................145 3.2.3 Llamado a la Disciplina: Na Ala de Mira dos Conservadores..........................149

    3.3 DEMARCANDO O PERIGO: AS ORGANIZAES DO APOSTOLADO DOS LEIGOS E A INFILTRAO COMUNISTA ........................................................................ 159

    A Capela de Cristo Obrero e os sacerdotes do clero secular ...................................160 D. Antonio Caggiano e as idias que confundem os catlicos....................................163 Os quadros da Ao Catlica brasileira e o perigo comunista ....................................165 A M-f dos comunistas ou a inocncia dos catlicos?...........................................170 D. Vicente Scherer e a Ao Popular ..........................................................................174 A presena de Calabar na Igreja ..............................................................................180

    4 ANTICOMUNISMO CATLICO DURANTE E PS-GOLPES MILITARES .......184 4.1 IGREJA APREENSIVA ANTE INFILTRAO COMUNISTA.............................. 184

    4.1.1 As Mulheres Gachas Contra o Comunismo .........................................................191 4.2 O GOLPE MILITAR DE 1964 E A NOVA ERA NA HISTRIA-PTRIA ........... 198

    4.2.1 Necessrio que se Punam os Vendilhes da Ptria .........................................210 4.2.2 D. Vicente Scherer e o Silncio Anticomunista.....................................................217

    4.3 ANTICOMUNISMO CATLICO NOS JORNAIS DE BUENOS AIRES PS-GOLPE MILITAR....................................................................................................................................... 221

    4.3.1 Os Quadros do Catolicismo Argentino e o Apoio ao Governo Militar..................225 4.3.2 Entidades Anticomunistas e o Golpe Militar .........................................................233

    El apoyo de FAEDA a la Revolucin Argentina .....................................................242

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................247 ARQUIVOS E FONTES DE PESQUISA ..........................................................................255

    REFERNCIAS ...................................................................................................................256

  • 1 INTRODUO

    O presente trabalho tem o objetivo de analisar o discurso anticomunista catlico nas grandes imprensas de Porto Alegre e Buenos Aires no contexto dos golpes militares da dcada de 1960 (1964 no Brasil e 1966 na Argentina). O recorte cronolgico estabelecido para a pesquisa (1961 a 1967) compreende um perodo de intensas agitaes polticas e sociais em ambos os pases. Nesse interregno de anos, dois grandes processos proporcionaram maior disposio para a manifestao anticomunista dos catlicos. Um deles, de cunho poltico, provocado pelas crises polticas dos governos dos presidentes Joo Goulart, no Brasil e Arturo Illia, na Argentina, que culminaram com a deposio de ambos pelas respectivas foras militares. O outro, um processo de cunho religioso, que resultou na renovao do catolicismo mundial a partir das novas Encclicas Sociais de Joo XXIII (Mater et Magistra e Pacem in Terris) como tambm, em maior amplitude, das novas diretrizes tericas e doutrinais estabelecidas no Conclio Ecumnico Vaticano II. O recorte cronolgico da pesquisa foi definido, ento, levando em conta as dimenses histricas desses processos. As Encclicas Sociais de Joo XXIII (publicadas em 1961 e 1963) e o Conclio (1962 a 1965) proporcionaram que um intenso debate acerca dos temas a que se referiam fosse difundido na imprensa e que se visualizasse parte dos conflitos internos da Instituio catlica. De outra parte, tanto no caso do Brasil quanto no caso da Argentina, foi necessrio percorrer desde o incio do mandato dos presidentes depostos at as respectivas quedas, portanto, 1961-1963 para Joo Goulart e 1963-1966 para Arturo Illia, como tambm percorrer os primeiros anos dos governos militares.

    O Anticomunismo de Guerra Fria

    A partir do fim da Segunda Grande Guerra (1945) e o surgimento dos Estados Unidos e da Unio Sovitica como duas superpotncias econmicas e militares, o mundo presenciou a escalada de um conflito que girou em torno da disputa entre esses pases acerca do aumento de suas reas de influncia(s), tanto poltica, ideolgica e economicamente. O referido conflito denominou-se Guerra Fria, que, em sua prpria denominao, caracteriza a forma como se desenvolveu ao longo da segunda metade do sculo XX, quer dizer, com constantes

  • 15

    ameaas tanto do lado capitalista quanto do lado comunista do desencadear de um confronto nuclear1.

    O combate ao comunismo pelos Estados Unidos recebeu uma forma institucionalizada com a doutrina Truman, em 1947, atravs da qual o governo estadunidense se comprometia a auxiliar financeiramente os pases que estivessem ameaados pela Unio Sovitica. Alm disso, com a ajuda financeira aos pases da Europa Ocidental atravs do plano Marshall e a criao da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN), que visou evitar ataque armado dos soviticos aos pases da Europa Ocidental e ao prprio Estados Unidos, o processo de combate ao avano comunista ganhou nova configurao, passando a se concretizar em uma luta que dividiu o mundo em dois blocos antagnicos: ocidental e capitalista versus oriental e comunista. Configurao que ser a tnica para compreender os conflitos armados que eclodiram em diversas regies do planeta a partir de ento2.

    No cenrio latino-americano, as turbulncias do mundo bipolarizado fizeram-se sentir com maior intensidade na dcada de 1960. A Revoluo Cubana de 1959 e a posterior declarao do governo revolucionrio como marxista-leninista (1961) provocaram a ruptura entre o regime castrista e o governo dos Estados Unidos3. A presena de uma nao socialista no continente, que at ento era dominado pela influncia do imperialismo estadunidense, acarretou significativas transformaes no modo como o perigo comunista deveria ser combatido. Para Motta (2002, p. 231), a ascenso de Fidel e seus barbudos ao poder mudou tudo, colocando esta parte do planeta no centro dos conflitos.

    Em consequncia desta nova configurao que marcava a presena do inimigo no continente, os Estados Unidos agiram no sentido de evitar que o exemplo cubano fosse reproduzido por outras naes. A aliana para o progresso surge nesse contexto. O governo dos Estados Unidos, ciente da gravidade dos problemas sociais e econmicos dos pases latino-americanos, fator este considerado como a principal via de fomentao do iderio comunista, criou a referida aliana como forma de proporcionar o desenvolvimento da regio. Contudo, essa poltica estadunidense exigia dos pases a realizao de reformas estruturais, o

    1 Segundo Rapoport e Laufer (2000, p. 69), a Guerra Fria entre as superpotncias e seus respectivos blocos

    constitui o marco de referncia obrigatrio para o estudo e a compreenso das relaes econmicas e polticas internacionais da poca. 2 Podem ser citados como exemplos a Guerra da Coria, ocupao do Canal de Suez e a Guerra do Vietnam.

    3 Com esse processo, conforme Reichel (2004, p. 203), as condies para a prtica ou para a divulgao das

    ideias socialistas na regio mudaram apenas na intensidade. A ofensiva norte-americana de controle ao chamado avano comunista

    sobre os demais pases do continente se intensificou e a exigncia de apoio incondicional s suas preenses de fazer da Amrica um bloco coeso e unido na luta contra o comunismo se tornou inegocivel.

  • 16

    que acarretou uma considervel presso sobre os pases latino-americanos para que efetivassem medidas anticomunistas4.

    A denominada crise dos msseis em Cuba (outubro de 1962) acirrou a Guerra Fria no continente latino-americano. A instalao de bases de lanamento de msseis soviticos na ilha proporcionou um aumento significativo do temor de um conflito nuclear fosse desencadeado no continente entre as duas superpotncias.

    Por outro lado, nesse contexto, as ideias socialistas, muito em funo do prestgio pela vitria da Rssia comunista contra o nazismo e o fascismo na Segunda Guerra, adquiriram considervel aceitao na Amrica Latina, sendo consideradas como uma das vias possveis para solucionar os graves problemas sociais e econmicos oriundos da desigualdade e pobreza. Quer dizer, no plano interno, houve um crescimento das organizaes de esquerda, com influncia das ideias socialistas, que repercutiram em diversos setores como nos trabalhadores, estudantes e, inclusive, no catolicismo, tanto nos quadros da hierarquia quanto nas organizaes do apostolado laico. Conforme afirma Reichel (2004, p. 199), em meio a um contexto de dificuldades econmicas e sociais vivenciadas em diferentes pases latino-americanos, manifestaes pblicas e greves coordenadas por sindicatos e setores da sociedade que expressavam suas convices e anseios polticos de mudana, tornaram-se no s frequentes como tambm objetivaram focos de conflitos entre segmentos sociais com interesses poltico-ideolgicos marcadamente opostos.

    Neste quadro, a configurao poltica de extremos capitalismo versus socialismo insere-se em um contexto social e cultural em plena ressignificao ideolgica. As certezas, que at ento tinham um carter permanente, foram constantemente colocadas em xeque, e um sentimento de mudana e de quebra de paradigmas tornou-se a fora propulsora para a articulao e a expanso dos movimentos sociais no continente latino-americano5.

    No cenrio de conflitos ideolgicos e de agudas tenses sociais, segundo Motta (2002), o anticomunismo tornou-se uma fora decisiva nas lutas polticas do mundo contemporneo, alimentado e estimulado pela dinmica do inimigo que era a sua razo de ser,

    4 preciso destacar que no se pode entender o anticomunismo no continente latino-americano apenas como um

    resultado da influncia dos Estados Unidos, neste contexto. Situando apenas no exemplo do Brasil e Argentina, esses pases, ao longo das primeiras dcadas do sculo XX, j haviam manifestado posicionamentos anticomunistas como se pode observar no governo de Getlio Vargas, no Brasil, e Pern, na Argentina. Portanto, como bem destacou Motta (2002) para o caso brasileiro, mas que pode ser entendido para o caso argentino, a influncia anticomunista dos Estados Unidos, na dcada de 1960, combinou com uma tradio anticomunista j existente na regio. 5 Conforme Padrs e Maral (2000), foi naquele contexto que surgiram movimentos como, por exemplo, a

    Teologia da Libertao, Comunidades de Base (Brasil); Movimiento de Sarcedotes del Tercer Mundo, Colunas Montoneras (Argentina); os Padres Sandinistas (Nicargua); Ejrcito Nacional de Libertacin (Colmbia).

  • 17

    o comunismo. Para o autor, a ameaa comunista na Amrica Latina serviu como um decisivo argumento para golpes e implantao de ditaduras militares, bem como para o convencimento social da necessidade de reprimir a esquerda. Todavia, Motta (2002) alerta para o fato de que se deve levar em conta que o anticomunismo assumiu diversas facetas/roupagens, e que este deve ser enfocado a partir da anlise do lugar de onde foi manifestado e a quem foi direcionado.

    Tanto o Brasil quanto a Argentina estiveram mergulhados em crises polticas na dcada de 1960 no apenas mas muito em funo deste cenrio internacional. Os perodos compreendidos entre 1961 a 1964, no Brasil, e 1963 a 1966, na Argentina, foram marcados por momentos em que a crise poltica chegou a nveis extremos, especialmente considerando as respectivas rupturas institucionais promovidas pelos golpes militares que derrubaram os governos civis de Joo Goulart (1964) e Arturo Illia (1966). O anticomunismo pode ser considerado como um fator que causou turbulncias nos governos dos dois presidentes depostos. Ambos foram acusados, com as devidas propores, no apenas de no combater, mas tambm de serem agentes diretos na promoo da infiltrao comunista nos respectivos pases.

    O Anticomunismo Catlico

    Considera-se, conforme salientou Motta (2002, p. 18), que a Igreja Catlica se constituiu, provavelmente na instituio no estatal (desconsiderando, claro, o Vaticano como Estado efetivo) mais empenhada no combate aos comunistas ao longo do sculo XX, sendo assim, diversos foram os contextos que deram especificidades s formas de atuao da instituio na luta contra o comunismo. Isso significa que o anticomunismo catlico, assim

    como outros anticomunismos, sofreu alteraes no tempo, tanto no que diz respeito aos argumentos quanto intensidade com que foi manifestado. Foi a partir da segunda metade do sculo XIX que o comunismo comeou a fomentar a preocupao nos catlicos. Rodeghero (2003, p. 53) aponta a encclica Quanta Cura, de 1864, como uma das primeiras referncias condenatrias ao comunismo. Nesse documento foi denunciado o desejo do comunismo de eliminar a religio do mbito familiar. As encclicas Quod Apostolici Muneris, de 1878, e a Rerum Novarum, de 1891, ambas editadas pelo Papa Leo XIII, tambm se apresentam entre os primeiros grandes documentos que indicam a condenao ao comunismo pelos catlicos. Naquele contexto, o comunismo representava uma

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    grande ameaa religio. Motta (2002) mostra que, na viso da Igreja, o alvo dos comunistas era a classe trabalhadora, especificamente os operrios. Da, a preocupao do catolicismo com o bem-estar social dos trabalhadores (e a incidncia das Encclicas neste aspecto) e, por consequncia, o incentivo ao desenvolvimento das corporaes crists como forma de enfraquecer o poder de influncia comunista. A questo comunista desencadeou tamanha preocupao aos catlicos que, para o autor, o despertar da instituio para o problema social decorreu, fundamentalmente, da ameaa comunista preponderncia do catolicismo na sociedade. Uma ameaa que ultrapassava as questes sociais e econmicas, pois se constitua em uma filosofia, em um sistema de crenas que concorria com a religio em termos de fornecer uma explicao para o mundo e uma escala de valores, ou seja, uma moral (2002, p. 20). A disposio anticomunista da Igreja Catlica foi intensificada na medida em que foi colocado em prtica um esforo em eliminar a influncia religiosa no qual o comunismo tentava se afirmar enquanto sistema poltico. Primeiramente, ento, a partir da Revoluo Bolchevique, na Rssia (1917), com a perseguio e execuo a religiosos, com o fechamento e destruio de templos, bem como atravs da disseminao do atesmo. Mas foi, sobretudo, no contexto da Guerra Civil Espanhola (dcada de 1930) que o anticomunismo catlico atingiu maior amplitude, uma vez que os alvos das perseguies antirreligiosas se desenvolveram em um pas tradicionalmente catlico (MOTTA, 2002). No ano de 1937, em meio a esse contexto, o Papa Pio XI editou a Encclica Divinis Redemptoris, na qual a tnica se revestiu na importncia de intensificar o combate ao comunismo. Foi na referida encclica que, pela primeira vez, a Igreja no se utilizou de ambiguidades para a caracterizao ao comunismo. Desta vez, tratar-se-ia do comunismo, identificado com a experincia sovitica e baseado no pensamento de Karl Marx (MOTTA, 2002, p. 22). Na dcada de 1960, o anticomunismo catlico sofreria novas transformaes, acompanhando, em parte, a prpria configurao e o combate ao inimigo que tambm haviam passado por significativas mudanas. A insero de novos elementos, naquele contexto, como por exemplo, a incorporao de novos pases ao comunismo, em que Cuba o caso paradigmtico, os continuados acirramentos polticos entre Estados Unidos e Unio Sovitica, sob a gide da Guerra Fria, fomentaram uma readequao da forma como o anticomunismo catlico, at ento, havia se manifestado. Nesse sentido, segundo Motta (2002, p. 246),

    A poca no comportava um comportamento unssono e ortodoxo em matria religiosa, elemento que combinou bem com o ambiente semifascista e ditatorial da fase anterior. Por outro lado, era uma estratgia inteligente

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    deixar as portas abertas para tentar atrair fiis de todos os credos para a frente anticomunista. Alm do mais, a postura ecumnica fortalecia a imagem de que o repdio ao comunismo era um sentimento universal e no atributo de um nico grupo.

    Por outro lado, nesse mesmo contexto, houve profundas transformaes na hierarquia catlica (Encclicas Sociais e o Conclio Vaticano II), principalmente quando se leva em conta o surgimento de tendncias renovadoras no interior da instituio. Para muitos catlicos, a questo comunista passou a ser um problema secundrio frente s mazelas e desigualdades sociais, especificamente na Amrica Latina. Nesse aspecto, ressalta-se que as prticas sociais

    exercidas pelos setores progressistas da instituio eram, muitas vezes, associadas s prticas comunistas. Contudo, apesar de a Igreja, na dcada de 1960, apresentar-se como uma instituio de certo modo dividida em suas concepes polticas e ideolgicas, o combate ao sistema marxista continuava, em especial pelos setores mais conservadores6 da instituio.

    As manifestaes anticomunistas de matriz catlica analisadas no decorrer deste trabalho podem ser consideradas como uma das formas possveis de se visualizar o conturbado e bipolarizado ambiente poltico dos anos de 1960 no Brasil e na Argentina. Em que pesem as especificidades, ambos os pases, nesse contexto, foram marcados por embates polticos e ideolgicos que repercutiram nos mais diversos setores das respectivas sociedades. Esse trao caracterstico dos anos 1960, permeado por debates, divergncias, protestos, violncia, represso, deve ser analisado luz das singularidades locais, que, de certo modo, estabeleceram parmetros diferenciados na forma como os problemas foram ressignificados ou relativizados, diminudos ou aumentados; mas, tambm, devem ser entendidos enquanto resultantes de processos que se desenrolavam no cenrio internacional.

    O Anticomunismo em Perspectiva Historiogrfica

    No Brasil, foi a partir de meados da dcada de 19807, na esteira da redemocratizao, que o anticomunismo tornou-se pauta da agenda de pesquisa de diferentes pesquisadores. A reviso da bibliografia pertinente ao tema, ainda que parcial, permite inferir que entre as problemticas abordadas, inserem-se aspectos relacionados ao imaginrio construdo pelo

    6 Conservadorismo ser utilizado e entendido no trabalho enquanto idias e atitudes que visam manuteno do

    sistema poltico existente e dos seus modos de funcionamento, apresentando-se como contraparte das foras inovadoras (Bonazzi, 2000, p. 242) 7 No ano de 1986, Jos Martins Ferreira defendeu a dissertao Os novos brbaros: anlise do discurso

    anticomunista do exrcito Brasileiro no Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

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    discurso anticomunista. Em boa medida, os estudos desenvolvidos abordaram questes relacionadas representao negativa do comunismo, os meios acionados e as instituies pelas quais foram difundidas.

    Entre alguns dos trabalhos que se inserem nessa perspectiva de abordagem, destaca-se a pesquisa desenvolvida por Bethania Mariani (1998) que, em sua tese de doutoramento, mediante o exame do tema em uma perspectiva que transitou entre a anlise histrica e lingustica do discurso, a autora analisou as formas discursivas e as representaes construdas acerca do Partido Comunista Brasileiro, na imprensa escrita da cidade do Rio de Janeiro, no interregno de 1922 a 1989.

    A pesquisa enfocou a produo e o funcionamento do discurso anticomunista enquanto recurso acionado no processo de representao do comunismo para alm do inimigo que deveria ser combatido. Sua anlise tambm buscou descortinar as estratgias de negao do outro, isto , do iderio comunista e seus adeptos. Ao problematizar os confrontos/encontros poltico-ideolgicos travados no perodo analisado, Bethania Mariani sublinhou aspectos relacionados produo e fixao de sentidos no imaginrio social e, por conseguinte, na memria coletiva, o que, segundo a pesquisadora, contribuiu para o processo de objetivao de identidades sociais nos cenrios e contextos sociais analisados.

    No contexto histrico-social da Intentona Comunista, insere-se o trabalho de Carla Luciana Silva (1998). A pesquisa realizada pela autora concentrou-se no perodo compreendido pelos anos de 1931 e 1934, e, mediante a anlise das campanhas anticomunistas, enfocou as locues que balizaram a gnese do anticomunismo, suas prticas e suas influncias no imaginrio social difundido no contexto interrogado. Entre alguns dos aspectos abordados pela autora como recurso acionado na campanha anticomunista, destaca-se a oposio do iderio comunista ao cristianismo8.

    No campo da produo brasileira sobre a temtica que foco de investigao desta pesquisa, tambm deve ser mencionado o estudo realizado por Rodrigo Patto S Motta (2002)9. O autor examinou os principais momentos em que a deflagrao das manifestaes anticomunistas se mostraram mais intensas. Motta, ao salientar a ditadura do Estado Novo e o golpe militar de 1964 como momentos/contextos de maior intensificao da propaganda

    8 Ver SILVA, Carla Luciana. Perigo vermelho e iluso comunista: configuraes do anticomunismo brasileiro

    da aliana liberal aliana nacional libertadora. Porto Alegre: Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Programa de Ps-Graduao em Histria, 1998. (Dissertao de Mestrado) 9 MOTTA, Rodrigo Patto S. Em guarda contra o perigo vermelho: O anticomunismo no Brasil (1917-

    1964). So Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2002.

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    anticomunista, procurou desvelar a existncia de diferenas e especificidades significativas entre um e outro evento.

    No que se refere ao papel da Igreja Catlica no processo de combate s ideias comunistas, o pesquisador considerou que a instituio manteve-se, no primeiro perodo, arraigada a uma postura ortodoxa, na qual o catolicismo assumiu a roupagem de principal fora do bem, em contraponto ao comunismo malfico. Para o autor, no perodo/contexto da dcada de 1960, a ortodoxia catlica foi uma das foras a mais no combate ao comunismo, sendo reforado por um tipo de ecumenismo anticomunista.

    Alm da anlise empreendida acerca das manifestaes anticomunistas de orientao catlica, Motta tambm problematizou as manifestaes anticomunistas de matriz nacionalista e liberal. Em seu trabalho, procurou compreender as prticas e representaes anticomunistas, principalmente no que se refere ao seu iderio, ao seu imaginrio e sua iconografia, de forma que o anticomunismo foi enfocado como pea-chave para o entendimento da deflagrao das ditaduras.

    De outra parte, e com um enfoque que estendeu a anlise do anticomunismo para alm da fronteira do Estado-Nao brasileiro, situam-se as pesquisas realizadas por Carla S. Rodeghero. Contemplando a temtica em diferentes nveis de sua formao acadmica, a historiadora abordou o anticomunismo em uma perspectiva que o insere no contexto do Brasil e tambm no dos Estados Unidos. Todavia, foi em sua dissertao de mestrado que Rodeghero10 no s inaugurou o estudo da manifestao anticomunista catlica em terras sul-rio-grandenses, como tambm props uma anlise do discurso anticomunista na imprensa catlica regional11. Alm dos peridicos catlicos, a pesquisadora valeu-se de documentos oficiais da Igreja, como, por exemplo, Encclicas Papais e Cartas Pastorais.

    A partir do conjunto documental analisado, buscou captar a especificidade do discurso anticomunista catlico frente as demais instituies que tambm combatiam o comunismo, tais como a Polcia, a Cruzada Brasileira Anticomunista (CBA), os complexos Institutos de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD) e a Tradio Famlia e Propriedade (TFP).

    10

    Em 1998 foi publicado o livro O diabo vermelho: imaginrio anticomunista e Igreja Catlica no Rio Grande do Sul (1945-1964). 11

    A historiadora utilizou como fontes os principais peridicos catlicos, entre estes destaca-se o Boletim Unitas, do rgo oficial da Arquidiocese do Rio Grande do Sul, o Jornal do Dia, de Porto Alegre, e o Correio Riograndense, de Caxias do Sul.

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    Em sua tese de doutoramento12, mediante uma anlise das vises construdas pela diplomacia estadunidense sobre o anticomunismo difundido no Brasil, a autora ampliou o espao de abordagem e buscou problematizar o processo de recepo do iderio anticomunista catlico de origem estadunidense entre os clrigos e fiis brasileiros13.

    Inserindo a temtica no mbito da Amrica Latina, e considerando que o objeto principal no tenha sido o discurso anticomunista catlico, deve-se mencionar o trabalho de Helosa Reichel (2004)14. Ao abordar a temtica no contexto latino-americano, e adotando como recorte cronolgico os primeiros anos da Guerra Fria (1947-1955), a historiadora procurou trazer tona a repercusso dos conflitos polticos e ideolgicos na grande imprensa gacha. A pesquisadora demonstrou a representao negativa que o comunismo assumiu em jornais de circulao regional, principalmente no caso da grande imprensa do Rio Grande do Sul15. Reichel demonstrou empiricamente como as representaes negativas construdas em torno do comunismo criaram condies para que o iderio comunista passasse a ser considerado a grande ameaa que a Amrica Latina deveria combater, assim como o nazismo havia sido.

    A reviso acerca da temtica relacionada propaganda anticomunista de orientao catlica na historiografia argentina demonstrou carncias de anlises mais pontuais e especficas sobre a temtica, o que revela um campo de pesquisa a ser interrogado com maior profundidade. Os estudos que contemplaram o tema do anticomunismo o inserem apenas com uma varivel de menor expresso entre outros aspectos da histria poltica e social argentina16.

    12

    RODEGHERO, Carla Simone. Memrias e avaliaes: norte-americanos e catlicos e a recepo do anticomunismo brasileiro entre 1945 e 1964. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Histria, 2002. (Tese de Doutorado) 13

    Dos trabalhos oriundos de suas pesquisas de mestrado e doutorado, a historiadora buscou diferentes abordagens e novas problemticas sobre a temtica. Ver: RODEGHERO, Carla Simone. Rindo do inimigo: o riso e o combate catlico ao comunismo. Anos 90, Porto Alegre, v. 12, p. 129-152, 1999; RODEGHERO, Carla Simone. Religio e patriotismo: o anticomunismo catlico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da Guerra Fria. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 22, n. 44, p. 463-488, dez. 2002; RODEGHERO, Carla Simone. A dinmica da diferena: uma anlise sobre o olhar norte-americano sobre o Brasil no incio da dcada de 1960. Histria, Debates e Tendncias, Passo Fundo, v. 4, n. 1, jul. 2003; RODEGHERO, Carla Simone. Confrontos no ps-guerra: o anticomunismo e as eleies de 1945 e 1947 em Porto Alegre. Histria Hoje, So Paulo, v. 3, p. 3-27, 2005; RODEGHERO, Carla Simone. Captulos da guerra fria: o anticomunismo brasileiro sob o olhar norte-americano (1945-1964). Porto Alegre: UFRGS, 2007. 14

    REICHEL, Helosa. O Perigo Vermelho na Amrica Latina e a Grande Imprensa Durante os Primeiros Anos da Guerra Fria (1947-1955). Dilogos, DHI/Universidade Estadual de Maring, v. 8, n. 1, p. 189-208, 2004. 15

    A historiadora utilizou como fontes os jornais Correio do Povo e Dirio de Notcias. 16

    Ver: ROMERO, Luis Alberto. Histria contempornea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006; LAPOPORT, Mario; LAUFER, Rubn. Os Estados Unidos diante do Brasil e da Argentina: os golpes militares da dcada de 1960. Revista Brasileira de Poltica Internacional, Braslia, v. 43, n. 1, p. 69-98, 2000; CAVAROZZI, Marcelo. Autoritarismo y Democracia (1955-1983). Buenos Aires: CEAL, 1983.

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    Com relao s manifestaes catlicas, estas foram apreciadas, em grande medida, a partir das relaes decorrentes da busca pela manuteno do Estado confessional e, por conseguinte, da influncia da instituio nas decises dos rumos governamentais do pas17.

    Todavia, segundo Romero (2006, p. 160), no contexto sociopoltico argentino em que o general Juan Carlos Ongana esteve frente da Junta de Comandantes, a censura se estendeu s mais diferentes formas de manifestao das ideias consideradas progressistas, que significavam, para a Igreja, a antessala do comunismo. Ainda segundo o pesquisador argentino, a censura e as crticas de vis conservador do Estado e da Igreja ganharam respaldo em amplos setores da sociedade portenha. Difundido no imaginrio social como um mal a ser extirpado, a propaganda anticomunista e a represso se tornaram ferramentas fundamentais para o combate ao iderio comunista que transitava entre segmentos sociais considerados progressistas.

    Conforme Susana Bianchi (2006, p. 13), o interesse pela Histria da Igreja Catlica contempornea na Argentina recente, remontando ao fim da ditadura militar em 1983, e suscita novas problemticas, novos temas e, principalmente, novas perspectivas de anlise. Conforme afirmou Juan Cruz Esqueviel (2000, p. 5), la historia del catolicismo no puede ser narrada sino en sintona con la evolucin del Estado y de los bloques de poder.

    Considerando essa produo historiogrfica, percebeu-se a carncia de anlises sobre o anticomunismo em quatro aspectos principais. Primeiramente, uma anlise mais especfica

    sobre o anticomunismo catlico na imprensa de Porto Alegre. No foram encontrados estudos que colocam em perspectiva o papel da grande imprensa na difuso do anticomunismo na capital do Estado do Rio Grande do Sul. Em segundo lugar, como se viu anteriormente, as pesquisas sobre o anticomunismo no Brasil (no s o catlico), acabaram por no romper com a fronteira estabelecida pelo golpe militar de 1964. Em terceiro lugar, pouco se falou sobre o anticomunismo catlico manifestado em decorrncia da postura ideolgica do catolicismo na dcada de 1960, especialmente levando em conta os embates internos surgidos na Instituio catlica entre grupos conservadores e aqueles considerados progressistas. E, por fim, tambm no foi possvel encontrar estudos que contemplam a temtica em solo latino-americano. So esses universos de pesquisa que este trabalho pretende inferir algumas contribuies. A anlise da manifestao anticomunista de matriz catlica em uma perspectiva que abrange as realidades de Brasil e Argentina, especificamente Porto-Alegre e Buenos Aires, na dcada de 17

    Para melhor entendimento das relaes entre o Estado e a Igreja na Argentina, ver: CAIMARI, Lila. Pern y la Iglesia Catlica. Religin, Estado y Sociedad en la Argentina (1943-1955). Buenos Aires: Ariel. 1994; BIANCHI, Susana. 1994. Catolicismo y peronismo: La religin como campo de conflicto (Argentina, 1945-1955). Boletn Americanista, Universidad de Barcelona, a. XXXIV, n. 44.

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    1960, busca contribuir no apenas para problematizar as formas do discurso, as estratgias de construo discursiva e o contedo das representaes difundidas nas respectivas imprensas como tambm trazer tona confrontos/encontros poltico-ideolgicos travados no perodo foco da investigao.

    De outra parte, deve-se salientar que a historiografia recente tem ilustrado diferentes possibilidades de anlise desses universos polticos. No entanto, o resultado da pesquisa, pretende contribuir no sentido de se pensar as representaes, o imaginrio e os discursos construdos acerca do comunismo, especialmente nos mbitos locais, regionais, assim como no caso da regio platina, uma vez que o trabalho busca compreender o discurso anticomunista de vertente catlica em solo sul-rio-grandense mediante a perspectiva de uma prtica que tambm foi difundida em solo portenho.

    Imaginrio, Representaes e Discursos: O Anticomunismo Catlico em Perspectiva Terica

    Luciano Bonet (2000) afirma que o anticomunismo deve ser entendido como um conjunto de ideias, de representaes e de prticas de oposio sistemtica ao comunismo. Desse modo, o objeto de pesquisa foi definido levando-se em conta toda a prtica de contrariedade ao comunismo proferida na grande imprensa por representantes da instituio catlica. Mesmo que seja possvel encontrar nos jornais pesquisados outras matrizes anticomunistas, o foco da pesquisa privilegiou os discursos catlicos, pois, conforme ressaltou Rodeghero (2003, p. 29), a Igreja Catlica contribuiu para a elaborao e divulgao das representaes anticomunistas [...] e, consequentemente, foi decisiva para a construo de um imaginrio em que o anticomunismo ocupava um lugar de destaque.

    Grande parte das pesquisas que se debruaram sobre o anticomunismo18 privilegiaram, no tratamento terico das fontes, as noes de representaes e imaginrio como sendo um conjunto de imagens e relaes de imagens produzidas pelos homens acerca de determinados aspectos da vida social. Sendo assim, a prxima etapa apresentar esses dois conceitos, colocando em perspectiva as suas possibilidades analticas. Posteriormente ser focalizada a noo de discurso enquanto prtica social, com o propsito de demonstrar como foram operacionalizados, no decorrer da pesquisa, esses trs aportes terico-metodolgicos.

    18

    Rodeghero (2003 e 2007); Oliveira (2007), Reichel (2004), Motta (2002).

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    O Imaginrio Social

    Para o entendimento do conceito de imaginrio preciso reportar Bronislaw Bascko (1985, p. 309), que afirma ser por meio de imaginrios sociais que um grupo designa sua identidade; elabora certa representao de si; estabelece a distribuio de papis e das posies sociais; exprime e impe crenas comuns [...]. Partindo dessa considerao, pode-se entender que todo e qualquer imaginrio construdo sempre se reveste de uma atribuio e uma finalidade, a qual est diretamente implicada com a mobilizao de um grupo (ns) perante a presena ou a possvel presena de outro grupo (outros). Isso implica, entre outras coisas, no processo de delimitao das nossas relaes e nossos modos de pensar e agir, tendendo a ser de maneira oposta das dos outros, e, ainda, e em decorrncia disso, a formao da nossa imagem e a formao de imagens daqueles a que nos opomos; enfim, a prpria tentativa de uma construo identitria tanto dos amigos quanto dos inimigos.

    A construo identitria parece ser o aspecto central daquilo que prope um imaginrio social em determinado contexto. Sendo assim, deve ser esclarecido o modo como as identidades so forjadas e constitudas para realmente balizar o entendimento por ocasio da anlise documental19. Kathryn Woodward (2000, p. 49), ao analisar como as identidades so construdas, sugere que elas so formadas relativamente a outras identidades, relativamente ao forasteiro ou ao outro, isto , relativamente ao que no sendo, na maioria das vezes, empregadas em termos de oposies binrias, implicando que um dos termos da oposio seja valorizado em relao ao outro, um passa a ser a norma e o outro o outro visto como desviante ou de fora20.

    Dessa forma, parte-se da hiptese que o imaginrio anticomunista catlico nas grandes imprensas portenha e porto-alegrense acabou sendo construdo juntamente com outras formas de manifestao anticomunista, em prol de uma espcie de proteo frente ao perigo da infiltrao comunista. Nessa concepo, preciso concordar com Bascko (1985, p. 310), ao 19

    preciso insistir nos termos forjadas e constitudas para designar as identidades, pois, conforme bem salienta Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 75), a identidade e a diferena tm que ser ativamente produzidas. Elas no so criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos ns que as fabricamos, no contexto das relaes sociais e culturais. A identidade e a diferena so criaes sociais e culturais. 20

    Conforme afirma Zygmunt Bauman (1999, p. 11-22), o estabelecimento de classificao essencial nos atos de excluso: cada ato nomeador divide o mundo em dois: entidades que respondem ao nome e todo o resto que no. Estas entidades podem ser includas numa classe tornar-se uma classe apenas na medida em que outras entidades so excludas, deixadas de fora. Assim, trabalhando com questes de formao/construo de identidades pode proporcionar melhores entendimentos acerca das representaes que enfatizam o outro. Bauman salienta que nesses processos o segundo membro no passa do outro do primeiro, o lado oposto (desgraado, suprimido, exilado) do primeiro e sua criao. Assim, anormalidade o outro da norma [...] a doena o outro da sade [...] o forasteiro o outro do nativo [...] eles o outro de ns.

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    afirmar que quando uma coletividade se sente ameaada por foras externas, ela operacionaliza o seu dispositivo imaginrio com a finalidade de unir, criar um esprito de corpo entre seus membros e possibilitar uma linha de ao conjunta. Para os propsitos deste trabalho, no cabe averiguar se realmente o perigo de uma infiltrao comunista era iminente ou no, mas preciso ressaltar que, tendo em vista o amplo combate travado atravs da palavra, a construo de uma realidade que criava o sentimento de medo comunista mobilizou foras dos mais diversos setores conservadores, em especial a hierarquia catlica e leigos em geral.

    Portanto, o imaginrio assume uma dupla funo:

    [...] interfere nas prticas dos indivduos ou instituies; forja sentidos, identidades; define comportamentos; inculca valores; atribui mritos; corrobora ou condena atitudes, dele derivando uma poderosa fora de instaurao ou de legitimao do social. Alm disso, o imaginrio prope esteretipos e paradigmas que so apresentados como verdades, definindo-se alguns papis como naturais e desqualificando-se outros considerados como inconcebveis. (RODEGHERO, 2003, p. 29)

    Partindo da considerao de que o imaginrio social torna-se inteligvel e comunicvel atravs da produo dos discursos nos quais e pelos quais se efetua a reunio das representaes coletivas numa linguagem (BAZCKO, 1985, p. 311), entende-se que seja necessria a incorporao do arcabouo terico que leve em conta a anlise das representaes, no enfoque especfico atribudo pelo historiador Roger Chartier.

    As Representaes Sociais

    Conforme Chartier (1998), a histria cultural tem como principal objeto identificar as formas como uma realidade social construda, pensada, dada a ler em diferentes momentos e em diferentes lugares. Nesse sentido, o historiador que se debrua sobre a anlise das representaes deve valer-se das classificaes, divises e delimitaes que so instrumentalizadas nos discursos, buscando com isso perceber a organizao das categorias de percepo do real que so, ou que devem, ser apreendidas pelo mundo social.

    Ainda, segundo o autor, as representaes do mundo social so sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Portanto, para cada caso, torna-se necessrio relacionar os discursos proferidos com a posio de quem os utiliza. A noo de representao em Chartier articula-se em trs nveis da realidade: primeiro, ao nvel das representaes

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    coletivas, que incorporam nos indivduos as divises do mundo social e organizam os esquemas de percepo pelos quais esses indivduos classificam, julgam e agem; segundo, ao nvel das formas de expresso e de estilo de identidade, no qual os indivduos ou grupos esperam que sejam reconhecidas e, por fim, ao nvel da delegao a representantes indivduos singulares, instituies ou instncias abstratas da coerncia e da estabilidade das identidades assim afirmadas (CHARTIER, 1998).

    Seguindo esta perspectiva terica, o discurso anticomunista catlico ser interrogado mediante a anlise das representaes, que so permeadas por enunciados, simbologias, esteretipos e ideias, de forma que permita apreender das fontes, entre outros aspectos, as plurais estratgias acionadas por segmentos da Igreja com a finalidade de conferir sentido realidade que foi dada a ler e a representar. Sobre esse aspecto, problematizar-se- o papel de segmentos que representam a Igreja Catlica no que se refere difuso do iderio anticomunista e s prticas de comunicao21, destinadas a expressar sua prpria viso de mundo22 em um contexto permeado por encontros/confrontos culturais, polticos e sociais, que se articularam entre si, objetivando disputas de poder23.

    Na tarefa de perceber a forma como uma realidade constituda se apresentou coerente de modo a ser aceita, a partir da sua apreenso pelo mundo social, e a forma como e agora fazendo referncia especificamente ao caso desta pesquisa, que abrange duas realidades, dois contextos so possveis encontrar representaes que permearam por ambos os discursos, apresentando aquilo que pode ser chamado de circulao de ideias, parece ser necessrio a utilizao, neste empreendimento, a noo de apropriao, tambm presente no trabalho terico de Chartier (1998). Uma das hipteses nesse sentido que, tendo em vista o golpe militar brasileiro ter sido deflagrado no ano de 1964, portanto dois anos antes do golpe argentino, pode ser possvel a existncia, por parte das manifestaes anticomunistas catlicas do pas argentino, de um processo de apropriao das ideias que circularam na imprensa (local e internacional) dois anos antes, e que diziam respeito acerca da realidade que se tentou construir na interpretao do caso brasileiro. Outra hiptese a de que pode ser possvel a apropriao de conceitos e ideias referentes ao comunismo universal, que podem ter adquirido

    21

    Comunicao aqui entendida como as formas pelas quais as ideias, as informaes e as atitudes sero transmitidas (BURKE, 2002, p. 135). 22

    Chartier citando Lucien Goldman (2002, p. 40), explica que viso do mundo significa o conjunto de aspiraes, de sentimentos, e de idias que rene os membros de um mesmo grupo (na maioria das vezes de uma classe social) e os ope aos outros grupos. 23

    Dando peso significativo a esses processos, Chartier (1998, p. 17) os traduz sob a forma de lutas de representaes (grifo nosso), que se destinam a compreender os mecanismos pelos quais um grupo se impe, ou tenta impor, a sua concepo de mundo social, os valores que so os seus, e o seu domnio.

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    ressignificaes especficas, de acordo com o contexto social e poltico dos pases alvos da pesquisa.

    Nesse caso, tambm ser til a noo de apropriaes entendidas por Chartier tambm como prticas de produo de sentido que esto diretamente relacionadas com as suas determinaes fundamentais, concretas, que so sempre sociais, institucionais e culturais e que, de certo modo, incidem na maneira como ser organizada a leitura. Nesse aspecto, deve-se prestar ateno no modo como foi construda a coerncia interpretativa (grifo nosso) que as proposies acerca de determinado grupo procura estabelecer no ato do enunciado. Em face disso, no se trata, de modo algum, de reduzir as prticas que constituem o mundo social aos princpios que comandam os discursos24, uma vez que cada srie de discursos deve ser compreendida em sua especificidade, isto , inscrita em seus lugares (e meios) de produo e em suas condies de possibilidade (CHARTIER, 2002, p. 77). O que importa, segundo Carvalho (2005, p. 155), tambm se apoiando em Chartier, que deve ser levado em conta que as formas, os dispositivos tcnicos, visuais e fsicos comandam, se no a imposio do sentido do texto, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriaes das quais so susceptveis25.

    Os Discursos Enquanto Prticas Sociais

    Algumas das ideias da proposta metodolgica que privilegia o tratamento das fontes na perspectiva foucaultiana podem contribuir para o desvelamento da manifestao anticomunista catlica nas grandes imprensas. De fato, tendo em vista a diversificada produo que o filsofo desenvolveu, seria imprudente no balizar os mtodos que seriam necessrios apropriao, em particular em funo desta pesquisa.

    preciso deixar claro que as manifestaes anticomunistas sero entendidas como discursos, ou seja, enquanto prticas sociais que so historicamente produzidas em funo de relaes de poder e saber que se implicam e inter-relacionam mutuamente. Portanto, o discurso ultrapassa a simples referncia a coisas. Ele existe alm da mera utilizao de letras, 24

    Conforme estipulava a linguist turn, que considera a linguagem como um sistema fechado de signos, cujas as relaes produzem por si mesmas a significao (2002, p. 88). 25

    Ainda para este autor, o conceito de apropriao apresenta uma dialtica entre a diferena e a dependncia. Os bens culturais so sempre produzidos segundo ordens, regras, convenes, hierarquias especficas. O ato de criao inscreve-se em uma relao de dependncia em face de regras, de poderes, de cdigos de inteligibilidade. Mas a obra escapa a tais dependncias justamente pelas diferenas de apropriao, socialmente determinadas de maneiras desiguais segundo costumes, classes, inquietaes: diferenas tambm dependentes de princpios de organizao e diferenciao socialmente compartilhados (2005, p. 157).

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    palavras e frases, no pode ser entendido como um fenmeno de mera expresso de algo: apresenta regularidades intrnsecas a si mesmo, atravs das quais possvel definir uma rede conceitual que lhe prpria (FOUCAULT, 1972). Durval Muniz de Albuquerque (2007, p. 102), reportando-se ao tratamento das fontes na perspectiva foucaultiana, afirma que preciso partir do pressuposto que o real uma construo discursiva e que, deste modo, historiador no pode tomar os documentos, as fontes histricas, como indcios de um real que pode ser desvendado, um real que estaria nas entrelinhas e seria reconstrudo pelo historiador, mas sim a fonte histrica sempre um monumento, ou seja, uma construo tambm histrica e discursiva.

    Com isso, ressalta-se que o discurso catlico nas grandes imprensas, ao se referir sobre o comunismo, no contexto da dcada de 1960, articulou determinados procedimentos que estariam na ordem do discurso26, ou seja, estavam dentro daquilo que poderia ser dito ou escrito e que imprimiam ou tentavam imprimir uma verdade sobre o comunismo. Isso permite pensar o anticomunismo catlico como constituidor de uma rede discursiva especfica que toma o comunismo como um objeto, tratando de sempre atualizar a sua constituio.

    Durval Muniz, ao analisar a metodologia que Foucault utilizou na obra que incide sobre Pierre Revire27, afirma que a apropriao dos discursos do parricida pela psiquiatria e pela justia tentam enquadr-lo dentro de suas grades conceituais, tentam apagar as suas diferenas, sua singularidade, sua estranheza, tentam torn-lo compreensvel e, portanto, domar sua rebeldia (2007, p. 104). Fazendo os devidos deslocamentos e adaptando esta metodologia para o enfoque desta pesquisa, pode-se trabalhar com os seguintes questionamentos: possvel pensar o discurso catlico como uma tentativa de reduzir o comunismo nos esquemas explicativos da prpria instituio, ou seja, de torn-lo compreensvel, inteligvel e, propondo, a partir disso, domar sua rebeldia? Ou, ainda, partindo do pressuposto de que preciso questionar o discurso anticomunista catlico na sua vontade de ser um discurso totalizante, emissor e pretensioso verdade, o referido discurso pode ser enquadrado numa forma de pedagogizao acerca do comunismo? Em quais termos ou qual dispositivo lanado neste aspecto?

    Levando em conta a metodologia referida e novamente reportando a Chartier (2002, p. 148), no se deve considerar o anticomunismo catlico como uma categoria da qual deveriam

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    Segundo Foucault (1996, p. 10), ningum entrar na ordem do discurso se no satisfizer certas exigncias, ou se no estiver, partida, qualificado para o fazer, da, preciso prestar ateno nos variados procedimentos que regulam, controlam, selecionam, organizam e distribuem o que pode e o que no pode ser dito (VEIGA NETO, 2003, p. 121). 27

    Trata-se da obra Eu, Pierre Rivire, que degolei minha me, minha irm e meu irmo.

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    ser determinadas apenas as suas variaes histricas, mas tambm o que se deve reconhecer so recortes singulares, distribuies especficas, positividades particulares produzidas por prticas diferenciadas que constituem figuras (do saber e do poder) irredutveis umas s outras.

    Para colaborar sobre as questes das caracterizaes impostas ao comunismo, a partir das manifestaes anticomunistas, utiliza-se nesta pesquisa a noo de ambivalncia. Antes da incluso do conceito, deve-se ter noo que uma vez pensados como os outros, os comunistas assumiram toda uma carga estereotipada que imacula uma hiper-representao acerca de suas possibilidades, transformando-os, muitas vezes, em aliengenas e exticos contribuindo para a caracterizao das imagens acerca do comunismo. Nesse sentido, afirma Motta (2002, p. 34), o comunismo habitava os pesadelos dos conservadores, medida que representava o fantasma da desagregao, da ruptura da ordem e da unidade orgnica da nao.

    Associando, ento, os mtodos em que as implicaes identitrias so construdas e operacionalizadas com as questes do imaginrio, percebe-se que ambos se implicaram mutuamente e atuaram em conjunto no processo de produo e construo de um certo comunismo, que poderia abarcar as mais distintas caracterizaes que sempre estaro no plano das oposies.

    Para pensar a introduo da ambivalncia no processo de construo dos argumentos anticomunistas, utiliza-se a conceituao trabalhada por Zygmunt Bauman, que a entende como uma desordem especfica da linguagem pela possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria. E a maneira como esta desordem percebida se reflete no desconforto que sentimos quando somos interpelados pela indeterminao que uma situao pode proporcionar (BAUMAN, 1999).

    A demonstrao das oposies, ou dicotomias, instiga a pensar no mundo estritamente racional e ordeiro, no qual as coisas estariam, a partir de divises, classificaes e localizaes, nos devidos lugares, completamente inseridas no projeto da modernidade guiada pela razo28. Entretanto, como afirma Bauman (1999, p. 23), o mundo no geomtrico. Ele no pode ser comprimido dentro de grades de inspirao geomtrica. Ou seja, o autor trabalha com a noo de que uma das consequncias imprevisveis das operaes binrias a prpria fabricao daquilo que ele denomina refugo, aquilo que perpassa pelo

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    Segundo Bauman (1999, p. 47), a ordenao o planejamento e a execuo da ordem essencialmente uma atividade racional, afinada com os princpios da cincia moderna e, de modo mais geral, com o esprito da modernidade.

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    indeterminvel ou porque desafiam a classificao e a arrumao da grade, portanto a prpria fabricao da ambivalncia.

    nesse deslocamento metodolgico que o comunismo pretende ser analisado na pesquisa, quer dizer, especificamente entendido enquanto objeto fabricado e constantemente reinventado, a partir discurso anticomunista catlico nas grandes imprensas brasileira e argentina, passando a ser indeterminado, impossvel de se abarcar em um conceito geral e definitivo, e por isso talvez a centralidade (e por que no a sua fora) se estabeleceu na ambivalncia.

    Ainda dentro dessa analtica discursiva, entende-se que pode ser importante uma tentativa de aproximao das condies que possibilitaram o possvel xito (no sentido da sua constante permanncia) discursivo do anticomunismo catlico nas grandes imprensas. Nesse caso, a proposta pensar na complexa articulao entre os sujeitos e os discursos colocando em evidncia a noo de interpelao que prima, justamente, em esclarecer as posies de sujeitos construdas nos discursos, as quais esto em estreita articulao com a efetividade/capacidade de assujeitamentos, quando dois discursos entram em campos de disputas (PINTO, 1989). Em outros termos, o sucesso interpelativo se estabelece quando um discurso exerce poder sobre outro, que passa, sem sofrer qualquer tipo de sano negativa, a se identificar com o discurso do primeiro. No entanto, a capacidade de o poder ser exercido pelo discurso est associado sua capacidade de responder a demandas, de se inserir no conjunto de significados de uma sociedade, reconstruindo posies de sujeitos (1989, p. 36).

    Desse modo possvel constatar que a condio de permanncia de um discurso pode estar relacionada com a efetividade com que o poder estabelecido na condio de criar novos sujeitos ou, nas palavras de Celi Pinto (1989, p. 42), o xito da interpelao se revela na capacidade de um discurso ocupar espaos no mundo das significaes que constitui os sujeitos aos quais se dirige. Em que pese a importncia que est sendo dada aos discursos enquanto agentes de interpelaes, necessrio esclarecer que o modo como o processo entendido no se restringe apenas no sentido do fluxo estabelecido a partir (grifo nosso) dos discursos, mas sim entende-se que o processo de assujeitamento equacionado de maneira relacional. Ou seja, preciso levar em conta a nfase proporcionada na articulao (grifo nosso) entre sujeitos e discursos pois, no entendimento de Stuart Hall (2000), da mesma forma que o sujeito pode ser convocado para assumir certas posies-de-sujeitos, ele tambm necessita investir em tal posio29. 29

    Para Srgio Costa (2006), o momento da constituio do sujeito na produo discursiva representa o fundamento da noo de sujeito descentrado por Hall. Trata-se de analisar a relao entre o sujeito e a formao

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    Fontes de Pesquisa

    Para o desenvolvimento da pesquisa foram utilizadas fontes jornalsticas, especificamente grandes imprensas de Porto Alegre e Buenos Aires. Como sinalizou De Luca (2008), a expresso grande imprensa costumeiramente utilizada de forma vaga e imprecisa. Entretanto, nesta pesquisa, utilizou-se para, conforme as idias da autora, designar o conjunto de peridicos que, na dcada de 1960, em Porto Alegre e Buenos Aires, compunham a parcela mais significativa dos peridicos em termos de circulao, perenidade, aparelho tcnico, organizacional e financeiro.

    A escolha dos jornais pesquisados, Dirio de Notcias (DN) e Correio do Povo (CP), no caso de Porto Alegre; Clarn (CL), La Nacin (LN) e La Razn (LR), para o caso de Buenos Aires, no foi aleatria. So jornais que se demonstraram em importantes instrumentos com significativo potencial para circulao de idias e de representaes que reforavam valores sociais, contribuindo, frequentemente, para produo de realidades objetivas. Por outro lado, so peridicos que permitem identificar a forma como foram representadas as mais diversas questes polticas, sociais e culturais do perodo estudado, principalmente acerca do anticomunismo catlico.

    Da parte dos dois jornais analisados de Porto Alegre, possvel considerar que no contexto da dcada de 1960 estiveram inseridos no mesmo processo de modernizao porque passou a imprensa brasileira a partir de 1950, principalmente se forem levadas em conta as estruturas administrativas. Entretanto, um fator diferenciador entre o CP e o DN se estabelecia na forma como o posicionamento acerca das questes polticas era manifestado. Enquanto o CP se mostrou com caractersticas mais imparciais30, o DN demonstrava claramente a sua veia conservadora31. Entretanto, ambos os jornais cederam majoritariamente seus espaos para os grupos conservadores, principalmente da Igreja Catlica.

    discursiva, de sorte a indicar os mecanismos que levam os indivduos a se identificar ou no com determinadas posies [...]. 30

    Fundado por Caldas Junior em 1895, o Correio do Povo, desde a sua fundao, se caracterizou como uma imprensa no posicionada politicamente. Na dcada de 1960, perodo em que seu mote publicitrio tambm era a imparcialidade, este matutino se configurava entre um dos principais jornais editados no Rio Grande do Sul e, o primeiro em vendas e circulao. Nos dias atuais, pertence ao grupo Record de comunicaes. 31

    Lanado em 1925 no Rio Grande do Sul, o Dirio de Notcias pertencia ao grupo dos Dirios Associados, empresa jornalstica de Assis Chateaubriand. Na dcada de sessenta, era o segundo jornal mais lido entre os matutinos do Estado. Seguia a linha editorial dos Dirios Associados, a qual desde os anos 1930 se mostrou antigetulista e, no contexto da dcada de 1960, profundamente antipetebista e anticomunista, inclusive, nas palavras do prprio Chateaubriand, as quais eram publicadas quase que diariamente em formato de artigo. Cessou definitivamente as atividades em 1979.

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    Por seu turno, na Argentina da dcada de 1960 tambm se iniciava um perodo com intensas transformaes na imprensa, a qual se inspiraria no estilo do semanrio estadunidense Time, principalmente entre as revistas. Os matutinos CL32 e LN33, figuravam entre os trs principais jornais de Buenos Aires poca, principalmente no que diz respeito ao nmero de vendas. Da mesma forma, o vespertino LR34 praticamente dominava o mercado da tarde de todos os vespertinos da Argentina, com quase meio milho de exemplares vendidos. Os trs jornais, em que pese suas diferenas, na dcada de 1960 estiveram lado a lado com as elites conservadoras, demonstraram-se como importantes vias de difuso das expresses de setores com estreita afinao com a Igreja Catlica e as Foras Armadas.

    Na anlise das fontes, optou-se pela utilizao do mtodo qualitativo, ou seja, procurou-se deter na lgica interna dos textos jornalsticos visando identificar possveis construes das estratgias argumentativas e as intencionalidades de seus autores, as quais tinham como objetivo, em ltima instncia, conduzir o leitor a uma interpretao especfica. Entretanto, nesse empreendimento, conforme ensinou Moraes (2007), procurou-se levar em conta tambm os contextos histricos e as situaes concretas em que os dados analisados foram produzidos.

    Levando em conta as especificidades de cunho histrico (anticomunismo catlico no Brasil e Argentina, no contexto dos golpes militares), historiogrfico (as lacunas de pesquisa e as contribuies j referidas) e terico (imaginrio, representaes e discursos), bem como o resultado da anlise das fontes, este trabalho foi dividido e organizado em trs captulos.

    O primeiro captulo compreende, inicialmente, uma apresentao do anticomunismo catlico nas grandes imprensas de Porto Alegre e Buenos Aires, no perodo que abrange da ascenso at a queda dos presidentes Joo Goulart (1961 a 1964), no Brasil e Arturo Illia (1963 a 1966), na Argentina. Ou seja, o primeiro objetivo demonstrar ao leitor os tipos de discursos anticomunistas que se enquadraram naqueles considerados de matriz catlica e quais as suas autorias, incidncias e, tambm, demonstrar e analisar as repercusses, confrontos e debates que puderam ser observados atravs dos jornais neste perodo. O segundo objetivo do captulo visa a analisar o papel das imprensas na difuso do anticomunismo catlico e, por fim, o terceiro objetivo do captulo analisar o contedo das

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    Fundado em por Rorberto Noble, em 1945, at hoje, ao lado do LN, um dos lderes em vendas de jornais na Argentina. 33

    O LN foi fundado em 1870 pelo ex presidente Bartolom Mitre. 34

    Esse vespertino foi fundado em 1 de maro de 1905, por Emilio B. Morales. Atualmente (desde 2001) pertence ao grupo Clarn.

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    representaes anticomunistas catlicas, quer dizer, quais os temas e as expresses mais recorrentes utilizadas pelos catlicos que fizeram presena em ambas as imprensas escritas.

    O segundo captulo analisa a disjuno interna surgida no catolicismo no contexto das renovaes tericas e doutrinrias suscitadas a partir das Encclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris e da realizao do Conclio Vaticano II. Percorrendo o perodo da publicao da primeira Encclica de Joo XXIII (1961), perpassando pela realizao das sees do Conclio (1962 a 1965) e chegando at as primeiras repercusses da Encclica Populorum Progressio, de Paulo VI (1967), este captulo analisa os debates surgidos no interior da instituio entre os setores conservadores e aqueles considerados progressistas, principalmente as organizaes do apostolado dos leigos, e qual foi o lugar do anticomunismo neste aspecto.

    O terceiro e ltimo captulo leva em conta os momentos das agitaes polticas que desencadearam os respectivos golpes militares (31 de maro de 1964, no Brasil, e 28 de junho de 1966, na Argentina) e os primeiros anos dos regimes militares ento instaurados. Portanto, tem o objetivo principal de verificar como se deu a prtica anticomunista catlica nas imprensas de Buenos Aires e Porto Alegre no perodo ps-golpes militares (at o fim de 1965, no Brasil, e at o fim de 1967, na Argentina). A questo que norteia o captulo est em verificar quais as reestruturaes que os golpes militares proporcionaram na construo dos discursos anticomunista dos catlicos nos jornais elencados para a pesquisa.

  • 2 O ANTICOMUNISMO CATLICO NAS GRANDES IMPRENSAS DE PORTO ALEGRE E BUENOS AIRES NO PERODO PR-GOLPE MILITAR

    O presente captulo tem o objetivo geral de analisar o anticomunismo catlico nas imprensas de Porto Alegre e Buenos Aires, no perodo que compreendeu da ascenso at a queda dos presidentes depostos pelos golpes militares da dcada de 1960, Joo Goulart (1961 a 1964) e Arturo Illia (1963 a 1966). Com vistas a atingir o objetivo proposto, o captulo foi organizado e estruturado em uma perspectiva que contemplou, inicialmente, as consideraes sobre o anticomunismo catlico na imprensa porto-alegrense para, em um segundo momento, dedicar-se ao anticomunismo catlico na imprensa portenha. Nesse sentido, o captulo prope apresentar os tipos de anticomunismos catlicos nas imprensas das respectivas cidades, analisar o papel das imprensas na sua difuso, e, por fim, analisar o contedo das representaes anticomunistas veiculadas atravs dos jornais elencados para a pesquisa.

    2.1 JOO GOULART: DA CRISE DA LEGALIDADE (1961) AO GOLPE MILITAR (1964)

    Em agosto de 1961, o presidente Jnio Quadros, em um ato que persiste at hoje sem maiores esclarecimentos, renunciou ao cargo para o qual fora eleito pelo voto popular. A

    Constituio da poca estabelecia que, no caso de renncia do Presidente, o vice, na poca Joo Goulart, tambm eleito pelo voto, automaticamente assumiria a Presidncia da Repblica. Naquele contexto j se percebia a influncia do mundo bipolarizado, caracterstico da Guerra Fria, e o impacto da revoluo cubana cada vez mais ecoava nos pases latino-americanos. Os setores conservadores no estavam satisfeitos com alguns atos do Presidente Jnio Quadros, especialmente pela sua poltica externa caracterizada pela aproximao com os pases comunistas. A condecorao por este a Che Guevara com a medalha da Gr-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, distino concedida apenas para altos escales da sociedade civil e do meio militar, causou espanto, indignao e aumentou a desconfiana. No momento da sua renncia, o vice, que detinha todos os direitos e prerrogativas para assumir o seu lugar, estava na Repblica Popular da China realizando acordos de comrcio com este pas. Foi o estopim mais do que necessrio para que a sua posse fosse embargada pelos ministros militares de Jnio Quadros, os quais viam em Joo Goulart algum que cooperaria para aumentar a onda de esquerdismo no pas, alm de este ser considerado um

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    representante da ala esquerda do trabalhismo petebista de Getlio Vargas, fator que tambm causava desgosto pelos grupos conservadores. Segundo Rodrigo Motta (2002), a possibilidade de Jango assumir o poder poderia significar a ascenso de um dos principais responsveis na transformao do PTB em aliado do PCB, algo que poderia permitir o recrudescimento da infiltrao comunista.

    O Brasil viveu instantes conturbados de pr-guerra civil, causados pela tentativa de no permitir a ascenso de Goulart Presidncia. Esta manobra recebeu uma contrarresposta quando o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado de Jango, liderou o movimento conhecido pelos estudos histricos como Legalidade35. A articulao deste movimento, que obteve a participao do ento III Exrcito (hoje Comando Militar do Sul), proporcionou que a Constituio fosse, em parte, cumprida. Jango assumiu a presidncia, mas sem adquirir os plenos poderes de Presidente, uma vez que, atravs de uma emenda parlamentarista, o Congresso detinha uma maior influncia nos atos governamentais. Mesmo assim, a ascenso de Goulart ao poder foi um divisor de guas nos confrontos polticos da poca, medida que, ao mesmo tempo em que ocasionou um fortalecimento dos setores de esquerda, permitiu uma motivao para a organizao dos grupos anticomunistas (MOTTA, 2002). A partir do momento em que o novo presidente deu sinais de continuar com a poltica externa do governo de Jnio Quadros, caracterizada pela aproximao diplomtica com os pases no alinhados com os Estados Unidos, os conservadores aumentaram sua oposio e a sua reao frente a Jango36. O anncio, em novembro de 1961, do reatamento das relaes diplomticas com a Unio Sovitica proporcionou protestos nos mais diversos setores dos grupos conservadores e especialmente, como se ver mais adiante, na Igreja Catlica. A indignao ganhou maior amplitude, pois o anncio do referido reatamento coincidiu com a data comemorativa da Intentona Comunista de 1935, episdio constantemente rememorado pelos anticomunistas para denunciar, na sua verso, o derramamento de sangue proporcionado pelos comunistas37. 35

    Ver em Ferreira (1997). 36

    Conforme explicam Rapoport e Laufer (2000), Joo Goulart continuou com as posies da poltica externa nos princpios da Poltica Externa Independente (PEI), formulados ainda na presidncia de Jnio Quadros. A referida poltica preconizava uma melhor insero brasileira no cenrio poltico e econmico internacional atravs da promoo da paz mundial, a coexistncia pacfica entre as superpotncias e o desarmamento, assim como a defesa dos princpios de autodeterminao e no interveno. Procurava, acima de tudo, intensificar as relaes comerciais com todas as naes, incluindo as do bloco sovitico, buscando com isso aumentar o mercado externo para os produtos primrios brasileiros. 37

    Os discursos emitidos pelos catlicos na imprensa de Porto Alegre acerca da polmica envolvendo o anncio do reatamento das relaes diplomticas com a Unio Sovitica sero analisados oportunamente no decorrer do trabalho.

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    No incio de 1962, a poltica externa do governo novamente esteve no alvo dos anticomunistas. Desta vez, a motivao se deu em funo do posicionamento do Itamaraty frente a Cuba. Com o alinhamento deste pas esfera comunista, os Estados Unidos intensificaram a implementao de medidas para isolar a Ilha dos demais pases do continente, buscando a sua expulso da Organizao dos Estados Americanos (OEA), e promover a retirada de Fidel da presidncia. Contudo, na conferncia dos Chanceleres dos pases americanos, em Punta del Leste, o governo brasileiro votou tanto contra a expulso quanto contra qualquer tipo de interveno armada em Cuba. Os anticomunistas consideraram essa postura como mais um indcio da influncia comunista no governo. Para eles, o Brasil deveria apoiar a ofensiva estadunidense e colaborar com a erradicao do comunismo no continente. Entendiam que o apoio manifestado pelo governo brasileiro estava prejudicando as relaes com o governo dos Estados Unidos e indo de encontro com os interesses do Brasil, especialmente por sua tradio ocidental, capitalista e crist (MOTTA, 2002). O processo eleitoral de outubro de 1962 foi outro contexto em que se fizeram marcantes as manifestaes anticomunistas. Segundo Carla Rodeghero (2003), o bojo das intrigas das disputas polticas foi marcado pela intensa presena de denncias de possveis vinculaes de candidatos com os comunistas. Alm disso, a autora mostra o quanto era importante, para a conquista do voto, que o candidato fosse reconhecido enquanto um catlico que, em tese, seria portador dos atributos considerados ideais para representar o poder poltico do pas38. Para Motta (2002), nunca houve tamanha mobilizao anticomunista em campanhas eleitorais como nas eleies de 1962. Para chegar a essa concluso, o autor aponta para alguns processos significativos que permearam naquele contexto. Primeiramente, o aumento

    significativo do aporte financeiro para os defensores da causa anticomunista, principalmente atravs do Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD). A participao e interveno dos setores conservadores do catolicismo brasileiro, atravs da Aliana Eleitoral Pela Famlia (ALEF), foi outro fator que provocou uma ampla difuso do anticomunismo. A referida entidade recomendava abertamente aos eleitores catlicos que no votassem em nenhum candidato do Partido Comunista, ou nos que tivessem suas candidaturas atreladas a este partido. Alm disso, o autor aponta para a influncia da grande imprensa em criar a sensao de que as eleies representavam uma polarizao entre democracia e comunismo, em que

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    Conforme Rodeghero (2003, p. 117), ser catlico e ser anticomunista eram virtudes fundamentais a serem cultivadas por aqueles que se envolvessem em poltica; por isso os candidatos procuravam deixar clara a sua identidade catlica anticomunista nas suas falas, o que tambm ocorreu nas designaes dos grupos que mandavam publicar manifestos e propagandas no jornal sem se identificarem ou revelarem o partido a que pertenciam.

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    estaria em jogo, conf