disciplina - pos.ajes.edu.br · ... de 1995 nos livros “os significados do letramento”,...

45
PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO INFANTIL, ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO DISCIPLINA TÉCNICAS DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO PROFESSOR MS. CÉZAR AFONSO BORGES GUARANTÃ DO NORTE – MT ABRIL/2016

Upload: lamphuc

Post on 20-Nov-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PÓS-GRADUAÇÃO EM

EDUCAÇÃO INFANTIL, ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

DISCIPLINA

TÉCNICAS DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

PROFESSOR

MS. CÉZAR AFONSO BORGES

GUARANTÃ DO NORTE – MT ABRIL/2016

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

2

CURRÍCULO RESUMIDO DO PROFESSOR

Pedagogo, possui mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato

Grosso (2001). Professor da SEDU/MT há 26 anos. Professor do Colégio Salesiano

São Gonçalo no Ensino Médio. Professor da Faculdade ICE nos cursos de

Pedagogia, Letras e Administração. Professor do LAC Cursos para concursos

públicos on-line. Professor, desde 2005, da AJES, na pós-graduação, tendo atuado

na graduação nos cursos de Letras, Pedagogia e Ciências Contábeis. Palestrante na

área de Educação Inclusiva e Autismo. Participante ativo da Associação dos Amigos

de Autistas de Cuiabá.

(http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4798500E5)

EMENTA E BIBLIOGRAFIA

Letramento e Alfabetização. Origem do termo. Conceitos e definições. As fases da

alfabetização. A alfabetização tradicional. Materiais disponíveis.

Bibliografia: CARRAHER, T., CARRAHER, D. & SCHLIEMANN, A. Na vida dez, na escola zero. São Paulo, Cortez, 1989. COLELLO, S. M. G. “A pedagogia da exclusão no ensino da língua escrita” In VIDETUR, n. 23. Porto/Portugal, Mandruvá, 2003, pp. 27 – 34 (www.hottopos.com). COLELLO, S. M. G. & SILVA, N. “Letramento: do processo de exclusão social aos vícios da prática pedagógica” In VIDETUR, n. 21. Porto/Portugal: Mandruvá, 2003, pp. 21 – 34 (ww.hottopos.com). FEEREIRO, E. Cultura escrita e educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 2001. RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003. SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

3

TÉCNICAS DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

4

LETRAMENTO E ALFABETIZAÇÃO As transformações socioeconômicas, políticas, históricas e/ou culturais provocam o surgimento de novos conceitos e/ou termos para designar fenômenos recém-surgidos e que ainda se encontram em processo de recepção e compreensão pela sociedade na qual se inserem. Desse modo, a adoção do vocábulo "letramento" vem atender a uma nova realidade, já que só recentemente a sociedade brasileira passou a preocupar-se com o desenvolvimento de habilidades para utilizar a leitura e a escrita nas práticas sociais e não somente com o saber ler e escrever mecanicamente. Contudo, essa transformação traz consigo problemas de delimitação de sentido, de definição e também de mensuração. Segundo Magda Soares, letramento seria a tradução para o português da palavra inglesa "literacy", que etimologicamente se origina da forma latina "littera", cujo significado é "letra". Ao latim "littera" foi adicionado o sufixo "-cy", que expressa estado ou condição, para formar o vocábulo inglês "literacy". Parece que do mesmo modo se fez em português, ou seja, ao radical "letra-" foi acrescentado o sufixo "-mento", formando assim a nova palavra. Alguns autores argumentam que o termo literacia, utilizado em Portugal, seria mais apropriado que letramento. Outros propõem, ainda, o vocábulo leiturização. Há também aqueles que defendem ser desnecessária a adoção de um novo termo, já que acreditam ser a palavra alfabetização própria para abarcar também o novo conceito. Embora letramento seja equivalente, no Brasil, ao termo "literacy", trata-se de palavras que apresentam conceitos distintos, uma vez que o vocábulo inglês significa capacidade ou habilidade para ler e escrever, e não condição ou estado resultante da utilização da leitura e da escrita nas práticas sociais. Assim, a acepção de "literacy" parece estar mais próxima de alfabetização e não de letramento, fato que acaba acarretando outro problema em relação a essa terminologia, já que a concepção de sujeito alfabetizado nos países que se valem do termo "literacy" parece estar um pouco distante daquela adotada atualmente no Brasil. Isso ocorre porque, ainda que atualmente questões relacionadas à capacidade de leitura e interpretação de textos e do uso eficiente da leitura e da escrita preocupem tanto países periféricos ou em desenvolvimento, como o Brasil, quanto países ricos e desenvolvidos, como os EUA, França e Alemanha, percebe-se que existe uma grande diferença no que se refere às exigências de letramento entre eles. Atualmente a definição mais difundida é a apresentada por Magda Soares: "Letramento é o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita." Desse modo, letramento seria resultado ou conseqüência do processo de alfabetização. Enquanto se utiliza o termo analfabeto em oposição a alfabetizado, não é possível, de maneira análoga, aplicar a mesma relação entre letrado e iletrado. Mesmo o indivíduo que não sabe ler nem escrever de alguma maneira faz uso da escrita quando se relaciona com outros atores sociais, seja pedindo que outro leia para ele uma carta ou bula de remédio, seja tentando chegar a algum bairro da cidade, o qual ele ainda não conheça, ou mesmo relatando um fato ou acontecimento a alguém. A recente incorporação do termo letramento no campo da educação brasileira associada com a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos gerou uma série de dúvidas entre os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental, especialmente os que se dedicam ao trabalho com turmas de primeiro ano. Muitas dessas dúvidas se referem ao conceito e à proposta de letramento. Alguns professores pensam que o letramento é um método didático que veio substituir a alfabetização, outros consideram que alfabetização e letramento são processos iguais, outros ainda possuem dúvidas sobre como promover uma proposta voltada para o letramento.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

5

ORIGEM DO TERMO LETRAMENTO O termo letramento pode ser considerado bastante atual no campo da educação brasileira. Conforme Soares (2009, p. 33), esse termo parece ter sido usado pela primeira vez no país no ano de 1986 por Mary Kato, no livro “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística”. Como parte de título de livro, o termo apareceu no ano de 1995 nos livros “Os significados do letramento”, organizado por Angela Kleiman e “Alfabetização e Letramento”, de Leda V. Tfouni, autoras das quais nos utilizamos para embasar este trabalho. Mas quais seriam os motivos pelo qual foi incorporado mais esse termo no campo educativo? O surgimento de uma nova palavra sempre está ligado à falta de uma palavra que possa explicar o sentido de algum fenômeno. E foi nesse contexto que surgiu o termo letramento. Durante a década de 80 emergiram discussões sobre as altas taxas de repetência e analfabetismo no Brasil. Ao proporem uma nova perspectiva sobre o processo que a criança percorre para aprender a ler e a escrever, Ferreiro e Teberosky (1979) contribuíram muito para a reflexão sobre a problemática da alfabetização. Diante de toda a reflexão que ocorreu na época sobre o analfabetismo, foi necessário encontrar uma palavra que se referisse à condição ou ao estado contrário daquele expresso pela palavra analfabetismo, ou seja, uma palavra que representasse o estado ou condição de quem está alfabetizado, de quem domina o uso da leitura e da escrita. Se até aquele momento só se falava em analfabetismo, pois era essa a condição em que grande parte da população brasileira se encontrava, no momento em que essa realidade começou a se modificar, foi preciso incorporar uma nova palavra para nomear a nova condição que o povo passou a ocupar. Essa nova condição, para além do saber ler e escrever, compreendia a incorporação desses saberes no viver de cada indivíduo, ou seja, compreendia uma demanda social. Curiosamente, a palavra analfabetismo possui o prefixo de negação a, assim, seria lógico pensar que a palavra mais correta para preencher essa demanda seria alfabetismo. O termo alfabetismo chegou a ser utilizado na literatura especializada, como podemos verificar neste trecho escrito por Soares no ano de 1995 e que permanece na edição mais atual do livro “Alfabetização e Letramento”: O surgimento do termo literacy (cujo significado é o mesmo de alfabetismo), nessa época, representou, certamente, uma mudança histórica nas práticas sociais: novas demandas sociais pelo uso da leitura e da escrita exigiram uma nova palavra para designá-las. Ou seja: uma nova realidade social trouxe a necessidade de uma nova palavra (SOARES, 2011, p. 29, grifos da autora). Podemos encontrar nesse mesmo livro, uma explicação da autora, que nos esclarece que a palavra alfabetismo não criou raízes na literatura da área e foi, progressivamente, sendo substituída pelo termo letramento. Conforme a nota da autora: “Após a publicação deste texto, em 1995, foi-se progressivamente revelando, na bibliografia, preferência pela palavra letramento [...] em relação à palavra alfabetismo (SOARES, 2011, p. 29, grifos da autora)”. Assim, o termo letramento vem gradativamente substituindo o termo alfabetismo, no entanto, ainda podemos encontrar o termo alfabetismo na literatura especializada. No decorrer do livro “Letramento e Alfabetização”, Tfouni explicita que “A necessidade de se começar a falar em letramento surgiu, creio eu, da tomada de consciência que se deu, principalmente entre os linguistas, de que havia alguma coisa além da alfabetização, que era mais ampla, e até determinante desta (2010, p. 32)”. Refletindo sobre o surgimento do termo letramento, a autora Kleiman (2008) argumenta que o conceito de letramento “[...] começou a ser usado nos meios acadêmicos como tentativa de separar os estudos sobre o „impacto social da escrita‟ dos estudos sobre a alfabetização, cujas conotações destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita (2008, p. 15, grifo da autora)”. Em relação à etimologia do termo, podemos fazer referência à Soares (2009), que expressa o senso comum do meio, quando afirma que a palavra letramento é uma tradução do 4 termo inglês literacy, que, por sua vez, tem origem do latin littera, que se refere à letra. A palavra literacy poderia ser decomposta da seguinte forma: littera (letra) + cy (condição ou estado de). Soares interpreta esta definição da seguinte forma: “[...] literacy é „a condição de ser letrado‟ – dando à

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

6

palavra „letrado‟ sentido diferente daquele que vem tendo em português (2009, p. 35, grifo da autora)”. Qual seria, então, o sentido da palavra letrado a que Soares se refere na citação anterior? O sentido comumente dado à palavra letrado no Brasil está ligado à ideia de pessoa erudita, pessoa versada em letras, e o seu antônimo, iletrado, seria a pessoa que não é erudita, não possui conhecimentos literários. Porém, ao nos referirmos ao termo letramento, não estamos invocando os significados anteriormente apresentados dos termos letrado e iletrado. Estamos, sim, nos referindo ao mesmo termo, porém, ao significado atribuído a ele na língua inglesa: literate, que se refere à pessoa educada e que especificamente tem habilidade de ler e escrever. LETRAMENTO: CONCEITOS E DEFINIÇÕES A busca por uma definição única para o termo letramento parece ser algo difícil, uma vez que se trata de um conceito amplo e complexo. Conforme Soares (2009, p. 65), as “[...] dificuldades e impossibilidades devem-se ao fato de que o letramento cobre uma vasta gama de conhecimentos, habilidades, capacidades, valores, usos e funções sociais; o conceito de letramento envolve, portanto, sutilezas e complexidades difíceis de serem contempladas em uma única definição”. Já Mortatti afirma que “[...] até por ser uma palavra recente, nem sempre são idênticos os significados que lhe vêm sendo atribuídos [...], assim como os objetivos com que é utilizada (a palavra letramento) (2004, p. 11, grifo nosso)”. Traremos, a seguir, definições que alguns autores utilizam para esse conceito. Refletindo sobre os significados de letramento, Tfouni (2010) sugere que não pode haver a redução do seu significado ao significado de alfabetização e ao ensino formal. Para ela letramento é um processo mais amplo que a alfabetização e que deve ser compreendido como um processo sócio-histórico. Tfouni (2010, p. 23) relaciona, assim, letramento com o desenvolvimento das sociedades. Nesse sentido, a autora explica que: Em termos sociais mais amplos, o letramento é apontado como sendo produto do desenvolvimento do comércio, da diversificação dos meios de produção e da complexidade crescente da agricultura. Ao mesmo tempo, dentro de uma visão dialética, torna-se uma causa de transformações históricas profundas, como o aparecimento da máquina a vapor, da imprensa, do telescópio, e da sociedade industrial como um todo. Letramento seria, portanto, causa e consequência do desenvolvimento. Assim, o significado atribuído pela autora ao termo letramento extrapola a escola e o processo de alfabetização, referindo-se a processos sociais mais amplos. “O letramento [...] focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. [...] tem por objetivo investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, nesse sentido, desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social mais amplo (TFOUNI, 1988, apud MORTATTI, 2004, p. 89)”. O letramento também é compreendido como um fenômeno mais amplo e que ultrapassa os domínios da escola por Kleiman (2008, p. 18). Segundo ela, “[...] podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. O conceito da autora enfatiza os aspectos social e utilitário do letramento. As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita (KLEIMAN, 2008, p. 19). Na citação anterior, a autora se refere ao fato de que a escola, diante da perspectiva do letramento, enfatiza apenas algumas práticas ligadas à escrita e ao uso da escrita. Assim sendo, fora do ambiente escolar outros usos e práticas ligados à escrita são vivenciados. Nesse sentido, Kleiman (2008, p. 20) afirma que o “[...] fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita”. Desta forma, e de acordo com o que já foi explicitado anteriormente

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

7

por esta autora, letramento seria um conjunto de práticas com objetivos específicos e em contextos específicos, que envolvem a escrita A escola, por sua vez, seria apenas uma agência de letramento, dentre várias outras, e realizaria apenas algumas práticas de letramento. Para Mortatti (2004, p. 98), o conceito de letramento se liga às funções da língua escrita em sociedades letradas. Segundo esta autora, 6 Letramento está diretamente relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas funções e seus usos nas sociedades letradas, ou, mais especificamente, grafocêntricas, isto é, sociedades organizadas em torno de um sistema de escrita e em que esta, sobretudo por meio do texto escrito e impresso, assume importância central na vida das pessoas e em suas relações com os outros e com o mundo em que vivem. Assim, para a autora, em sociedades grafocêntricas, a escrita possui uma importância de proporção muito grande, uma vez que tudo se organiza em torno dela. Diante desse fato, o letramento estaria relacionado aos usos da escrita nessa sociedade grafocêntrica. O letramento também influenciaria a relação, não somente dos sujeitos com a sociedade, mas também, com outros sujeitos. Soares (2009), mesmo apontando a dificuldade de abranger toda a complexidade do significado de letramento em um único conceito, também expressa uma definição para o termo. Segundo ela, letramento pode ser definido como “Resultado da ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita; O estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais (SOARES, 2009, p. 39)”. Assim letramento está ligado aos usos, às práticas de leitura e de escrita. Além disso, torna-se letrado o indivíduo ou grupo que desenvolve as habilidades não somente de ler e de escrever, mas sim, de utilizar leitura e escrita na sociedade, ou seja, para Soares, somente alfabetizar não garante a formação de sujeitos letrados. Para a promoção do letramento, é necessário que esses sujeitos tenham oportunidades de vivenciar situações que envolvam a escrita e a leitura e que possam se inserir em um mundo letrado. Conforme Soares (2009, p. 58), em realidades de países como o nosso, o contato com livros, revistas e jornais não é, ainda, algo natural e acessível, portanto, a realidade de alguns contextos de nosso país não contribui para a formação de sujeitos letrados. Em se tratando do uso do termo letramento, é importante ressaltar que, atualmente, existem duas posições teóricas. Nossa intenção não é realizar qualquer tipo de juízo de valor sobre as diferentes posições, mas sim, apresentá-las. Por um lado, os autores que exploramos até o momento, Soares, Mortatti, Kleiman e Tfouni, assumem um posicionamento no qual diferenciam os processos de alfabetização e letramento e os consideram separadamente. Por outro lado, existe um posicionamento, liderado por Ferreiro, que questiona o uso do termo letramento, uma vez que pressupõe que em alfabetização estaria compreendido o conceito de letramento ou o contrário: em letramento estaria compreendido o conceito de alfabetização. Gostaríamos de apresentar a posição de Ferreiro, uma vez que, até então estamos explorando somente a posição que defende o uso do termo letramento. Poderíamos pensar que a ideia de letramento, entendido como um processo mais amplo que a alfabetização, surgiu no Brasil por volta da década de 80, a partir dos estudos de Ferreiro e Teberosky3 . Sem utilizar o termo letramento, as autoras já defendiam a alfabetização como um processo indissociável do contexto do aluno e criticavam práticas mecânicas, repetitivas e sem sentido. As autoras também questionavam a utilização de textos artificiais no processo de alfabetização, defendendo o uso de textos reais, que fizessem parte do contexto das crianças e pudessem, desta forma, propiciar aprendizagens significativas. Ao expressarem no que a psicolinguística contemporânea se diferencia do modelo tradicional associacionista da aquisição da linguagem, Ferreiro e Teberosky (1999, p. 24) afirmam que “[...] no lugar de uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem inteiramente fabricada por outros, aparece uma criança que reconstrói por si mesma a linguagem, tomando seletivamente a informação que lhe provê o meio”. Ao se referirem à “informação que lhe provê o meio”, as autoras expressam que as informações que a criança possui antes de ingressar na escola e que

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

8

lhe são providas pelo meio, são, em grande parte, informações ligadas à escrita. Escrita que está contextualizada, está sendo utilizada na sociedade para um fim específico. Diante das situações de interação da criança com a escrita, a criança não age passivamente, mas sim, reflete sobre as situações e sobre a própria escrita, construindo e reconstruindo hipóteses e conhecimentos. Assim, acriança que está inserida no meio letrado é uma criança que possui conhecimentos sobre a língua e sobre as funções da língua na sociedade. As autoras continuam: [...] é bem difícil imaginar que uma criança de 4 ou 5 anos, que cresce num ambiente urbano no qual vai reencontrar, necessariamente, textos escritos em qualquer lugar (em seus brinquedos, nos cartazes publicitários ou nas placas informativas, na sua roupa, na TV, etc.) não faça nenhuma ideia a respeito da natureza desse objeto cultural até ter 6 anos e uma professora à sua frente (FERREIRO, TEBEROSKY, 1999, p. 29). Desta forma, Ferreiro e Teberosky (1999) problematizam a visão de que a criança é uma tábula rasa, no que diz respeito à escrita e à leitura, ao iniciar o processo de 3 O livro “Psicogênese da Língua Escrita”, de Emília Ferreiro e Ana Teberosky foi lançado em 1979, originalmente na língua espanhola, sob o título de “Los sistemas de escritura em el desarrollo del niño” e ainda hoje pode ser considerado uma referência no que diz respeito aos estudos ligados à aquisição da leitura e da escrita. Pelo contrário, as autoras afirmam que a criança possui experiências com a língua e com os usos dessa língua no dia-a-dia, ou seja, que, aos poucos, através de suas experiências, percebe as funções da escrita e da leitura. Esse movimento faz com que construa conhecimentos que devem ser considerados ao iniciar o processo de alfabetização propriamente dito. A ideia de que a criança reconhece os usos da leitura e escrita em seus contextos reais antes mesmo de estar alfabetizada e que, por isso, deve ser alfabetizada com textos reais, pode ser identificada como uma ideia ligada ao letramento. No entanto, Ferreiro (2002) problematiza o uso dos dois conceitos: alfabetização e letramento. Em entrevista concedida a uma revista educacional brasileira, Ferreiro respondeu o que significa estar alfabetizado hoje. Poderemos perceber, através do seu conceito de alfabetização, que a ideia de letramento está implícita. Segundo Ferreiro (2006)4 , estar alfabetizado nos dias de hoje é [...] poder transitar com eficiência e sem temor numa intrincada trama de práticas sociais ligadas à escrita. Ou seja, trata-se de produzir textos nos suportes que a cultura define como adequados para as diferentes práticas, interpretar textos de variados graus de dificuldade em virtude de propósitos igualmente variados, buscar e obter diversos tipos de dados em papel ou tela e também, não se pode esquecer, apreciar a beleza e a inteligência de um certo modo de composição, de um certo ordenamento peculiar das palavras que encerra a beleza da obra literária. Poderíamos afirmar que seu conceito de sujeito alfabetizado é um conceito bastante amplo e que abrange o que vem sendo identificado como letramento nos meios acadêmicos: usos sociais da leitura e da escrita. Assim, Ferreiro “rejeita a coexistência dos dois termos com o argumento de que em alfabetização estaria compreendido o conceito de letramento, ou vice-versa, em letramento estaria compreendido o conceito de alfabetização (SOARES, 2004, p. 15)”. A problemática levantada por Ferreiro, porém, vai além do simples reconhecimento ou não, do termo letramento. Para a autora, a questão do letramento está ligada a um aspecto social mais amplo. Diante dos números brasileiros que totalizam 14 milhões de analfabetos, Ferreiro (2002) discute a pertinência de uma excessiva preocupação com o letramento. Assim, o questionamento da autora é: como podemos falar em letramento e cultura letrada, se não damos conta da alfabetização? É importante salientar que Ferreiro não nega a preocupação 4 Por se tratar de um artigo de meio eletrônico, não dispomos de paginação. 9 com o letramento, mas sim, aponta para a necessidade dos países pobres se preocuparem, prioritariamente, com o analfabetismo. Os países pobres não superaram o analfabetismo, os ricos descobriram o iletrismo. [...] Iletrismo é o novo nome dado a uma realidade muito simples: a escolaridade básica universal não assegura a prática cotidiana da leitura, nem o gosto de ler, muito menos o prazer da leitura. Ou seja, há

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

9

países que têm analfabetos (porque não asseguram um mínimo de escolaridade básica a todos seus habitantes) e países que tem iletrados (porque, apesar de terem assegurado esse mínimo de escolaridade básica, não produziram leitores em sentido pleno) (FERREIRO, 2002, p. 16, grifos da autora). Desta forma, a autora afirma que a maior necessidade, no contexto de escolas latinoamericanas, seria de dar oportunidades de uma escolarização mínima para a população, a fim de sanar os altos índices de analfabetismo. Para Ferreiro, a preocupação com letramento é pertinente em realidades onde a alfabetização não se constitui como um problema, pois a população, de modo geral, já está alfabetizada, ou seja, em países ricos, conforme a autora os denomina.

ALFABETIZAÇÃO: O TRADICIONAL E O NOVO

Enraizada na sociedade de classes escravista da Idade Antiga, destinada a uma pequena minoria, a educação tradicional iniciou o seu declínio já no movimento renascentista, mas ela sobrevive até hoje, apesar da extensão média da escolaridade trazida pela educação burguesa. A educação nova, que surge de forma mais clara a partir da obra de Rousseau, desenvolveu-se nesses últimos dois séculos e trouxe consigo numerosas conquistas, sobretudo no campo das ciências da educação e das metodologias de ensino. O conceito de “aprender fazendo” de J. Dewey e as técnicas Freinet, por exemplo, são aquisições definitivas na história da pedagogia. Tanto a concepção tradicional de educação quanto a nova, amplamente consolidadas, terão um lugar garantido na educação do futuro.

A educação tradicional e a educação nova têm em comum a concepção da educação como processo de desenvolvimento individual. Todavia, o traço mais original da educação do século XX foi o deslocamento de enfoque, do individual para o social, para o político e para o ideológico. A pedagogia institucional é um exemplo disso. A experiência de mais de meio século de educação nos países socialistas também o testemunha. A educação, no século XX, tornou-se permanente e social. É verdade, existem ainda muitos desníveis entre regiões e países, entre o norte e o sul, entre países periféricos e hegemônicos, entre países globalizadores e os países globalizados. Mas existem idéias universalmente difundidas, entre elas, a de que não há idade para se educar, de que a educação se estende pela vida toda e que ela não é neutra.

EDUCAÇÃO INTERNACIONALIZADA

No início da segunda metade do século XX, educadores e políticos imaginaram uma educação internacionalizada, confiada a uma grande organização, a Unesco. Os países altamente desenvolvidos já haviam universalizado o ensino fundamental e eliminado o analfabetismo. Os sistemas nacionais de educação trouxeram um grande impulso, desde o século passado, possibilitando numerosos planos de educação, que diminuíram custos e elevaram os benefícios. A tese de uma educação internacional já existia deste 1899, quando foi fundado, em Bruxelas, o “Bureau Internacional de Novas Escolas”, por iniciativa do educador Adolphe Ferrière. Como resultado, temos hoje uma grande uniformidade nos sistemas de ensino. Podemos dizer que atualmente todos os sistemas educacionais do mundo contam com uma estrutura básica muito parecida. No final do século XX, o fenômeno da globalização deu novo impulso à idéia de uma educação igual para todos, agora não como princípio de justiça social, mas apenas como parâmetro curricular comum.

NOVAS TECNOLOGIAS

As conseqüências da evolução das novas tecnologias, centradas na comunicação de massa, na difusão do conhecimento, ainda não se fizeram sentir plenamente no ensino – como previra McLuhan já em 1969 – pelo menos na maioria das nações, mas a aprendizagem a distância, sobretudo a baseada na internet, parece ser a grande novidade educacional neste início de milênio. A educação opera com a linguagem escrita e a nossa cultura atual dominante vive impregnada por uma nova linguagem, a da televisão e a da informática, particularmente a linguagem da internet. A cultura do papel representa talvez o maior obstáculo ao uso intensivo da internet, em particular da educação a distância com base na internet. Por isso, os

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

10

jovens que ainda não internalizaram inteiramente a cultura do papel, adaptam-se com mais facilidade que os adultos ao uso do computador. Eles já nascem com essa nova cultura, a cultura digital.

Os sistemas educacionais ainda não conseguiram avaliar suficientemente o impacto da comunicação audiovisual e da informática, seja para informar, seja para bitolar ou controlar as mentes. Trabalhamos muito, ainda, com recursos tradicionais que têm pouco apelo para as crianças e jovens. Os que defendem a informatização da educação sustentam que é preciso mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória. Para ele, a função da escola será, cada vez mais, a de ensinar a pensar criticamente. Para isso é preciso dominar mais metodologias e linguagens, inclusive, a linguagem eletrônica.

PARADIGMAS HOLONÔMICOS

Entre as novas teorias surgidas nesses últimos anos, despertaram particular interesse dos educadores os chamados paradigmas holonômicos, ainda pouco consistentes. Complexidade e holismo são palavras cada vez mais ouvidas nos debates educacionais. Nesta perspectiva podemos incluir as reflexões de Edgar Morin, que critica a razão produtivista e a racionalização modernas, propondo uma lógica do vivente. Esses paradigmas sustentam um princípio unificador do saber, do conhecimento, em torno do ser humano, valorizando o seu cotidiano, o vivido, o pessoal, a singularidade, o entorno, o acaso e outras categorias como: decisão, projeto, ruído, ambigüidade, fi nitude, escolha, síntese, vínculo e totalidade.

Essas seriam algumas das categorias dos paradigmas chamados holonômicos. Etimologicamente holos, em grego, significa todo e os novos paradigmas procuram centrar-se na totalidade. Mais do que a ideologia, seria a utopia que teria a força para resgatar a totalidade do real, totalidade perdida. Para os defensores desses novos paradigmas, os paradigmas clássicos – identificados no positivismo e no marxismo seriam paradigmas marcados pela ideologia e lidariam com categorias redutoras da totalidade. Ao contrário, os paradigmas holonômicos pretendem restaurar a totalidade do sujeito, valorizando a sua iniciativa, a sua criatividade, valorizando o micro, a complementaridade, a convergência, a complexidade. Para eles, os paradigmas clássicos sustentam o sonho milenarista de uma sociedade plena, sem arestas, onde nada perturbaria um consenso sem fricções. Ao aceitar, como fundamento da educação, uma antropologia que concebe o homem como um ser essencialmente contraditorial, os paradigmas holonômicos pretendem manter, sem pretender superar, todos os elementos da complexidade da vida e do real.

Os holistas sustentam que o imaginário e a utopia são os grandes fatores instituintes da sociedade. Recusam uma ordem que aniquila o desejo, a paixão, o olhar, a escuta. Os enfoques clássicos, segundo eles, banalizam essas dimensões da vida porque sobrevalorizam o macroestrutural, o sistema, onde tudo é função ou efeito das superestruturas socioeconômicas ou epistêmicas, lingüísticas e psíquicas. Para os novos paradigmas a história é essencialmente possibilidade, onde o que vale é o projeto de vida e o imaginário (Gilbert Durand, Cornelius Castoriadis, Michel Mafesolli). Existem tantos mundos quanto nossa capacidade de imaginar. Para eles, “a imaginação está no poder”, como queriam os estudantes de Paris em maio de 1968.

Na verdade, essas categorias não são novas na teoria da educação, mas hoje elas são lidas e analisadas com mais simpatia que no passado. Sob diversas formas e com diferentes significados, encontramos essas categorias em muitos intelectuais, filósofos e educadores, de ontem e de hoje: o “sentido do outro”, a “curiosidade” (Paulo Freire), a “tolerância” (Karl Jaspers), a “estrutura de acolhida” (Paul Ricoeur), o “diálogo” (Martin Buber), a “autogestão” (Celestin Freinet, Michel Lobrot), a “desordem” (Edgar Morin), a “ação comunicativa”, o “mundo vivido” (Jürgen Habermas), a “radicalidade” (Agnes Heller), a “empatia” (Carl Rogers), a “questão de gênero” (Moema Viezzer, Nelly Stromquist), o “cuidado” (Leonardo Boff), a “esperança” (Ernest Bloch), a “alegria” (Georges Snyders), a unidade do homem contra as “unidimensionalizações” (Herbert Marcuse) etc.

Evidentemente, nem todos esses autores e autoras aceitariam enquadrar-se nos paradigmas holonômicos. Todas as classificações, as tipologias, no campo das idéias, são necessariamente reducionistas. Não podemos negar as divergências existentes entre eles. Contudo, as categorias apontadas acima indicam

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

11

uma certa tendência, ou melhor, uma perspectiva da educação. Os que sustentam os paradigmas holonômicos procuram buscar, na unidade dos contrários e na cultura contemporânea, um sinal dos tempos, uma direção do futuro, que eles chamam de pedagogia da unidade.

As perspectivas holísticas da educação provocaram grandes discussões nos últimos anos. Elas se referem, freqüentemente, às categorias transdisciplinaridade e complexidade. Creio que se deve entender a transdisciplinaridade como a entendia Jean Piaget, como “etapa superior da interdisciplinaridade”, isto é, como atitude e como método, indispensáveis ao pesquisador e ao educador e como dimensão essencial de tudo o que existe. A intertransdisciplinaridade está aqui dentro porque está lá fora, nas coisas. Significando basicamente “através” e “além” das disciplinas, a transdisciplinaridade consagra a unidade multidimensional do ato educativo. Ela procura compreender, mais do que acumular conhecimentos, inclui, agrega, compartilha, não divide... Por isso, Paulo Freire aproximava a atitude interdisciplinar da atitude transdisciplinar: porque encontrava nas duas o coletivo instituinte, o trabalho em grupo, a convivialidade, a transversalidade, o diálogo.

[HOLISTAS SUSTENTAM QUE IMAGINÁRIO E UTOPIA SÃO OS GRANDES FATORES INSTITUINTES DA SOCIEDADE]

A complexidade não deve ser entendida como um paradigma, mas como um dado da realidade, o real em processo, em transformação incessante, em criação e recriação, construção e reconstrução. Os dualismos provocaram sempre grande sofrimento, separando corpo e mente, por exemplo. Eles provocam desequilíbrios, dúvidas, ansiedades. Nesse sentido, deve-se entender a transdisciplinaridade como um desdobramento, um aprofundamento, da própria noção de dialética. Com essa nova abordagem, a dialética está se renovando. Entendida como atitude e como método, a transdisciplinaridade poderá dar uma contribuição ao estudo e à prática daquilo que chamo de Pedagogia da Terra, a ecopedagogia, que incorpora a atitude, a vivência e a convivência transdisciplinar. Ela também se apoia numa certa compreensão da complexidade. “A verdade é o todo”, dizia Hegel. Por isso, creio que um dos grandes méritos da transdisciplinaridade seja recuperar e renovar a categoria hegeliana de totalidade.

EDUCAÇÃO POPULAR

O paradigma da educação popular, inspirado originalmente no trabalho de Paulo Freire nos anos 60, encontrava na conscientização sua categoria fundamental. A prática e a reflexão sobre a prática, levou a incorporar outra categoria não menos importante: a da organização. Afinal, não basta estar consciente, é preciso organizar-se para poder transformar. Nos últimos anos, os educadores que permaneceram fiéis aos princípios da educação popular atuaram principalmente em duas direções: na educação pública popular – no espaço conquistado no interior do Estado – e na educação popular comunitária e na educação ambiental ou sustentável, predominantemente não governamentais. Durante os regimes autoritários da América Latina a educação popular manteve sua unidade, combatendo as ditaduras e apresentando projetos “alternativos”. Com as conquistas democráticas, ocorreu com a educação popular uma grande fragmentação em dois sentidos: de um lado ela ganhou uma nova vitalidade no interior do Estado, diluindo-se em suas políticas públicas e, de outro lado, continuou como educação não-formal, dispersando-se em milhares de pequenas experiências. Perdeu em unidade, ganhou em diversidade e conseguiu atravessar numerosas fronteiras. Hoje ela se incorporou ao pensamento pedagógico universal e orienta a atuação de muitos educadores espalhados pelo mundo, como o testemunha o Fórum Paulo Freire e o Fórum Mundial de Educação que reúnem, periodicamente, milhares de educadores de muitos países.

As práticas de educação popular também constituem-se em mecanismos de democratização, onde se refletem os valores de solidariedade e de reciprocidade e novas formas alternativas de produção e de consumo, sobretudo as práticas de educação popular comunitária, muitas delas voluntárias. O terceiro setor está crescendo não apenas como alternativa entre o Estado burocrático e o Mercado insolidário, mas como espaço de novas vivências sociais e políticas hoje consolidadas com as organizações não governamentais (ONGs) e as organizações de base comunitária (OBCs). Este está sendo atualmente o campo mais fértil da educação popular.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

12

Diante desse quadro, a educação popular, como modelo teórico reconceituado, tem oferecido grandes alternativas. Dentre elas está a reforma dos sistemas de escolarização pública. A vinculação da educação popular com o poder local e a economia popular abre, também, novas e inéditas possibilidades para a prática da educação. O modelo teórico da educação popular, elaborado na reflexão sobre a prática da educação durante várias décadas, tornou-se, sem dúvida, uma das grandes contribuições da América Latina à teoria e à prática educativas em nível internacional. A noção de aprender a partir do conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a educação como ato de conhecimento e de transformação social, a politicidade da educação são apenas alguns dos legados da educação popular à pedagogia crítica universal.

DUPLA ENCRUZILHADA

Neste começo de um novo milênio, a educação apresenta-se numa dupla encruzilhada: de um lado o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da universalização da educação básica de qualidade; de outro, as novas matrizes teóricas não apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente seguros numa época de profundas e rápidas transformações. Essa é uma das preocupações do Instituto Paulo Freire, buscando, a partir do legado de Paulo Freire, consolidar o seu “Projeto da Escola Cidadã”, como resposta à crise de paradigmas. A concepção teórica e as práticas desenvolvidas a partir do conceito de Escola Cidadã podem constituir-se numa alternativa viável, de um lado, ao projeto neoliberal de educação, amplamente hegemônico, baseado na ética do mercado livre, e, de outro lado, à teoria e à prática de uma educação burocrática, sustentada na “estadolatria” (Antonio Gramsci). É uma escola que busca fortalecer autonomamente o seu projeto político-pedagógico relacionando-se dialeticamente – não mecânica e subordinadamente – com o Mercado, o Estado e a Sociedade. Ela visa formar o cidadão para controlar o Mercado e o Estado, ou, como diz o educador argentino José Tamarit, “educar o soberano”. A Escola cidadã é, ao mesmo tempo, pública quanto ao seu destino – isto é, para todos – estatal quanto ao financiamento e é democrática e comunitária quanto à sua gestão.

Seja qual for a perspectiva que a educação tomar no século XXI, uma educação voltada para o futuro, será sempre uma educação contestadora, superadora dos limites impostos pelo Estado e pelo Mercado, portanto, uma educação muito mais voltada para a transformação social do que para a transmissão cultural. Por isso, acreditamos que a pedagogia da práxis, como uma pedagogia transformadora, em suas várias manifestações, pode oferecer um referencial geral mais seguro do que as pedagogias centradas na transmissão cultural, neste momento de perplexidade.

Costuma-se definir nossa era como a era do conhecimento. Se for pela importância dada hoje ao conhecimento, em todos os setores, podemos dizer que vivemos mesmo na era do conhecimento, na sociedade do conhecimento, sobretudo em conseqüência da informatização e do processo de globalização das telecomunicações a ela associado. Pode ser que, de fato, já tenhamos ingressado na era do conhecimento, mesmo admitindo que grandes massas da população estejam excluídas dele. Todavia, o que constatamos é que predomina mais a difusão de dados e informações e não de conhecimentos. Isso está sendo possível graças às novas tecnologias que estocam o conhecimento, de forma prática e acessível, em gigantescos volumes de informações. Elas são armazenadas inteligentemente permitindo a pesquisa e o acesso de maneira muito simples, amigável e flexível. É o que já acontece com a internet. Pela internet, a partir de qualquer sala de aula do planeta, pode-se acessar inúmeras bibliotecas em muitas partes do mundo. As novas tecnologias nos permitem acessar não apenas conhecimentos transmitidos por palavras, mas também imagens, sons, fotos, vídeos (hipermídia) etc. Nos últimos anos a informação deixou de ser uma área ou especialidade para tornar-se uma dimensão de tudo, transformando profundamente a forma como a sociedade se organiza. Pode-se dizer que está em andamento uma Revolução da Informação como ocorreu no passado a Revolução Agrícola e a Revolução Industrial.

Ladislau Dowbor, no livro A reprodução social, após descrever as facilidades que as novas tecnologias oferecem ao professor se pergunta: o que eu tenho a ver com tudo isso, se na minha escola não tem nem biblioteca e com o meu salário eu não posso comprar um computador? Ele mesmo responde que será preciso trabalhar em dois tempos: o tempo do passado e o tempo do futuro. Fazer tudo hoje para superar as

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

13

condições do atraso, e, ao mesmo tempo, criar as condições para aproveitar amanhã as possibilidades das novas tecnologias.

[ESTÁ EM ANDAMENTO UMA REVOLUÇÃO DA INFORMAÇÃO COMPARÁVEL À REVOLUÇÃO INDUSTRIAL]

As novas tecnologias criaram novos espaços do conhecimento. Agora, além da escola, também a empresa, o espaço domiciliar e o espaço social tornaram-se educativos. Cada dia mais pessoas estudam em casa, pois podem, de casa, acessar o ciberespaço da formação e da aprendizagem a distância, buscar “fora” – a informação disponível nas redes de computadores interligados – serviços que respondem às suas demandas de conhecimento. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associações, sindicatos, igrejas...) está se fortalecendo, não apenas como espaço de trabalho, em muitos casos, voluntário, mas também como espaço de difusão de conhecimentos e de formação continuada. É um espaço potencializado pelas novas tecnologias, inovando constantemente as metodologias. Novas oportunidades parecem abrir-se para os educadores. Esses espaços de formação têm tudo para permitir maior democratização da informação e do conhecimento, portanto, menos distorção e menos manipulação, menos controle e mais liberdade. É uma questão de tempo, de políticas públicas adequadas e de iniciativa da sociedade. A tecnologia não basta. É preciso a participação mais intensa e organizada da sociedade. O acesso à informação não é apenas um direito. É um direito fundamental, um direito primário, o primeiro de todos os direitos pois sem ele não temos acesso aos outros direitos. Não há dúvida de que a sociedade do século XXI tornou-se, definitivamente, uma sociedade de redes e de movimentos. E a tecnologia tem muito a ver com isso.

O conhecimento é o grande capital da humanidade. Não é apenas o capital da transnacional que precisa dele para a inovação tecnológica. Ele é básico para a sobrevivência de todos. Por isso ele não deve ser vendido ou comprado, mas disponibilizado a todos. Esta é a função de instituições que se dedicam ao conhecimento, apoiadas nos avanços tecnológicos. Esperamos que a educação do futuro seja mais democrática, menos excludente. Essa é ao mesmo tempo nossa causa e nosso desafio. Infelizmente, diante da falta de políticas públicas no setor, acabaram surgindo “indústrias do conhecimento” que mercantilizaram a educação, prejudicando uma possível visão humanista, tornando-a instrumento de lucro e de poder econômico.

A educação, e a educação a distância em particular, é um bem coletivo e, por isso, não deve ser regulada pelo jogo do mercado, nem pelos interesses políticos ou pelo furor legiferante de regulamentar, credenciar, autorizar, reconhecer, avaliar etc. de muitos tecnoburocratas. Quem deve decidir sobre a qualidade dos seus certificados não é nem o Estado e nem o Mercado. Deve ser a sociedade e o sujeito aprendente. Daí surge a pergunta que ecoa cada vez mais: na era da informação generalizada existirá ainda necessidade de diplomas?

RENOVAÇÃO CULTURAL

O que cabe à escola na sociedade informacional, sob uma perspectiva transformadora? Cabe a ela organizar um movimento global de renovação cultural, aproveitando-se de toda essa riqueza de informações. Hoje é a empresa que está assumindo esse papel inovador. A escola não pode ficar a reboque das inovações tecnológicas. Ela precisa ser um centro de inovação. Nós temos uma tradição de dar pouca importância à educação tecnológica, a qual deveria começar já na educação infantil.

Na sociedade da informação a escola deve servir de bússola para navegar nesse mar do conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações “úteis” para a competitividade, para obter resultados. Ela deve oferecer uma formação geral na direção de uma educação integral. O que significa servir de bússola? Significa orientar criticamente, sobretudo as crianças e jovens, na busca de uma informação que os faça crescer e não embrutecer.

Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da “reciclagem” e da atualização de conhecimentos, e muito mais além da “assimilação” de conhecimentos. A sociedade do conhecimento é uma sociedade de múltiplas oportunidades de aprendizagem: parcerias entre o público e o privado (família, empresa, associações...),

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

14

avaliações permanentes, debate público, autonomia da escola, generalização da inovação. As conseqüências para a escola e para a educação em geral são enormes: ensinar a pensar; saber comunicar-se; saber pesquisar; ter raciocínio lógico; fazer sínteses e elaborações teóricas; saber organizar o próprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser independente e autônomo; saber articular o conhecimento com a prática; ser aprendiz autônomo e a distância.

Nesse contexto de impregnação do conhecimento cabe à escola: amar o conhecimento como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento cultural; cabe-lhe selecionar e rever criticamente a informação; formular hipóteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser provocadora de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado. E mais: sob uma perspectiva emancipadora da educação, a escola tem que fazer tudo isso em favor dos excluídos. Não discriminar o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode construir e reconstruir conhecimentos, saber, que é poder. Sob uma perspectiva emancipadora da educação, a tecnologia contribui pouco para a emancipação dos excluídos se não for associada ao exercício da cidadania. Como diz Ladislau Dowbor, a escola deixará de ser “lecionadora” para ser “gestora do conhecimento”.“Pela primeira vez, diz ele, a educação tem a possibilidade de ser determinante sobre o desenvolvimento”. A educação tornou-se estratégica para o desenvolvimento. Mas, para isso, não basta “modernizá-la”, como querem alguns. Será preciso transformá-la profundamente.

A escola do século XXI precisa ter projeto, precisa de dados, precisa fazer sua própria inovação, planejar-se a médio e a longo prazos, fazer sua própria reestruturação curricular, elaborar seus parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As mudanças que vêm de dentro das escolas são mais duradouras. Da sua capacidade de inovar, registrar, sistematizar a sua prática, a sua experiência, dependerá o seu futuro. Nesse contexto, o educador é um mediador do conhecimento diante do aluno que é o sujeito da sua própria formação. Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz. Para isso ele também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para “o que fazer” dos seus alunos. A escola está desafiada a mudar a lógica da construção do conhecimento, pois a aprendizagem agora ocupa toda a nossa vida. E porque passamos todo o tempo de nossas vidas na escola – não só nós, professores – devemos ser felizes nela. A felicidade na escola não é uma questão de opção metodológica ou ideológica. É uma obrigação essencial dela. Como diz Georges Snyders no livro A alegria na escola, precisamos de uma nova “cultura da satisfação”, precisamos da “alegria cultural”. O mundo de hoje é “favorável à satisfação” e a escola também pode sê-lo.

O que é ser professor hoje? Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo, conviver; é ter consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem educadores como não se pode pensar num futuro sem poetas e filósofos. Os educadores, numa visão emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da palavra, dos marqueteiros, eles são os verdadeiros “amantes da sabedoria”, os filósofos de que nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber (não o dado, a informação e o puro conhecimento), porque constroem sentido para a vida das pessoas e para a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo, mas produtivo e mais saudável para todos. Por isso eles são imprescindíveis.

EDUCAÇÃO DO FUTURO Iniciamos este texto procurando situar o que significa “perspectiva”. Sem pretender fazer qualquer exercício de futurologia. No sentido de estabelecer pontos para o debate, gostaríamos de apontar agora algumas categorias em torno da educação do futuro. Elas indicam o surgimento de temas com importantes conseqüências para a educação. As categorias “contradição”, “determinação”, “reprodução”, “mudança”, “trabalho”, “práxis”, “necessidade”, “possibilidade”, aparecem freqüentemente na literatura pedagógica contemporânea, sinalizando já uma perspectiva da educação, a perspectiva da pedagogia da práxis. Essas categorias tornaram-se clássicas na explicação do fenômeno da educação, principalmente a partir de Hegel e de Marx. A dialética constitui-se, até hoje, no paradigma mais consistente para analisar o fenômeno da educação. Podemos e devemos estudá-la e estudar todas as categorias acima apontadas. Elas não ajudam muito na leitura do mundo da educação atual. Elas não podem ser negadas ou desprezadas como categorias “ultrapassadas”. Mas também podemos nos ocupar mais especificamente de outras, ao pensar a educação do século XXI, categorias nascidas ao mesmo tempo da prática da educação e da reflexão sobre ela. Eis algumas delas, a

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

15

título de exemplo. 1ª) Cidadania. O que implica também tratar do tema da autonomia da escola, de seu projeto político-pedagógico, da questão da participação, da educação para e pela cidadania. A partir dessa categoria podemos discutir particularmente o significado da concepção de escola cidadã e de suas diferentes práticas. Educar para a cidadania ativa tornou-se hoje projeto e programa de muitas escolas e de sistemas educacionais. 2ª) Planetaridade. A Terra é um “novo paradigma” (Leonardo Boff). Que implicações tem essa visão de mundo sobre a educação? O que seria uma ecopedagogia (Francisco Gutiérrez) e uma ecoformação (Gaston Pineau)? O tema da cidadania planetária pode ser discutido a partir dessa categoria. 3ª) Sustentabilidade. O tema da sustentabilidade originouse na biologia, passando pela economia (“desenvolvimento sustentável”), pela ecologia, para inserir-se definitivamente no campo da educação: educar para uma educação sustentável. O que seria uma cultura da sustentabilidade? Esse tema deverá dominar muitos debates educativos nas próximas décadas. O que estamos estudando nas escolas? Não estaremos construindo uma ciência e uma cultura que servem para a degradação e para a deterioração do planeta? 4ª) Virtualidade. Esse tema implica toda a discussão atual sobre a educação a distância e o uso dos computadores nas escolas. A informática associada à telefonia nos inseriu definitivamente na era da informação. Quais as conseqüências para a educação, para a escola, para a formação do professor e para a aprendizagem? Conseqüências da obsolescência do conhecimento. Como fica a escola diante da pluralidade dos meios de comunicação? Eles nos abrem os novos espaços da formação ou irão substituir a escola?

5ª) Globalização. O processo da globalização está mudando a política, a economia, a cultura, a história... portanto, também a educação. É um tema que deve ser enfocado sob vários prismas. A globalização remete também ao poder local e às conseqüências locais da nossa dívida externa global (e dívida interna também, a ela associada). O global e o local se fundem numa nova realidade: o “glocal”. O estudo desta categoria nos remete à necessária discussão do papel dos municípios e do “regime de colaboração” entre união, estados, municípios e comunidade, nas perspectivas atuais da Educação Básica. Para pensar a educação do futuro, precisamos refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das comunicações.

6ª) Transdisciplinaridade. Embora com significados distintos, certas categorias como transculturalidade, transversalidade, multiculturalidade e outras como complexidade e holismo também indicam uma nova tendência na educação que será preciso analisar. Como construir interdisciplinarmente o projeto pedagógico da escola? Como relacionar multiculturalidade e currículo? É necessário realizar o debate dos parâmetros curriculares. Como trabalhar com os “temas transversais”? O desafio de uma educação sem discriminação étnica, cultural, de gênero. 7ª) Dialogicidade, dialeticidade. Não podemos negar a atualidade de certas categorias freireanas e marxistas, isto é, a validade de uma pedagogia dialógica ou da práxis. Marx, em O capital, privilegiou as categorias hegelianas “determinação”, “contradição”, “necessidade”, “possibilidade”. A fenomenologia hegeliana continua inspirando nossa educação e deverá atravessar o milênio. A educação popular e a pedagogia da práxis deverão continuar como paradigmas válidos para além do século XXI.

[DIALÉTICA AINDA É PARADIGMA MAIS CONSISTENTE PARA ANALISAR FENÔMENO DA EDUCAÇÃO]

A análise dessas categorias, a identificação da sua presença na pedagogia contemporânea, pode constituirse, sem dúvida, num grande programa a ser desenvolvido hoje em torno das “perspectivas atuais da educação”. Não pretendi ser completo nem exaustivo. Não pretendo dar respostas defi nitivas. Com esse pequeno texto introdutório pretendo apenas iniciar um debate sobre as perspetivas atuais da educação. Não tenho a intenção de, com isso, encerrá-lo. Estou ciente de que existem muitos outros desafios para a educação. A reflexão crítica não basta, como também não basta a prática sem a reflexão sobre ela. Neste pequeno texto indiquei apenas algumas pistas, dentro de uma visão otimista e crítica – não pessimista e ingênua – para uma análise em profundidade daqueles e daquelas que se interessam por uma educação voltada para o futuro, uma educação apropriada para o século XXI.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

16

NÍVEIS DE ESCRITA, SEGUNDO EMÍLIA FERREIRO

• ESCRITA PRÉ-SILÁBICA: o/a alfabetizando/a não compreende a natureza do nosso sistema alfabético, no qual a grafia representa sons, e não idéias, como nos sistemas ideográficos (como, por exemplo, a escrita chinesa). Nesta fase, ele/a representa a escrita através das seguintes hipóteses: -

REPRESENTAÇÃO ICÔNICA: expressa seu pensamento através de desenhos, não tendo a noção de escrita no sentido propriamente dito.

Escrever é a mesma coisa que desenhar.

TOMATE =

CAVALO =

PÃO =

- REPRESENTAÇÃO NÃO ICÔNICA: Além do desenho, expressa seu pensamento através de garatuja ou rabiscos (representação não-icônica); aqui, a criança inicia o conceito de escrita, mas ainda não reconhece as letras do alfabeto e seu valor sonoro.

TOMATE =

CAVALO=

PÃO=

- LETRAS ALEATÓRIAS: já conhece algumas letras do alfabeto, mas as utiliza aleatoriamente, pois não faz nenhuma correspondência sonora entre a fala e a escrita. Para escrever é preciso muitas letras.

TOMATE = ARMSBD

CAVALO = AMTOEL

PÃO = ATROCDG

- REALISMO NOMINAL: a criança acha que os nomes das pessoas e das coisas têm relação com os seus tamanhos. Se perguntar a criança: qual a palavra maior: BOI ou FORMIGUINHA? Ela dirá: BOI é uma palavra GRANDE e FORMIGUINHA uma palavra PEQUENA, atentando para o tamanho dos animais.

A superação do realismo nominal se dará no fim da fase da escrita pré-silábica.

- Ao ler palavras e orações, não marca a pauta sonora.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

17

• ESCRITA SILÁBICA: divide-se em escrita silábica e escrita silábica-alfabética. Na ESCRITA SILÁBICA, a criança supõe que a escrita representa a fala. É a fase que se inicia o processo de fonetização; nesta fase, ela tenta fonetizar a escrita e dar valor sonoro as letras. Cada sílaba é representada por uma letra com ou sem conotação sonora. Em frases pode escrever uma letra para cada palavra. Desvincula o objeto da palavra escrita. Escrita silábica sem valor sonoro: a criança escreve uma letra ou sinal gráfico para representar a sílaba, sem se preocupar com o valor sonoro correspondente.

TOMATE= RTO

CAVALO= BUT

PÃO= TU

Escrita silábica com valor sonoro: a criança escreve uma letra uma letra para cada sílaba, utilizando letras que correspondem ao som da sílaba; às vezes usa só vogais e outras vezes,

consoantes.

TOMATE= TMT / OAE / TAT / OME

CAVALO= CVL / AAO / AVO / CAL

PÃO= PU / AO

Na ESCRITA SILÁBICA-ALFABÉTICA a criança apresenta uma escrita algumas vezes com sílabas completas e outras incompletas. Ou seja, ela alterna escrita silábica com escrita alfabética, pois omite algumas letras.

TOMATE = TMAT

CAVALO = CVALU

PÃO = PA

O CAVALO PISOU NO TOMATE = UCVALUPZONUTMAT

• ESCRITA ALFABÉTICA: a criança faz a correspondência entre fonemas (som) e grafemas (letras). Ela atinge a compreensão de que as letras se articulam para formar palavras. Escreve como fala, ou seja, vê a escrita como transcrição da fala, não enxergando as questões ortográficas.

TOMATE = TUMATI

CAVALO = KAVALU

PÃO = PAUM

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

18

O CAVALO PISOU NO TOMATE = UKAVALU PIZONU TUMATI

No processo de construção da aprendizagem da língua escrita, do ponto de vista da Teoria da Psicogênese, o/a professor/a deve considerar que:

As hipóteses conceituais provisórias que as crianças fazem sobre a escrita não são “erradas”, “falta de conhecimento” ou até mesmo patológica. Devem ser consideradas como “erros construtivos”, já que é um processo de atividade constante em que a criança está elaborando hipóteses e alargando seu campo de conhecimento lingüístico.

O reconhecimento das hipóteses de escrita não deve se transformar em um recurso para categorizar as crianças, mas sim estar a serviço de um planejamento de atividades que considere as suas representações e atenda suas necessidades de aprendizagem.

A questão dos diferentes níveis, nas salas de aula de alfabetização, deixa de ser característica negativa para assumir papel de importância no processo ensino aprendizagem, onde a interação entre os/as alunos/as é fator imprescindível.

A criança depois que se apropria da escrita alfabética, enfrenta inúmeros problemas ortográficos e morfossintáticos, considerados normais para a fase em que se encontra. Porém, cabe ao professor/a fazer intervenções significativas para que ela se aproprie da escrita ortográfica. Os principais problemas que emergem quando as crianças se apropriam da escrita alfabética são

Leitura

Confusão de letras (trocas). Soletração sem aglutinação. Decodificação sem compreensão.

Leitura soletrada

Escrita

Transcrição fonética: tumati – kavalu = tomate – cavalo

Segmentação indevida: utumati = o tomate, com seguiu = conseguiu.

Juntura vocabular – uka valu = o cavalo, agente = a gente.

Troca do ão pelo am, i por u (e vice versa): paum = pão.

Ausência de nasalização: troca de m por n ou til (vice e versa): comseguiu – cõsegiu =

conseguiu.

Supressão ou acréscimo de letras.

Troca de letras / origem das palavras (etimologia): zino = sino, geito = jeito.

Escrita não segmentada: UKAVALUPIZONUTUMATI = o cavalo pisou no tomate.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

19

Não registra silabas de estruturas complexas: os dígrafos, o padrão consoante-consoante-vogal, a vogal dos encontros consonantais: vido – vidro.

Escrita sem significado (letras aleatórias). Frases descontextualizadas. Textos sem seqüência lógica.

Escrita espelhada: d por b, p por q. Repetição de elementos de ligação. Hipercorreção: coloo – colou, medeco – médico.

Por uma nova metodologia da linguagem

-- ensinando a gostar de ler --

1- Princípios Norteadores

Partimos da pressuposição de que a leitura do texto literário, sob a perspectiva da descoberta do prazer, é

um processo, e que, portanto, não se chega lá em alguns minutos. É necessário dar tempo ao tempo,

possibilitar que as descobertas se vão fazendo na medida em que a leitura se aprofunde, numa

aproximação paulatina que constitui, verdadeiramente, a construção do texto pelo leitor. Para que se

consiga isto, defendemos a idéia de que cada livro deva ser trabalhado sob a forma de um projeto, onde,

por intermédio das várias atividades, esses objetivos possam ser alcançados, paulatinamente.

METODOLOGIA TRADICIONAL

NOVA METODOLOGIA

CERTO POSSÍVEL

ÓBVIO DESCOBERTA

ÁRIDO LÚDICO

O quadro acima esquematiza as diferenças entre a nossa proposta e a metodologia tradicionalmente utilizada na escola, em relação à leitura, expressando os três princípios sobre os quais a primeira se fundamenta:

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

20

1. Ao invés de exigir do aluno que chegue a respostas corretas, o material didático oferecido ao aluno deve

possibilitar que ele chegue a respostas possíveis, sempre, é claro, compatíveis com o que o texto diz. A

perspectiva é que o aluno seja capaz de construir a sua leitura, e não apenas de corroborar uma leitura do

professor, porque a leitura do aluno é a manifestação da sua leitura de mundo, da sua leitura de vida,

necessariamente diferente de um para outro. Portanto, a tarefa do professor deve ser levar o aluno a

fornecer respostas pertinentes, e não qualquer resposta aleatória, mas não, necessariamente, respostas

convergentes.

2. A perspectiva estruturante do trabalho -- que na metodologia tradicional é a cópia do que se expõe na

superficialidade do texto -- deve ser a descoberta das várias verdades ali subjacentes. Por este princípio,

não cabe ao professor mostrar o que está no texto, mas dar ao aluno os elementos necessários à

construção de uma leitura tão profunda quanto permitir sua capacidade de análise e sua visão de mundo.

Assim, não devem ser propostas atividades que dependam da pura observação, nem que demandem

respostas mecânicas. A proposição do professor deve procurar investir sempre naquilo que não está óbvio.

3. Como a leitura é uma atividade profundamente árida e estratificada na sala de aula, e como o aluno

habituou-se a vê-la dessa forma, é necessário que os projetos demonstrem, de modo concreto, que o aluno

encontra-se diante de uma nova perspectiva de leitura, e que tudo será realizado de modo a que ele possa

ter prazer naquilo que faz. Por este motivo, as atividades propostas no âmbito do projeto devem ter uma

preocupação com o lúdico, diferenciando-se daquilo que, de modo geral, se faz na escola. É absolutamente

imprescindível que o aluno visualize que está diante de algo especial.

Por este motivo, deve-se procurar evitar o padrão pergunta / resposta do questionário, oferecendo jogos e

brincadeiras por meio dos quais o aluno construa uma leitura própria, em colaboração com o restante da

turma. A apresentação do trabalho sob uma perspectiva lúdica, no entanto, é fator necessário, mas não

suficiente, para que as atividades ganhem um fôlego novo. É preciso não esquecer que de nada adianta

escapar da formatação tradicional, se continuarmos a elaborar perguntas e a "cobrar" respostas tradicionais.

2- Estrutura

A maneira como as atividades se articulam dentro de cada projeto deve permitir que se atinja o objetivo

proposto. Para tanto, os projetos devem estar estruturados em três etapas: "atividades preliminares",

"atividades com o texto" e "atividades complementares", cada uma delas com objetivos específicos

definidos, de modo a levar o aluno a uma leitura global e múltipla, descobrindo o prazer de ler.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

21

O quadro que se segue mostra, de modo esquemático, cada uma das etapas da estrutura dos projetos, com seus respectivos objetivos.

ETAPAS OBJETIVOS

Atividades preliminares

Incentivar, pela curiosidade Fornecer informações Demonstrar o caráter lúdico do trabalho

Atividades com o texto (Roteiro de Leitura)

Oferecer oportunidades para que o aluno modele sua própria leitura

Trabalhar a compreensão em níveis tão profundos quanto possível:

o Utilização do método indutivo o Exploração intensiva e extensiva do texto o Abordagem analítico-sintética

Atividades complementares

Favorecer relações interdisciplinares Trazer a problemática do texto para a realidade do aluno Desenvolver a criatividade

As atividades preliminares

São aquelas que devem preparar o aluno para a leitura. Ao longo do tempo, a leitura se transformou em

algo tão massacrante para o aluno, que qualquer modificação nesse quadro deverá ser obra de sedução.

Assim, defendemos, com veemência, a idéia de que a leitura não pode se abater sobre o aluno, sem que

ele esteja suficientemente predisposto e preparado para realizá-la, visualizando-a como algo que realmente

possa acrescentar-lhe experiências e dar-lhe prazer.

Depreende-se daí a necessidade de que sejam realizadas atividades antes mesmo que o livro chegue às

mãos do aluno, e tais atividades devem atender, basicamente, a três objetivos:

Incentivar, pela curiosidade

Isto significa que o professor deve proceder de modo a despertar no aluno o desejo de ler aquele livro. Para

isso, podem ser utilizados recursos semelhantes aos da propaganda (como cartazes, com algumas

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

22

indicações acerca dos personagens ou do enredo, nos moldes dos anúncios de filmes ou de novelas de TV,

por exemplo), discussões sobre o tema, notícias de jornais, de modo a criar polêmicas e mobilizar a turma,

gerando no aluno uma curiosidade tal que o leve a dizer para si mesmo: "Eu quero ler este livro".

Fornecer informações

Muitas vezes, para que a compreensão de um texto ocorra de modo globalizado, é necessário que o aluno

disponha de informações maiores, de caráter científico ou histórico, ou ainda sobre outros textos; enfim,

informações que podem não fazer parte de seus conhecimentos e que, por isso, impediriam o leitor de

enxergar, com maior riqueza e acuidade, aquilo que o texto diz.

Essa necessidade se verifica em inúmeros textos, e aqui nos remetemos, a título de exemplificação, ao

Davi ataca outra vez, de Ruth Rocha, narrativa que traz para os nossos dias a história bíblica do confronto

do jovem Davi com o gigante Golias. Se o aluno desconhece a narrativa original, fará toda a leitura do livro

e será capaz de compreendê-lo sem problemas, mas a ele escapará a idéia de que, desde que o mundo é

mundo, pessoas corajosas se dispuseram a enfrentar seres muito mais poderosos que elas e conseguiram

obter sucesso. Esse sentido reforça a idéia de que não temos que nos curvar diante das injustiças,

ampliando o significado original do texto, conferindo-lhe um caráter de universalidade que escapa a quem

não pode -- porque não dispõe dos elementos necessários -- fazer as associações que o texto suscita.

A grande questão é que esse tipo de informação é fornecida, na metodologia tradicional, depois da leitura,

momento em que o professor pára e mostra ao aluno o que ele não viu. Neste momento, desaparece todo o

prazer que o aluno teria ao descobrir, ele mesmo, essas ligações; e sua leitura continuará sendo sempre

inferior à do professor.

Demonstrar o caráter lúdico do trabalho

A prática pedagógica que envolve a leitura, como já demonstramos, afasta o aluno dos livros -- o que não

significa que o aluno se afaste deles por si só, nem que tenha uma "prevenção" natural contra eles: é aquilo

que se cobra do aluno a respeito da leitura que o afasta dos livros.

Portanto, para que se reverta esse quadro, é imprescindível que se possa criar uma atitude positiva do

aluno frente ao trabalho que a ele será apresentado. Sendo assim, as atividades que antecedem o trabalho

com o texto propriamente dito devem ser o mais lúdicas possível. Atividades que envolvam toda a turma,

jogos, música, brincadeiras, atividades livres, passeios e visitas costumam causar um bom impacto.

Estes momentos precisam revelar ao aluno um compromisso com aquela verdade que a escola,

aparentemente, teima em esquecer; a verdade suprema de que criança gosta, mesmo, é de brincar. E que

a leitura pode se transformar numa linda, numa deliciosa brincadeira.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

23

As atividades com o texto: a elaboração do roteiro de leitura

De toda a metodologia desenvolvida, esta etapa, sem dúvida, é a mais dificilmente internalizada pelo

professor. A análise empreendida no capítulo 2 nos permite afirmar que o professor trabalha a partir do texto, e não o texto. O professor -- mais marcadamente ainda o do primeiro segmento do ensino

fundamental -- se esforça: encontra uma música sobre o mesmo tema, dramatiza a história, aproveita o

conteúdo da leitura para dar suporte ao trabalho de Estudos Sociais ou de Ciências, monta um mural com

desenhos das partes mais interessantes da história, em suma, enriquece o trabalho.

Mas volto, ainda, à mesma pergunta: "Isso é trabalhar o texto?" Toda essa prática é semelhante à tentativa

de se dar uma aula de música levando os alunos para assistirem a uma exposição de fotos sobre um baile.

Porque a matéria de que a música é feita são os sons, da mesma forma que a matéria de que é feita a

Literatura é a linguagem. Não há como empreender um trabalho com música que abdique da presença dos

sons, ainda que as fotos mostrem seus efeitos; como não há como empreender um trabalho de literatura

que abdique da linguagem, ainda que assentado sobre seus efeitos.

Assim, trabalhar o texto não é buscar o significado daquilo que se diz, mas buscar os significados que surgem da maneira como se diz aquilo, já que pressupõe que o foco se dirija à matéria de que é feito o

texto, ou seja, à linguagem nele utilizada. Quando um grupo de crianças, por exemplo, dramatiza uma

história após sua leitura, reduplica-se aquele sentido primeiro, mais superficial, do texto; a preocupação se

dirige exclusivamente ao enredo, ou seja, à história em si, e não à maneira como a história é contada.

Todas as outras leituras possíveis, toda a riqueza que se pode encontrar por detrás do texto, tudo isso

permanece obscuro, não vem à cena, não pode ser transformado em palavra ou gesto. As atividades com o

texto devem, portanto, basear-se no texto enquanto tal; por isso não podem restringir-se a comentários

orais, nem à reconstituição do enredo, independentemente da maneira como esta reconstituição seja feita.

As atividades com o texto devem ser organizadas num Roteiro de Leitura -- que em nada se aproxima dos

questionários de interpretação ou das tradicionais fichas de leitura -- capaz de levar o aluno a compreender

o texto em toda a sua extensão, a refletir sobre cada elemento que compõe sua estrutura, a perceber a

importância dos pormenores, até, finalmente, posicionar-se criticamente frente ao que foi lido. Tudo isto

pode ser sintetizado nos dois objetivos que fundamentam a elaboração do Roteiro de Leitura:

Oferecer oportunidades para que o aluno modele sua própria leitura

Modelar a leitura de um texto é um processo complexo, que compreende algumas fases: inicialmente, é

necessário compreender o texto, em toda a sua extensão e o mais profundamente possível; a seguir,

devem ser levantadas as diferentes hipóteses de significação, até que, finalmente o leitor elege uma delas,

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

24

capaz de satisfazê-lo plenamente. Muitas vezes, estas fases são concomitantes, ou seja, à proporção que a

leitura mais profunda vai acontecendo, o leitor vai levantando hipóteses e descartando-as, fixando-se, ao

final, em uma (ou, às vezes, em mais de uma). Quando se chega a isso, procedeu-se a uma leitura

"definitiva", ao menos até aquele momento.

Só é possível ao aluno modelar sua própria leitura a partir do momento em que o texto pode ser visto por

ele em toda a sua dimensão. Em relação a este aspecto da obra, "modelar a própria leitura" significa optar

por uma ou várias dessas possibilidades, ou, simplesmente, optar por não optar, se vier a concluir que isto

em nada afeta o sentido maior da narrativa.

Mas para chegar a esse ponto, é necessário que o aluno disponha de um material concreto, escrito, sobre o

qual possa refletir e a partir do qual se criem oportunidades para a observação atenta e minuciosa das

inúmeras possibilidades de leitura disponíveis no âmbito do próprio texto.

Trabalhar a compreensão em níveis tão profundos quanto possível

Este objetivo é decorrência natural do anterior, pois que a compreensão em profundidade, ponto inicial do

processo descrito no item anterior, pressupõe o levantamento de uma infinidade de hipóteses. Desta forma,

propomos que, para atingi-lo, o roteiro de leitura elaborado pelo professor esteja assentado nos seguintes

pontos:

o Utilização do método indutivo

O material deve levar o aluno a perceber as diferentes hipóteses de significação, sem, contudo, oferecer-lhe

respostas prontas. Portanto, sua função deve ser conduzir a observação do aluno para aqueles pontos

que, na nossa percepção, poderiam deixar de ser notados por ele.

Isto determinará que, muitas vezes, as atividades elaboradas poderão se tornar um pouco mais longas, em

função da necessidade de subdividir cada atividade em partes, por meio das quais o aluno seja capaz de ir

articulando os diferentes elementos, chegando a conclusões parciais, até que, por fim, se possa chegar a

uma conclusão maior, que sintetize todo aquele percurso, conforme preconizamos no próximo item.

o exploração intensiva e extensiva do texto

A compreensão efetiva do texto se faz por meio da compreensão de suas diferentes partes e das relações

existentes entre elas. Assim, propomos que todo o texto seja mapeado em profundidade, de modo a levar o

aluno a refletir sobre as diferentes hipóteses de leitura. Para essa análise, entretanto, não interessam

apenas as "idéias principais" do texto; ao contrário, interessam os pormenores, aquelas passagens, aquelas

expressões que nos causam certo mal-estar, porque não depreendemos exatamente o que estão fazendo

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

25

ali. É nelas que estará a chave que nos permitirá desvendar os diferentes significados do texto. E sobre eles

deve recair a atenção do professor na elaboração do roteiro de leitura. Enquanto houver uma só passagem

ainda obscura, haverá, certamente, uma hipótese de significação ainda não considerada.

No estudo do texto, não se deve desprezar qualquer elemento, pois que tudo nele tem uma função; e que

só a leitura atenta e intensa, que ultrapasse a facilidade do enredo, é capaz de nos remeter às diferentes

possibilidades de significação.

Assim, na leitura de um texto, não é preciso que toda a turma conclua a mesma coisa. O que se espera é

que o Professor se proponha a ouvir e respeitar a leitura de seus alunos, tendo o cuidado, apenas, de

demonstrar as leituras que não apresentam respaldo no texto.

o abordagem analítico-sintética

A exploração a que nos referimos no item anterior, para que ocorra de forma eficaz, deve se dar a partir da

análise do texto, passo a passo, obedecendo-se não à ordenação dos acontecimentos, mas à sua

apresentação no texto. Sempre que necessário, é desejável que a estrutura do texto também seja alvo

dessa análise. Mas o conhecimento das partes não encerra, por si só, o conhecimento do todo. Portanto,

após a análise, é necessário que o roteiro de leitura seja capaz de "amarrar" essas partes, levando o aluno

a elaborar um sentido geral para o texto. O trabalho de síntese, que deve fechar o material, não pode, no

entanto, "fechar" as possibilidades de significação do texto. É fundamental, por isso, que todo o material

seja elaborado com o cuidado de deixar em aberto espaços capazes de acolher as leituras divergentes. Por

mais experiente que seja o professor, não é possível prever todas as hipóteses, e é bom que o aluno

perceba que há um espaço reservado à sua leitura, caso seja diferentes da nossa.

Para a elaboração de um roteiro de leitura seguro, algumas observações específicas podem, ainda, ser

úteis:

A apresentação do material. Tudo o que estiver ligado ao projeto de leitura precisa ser, como o livro,

agradável aos olhos e à mente. Assim, o material que chegar às mãos do aluno deve ser muito bem

cuidado, de modo a fazê-lo ver que se trata de algo especial, feito especialmente para ele, porque ele é

especial.

O caráter lúdico. Todos nós sabemos que não é possível brincar o tempo inteiro, muito menos quando

se quer desenvolver algo sério. Portanto, há momentos, dentro do roteiro de leitura, em que a maneira

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

26

como as questões serão apresentadas certamente não poderão fugir ao que se pretende, e nesses

momentos o aluno terá, também, questões apresentadas de uma forma mais tradicional. Mas, sempre

que possível, deve-se optar por formas alternativas de elaborar as questões, utilizando, para isso, de

recursos típicos de atividades "recreativas" (como jogos de todas as espécies, palavras-cruzadas, caça-

palavras, recorte-colagem, entre outros já existentes ou criados pelo próprio professor). O

imprescindível é que o material elaborado não tenha cara de questionário, e, se houver necessidade

imperiosa de lançar mão de formas tradicionais de apresentação de questões, que estas venham

intercaladas com atividades mais lúdicas, de forma a não descaracterizar este fundamento do trabalho.

Claro está que quanto mais alta a faixa etária a que se destina o material, menos lúdico ele tende a ser,

em termos de forma, o que precisa ser compensado com a natureza da atividade em si. O primordial é

que o aluno tenha prazer em realizar a atividade.

A dinâmica da aplicação do roteiro de leitura.

Por tudo o que já se disse, é razoável que o Roteiro de Leitura seja relativamente extenso e, portanto,

não deve ser aplicado de uma só vez. Ao contrário, é imprescindível que, durante algum tempo, o

professor reserve um espaço em seu planejamento para o desenvolvimento paulatino e gradual dessa

etapa do projeto. Por outro lado, como a natureza do material exige também envolvimento /

posicionamento do leitor, é desejável que o roteiro possa ser discutido entre os alunos, de modo a

evidenciar a inexistência de respostas corretas. Nesse sentido, sugerimos a adoção da seguinte

dinâmica:

O roteiro de leitura deve ser discutido em duplas, para que as opiniões, trazidas à cena,

propiciem a apreciação de semelhanças e divergências entre elas.

Apesar disso, cada aluno deve ter o seu material, utilizando-o individualmente, até para

possibilitar o registro de respostas divergentes e a execução de tarefas de criação.

Depois de "pronto", o roteiro deve ser retrabalhado pelo professor com toda a turma, de modo a

permitir que transpareça a riqueza das respostas.

Cabe ao professor, portanto, criar um ambiente favorável à divergência, acentuando, desde o início do

trabalho, que não se buscam respostas corretas, mas respostas possíveis, sendo salutar e rica a

diferença de opiniões. No momento em que as primeiras conclusões forem trazidas à turma, é

essencial que o professor demonstre, claramente, que só o respeito à divergência pode vir a enriquecer

a visão de cada um acerca do texto.

As questões de múltipla escolha. Podem ser utilizadas, desde que abertas, ou seja, além de várias

respostas possíveis, dentre elas deve haver uma que o próprio aluno possa preencher, caso não se

sinta satisfeito com a utilização das outras, oferecidas pelo professor. A múltipla escolha deve ser

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

27

usada para respostas que não estejam evidentes no texto.

A título de exemplo:

Já era tarde quando Marcelo saiu da escola e, embora soubesse que estava atrasado, não resistiu à cena daquele cachorrinho parado ali, na calçada, com a pata machucada e os olhos de quem precisa de carinho. Durante alguns instantes, Marcelo permaneceu estático, olhando só. Logo logo virou-se, para seguir seu caminho, mas não foi capaz. Sem pensar no que sua mãe iria dizer, abaixou-se e, com todo o cuidado, pôs o pequeno animal no colo, a mochila nas costas e seguiu,

eufórico, para casa.

Questionários de "interpretação" tradicionais perguntariam: "Quem o menino levou para casa?" ou "O que o

menino fez com cachorrinho que encontrou?" Quaisquer que fossem as opções oferecidas, as respostas só

poderiam ser, respectivamente, "o cachorrinho (machucado)" e "levou-o para casa". Este tipo de questão

nada acrescenta à leitura, além da simples decodificação.

A fim de levar à reflexão, a pergunta elaborada poderia ser, por exemplo, assim: "Levando o cachorrinho

para casa, o menino demonstrou ..."

[ ] Compreensão [ ] Desejo de possuir um cachorrinho

[ ] Sensibilidade [ ] Irresponsabilidade

[ ] Caridade [ ] Amizade pelos animais

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

28

[ ] Indiferença [ ] ____________________

As respostas mais prováveis seriam "caridade", "amizade pelos animais", "sensibilidade" ou "desejo de

possuir um cachorrinho". Isso não significa que o aluno não pudesse privilegiar a "compreensão",

apontando-a como a melhor resposta, na medida em que o menino efetivamente "compreendeu", por seu

olhar, que o animal precisava de ajuda, ou a "sensibilidade", já que o menino se mostrou sensível ao

sofrimento do cãozinho.

Seria o caso, no entanto, de admitir que as respostas "irresponsabilidade" ou "indiferença" seriam, com

segurança, inadequadas? Se consideramos que Marcelo tomou tal atitude sem consultar os adultos com

quem vive, podemos vislumbrar na sua atitude "indiferença", ao menos em relação à opinião de sua mãe.

Por outro lado, também não deixa de haver certa irresponsabilidade em seu ato, na medida em que apanhar

um animal desconhecido na rua envolve graves riscos de contrair doenças.

Portanto, se, em função da experiência de vida do aluno, estas outras hipóteses fossem valorizadas pelo

leitor, seria naturalíssimo que estas duas opções lhe parecessem mais adequadas, ao invés da "amizade

pelos animais", por hipótese. Mas todas essas opções poderiam ainda não ser satisfatórias para um outro

aluno, que sempre tivesse sonhado em ser veterinário, e que, em função disso, viesse a responder: "prazer

em cuidar de animais", hipótese capaz de compatibilizar a realidade do texto com sua realidade de vida.

O importante é a múltipla escolha permitir que valores pessoais sejam expressos nas diferentes hipóteses

de escolha, enquanto base para a modelagem de uma leitura própria, desde que não firam o que se diz no

texto. Por esse princípio, seria inadequada, nesse caso, por exemplo, a resposta "não ligar para os

animais", pois o que o texto diz contraria essa idéia, embora abra espaços para inúmeras outras.

Assim, neste tipo de questão, o professor deve oferecer um espaço para o posicionamento particular do

aluno e estar preparado para aceitar os argumentos que embasam as diferentes respostas, ainda que não

correspondam à sua própria leitura do texto.

As questões de elaboração de argumentos. Devem ser utilizadas, sempre que possível, com o

objetivo de levar o aluno a justificar suas respostas, uma vez que não se busca uma resposta gratuita,

mas a elaboração mental de uma cadeia significante; ou seja, que ao "direito" de pensar diferente deve

estar associado o "dever" de demonstrar que o que se pensa é "possível", dentro daquilo que o texto

apresenta. Voltando, ainda, ao mesmo exemplo, o aluno que respondeu "irresponsabilidade" deve ser

capaz de justificar sua resposta, ainda que o risco real de apanhar um animal na rua não esteja

manifestado no texto.

As questões de caráter pessoal. No âmbito do roteiro de leitura não devem ser utilizadas questões

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

29

que exijam do aluno que ocupe o lugar do personagem, ou que julgue suas atitudes. Utilizando o

mesmo exemplo do tópico anterior, seria habitual encontrarmos perguntas do tipo: "Você também teria

levado o cachorrinho para casa?" ou "Você já passou por uma situação como esta?". Tais questões se

mostram inadequadas à elaboração de uma leitura do texto, na medida em que não delimitam duas

realidades absolutamente distintas (a sua e a do texto), por mais próximas que possam parecer. Ao

levantar tais indagações, colocam-se em cena não os valores expressos na narrativa, mas valores

externos a ela, contaminando-a com aquilo que ali não se diz. Claro está que este tipo de indagação

pode acabar surgindo, na medida em que trazem o texto para a realidade do leitor, mas só devem ser

provocadas nas atividades complementares depois de o texto ter sido trabalhado.

A ilustração no roteiro de leitura.

Ao contrário do que possa parecer, o material de abordagem de leitura não deve estar centrado

exclusivamente no texto escrito. É falsa a idéia de que "as figuras" no livro infanto-juvenil são um

apêndice que apenas reduplicam o que o texto diz. Ao contrário, quando de boa qualidade, a ilustração

acrescenta elementos ao texto, reinterpreta-os, preenche vazios da narrativa, transformando-se num

outro texto que precisa ser lido junto, já que, nesses casos, o texto é o produto do diálogo entre

linguagem verbal e linguagem não-verbal. Assim, o Roteiro de Leitura deve mobilizar a observação do

aluno também para esses elementos, permitindo que sua leitura se dê de forma globalizada e

integralizadora.

O roteiro de leitura para o aluno ainda não alfabetizado.

O analfabetismo não representa um impedimento à aplicação de um roteiro de leitura, quando é

elaborado de modo a que a criança não tenha necessidade de escrever. Se o professor lê o livro para

o aluno, pode, da mesma forma, orientá-la no desenvolvimento do roteiro de leitura. É imprescindível

que o texto seja trabalhado, de modo a possibilitar a efetiva compreensão, despertando na criança,

inclusive, a vontade de ler por ela mesma. Atividades que envolvem material concreto, jogos, questões

de recorte e colagem, de associação de elementos, até mesmo questões em que se peça ao aluno

para pintar uma ou outra palavra, se a alfabetização já está em processo; são inúmeras as

possibilidades de levá-lo a refletir sobre o que foi lido, de forma articulada, sem que haja necessidade

do domínio da escrita.

As atividades complementares

Estas atividades devem representar a culminância do trabalho, e, por isso mesmo, devem ter o caráter de

uma grande "festa". São as atividades que inúmeros professores quase sempre realizam, sem perceberem,

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

30

no entanto, que nesses momentos já não se trabalha o texto, mas a projeção do texto para além da sua

própria esfera. Aqui podem ser planejados eventos envolvendo o restante da escola (mostras de trabalhos,

feiras, campanhas ou, até mesmo, a dramatização do texto para outras turmas); eventos que permitam ao

aluno vivenciar situações apresentadas no livro (passeios, entrevistas com especialistas convidados para

abordar um assunto específico, ida ao cinema ou ao teatro); novos projetos (criação de um jornal, de um

sistema de correio dentro da turma ou da escola); enfim, um sem-número de possibilidades de exploração

daquilo que se aprendeu lendo, e que não pode ser traduzido, especificamente, por nenhum conteúdo, mas

que acrescentam à vivência do aluno, tornando-o mais capaz para enfrentar os embates do cotidiano,

tornando-o mais consciente e mais crítico. Assim, as atividades complementares devem atender,

basicamente, a três objetivos fundamentais:

Favorecer relações interdisciplinares

Nesta etapa é que o texto lido deve ser aproveitado, sempre for que possível e pertinente, para focalizar

conteúdos de outras disciplinas. Nesse momento, quando o texto já foi exaustivamente explorado, a

interdisciplinaridade surge como um elemento benéfico e desejável.

É fundamental, no entanto, que este aproveitamento não fira o caráter lúdico de que o trabalho se revestiu

até aqui. Não faz o menor sentido utilizar a "brincadeira" como um princípio que só vale para a leitura. Se o

trabalho a ser desenvolvido depois está ligado ao livro, deve ser, igualmente, lúdico, a fim de que o aluno

não passe a associar a leitura a atividades rotineiras e enfadonhas.

Trazer a problemática do texto para a realidade do aluno

Com este objetivo pretende-se que o aluno internalize que ler é aprender, não, necessariamente, um

conteúdo, mas aprender coisas que poderão fazê-lo viver melhor. Não se trata aqui, apenas, de verificar,

com comentários orais, de que modo pode haver uma identidade entre situações vividas no papel (pelos

personagens) e na vida real (pelo leitor). Ou seja, não se trata de perguntar, por exemplo, depois de uma

história cujo protagonista tem um cãozinho de estimação, quem passa ou já passou por situação análoga.

Trata-se, sim, de criar oportunidades para que o aluno promova a transferência de aprendizagem e verifique

de que modo é possível aproveitar o que aprendeu nos livros, trazendo aquela bagagem de experiências

para a vida real.

Desenvolver a criatividade

Este último objetivo liga-se, basicamente, ao caráter mágico da literatura. À medida que é posto em contato

com textos criativos, o aluno tende a permitir-se ousar, falando, escrevendo, desenhando, ou seja,

construindo mundos a que ele chega tirando os pés do chão.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

31

Algumas experiências anteriores a nosso trabalho já demonstram a validade da utilização da literatura

infantil como elemento que estimule a criatividade, principalmente quando se objetiva o desenvolvimento da

escrita. "Todos nós -- adultos e crianças -- somos potencialmente criativos. O despertar dessa criatividade

depende apenas de uma estimulação adequada".

A leitura de bons livros -- criativos, estimulantes, instigantes -- gera no aluno uma predisposição natural a

essa "ousadia". Como uma parcela considerável da literatura infanto-juvenil se fundamenta no fantástico, se

as atividades de criação -- marcadamente as de produção de texto -- ocorrem após um trabalho de leitura

solidamente articulado, os resultados obtidos são significativamente melhores, ou seja, os textos produzidos

se apresentam mais bem estruturados, fugindo ao lugar-comum, buscando variações tanto no que se diz

quanto na maneira como diz.

“Para não esquecer”

" Ler não é decifrar, escrever não é copiar".

Muito antes de iniciar o processo formal de aprendizagem da leitura/escrita, as crianças constroem hipóteses sobre este objeto de conhecimento. Segundo Emília Ferreiro e Ana Teberowsky (pedagoga de Barcelona), pesquisadoras reconhecidas internacionalmente por seus trabalhos sobre alfabetização, a grande maioria das crianças, na faixa dos seis anos, faz corretamente a distinção entre texto e desenho, sabendo que o que se pode ler é aquilo que contém letras, embora algumas ainda persistam na hipótese de que tanto se pode ler as letras quanto os desenhos. É bastante significativo que estas crianças pertençam às classes sociais mais pobres que por isso acabam tendo um menor contato com material escrito.

O processo de construção da escrita

Como foi visto até agora, crianças que adentram à escola já sabem identificar uma série de

segmentos escritos que representam idéias construídas e constituem algum tipo de leitura, sem ser,

necessariamente, a decifração de palavras escritas de maneira convencional. Serão verificados

agora os processos de construção da escrita pela criança.

Na fase 1, início dessa construção, as tentativas das crianças dão-se no sentido da reprodução dos

traços básicos da escrita com que elas se deparam no cotidiano. O que vale é a intenção, pois,

embora o traçado seja semelhante, cada um "lê" em seus rabiscos aquilo que quis escrever. Desta

maneira, cada um só pode interpretar a sua própria escrita, e não a dos outros. Nesta fase, a

criança elabora a hipótese de que a escrita dos nomes é proporcional ao tamanho do objeto ou ser

a que está se referindo.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

32

Na fase 2, a hipótese central é de que para ler coisas diferentes é preciso usar formas diferentes. A

criança procura combinar de várias maneiras as poucas formas de letras que é capaz de reproduzir.

Nesta fase, ao tentar escrever, a criança respeita duas exigências básicas: a quantidade de letras

(nunca inferior a três) e a variedade entre elas, (não podem ser repetidas).

Na fase 3, são feitas tentativas de dar um valor sonoro a cada uma das letras que compõem a palavra.

Surge a chamada hipótese silábica, isto é, cada grafia traçada corresponde a uma sílaba pronunciada,

podendo ser usadas letras ou outro tipo de grafia. Há, neste momento, um conflito entre a hipótese silábica

e a quantidade mínima de letras exigida para que a escrita possa ser lida. A criança, neste nível,

trabalhando com a hipótese silábica, precisa usar duas formas gráficas para escrever palavras com duas

sílabas, o que vai de encontro às suas idéias iniciais de que são necessários, pelo menos três caracteres.

Este conflito a faz caminhar para outra fase.

Na fase 4 ocorre, então a transição da hipótese silábica para a alfabética. O conflito que se estabeleceu -

entre uma exigência interna da própria criança ( o número mínimo de grafias ) e a realidade das formas que

o meio lhe oferece, faz com que ela procure soluções.Ela, então, começa a perceber que escrever é

representar progressivamente as partes sonoras das palavras, ainda que não o faça corretamente.

Na fase 5, finalmente, é atingido o estágio da escrita alfabética, pela compreensão de que a

cada um dos caracteres da escrita corresponde valores menores que a sílaba, e que uma

palavra, se tiver duas sílabas, exigindo, portanto, dois movimentos para ser pronunciada,

necessitará mais do que duas letras para ser escrita e a existência de uma regra produtiva que

lhes permite, a partir desses elementos simples, formar a representação de inúmeras sílabas,

mesmo aquelas sobre as quais não se tenham exercitado.

A criança tem a sua frente uma estrada longa, até chegar à leitura e a escrita da maneira que

nós, adultos, a concebemos, percebendo que a cada som corresponde uma determinada forma; que há

grupos de letras separada por espaços em branco, grupos estes que correspondem a cada uma da

palavras escritas.

A Hipótese da Criança e as Cartilhas

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

33

Segundo as pesquisas a que vimos nos referindo, para que alguma coisa sirva para ler é preciso que

contenha um certo número de letras, variável entre dois e quatro. Letra sozinha não representa nada

escrito. De nada servem, também, conjuntos com letras repetidas, pois elas entendem que só podem ser

lidas palavras que contenham letras diferentes. Uma explicação para tal, seria que no em seu dia a dia,

observam que o comum é encontrar palavras formadas por uma variedade de letras.

Bem, chegamos agora às Cartilhas.

Como ficam os alfabetizadores em relação a esse problema, se a grande maioria das Cartilhas apresentam às crianças logo de início, palavras como:

bebe, baba, boi, aí, ai, eu, oi, vovô?

Em que medida as Cartilhas contribuem para a aquisição do processo de escrita

compreendido de acordo com os resultados das pesquisas efetuadas por Ferreiro e outros

autores desta linha, principalmente para crianças oriundas das classes mais desfavorecidas, que

acabam tendo um menor contado com a produção escrita em seu meio social?

As cartilhas mostraram-se e mostram que não são eficientes para a tarefa de ensinar a ler e a escrever a

crianças pré-silábicas. Pesquisem, e verifiquem que toda cartilha parte do pressuposto de que a criança já

compreende o nosso sistema de escrita. Ou seja, que ela já entende que aquilo que as letras representam é

a pauta sonora dos nomes dos objetos , e não o próprio objeto a que se referem. E, os estudos atuais já demonstraram suficientemente que as dificuldades mais importantes do processo de alfabetização

situam-se ao nível de compreensão da estrutura do sistema alfabético, enquanto a representação da

linguagem.

Elas acabam sendo usadas quando:

As ações educativas, tiverem subjacentes, mesmo que de forma não muito clara, a concepção de que a

escrita é um mero código de transcrição da fala.Desse modo, é bastante lógico, que o processo de

alfabetização desenvolvido, também se restrinja à aquisição de uma técnica, a qual para seu

desenvolvimento dará atenção principalmente:

A) aos aspectos gráficos da escrita;

B) ao desenvolvimento de habilidades que visem garantir a correção da transcrição;

C) à qualidade do grafismo: controle do traço, distribuição espacial, orientação dos caracteres;

D) desenvolvimento de tarefas de "prontidão": preenchimento de tracinhos, preenchimento do

traçado de letras, cópia do traçado de letra, exercícios de discriminação auditiva e visual.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

34

Neste caso, essa concepção nos leva a uma metodologia voltada para a aquisição da escrita, sem levar

em consideração aquilo que a criança já sabe sobre esse objeto, sobre o domínio que tem da língua,

utilizando-a com eficiência em situações de comunicação. Portanto a utilização direta das cartilhas nesse

contexto estaria de acordo com as concepções que estão dando suporte às ações pedagógicas.

As cartilhas nunca podem ou devem ser usadas ?

Se essa utilização estiver sendo realizada com crianças que já tenham construído a base alfabética do

sistema de escrita, não vemos nenhum problema maior para elas, pois, o que irão encontrar não estará em

desacordo com suas hipóteses sobre a escrita.

Alfabetização e Letramento: Repensando o Ensino da Língua Escrita

Se, no início da década de 80, os estudos acerca da psicogênese da língua escrita trouxeram aos

educadores o entendimento de que a alfabetização, longe de ser a apropriação de um código, envolve um

complexo processo de elaboração de hipóteses sobre a representação lingüística; os anos que se

seguiram, com a emergência dos estudos sobre o letramento, foram igualmente férteis na compreensão da

dimensão sócio-cultural da língua escrita e de seu aprendizado. Em estreita sintonia, ambos os

movimentos, nas suas vertentes teórico-conceituais, romperam definitivamente com a segregação

dicotômica entre o sujeito que aprende e o professor que ensina. Romperam também com o reducionismo

que delimitava a sala de aula como o único espaço de aprendizagem.

Reforçando os princípios antes propalados por Vygotsky e Piaget, a aprendizagem se processa em uma

relação interativa entre o sujeito e a cultura em que vive. Isso quer dizer que, ao lado dos processos

cognitivos de elaboração absolutamente pessoal (ninguém aprende pelo outro), há um contexto que, não só

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

35

fornece informações específicas ao aprendiz, como também motiva, dá sentido e “concretude” ao

aprendido, e ainda condiciona suas possibilidades efetivas de aplicação e uso nas situações vividas. Entre o

homem e o saberes próprios de sua cultura, há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da

aprendizagem (não só o professor, nem só a escola, embora estes sejam agentes privilegiados pela

sistemática pedagogicamente planejada, objetivos e intencionalidade assumida).

O objetivo do presente artigo é apresentar o impacto dos estudos sobre o letramento para as práticas

alfabetizadoras.

Capitaneada pelas publicações de Angela Kleiman, (95) Magda Soares (95, 98) e Tfouni (95), a concepção

de letramento contribuiu para redimensionar a compreensão que hoje temos sobre: a) as dimensões do

aprender a ler e a escrever; b) o desafio de ensinar a ler e a escrever; c) o significado do aprender a ler e a

escrever, c) o quadro da sociedade leitora no Brasil d) os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a

ler e a escrever, e e) as próprias perspectivas das pesquisas sobre letramento.

As dimensões do aprender a ler e a escrever

Durante muito tempo a alfabetização foi entendida como mera sistematização do “B + A = BA”, isto é, como

a aquisição de um código fundado na relação entre fonemas e grafemas. Em uma sociedade constituída em

grande parte por analfabetos e marcada por reduzidas práticas de leitura e escrita, a simples consciência

fonológica que permitia aos sujeitos associar sons e letras para produzir/interpretar palavras (ou frases

curtas) parecia ser suficiente para diferenciar o alfabetizado do analfabeto.

Com o tempo, a superação do analfabetismo em massa e a crescente complexidade de nossas sociedades

fazem surgir maiores e mais variadas práticas de uso da língua escrita. Tão fortes são os apelos que o

mundo letrado exerce sobre as pessoas que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar

o código da leitura. Seguindo a mesma trajetória dos países desenvolvidos, o final do século XX impôs a

praticamente todos os povos a exigência da língua escrita não mais como meta de conhecimento desejável,

mas como verdadeira condição para a sobrevivência e a conquista da cidadania. Foi no contexto das

grandes transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas que o termo “letramento”

surgiu, ampliando o sentido do que tradicionalmente se conhecia por alfabetização (Soares, 2003).

Hoje, tão importante quanto conhecer o funcionamento do sistema de escrita é poder se engajar em

práticas sociais letradas, respondendo aos inevitáveis apelos de uma cultura grafocêntrica. Assim,

Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o

letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de uma sociedade (Tfouni, 1995, p. 20).

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

36

Com a mesma preocupação em diferenciar as práticas escolares de ensino da língua escrita e a dimensão

social das várias manifestações escritas em cada comunidade, Kleiman, apoiada nos estudos de Scribner e

Cole, define o letramento como

... um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia,

em contextos específicos. As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social

segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da

dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de

prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina

uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita. (1995, p. 19)

Mais do que expor a oposição entre os conceitos de “alfabetização” e “letramento”, Soares valoriza o

impacto qualitativo que este conjunto de práticas sociais representa para o sujeito, extrapolando a dimensão

técnica e instrumental do puro domínio do sistema de escrita:

Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para

ler e escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da

escrita. Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se Letramento que implica

habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos (In Ribeiro,

2003, p. 91).

Ao permitir que o sujeito interprete, divirta-se, seduza, sistematize, confronte, induza, documente, informe,

oriente-se, reivindique, e garanta a sua memória, o efetivo uso da escrita garante-lhe uma condição

diferenciada na sua relação com o mundo, um estado não necessariamente conquistado por aquele que

apenas domina o código (Soares, 1998). Por isso, aprender a ler e a escrever implica não apenas o

conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de associá-las), mas a possibilidade de usar esse

conhecimento em benefício de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias

e legítimas em um determinado contexto cultural. Em função disso,

Talvez a diretriz pedagógica mais importante no trabalho (...dos professores), tanto na pré-escola quanto no

ensino médio, seja a utilização da escrita verdadeira nas diversas atividades pedagógicas, isto é, a

utilização da escrita, em sala, correspondendo às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas

práticas sociais. Nesta perspectiva, assume-se que o ponto de partida e de chegada do processo de

alfabetização escolar é o texto: trecho falado ou escrito, caracterizado pela unidade de sentido que se

estabelece numa determinada situação discursiva. (Leite, p. 25)

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

37

O desafio de ensinar a ler e a escrever

Partindo da concepção da língua escrita como sistema formal (de regras, convenções e normas de

funcionamento) que se legitima pela possibilidade de uso efetivo nas mais diversas situações e para

diferentes fins, somos levados a admitir o paradoxo inerente à própria língua: por um lado, uma estrutura

suficientemente fechada que não admite transgressões sob pena de perder a dupla condição de

inteligibilidade e comunicação; por outro, um recurso suficientemente aberto que permite dizer tudo, isto é,

um sistema permanentemente disponível ao poder humano de criação (Geraldi, 93).

Como conciliar essas duas vertentes da língua em um único sistema de ensino? Na análise dessa questão,

dois embates merecem destaque: o conceitual e o ideológico.

1) O embate conceitual

Tendo em vista a independência e a interdependência entre alfabetização e letramento (processos

paralelos, simultâneos ou não, mas que indiscutivelmente se complementam), alguns autores contestam a

distinção de ambos os conceitos, defendendo um único e indissociável processo de aprendizagem

(incluindo a compreensão do sistema e sua possibilidade de uso). Em uma concepção progressista de

“alfabetização” (nascida em oposição às práticas tradicionais, a partir dos estudos psicogenéticos dos anos

80), o processo de alfabetização incorpora a experiência do letramento e este não passa de uma

redundância em função de como o ensino da língua escrita já é concebido. Questionada formalmente sobre

a “novidade conceitual” da palavra “letramento”, Emilia Ferreiro explicita assim a sua rejeição ao uso do

termo:

Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia usar a expressão letramento. E o que aconteceu

com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com

distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período

de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar

razão à velha consciência fonológica. (2003, p. 30)

Note-se, contudo, que a oposição da referida autora circunscreve-se estritamente ao perigo da dissociação

entre o aprender a escrever e o usar a escrita (“retrocesso” porque representa a volta da tradicional

compreensão instrumental da escrita). Como árdua defensora de práticas pedagógicas contextualizadas e

signifcativas para o sujeito, o trabalho de Emília Ferreiro, tal como o dos estudiosos do letramento, apela

para o resgate das efetivas práticas sociais de língua escrita o que faz da oposição entre eles um mero

embate conceitual.

Tomando os dois extremos como ênfases nefastas à aprendizagem da língua escrita (priorizando a

aprendizagem do sistema ou privilegiando apenas as práticas sociais de aproximação do aluno com os

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

38

textos), Soares defende a complementaridade e o equilíbrio entre ambos e chama a atenção para o valor da

distinção terminológica:

Porque alfabetização e letramento são conceitos freqüentemente confundidos ou sobrepostos, é importante

distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a

introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a

especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o

processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no quadro do conceito

de letramento, como também este é dependente daquele. (2003, p. 90)

Assim como a autora, é preciso reconhecer o mérito teórico e conceitual de ambos os termos. Balizando o

movimento pendular das propostas pedagógicas (não raro transformadas em modismos banais e mal

assimilados), a compreensão que hoje temos do fenômeno do letramento presta-se tanto para banir

definitivamente as práticas mecânicas de ensino instrumental, como para se repensar na especificidade da

alfabetização. Na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se o desafio dos educadores em face

do ensino da língua escrita: o alfabetizar leirando.

2) O embate ideológico

Mais severo do que o embate conceitual, a oposição entre os dois modelos descritos por Street (1984)

representa um posicionamento radicalmente diferente, tanto no que diz respeito às concepções implícita ou

explicitamente assumidas quanto no que tange à pratica pedagógica por elas sustentadas.

O “Modelo Autônomo”, predominante em nossa sociedade, parte do princípio de que, independentemente

do contexto de produção, a língua tem uma autonomia (resultado de uma lógica intrínseca) que só pode ser

apreendida por um processo único, normalmente associado ao sucesso e desenvolvimento próprios de

grupos “mais civilizados”.

Contagiada pela concepção de que o uso da escrita só é legitimo se atrelada ao padrão elitista da “norma

culta” e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão de um inflexível funcionamento lingüístico, a

escola tradicional sempre pautou o ensino pela progressão ordenada de conhecimentos: aprender a falar a

língua dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para, um dia (talvez nunca) fazer uso desse

sistema em formas de manifestação previsíveis e valorizadas pela sociedade. Em síntese, uma prática

reducionista pelo viés lingüístico e autoritária pelo significado político; uma metodologia etnocêntrica que,

pela desconsideração do aluno, mais se presta a alimentar o quadro do fracasso escolar.

Em oposição, o “Modelo Ideológico” admite a pluralidade das práticas letradas, valorizando o seu significado

cultural e contexto de produção. Rompendo definitivamente com a divisão entre o “momento de aprender” e

o “momento de fazer uso da aprendizagem”, os estudos lingüísticos propõem a articulação dinâmica e

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

39

reversível entre “descobrir a escrita” (conhecimento de suas funções e formas de manifestação), “aprender

a escrita” (compreensão das regras e modos de funcionamento) e “usar a escrita” (cultivo de suas práticas a

partir de um referencial culturalmente significativo para o sujeito). O esquema abaixo pretende ilustrar a

integração das várias dimensões do aprender a ler e escrever no processo de alfabetizar letrando:

O significado do aprender a ler e a escrever

Ao permitir que as pessoas cultivem os hábitos de leitura e escrita e respondam aos apelos da cultura

grafocêntrica, podendo inserir-se criticamente na sociedade, a aprendizagem da língua escrita deixa de ser

uma questão estritamente pedagógica para alçar-se à esfera política, evidentemente pelo que representa o

investimento na formação humana. Nas palavras de Emilia Ferreiro,

A escrita é importante na escola, porque é importante fora dela e não o contrário. (2001)

Retomando a tese defendida por Paulo Freire, os estudos sobre o letramento reconfiguraram a conotação

política de uma conquista – a alfabetização - que não necessariamente se coloca a serviço da libertação

humana. Muito pelo contrário, a história do ensino no Brasil, a despeito de eventuais boas intenções e das

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

40

“ilhas de excelência”, tem deixado rastros de um índice sempre inaceitável de analfabetismo agravado pelo

quadro nacional de baixo letramento.

O quadro da sociedade leitora no Brasil

Do mesmo modo como transformaram as concepções de língua escrita, redimensionaram as diretrizes para

a alfabetização e ampliaram a reflexão sobre o significado dessa aprendizagem, os estudos sobre o

letramento obrigam-nos a reconfigurar o quadro da sociedade leitora no Brasil. Ao lado do índice nacional

de 16.295.000 analfabetos no país (IBGE, 2003), importa considerar um contingente de indivíduos que,

embora formalmente alfabetizados, são incapazes de ler textos longos, localizar ou relacionar suas

informações.

Dados do Instituto Nacional de Estatística e Pesquisa em Educação (INEP) indicam que os índices

alcançados pela maioria dos alunos de 4ª série do Ensino Fundamental não ultrapassam os níveis “crítico” e

“muito crítico”. Isso quer dizer que mesmo para as crianças que têm acesso à escola e que nela

permanecem por mais de 3 anos, não há garantia de acesso autônomo às praticas sociais de leitura e

escrita (Colello, 2003, Colello e Silva, 2003). Que escola é essa que não ensina a escrever?

Independentemente do vínculo escolar, essa mesma tendência parece confirmar-se pelo “Indicador

Nacional de Alfabetismo Funcional” (INAF), uma pesquisa realizada por amostragem representativa da

população brasileira de jovens e adultos (de 15 a 64 anos de idade): entre os 2000 entrevistados, 1475

eram analfabetos ou tinham pouca autonomia para ler ou escrever, e apenas 525 puderam ser

considerados efetivos usuários da língua escrita. Indiscutivelmente, uma triste realidade!

Os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever

Por que será que tantas crianças e jovens deixam de aprender a ler e a escrever? Por que é tão difícil

integrar-se de modo competente nas práticas sociais de leitura e escrita?

Se descartássemos as explicações mais simplistas (verdadeiros mitos da educação) que culpam o aluno

pelo fracasso escolar; se admitíssemos que os chamados “problemas de aprendizagem” se explicam muito

mais pelas relações estabelecidas na dinâmica da vida estudantil; se o desafio do ensino pudesse ser

enfrentado a partir da necessidade de compreender o aluno para com ele estabelecer uma relação

dialógica, significativa e compromissada com a construção do conhecimento; se as práticas pedagógicas

pudessem transformar as iniciativas meramente instrucionais em intervenções educativas; talvez fosse

possível compreender melhor o significado e a verdadeira extensão da não aprendizagem e do quadro de

analfabetismo no Brasil.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

41

Nesse sentido, os estudos sobre o letramento se prestam à fundamentação de pelo menos três hipóteses

não excludentes para explicar o fracasso no ensino da língua escrita. Na mesma linha de argumentação dos

educadores que evidenciaram os efeitos do “currículo oculto” nos resultados escolares de diferentes

segmentos sociais, é preciso considerar, como ponto de partida, que as práticas letradas de diferentes

comunidades (e portanto, as experiências de diferentes alunos) são muitas vezes distantes do enfoque que

a escola costuma dar à escrita (o letramento tipicamente escolar). Lidar com essa diferença (as formas

diversas de conceber e valorar a escrita, os diferentes usos, as várias linguagens, os possíveis

posicionamentos do interlocutor, os graus diferenciados de familiaridade temática, as alternativas de

instrumentos, portadores de textos e de práticas de produção e interpretação...) significa muitas vezes

percorrer uma longa trajetória, cuja duração não está prevista nos padrões inflexíveis da programação

curricular.

Em segundo lugar, é preciso considerar a reação do aprendiz em face da proposta pedagógica, muitas

vezes autoritária, artificial e pouco significativa. Na dificuldade de lidar com a lógica do “aprenda primeiro

para depois ver para que serve”, muitos alunos parecem pouco convencidos a mobilizar os seus esforços

cognitivos em benefício do aprender a ler e a escrever (Carraher, Carraher e Schileimann, 1989; Colello,

2003, Colello e Silva, 2003). Essa típica postura de resistência ao artificialismo pedagógico em um contexto

de falta de sintonia entre alunos e professores parece evidente na reivindicação da personagem Mafalda:

Com ironia e bom humor, o exemplo acima explica o caso bastante freqüente de jovens inteligentes que

aprenderam a lidar com tantas situações complexas da vida (aquisição da linguagem, transações de

dinheiro, jogos de computador, atividades profissionais, regras e práticas esportivas entre outras), mas que

não conseguem disponibilizar esse reconhecido potencial para superar a condição de analfabetismo e baixo

letramento.

Por último, ao considerar os princípios do alfabetizar letrando (ou do Modelo Ideológico de letramento),

devemos admitir que o processo de aquisição da língua escrita está fortemente vinculado a uma nova

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

42

condição cognitiva e cultural. Paradoxalmente, a assimilação desse status (justamente aquilo que os

educadores esperam de seus alunos como evidência de “desenvolvimento” ou de emancipação do sujeito)

pode se configurar, na perspectiva do aprendiz, como motivos de resistência ao aprendizado: a negação de

um mundo que não é o seu; o temor de perder suas raízes (sua história e referencial); o medo de abalar a

primazia até então concedida à oralidade (sua mais típica forma de expressão), o receio de trair seus pares

com o ingresso no mundo letrado e a insegurança na conquista da nova identidade (como “aluno bem-

sucedido” ou como “sujeito alfabetizado” em uma cultura grafocêntrica altamente competitiva).

... a aprendizagem da língua escrita envolve um processo de aculturação – através, e na direção das

práticas discursivas de grupos letrados - , não sendo, portanto, apenas um processo marcado pelo conflito,

como todo processo de aprendizagem, mas também um processo de perda e de luta social. (...)

(...) há uma dimensão de poder envolvida no processo de aculturação efetivado na escola: aprender – ou

não – a ler e escrever não equivale a aprender uma técnica ou um conjunto de conhecimentos. O que está

envolvido para o aluno adulto é a aceitação ou o desafio e a rejeição dos pressupostos, concepções e

práticas de um grupo dominante – a saber, as práticas de letramento desses grupos entre as quais se

incluem a leitura e a produção de textos em diversas instituições, bem como as formas legitimadas de se

falar desses textos -, e o conseqüente abandono (e rejeição) das práticas culturais primárias de seu grupo

subalterno que, até esse momento, eram as que lhe permitiam compreender o mundo. (Kleiman, 2001, p.

271)

Como exemplo de um mecanismo de resistência ao mundo letrado construído por práticas pedagógicas

(ainda que involuntariamente ideologizantes) no cotidiano da sala de aula, Kleiman (2001) expõe o caso de

um grupo de jovens que se rebelaram ante a proposta da professora de examinar bulas de remédio. Como

recurso didático até bem intencionado, o objetivo da tarefa era o de aproximar os alunos da escrita,

favorecendo a compreensão de seus usos, nesse caso, chamando a sua atenção para os perigos da auto-

medicação e para a importância de se informar antes de tomar uma medicação (posologia, reações

adversas, efeitos colaterais, etc). Do ponto de vista dos alunos, o repúdio à tarefa, à escola e muito

provavelmente à escrita foi uma reação contra a implícita proposta de fazer parte de um mundo ao qual nem

todos podem ter livre acesso: o mundo da medicina, da possibilidade de ser acompanhado por um médico e

da compra de remédios.

Na prática, a desconsideração dos significados implícitos do processo de alfabetização - o longo e difícil

caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer, a reação dele em face da artificialidade das práticas

pedagógica e a negação do mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel, mas

evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz de mediar as tensões, negociar

significados e construir novos contextos de inserção social.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

43

Perspectivas das pesquisas sobre letramento

Embora o termo “letramento” remeta a uma dimensão complexa e plural das práticas sociais de uso da

escrita, a apreensão de uma dada realidade, seja ela de um determinado grupo social ou de um campo

específico de conhecimento (ou prática profissional) motivou a emergência de inúmeros estudos a respeito

de suas especificidades. É por isso que, nos meios educacionais e acadêmicos, vemos surgir a referência

no plural “letramentos”.

Mesmo correndo o risco de inadequação terminológica, ganhamos a possibilidade de repensar o trânsito do

homem na diversidade dos “mundos letrados”, cada um deles marcado pela especificidade de um universo.

Desta forma, é possível confrontar diferentes realidades, como por exemplo o “letramento social” com o

“letramento escolar”; analisar particularidades culturais, como por exemplo o “letramento das comunidades

operárias da periferia de São Paulo”, ou ainda compreender as exigências de aprendizagem em uma área

específica, como é o caso do “letramento científico”, “letramento musical” o “letramento da informática ou

dos internautas”. Em cada um desses universos, é possível delinear práticas (comportamentos exercidos

por um grupo de sujeitos e concepções assumidas que dão sentido a essas manifestações) e eventos

(situações compartilhadas de usos da escrita) como focos interdependentes de uma mesma realidade

(Soares, 2003). A aproximação com as especificidades permite não só identificar a realidade de um grupo

ou campo em particular (suas necessidades, características, dificuldades, modos de valoração da escrita),

como também ajustar medidas de intervenção pedagógica, avaliando suas conseqüências. No caso de

programas de alfabetização, a relevância de tais pesquisas é assim defendida por Kleiman:

Se por meio das grandes pesquisas quantitativas, podemos conhecer onde e quando intervir em nível

global, os estudos acadêmicos qualitativos, geralmente de tipo etnográfico, permitem conhecer as

perspectivas específicas dos usuários e os contextos de uso e apropriação da escrita, permitindo, portanto,

avaliar o impacto das intervenções e até, de forma semelhante à das macro análises, procurar tendências

gerais capazes de subsidiar as políticas de implementação de programas. (2001, p. 269)

Sem a pretensão de esgotar o tema, a breve análise do impacto e contribuição dos estudos sobre

letramento aqui desenvolvida aponta para a necessidade de aproximar, no campo da educação, teoria e

prática. Na sutura entre concepções, implicações pedagógicas, reconfiguração de metas e quadros de

referência, hipóteses explicativas e perspectivas de investigação, talvez possamos encontrar subsídios e

alternativas para a transformação da sociedade leitora no Brasil, uma realidade politicamente inaceitável e,

pedagogicamente, aquém de nossos ideais.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

44

Referências bibliográficas:

CARRAHER, T., CARRAHER, D. & SCHLIEMANN, A. Na vida dez, na escola zero. São Paulo, Cortez, 1989.

COLELLO, S. M. G. “A pedagogia da exclusão no ensino da língua escrita” In VIDETUR, n. 23. Porto/Portugal, Mandruvá, 2003, pp. 27 – 34 (www.hottopos.com).

COLELLO, S. M. G. & SILVA, N. “Letramento: do processo de exclusão social aos vícios da prática pedagógica” In VIDETUR, n. 21. Porto/Portugal: Mandruvá, 2003, pp. 21 – 34 (ww.hottopos.com).

FEEREIRO, E. Cultura escrita e educação. Porto Alegre, Artes Médicas, 2001.

__________ “Alfabetização e cultura escrita”, Entrevista concedida à Denise Pellegrini In Nova Escola – A revista do Professor. São Paulo, Abril, maio/2003, pp. 27 – 30.

GERALDI, W. Portos de Passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1993.

___________ Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas, Mercado das Letras/ABL,1996.

IBGE, Censo Demográfico, Mapa do analfabetismo no Brasil, Brasília, MEC/INEP, 2003.

KLEIMAN, A. B. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, Mercado das Letras, 1995.

___________ “Programa de educação de jovens e adultos” In Educação e Pesquisa – Revista da Faculdade de Educação da USP. São Paulo, v. 27, n.2, p.267 – 281.

LEITE, S. A. S. (org.) Alfabetização e letramento – contribuições para as práticas pedagógicas. Campinas, Komedi/Arte Escrita, 2001.

RIBEIRO, V. M. (org.) Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003.

SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.

____________ “Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas”, Revista Brasileira de Educação, n. 0, 1995, pp. 5 – 16.

STREET, B. V. Literacy in theory and Practice. Cambridge, University Press, 1984.

TFOUNI, L.V. Letramento e alfabetização. São Paulo, Cortez,1995.

AJES – FACULDADES DO VALE DO JURUENA

INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO VALE DO JURUENA

Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000

www.pos.ajes.edu.br – [email protected] Todos os direitos reservados aos autores dos artigos contidos neste material didático.

De acordo com a Lei dos Direitos Autorais 9610/98.

45