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Angela B. Kleiman Preciso “ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? Linguagem e letramento em foco

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  • Angela B. Kleiman

    Preciso ensinar o letramento?No basta ensinar a ler e a escrever?

    Linguagem e letramento em foco

    Linguagem e letram

    entoem

    foco

    A coleo "Linguagem e Letramento em Foco"compe-se de 10 livros, distribudos entre seisdiferentes reas. Esses 10 volumes foram espe-

    cialmente desenvolvidos para os cursos do Cefiel

    Centro de Formao de Professores do Instituto de

    Estudos da Linguagem da Universidade Estadual

    de Campinas (Unicamp), apoiado pela Rede

    Nacional de Formao Continuada de Professores

    (SEB / MEC).

    As reas e os ttulos da coleo:

    Linguagem e educao infantil A criana na linguagem

    Linguagem nas sries iniciais Meus alunos no gostam de ler... Preciso ensinar o letramento?

    Lngua portuguesa Aprender a escrever (re)escrevendo Multilingismo O trabalho do crebro e da linguagem

    Formao do professor indgena Lnguas indgenas precisam de escritores? O ndio, a leitura e a escrita

    Letramento digital Letramento e tecnologia

    Ensino de lnguas estrangeiras LEs no Brasil: histrias e histrias.

    Capas Linguagem em Foco.qxd 9/21/05 5:22 PM Page 3

  • Angela B. KleimanPh.D. em Lingstica pela Universidade de Illinois

    Professora Titular em Lingstica Aplicada no IEL/UNICAMP

    Preciso ensinar o letramento?No basta ensinar a ler e a escrever?

    Linguagem e letramento em focoLinguagem nas sries iniciais

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  • MINISTRIO DA EDUCAO

    Presidente: LUIS INCIO LULA DA SILVA

    Ministro da Educao: TARSO GENRO

    Secretrio de Educao Bsica: FRANCISCO DAS CHAGAS FERNANDES

    Diretora do Departamento de Polticas da Educao

    Infantil e Ensino Fundamental: JEANETE BEAUCHAMP

    Coordenadora Geral de Poltica de Formao: LYDIA BECHARA

    Cefiel - Centro de Formao de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem*

    Reitor da Unicamp: Prof. Dr. Jos Tadeu Jorge

    Coordenao do Cefiel: Angela B. Kleiman

    Coordenao da coleo: Angela B. Kleiman

    Coordenao editorial da coleo: REVER - Produo Editorial

    Projeto grfico, edio de arte e diagramao: A+ comunicao

    Reviso: REVER - Produo Editorial; Maria Odette Garcez

    Ilustraes: Fbio Sgroi

    Pesquisa iconogrfica: Vera Lucia da Silva Barrionuevo

    * O Cefiel integra a Rede Nacional de Centros de Formao Continuada do Ministrio da Educao.

    Impresso em setembro de 2005.

    FOTO: (pgina 21) Um erudito, de Rembrandt van Rijn, 1631. leo sobre tela, 105,5 X 92 cm.

    NOTA: Todos os esforos foram realizados para obter autorizao para reproduo da imagem da pgina 48.Caso o detentor dos direitos se sinta prejudicado, favor notificar formalmente a coordenao editorial.

    Cefiel/IEL/Unicamp, 2005-2010

    proibida a reproduo desta obra sem a prvia autorizao dos detentores dos direitos.

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  • Sumrio

    Introduo / 5

    O que no letramento / 8

    Letramento no um mtodo / 8

    Letramento no alfabetizao / 11

    Letramento no habilidade / 16

    O que , ento, letramento? / 19

    Como surgiu o conceito de letramento / 19

    Algumas comparaes / 22

    Prtica coletiva e colaborativa X prtica individual e competitiva / 22

    Prtica situada X abstrao / 25

    Mesmo texto, diferentes leitores e diferentes modos de ler / 27

    Mesmo sujeito, diferentes prticas / 29

    As prticas escolares / 33

    Os aprendizes / 34

    As atividades escolares / 37

    Outras implicaes / 41

    A relao letramentooralidade / 41

    Uma relao de continuidade / 44

    Outras linguagens / 47

    Formando leitores / 51

    O trabalho do professor / 51 Os projetos de ensino / 54 O ensino da leitura / 56

    Bibliografia / 58

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    Introduo

    Basta ensinar a ler e a escrever?Basta, sim!Quando se ensina uma criana, um jovem ou um adulto a ler e

    a escrever, esse aprendiz est conhecendo as prticas de letra-mento da sociedade; est em processo de letramento.

    Letramento um conceito criado para referir-se aos usos dalngua escrita no somente na escola, mas em todo lugar. Porquea escrita est por todos os lados, fazendo parte da paisagem co-tidiana:

    P no ponto de nibus, anunciando produtos, servios e campa-nhas;

    P no comrcio, anunciando ofertas para atrair clientes, tanto naspequenas vendas, como nos grandes supermercados;

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    P no servio pblico, informando ou orientando a comunidade.

    E poderamos ir multiplicando os locais em que ela aparece: naigreja, no parquinho, no escritrio... Porque a escrita, de fato, fazparte de praticamente todas as situaes do cotidiano da maioriadas pessoas. Isso o que acontece nas sociedades complexas,em que no possvel atingir objetivos ou realizar tarefas apenasfalando. Imaginemos o trabalho que teriam os anunciantes se, pa-ra dar a conhecer seus produtos, tivessem de contar, pessoalmen-te, para cada um dos clientes potenciais, por que seu produto especial ou melhor que os demais!

    A complexidade da sociedade moderna exige conceitos tam-bm complexos para descrever e entender seus aspectos relevan-tes. E o conceito de letramento surge como uma forma de explicaro impacto da escrita em todas as esferas de atividades e no so-mente nas atividades escolares.

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    A presena da escrita muda de lugar para lugar. Se voc mora numa grande cida-de, um trabalho que pode ser feito com seus alunos para dirigir os olhos e a atenodeles para as funes da escrita um passeio-leitura pelo bairro, anotando tudo o queestiver escrito: placas, folhetos, avisos, letreiros. Mas se voc mora em zona rural, tal-vez no haja muita presena da escrita ao redor, para ser anotada num passeio-leitu-ra. Nesse caso, o objetivo pode ser outro: descobrir lugares que se beneficiariam complacas e letreiros escritos, como: proibido jogar lixo!, Perigo! e outros.

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    O objetivo deste volume da coleo Linguagem e Letramen-to em Foco apontar facetas dos usos da escrita que so rele-vantes para o trabalho com leitura (e com produo de texto tam-bm, embora nosso foco seja, aqui, a leitura), mas que tm sidonegligenciadas na formao do professor. Introduziremos o con-ceito de letramento, que o pano de fundo das atividades pro-postas no curso Letramento nas Sries Iniciais no ambienteeducativo TelEduc e no site interativo alfaletras, do CEFIEL Centro de Formao de Professores do Instituto de Estudos daLinguagem, da UNICAMP.

    O conceito de letramento j entrou no dis-curso escolar por exemplo, nos documentosque falam do currculo, como os ParmetrosCurriculares Nacionais (PCNs) , porm foi en-trando por diversas portas, por ser um conceitousado por pesquisadores de diversas reas(educao, didtica, lingstica aplicada, hist-ria da leitura) ao falarem dos usos da escrita.Isso tem causado muita confuso. Por isso, an-tes de apresentar o que letramento, vamosdiscutir o que ele no .

    Essa discusso, que retoma trs elementosda concepo escolar, feita no para marcaruma ruptura com os saberes do professor maspara tom-los como ponto de partida da discus-so e, assim, complementar e transformar osconceitos que j lhes so familiares, na tentati-va de diminuir a distncia entre as duas pers-pectivas: a da universidade e a da escola.

    Em seguida, estudaremos o que letramento, os conceitos aele relacionados e as implicaes do conceito para o trabalho es-colar com a linguagem.

    Discurso. Palavra de ml-tiplos significados. Aqui ausamos com trs: (a) paradesignar as produes es-pecficas de um grupo,nas locues discurso es-colar ou discurso dos pro-fessores; (b) para designaro conjunto de textos quemanifestam um determi-nado posicionamento par-tilhado por um grupo soci-al, nas locues discursojornalstico ou discurso ci-entfico; (c) em oposio lngua, para designar osusos efetivos (e os valo-res a associados) da ln-gua (o sistema que permi-te esses usos) em diferen-tes contextos, na locuodiscurso letrado (diferentede lngua escrita).

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    O que no letramento

    Letramento no um mtodo

    Uma questo que tem atrapalha-do o ensino da lngua escrita a fal-sa crena de que o aspecto mais im-portante para a aprendizagem daescrita o mtodo utilizado. Com is-so, todo novo conceito passa a serinterpretado como uma novidademetodolgica. Basta lembrar o m-todo Emlia Ferreiro de alguns anos atrs. Emlia Ferreiro escreveu

    sobre as hipteses da criana em relao escri-ta, porque queria explicar, como pesquisadora dapsicologia, o desenvolvimento da criana e, comoprofessora, a melhor forma de ensinar a escrita.Mas os resultados de sua pesquisa foram trans-formados num mtodo de ensino.

    Coisa semelhante acontece hoje, quando se fa-la do mtodo de letramento. Os pesquisadores

    Como vai poder ler e escrever seainda no foi totalmente letrado!

    Emlia Ferreiro, pesqui-sadora nascida na Argenti-na e radicada no Mxico,conhecida por seus estu-dos sobre a construo dalinguagem escrita na crian-a, exerceu importante in-fluncia no ensino da alfa-betizao no Brasil.

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    que comearam a estudar, em diversos pases, as funes e prti-cas da lngua escrita e seu impacto na vida social, eram cientistassociais: socilogos, antroplogos e historiadores que no tinham na-da a dizer porque no era sua especialidade sobre os mto-dos de ensino da lngua escrita. Todavia, como esse assunto estrelacionado a questes muito relevantes para a educao, ele che-ga escola e a reinterpretado em funo daquilo que relevantepara o trabalho escolar, ou seja, o mtodo. E, nessa reinterpretao,acontecem associaes indevidas. Por exemplo, quando o conceitode letramento oposto ao de alfabetizao, ele entendido comoequivalente aos mtodos globais; quando o termo letramento in-terpretado morfologicamente, ou seja, com base nos morfemas, ouformas mnimas significativas que formam a palavra (no caso, le-tra e mento), ele tem sido utilizado como equivalente a um mto-do baseado no ensino da letra primeiro (... e a slaba depois?!).

    No existe um mtodo de letramento. Nem um nem vrios.

    P O letramento envolve a imerso da criana, do jovem ou doadulto no mundo da escrita e, nesse sentido, para conseguir essaimerso o professor pode:

    a) adotar prticas dirias de leitura de livros, jornais e revis-tas em sala de aula;

    b) arranjar paredes, cho e moblia da sala de tal modo quetextos, ilustraes, alfabeto, calendrios, livros, jornais erevistas penetrassem todos os sentidos do aluno-leitor emformao;

    c) fazer um passeio-leitura com os alunos pela escola oupelo bairro.

    Para reflexo

    Voc consegue pensar em outras atividades e situaes que dem a seusalunos oportunidade de imerso no mundo da escrita?

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    P Como o letramento envolve participar das prticas sociais emque se usa a escrita, na escola ele pode envolver as atividades dereceber e enviar cartas, copiar informaes pertinentes para umatarefa, comentar notcias, recomendar e criticar livros.

    P O letramento tambm significa compreender o sentido, numadeterminada situao, de um texto ou qualquer outro produto cul-tural escrito; por isso, uma prtica de letramento escolar poderiaimplicar um conjunto de atividades visando ao desenvolvimento deestratgias ativas de compreenso da escrita, ampliao do vo-cabulrio e das informaes para aumentar o conhecimento doaluno e fluncia na sua leitura. (Estudaremos essas estratgiasno curso Letramento nas Sries Iniciais e nos exerccios do siteinterativo alfaletras.)

    P Como o letramento envolve ainda saber usar o cdigo da es-crita, quaisquer dos enfoques e recursos utilizados para ensinar adecodificar, analisar e reconhecer a palavra (que corresponderiamaos mtodos tradicionais de alfabetizao) tambm podem serconsiderados prticas de letramento escolar.

    Mas o letramento no nada disso, ou melhor, tudo isso, emuito mais.

    importante lembrar que, qualquer que seja o mtodo de ensi-no da lngua escrita, ele eficiente na medida em que se constituina ferramenta adequada que permite ao aprendiz adquirir o conhe-cimento necessrio para agir em uma situao especfica. Por exem-plo, uma criana que j usa a Internet para enviar e-mails no vai sebeneficiar muito com atividades em que o professor ou um colegadite coisas para ela escrever, pois j est acostumada a escrever o

    Para reflexo

    Quais atividades o seu grupo j faz?

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    que pensa e deseja. Para esse aluno seriam mais interessantes asatividades em que ele prprio tivesse que criar seu texto.

    Considerando essa necessidade de flexibilidade em relao aomtodo de ensino da escrita, tanto da leitura como da produotextual, a Associao Internacional de Leitura, em 1999, fez a se-guinte declarao de princpios, publicada num documento sobreo mtodo para se ensinar a leitura:

    No existe um mtodo nico, ou combinao nica de mtodos, que

    possa ensinar a ler a todas as crianas com sucesso. Por isso, os pro-

    fessores devem desenvolver um profundo conhecimento de mltiplos

    mtodos para ensinar a ler e um profundo conhecimento das crianas

    sob seu cuidado, para que possam criar o equilbrio apropriado dos

    mtodos requeridos pelas crianas a quem ensinam .Fonte: www.reading.com

    A questo do mtodo no da conta do especialista, nem dogoverno, segundo o mesmo documento. do profissional que me-lhor conhece o aluno: o professor. Da a importncia de abandonara procura constante do mtodo perfeito e a incessante transforma-o de toda novidade cientfica em mtodo.

    O letramento no um mtodo, como acabamos de mostrar, ese o fosse, isso tambm no seria to relevante para o bom ensi-no, como o professor parece acreditar.

    Letramento no alfabetizao

    O letramento no alfabetizao, mas a inclui! Em outras pala-vras, letramento e alfabetizao esto associados. A existncia e

    A Associao Internacional de Leitura, com membros em 99 pases, tem por obje-tivo "promover altos nveis de letramento para todos" atravs das seguintes aes:

    P melhoria do ensino de leitura;P divulgao de pesquisas e informaes sobre a leitura;P promoo do hbito da leitura ao longo da vida.

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  • manuteno dos dois conceitos, quando antesum era suficiente, importante, como veremos.Se consideramos que as instituies sociaisusam a lngua escrita de forma diferente, emprticas diferentes, diremos que a alfabetizao uma das prticas de letramento que faz partedo conjunto de prticas sociais de uso da escri-ta da instituio escolar.

    Alguns pesquisadores se opem ao uso do ter-mo letramento, dizendo que os conceitos por eledesignados estariam implcitos no termo alfabeti-

    zao. Isso uma simplificao. Como mostraremos posteriormen-te, o termo letramento j entrou em uso carregado de novas associa-es e significados, como, por exemplo, uma nova relao com a ora-lidade e com linguagens no-verbais, no includos nem previstos notermo alfabetizao. interessante notar que pesquisadores de falainglesa dentro da tradio freiriana, como o sociolingista David Bar-ton ou o antroplogo Brian V. Street, tambm sentiram falta de umtermo para designar um novo conceito: nos seus trabalhos, elesusam hoje literacies (letramentos), no plural, para o que antes osingular literacy (letramento/alfa-betizao) era suficiente.

    H vrias maneiras de ver e en-tender a relao entre letramento ealfabetizao, em parte porque oconceito de alfabetizao comple-xo e tem muitos significados.

    A alfabetizao uma prtica.E, assim como toda prtica que especfica a uma instituio, envol-ve diversos saberes (por exemplo,quem ensina conhece o sistema al-

    Prtica (de letramen-to). Conjunto de ativida-des envolvendo a lnguaescrita para alcanar umdeterminado objetivo numadeterminada situao, as-sociadas aos saberes, stecnologias e s compe-tncias necessrias para asua realizao. Exemplosde prticas de letramento:assistir a aulas, enviar car-tas, escrever dirios.

    Ento, agora no mais para alfabetizar, para "ensinar"

    o letramento!

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  • O conceito de alfabetizao tambm denota um conjunto desaberes sobre o cdigo escrito da sua lngua, que mobilizadopelo indivduo para participar das prticas letradas em outras es-feras de atividade, no necessariamente escolares. Da se dizerque um indivduo analfabeto, semi-analfabeto, semi-alfabe-tizado para referir-se aos modos, graus ou nveis desses sabe-res que ele apresenta.

    O conceito de alfabetizao refere-se tambm ao processo deaquisio das primeiras letras e, como tal, envolve seqnciasde operaes cognitivas, estratgias, modos de fazer. Quando di-

    fabtico e suas regras de uso), diversos tipos de participantes(alunos e professor) e, tambm, os elementos materiais que per-mitem concretizar essa prtica em situaes de aula, como qua-dro-de-giz, ilustraes, livros didticos e quaisquer outros recursospedaggicos.

    A prtica de alfabetizao se concretiza em eventos que se si-tuam dentro de uma sala de aula, liderados por um especialista (oprofessor) que se encarrega de ensinar sistematicamente as re-gras de funcionamento e uso do cdigo alfabtico aos iniciantesno assunto (os alunos). Ambos professor e alunos tm rela-es sociais predeterminadas: um anima, organiza, avalia; os ou-tros respondem, realizam as atividades propostas.

    Para reflexo

    Uma prtica consiste em atividades com um objetivo em determinada situa-o. Como a realizao da atividade pode precisar de tecnologias (lpis e papel,as diferentes mdias), habilidades especiais e saberes, estes tambm fazem par-te da prtica. Algumas atividades (e os saberes que as sustentam) que tradicio-nalmente fazem parte da prtica de alfabetizao das crianas na escola so:leitura em voz alta (que envolve a capacidade de decodificao); ditado (que en-volve conhecimento ortogrfico); rimar palavras (que envolve a conscincia fono-lgica); rodinha de leitura (que envolve a capacidade de organizao textual). Vo-c poderia mencionar outras prticas de leitura escolar?

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    zemos que uma criana est sendo al-fabetizada, estamos nos referindoao processo que envolve o engaja-mento fsico-motor, mental e emocionalda criana num conjunto de atividades de to-do tipo, que tm por objetivo a aprendizagemdo sistema da lngua escrita.

    A alfabetizao (em qualquer de seus sen-tidos) inseparvel do letramento. Ela neces-sria para que algum seja considerado plena-mente letrado, mas no o suficiente.

    A prtica de alfabetizao, que tem por objeti-vo o domnio do sistema alfabtico e ortogrfico,precisa do ensino sistemtico, o que a torna di-ferente de outras prticas de letramento, nasquais possvel aprender apenas olhando os de-mais fazerem. Um adulto que no sabe ler ou es-crever no ser considerado alfabetizado se apenas ficar acompa-nhando o trabalho de alfabetizao do filho, pela janela da sala deaula, mesmo que saiba qual a funo das letras.

    Em outras prticas, porm, o conhecimento da funo do ob-jeto cultural envolvido pode ser suficiente para o indivduo serconsiderado letrado. Em outras palavras, uma pessoa no-alfabe-tizada que conhece a funo do bilhete, da carta, das etiquetas edos rtulos de produtos participa, mesmo que de forma marginal,nas prticas letradas de sua comunidade e, por isso, conside-rada letrada. At o sculo passado, porm, havia grupos que noconheciam essas funes, que no sabiam que a escrita serve,entre outras coisas, para a comunicao a distncia, para regis-trar fatos, para tornar permanente um momento efmero, e assimsucessivamente.

    O conto A carta e o ndio, de Francisco Viana, que resumimos

    Por isso que o assunto to complicado: PRTICA, SABERES,

    PROCESSO. Trs em um!

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    a seguir, interessante para ilustrar estas conside-raes. O ndio que leva a mensagem, como vere-mos, no conhece a funo da escrita, e a suacondio de membro de um povo grafo no oseu analfabetismo que lhe causa problemas. Ahistria conta que um fazendeiro pediu a um ndio

    que levasse uma cesta com dez frutas a um amigo, morador de uma

    fazenda vizinha, junto com uma carta em que falava a respeito desse

    presente. No caminho, o ndio ficou com sede e com fome e decidiu

    comer uma das frutas. Ao receber o presente, o amigo do fazendeiro

    acusou o ndio de ter comido uma parte de seu presente. O ndio, en-to, perguntou como ele sabia que faltava uma fruta, se no havianingum por perto quando ele a comera. O fazendeiro respondeu:Ora! Pela carta. Tempos depois, o fazendeiro novamente pediu aondio para levar frutas ao amigo e mandou uma cartinha acompa-nhando a cesta. De novo, sem nada para beber ou comer no cami-nho, e j com sede e fome, o ndio pegou a carta, sentou-se sobreela e comeu duas das frutas, convencido de que a carta, dessavez, no iria contar nada. Mas, claro, apenas chegou casa dofazendeiro, foi acusado de ter comido duas de suas frutas...

    Ao contrrio do que nos conta a histria, um analfabeto na so-ciedade letrada conhece muito bem a funodesse objeto cultural que a carta. O filme Cen-tral do Brasil nos mostra uma prtica letrada ques existe porque h, no mundo de hoje, pessoasque no so alfabetizadas, mas sabem que a es-crita permite a comunicao a distncia e que-rem participar dessa prtica, apesar de no co-nhecerem o cdigo que lhes permitiria ser independentes e auto-suficientes para se expressarem por meio da lngua escrita.

    A prtica retratada no filme consistia na elaborao coletiva decartas realizada por um escriba (Dora, a personagem central) e

    grafo. Termo usado parase referir a uma cultura ouuma lngua que no temum sistema de lngua escri-ta para seus registros.

    Central do Brasil (1998),filme dirigido por Walter Sal-les, com Fernanda Monte-negro, Marlia Pra, Viniciusde Oliveira, Matheus Nat-chergaele, ganhou 55 pr-mios internacionais.

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    seus clientes. Segundo Judith Kalman, pesquisadora mexicanaque trabalha com a educao de jovens e adultos (EJA), em seupas existe um sistema semelhante: no centro da Cidade do Mxi-co, diversos escribas oferecem servios ainda mais diversificados de cartas de amor at a elaborao de ofcios, atas e deveresescolares (relatado em sua obra Escribir en la plaza, Mxico: Fon-do de Cultura Econmica, 2003).

    A alfabetizao, portanto, tem caractersticas especficas, diferen-tes das do letramento, mas parte integrante dele. Como prtica es-colar, ela essencial: todos crianas, jovens ou adultos preci-sam ser alfabetizados para poder participar, de forma autnoma, dasmuitas prticas de letramento de diferentes instituies.

    Letramento no habilidade

    O letramento no uma ha-bilidade, embora envolva umconjunto de habilidades (roti-nas de como fazer) e de com-petncias (capacidades concre-tas para fazer algo). Por isso,ensinar o letramento umaexpresso no mnimo estranha,pois implica uma ao que nin-gum, nem mesmo um espe-cialista, poderia fazer.

    Ora, se pensarmos em tudo que est envolvido numa situaoem que se utiliza a lngua escrita, em um evento de letramento co-mo a leitura cotidiana de jornal, por exemplo, veremos que as ca-pacidades envolvidas vo muito alm daquilo que, de fato, podeser ensinado na escola. Vejamos.

    Se o jornal chega casa da leitora, ela provavelmente assi-

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    nante, o que implica ter feito pre-viamente um contrato comercialcom o departamento de assinatu-ras do jornal, optando por pag-lonum banco ou por meio de um car-to de crdito. Desde o momentoem que a leitora decide fazer umaassinatura at o momento em queabre a porta de sua casa para pe-gar o jornal, ela utilizou seus sabe-res sobre relacionamentos comerciais, bancrios, jurdicos etc.

    O leitor de um jornal comea a utilizar seus conhecimentos so-bre a escrita, juntamente com seus conhecimentos sobre a im-prensa, quando olha a primeira pgina do jornal procura de itensque lhe interessem.

    Esse tipo de leitor sabe que est lendo manchetes e que o tex-to prximo s manchetes traz as chamadas das notcias, das infor-maes mais importantes. Sabe tambm que as fotos e suas legen-das complementam as informaes verbais dessas manchetes echamadas. Sabe, ainda, que uma notcia importante do dia anteriorprovavelmente foi retomada nessa edio, seja como notcia commais detalhes e informaes, seja ainda como notcia ou como umfato em outros gneros isto , se foi notcia e/ou charge ontem,hoje poder ser assunto de editorial, de reportagem ou de crnica.

    Quanto aos saberes sobre a lngua escrita desse leitor assi-nante de jornal, tambm provvel que suas capacidades de lei-tura sejam avanadas. Entre as capacidades relacionadas com aleitura para extrao da informao, ele provavelmente teria a ha-bilidade de fazer uma leitura rpida, mobilizando estratgias de lei-tura global eficientes para radiografar ou escanear o texto,com reconhecimento instantneo de muitas palavras e possuiriatambm um amplo vocabulrio no-especializado.

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    Lembremos que tudo isso faz parte da prtica letrada de ler jor-nal.

    Resumindo: o letramento complexo, envolvendo muito maisdo que uma habilidade (ou conjunto de habilidades) ou uma com-petncia do sujeito que l. Envolve mltiplas capacidades e conhe-cimentos para mobilizar essas capacidades, muitos dos quais notm necessariamente relao com a leitura.

    Na escola, possvel:

    P ensinar as habilidades e competncias necessrias para par-ticipar de eventos de letramento relevantes para a inseroe participao social;

    P ensinar como se age nos eventos de instituies cujas prti-cas de letramento vale a pena conhecer;

    P criar e recriar situaes que permitam aos alunos participarefetivamente de prticas letradas.

    Pode-se at chamar tudo isso de ensino do letramento, des-de que se concorde, antes, que tudo o que foi aqui mencionado e muito mais parte integrante desse ensino.

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    O que , ento, letramento?

    Aps tantos no voc deve estarse fazendo esta per-gunta: O que , ento, letramento?.

    J comentamos que o letramento est relacio-nado com os usos da escrita em sociedade e como impacto da lngua escrita na vida moderna. Paracomplementar essa definio sucinta e, assim, irenriquecendo o conceito , discutiremos vrios aspectos do letra-mento, desde o surgimento do conceito at suas contribuies parao ensino da lngua escrita, em geral, e da leitura, em particular.

    Comearemos por uma breve histria do termo.

    Como surgiu o conceito de letramento

    Paulo Freire utilizou o termo alfabetizao com um sentido prxi-mo ao que hoje tem o termo letramento, para designar uma prticasociocultural de uso da lngua escrita que vai se transformando ao

    J vimos o que no . Agora est na hora de

    saber o que .

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    longo do tempo, segundo as pocas e as pessoasque a usam e que pode vir a ser libertadora, em-bora, poca, fosse mecanicista. A escrita pas-sou do domnio de uns poucos para um saber uni-versal, considerado direito de todos e com isso

    a relao das pessoas com a lngua escrita mudou radicalmente.

    Assim como os usos da lngua escrita foram mudando na fam-lia, no trabalho, nas relaes comerciais, na cincia, ao longo dahistria, tambm mudou, na escola, a concepo do que seria seralfabetizado e do que necessrio saber para poder usar a escri-ta ao longo da vida.

    A tecnologia que d suporte aos usos da ln-gua escrita tem mudado enormemente, e essamudana tambm se faz sentir na escola: ondeantes se esperava que a criana usasse lpis epapel para escrever de forma legvel, hoje se es-

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    Sobre este assuntoveja, nesta coleo,

    o volume Letramento etecnologia, de Denise B.Braga e Ivan L. M. Ricarte.

    Paulo Freire (1921-1997),brasileiro por muitos anosexilado no exterior, consi-derado o maior pensadorem Educao do sculo XX.

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  • . 21 .

    pera que ela escreva coisas com sentido no caderno e no compu-tador, e tambm que use a Internet. H cem anos, para ser alfabe-tizado era suficiente ter domnio do cdigo alfabtico, mas hoje seespera que, alm de dominar esse cdigo, o aluno consiga se co-municar, por meio da escrita, numa variada gama de situaes.

    O letramento abrange o processo de desenvolvimento e o usodos sistemas da escrita nas sociedades, ou seja, o desenvolvi-mento histrico da escrita refletindo outras mudanas sociais etecnolgicas, como a alfabetizao universal, a democratizao doensino, o acesso a fontes aparentemente ilimitadas de papel, osurgimento da Internet.

    Na metade da dcada de 1980, no Brasil, vrios pesquisa-dores que trabalhavam com as prticas de uso da lngua escri-ta em diversas esferas de atividade sentiram falta de um con-ceito que se referisse a esses aspectos scio-histricos dosusos da escrita, sem as conotaes sobre ensino e escola as-sociadas palavra alfabetizao.

    Emergiu, ento, na literatura especializada, o termo letramen-to, para se referir a um conjunto de prticas de uso da escrita quevinham modificando profundamente a sociedade, mais amplo do

    que as prticas escolares de uso da escrita, incluindo-as, porm. importante salientar que, ao se fazer cincia crucial nos referir-mos aos conceitos cientficos inequivocamente. O novo assuntoou objeto de pesquisa as prticas sociais de uso da escrita

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    (o letramento) refletia as transformaes nas prticas letradastanto dentro como fora da escola, lembrando que a esto inclu-das as tecnologias da escrita.

    Algumas comparaes

    A criao de um conceito novo diferente do de alfabetizao para falar de prticas de uso da escrita implica a existncia dediferenas entre as prticas referidas por um e pelo outro. Veja-mos, a seguir, as diferenas mais relevantes entre as prticas le-tradas dentro e fora da escola.

    Prtica coletiva e colaborativa X prtica individual e competitiva

    As prticas de letramento fora da escola so essencialmen-te colaborativas, em contraste com o carter individual do pro-cesso de aquisio da lngua escrita em ambiente escolar, pr-prio da alfabetizao.

    As ocasies em que a fala se organiza ao redor de textos escri-tos e livros, envolvendo a compreenso dos textos, so eventos deletramento. Nos eventos de letramento da maioria das instituies,as pessoas participam coletivamente, interagindo, enquanto noseventos escolares mais tradicionais o que ainda importa a partici-

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    pao individual do aluno. Isso, afortunadamente para o aluno, estmudando. Quanto mais a escola se aproxima das prticas sociais emoutras instituies, mais o aluno poder trazer conhecimentos rele-vantes das prticas que j conhece, e mais fceis sero as adequa-es, adaptaes e transferncias que ele vir a fazer para outras si-tuaes da vida real.

    Um evento de letramento inclui atividades quetm as caractersticas de outras atividades da vi-da social: envolve mais de um participante e osenvolvidos tm diferentes saberes, que so mobi-lizados na medida adequada, no momento neces-srio, em prol de interesses, intenes e objetivosindividuais e de metas comuns. Da ser um eventoessencialmente colaborativo.

    Numa atividade (de ir e vir) de um grupo tentan-do chegar a um endereo desconhecido qualquer,o participante que sabe dirigir conduz o carro, umoutro pode ir consultando um mapa e um terceiro pode ajudar lendoas placas das ruas at todos eles chegarem ao destino.

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    Evento de letramento.Ocasio em que a fala seorganiza ao redor de textosescritos e livros, envolven-do a sua compreenso. Se-gue as regras de usos daescrita da instituio emque acontece. Est relacio-nado ao conceito de eventode fala, que governadopor regras e obedece srestries impostas pelainstituio.

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    Mesmo que apenas um dos trs saiba dirigir, eles podero che-gar ao destino desejado, com base em aes realizadas segundo ashabilidades e competncias de cada um.

    O mesmo acontece com a escrita, quando usada fora da esco-la. Por exemplo, numa situao em que uma mulher que sabe lerpede uma receita a outra que no sabe, a primeira, que queraprender a receita, escreve o que a segunda lhe dita, usando a es-trutura tradicional das receitas escritas: primeiro, a lista de ingre-dientes e depois o modo de fazer sempre voltando atrs paraver se no esqueceram alguma coisa ou para responder s pergun-tas daquela que anota.

    Citando outro exemplo: num encontro entre um recepcionista eum paciente, seja diretamente no consultrio mdico ou ao telefo-ne, em que preciso que o paciente diga seu nome para o recep-cionista anot-lo na agenda do mdico, o primeiro soletra, quandoo nome pouco comum ou de origem estrangeira, ou consideradodifcil de escrever, e o recepcionista escreve as letras medidaque so ditas.

    J a prtica tradicional de uso da escrita dentro da escola en-volve a demonstrao da capacidade individual de realizar todosos aspectos da tarefa, sejam eles soletrar, ler um manual de infor-maes ou escrever o ditado. Mas, como dizamos anteriormente,

    as prticas de letramento de outras instituiesj esto influenciando a prtica escolar. Mesmoque a escola esteja interessada basicamente nacompetncia individual do aluno, ela no precisaestar organizada competitivamente, com cada cri-ana tendo de mostrar que pode fazer a ativida-de sozinha, sem a ajuda do outro.

    O PROFA Programa de Formao deProfessores Alfabetizadores utiliza o trabalhoem duplas para o ensino da produo textual: o

    PROFA. Programa de For-mao de Professores Alfabetizadores, oferecidoem vrias Secretarias deEnsino. Curso de forma-o continuada que enfati-za saberes didticos so-bre alfabetizao por meioda ampliao dos conheci-mentos do professor e dareflexo sobre a prticaprofissional.

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    aprendiz que sabe mais sobre como escreveras palavras segundo as regras grafofonmicasda lngua age como escriba; ao mesmo tempo,os dois vo organizando um texto sobre um as-sunto que ambos conhecem, em geral uma re-produo de um conto de fadas j lido, ilustra-do, comentado e por que no? com tre-chos at memorizados (considerado o princpiode que o contexto facilita a memorizao da for-ma de escrever a palavra).

    Na leitura, a prtica colaborativa quando o professor se en-carrega de fazer perguntas que orientaro o leitor iniciante, ouquando o professor l uma histria para todos. Nesses casos,aquele que j letrado (e necessariamente conhece o cdigo)ajuda aqueles que no conhecem ainda nem o cdigo nem a fun-o das ilustraes no livro, mas que tm familiaridade com aprtica de contar histrias e cooperam escutando em silncio.

    Prtica situada X abstrao

    Uma caracterstica das prticas de letramen-to fora da escola que elas variam segundo a si-tuao em que se realizam as atividades de usoda lngua escrita. H uma tendncia humana pa-ra contextualizar a ao, e as atividades em quese usa a escrita no fogem dessa tendncia. Porisso, dizemos que as prticas de letramento soprticas situadas, o que significa que os objeti-

    Para reflexo

    Voc poderia listar outras prticas colaborativas usadas por voc ou por seus co-legas na sua escola?

    Grafofonmico. Refere-se relao entre osgrafemas (unidades doalfabeto, como letras, til,sinais de pontuao) e ossons da lngua (fonemasou sons significativos),que os caracteres do alfa-beto representam.

    Prtica situada. Refere-seao entrosamento ou so-breposio parcial existenteentre a prtica social e a si-tuao; podemos atribuirisso a uma capacidade bsi-ca do ser humano de con-textualizar os saberes e aexperincia.

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    vos, os modos de realizar as atividades, os recursos mobilizadospelos participantes, os materiais utilizados, sero diferentes se-gundo as caractersticas da situao (por exemplo, uma missa,uma festa), da atividade desenvolvida (ler o missal, mandar umconvite), da instituio (religiosa, familiar). Vejamos um exemploenvolvendo duas situaes de festa e as diferentes atividadespara um mesmo tipo de evento de letramento: fazer os convites.

    devido a esse carter situado das prticas de letramentoque os usos da lngua escrita fora da sala de aula so extrema-mente heterogneos, variando segundo os participantes (porexemplo, enviar convites e cartes atividade geralmente feitapela mulher da famlia), a relao entre eles, seus objetivos e in-tenes, a instituio em que interagem e com as quais intera-gem tudo isso determinando a mobilizao de diferentes re-cursos e saberes sobre a escrita, como mostram os exemplos

    Instituio: famlia

    Situao: festa de aniversriode 7 anos do filho

    Atividades: enviar convites preparar cardpio

    Evento de letramento Participantes: me e filhos Material: convites, envelopes, caneta,

    agenda de endereos Aes: escolher, comprar e preencher

    convites, entregar convites professorado filho, consultar agenda, telefonar aos amigos etc.

    Instituio: famlia/igreja

    Situao: festa de aniversrioou missa de bodas de prata

    Atividades: enviar convites preparar cardpio

    Evento de letramento Participantes: me e filho(s),

    a mulher do casal que comemora as bodas

    Material: cartes de convite, envelopes,caneta, selos, agenda de endereos

    Aes: encomendar os convites (decidir sobre o texto), consultar agenda, escrever nos envelopes etc.

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    anteriores, em relao a dois tipos de comemoraes de even-tos familiares.

    Por sua vez, as prticas escolares que utilizam gneros que seoriginaram em instituies de prestgio na sociedade, como a lite-rria e a cientfica, so desvinculadas da situao de origem, ouseja, caracterstica da prtica escolar ser indiferente situao.O que se diz, em tom de brincadeira, a esse respeito, que mui-to provvel que s 16 horas de uma tera-feira do ms de abril,uma criana no semi-rido nordestino e uma outra numa favela dacidade do Rio de Janeiro estejam, ambas, copiando a palavra ga-to do quadro-de-giz na sala de aula de 1 srie de uma escola daregio onde moram. Sem vnculo com a realidade social fora da es-cola, ou seja, abstradas da situao, as prticas so as mesmas.

    Pouca diferena faz, nessa perspectiva, se o aluno est estu-dando hoje uma poca de tecnologias avanadas como o com-putador ou se est estudando pelo mtodo escolstico, desen-volvido originalmente na Idade Mdia, pouco depois de a impren-sa ter sido inventada. Quando, na sala de aula, deparamos coma prtica de leitura para encontrar uma mensagem edificante(qualquer que seja o texto), estamos na presena de uma prticana tradio escolstica, que se perpetua h sculos, apesar dasmudanas histricas.

    Mesmo texto, diferentes leitores e diferentes modos de ler

    Para entender melhor o fenmeno da prtica situada, imagine-

    Para reflexo

    Descreva as caractersticas de um evento de letramento comum na sua co-munidade. Agora imagine as diferenas entre esse evento na sua localidade enuma outra totalmente diferente da sua (numa comunidade indgena, num gru-po de jovens agentes comunitrios na periferia paulistana, num grupo de mesno semi-rido etc.).

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    mos uma situao em que um mesmo texto lido de diferentesformas, segundo aspectos da situao: os participantes, seus ob-jetivos, seus modos de ler. O evento imaginado a leitura do jor-nal dirio por um casal formado por uma dentista e um professorde lngua portuguesa.

    A mulher provavelmente olhar rapidamente a primeira pgi-na e escolher o que ler em funo do seu interesse pela not-cia em si. J o professor de lngua, que pertence a um grupo pro-fissional cujo trabalho no se encerra quando a aula acaba eque, por isso, est constantemente procura de material didti-co, provavelmente ler tambm em funo do interesse do temapara seus alunos.

    Os modos de ler, em conseqncia disso, sero tambm dife-rentes. Quando se l com o objetivo didtico de selecionar tex-tos e quando se l com a finalidade nica de ficar informado, ain-

    da que para poder participar da grande fofocaglobal que o jornal oferece ao leitor, escolhem-se textos diferentes e utilizam-se diferentes es-tratgias de leitura.

    Disso podemos tirar uma concluso impor-tante para o ensino: quando mudam os objetivos,mudam tambm as estratgias de leitura.

    Para reflexo

    Voc acredita que haveria diferena nas estratgias de leitura de uma histriaqualquer, se seus alunos tivessem alguns objetivos de leitura como os listados aseguir?

    Procurar as palavras que comeam com ch.Descobrir por que o garoto protagonista da histria ficou brincando na chuva.Se voc respondeu sim, quais seriam essas diferenas? Se voc respondeu no,

    justifique sua resposta.

    Estratgias de leitura.Conjunto de procedimen-tos de ordem cognitiva, is-to , que envolvem a per-cepo, a ateno, a me-mria, o raciocnio, paraalcanar algum objetivo deleitura.

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    Mesmo sujeito, diferentes prticas

    Assim como um mesmo texto pode ser lido de modos diferentessegundo os elementos da situao que contextualizam a leitura, ummesmo leitor mobiliza diferentes estratgias, saberes e recursos deleitura (e de produo textual) segundo as caractersticas da prticasituada. Imaginemos o dia de um mdico, em diversas atividades, eas diferentes formas em que ele utiliza a lngua escrita.

    No seu consultrio, durante uma consulta, o mdico l a ficha dopaciente e registra nela os sintomas que lhe so relatados, com o ob-jetivo de fazer um diagnstico e elaborar proposta(s) de tratamento.O mdico transcreve, das respostas do paciente, o que lhe interessa,l o que j consta da ficha e utiliza essa leitura para formular pergun-tas; faz anotaes do que ele prescreve e dos exames que solicita.Se o caso no for muito comum, poder consultar alguns textos darea mdica, para checar seus conhecimentos ou para adquirir co-nhecimentos novos e, em qualquer dos casos ler esses textos fa-zendo anotaes ou destacando os trechos mais importantes.

    Se logo depois, em vez de uma entrevista que pertence esfe-ra das atividades mdicas, ele fosse fazer uma entrevista na esfe-ra das atividades de relaes de trabalho para contratar um re-cepcionista para o seu consultrio, por exemplo ele poderiaconsultar os currculos dos candidatos para selecion-los e paraformular perguntas com o objetivo de conhecer melhor o aspiran-te ao emprego. Depois, durante a entrevista, tomaria nota das res-postas que lhe parecessem mais pertinentes.

    Se, no final do dia, esse mdico assistisse a uma conferncia, to-maria nota das informaes que mais lhe interessaram talvez asreferncias ali mencionadas para se atualizar. Se pudesse fazeruma pergunta ao palestrante, o faria de acordo com as exignciasdas prticas ligadas ao estudo e universidade, e a pergunta seriasobre o assunto da palestra, determinado pelo palestrante.

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    Os textos produzidos pelo mdico desse nosso exemplo, os di-versos modos de ler (a ficha do paciente, o currculo dos candida-tos, as citaes apresentadas na conferncia) e os diferentes mo-dos de fazer perguntas, variam em funo das situaes especfi-cas, que ocorrem segundo os parmetros de trs esferas de ativi-dades diferentes (a mdica, a trabalhista, a acadmica), em tem-pos e espaos concretos.

    Outro exemplo claro dessa relao entre a escrita e a situao o dos sindicalistas que redigem cartas de reivindicao em no-me do grupo de trabalhadores que representam, mas precisam,

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    para isso, de secretrias (como escribas), porque no so alfabe-tizados. No exemplo da pgina ao lado, reproduzimos uma cartatal como foi ditada por um lder sindical analfabeto sua secret-ria alfabetizada, que teve o trabalho de transcrever o texto extre-mamente coerente e especializado que o lder lhe falou.

    As caractersticas do gnero, a estrutura complexa da carta eo vocabulrio especializado no constituem problema de produoescrita para esse lder, mas o alfabeto certamente sim. Um outroexemplo, do mesmo tipo, o caso dos poetas de cordel, que socapazes de produzir literatura criativa e original, mas no tm amesma competncia para escrever uma carta pessoal que fuja dochavo e do lugar-comum. Ou seja, quando muda a situao, mu-dam tambm as nossas capacidades de ao.

    INSETOSO que sei ... O que quero saberTransmitem doenas.Podem voar.Tm seis patas.

    Para reflexo

    Algumas atividades muito comuns na escola e que em geral ocorrem de manei-ra descontextualizada, isto , no variam segundo o grupo ou a situao, so a c-pia, exerccios de completar frases, exerccios para buscar e sublinhar palavras comdgrafos, por exemplo, ditados, e atividades de perguntas e respostas. Pense emcada uma delas e imagine como elas podem vir a ser contextualizadas.

    Vejamos um exemplo de um ditado diferente: se o assunto for insetos,por exemplo, os alunos dizem professora o que sabem sobre o assunto eela ou um aluno voluntrio vai anotando no quadro-de-giz. O objetivo desse di-tado dos alunos e da anotao da professora est ligado a uma situao: terno quadro um texto comum, visvel a todos, que sirva de base para uma dis-cusso posterior da turma.

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    Essa concluso sobre nossas capacidades de ao, que mu-dam de acordo com a situao, tem uma conseqncia importan-te na reflexo sobre o trabalho escolar. Se tudo o que o aluno cos-tuma escrever o gnero redao escolar se choveu, redaoA chuva; se poca de volta s aulas, redao Minhas frias;se segunda-feira, redao Meu fim de semana , como pode-mos esperar que ele seja capaz de redigir uma carta a uma edito-ra solicitando ajuda (como catlogos, informaes, livros) para or-ganizar uma feira de livros na escola?

    Resumindo, podemos dizer que, em funo da tendncia con-textualizao das atividades, estratgias, saberes, segundo a situ-ao especfica, num tempo e espao concretos, os modos de lere de escrever variam segundo diferentes instituies. Isso signifi-ca que, mesmo dominando a escrita, podemos deparar com situa-es em que somos incapazes de produzir um texto. Alto seria orisco que correria, hoje em dia, uma pessoa letrada mas sem co-nhecimentos jurdicos ou imobilirios especializados, se vendesseum imvel e registrasse o evento por meio de um contrato de com-pra e venda a longo prazo que ela mesma tivesse redigido...

    Por tudo isso, as prticas de uso da escrita so consideradasprticas situadas.

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  • As prticas escolares

    As prticas de letramento fora da escola tm objetivos sociaisrelevantes para os participantes da situao. As prticas de letra-mento escolares visam ao desenvolvimento de habilidades e com-petncias no aluno e isso pode, ou no, ser relevante para o estu-dante. Essa diferena afeta a relao com a lngua escrita e umadas razes pelas quais a lngua escrita uma das barreiras maisdifceis de serem transpostas por pessoas que vm de comu-nidades em que a escrita pouco ou nada usada.

    As prticas escolares presumem a existncia de um sujeitoindependentemente do tempo e do espao sempre o mesmo,

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  • seja ele o primeiro indivduo a aprender a ler e a escrever na suafamlia e no seu bairro, ou o filho de uma famlia de escritores eintelectuais com educao superior, ou ainda uma criana nascidaem uma comunidade indgena que foi grafa at recentemente.Entretanto, isso muda quando o trabalho didtico organizadolevando em conta os textos que circulam entre os diversos grupossociais, no dia-a-dia. Conseqentemente, diferenas e caracters-ticas da situao comeam a penetrar nas aulas, visando aoensino da escrita, como deve ser feito.

    Os aprendizes

    Entre as questes relativas contextualizao que merecemser levadas em conta nos programas e currculos para o ensinoda escrita, podemos citar, em primeiro lugar, a necessidade deadequao dos mtodos s caractersticas da situao, incluindoa as caractersticas do aprendiz participante da situao. Mesmoquando se trata da alfabetizao, da qual todos precisam paraser letrados, os mtodos para alcanar esse objetivo devem vari-ar segundo o aprendiz. J dissemos que o mtodo uma estrat-gia relacionada ao aluno, no apenas ao conjunto de saberesenvolvidos.

    Crianas que crescem em metrpoles, rodeadas de cartazes,outdoors publicitrios, nibus com todo tipo de anncios eletreiros, placas e avisos por todos os lados, j conhecem nocom seu valor fontico, mas como se fossem ideogramas

    muitas letras e palavras que aparecem nessestextos: mesmo antes de decodificar j lem oM de MacDonalds ou o nome em letra cursivada Coca-Cola. Isso, porm, no acontece em

    comunidades rurais afastadas dos grandes centros, em que aleitura que a criana faz a dos sinais da paisagem natural.

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    Ideograma. Smbolo querepresenta um objeto ouuma idia.

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  • . 35 .

    Alm disso, se uma criana participa de eventos de letramen-to no lar por exemplo, escuta as histrias que um irmo maisvelho, pai ou av l para diverti-la e distra-la , essa criana jassocia o livro ao lazer, quilo que lhe prazeroso eaconchegante. Mas isso no universal. As lem-branas dos jovens e adultos que fracassam naescola esto cheias de momentos de dor edesconforto relacionados aos seus primeiroscontatos com a escrita.

    Crianas que tiveram uma relao afetiva e prazerosa com olivro de histrias na creche, no lar, na escolinha poderoachar um sentido para qualquer atividade de decodificao (atmesmo entediantes exerccios de cpia do quadro-de-giz), porquej conhecem mltiplas funes da palavra escrita e esto procu-ra da chave que lhes permitir entrar no mundo da escrita por simesmas, sem a ajuda do adulto.

    O que dizer, porm, de outras crianas, que no conhecemessas funes? Ser que elas conseguiro enxergar esse alvo, seo que sabem sobre a escrita o que a escola est lhes ensinan-do, to distante das funes comunicativas e expressivas dosatos de ler e escrever? Nesse caso, a tarefa parece to rduacomo a de tentar aprender uma lngua estrangeira repetindo, horasa fio, os sons dessa lngua, sem nunca, porm, us-la para falar

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    A esse respeito, vejaEnsino e a formao

    do professor, de Angela B.Kleiman e Ins Signorini,obra citada na Bibliografia.

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    com algum, escutar uma piada, contar um caso. Quantos de nsperseveraramos e teramos sucesso com um mtodo desse tipo?

    Mesmo que a criana j valorize a escrita, a contextualizaodo novo conhecimento os sistemas alfabtico e ortogrfico dalngua torna a aprendizagem muito mais fcil. Uma palavratorna-se vvida, real, concreta durante a leitura. Imaginemos queuma criana (ou outro leitor iniciante) est lendo um conto quecomea com:

    Era uma vez uma viva muito pobre que morava com sua filha numa

    choupana coberta de sap...

    Seria bastante vlido o professor levar essa criana (ou essa pes-soa que est aprendendo a ler) a imaginar todos os detalhes que fal-tam nessa cena e que so justamente o que dar vida s letras:

    P Uma viva... alta e magra... de olhos escuros e cabelos pre-tos, com alguns fios brancos...

    P Como ela se veste?

    P E a filha, quantos anos ter?

    P Ser que a filha parecida com a me? (No? Ento, ela baixinha e gordinha, loira, e tem olhos castanhos?)

    P Elas se do bem? Conversam muito?

    P Sobre o que, geralmente, conversam?

    P Como ser a choupana em que vivem? Quantos cmodoster?

    P E outros detalhes, medida que vai se desenvolvendo ahistria.

    A ilustrao, na literatura infantil, pode desempenhar essafuno ao complementar, enfatizar ou gerar expectativas sobre otexto. No entanto, importante que isso passe a fazer parte dasestratgias de leitura da criana.

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    Se, dando asas imaginao, a criana contextualiza ahistria do livro, no haver limites para o que ela ser capaz defazer quando os saberes a serem adquiridos forem contextualiza-dos em atividades relevantes de estudo e de lazer.

    As atividades escolares

    A escrita adquirida no contexto escolar enfatiza a realizao deatividades analticas em relao linguagem. Alis, quando a cri-ana comea o processo de alfabetizao, comea a atividadeanaltica. Para aprender a ler e a escrever o aprendiz deve noapenas analisar a fala em palavras, mas as palavras em slabase, eventualmente, as slabas em fonemas (os sons significativosda lngua). Por exemplo, quando faz brincadeiras de encontrarrimas, a criana est analisando a palavra em sons.

    Essa atividade analtica no traz grande dificuldade a uma cri-ana que j conhece as funes de muitos textos que circulam nasociedade (como as do livro de histrias, do jornal, do bilhete, dareceita mdica) e que j brincou de ser leitora e escritora, fazen-do de conta ela e o adulto que interpreta seus balbucios imi-tando a leitura e seus rabiscos, suas garatujas que est lendoe escrevendo. No entanto, essa ser uma atividade extremamentepenosa e sem sentido para a criana que no conhece essasfunes, que no experimentou ler nem escrever na brincadeira. o que acontece quando os textos no circulam no cotidianodomstico da criana, ou quando sua famlia no usa a escritaporque no sabe ler e escrever ou sabe, mas o faz com poucafreqncia ou com grande dificuldade ou, ainda, em situaes ecom funes que a escola desconhece e no legitima.

    O fato de a escola separar as prticas letradas de suas insti-tuies de origem literria, cientfica, jornalstica e dar um

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  • tratamento descontextualizado, uniforme, a todos os textos, inde-pendentemente de onde se originaram, no significa que as prti-cas na escola no sejam situadas. Elas so situadas na escola, amais importante agncia de letramento da sociedade, quefavorece as prticas de anlise de elementos como slabas,palavras, frases... e at textos.

    O insucesso generalizado no ensino da escrita a grupos queno provm de famlias letradas parece estar claramente dizen-do que est na hora de substituir ou complementar os fazeresanalticos com a participao nas prticas sociais de outrasinstituies. Para dar um exemplo, em vez de ensinar/aprenderque uma receita de salada de frutas tem trs partes nome,ingredientes e modo de fazer , ser mais eficaz fazer a sala-da de frutas e, depois, rememorando o que foi feito, organizarsaberes e atividades numa receita, de forma escrita, para lem-brar dela no futuro e para poder comunic-la aos ausentes.

    Uma forma de fazer isso reproduzir as caractersticas da prti-ca na situao original no espao da sala de aula: por exemplo, sea notcia de jornal lida e comentada no cotidiano familiar, no hpor que no a ler e comentar na aula. Se o relato do que nos acon-teceu no dia faz parte das nossas prticas cotidianas no lar, no hpor que no encorajar esse relato no momento da rodinha em salade aula, a fim de transformar os acontecimentos dos relatos emobjeto de prticas letradas, quando possvel ou pertinente.

    . 38 .

    A escola uma instituio de peso, por isso tem o poder de legitimar algu-mas prticas em detrimento de outras. Numa turma de adolescentes, garotos egarotas costumam enviar bilhetinhos pessoais uns aos outros. Quando se per-gunta a uma jovem, que acaba de enviar um bilhete amiga, se ela costuma es-crever, ela diz que no, porque escrever esse tipo de bilhete no algo realiza-do com o professor, mas escondido dele. No corresponde quilo que a escolachama de escrever.

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  • . 39 .

    Imaginemos uma atividade em que os alunos compartilhamcom os colegas as rotinas e peripcias do dia, e na qual um alunorelata o seguinte:

    Acordei s 7; levantei e fui tomar o caf. Cheguei no ponto adiantado,

    mas o nibus chegou 20 minutos atrasado e to lotado que no dava

    pra entrar...

    H nesse relato um episdio que poderia originar uma prticade letramento relacionada defesa dos direitos do cidado e doconsumidor junto a instituies como a Prefeitura e as empresasde nibus: escrever uma carta formal de reclamao, ou fazer umabaixo-assinado com os usurios da linha de nibus.

    As atividades necessrias para escrever uma carta reivindi-catria ou fazer um abaixo-assinado pertencem esfera dasatividades polticas e/ou comerciais, relacionadas defesa doconsumidor. E ainda esto situadas na escola. Diferentementedas atividades analticas em que se escreve e se l para aprendera escrever e a ler, o foco na atividade em questo est na prticaletrada, em vez de estar no gnero ou texto a ser produzido. Esse

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  • foco libera essa atividade da camisa-de-fora que a atividadeanaltica escolar e, ao mesmo tempo, a mantm firmemente anco-rada no mbito das atividades que visam ao ensino e apren-dizagem da escrita, respectivamente objetos e objetivos escolarespor excelncia.

    Quando o foco est na prtica de letramento, corre-se menosrisco de engajar o aluno em atividades de faz-de-conta. Secomearmos pelo objetivo de ensinar o aluno a escrever abaixo-assinados muito mais provvel resultar um texto que ningum,fora da turma que o escreveu, ler.

    . 40 .

    Para reflexo

    Existe alguma atividade que seus alunos realizam em sala de aula que no en-fatize a anlise?

    Vamos pensar como algumas atividades necessrias para aprender a ler e a es-crever podem ser alteradas para mudar essa nfase?

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  • . 41 .

    Outras implicaes

    Uma nova forma de conceber o papel e o impacto da lnguaescrita na sociedade necessariamente traz transformaes naconcepo da lngua falada. Conseqentemente, novas relaes enovos espaos so definidos para esses sistemas inter-relaciona-dos de comunicao. O mesmo acontece relativamente a outraslinguagens no-verbais e as inter-relaes que se estabelecem notexto escrito.

    A relao letramentooralidade

    Quando, em exemplo anterior, descrevemos a entrevista dopaciente no consultrio mdico, chamamos essa seqncia deaes de evento de letramento. Mas a entrevista exemplificadano envolvia apenas leitura e anotaes; ela consistia tambm deperguntas e respostas faladas, na interao face a face. Almdos textos que formavam a histria do mdico e do paciente, edos textos que eram lidos e produzidos na situao, a fala tam-bm era crucial.

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  • . 42 .

    Essa relao corriqueira numa sociedade tecnolgica moder-na: escrita e fala se complementam, so coadjuvantes na com-

    plexa encenao de eventos nas instituies. Tradicionalmente, a (lngua) escrita se ope

    fala (lngua falada); trata-se de dois sistemassemiticos ou sistemas de signos que utilizamcanais (auditivo e visual) e modalidades decomunicao distintos para significar: almdas linguagens verbais, um usa o corpo, oolhar, o espao imediato, os silncios, a ento-nao; o outro utiliza o suporte fsico, tipos etamanhos de letras, imagens, pontuao etc.

    J o termo letramento tem como contraparte a oralidade e ambos letramento e oralidade referem-se aos usos da linguagem, aodiscurso e, para alguns autores, aos modos de organizar a realidade.

    Sistema semitico. Sis-tema de signos para a pro-duo social de significa-dos. A lngua o sistemasemitico paradigmtico,mas os lingistas no seconsideram semioticistas.Os sistemas semiticosmais estudados so osdas linguagens verbais dapropaganda, da TV ou docinema.

    Fe

    rnan

    do F

    avor

    etto

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  • . 43 .

    As prticas sociais de linguagemso hbridas em relao s modali-dades de lngua utilizadas, mas elaspertencem a um tipo de discurso ououtro. Por exemplo, as atividadesdesenvolvidas na cincia ou naimprensa so basicamente letradas,enquanto o dilogo ntimo entre doisnamorados pertence s prticas daoralidade, mesmo que s vezes sejatransposto para um bilhete ou outrotipo de texto escrito.

    Vale salientar, porm, que o dis-curso jornalstico (assim como o dis-curso cientfico) envolve no s ostextos escritos que aparecem no jor-nal, mas tambm a discusso oral, que se faz na redao, dasmatrias que sero notcia no jornal do dia seguinte, as considera-es e correes que o editor faz, tanto porescrito como oralmente, sobre o texto que oreprter apresentou etc. Em outras palavras, um discurso letrado, com prticas que envolvemtanto a lngua falada como a lngua escrita.

    Uma questo tambm importante que, emsociedades modernas como a nossa, quase noexiste mais oralidade pura. H uns poucoscasos de complementaridade entre as duas lngua falada e lngua escrita , ou seja, h situ-aes que privilegiam a lngua escrita, como acelebrao de contratos imobilirios, licitaes,emprstimos bancrios, a elaborao de proje-tos para conseguir verbas federais, assim como

    Complementaridade. Nalingstica, dois itens estoem relao complementarquando esto em oposiodentro de um sistema ouquando se complementammutuamente porque ocor-rem em ambientes distin-tos, complementares. Nosistema de comunicaoverbal, isso significa que sea lngua falada e a lnguaescrita esto em relaocomplementar apenas umadelas possvel na situ-ao. Esse o caso maisraro hoje.

    Mas esses lingistas so mesmo complicados!Imagine ter de distinguir

    lngua falada e lngua escrita, oralidade

    e letramento !

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  • . 44 .

    h ocasies em que a lngua escrita no funciona, e preciso usara fala, como, por exemplo, quando se chama o filho que est brin-cando na rua para entrar em casa.

    muito mais comum, entretanto, a existncia de uma gradaode formalidade/informalidade que tambm contribui para determi-nar a modalidade de lngua a ser utilizada: assim, podemosagradecer um presente, aceitar um convite, oferecer os psames,falando ou escrevendo, e isso depende, basicamente, do nvel deformalidade da situao, que pode ir desde o mais frio e formal ato casual e o ntimo. As situaes, em geral, so hbridas, comovimos no exemplo do dia de um mdico. As situaes escolaresno so uma exceo: h explicaes, perguntas e respostasorais, assim como h exerccios, questionrios e provas escritos,e leituras e comentrios orais sobre textos lidos.

    Uma relao de continuidade

    A relao entre oralidade e letramento no de oposio ouum ou o outro , como os exemplos de prticas sociais anterior-mente mencionados mostram.

    Nas prticas letradas da sala de aula, as relaes de comple-mentao e sobreposio parcial entre fala e escrita so muito evi-dentes. Na aula de leitura, por exemplo, o professor faz perguntasantes, durante e depois da leitura, com a finalidade de ajudar aconstruir um sentido ou de introduzir um novo gnero. Em outraspalavras, ele fala e, ao fazer isso, mobiliza seus conhecimentos,experincias e recursos da oralidade (como fazer perguntas ade-quadas ao pblico, ao assunto, aos objetivos da atividade) e doletramento (como ler um conto). importante lembrar que ele fazisso com a finalidade de ensinar os diversos elementos de umnovo sistema de signos e de significados em construo pelosalunos: a lngua escrita. A aquisio e o domnio dessa modali-

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  • dade de se comunicar que permitiro que os alunos participem,cada vez com mais capacidades de ao, das prticas de letra-mento da sua famlia (e da sua comunidade), como ler a Bblia,consultar o dicionrio, copiar uma receita num caderno especialpara receitas, ler o jornal, conversar, na hora da refeio ou delazer, sobre livros e outros assuntos lidos.

    Nas atividades fora da escola, a mobilizao dos dois sistemassemiticos o da lngua escrita e o da lngua falada tambm comum. Vejamos alguns exemplos:

    P a ata de uma reunio o registro escrito de uma interaooral envolvendo um grupo de participantes ratificados ou reco-nhecidos como co-participantes da situao (quem est escutan-do do lado de fora da sala de reunio no um participante, noconsta da lista dos presentes reunio); ela prpria de institui-es que precisam construir uma memria de suas atividades,como associaes de condomnio, assemblias de sindicato, con-selhos universitrios;

    P o boletim de ocorrncia produzido pelo policial de plantocom base no relato oral dos participantes da ocorrncia;

    P os textos televisivos jornalsticos nascem de uma discussode pauta, so em seguida escritos e posteriormente falados.

    O conceito de letramento abre espao para uma nova forma deconceber a relao entre o escrito e o oral. Foi postulada umarelao de continuidade no de oposio entre o oral e oescrito, perante as evidentes relaes que existiam entre os usosda lngua falada e da lngua escrita.

    . 45 .

    Para reflexo

    Como esses, podemos pensar em vrios outros exemplos, de outras instituies.Voc pode mencionar alguns?

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  • Imaginemos uma linha com dois extremos (um contnuo):

    ORAL ESCRITO

    Num extremo do contnuo, encontraramos os gneros oraisda intimidade, como a conversa, o bate-papo, a fofoca e, no outroextremo, os gneros escritos das instituies mais estruturadas earticuladas, mais complexos, como o artigo cientfico, o romanceliterrio... Mas, entre eles, haveria uma verdadeira constelaode outros gneros da intimidade, porm escritos, como o diriopessoal e a carta, ou de discursos institucionais formais, pormorais, como a palestra e o debate.

    ORAL ESCRITO

    Uma outra forma de conceber as relaes entre os diversosgneros, segundo a sua proximidade com as formas orais ouescritas, a de famlias de textos. Essas relaes de famlia sebaseiam em semelhanas na funo e na forma ou estrutura dosgneros, que nascem em uma instituio, mas so adaptados ereinventados por outras. Um exemplo dessa famlia dado pelosgneros missivistas: o recado e o bilhete no lar, o memorandona firma, o anncio ao microfone no salo de reunies, o aviso na

    . 46 .

    INFORMAL

    FORMAL

    Bate-papo, fofocaCaso, conversa fiada

    Entrevista mdica Relato de vivnciasReclamao

    DebatePalestraConferncia

    Bilhete, carta pessoal

    Dirio

    Carta do leitor

    Biografia

    Entrevista jornalstica

    Notcia

    Carta de reivindicao

    Editorial, ensaio

    Relatrio cientfico,artigo cientfico, tese

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  • . 47 .

    porta da repartio pblica, o Messenger (MSN) na Internet,entre outros.

    Outras linguagens

    Uma importante contribuio dos estudos do letramento paraa reflexo sobre o ensino da lngua escrita na escola a ampli-ao do universo textual, que significa, concretamente, a inclusode novos gneros, de novas prticas sociais de instituies (pu-blicitrias, comerciais, polticas) que, at pouco tempo, no tinhamchegado aos bancos escolares.

    Quando se amplia a concepo da escrita, antes reservadapara os textos extraordinrios aqueles que so por poucos pro-duzidos possvel entender melhor o impacto social da escrita:as mudanas e transformaes decorrentes das novas tecnolo-gias, os usos da escrita e seus reflexos no homem comum.

    Da a importncia de se incluir tambm os textos comuns,sobre assuntos corriqueiros, de circulao cotidiana na famliaou no ambiente de trabalho, que qualquer escolarizado bem-sucedido compe quase sem pensar. Eis a tambm no umanovidade, mas uma nova forma de conceber o trabalho escolare suas relaes com a vida social.

    O trecho da pgina anterior apresenta metforas que se referem s relaesentre textos orais e escritos e os gneros a que pertencem: contnuo, conste-lao. Isso comum quando os conceitos so muito complexos. As metforas con-ceituais nos ajudam a entender conceitos abstratos e at a organizar a realidadeque nos rodeia. So um bom recurso pedaggico. As metforas aqui usadas somistas e se devem a diferentes pesquisadores: contnuo foi introduzido por Chafe,lingista americano, e constelao por Bronckart, um pesquisador suo. NoBrasil, tais metforas tm sido divulgadas e estudadas por autores como Luiz A.Marcuschi, Anna Rachel Machado e Roxane Rojo, entre outros. Essa literatura,porm, vasta demais para ser citada aqui. (Veja Bibliografia, no final do livro).

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  • . 48 .

    Incluem-se nas novas categorias de textos escolares listas, bi-lhetes e receitas, que so escritos e copiados sem aparelhagem espe-cial, s vezes em pedacinhos de papel que atestam que a ocasio informal, usual, trivial at. Incluem-se tambm os textos da escritaambiental, do mundo fsico ao redor, como pichaes, avisos,letreiros, outdoors, placas de rua, crachs, camisetas e buttons, expos-tos para serem lidos num bater de olhos. So tambm includos,nesse conjunto de novidades, os textos de mdias at h poucodesconhecidas, ou textos que resultam dos novos modos de cons-truo textual, como o do exemplo em que a paisagem o ponto denibus faz parte, por assim dizer, do outdoor a ser interpretado:

    Nos materiais didticos, mesmo quando a inovao se limita incluso dos textos jornalsticos um sistema miditico que no

    de origem recente a diferena entre o mate-rial atual e materiais semelhantes de antiga-mente marcante. Isso porque o texto escritomudou substancialmente. O texto comum namdia hoje um texto multissemitico ou multi-modal: so usadas linguagens verbais, imagens,fotos e recursos grficos em geral. Portanto, no apenas a linguagem verbal a que contribui para

    Textos multissemiti-cos ou multimodais.Textos que combinam dife-rentes modos de represen-tao (imagens, msica,cores, lngua escrita, lnguafalada), que devem ser leva-dos em conta na sua inter-pretao.

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  • . 49 .

    o sentido; a imagem se tornou uma forma de expresso e decomunicao muito poderosa.

    Em resumo, a relao entre o material verbal e as imagens nostextos mudou dramaticamente nos ltimos 30 anos, em livros,revistas e jornais. Percebemos isso claramenteao comparar, por exemplo, uma abertura deunidade de um livro didtico da dcada de 1970,em que a linguagem reinava nica, com outra(sobre o mesmo tema) de um livro didtico pu-blicado mais recentemente.

    Na TV e na Internet, a multimodalidade ainda mais marcada, pois o textotelevisivo ou o hipertexto, na Internet, utilizam tambm a linguagem musical,alm da linguagem verbal e grfica, para fazer sentido. Essa tendncia encontra-se tambm na mdia impressa e no livro didtico da se dizer que na ps-mo-dernidade os textos no so mais essencialmente escritos, so multissemiti-cos. Este volume da coleo Linguagem e Letramento em Foco exemplodisso: utiliza ilustraes, fotos, tabelas, caixas de texto, cores, letras de dife-rentes formas e tamanhos e outros recursos grficos.

    A respeito de textosna Internet, veja o

    volume Letramento e tec-nologia, de Denise B. Bra-ga e Ivan L. M. Ricarte,nesta coleo.

    MISSA DO GALOMachado de Assis

    Nunca pude entender a conversao que tive com uma

    senhora, h muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era

    noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos missa

    do galo, preferi no dormir; combinei que iria acord-lo meia-

    noite.

    A casa em que eu estava hospedado era a do escrivo

    Meneses, que fora casado, em primeiras npcias, com uma de

    minhas primas. A segunda mulher, Conceio, e a me desta

    acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de

    Janeiro, meses antes, a estudar preparatrios. Vivia tranqilo,

    naquela casa assobradada da Rua do Senado, com meus livros,

    poucas relaes, alguns passeios. A famlia era pequena, o

    escrivo, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos.

    s dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; s dez e

    meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma

    vez, ouvindo dizer ao Menezes que ia ao teatro, pedi-lhe que me

    levasse consigo

    MISSA DO GALOMachado de Assis

    Nunca pude entender a conversao que ti-ve com uma senhora, h muitos anos, con-tava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal.

    Havendo ajustado com um vizinho irmos missa do galo, preferi no

    dormir; combinei que iria acord-lo meia-noite.

    A casa em que eu estava hospedado era a do escrivo Meneses, que fora

    casado, em primeiras npcias, com uma de minhas primas. A segunda

    mulher, Conceio, e a me desta acolheram-me bem, quando vim de

    Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatrios.

    Vivia tranqilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com meus

    livros, poucas relaes, alguns passeios. A famlia era pequena, o escrivo,

    a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. s dez horas da noite

    toda a gente estava nos quartos; s dez e meia a casa dormia. Nunca tinha

    ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Menezes que ia ao

    teatro, pedi-lhe que me levasse consigo

    TEXTO 5 Unidade 5

    RESPONDA1. Onononononono nononono nononononon nononon nononon

    nononon nonono nonononon nonono

    2. Ononononono nononono nonono nonononon nono nonon

    3. Ononono nononono nonon nonon nonono nononon no

    4. Onononono nononono nonono nonononononono nononon

    1. Onononononono nononononononononon nononon

    nononon nononon nonono

    nonononon nonono

    2. Ononononono nonononononono nonononon nono

    3. Ononono nononono nononononon onon nonononon

    nonono nononon no

    4. Onononono nononnon onoononono nonon nonono

    nono nonono non

    Responda

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  • . 50 .

    A imagem faz parte do conjunto de recursos necessrios paraensinar a ler: ela pode desempenhar o papel de coadjuvante, co-partcipe na interpretao do texto verbal, ajudando a construir osprimeiros sentidos, que depois sero tornados mais precisos pelaleitura. Ou, como veremos nos exerccios que acompanham ocurso Letramento nas Sries Iniciais, no ambiente TelEduc, elapode contar uma histria totalmente diferente daquela que o textoescrito conta. Embora a escola privilegie o letramento com foco nalinguagem verbal, no faz sentido relegar a um segundo plano osconhecimentos sobre textos multimodais, que a maioria dosalunos j tem, assim como faz todo sentido ensinar o aluno a inter-pretar a linguagem imagtica, para ler tambm nas entrelinhas dealgumas imagens que s tentam vender, manipular, banalizar ereproduzir o pior que a sociedade tem a oferecer.

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    ra

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  • . 51 .

    Formando leitores

    Tendo como pano de fundo as exigncias de saberes cada vezmais complexos e diversificados sobre o funcionamento da lnguaoral e escrita, das linguagens verbal e no-verbal, dos textos mul-timodais de gneros cada vez mais numerosos e complexos naprtica social ps-moderna que se perfila o trabalho do profes-sor para ajudar seus alunos a construir histrias de leitura signi-ficativas e valiosas.

    O trabalho do professor

    O professor que acha que, no seucurso de formao, aprender tudo oque um dia poder precisar parainserir seus alunos nas prticasletradas da sociedade um professorfadado ao desapontamento.

    O letramento nos permite aprendera continuar aprendendo: se sabemosler um mapa, poderemos achar nossocaminho por estradas de cidadesdesconhecidas nunca antes visitadas;porm, se tivermos decorado osnomes das ruas de uma cidade, quan-do precisarmos usar esse conheci-mento, ele poder estar obsoleto.

    Assim com qualquer saber. Precisamos das ferramentas paracontinuar aprendendo, e a leitura a ferramenta por excelnciapara isso.

    Para formar leitores, o professor, alm de ser plenamente letra-do, claro, precisa ter os conhecimentos necessrios para agir

    Xi... Tudo isso mais as histrias

    de leitura, a psicologiada aprendizagem,

    teorias de leitura...Precisamos de umsuperprofessor!

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  • . 52 .

    como um verdadeiro agente social. Ele tem de ser um gestor derecursos e de saberes tanto dos dele (que talvez at nem saibaque possui porque deles nunca precisou) como dos de seus alunos.

    O agente social, antes de ensinar um novo modo de se rela-cionar com a tecnologia (uma nova tcnica para plantar batatas,uma nova forma de cuidar do umbigo de um recm-nascido ou deregistrar a histria de uma famlia etc.), descobre, em primeirolugar, se a atividade tem alguma funo na vida do outro. Assimcomo no adianta ensinar a amamentar um beb mulher que notem um recm-nascido em casa, no adianta ensinar a arquivar do-cumentos a quem nunca tirou sequer a certido de nascimento. Oprimeiro passo descobrir quais so as funes da lngua escritano grupo e criar novas e relevantes funes para a insero plenados alunos e seu grupo social no mundo da escrita. O trabalho essencialmente poltico, mas no deixa por isso de ser didtico-pedaggico. Tal como Paulo Freire dizia, a natureza da prticaeducativa no permite que ela seja neutra, mas sempre poltica.

    Como todo agente social, o agente de letra-mento desenvolve aes fundamentadas no co-nhecimento, na descoberta de que saberes, tc-nicas, estratgias, tradies e representaessobre a escrita o outro (o aluno e sua famlia)mobiliza no dia-a dia para realizar a atividade.Uma estratgia imprescindvel conhecer bemos recursos do grupo, ou seja, conhecer o que ogrupo capaz de fazer. Novamente, focalizar oque o grupo sabe em vez daquilo que no sabe

    uma tarefa de ordem poltica.O agente de letramento consegue, por meio de sua liderana,

    articular novas aes, mobilizando o aluno para fazer aquilo queno imediatamente aplicvel ou funcional, mas que social-mente relevante, aquilo que vale a pena ser aprendido para que o

    Agente (de letramento).Uma representao do pro-fessor que concebe o letra-mento como um mobiliza-dor dos sistemas de conhe-cimento, recursos e capaci-dades dos seus alunos,pais dos alunos e mem-bros da comunidade com afinalidade de que partici-pem de prticas de uso daescrita.

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  • . 53 .

    aluno seja plenamente inserido na sociedade letrada. Outraestratgia importante ampliar os horizontes de ao do grupo.

    Ao contrrio do superprofessor, esse agente no precisa sabertudo sobre a lngua escrita, sobre as linguagens no-verbais, sobreas novas prticas sociais emergentes, porque, ao se engajar emprticas de letramento, estar engajado numa atividade colabora-tiva em que todos tm algo com que contribuir e todos tm algo aaprender.

    A pesquisa do professor tem como objetivo, muitas vezes, co-nhecer os alunos e, portanto, equivale ao de descoberta dosagentes comunitrios, como, por exemplo, a ao de um agenteagrcola, ou de sade, que organiza o grupo para definir um planode ao coletiva. O professor, enquanto agente de letramento, um promotor das capacidades e recursos de seus alunos e desuas redes comunicativas para que participem das prticas de usoda escrita situadas nas diversas instituies.

    A pesquisa do professor (e de outros agentes da escola) pode-ria perfeitamente envolver as atividades necessrias para conhe-cer as diferentes experincias dos alunos com a escrita, a fim delev-las em conta no planejamento do trabalho escolar. Por exem-plo: uma ficha do letramento do aluno, criada por dirigentes deescola, coordenadores pedaggicos ou professores, poderia serpreenchida a partir da observao em sala de aula e da conversacom o aluno, com seus pais e com outros professores que co-nheam esse aluno. Isso seria um primeiro e necessrio passopara concretizar o velho axioma que diz que o ensino deve partirdaquilo que o aluno sabe.

    Para reflexo

    Em sua comunidade, o que constituiria uma boa eficiente, econmica, vi-vel ficha de letramento? Pense nas categorias necessrias para elaborar umaficha com seu professor-tutor ou com seus colegas e parceiros na escola.

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  • . 54 .

    Toda vez que um professor decide arriscar e tentar algo novo o que pode exigir at uma improvisao ele se declara sur-preso pelo fato de os alunos terem conseguido fazer aquilo queele planejou. Essa surpresa diz muito sobre as baixas expectati-vas do professor. Em geral, quando dada ao aluno a oportu-nidade de mobilizar seus saberes e de ser ouvido, ele sempreacaba se lembrando de pessoas, fatos e coisas relevantes (umalmanaque esquecido numa gaveta, as palavras do av, as ast-cias, saberes ou relacionamentos de um amigo que poder ajud-lo a ter acesso ao que precisa numa determinada instituio).

    Os projetos de ensino

    Temos usado a palavra letrado para descrever um sujeito queparticipa das prticas sociais de uso da linguagem escrita de suacomunidade, mesmo que ainda no tenha domnio individual daescrita, como seria o caso extremo da criana ainda no alfabeti-zada ou do adulto analfabeto que mora numa metrpole.

    Essa concepo de sujeito letrado traz uma implicao para adinmica de organizao do trabalho escolar: ele deve ser realiza-do por meio da imitao da dinmica das prticas sociais de ou-tras instituies. Isso pressupe o trabalho em pequenos grupos,com alunos heterogneos em relao ao domnio da escrita, comtrajetrias de leitura (e de produo textual) diferentes e comexperincias em outras instituies (como a famlia, a igreja, aassociao do bairro), realizando atividades planejadas para per-mitir a participao diferenciada no trabalho coletivo.

    O mtodo de trabalho que incorpora essas caractersticas eessa dinmica o projeto. Os documentos curriculares oficiais,como os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e osParmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (PCNEMs),tm enfatizado a necessidade de organizar o trabalho com basenos projetos da escola.

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    Como veremos no curso Letramento nasSries Iniciais, do CEFIEL, os projetos no pre-cisam ser sempre ambiciosos e abrangentes eintegrar todos os colegas. Podem ser realizadosprojetos da turma, com base nas descobertas doprofessor sobre o que movimenta sua turma.

    Um projeto visando ao conhecimento da histria da criana(De onde eu sou?) pode envolver prticas e gneros como aleitura de mapas para localizar o lugar de origem da famlia, a leitu-ra de encartes tursticos, para conhecer as belezas da cidade deonde essa famlia veio ou de textos polticos e de denncia paraentender por que a famlia saiu daquele lugar. Pode tambmrequerer a produo de um roteiro de perguntas para entrevistarpessoas-chave da famlia na reconstruo da histria, bem comoo registro das respostas em forma de notas, e a elaborao de umresumo para organizar as respostas, entre outras prticas.

    Para reflexo

    Um projeto til e que pode prender o interesse dos alunos a criao deuma textoteca (ou, mais ambiciosamente, uma biblioteca) na escola. neces-srio elaborar com os alunos, primeiramente, uma classificao para os tex-tos, partindo do universo de gneros (gibi, conto, notcia, fotos etc.) e supor-tes de textos (jornal, livro, caderno) que os alunos conhecem, para elaborar umfichrio e criar um cdigo (etiquetas de cores segundo adequao srie, porexemplo) para organizar os volumes nas prateleiras. Em seguida, podem serfeitas diversas campanhas para a doao de textos e livros (em casa, na casados vizinhos, no bairro, e tambm junto a editoras e bibliotecas, se houver).Em seguida, organizam-se as doaes que os alunos receberam, com base nascategorias classificatrias j elencadas e outras que forem necessrias. Noteque, nesse projeto, surgiro oportunidades para trabalhar com um nmero vari-ado de outros gneros. Por exemplo: para duas das atividades aqui citadasseria necessrio trabalhar a carta de solicitao e o pedido oral. Que outrosgneros voc incluiria no seu planejamento? O que voc faria se nunca tevenecessidade de escrever um texto nesse gnero?

    Sobre Projetos deLeitura, veja tam-

    bm, nesta coleo, o volu-me Meus alunos no gos-tam de ler... O que eu fao?,de Marisa Lajolo.

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    O ensino da leitura

    O indivduo letrado, tal qual o vimos definindo, no precisa seconcentrar nem realizar grandes esforos para se comunicar eentender o mundo letrado ao seu redor.

    O letramento pode comear com as prticas que visam aosobjetivos mais elementares da atividade de leitura a de extrairinformaes de textos e chegar at a atividade de leitura doentorno. Se consideramos a prtica social como um dos elemen-tos estruturadores do trabalho escolar, o ensino da leitura e daproduo textual pode ser ampliado com vistas a incluir as leituraspassageiras da paisagem urbana, como letreiros nas estradas, avi-sos nas ruas e em guichs, grafites, pichaes...

    Esse trabalho deve incluir tambm inmeros passeios por diver-sos mundos de letramento, para a criana experimentar as dife-rentes formas de agir, vivenciando as prticas sociais de letramen-to, que incluem desde o manuseio e o escaneamento de revistaou mapa procura de informaes at a leitura atenta, com ano-taes, para apresentar um informe, ou, s vezes, o saborearvagaroso de um verso.

    Acima de tudo, no contexto escolar, o letramento implica o ensi-no de estratgias e capacidades adequadas aos diversos textosque circulam em outras instituies onde se concretizam as prti-

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  • cas sociais. O sujeito letrado passa a ter no um, mas pelo menosdois sistemas para se comunicar: o falado e o escrito. Entretanto,usar o escrito somente se for to fluente nele como na fala e,para tal, preciso trabalhar abordagens, estratgias e recursos dedesvendamento do texto, ensinar o processo scio-cognitivo queest por trs da compreenso da palavra escrita. preciso fazerisso entendendo bem como funcionam os textos.

    Nos exerccios do site alfaletras e do curso Letramento nasSries Iniciais, do CEFIEL, abordaremos em maior profundidadeas questes esboadas neste livro, relativas linguagem e aoensino da lngua escrita, a partir de questionamentos e dvidasrecorrentes dos professores, tais como:

    P O que fazer, visto que meu aluno no saber ler?

    P O que fazer se meu aluno escreve como fala?

    P Como decidir entre leitura em voz alta e leitura silenciosa?

    P Qual o lugar da gramtica?

    Introduziremos tambm elementos-chaves para a compreensoe reflexo so