angela kleiman - oficina de leitura teoria e pratica

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CJP) (Câmara Brasileira do I ivrn. SP, llrasil)

Kleiman. Angela Glicina de Leitura : Teoiui e Prática. Angela Kleiman 91 Feição, Campinas, SP: Pontes. 2002

Bibliografia ISUN 85 7113-077-9

1. Leitura 1. Titulo

93-0472 CDD-302 2244 índice para catálogo sistemático:

I Leitura ; Comunicação 302.2244

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Angela Kleiman

icina leiturh teoria

9 a E D I Ç Ã O

Pontes 2002

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Copyright © 1992 Angela Kleiman

Coordenação editorial: Ernesto Guimarães Capa: Cláudio Roberto Martini Preparação de Originais: Vânia Aparecida da Silva Revisão Maria F.lisa Mcirclles

PONTOS EDITORES Rua Maria Monteiro, 1635 13025-152 Campinas SP Brasil Fone (019) 3252.6011 Fax (019) 3253.0769 Li-inail: [email protected]

www.pontesedilores.com.br

2002 Impresso no Brasil

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ÍNDICF.

Apresentação 7

Capítulo 1 — Leitura e Aprendizagem 1.1 Um Binômio Fantástico? 9 1.2 Plano do Livro 12 Resumo 14 Notas Bibliográficas 14

Capítulo 2 — A Concepção Escolar da Leitura 2.1 Por Que Meu Aluno Não Lc? 15 2.2 Exame De Uma Prática 17 2.3 Uma Concepção Alternativa: Um Exemplo 27 Resumo 29 Notas Bibliográficas 30

Capítulo 3 — Como Lemos: Uma Concepção Não Escolar Do Processo 3.1 O Processamento Cognitivo 31 3.2 Dificuldades no Processamento: Diferenças Entre a Forma Escrita e a Falada 37 3.3 Tornando o Processo Mais Complexo: A Leitura do Livro Didático 39 Resumo 46 Notas Bibliográficas 46

Capítulo 4 — O Ensino da 1 .eitura: A Relação Entre Modelo e Aprendizagem

4.1 Estratégias de Leitura 49 4.2 Modelando Estratégias Metacognitivas 51 Resumo 61 Notas Bibliográficas 61 Apêndice 62

Capítulo 5 A Interface de Estratégias e Habilidades 5.1 A Aprendizagem Mediante o Ensino de I labilidades: Uma Proposta 65

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5.2 O Vocabulário NoTcxto:Duas Abordagens de Ensino 67 5.3 Análise do Conlexio 75 Resumo HO Notas Bibliográficas 80

Capítulo 6 — A Construção do Sentido do Texto 6.1 Habilidades Linguísticas e Compreensão Global 83 6.2 Construção de Estrutura 84 6.3 Interação: Atribuição de Intencionalidade 92 Resumo 1 Notas Bibliográficas 100 Apêndice 102

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APRESENTAÇÃO

No decorrer dos últimos anos, tive a oportunidade de oferecer diversos cursos de leitura em língua materna para professores que. embora preocupa-dos porque seus alunos não gostam de ler, nào sabem como promover condi-ções em sala de aula para o desenvolvimento do leitor. Isso porque nunca ti-veram uma aula teórica sobre a natureza da leitura, o que ela é, que tipo de en-gajamento intelectual é necessário, em quais pressupostos de cunho social ela se assenta. As concepções do professor sobre essa atividade são apenas empíricas, e suas práticas de ensino estão baseadas em dicas e programas de outros professores, utilizados porque são os únicos enfoques disponíveis, não porque cies representem uma história de sucesso.

O ensino de leitura c fundamental para dar solução a problemas rela-cionados ao pouco aproveitamento escolar: ao fracasso na formação de leito-res podemos atribuir o fracasso geral do aluno no primeiro e segundo graus.

Alarmam-se os professores de Ciências. História e Geografia pelo falo de seus alunos não lerem, e, no entanto, nada fazem para remediar essa situa ção. A palavra escrita é patrimônio da cultura letrada, e todo professor é, em princípio, representante dessa cultura. Dai que permanecer á espera do cole-ga de Português resolver o problema, além de agravar a situação, consiste nu-ma declaração de sua incompetência quanto à função de garantir a participa-ção plena de seus alunos na sociedade letrada.

Assim, este livro não está dirigido apenas a professores de Português, embora alguns dos capítulos apresentem análises textuais que se sustentam em análises lingüísticas. Nessas análises, enfatiza-se a função referencial da linguagem, isto é, a carga informacional do texto. A função estética, que tem a ver com a forma como o texto está construído, é sobretudo destacada na sua relação com a veiculação dos temas e com a marcação de pontos de vista e in-tencionalidade.

No resto do livro, são focalizadas as estratégias do leitor que poderão ser as mesmas na leitura de textos diferentes, pois o leitor as muda segundo seus objetivos e necessidades, não segundo a matéria que ele estiver lendo. Cremos que essas estratégias devem ser conhecidas por todo profissional do ensino: assim, quando o professor de Geografia solicitar do aluno a leitura de

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um texto de apoio, ele poderá reforçar o trabalho do professor de Português. Para isso, aquele também precisa saber sobre a leitura.

Dessas oficinas de leitura, nos últimos dois anos, surgiu a ideia de jun-tar as diversas atividades ali desenvolvidas num volume só, que permitisse o acesso dos diversos participantes aos diversos aspectos tratados nesses cur-sos e aos materiais neles usados, Este livro é o resultado dessa iniciativa.

Nessas oficinas, houve, muitas vezes, interação: conseguimos transpor as barreiras da formação diferente, das perspectivas diferenciadas quanto à natureza do objeto, atingindo, então, a aprendizagem c o ensino mútuos. Por isso, são muitas as vozes de professores que estão inscritas nas páginas deste volume. A todos eles, agradeço.

Ouvi muitas c excelentes propostas de atividades, relatadas por profes-sores participantes dessas oficinas, outras foram diretamente presenciadas por mim. Algumas dessas experiências serão recontadas neste livro e por elas agradeço à professora F.liana Gagliardi e seus colaboradores da Escola Cara-vela de São Paulo, às professoras Sheila V. de Camargo Grilho e Maria An-gélica Laurctti, do grupo de estudos da Prefeitura de Campinas e às professo-ras Fátima Regina C. L. Beraldo e Traudi H. Bonato, de meu grupo de profes-sores pesquisadores de Paulínia.

Outras vezes, a discussão que surgia na oficina sugeria a exploração de novos aspectos; por essas enriquecedoras discussões, agradeço aos professo-res do curso organizado pelas Escolas de Grupo de São Paulo, aos participan tes do curso organizado pelo 1GCongresso Brasileiro para Ação Pedagógica, às professoras e coordenadoras da Escola e do Centro de Pesquisa e Forma-ção de Educadores Balão Vermelho de Belo Horizonte, aos professores do grupo de estudos da Prefeitura de Campinas e seu coordenador. Percival Le-me Britto; aos professores do curso organizado pelo 79 Congresso de 1 .eitura do Brasil, COLE. aos meus alunos de pós-graduação.

O conteúdo deste livro, é claro, reflete não apenas aquelas experiências como também a influência de uma longa c continuada convivência académi-ca com duas colegas, alunas e amigas que muito contribuíram com suas innii-ções, experiências e conhecimento. A Sylvia H. Terzi e Ivani Ratto meus agradecimentos pela critica generosa c construtiva.

Outros nomes que gostaria de registrar aqui. pelos valiosos comentá-rios e sugestões, são os de Marilda Cavalcanti e Inês Signorini. A esta última também por seu papel, junto com Ivani Ratto c Maria Célia C. Lopes, de lei-tores críticos das primeiras versões deste volume. As possíveis falhas que permanecem são da minha inteira responsabilidade.

Campinas. 30 de julho de 1992. Angela B. Kleiman

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CAPÍTULO 1 LEITURA E APRENDIZAGEM

Educador—educando e educando— educador, no processo educativo l ibertador, são ambos

sujeitos cognoscen/es diante de objetos cognoscíveis, que os mediatizam.

Paulo Freire

1.1 UM BINÓMIO FANTÁSTICO?

Gianni Rodani nos diz, em seu livro Gramática da fantasia, que no bi nômio fantástico as palavras não estão presas ao seu significado cotidiano, mas libertas da cadeia verbal da qual fazem pane cotidianamente. Este volu-me tem por objetivo desambieniar sistematicamente as palavras leitura e aprendizagem, que passaram a representar o que de pior tern o ensino de lín gua materna na escola, violentando tanto o sentido de ensino e aprendizagem como o de leitura. Vamos pensar numa nova articulação das duas (a leitura na aprendizagem, a aprendizagem da leitura, a aprendizagem sobre a leitura) e reconstruir seus sentidos no processo.

Este livro reúne sugestões de atividades para o ensino e aprendizagem de leitura no primeiro grau. As atividades a serem apresentados já foram ob-jeto de discusão com professores em diversas oficinas de leitura oferecidas durante os anos 1990, 1991 e 1992. No livro se inscrevem, portanto, as diver-sas vo/es daqueles participantes, que questionaram c debateram as sugestões aqui contidas, ajudando a torná-las mais claras.

Este texto discute atividades que pressupõem uma criança já alfabeti-zada. Para orientar o processo de desenvolvimento de estratégias de leitura eficientes dessa criança, o professor precisa definir tarefas cada vez mais complexas, porém passíveis de resolução desde que ela tenha a orientação de uin adulto ou de colega mais proficiente. Aos poucos, o professor vai retiran-do os suportes, e a criança redefine as tarefas para si própria, constituindo-se ai a aprendizagem de estratégias de leitura.

A compreensão, nessas etapas iniciais, não se dá necessariamente du-rante o ato de ler da criança, mas durante a realização da tarefa, na interação corn o professor, ao propor este atividades que criam condições para o leitor em formação retomar o texto e, na retomada, compreendê-lo.

Mediante esse processso de postulação de tarefas progressivamente mais complexas e independentes que cumulativamente contribuam para um objetivo pedagógico relevante para professor e aluno, a criança estará se formando como leitor, isto é. estará construindo seu próprio saber sobre texto e leitura.

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Na descrição acima está, suscintamente. a orientação pedagógica das oficinas e deste volume: acreditamos, como Vygotsky c pedagogos neovy-gotskianos, que a aprendizagem é construída na interação de sujeitos coope-rativos que têm objetivos comuns. Como, no caso. trata-se de aprender a ler 110 sentido cabal da palavra (em que ler não é o equivalente a decifrar ou de-codificar), a aprendizagem que se dará nessa interação consiste na leitura com compreensão. Isto implica que é na interação, isto é, na prática comuni-cativa em pequenos grupos, com o professor ou com seus pares, que é criado o contexto para que aquela criança que não entendeu o texto c entenda.

Uma vez que não encontraremos homogeneidade nessa interação devi-do aos diversos estágios de desenvolvimento dos alunos na sala de aula, inte-ressa primordialmente ao professor determinar qual é o potencial de aprendi-zagem de uma criança, dado o desenvolvimento que ela já tem. A fim de que a criança possa aprender, adulto e criança, conjuntamente, deverão construir um contexto de aprendizagem mediante a interação, cabendo ao adulto defi-nir tarefas exeqüíveis, plausíveis, e significativas, segundo objetivos pré-de-finidos cm comum acordo. Ou seja. para construir um contexto de aprendiza-gem mediante a interação, o aluno deve conhecer a natureza da tarefa e deve estar plenamente convencido de sua importância c relevância.

Quanto à concepção de leitura pressuposta neste livro, consideramos esta uma prática social que remete a outros textos e outras leituras. Cm outras palavras, ao lermos um texto, qualquer texto, colocamos em ação todo o nos-so sistema de valores, crenças e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nossa sociabilização primária, isto é. o grupo social cm que fomos criados.

Como se reflete, na leitura, esse sistema de valores? Até que ponto ele interfere na aprendizagem? Numa tentativa de responder essa pergunta, to memos. por exemplo, um caso concreto de leitura de uma bula, observado numa aula de alfabetização de adultos. Como o exemplo a seguir mostrará, a bula, que é um texto que poderíamos considerar "apenas" informativo, e cu-ja leitura instrumental ou funcional figura nos programas de alfabetização de adultos por ser leitura indispensável a todo grupo social, está longe de repre-sentar "apenas" uma fonte de informações necessárias para o leitor. Isto por-que a bula é um texto de divulgação de informação científica sobre o trata-mento de uma doença que pressupõe, primeiro, que o leitor está inserido na cultura letrada que acredita na ciência como fonte de conhecimento e no tex-to escrito como forma de alcançar esse conhecimento, e, segundo, que ele acredita que a doença é objeto de análise e o tratamento dela. conseqüência da aplicação dos resultados e descobertas dessa análise.

Na aula observada do curso supletivo de alfabetização para adultos, a professora selecionara para leitura um texto que descrevia a utilidade de uma bula, bem como uma bula propriamente dita para exemplificar. Para a professora, a descrição das precauções representava um conjunto de infor-mações da natureza vital, pois corria-se o risco, segundo cia, de "o doente piorar ou até morrer se o medicamento estivesse vencido, se a dosagem cer-ta não fosse respeitada, se atenção não fosse prestada aos possíveis efeitos colaterais". A professora estava fazendo a leitura prevista pelo autor do tex-

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lo sobre a bula. que supõe, para tomar o lexto inteligível, uma série de acor-dos s u b e n t e n d i d o s quanto ao tipo de audiência a quem está dirigindo. O es-critor da bula pressupõe um leitor que vai ao médico, compra remédios na farmácia e aceita o saber médico como um saber autorizado para a cura de doenças. Durante a aula transpareceu, entretanto, que os alunos tinham mais fé nos benzedores e nos remédios tradicionais do que na farmacêutica, que tinham profunda desconfiança na classe medica e que consideravam a doen-ça como uma fatalidade e. portanto, não sujeita à análise e ao conhecimento.

A série de acordos subentendidos que deve ser negociada entre o autor e o leitor previsto na leitura de urna bula sequer foram cogitados, uma vez que a atividade esbarrou no problema de valores sociais anterior. Por exemplo, existem acordos implícitos quanto às condições de leitura, pois a leitura da bula ocorre após a compra do remédio, que, no contexto brasileiro, prescinde de receita médica, apesar de a própria bula recomendar a "venda sob prescri-ção médica". A recomendação é inoportuna, tardia, equivalente a ter que pu-lar na água do lago para poder ler o letreiro que adverte ser perigoso pular.

Em segundo lugar, existem subentendidos quanto à estrutura c forma do texto, como aquele que para poder ler uma bula é preciso ser um bom leitor e até possuir conhecimentos rudimentares de medicina ou ciência, pois as pre-cauções são escritas com o uso de um léxico muito formal e construções intrin-cadas, diferentes das precauções do cotidiano, como em: Atenção: este produ-to é uni novo medicamento e embora as pesquisas realizadas tenham indica-do eficácia e segurança quando corretamente indicado, podem ocorrer rea-ções adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas. Fm caso de suspeita de reação adversa o médico responsável deve ser notificado.

No entanto, esses subentendidos decorrem de urna premissa básica an-terior de que o uso de remédios farmacêuticos é um aspecto necessário, con-veniente e aconselhável para o tratamento da doença. Tal como indicamos anteriormente, o acordo em relação a essa premissa fora pressuposto pela professora, que pertencia a uma classe social que vai ao médico, compra re-médios na farmácia e segue as instruções para tomá-los. Entretanto, os alu-nos, que não foram sociabilizados nesse tipo de classe social, não partilha-vam dessa crença, e a aula foi marcada por desentendimento e resistência. Quase no fim da aula. um jovem adolescente, catador de laranjas, tornou-se porta-voz de vários outros alunos, e explicitou sua oposição à premissa, de-fendendo remédios naturais e chamando os médicos de exploradores dos po-bres: vários alunos se uniram a ele. contando casos de sucesso de remédios al-ternativos c de cura mediante benzedores. indicando com isso sua descrença absoluta na farmacêutica e na medicina.

Sem a explicitação c a discussão dessa premissa anterior, a série de ajustes que o leitor tem que fazer para "entender" a bula é impossível; o diá-logo em busca de soluções comuns a problemas relevantes para o aluno fica prejudicado se o aluno não considerar a leitura desse tipo de texto relevante. Qualquer que fosse o objetivo da aula em relação à leitura, dificilmente teria sido atingido, uma vez que os aspectos sociais implícitos na leitura do texto não foram discutidos abertamente com o aluno.

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Os aspectos sociais e culturais da leitura serão explicitados no decorrer do livro, quando pertinentes à análise em curso. O objeto propriamente dito deste volume é a leitura enquanto atividade intelectual.

Focalizamos neste trabalho a leitura como processo psicológico em que o leitor utiliza diversas estratégias baseadas no seu conhecimento lin-güístico, sociocultural, enciclopédico. Tal utilização requer a mobilização e a interação de diversos níveis de conhecimento, o que exige operações cog nitivas de ordem superior, inacessíveis à observação e demonstração, como a inferência, a evocação, a analogia, a síntese e a análise que. conjuntamente, abrangem o que antigamente era conhecido como faculdades, necessárias para levar a termo a leitura: a faculdade da linguagem, da compreensão, da memória. Nessa dimensão, justifica-se a observação de psicólogos educacio-nais como Carroll. que dizem que a leitura constitui o processo cognitivo por excelência.

O tratamento dado ao assunto neste volume pressupõe um professor que lê, mas não um especialista cm leitura.

Acreditando que o objetivo do aluno e do professor seja a formação de um leitor, os exemplos, análises e ativ idades aqui propostas (que NÃO cons-tituem um livro didático) visam ao desenvolvimento de estratégias de leitura eficientes, que permitam ao aprendiz a compreensão da palavra escrita, a fim de funcionar plenamente na sociedade que impõe a cada dia mais exigências de letramento. isto é. de contato c familiaridade com a escrita para a sobrevi-vência.

1.2 PLANO DO LIVRO

Este livro consta de seis capítulos, que incluem, quase na sua totalida-de, as atividades desenvolvidas nas oficinas de leitura já mencionadas. Os termos técnicos que são introduzidos no capítulo, cm MAIÚSCULAS, são imediatamente seguidos de uma definição ou explicados no texto. Encontra-se, no final de cada capítulo, um pequeno resumo do mesmo, que também po-de ser lido antes da leitura do capítulo como orientação prévia. Em seguida, encontram-se as notas bibliográficas do capítulo, que além de fornecerem as fontes orientam o leitor quanto à procedência dos conceitos c modelos subja-centes à discussão.

No Capítulo 2. A CONCEPÇÃO ESCOLAR DE LEITURA, começa-remos a discussão sobre o ensino da leitura através de um olhar crítico sobre as atividades mais comumente associadas à leitura nas primeiras séries, vi-sando a uma análise da adequação e eficiência das ditas atividades para a for-mação de novos leitores. A fonte de sustentação dessa crítica ficará clara no Capítulo 3, COMO LEMOS: UMA CONCEPÇÃO NÃO ESCOLAR DO PROCESSO, cm que apresentaremos uma breve fundamentação teórica so-bre as características da leitura enquanto atividade cognitiva. Essas caracte risticas são necessárias para compreender a relação entre teoria e prática a fim de, em primeiro lugar, entender e auto-avaliar a própria prática, e, em se-

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gundo lugar, para partir à procura de novas e bem fundamentadas soluções quando estas resultam ser falhas. No entanto, elas não fazem parte da baga cem profissional do professor; daí a incoerência entre as práticas que critica-mos e a teoria cognitiva sobre leitura.

Após uma introdução breve ao tema da nanireza estratégica da leitura no Capítulo 4 , 0 F.NSINO DA I .E1TURA: A RfcLAÇÀO ENTRE MODELO E APRENDIZAGEM, discutiremos, à lu/ de seus pressupostos teóricos, algu-mas práticas alternativas às práticas pedagógicas mais comuns cm sala de aula, já criticadas no Capítulo 2. Essas práticas alternativas visam ao ensino de estra-tégias e de habilidades lingüísticas. Cremos que essa abordagem, que é com-pletada mediante a discussão dchabilidade no Capítulo 5. A INTERFACE DE ESTRATÉGIAS F HABILIDADES, nos permitirá manter, sem deformações, a essência da leitura enquanto atividade individual, sibjetiva, que só se consti-tui enquanto leitura na ausência da mediação de "uma" leitura privilegiada, do professor ou de outro adulto.

Finalmente, no Capítulo 6, A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO NO TEXTO, voltamos nossa atenção para o ensino dos aspectos globais do tex-to, que dizem respeito à estrutura do mesmo enquanto unidade de sentido, bem como à intencionalidade do autor. Em nossa experiência, o professor faz um trabalho adequado em relação aos conteúdos do texto, justamente porque a sua formação privilegia a informação no texto, aquilo que é dito, porém poucas vezes abrindo espaços para trabalhar o não-dito, tudo o que implica a construção de uma unidade maior fundamentada no dito.

A maior parte dos textos que servirão de exemplos foram extraídos de jornais e de revistas, isto é, textos não literários, expositivos e com ênfase na informaçáo. Isto não quer dizer que apenas a função referencial da 1 inguagem será explorada; como veremos, prestar atenção às opções estilísticas permite conscientizar o aluno sobre usos e abusos da linguagem enquanto fazer so-cial. Tal conscientização, pensamos, faz parte integral e constitutiva do ensi-no de língua materna.

Também a nossa opção não significa, de maneira alguma, uma atitude reducionista que privilegia o instrumental na leitura. Apenas no sentido de instrumental para a leitura de textos diversificados, incluindo o texto acadê-mico. nossa proposta, de fato. tem características instrumentais, porque me-diante esse trabalho estaremos preparando a criança para a leitura dc textos de História. Ciências, Geografia, assegurando-lhe assim uma melhor chance de sucesso na escola e. por extensão, menor possibilidade de abandono pre-maturo da mesma.

Por outro lado, e mais importante, o fato de usarmos apenas textos in-formativos nesta proposta não significa que estejamos advogando a redu-ção da leitura na aula de Português para apenas esse tipo de texto. Conside-ramos que o texto literário tern um papel tão ou mais importante do que ou-tros tipos na aula de Português. Apenas consideramos que o texto literário, por suas próprias características, é fugidio e não se presta para o tipo de tra-

que propomos, que se baseia na recuperação das informações veicu-ladas no texto.

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Não conseguimos imaginar, por exemplo, um trabalho de depreenssão do tema ou de recuperação de informações com urn conto que utilize a surpre-sa. o inesperado para nos encantar. Nem conseguimos imaginar como algum elemento de uma estória bem contada pxxieria nos causar dificuldades para processá-la. quando, de fato, o processamento ficará totalmente submerso por esse mesmo encantamento frente ao interesse intrínseco da estória.

Por essas razões, porque é mais prosaico e ao mesmo tempo tão rele-vante quanto outros tipos, privilegiamos na nossa proposta para o ensino de leitura, o texto não literário. A releitura desse texto não nos fará ver. nas pa-lavras de Proust. "refletidos nas suas páginas as habitações e os lugares que não existem mais", mas dará uma chave de entrada para o aluno que, por des-conhecimento. não por opção, nunca os visitou.

RESUMO

Neste primeiro capítulo fornecemos os pressupostos gerais que orien-tam a discussão sobre leitura neste volume bem como a proposta de ativida-des. Apresentamos também a organização geral do livro, com um pequeno sumário de cada capítulo.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 . 0 leitor que quiser aprofundar questões a respeito da leitura enquanto prática social, poderá consultar Orlandi (1988). Gee ( 1990).

2. A aprendizagem mediante a interação é uma contribuição de Vygotxky (1978), am pliada pelos psicólogos e educadores conhecidos como neovygotskvianos, rais como Wertsch (1988). Cazden (1988).

CAZDüN, C.B. Classrom discourse. The langua^eof teaching and learning. Portsmnurh. NH: Heinemann. 1988.

GF.E, J. Social Linguistica and Literancs. Ideology in Discourses. London: The Falmei Press. 1990.

ORLANDI. E. Discursoe Irilura. SP; Editora Cortez. 1988. RODARI. G. Gramática da fantasia. S.P.: Summus, I9H2. Trad. Antonio Negrini. PROUST, M. Sobre a leitura. Campinas: Pontes Editores, 1989. Trad. Carlos Vngt. VYGOTSKY. L.S. Mind in Socieiy. The Dcvclopmeni of Higher Psychologtcal Processes.

Cambridge. Mass.: I larvard IJniversity Press. 1978. WRRTSCH. J.W. Vygulskyy la formación social de la mente. Barcelona: Paulos. 1988.

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CAPÍTULO 2 A CONCEPÇÃO ESCOLAR DA LEITURA

O poder da instrução é raras vezes eficaz exceto para aqueles felizardos para os quais ela é quase

supérflua. Gibhons

2.1 POR QUE MEU ALUNO NÃO LÊ?

"Os meus alunos não gostam de ler" e. sem dúvida, a queixa mais eo-mumente ouvida entre professores. E um dos primeiros comentários a serem feitos quando, ao terminar uma palestra sobre leitura, abre-se a sessão para perguntas ou esclarecimentos.

Por que essa realidade? Essa é a questão a ser explorada neste capítulo, focalizando os aspectos relativos ao funcionamento de sala de aula que po-dem contribuir para o problema. Aspectos macroestruturais que também in-fluem no fracasso da escola quanto à formação de leitores não serão aqui dis-cutidos. Referimo-nos, por exemplo, ao lugar cada vez menor que a leitura tem no cotidiano do brasileiro, â probreza no seu ambiente de letramcnlo (o material escrito com o qual ele entra em contato, tanto dentro como fora da escola), ou ainda, à própria formação precária de um grande número de pro-fissionais da escrita que não são leitores, tendo, no entanto, que ensinar a ler e a gostar de ler.

Para formar leitores, devemos ter paixão pela leitura. Concordamos com o autor francês Bellenger (um leitor apaixonado de um país de leitores apaixonados), que a leitura se baseia no desejo e no prazer:

Em que se baseia a leitura? No desejo. Esta resposta é uma opção. E tanto o resultado de uma observação como de uma intuição vi-vida.Ler é identificar-se com o apaixonado ou com o místico. É ser um pouco clandestino, é abolir o mundo exterior, deportar-se pa-ra uma ficção, abrir o parêntese do imaginário. Ler é muitas vezes trancar-se (no sentido próprio éJigurado). É manter uma ligação através do tato, do olhar, até mesmo do ouvido (as palavras res-soam). As pessoas lêem com seus corpos. Lcré também sair trans-formado de uma experiência de vida. é esperai•<rtgtUffay*iisa. E um sinal de vida. um apelo, uma ocasião de ytfyv sâm àCe. que se vai amar. Pouco a pouco o desejo d/^parece sob oprôí$Ò (Lionel Bellenger. Os Métodos de leiiunfâ\l)h£ 'z 0 -

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A atividade árida e tortuosa de decifração de palavras que é chamada de leitura em sala de aula. não tem nada a ver com a atividade prazerosa des-crita por Bellenger. E, de fato, não é leitura, por mais que esteja legitimada pela tradição escolar.

Ninguém gosta de fazer aquilo que é difícil demais, nem aquilo do qual não consegue extrair o sentido. Essa é uma boa caracterização da tarefa de ler em sala de aula: para uma grande maioria dos alunos ela é difícil demais, jus-tamente porque ela não faz sentido.

Devemos lembrar que, para a maioria, a leitura não é aquela atividade no aconchego do lar, no canto preferido, que nos permite nos isolarmos, so-nhar, esquecer, entrar em outros mundos, c que tem suas primeiras associa-ções nas estórias que a nossa mãe nos lia antes de dormir. Pelo contrário, para a maioria, as primeiras lembranças dessa atividade são a cópia maçante, até a mão doer, de palav ras da família do da. "Dói o dedo do Didu"; a procura can sativa, ate os olhos arderem, das palavras com o dígrafo que deverá ser subli-nhado naquele dia; a correria desesperada até o dono do bar que compra o jor-nal aos domingos, para a família achar as palavras com a letra J . letras, síla-bas, dígrafos, encontros consonantais, encontros vocálicos, "dificuldades" imaginadas e reais substituem o aconchego e o amor para essas crianças, en-travando assim o caminho até o prazer.

Após esse primeiro c desapontador contato com a palavra escrita, a de-silusão continua, e o fracasso sc instala como uma constante na relação com o livro. Muitas das práticas do professor nesse período após a alfabetização sedimentam as imagens negativas sobre o livroc a leitura desse aluno, que lo-go passa a ser mais um não-leitor em formação. São algumas dessas práticas as que serão objeto de discussão neste capítulo.

As práticas desmotivadoras, perversas até. pelas conseqüências nefas-tas que trazem, provem, basicamente, de concepções erradas sobre a nature-za do texto e da leitura, e, portanto, da linguagem. Elas são práticas susten-tadas por um entendimento limitado e incoerente do que seja ensinar portu-guês. entendimento este tradicionalmente legitimado tanto dentro como fo-ra da escola. E dessa legitimidade que se deriva um dos aspectos mais nefas-tos das práticas limitadoras que discutiremos: elas são perpetuadas não só dentro da escola, o que seria de se esperar, mas também funcionam como o mecanismo mais poderoso para a exclusão fora da escola. Os diversos con-cursos para cargos públicos e para vagas em colégios c universidades, sejam estes a nível federal, estadual ou municipal, ou do setor privado, exigem do candidato o conhecimento fragmentado e mecânico sobre a gramática da língua decorrente de uma abordagem de ensino que é ativamente contrária a uma abordagem global, significativa, baseada no uso da língua.

E por isso que uma das primeiras barreiras que o professor tem que nego-ciar para poder ensinar a ler é a resistência do próprio aluno, ou dos pais do alu-no quando este é uma criança mais nova. Já ouvimos um aluno de terceiro cole-gial dizer "Eu não quero trabalhar textos, eu quero aprender português '. ex-pressando o mesmo pré-conceito de um adulto analfabeto em curso supletivo de alfabetização que nos disse: "Eu não quero trabalhar textos, eu quero aprender

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a ler" Essas convicções estão baseadas numa concepção de saber lingüístico desvinculada do uso da linguagem: no primeiro caso, o aluno está reinvindican-do a regra gramatical tradicional, que não faz sentido, que deve ser memorizada só para a prova, mas que será a que determinará sua inclusão ou exclusão no ban-co na r e p a r t i ç ã o pública, na faculdade: no scgundocaso, o aluno reivindica a de ei fração e cópia de letras c sílabas, como um fim crn si, sem perceber que essas atividades são apenas prelúdio para a atividade de leitura, porque nunca nin-guém desvendou para ele o verdadeiro significado da atividade.

É justamente essa resistência a que é usada pelo burocratatque pode ser o diretor da escola, outros professores), para efetivamente impedir uma prá-tica alternativa. E encontramos, na maioria dos casos e muito rapidamente o professor novo (recém-chegado ou rcccm-formado e com uma proposta re-novadora e inovadora) que desiste, em pane pelo fato de ele se encontrar den tro da estrutura de poder na escola, no degrau mais baixo, e também, pelo fa-to de sua proposta estar baseada apenas numa convicção de necessidade de mudança, mas sem a formação necessária para essa mudança. Por isso. acre-ditamos na formação teórica do professor na área de leitura.

2.2 FXAMF. DE UMA PRÁTICA

Antes de passarmos aos conteúdos de formação a serem apresentados nos próximos capítulos, vejamos, a seguir, algumas das práticas que a escola sustenta, legítima e perj>etua, e os conceitos de texto e de leitura cm que esta-riam fundamentadas.

Concepções Sobre o Texto

1) ü texto como conjunto de elementos gramaticais Uma prática bastante comum no livro didático considera os aspectos

estruturais do texto como entidades discretas que têm um significado e fun-ção independentes do contexto em que se inserem. Uma versão dessa prática, revelada na leitura gramatical, é aquela em que o professor utiliza o texto pa-ra desenvolver uma série de atividades gramaticais, analisando, para isso. a língua enquanto conjunto de classes e 1 unções gramaticais, frases e orações. Os livros didáticos estão cheios dc exemplos em que o texto é apenas pretex-to para o ensino de regras sintáticas, isto é, para procurar adjetivos, sujeitos ou frases exclamativas. E comum achar exemplos como o que se segue, reti-rado de um manual de 6a série em que. quando no texto de leitura consta

(1) "A aflição era insuportável".'

• • Neste e. outros exemplos retirados do livro didático não seiâo fornecidas as fonte*, uma vez que nosso objetivo não c denunciar esie ou aquele texto. Aliás, todos os textos que conhecemos apresentam os mesmos problemas.

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o exercício gramatical do mesmo manual solicita dar o plural de

"A aflição era insuportável".

Para citar mais um exemplo, quando no texto se encontra a frase

(2) "Nãoforço a opinião de ninguém".

o autor do exercício solicita que o aluno "observe o modelo eflexione, em voz alia. o número de substantivos e adjetivos", fornecendo para o exercício a frase

"Não forço a opinião de ninguém".

Note-se que já nem podemos descrever esses trechos como falas, opiniões, descrições, mas apenas como estruturas gramaticais. Outras ma-nifestações dessa prática, comuns nas atividades de sala de aula, são co-piar palavras do texto, ditar palavras e frases do texto, sublinhar os diton-gos de palavras do texto e ate a prática, típica de cartilha c. embora menos comum, ainda utilizada 110 livro didático, de escolher o texto pela sua for-ma gramatical. O exemplo a seguir, retirado de um manual de 2a. série, ob viamente foi selecionado pelo autor do manual por causa dos abundantes dígrafos:

(3) "O coelho Fofinho" O coelho Fofinho mora numa ilha. t uma ilha cheia de folhagem vermelha . O coelho Fofinho brinca com os galhos das

árvores. Fie brinca também com bolhas de sabão. O coelho Fofinho olha a dança das bolhas. Cada bolha é um sonho colorido. (2~. série)

2) O texto como repositório de mensagens e informações Relacionada a essa mesma visão de texto como conjunto de elementos

diversificados (seja estrutura gramatical ou palavras) é a crença de que o tex-to c apenas um conjunto de palavras cujos significados devem ser extraídos uin por um. para assim, cumulativamente, chegar à mensagem do texto. Ba-seia-se essa hipótese, por um lado, na crença já mencionada de que o texto é um depósito de informações e, por outro, na crença de que o papel do leitor consiste em apenas extrair essas informações, através do domínio das pala-vras que, nessa visão, são o veículo das informações. Nessa perspectiva, é vá-lido orientar o aluno para uma leitura de palavras: "Vamos ler palavra por palavra para depois interpretar" como é também comum solicitar um pro-duto mensurável desse processo de domesticação das palavras: "Qual é a mensagem do texto?".

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Uma conseqüência dessa atitude é a formação de um leitor passivo, que a n d o n ã 0 consegue construir o sentido do texto acomoda-se facilmente a

essa situação. Hm diversas ocasiões de testagens temos observado adultos que se consideram bons leitores, que, não conseguindo tornar significativo algum trecho, ou porque ele é inconsistente ou porque lhes falta conhecimen-lo prévio, aceitam tranqüilamente a situação e constroem uma interpretação inconsistente, apenas apontando às vezes sua insatisfação com a "forma mal escrita". Entretanto, através de resultados de pesquisa, temos também conhe-cimento de leitores emergentes, pequenas crianças da periferia, que não acei-tam conviver com a incoerência e persistem na tentativa de compreender, se irritando até, quando não o conseguem, se recusando a continuar, a dar uma pseudo-interpretação para aquilo que não faz sentido, mostrando, enfim, um pouco dessa paixão que é qualidade do leitor.

nío livro didático encontramos várias outras manifestações da visão que acredita na extração da mensagem através do domínio das palavras. A própria divisão que se faz regularmente entre compreensão das palavras (ou do texto) e interpretação do texto é reveladora dessa postura. Também a prá-tica de examinar o significado absoluto das palavras é decorrente dessa mes-ma visão. Quando solicitamos o sinônimo ou o antônimo de uma palavra sem fazer referência ao contexto, estamos comunicando, sem necessidade de di-zê-lo. que a força das palavras reside no seu significado do dicionário, e não na sua função no texto para o processo de resignificação do mesmo. Estamos efetivamente relegando a um plano inferior a função poética da linguagem, isto é. a função que tem a ver com o rnodo que escolhemos para a expressão.

Vejamos um exemplo. Num texto de 6-. série encontramos, na seção "Palavras e expressões", exercícios baseados em trechos extraídos do texto para leitura, uin dos quais reproduzimos:

Í4) Começara a entender que era um pesadelo. Já lá vão al-guns anos. A rua ou estrada em que se achava aquela constru-ção era deserta. Eu. do alto, olhava para todos os lados sem des-cobrir sombra de homem. Nada que me salvasse: pau, nem cor-da. la aflito de um lado para outro lado, vagaroso, cauteloso, porque as telhas eram antigas, e também porque o menor des-cuido far-me-ia escorregar e ir ao chão. Continuara a olhar ao longe, verse aparecia um salvador: olhava também para baixo, mas a idéia de dar um pulo era impossível, a altura era grande, a morte certa. (6q, série)

Um dos exercícios solicita ao aluno que ''substitua a palavra sublinha-da por um sinônimo", sendo uma dessas palavras cauteloso, na frase "Ia cau-teloso de um lado para outro". Percebemos, em primeiro lugar, que a frase foi extraída truncadamente do texto original, implicando com isso que o sig-nificado independa do contexto e que a função de cada parte em relação às outras ou em relação ao conjunto também não seja relevante para o leitor che-gar a uma interpretação.

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Entretanto, essa atitude não corresponde à forma como a linguagem funciona. A palavra cauteloso traz uma série de associações sobre uma manei-ra de andar e de se movimentar por causa do texto em que está inserido: dife-rentes seriam as imagens que a palavra nos traria se a ação cautelosa fosse pre-dicada de um advogado, de um pugilista, de um gato, de um trabalhador em re-lação ao seu orçamento familiar. O que significa, então, dar o sinônimo da pa lavra? Apenas dar o significado achado no dicionário, ou aquela palavra que no contexto melhor recupera o sentido do original? E cabem aqui perguntas mais básicas ainda: que tipo de atividade é dar sinónimos de palavras achadas no texto? Por que ela consta das atividades de compreensão e interpretação?

Certamente não é uma atividade de leitura, novamente, no bom senti-do da palavra, a atividade em que resigni fica mos a palavra, apoiados na nos-sa experiência prévia, focalizando significados de palavras especificas ou pa-ra inferir seu significado, ou para apreciar um uso particular, diferente. Parle constitutiva do ensino de leitura consiste em conscientizar o aluno da inien cionalidade do autor, refletida na escolha das palavras. Substituir aquela pa-lavra escolhida pelo autor por um sinónimo que mais ou menos mantém o sentido original tencionado, vai contra essa conscientização.

Entretanto, na leitura que considera o texto como depósito ou repositó-rio de significados, a única leitura possível é essa atividade de extração de significados, para. a partir daí, extrair desta vez, da soma desses significados, a "mensagem". O resultado final da recorrência dessa leitura é. como aponta-mos anteriormente, a formação de um pseudo-leitor. passivo e disposto a aceitar a contradição e a incoerência.

Concepções de Leitura

3) A leitura como dccodificação Uma outra prática muito empobrecedora está baseada numa concepção

da atividade como equivalente à atividade de dccodificação. Essa concepção dá lugar a leituras dispensáveis, uma vez que em nada modificam a visão de mundo do aluno. A atividade compõe-se de uma série de automatismos de identificação e pareamento das palavras do texto com as palavras idênticas numa pergunta ou comentário. Isto é. para responder a uma pergunta sobre alguna informação do texto, o leitor só precisa o passar do olho pelo texto à procura de trechos que repitam o material já decodificado da pergunta.

Por isso afirmamos que se trata de uma tarefa de mapeamento entre a infor-mação gráfica da pergunta e sua forma repetida no texto. Essa atividade passa por leitura, quando a verificação da compreensão, também chamada, no livro didáti-co, de "interpretação", exige apenas que o aluno responda a perguntas sobre infor-mação que está expressa no texto. Noexemplo a seguir, extraído de um livro da 6'. série, o exercício de compreensão instrui o aluno a completar corretamente a frase

"Examinou vários locais e acabou entrando...?".

segundo o texto, onde se lc:

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(5) Admirou a luz do sol, o verdor das árvores, a correnteza dos ribeirões, a habitação dos homens. E acabou penetrando ao quintal duma casa da roça".

O aluno precisa, para responder a pergunta, apenas identificar entrar e penetrar como sinônimos sem precisar sequer ler o texto.

Um outro exemplo, retirado de um livro de 3- serie, mostra como c me-cânica essa prática, dispensando qualquer engajamento intelectual. Na seção chamada de Entendimento do texto, o aluno deve completar a seqüência

As cidades do litoral paranaense são e com ruas e o povoe.... e

após a leitura de um texto que começa da seguinte maneira:

(6) No litoral do Paraná, as cidades são acolhedoras e silenciosas, com suas ruas coloniais muito antigas e o povo é pacato e tran-qüilo. (3a série).

Uma outra prática que passa por leitura, que não é apenas decodifica-ção. mas também toma a atividade dispensável pois revela a mesma atitude de descaso em relação à voz do autor, dispensa a etapa da-compreensão des-sa voz, consiste cm solicitar uma opinião dos alunos sobre um assunto logo após a "leitura" do texto, sem sequer ter discutido o assunto tal como ele é tra-tado pelo autor. Nessa prática a atividade de '"interpretação" precede à leitu-ra. O professor queima a etapa da leitura: assim, ele não pergunta sobre a opi-nião do autor, mas imediatamente sobre a opinião do aluno: "o que você acha substitui perguntas como "o que o autor acha '. "você acha que o au-tor está certo?". "você discorda ou está de acordo com o autor?".

4) A leitura como avaliação Hsse e um outro tipo de prática que inibe, ao invés de promover, a for-

mação de leitores. Nas primeiras séries caracteriza-se essa prática por tal preocupação de aferimento da capacidade de leitura, que a aula se reduz qua-se que exclusivamente à leitura em voz alta. A prática é justificada porque permitiria ao professor "perceber se o aluno está entendendo ou não", apesar de sabermos que é mais fácil perder o fio da estória quando estamos prestan-do atenção à forma, à pronúncia, ã pontuação, aspectos que devem ser aten-didos quando estamos lendo em voz alta.

A carga cognitiva, já aumentada pela leitura em voz alta (pelo fato de Jer que atender tanto à pronúncia como ao sentido), é agravada quando o dia-leto da criança não é o dialeto padrão, pois nesse caso ela deverá ainda tradu-zir o dialeto padrão no qual o texto está escrito para seu dialeto. Se ainda a professora exigir que a pronúncia da criança também seja padrão, então essa earga se aproxima dos limites do intolerável do ponto de vista cognitivo. Po-

emos imaginar os efeitos dessa exigência não apenas na autoconfiança e ou-

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tros aspectos afetivos, mas também no desenvolvimento da compreensão: certamente essa exigência tomará íi forma de correções â pronúncia, e conse-qüentes interrupções e interferências nos processos através dos quais profes-sor e aluno deveriam estar tornando o texto inteligível e coerente.

Se o nosso objetivo for verificar se o aluno conhece as letras, se auto-matizou as correspondências entre som e letra, se conhece o valor dos símbo-los usados para pontuação, c se dermos tempo prévio à leitura em voz alta pa-ra lazer uma leitura silenciosa, então a leitura em voz alta pode ser a melhor forma de avaliar esse conhecimento. Entretanto, essa atividade não c sempre necessária, sendo ate contraproducente se o nosso objetivo for ampliar o vo-cabulário visual de reconhecimento instantâneo, ou desenvolver os hábitos típicos do leitor proficientes na atividade solitária, que. caracteristicamente, nem balbucia as palavras nem as declama.

Diferente é a leitura em voz alta que tem por objetivo a apreciação es-tética da linguagem. Uma professora que conhecemos desenvolveu uma au la com leitura em voz alta em jogral, com tal objetivo, utilizando o poema "Enchente" de Cecília Meireles:

(7) Chama o Alexandre! Chama! Olha a chuva que chega! É a enchente. Olha o chão que foge com a chuva... Olha a chuva que encharca a gente. Põe a chave na fechadura. Fecha a porta por causa da chuva, Olha a rua como se enche! Enquanto chove, bota a chaleira no fogo: olha a chama! olha a chispa! Olha a chuva nos feixes de lenha! Vamos tomar chá. pois a chu\ a é tanta que nem de galocha se pode andar na rua cheia! Chama o Alexandre! Chama!

(Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. R.J.: Civilização Brasilei-ra/MEC. 1977)

Se algum livro didático incluísse o poema, provavelmente o faria para reforçar o uso do dígrafo, ou para reforçar a distribuição da letra x e do dígra-foch . istoé. banalizaria o texto mediante um enfoque puramente ortográfico. Essa professora, entretanto, usou-o com alunos de 8a série, que. após perce-berem na interação, mediante as perguntas da professora, a bcle/a da alitera çáo dos sons que têm uma função onomatopcica, pois lembram os sons da chuva, bem como sua força evocativa da experiência pessoal com dias de

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chuva engajaram-se entusiasticamente na leitura do poema em jogral e con-seguiram. nas suas leituras, perceber e fazer perceber a beleza da linguagem.

Também a leitura que é cobrada mediante resumos, relatórios e preen-chimentos de fichas é uma redução da atividade a uma avaliação desmotiva-dora A insistência no controle diminui a semelhança entre a leitura espontâ-nea do cotidiano, e a leitura escolar, ajudando na construção de associações desta última com o dever e não com o prazer.

A leitura que é medida mediante número de páginas, como quando o pro-fessor solicita ler "dapágina 3 àpágina 7" é também uma forma de avaliação que justifica o passar dos olhos pelo número de páginas exigido, sem engaja-mento cognitivo ou afetivo. O aluno lê sem objetivos, lê apenas porque o pro-fessor mandou e será cobrado, desvirtuando efetivamente o caráter da leitura.

5) A integração numa concepção autoritária de leitura A união de todos os aspectos que fazem da atividade escolar uma paró-

dia da leitura encontra-se numa concepção autoritária da leitura, que parle do pressuposto de que há apenas uma maneira de abordar o texto, e uma interpre-tação a ser alcançada. Essa concepção de leitura permite todas as deturpações já apontadas, que agora resumimos: a análise de elementos discretos seria o caminho para se chegara uma leitura autorizada, a contribuição do aluno e sua experiência é dispensável, e a leitura torna-se uma avaliação do grau de proxi-midade ou de distância entre a leitura do aluno e a interpretação "autorizada". A leitura é. no entanto, justamente o contrário: são os elementos relevantes ou representativos os que contam, em função do significado do texto, a experiên-cia do leitor é indispensável para construir o sentido, não há leituras autoriza-das num sentido absoluto, mas apenas reconstruções de significados, algumas mais e outras menos adequadas, segundo os objetivos e intenções do leitor.

Quando a leitura é entendida como interlocução, tal qual outras atividades de linguagem, só que à distância, então aqueles aspectos que diferenciam a inte-ração oral da escrita e que permitem, de certa maneira, um enfoque que toma o texto como con junto de palavras, passam a ter uma relevância menor. Mantendo em mente o fato de que tanto o texto oral quanto o texto escrito são produtos de uma intencionalidade, isto é, escritos por alguém, com alguma intenção de che-gar aos outros, para informar, persuadir, influenciar tal qual acontece quando fa-lamos, evitaremos perder de vista o texto por causa das palavras que o veiculam.

Concepções Sobre o Método

Se às concepções equivocadas do texto e da leitura como atividade comu-nicativa juntamos agora as abordagens metodológicas utilizadas cm sala de aula, nao resulta surpreendente a falta de interesse que o nosso aluno tem pela leitura.

Consultados 60 professores das primeiras séries sobre a forma como geralmente abordavam o texto, houve unanimidade, primeiro, na maneira uniforme e invariável de fazer a leitura de qualquer texto e, segundo, no pa-

secundário que a leitura propriamente dita tinha em relação ao conjunto de atividades em tomo de uin texto.

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O roteiro que apresentaremos é um roteiro bastante comum, que incor-pora as etapas, indicadas pela maioria dos professores, no desenvolvimento de uma unidade de ensino de língua portuguesa que começava por um texto:

1) Motivação do aluno, através de uma conversa sobre o assunto geral do texto:

2) Leitura silenciosa, sublinhando as palavras desconhecidas; 3) Leitura cm voz alta, por alguns alunos, ou por todos os alunos, em

grupo: 4) Leitura em voz alta. pelo professor; 5) Elaboração de perguntas sobre o texto, por parte do professor como

"Onde ocorreu a estória?", "Quando?", "A quem?" e outras per guntas sobre elementos explícitos;

7.) Reprodução do texto (ou outra atividade de redação ligada ao tema do texto).

Os professores colocavam também como opções o ensino gramatical, mediante o ditado de palavras retiradas do texto, ou atividades como subli-nhar os nomes próprios do texto etc.

I)e fato, esse roteiro reproduz a proposta de trabalho da maioria dos li-vros didáticos, que organiza suas unidades em torno de um texto, que assim se converte em detonador e pretexto para atividades como as discutidas acima.

A prática de sala de aula, não apenas da aula de leitura, não propicia a interação entre professor c aluno. Em vez de um discurso que é construído conjuntamente por professor e alunos, temos primeiro uma leitura silenciosa ou em voz alta do texto, e depois, uma série de pontos a serem discutidos, por meio de perguntas sobre o texto, que não levam em conta se o aluno de fato o compreendeu. Trata-se. na maioria dos casos, de um monólogo do professor para os alunos escutarem. Nesse monólogo o professor tipicamente transmi te para os alunos uma versão, que passa a ser a versão autorizada do texto.

Sabe-se, pelas pesquisas recentes, que é durante a interação que o lei-tor mais inexperiente compreende o texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta. mas durante a conversa sobre aspectos re-levantes do texto. Muitos aspectos que o aluno sequer percebeu ficam salien-tes nessa conversa, muitos pontos que ficaram obscuros são iluminados na construção conjunta da compreensão. Não é. contudo, qualquer conversa que serve de suporte temporário para compreender o texto.

Consultamos também professores de língua portuguesa das séries su-periores do l 9 grau sobre os aspectos do texto que eles escolheriam para en-sinar numa aula de leitura a partir do texto a seguir, intitulado "São Francis-co envenenado".

2. Todos os exemplos de textos qiie apresentaremos devem ser imaginados como fazendo parte dc. uma unidade temática, na qual ü assunto seria explorado a partir de vários pontos de vista e jxts-peclivas, para assim ajudaroaluno na formação de redes dc conhecimento, que por sua ve7 permi-tiriam a ancoia>:eiii de novas informações sobre o assunto.

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DESASTKE

o São Francisco envenenado

O primeiro indício de que algo de anor-mal se passava foi captado cm Curaçá, município de 28 mil habitantes no Nor-te da Bahia, a 514 quilômetros de Sal-vador: na manhã do dia 13. as águas do rio São Francisco, que banha a cidade, começaram a depositar nas margens milhares de peixes mortos. Rapida-mente a tragédia via jou rio abaixo. Cer-ca de 120 mil pessoas moradoras na re-gião ficaram privadas de seu principal alimento. Trezentas toneladas de pei-xes se perderam, hm várias cidades, como Curaçá, Itamctinga. Abaré. Ro-delas, Macuraré e Glória, foi preciso suspender o abastecimento de água pa ra evitar que as populações tivessem o mesmo destino dos dourados, piranhas, caris e surubins envenenados.

Em poucas horas não havia dúvi-da de que se tratava do maior desastre ecológico já acontecido no rio São Fran-cisco. Até o final da semana passada, no entanto, as passagens mais importantes do drama estavam por esclarecer. Sabia-se apenas que entre o domingo e a se-gunda-feira. 11 e 12, toneladas de algu-nia substância tóxica foram despejadas cm algum ponto do rio. peno de (airaçá. As primeiras suspeitas recaíram sobre

duas empresas da região, a Caraíba Me-tais. beneficiadora de cobre, e a Agrova-le, canavieira. O secretário do planeja-mento da Bahia e presidente do Conse-lho Estadual de Proteção Ambiental. Waldcck Omellas, inocentou as empre-sas depois de uma vistoria.

Passou-se então a suspeitar de um colossal derramamento de agrolóxicos nas águas do rio — hipótese defendida por Omellas e pelo titular da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), do governo federal. Paulo Nogueira Ne-to, que enviou amostras da água do no à Companhia Estadual de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetcsb), de São Paulo, para exames que estarão con-cluídos esta semana. Mesmo a identifi-cação e a punição dos culpados, porém, não remediarão o mal denunciado pelo diretor de piscicultura da Companhia de Idesenvolvimento do Vale do São Fran-cisco (Codevasf), órgão do Ministério do Interior, Odilon Juvino. Após a tragé-dia, afirma ele, "só por um processo arti-ficial o médio São Francisco voltará a ser piscoso, pois a barragem de Sobradi-nho impede que os peixes desçam a esse trecho do rio". A

IstoÉ, 28/3/84

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Apesar de termos indicado que se tratava de uma aula de leitura, todos os professores consultados, com apenas duas exceções, escolheram assuntos ligados ao lema para a aula. As conseqüências da poluição para o meio am-biente foi o tema consensualmente explorado nas suas diversas facetas, des-de a poluição dos rios ate a morte dos peixes, passando pela ação ou falta de ação dos governos.

Das escolhas excepcionais, uma estava relacionada a uma questão de formação textual, istoé, a utilização desse texto para ensinar a estrutura do re-lato (isto é, introdução ou cenário, evento ou complicação etc. ) e a outra esta-va relacionada ao ensino de vocabulário (significado de piscoso etc).

Apesar de serem professores de Português, nenhum professor pensou na possibilidade de analisar a função dos tempos verbais (imperfeito, pretéri-to perfeito e futuro) para marcar diversos momentos no tempo real (morte dos peixes, descoberta do fato, e previsões). No caso do texto em questão, um as-sunto gramatical que praticamente todo professor quer ensinar e que todo li-vro didático trata de maneira primária e elementar, isto é, os tempos verbais, era pertinente para o desenvolvimento do relato. Assim, uma oportunidade de discutir o uso do tempo verbal, sem entrarem mera terminologia e memo-rização. não foi contemplada.

Também nenhum professor pensou em ensinar alguma estratégia de leitura (como ativação de conhecimento de mundo, ou análise para procurar detalhes, ou inferência sobre pressupostos culturais).

Quando o professor apresenta como urna das primeiras etapas da aula de leitura a conversa motivadora sobre o assunto do texto, está também redu-zindo a aula de leitura a uma exploração de temas que. em princípio, deve-riam ser tratados pelos professores de Ciências, História, ou Geografia. Os critérios para a escolha do texto são a LEGIBILIDADE, ou grau de dificulda-de. a relevância e o interesse, tanto do ponto de vista de apelo ao aluno quan-to do ponto de vista dos objetivos acadêmicos da escola, que deveriam alar-gar o universo temático do aluno. Entretanto, abordar temas que estão ao al-cance da criança, que são relevantes e interessantes, não significa que o nos-so objetivo enquanto professores de língua seja apenas o conhecimento do te-ma: o tema é o fio que permite a percepção e produção da linguagem e o de-senvolvimento de urn novo sistema simbólico, o da linguagem escrita.

É claro que os objetivos do professor de língua serão mais facilmente atingidos se houver um esforço conjunto dos vários professores que ensinam a criança, dai a pertinência de abordar assuntos relevantes em outras áreas. No entanto, devemos lembrar que o enfoque integrado, interdisciplinar de um assunto não significa apenas que o professor de Português se toma mais um professor de Ciências: significa, também, que o professor de Ciências se torna mais um professor de leitura.

O pressuposto de que todo texto pode ser abordado seguindo as mes-mas etapas decorre, também, dos conceitos de texto como produto acabado que serve de repositório de informações, c da leitura como atividade para ex-tração dessas informações, e de ambos, texto e leitura, como instrumentos pa-ra o ensino da norma, do código escrito, da gramática.

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Nessa visão, c claro, não se l a / necessário pensar nos objetivos do en-sino de leitura, nem na análise pic-pedagógica do texto que será utilizado pa-ra atingir tais objetivos. Entretanto, tal análise, em função dos propósitos do ensino de leitura, é considerada como pré-requisito no enfoque que passare-mos a discutir nos próximos capítulos. Nenhuma atividade é considerada co-mo dada, mesmo porque estas são tantas como são os textos e suas possíveis leituras, segundo os objetivos do ensino, que deveriam imitar a situação real, em que as leituras podem ser tantas quantas as nossas intenções e as intenções que percebemos no autor.

2.3 UMA CONCEPÇÃO ALTERNATIVA: UM EXEMPLO

Na aula de leitura, em estágios iniciais, o professor serve de mediador en-tre o aluno e o autor. Nessa mediação, ele pode fornecer modelos para a ativi-dade global, como pode, dependendo dos objetivos da aula. fornecer modelos de estratégias específicas de leitura, fazendo predições, perguntas, comentá-rios. Veremos o embasamento teórico dessa concepção nos capítulos a seguir.

Vejamos agora um exemplo desse enfoque diversificado, segundo três objetivos que determinam três atividades diferentes para um mesmo texto. Os exemplos de textos jornalísticos foram apresentados numa unidade temá-tica sobre drogas num supletivo básico (equivalente às la. c 2a. séries) para adultos. Em conseqüência da pouca familiaridade dos alunos com a escrita em cursos desse tipo, em que a maioria são adultos que voltam à escola de-pois de ter passado uns poucos meses na escola quando crianças, é necessá-rio. primeiro, explorar com os alunos os acordos tácitos anteriores à leitura do jornal, entre jornalista e leitor.

Em primeiro lugar, o texto jornalístico deve ser aceito como fonte de informações pertinentes e de novidades, quer dizer, preenchendo funções que, nas culturas não letradas, são preenchidas, primordialmente, pelos membros da família e pela comunidade imediata, oralmente. Em segundo lu-gar, c preciso deixar claro para o aluno a ampla variedade de informações e notícias que um jornal da imprensa séria, de circulação nacional traz, o que implica uma maneira seletiva de procura de textos interessantes, mediante a leitura da manchete e do resumo destacado na primeira página, ou na seção pertinente ao assunto tratado.

A familiarização com a forma do jornal e do texto jornalístico exempli ficado cm (9), a seguir, poderia ser. de fato. um dos primeiros objetivos da au-la e. nesse caso. poder-se-ia focalizar a relação entre a manchete, o resumo ou chamada e o texto propriamente dito dentro do jornal. Ligada também à lei-tura do jornal está a maneira de abordar a leitura do jornal para a seleção da-quilo que nos interessa. Poder-se-ia, então, demonstrar para o aluno a função da manchete em relação ao relato da notícia, bem como a leitura tipo sonda-gem (também conhecida por seu nome inglês, "scanning"), assim, efetiva-mente, demonstrando a relação existente entre objetivo de leitura c estraté-gias de abordar o texto, de ler.

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(9)

Meia nega uso de droga4 para jogar '

ü meia argentino Diego Maradona. do Napoli, negou que tenha usado cocaína "como estimulante para jo-

Maradona nega o uso de cocaína 'para jogar'

gar". Ele pode ser suspenso por até dois anos na Itália por doping. Pág.7-2

Das Agências Internacionais

Diego Maradona negou que tenha usado drogas para melhorar seu desempenho cm campo. O joga-dor argentino deu ontem em Napóles sua primeira e curta entrevista após a divulgação de que jogou dopado no último dia 17 de março no jogo do Napoli contra o Bari, pelo Campeo-nato Italiano. "Eu nunca precisei de nada para provar minha performan-ce", disse Maradona.

A contraprova do exame anti-doping do argentino, realizada an-teontem em Roma, indicou a presen-ça de cocaína na urina do jogador. Maradona pode ser suspenso de seis meses a dois anos. A Federação Ita-

liana vai divulgar a punição durante a semana.

Maradona não descartou a pos-sibilidade de ter consumido cocaína, mas negou que tenha se dopado com o propósito de jogar sob efeito de es-timulantes. '"Eu nunca entrei em campo sob efeito dc estimulantes. Eu não quero essa suspensão", afirmou, concluindo a entrevista.

Marcos Franchi, procurador do meia do Napoli, disse que Cláudia Villafanc, mulher de Maradona, chorou muito quando soube do re-sultado do exame. Franchi não quis falar qual foi a reação de Maradona sobre o escândalo.

Folha dc São Faulo, 31 /3/1991

Se o objetivo da aula de leitura fosse levar o aluno a perceber a atitude do autor do texto quanto ao fato relatado, poderíamos criar condições para que percebesse a função modali/adora, isto é, de expressão dc atitude, do item lexical escândalo no último parágrafo. Para tal. laz-se necessário pre-viamente perceber a diferença entre o relato dos fatos e a expressão de uma opinião sobre o fato. Ainda com alunos no início do processo dc alfabetiza-ção é possível conscientizá-los sobre esse uso, fazendo perguntas que diri-jam sua atenção à palavra escândalo, na avaliação-resumo no final do texto, que expressa censura, pois a palavra escândalo contém uma avaliação nega-

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tiva.J e portanto expressa uma opinião negativa do autor. A exploração, por exemplo, das maneiras alternativas de avaliar o fato relatado, como evento, triste evento, infortúnio, calúnia, expressando distância, tristeza, comisera-ção, solidariedade, cm vez de censura c condenação (v. nota 3), facilitaria essa percepção.

Outros objetivos ligados à leitura, porque desenvolvem habilidades de análise lingüística e textual necessárias para a leitura (a serem discutidas no Capítulo 5), poderiam ser o ensino da função das aspas, na citação, que mar-cam as falas não assumidas pelo autor do texto. Novamente, chamamos a aten-ção para o fato dc que a função dos diversos elementos do texto só pode ser es-tudada no texto, pois o mesmo uso. isto é, marcar a fala do outro, pode justa-mente funcionar como apoio do argumento do autor em outros textos, quando o discurso citado pertence a alguém com quem o autor quer se identificar.

Na aula cm que esse texto foi utilizado, havia adultos no início do pro cesso de alfabetização que. portanto, ainda necessitavam de exercitação mo-tora para reprodução das letras. Nesse caso, o texto poderia também ser uti li-zado para a cópia das falas da protagonista e a invenção dc urn título para es-se conjunto de citações. Com outros alunos, mais avançados, poder-sc-ia en-focar as diversas maneiras de relatar a fala — o chamado discurso indireto nos manuais didáticos — c as pressuposições sobre a verdade do fato relata-do que o uso desses verbos (negar, dizer, descartar a possibilidade, afirmar) indica, uso este que também constitui urna forma de chegar à opinião.

Evitando abordagens rígidas, fixas, previsíveis, estaremos demostran-do na prática que a leitura é uma atividade individual, singular até na manei-ra dc ler, pois o que queremos de uma leitura determina como faremos essa leitura. Essa flexibilidade própria do leitor maduro deve ser modelada desde os primeiros contatos com a escrita, num primeiro momento paia fornecer um modelo que valha a pena ser imitado, para depois ser incorporado como parte constitutiva das estratégias de leitura e das atitudes do leitor. Talvez, as-sim, o problema do interesse do aluno pelo qual iniciamos esta reflexão, terá um final diferente.

RESUMO

Analisamos, neste capítulo, as concepções de texto c leitura que subja-zem às práticas de sala de aula, uma das causas da desmotivação e desintere sc do aluno pela leitura. F.ssas concepções não questionadas e perpetuadas na

V Noic-seque lodosos significados listados no dicionário tom conotações negativas: I > Aquilo que c causa dc erro ou dc pecado 2) Aquilo que resulla dc erro ou üc pecado 3) Indignação provocada por uni mau exemplo 4) Desordem, (umulto, cena, alvoroço, escarcéu 5) Grave acontecimento que abala a opinião pública f>> fa to imoral, revoltante (Novo Dicionário Aurelio, I-. ed.)

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prática não têm fundamentação teórica consistente, nem do ponto de vista da teoria da linguagem nem da teoria sobre a leitura.

Mediante o texto apresentado como exemplo de uma concepção alter-nativa de leitura, tentamos demonstrar a necessidade de conhecimento do professor na área específica de leitunt (além. é claro, de sua formação lingüís-tica). a fim de evitar a propagação de concepções obsoletas, que apesar de se-rem comprovadamente ineficientes, são legitimadas pela falta de propostas alternativas.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Questões relativas ao desenvolvimento do gosio pela leitura e à formação do leitor po-dem ser encontradas em Bamberger (19771. Bellcngcr(1978).

2. Questões gerais sobre a leitura, a função da escola na lormaçáo de leitores, e o fracas-so da escola em relação aos grupos minoritários são pressupostas na discussão acima. Algumas dessas questões podem ser aprofundadas em Soares (1986). Zilbcrman & da Silva (1988 >.

BAMBERGER. R. Como incentivar o hábito da leitura. St ' . : Cultrix/MEC, 1977. Trad, de Oc-távio M. Cajado.

BEEEENGER. L. Os métodos de leitura R.J.: Zahar Editores. 1978. Trad, dc Dora Flaksnian. SOARES. M. Linguagem e escola. Uma perspectiva social. S.P.: Editora Ática. 1986. Zll.BERMAN. R. & DA SILVA. E.T. Leitura. Perspectivas interdisciplinares. S P : Editora

Ática. 1988.

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CAPÍTULO 3

COMO LEMOS: UMA CONCEPÇÃO NÃO ESCOLAR DO PROCESSO

.4 vida parece particularmente difícil para o leitor iniciante.

Frank Smith

3.1 O PROCESSAMENTO COGNITIVO

A concepção de leitura que a considera como uma atividade a ser ensi nada na escola, não como mero pretexto para outras atividades e outros tipos de aprendizagem, está embasada cm modelos já bem definidos sobre como processamos as informações.

Esses modelos lidam com os aspectos cognitivos da leitura, isto é. as-pectos ligados à relação entre o sujeito leitor e o texto enquanto objeto, entre linguagem escrita e compreensão, memória, inferência e pensamento. Eles tentam incorporar aspectos socioculturais da leitura, uma vez que vão desde a percepção das letras até o uso do conhecimento armazenado na memória. En tretanto. esses modelos se voltam para os complexos aspectos psicológicos da atividade, apontando para as regularidades do ato de ler. para a atividade inte-lectual em que o leitor ideal se engajaria. Essa atividade intelectual começa pela apreensão do objeto através dos olhos com o objetivo de interpretá-lo.

O conhecimento do aspecto psicológico, cognitivo da leitura é impor-tante porque ele pode nos alertar de maneira segura contra práticas pedagógi-cas que inibem o desenvolvimento de estratégias adequadas para processar e compreender o texto. Esse conhecimento pode ainda nos alertar para os obs-táculos à compreensão que decorrem de aspectos do texto, que, por diversas razões, tomam o PROCESSAMENTO mais difícil. Como veremos, os tex-tos do livro didático exemplificam muito bem os aspectos dilicultadores do processamento.

Neste capítulo, examinaremos o aspecto cognitivo da leitura apenas da perspectiva do processamento da informação, começando pela percepção do material lingüístico e terminando nos mecanismos de agrupamento desse material em unidades sintáticas, o processo chamado de fatiamento. Este Óti-mo é etapa necessária precedente à interpretação semântica do texto, proces-so no qual a memória, a inferência, isto é, as chamadas funções superiores es-tão envolvidas para construir o sentido do texto.

Essas primeiras etapas no processamento da informação serão exami-nadas a partir de uma perspectiva que destaque as questões práticas com que

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o professor se depara: primeiro, focalizando aqueles aspectos que apontam para a adequação ou não de abordagens pedagógicas específicas e, segundo, focalizando aqueles aspectos do texto que se insinuam como potenciais difi-culdades para o processamento, devendo, por isso. ser objeto de ação peda-gógica facilitadora.

ü processamento do objeto começa pelos olhos, que permitem a per-cepção do material escrito. Esse material passa então a uma memória de tra-balho que o organiza em unidades significativas. A memória de trabalho se-ria ajudada nesse processo por uma memória intermediária que tornaria acessíveis, como num estado de alerta, aqueles conhecimentos relevantes pa-ra a compreensão do texto em questão, dentre todo o conhecimento que esta-ria organizado na nossa memória de longo prazo (também chamada de me-mória semântica, ou memória profunda).

A Hg. 1 a seguir, representa, de maneira muito simplificada, os princi-pais mecanismos engajados no processamento de um texto:

MATERIAL ESCRITO OLHOS ^ (percepção e interpretação

de "input" gráfico)

. í MEMORIA DE TRABA1 .HO

(fati amento) A

f MEMORIA INTERMEDIARIA ^ J

(repositório de conhecimento ativado, em alerta)

. i MEMORIA LONGO TERMO/

MEMÓRIA SEMÂNTICA/ ^ MEMÓRIA PROFUNDA ^ (o conhecimento, c regras

para seu uso e organização)

Figura I: Mecanismos e capacidades envolvidos no processamento do texto

A Percepção do Objeto

Em relação à percepção, devemos lembrar, primeiramente, que estaé individual. Não percebemos tudo o que vemos, não reagimos da mesma maneira ante um mesmo quadro ou imagem. O que é semelhante na percep-ção do texto através dos olhos é o tipo de mecanismo usado para apreender o objeto.

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Sabemos, devido a numerosas experiências e observações, que o 1110-vimenro ocular durante a leitura é um MOVIMENTO SACADICO, e não li-near. isto quer dizer que o leitor eficiente não lê palavra por palavra, seguin-do, metaforicamente, o seu dedo na linha. Pelo contrário, os olhos se fixam num lugar do texto, (a fixação) para depois pular um trecho (a sacada), e fi-xar-se num outro ponto mais adiante.

A distância entre as fixações depende da dificuldade do material que está sendo lido, o que indica claramente que é o cérebro que controla o pro cesso. O movimento sacádico permite a leitura muito rápida (que NÃO tem nada a ver com a chamada leitura dinâmica). Lemos 200 palavras por minu-to quando o material for fácil, mais devagar quando o material for complexo. Os olhos se movimentam muito mais rapidamente do que a voz consegue pronunciar.

Durante a leitura, os olhos vão para frente, num movimento progressi-vo, mas também retrocedem, num movimento regressivo. Novamente, o fa-tor determinante para a direção do movimento é a dificuldade do material, ha-vendo muito mais movimentos regressivos quando o material é mais difícil. Isto indica que o leitor eficiente vai controlando seu próprio processo de compreensão e volta para trás. ou relê. quando não compreende.

Durante a fixação, o olho percebe claramente o material focalizado. Durante a sacada, entretanto, a visão fica muito reduzida; antigamente, nos estudos de início do século, pensava-se que o olho não percebia nada duran-te esse movimento, hoje acredita-se que há uma visão periférica, mas muito diminuída, que certamente não permite ao leitor enxergar claramente as pa lavras que ocorrem entre cada fixação. Isso aponta para um fato extremamen-te importante, a saber, que grande parte do material que lemos c adivinhado ou inferido, não é diretamente percebido. E. ainda, como apontávamos ante-riormente, o que percebemos depende em grande medida de cada indivíduo.

Daí que a leitura seja considerada, do ponto de vista cognitivo, um jo-go de adivinhações. Assim corno podemos reconhecer à distância uma pes-soa conhecida, a partir de algumas características (altura, cor. maneira de ca-minhar. por exemplo), assim também, durante a leitura, podemos reconhecer estruturas e associar um significado a cias, a partir de apenas algumas pistas: mediante a identificação da forma da palavra (sendo que a configuração aci-ma ou abaixo da linha parece ser extremamente relevante): a nossa familiari-dade com a palavra (que pode permitir o reconhecimento instantâneo, sem necessidade de análise). Esse reconhecimento está estreitamente relacionado ao nosso conhecimento sobre o assunto, o autor, a época em que ele escreveu, aos nossos objetivos, aspectos estes que determinam a direção de nossas ex-pectativas sobre o assunto.

A Memória de Trabalho

O que mais chama a atenção em relação ao trabalho dos olhos duran-te a leitura é a rapidez do leitor. Daí perguntamos, por que lemos tão rapi-damente?

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A resposta é: para podermos organizar os traços no papel em material significativo. Uma vez que o material visual é apreendido, começa a interpre-tação; das letras em sílabas e palavras, destas em frases, destas em proposi-ções com significado. O material vai sendo estocado na memória de trabalho (v. Fig. 1), que permite a organização cm unidades sintáticas, segundo regras e princípios de nossa GRAMÁTICA IMPLÍCITA, isto é. o conhecimento que temos por sermos falantes da língua, que não equivale ao conhecimento gramatical adquirido na escola. A memória de trabalho, cu jo funcionamento exemplificaremos a seguir, pode ser concebida como a capacidade do leitor para estocar o material que está entrando mediante a percepção e para agru-pá-lo em unidades significativas com base no seu conhecimento da língua. O processo de agrupamento e análise é conhecido como FATI AMENTO.

A memória de trabalho é uma capacidade finita e limitada, uma vez que não pode trabalhar com mais de aproximadamente 7 unidades ao mes-mo tempo: à medida cm que vão entrando mais unidades, a memória preci-sa ser esvaziada das unidades anteriormente estocadas, de maneira que sempre trabalha com aproximadamente 7, mais ou menos 2 unidades (isto é. entre 5 a 9 unidades),

O aspecto mais importante dessa capacidade é que não faz di ferença. pa-ra seu funcionamento, o tipo de unidade que usa para o fatiamento: precisa ape-nas ser uma unidade significativa, isto é, ser reconhecida como alguma entida-de, seja esta letra, sílaba (agrupamento de letras numa unidade que reconhece-mos). ou palavra (agrupamento de sílabas numa unidade maior). Também em relação a números o processo é basicamente o mesmo: podemos percebe los como uma série de dígitos, ou podemos pereebé-los como unidades com signi-ficado. Por exemplo: uma data importante, ou um número telefônico conheci-do, ou um número de rua num endereço familiar. Assim, quanto maior o ele-mento que tomamos como unidade significativa, maior será a quantidade de material que poderemos processar e manter na memória ao mesmo tempo.

Vejamos um exemplo: suponhamos que a maior unidade significativa que o leitor consegue identificar seja a letra, numa seqüência como a seguinte:

a — s — e — s — t — r — u — t — u — r — a — s

Se o leitor estiver lendo letra por letra, ele não conseguirá manter todas essas unidades na memória de trabalho, porque deverá esvaziar as primeiras letras na seqüência quando a sétima, ou oitava, ou nona letra chegar à memó-ria. Em termos de compreensão, ele não terá conseguido apreender essa se-qüência. não terá sequer lido as duas palavras, uma vez que as partes não se integram num todo significativo. O mesmo problema estará acontecendo se o leitor ler sílaba por síliba (isto é, as — cs — tru — tu — ras), pois novamen-te quando ele tiver lido a quinta sílaba, apenas duas palavras, a sua memória de trabalho estará quase no limite de sua capacidade.

Imaginemos, por outro lado, que a unidade mínima significativa que o leitor identifica seja a palavra, mediante a estratégia de reconhecimento ins-tantâneo de palavras em lugar da silabação.

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as estruturas

Nesse caso, o leitor poderá ainda ler mais palavras, pois a sua memória de trabalho náo estará sobrecarregada. E assim sucessivamente. Se reconhe-cermos apenas palavras isoladas, novamente, poderemos trabalhar com 7 (+ ou - 2) palavras, mas se conseguirmos agrupar, com base no nosso conheci-mento da estrutura da língua, (e do assunto que estivermos lendo, é claro), es-sas palavras em grupos ou fatias sintáticas, como em as estruturas mais com-plexas são aquelas que foram analisadas nos útimos meses, entào nossa ca-pacidade de processar material terá se expandido significativamente:1

0 [ [ S N as estruturas mais complexas SN ] I fatia

s v [são aquelas que [ ( ) I fatia

foram analisadas nos últimos meses 0 | s v ] Q ] 1 fatia

Como apontávamos, para tal agrupamento o leitor proficiente usa efi cientemente o conhecimento de gramática que ele tem internalizado, fazen-do predições constantes sobre as ocorrências possíveis. Ao identificar uma unidade, ele fechará essa unidade e voltará sua atenção para a seqüência se-guinte, sendo que o processamento de uma determinada unidade vem a ser ajudado tanto pela natureza do material que continua entrando como pelo material que já foi processado.

A relevância desses aspectos do processamento para o desenvolvimen-to de estratégias flexíveis de leitura é clara. No início, a leitura será muito mais difícil para o leitor e por isso ela fica quase que limitada àdecodificação, se o professor não tornar a atividade comunicativa. fazendo comentários, perguntas, enfim, fugindo da forma, já saliente demais dev ido às dificuldades iniciais do leitor, c focalizando o sentido.

Assim, o professor deve propiciar contextos a que o leitor deva recor-rer. simultaneamente, a fim de compreendê-lo em diversos níveis de conhe-cimento, tanto gráficos, como lingüísticos, pragmáticos, sociais c culturais. O processamento INTERATIVO corresponde ao uso de dois tipos de estra-tégias. segundo as exigências da tarefa e as necessidades do leitor: aquelas que vão do conhecimento do mundo para o nível de decodificação da palavra, envolvendo um tipo de processamento denominado TOP-LXJWN. ou des-cendente, conjuntamente com estratégias de processamento BOTTOM-UP,

Significado dos símbolos usados: O - Oração, SN = Sintagma Nominal {içro é, um constiluinic gramatical que lem como núcleo o nome e

pode ler a função dc sujeito, obicloí SV - Sintagma Verbal (um lipo dc constiluinte que leni como núcleoo verbo e que corrcpon-

dc ao predicado).

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ou ascendente, que começam pela verificação de um elemento escrito qual-quer para, a partir daí, mobilizar outros conhecimentos. O leitor iniciante usa predominantemente o processamento ascendente, ou seja. a decifração da letra ou palavra escrita precede a ativação de conhecimento semântico, ou pragmático, ou enciclopédico. Como a mobilização de tal conhecimen-to também é essencial para a compreensão, esta fica seriamente comprome-tida se o professor não ajudar o aluno, através de perguntas, no diálogo, a mobilizá-lo.

O aluno que lê vagarosamente, sílaba por sílaba, terá dificuldades para lembrar o que estava no início da linha quando ele chegar ao fim. Ele deve, portanto, ser capaz de reconhecer instantaneamente as palavras: se a palavra fora unidade reconhecida, cie poderá ler mais rapidamente, conseguindo as-sim lembrar unidades passíveis de interpretação semântica (isto é, unidades às quais podemos atribuir um significado).

Para tal, o leitor deverá estar em estado de "alerta perceptual", pron to para detectar um serie de palavras cuja ocorrência no texto é predizível pelo assunto. O professor que ajuda o aluno a prever e predizer focalizan-do, mediante diversas abordagens e atividades prévias à leitura, as pala-vras-chaves no texto, garante que. quando o aluno as encontrar, será capaz de reconhecê-las rápida ou até instantaneamente.

A prática exclusiva da leitura oral. após a etapa de ensino da decodifi-cação, também tem desvantagens para o desenvolvimento dos mecanismos visuais necessários para a apreensão rápida do material escrito uma vez que, como dizíamos, a verbalização fica atrás do olho. por ser a voz mais lenta. Ainda mais importante, a insistência na leitura oral decorre de uma atitude que sobrevaloriza a exatidão, a correção na pronúncia de todas as palavras. Tal insistência, acreditamos, irá inibir também o desenvolvimento de estra-tégias de adivinhação do material periférico à visão durante a leitura.

Dados de pesquisa mostram que a leitura de uma palavra que não está escrita, isto é. o que é considerado erro na leitura em voz alta, não reflete ne-cessariamente um problema de compreensão: quando a palavra que o aluno substitui pela palavra do texto faz sentido, esse "erro" é sinal de o aluno estar prestando atenção ao significado do texto e não apenas à forma, justamente o objetivo do ensino de leitura para o qual o ensino da forma, do código, é ape-nas instrumento.

Em outras palavras, os dados sobre o processamento visual do texto permitem concluir que as abordagens de leitura que insistem na leitura em voz alta sem permitir a leitura silenciosa prévia, e que valorizam a corre-ção da forma ao invés da preservação do significado, podem inibir o de-senvolvimento de estratégias adequadas de processamento do texto escri-to. Tais estratégias, que são conseqüência da leitura eficiente ( não são cau-sas) devem, num primeiro momento, ser modeladas, e o professor deve promover condições para que sejam imitadas. A leitura silenciosa, tanto por parte do aluno como do professor, e a leitura em voz alta pelo adulto, cumprem os dois objetivos de servir de modelo e de criar contextos de aprendizagem.

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3 2 DIFICULDADES NO PROCESSAMENTO: DIFERENÇAS ENTRE A FORMA ESCRITA E A FALADA

Uma questão que pode surgir neste momento da discussão diz respeito à dificuldade no processamento da escrita versus a relativa facilidade 110 pro-cessamento da linguagem oral. Por que tão poucos compreendem a lingua-gem escrita, enquanto todos compreendem a linguagem talada?

I lá várias razões para a diferença. Em primeiro lugar, devemos verifi-car se quando comparamos, estamos comparando objetos que se intersceiam em algum lugar. Em geral comparamos a compreensão facilitada do bate-pa po com a compreensão de urn texto de jornal ou de texto acadêmico. Se com-parássemos a compreensão de uma aula expositiva com a compreensão de um texto acadêmico, ou o bate-papo com a compreensão de uma carta a um amigo, já as diferenças não seriam tão marcadas, pois nesse caso as condi ções em que os textos são produzidos e entendidos teriam semelhanças. Por exemplo, os interlocutores se conheceriam mutuamente, no caso do bate-pa-po e carta informais; no caso mais formal da aula e do texto acadêmico, em vez de um interlocutor conhecido teríamos uma audiência da qual fazemos uma imagem que substitui o conhecimento direto, pessoal. Também nestes últimos dois casos, haveria mais preocupação com o tópico que esta sendo desenvolvido, isto é, a função referencial da linguagem seria privilegiada en-quanto que nos dois primeiros casos, bate-papo e carta íntima, seria a relação entre os interlocutores, isto é, a função interpessoal, a mais importante.

Em ambas as situações de uso de linguagem oral. entretanto, o interlo-cutor ou a audiência ajudam na construção do texto pois falante e ouvinte re-significam continuamente o texto do outro. Embora essa construção conjunta seja característica construtiva apenas do diálogo, desde a escolha até a mudan-ça de tópicos, passando pelo desenvolvimento dos mesmos, também na pales-tra há alguma construção conjunta de falante e audiência em momentos críti-cos. nos quais a compreensibilidade está em jogo: por exemplo, o bom pales-trisla permite perguntas da audiência e monitora constantemente o nível de atenção dos ouvintes para redirecionar, repetir, ou simplificar o material. Já na leitura, as condições da interlocução são muito diferentes, sendo a distância entre os interlocutores uma fonte de grande número de dificuldades. Existe um autor responsável pelo fio unitário de significação presente no texto.

Considera-se que uma outra fonte importante de dificuldade tem a ver com diferenças na linguagem usada no texto escrito e na fala. A maneira em que a escrita pode ser composta, sem a urgência de ir produzindo e ajeitando a pro-dução ao mesmo tempo que se está pensando, permite uma maior elaboração c cuidado, graças à possibilidade de reescrita e revisão, que resulta cm diferentes estruturações. Essas estruturações diferentes têm sido caracterizadas como ten-do maior complexidade sintática c maior densidade e diversificação lexical (is-to é, de vocabulário). Essas diferenças podem, é verdade, causar dificuldades para o processamento, para a apreensão do objeto do ponto de vista cognitivo.

Consideremos algumas dessas diferenças no parágrafo a seguir. Lembremos que estamos considerando o ob jeto apenas do ponto de vista do

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processamento, isto é, das atividades em que devemos nos engajar para apreendê-lo:

(1) A v concepções de uma criança de 4 anos se orientam no sen-tido de uma predição do significado do escrito, a partir do desenho (ou da informação adulta, em outras situações). Essas predições vão se adequando cada vez mais à realidade da notação gráfica, até que finalmente o texto, utilizado como fonte de informação, dá índice para a verificação das predições cognitivas. Se falamos de instrução sistemática, abstraindo das formas meuxlológicas con-cretas, é porque cremos que nenhuma delas leva em conta os pro-cessos naturais da conceitualização, ainda que algumas os respei-tem mais. enquanto que outras impõem as concepções adultas des-de o começo.Porém, além dos fatores relativos ao nível de concei tualizaçáo. existem outros determinados pela procedem ia social das crianças.{Ferreiro, E. & Teberosky. A. Psicogénese da língua escrita, Porto Alegre: Artes Médicas. 1987, p. 96).

Do ponto de vista do processamento, a escrita é complexa porque re-quer a manutenção na memória de um grande número de palavras antes de poder fechar a unidade: no parágrafo acima, por exemplo, os sintagmas no-minais complexos (com oração adjetiva, o texto, utilizado como fonte de in-formação. ou com nominalizações: verificação das predições cognitivas) corresponderiam a pelo menos duas unidades de informação na fala (por exemplo, a criança faz predições e a criança verifica as predições) cada urna a ser processada independentemente, sem sobrecarregar a memória de traba lho c com o auxílio de pistas PROSÓD1CAS. isto é, pistas que procedem da maneira como pronunciamos, a ênfase, a entoação, o ritmo (mais rápido ou devagar), que facilitam o processamento.

Para compreender um texto escrito, é necessário também identificar, durante o processamento, pronomes e nomes que estão se referindo a elemen-tos que já foram introduzidos, e que o autor não quer repetir, até porque a re-petição sobrecarregaria demais a memória de trabalho. Fazemos isto também quando falamos, mas na escrita a distância entre os elementos que estão liga-dos (antecedente e pronome, repetição, ou elipse) pode ser muito maior.

Ainda no mesmo exemplo (1) acima, consideremos o trecho a seguir:

Se falamos de instrução sistemática, abstraindo das formas me-todológicas concretas é porque cremos que nenhuma delas le-va em conta OS PROCESSOS NATURAIS DA CONCEITUALI-ZAÇÃO. ainda que algumas OS respeitem mais, enquanto que outras impõem as concepções adultas desde o começo.

Na leitura do mesmo, o leitor deve relacionar as formas em negrito (for-mas metodológicas concretas, nenhuma delas, algumas, outras) como se refe-rindo a uma mesma entidade, e deve manter essa informação na sua memória

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de trabalho até chegar a um significado. O trabalho é bastante complexo, por-que há uma outra entidade (processos naturais da conceitualização, em maiús-culas) que também deverá ser mantida nessa memória pai"a estabelecer a rela-ção com o pronome que a substitui (os, também em maiúsculas no exemplo).

Estruturas como essas diferem bastante das formas orais, que usam da repetição para ajudar na recuperação de antecedentes de pronomes e formas elípticas. Daí que o processamento de tais formas provavelmente nunca che-gue a ter o nível automático de formas mais simples.

Se o leitor tiver ainda outras dificuldades, como desconhecimento do assunto, ou grande número de palavras desconhecidas, então a compreensão se torna praticamente impossível.

Por isso, o professor deve estar atento para resolver as dificuldades que o uso de estruturas típicas da escrita podem causar para o leitor menos proficiente, podendo até comprometer a compreensão. Desafortunadamente, o surgimento de tais problemas é bastante provável, porque o livro didático usa e abusa de es-truturas complexas desnecessárias para o desenvolvimento do lema ou paia mar-cai" um estilo, e muito inoportunas, uma vez que o assunto que está sendo veicu-lado mediante essa linguagem é supostamente desconhecido para esse leitor.

3.3 TORNANDO O PROCESSO MAIS COMPLEXO: A LEITURA DO LIVRO DIDÁTICO

Veremos a seguir alguns exemplos retirados do livro didático, conten-do estruturas sintáticas complexas, e cuja dificuldade potencial é aumentada devido à ambigüidade e/ou má formação da construção.

As estruturas que serão utilizadas como exemplos de complexidade maior na escrita são intercalações ou encaixes, inversões de ordem canónica, anáfora, isto é. mecanismos para ligar c retomar palavras que se referem a uma mesma coisa 110 texto.

Intercalações e Encaixes

Incluímos aqui estruturações que interrompem o processamento de uma determinada unidade, como orações com apostos, orações adjetivas, is-to é. casos cm que o fechamento de uma unidade, ou fatia, é impedido devido a algum material intercalado. A continuação pelo processador não se concre-tiza devido à presença desse material, que interrompe a seqüência.

Os elementos intercalados geralmente dificultam o processamento pe-lo fato de tornarem mais complexa uma determinada unidade. No exemplo a seguir, extraído de um livro didático para a 2a. série, várias passagens são pro-blemáticas do ponto de vista de complexidade estrutural (isso sem falar dos aspectos relativos aos conteúdos, também questionáveis):

(2) Cabral e seus companheiros viajaram e depois de mui-tos dias descobriram o nosso querido Brasil.

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Era o dia 22 de Abril de 1500 efoi em Porto Seguro, ci-dade muito importante da Bahia. "Coroa Vermelha", local seguro, que a esquadra ancorou, posteriormente.

Naquele tempo, o Brasil era só mala e índios.Cabral mandou dizer a D. Manuel que o Brasil era lindo e que era muito grande.

No dia 26 de Abril, Cabral mandou Frei Henrique Coimbra celebrar a primeira missa no tirasil. que foi assisti-da por todos que vieram com Cabral e também por alguns ín-dios que estavam por perto.

Alguns dias depois, outra missa foi rezada e Cabral deixou o Brasil. (29 série).

As intercalações, que poderiam contribuir para a dificuldade no pro-cessamento, tornam mais complexas as seguintes unidades:

— os sintagmas nominais com a função de objeto. O primeiro, a pri-meira missa do Brasil que foi assistida por todos que vieram com Cabral, tem muitos elementos devido à presença de uma oração adjetiva com outra adjetiva nela encaixada. O segundo. índios que estavam por perto, apesar de ter apenas uma adjetiva é também de complexidade maior.

— o sintagma nominal com função predicativa que exibe uma série de intercalações, cidade muito importante da Bahia. "Coroa Vermelha", local seguro, entre a frase. Porto Seguro e a adjetiva que avança a informação per-tinente, que a esquadra ancorou, posteriormente.

Note-se. neste último caso. que a função desses ajH)sios não esUi muito clara, uma vez que eles obscurecem a relação adjetiva entre o nome próprio e a informação nova que supostamente o texto estaria transmitindo. Daí eles produzirem o efeito de mero enfeite.

inversões da Ordem Canónica

Outro fator que pode trazer dificuldades para o processamento pode ser causado por diversas rupturas da ordem canónica, a ordem mais usual da lin-guagem. No exemplo (3), a seguir, os objetos o movimento de rotação e o mo-vimento de translação são topicalizados (isto é, movidos para o início da ora-ção) e por isso, eles deixam de ocupar um lugar talvez mais esperado, imedia-tamente depois do verbo transitivo, na seqüência Sujeito Verbo Objeto:

(3 ) A tetra é o planeta em que vivemos. Sua forma é arredondada e está sempre em movimento. Ela tem dois movimentos. O movimento de rotação a Terra faz girando em torno de

si mesma como um pião, produzindo o dia e a noite. Para realizar esse movimento a Terra gasta vinte e quatro

horas. O movimento de translação a terra realiza girando ao redor

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do Sol, produzindo as quatro estações do ano: primavera, verão, outono e inverno. Gasta para isso 365 dias (um ano). (/-. série)

No texto acima, a informação nova que devia ser apresentada relativa aos movimentos da terra é, basicamente, os dois tipos de movimento da Ter-ra, movimento de rotação e movimento de translação. Tal informação, para receber a saliência necessária, condizente com sua relevância dentro do tex-to. devia ser ordenada antes da explicação: Ela tem dois movimentos: o movi-mento de rotação e o movimento de translação. Assim, se imaginarmos o texto como uma série ordenada de informações na linha vertical, em que as informações inais importantes são as mais altas, essas duas informações es-tariam hierarquicamente mais altas do que as definições. E como se trata de um texto didático para apresentação de novas informações a crianças de pri-meira série, a ordenação dessas informações, mais alta na hierarquia, e por-tanto. mais importante, deveria estar marcada explicitamente, isto é, deveria ser parte do texto.

Se assim fosse, então o artifício da topicalização, de levar essa infor-mação para a frente para indicar que dela estamos falando seria desnecessá-ria. O anúncio do tópico far-se-ia explicitamente: :

(3a) Os movimentos da Terra são dois: o movimento de rota-ção e o movimento de translação.

A terra faz o movimento de rotação girando em torno de si mesma, como um pião, produzindo o dia e a noite.

Tal estruturação, além de resultar num texto mais claro, resultaria num texto menos complexo do ponto de vista sintático, uma vez que construções tortuosas como o movimento de rotação a Terra faz girando em torno de si mesma poderiam ser evitadas.

E importante lembrar, 110 entanto, que a quebra da ordem canónica não constitui necessariamente um fator dificultador do processamento sintático do texto. No trecho a seguir, que tem uma construção passiva, contrariando portanto uma expectativa canónica de que agentes atuam sobre objetos, e a ordem natural da linguagem refletiria essa relação (Sujeito Verbo Objeto), o uso da construção passiva (Objeto Verbo Sujeito) pode facilitar o processa-mento, uma vez que. através do uso da passiva, o elemento dado. conhecido, é assim transformado em tema, permitindo uma progressão temática que flui:

(4) A Terra está mostrando as terríveis marcas das feridas que lhe fizemos, e está lançando seu S.O.S.

E preciso ouvir esse apelo, e acudir com urgência.

- I lá outras mudanças que, se realizadas, melhorariam significativamente o texto. Apontamos aqui apenas aquelas que têm a ver diretamente com a questão em pauta, isto é, formas de to-picali/ar a informação mais relevante que não dificultem o processamento.

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Se este apelo não for ouvido estaremos condenando nossa biosfera à degeneração, com os ambientes aéreo, terrestre e aquático comprometidos, podendo em pouco tempo romper o equilíbrio desta maravilhosa teia .formada e mantida pelas gra-duais transformações ambientais e com a constante luta pela so-brevivência. (Pacini, A. & Masini. G. S.O S para o planeta Ter-ra. ed. brasileira, Salamandra, 1978).

O sintagma nominal este apelo passa a ser o primeiro elemento da ora-ção devido à construção passiva, que permite transformar o objeto em tópico (lembremos que aquilo de que falamos geralmente aparece cm primeiro lu-gar na oração). Justamente, o assunto desse trecho, cujo título é SOCORRO URGENTE — SENÀO ELA MORRE, c um apelo para salvar a Terra. Em relação à segunda inversão, formada e mantida pelas graduais transforma-ções ambientais e com a constante luta pela sobrevivência, acontece fenô-meno semelhante. Em decorrência da passivizaçào, a informação nova apa-rece cm último lugar, ordem que torna essa informação mais recente, e por-tanto, mais saliente e memorável. 0 efeito seria bastante diferente se a ordem canónica quanto às posições de agente e objeto fosse mantida, como em (4a):

(4a) É preciso ou vir esse apelo, e acudir com urgência. Se ninguém ouvir este apelo estaremos condenando nos-

sa biosfera à degeneração, com os ambientes aéreo, terrestre e aquático irremediavelmente comprometidos podendo em pouco tempo romper o equilíbrio desta maravilhosa teia, que as gra-duais transformações ambientais e com a constante luta pela sobrevivência formam e mantêm.

A ordem Sujeito Verbo Objeto, na primeira estrutura (se ninguém ou-vir este apelo), e Sujeito Verbo, na construção adjetiva (as graduais transfor-mações ambientais e com a constante luta pela sobrevivência formam e man-têm la tciaj), no exemplo acima produz um texto de fato mais difícil de ler de-vido a sua progressão temática mal sinalizada, ao contrário do original, em que os comentários, os elementos novos das orações em questão, estavam claramente marcados pela sua posição final nas frases.

Anáfora

Faz parte do processamento do texto a construção de ligações, ou ELOS COESIVOS, que permitem relacionar c retomar elementos do texto à procura de significados consistentes com o que já processamos e coerentes com o nos-so conhecimento. Um tipo de construção de elos coesivos tem a ver com a atri-buição de referênciaextratextual aos elementos que se repetem no texto. Guia-dos por princípios que têm por objetivo tornar o texto coerente, interpretamos, sempre que possível, esses pronomes ou repetições como recorrências, isto é. como palavras que se referem a um mesmo objeto.

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Para esse processamento, usamos também nosso conhecimento lingüís-tico, tanto sintático, como nos casos anteriores, quanto semântico, num pro-cesso que procura estabelecer relações semânticas entre diversos elementos: utilizamos o conhecimento do sistema lingüístico, quando interpretamos dois elementos do texto como sendo idênticos, ou como se referindo a um mesmo objeto, ou quando interpretamos um pronome como um substituto de uma ou-tra palavra no texto.

Também quando construímos ligações para interpretar frases incom-pletas como possuindo um elemento omitido, porque é idêntico a urn outro elemento do texto, estamos utilizando nosso conhecimento implícito para o processamento do texto. Um fator potencialmente dificultador para a constru-ção dessas ligações pode ser o maior número de elementos apagados ou elíp-ticos. que devem ser recuperados com a ajuda do contexto. O leitor eficiente pode recuperar automaticamente esses elementos, mas o leitor menos profi-ciente perde de vista, muitas vezes, tanto o que se está dizendo como de quem.

A própria distância que existe entre um pronome e seu antecedente, ou entre uma forma elíptica c seu antecedente, pode acarretar dificuldades para a construção de ligações, e conseqüentemente para o processamento do tex-to. Na oralidade, o pronome geralmente está muito próximo de seu antece-dente, sendo utilizado muitas vezes como um recurso facilitador de processa-mento. pois ele salienta, mediante a repetição, um elemento que fica separa-do do elemento que naturalmente o seguira, devido a uma intercalação. No exemplo

Sabe a cozinheira que faz esse bolo gostoso, aquele de nozes, ela só vende pra loja agora.

a função do pronome repetindo o sujeito — a cozinheira, ela — consiste em facilitar o processamento, ajudando o ouvinte a manter em mente a entidade que é ao mesmo tempo tema e sujeito gramatical, isto, é, a cozinheira. Essa repetição, típica da linguagem oral, tem o efeito de aproximar sujeito e predi-cado, desfazendo assim a separação devido à presença de uma oração adjeti-va. modificando o núcleo do sintagma nominal com a função de sujeito.

Na escrita, porém, a função do pronome anafórico não é a de recons-truir a estrutura canónica para ev itar distanciamentos que comprometeriam o processamento da fala e, portanto a compreensão. A função dos pronomes é assinalar para o leitor que a entidade à qual ele se refere trata-se de uma enti-dade que já foi referida no discurso (seu antecedenteevitando assim a repe-tição. Ora, se ao fator distância adicionamos ura fator de ambigüidade devi-do à má construção sintática, como no exemplo (5), a seguir, fica então mui lo mais difícil o processamento:

(5) Poluição atmosférica Um dos grandes problemas das cidades grandes é a gran-

de quantidade de gases, fumaça epoeira que existem misturados com o ar.

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F a poluição do ar atmosférico que causa doenças respi-ratórias, como tosse, espirros, e que afetam os olhos, que. ficam vermelhos e lacrimejantes (3q, série.)

Quando processamos o texto, vários princípios que têm a ver com a or-dem e seqüência dos diversos elementos no texto entram em jogo. Um desses princípios é o PRINCÍPIO DA DISTÂNCIA MÍNIMA, mediante o qual pro-curamos achar o antecedente mais próximo da palavra ou seqüência que está sendo processada. Pondo em ação esse princípio, então, na procura do ante-cedente mais próximo do sujeito omitido na forma verbal afetam chega-ríamos à seqüência doenças respiratórias. e teríamos a confirmação da esco-lha pela concordância verbal. Entretanto, se levamos em consideração o sig-nificado, o antecedente só poderia ser poluição do ar atmosférico. 1 al re-construção é possível porque sabemos que a poluição também provoca esses efeitos, e porque sabemos que o livro didático contém erros crassos de língua. Ria seria impossível para uma criança que não possuísse esses dados prévios.

A construção de ligações depende ainda da capacidade de identificar, além dos pronomes, outros elementos que no texto estão se referindo a urna mesma en-tidade . Novamente, o leitor precisa manter acessíveis na sua memória de trabalho os antecedentes de uma nova expressão introduzida, cuja relação semântica com o item que substitui, deve ser construída para aquele texto. O leitor é auxiliado neste processo porque os elementos que mais aparecem em formas pronominali-zadas, repetidas, ou ainda, substituídas, são elementos ligados ao tema.

Entretanto, no livro didático, nem sempre é fácil descobrir o tema. e as-sim a complexidade é aumentada devido à maneira de escrever o texto. Nes-ses textos abundam os exemplos em que a construção de elos coesivos Uca di-ficultada. No exemplo a seguir, como não está claro qual é o tópico da segun da oração, se os descobridores do Brasil ou os índios que aí já moravam, de-paramo-nos com a possibilidade de haver mais de um provável antecedente de um pronome, como é o caso da segunda e terceira ocorrências do pronome eles; assim, a informação de quem foi se chegando a quem. é irrecuperável (ela também é irrelevante, mas o fato não diminui a gravidade do descuido e do descaso evidenciado):

(6) Quando o Brasil foi descoberto, eram os índios seus mora-dores.

Eles não eram civilizados e tinham medo dos brancos. Os portugueses procuravam agradar aos índios e aos poucos eles foram se chegando junto a eles. (2~. série).

A repetição de uma mesma palavra no texto é forte indício de que am-bas palavras estão se referindo a um mesmo objeto. Como dizíamos anterior-mente, as predições que fazemos sobre estrutura são auxiliadas (confirmadas ou não) mediante informações sobre o tópico. Entretanto, o livro didático uti-liza. na introdução de conceitos, itens repetidos sem a mesma significação, levandoo aluno a fazer inferências equivocadas sobre a identidade (mais pro-

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priamente sobre correferencialiciade), uma vez que os itens não se relerem ao mesmo objeto: a primeira ocorrência do pronome eles remete ao sintagma os índios, enquanto que a segunda e terceira ocorrência retomam, necessaria-mente. num caso (não é possível inferir qual, a partir do texto) o sintagma os portugueses c, no outro, o sintagma os índios.

A esse problema devemos adicionar uma progressão temática muito pobre, já que no lugar de temas desenvolvidos parece haver listas dc afirma-ções: o último elemento de uma oração passa a ser o tópico da oração subse-qüente como nos exemplos abaixo. Nessas circunstâncias, a construção de li-gações que permitam interpretar o texto torna-se muito difícil para a criança de segunda e terceira série para quem esses textos estão dirigidos:

(7) Solo é o cháo em que pisamos, é a terra onde plantamos os vegetais, construímos nossas casas. etc.

O solo é a parte da superfície do nosso planeta c ele é sólido. A superfície da Terra passou por inúmeras transforma-

ções desde sua criação. A princípio era somente pedra, isto é. rocha primitiva. Após milhões e milhões é. como vemos hoje, formada de

terra. (3asérie)

No texto (7) acima, formado de parágrafos curtos, dc uma oração ou duas orações apenas, o tema parece ser o solo, e a palavra terra estaria sendo utilizado, no primeiro parágrafo, como sinônimo dc solo. Já no terceiro para grato, entretanto, o uso dc maiúsculas parece indicar que agora a palavra Ter-ra remete ao conceito planeta, e não mais ao conceito inicial significado pela palavra solo. No último parágrafo, a palavra terra significa parte branda do solo. O texto fica assim praticamente impenetrável, pois nem sequer é possí-vel determinar do que o autor está falando.

(8) Fazendo-se um passeio pela cidade, notamos que as ruas não são rodas iguais.

Encontramos algumas ruas planas, outras elevadas ou em ladeiras, porque a superfície da terra não é plana.

A Terra apresenta pequenas e grandes elevações que rece-bem vários nomes.

A essa forma como se apresenta a superfície da Terra cha-mamos relevo.

Montanha é uma grande elevação de terra. (2- série)

Também no texto acima, de diferente autoria e escrito para uma série diferente, a repetição do item lexical terra, com apenas a diferença dc maiús-cula e minúscula marcando as diferenças quanto às entidades referidas, pode levar o leitor de segunda e terceira séries a fazer inferências que dificultam a compreensão. Os conceitos Terra no sentido de planeta, terra no sentido de parte sólida da superfície do planeta e terra no sentido de pane branda do so-lo. utilizados indiscriminadamente em textos que justamente estariam intro-

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duzindo esses conceitos, são, no mínimo, empecilhos para o processamento necessário para reconstruir as ligações, uma vez que também fica difícil de-terminar qual o assunto, ou tema. do texto.

RESUMO

Vimos, neste capítulo, algumas noções elementares sobre o processa-mento do texto escrito, isto é, o uso de nosso conhecimento lingüístico, tanto le-xical (reconhecimento instantâneo de palavras) quanto sintático (fatiamento) e sintático-semântico (construção de elos coesivos) para compreender o texto.

Os conceitos teóricos sobre o processamento, ainda que simplificados, são áridos, porem necessários para tomar decisões informadas em relação à metodologia de ensino de leitura e à seleção e análise de textos. No início do aprendizado da leitura, o processamento necessário para juntar as palavras em grupos que representem estruturas significativas da linguagem pode so-brecarregar a capacidade da criança e criar obstáculos para a compreensão. Daí que o professor deva conhecer quais são as dificuldades reais, naturais, no momento de aprendizagem em que se encontra a criança, e quais são as di-ficuldades artificiais, conseqüência da péssima redação dos livros didáticos. Mediante esse conhecimento, o professor poderá ajudar o aluno, facilitando o processamento e selecionando apenas textos bem redigidos.

Faz parte do ensino de leitura nesses estágios iniciais, ajudara criança a construir o sentido do texto, não só evitando os piores exemplos do livro didá-tico, mas também, e principalmente, pondo o ensino da forma, do código, no seu devido lugar enquanto instrumento para a leitura, e pondo o ensino da lei-tura, no bom sentido da palavra, no seu devido lugar de foco do trabalho com o texto.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

I Aspectos sobre o processamento de leituxa que trazem informações relevantes para o ensino podem sei encontrados cm Hucy < 1908), Gibsone Levin (1975), Kato{ 1985). Uma críti-ca aos modelos lineares que não consideram o entrelace dos diversos níveis de processamento, pode ser encontrada em Kleiman (1984, 1989».

2. Para aprofundara discussão sobre modelos de compreensão, pode-se consultar Singer & Ruddell (1976). que organizaram uma coletânea com mais de quarenta trabalhos sobre os as-pectos psicológicos da leitura. Já Miller (1970) traia mais especificamente da memória de traba-lho envolvida na compreesão. Goodman (já em 1967) apresenta um modelo da leitura corno um jogo dc adivinhações, inserido numa discussão sobre o erro como sinal dc compreensão na lei-tura cm voz alta. Smith (1989) apresenta um modelo psicolingdístico da leitura que discute cm profundidade vários dos conceitos ligados ao processamento aqui introduzidos.

3. Uma coletânea dc textos baseados numa concepção interativa do processamento cn-contra-sc em Spiro. Ilrucc & Brewer f 1980). A introdução nesse volume é diretamente relevan-te a essa concepção da leitura.

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4. A noç3o de gramática implícita é discutida em Perini i 1985). 5. Sobre questões lidadas às diferenças entre fala e escrita na perspectiva utilizada no ca-

pítulo. ver Chafe & Daniclewicz (1987). 6. Os conceitos de coesão e de coerência são discutidos em Koch ( I989) c Koch & Tra-

vaglia ( 1989).

CHAFE, W & DANIELEWICZ. J. "Properties of Spoken and Written Language", in HORO-WITZ. R. & SAMUELS. S.J. (orgs) Comprehending Ora! and Written Language. New York: Academic Press, 1987.

GIBSON. E. J. A LEVIN H. The Psychology of Reading. Cambridge, Mass.: The MIT Press. 1975.

GOODMAN. K.S. "Reading: A Psycholinguist* Guessing Game", in SINGER. H. & RUD DELL. R. B. (orgs.) Theoretical Models and Processa of Reading. Newark, Del.: In-ternational Reading Association. 1976.

HUEY. E.B. The Psychology and Pedagogy of Reading. New York: MacMillan. 1902 KATO. M. O Aprendizado de leitura. S.P.: Martins Fontes, 1985.

KLEIMAN. A.B. "Modelos teóricos: fundamentos para o exame da relação teoria e prática na área de leitura7'. Trabalhos de Lingüística Aplicada3. 1984. Também ein KI .LLMAN, A. B. Leitura: ensino e. pesquisa. SP: Pontes Editores. 19sq.

KOCH. I. G. V Coesão textual. S.P.: Contexto. 1989.

KOCH. I G V. & TRAVAGL1A. L. C. Texto e coerência. S.P.: Cortez Editora. 1989. MTLI .ER. G. A. The Psychology of Communication. Middlesex: Penguin Books Ltd., 1970. PERINI. M. A. Para urna nova gramática do Português. S.P.; Editora Atiça. 1985. SINGER. H. & RLDDELL, RB. Theoretical Models and Processes of Reading. Newark, Del :

International Reading Association, 1976. SMITI I. F. Compreendendo a leitura Uma análisepskolmgiUstica da leitura e do aprender a

1er. Porto Alegre: Artes Médicas. 1989. SPIRO. R. J.. BRUCE B. C. & BREWER. W. I Theorem al Issues in Reading Comprehension.

I lillsdale. N.J.: Lawrence Earlhaum Asso. 1980

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CAPÍTULO 4 O ENSINO DA LEITURA: A RELAÇÃO ENTRE MODELO E

APRENDIZAGEM

A instrução geralmente precede o desenvolvimento. Lev Vygotsky

4.1 ESTRATÉGIAS DE LEITURA

Levando em conta as considerações tecidas no Capítulo I sobre a leitu-ra enquanto ato individual, unia questão bastante pertinente em relação ao en sino da leitura diz respeito à viabilidade desse ensino. Em outras palavras, não seriam as tentativas de ensino da leitura incoerentes com a natureza da atividade, uma vez que a leitura é um ato individual de construção de signifi-cado num contexto que se configura mediante a interação entre autor e leitor, e que, portanto, será diferente, para cada leitor, dependendo de seus conheci-mentos, interesses e objetivos do momento?

De fato. essa tentativa seria incoerente se o ensino de leitura seguisse a prática escolar, tanto do professor como do livro didático, que privilegia uma leitura, a do professor, como a única leitura correta, autorizada. Essa orienta-ção fica evidente na divisão que o livro didático faz entre "perguntas de com-preensão" que. como apontamos anteriormente, na maior parte são perguntas sobre informação que aparece explicitamente 110 texto, e a "resposta pes-soal", que parece ser o único momento, lambem controlado pelo autor do li-vro didático ou pelo professor, cm que se prevê que o aluno chegue a uma opi-nião própria, isto é, se coloque como sujeito da leitura.

A tentativa NÃO é incoerente, entretanto, se o ensino de leitura for entendido como o ensino de ESTRATÉGIAS DE LEITURA, por uma parte, c como o desenvolvimento das habilidades lingüísticas que são características do bom leitor, por outra. Tanto estratégias como habilidades são necessárias, porém não suficientes, para realizar o ato de ler.

Quando falamos de ESTRATÉGIAS DE LEITURA, estamos falando de operações regulares para abordar o texto. Essas estratégias podem ser inferidas a partir da compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir do comportamento verbal e não verbal do leitor, isto é, do tipo de respostas que ele dá a perguntas sobre o texto, dos resumos que ele faz, de suas paráfrases, como também da maneira com que ele manipula o objeto: se sublinha, se apenas folheia sem se deter em parte alguma, se passa os olhos rapidamente e espera a próxima atividade começar, se relê.

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As estratégias do leitor são classificadas em ESTRATÉGIAS COGNI-TIVAS e ESTRATÉGIAS MHTACOGNTTIVAS. As ESTRATÉGIAS MKTACOGNITIVAS seriam aquelas operações (nào regras), realizadas com algum objetivo cm mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação. Assim, se con-cordarmos com autores que dizem que as estratégias metacognitivas da leitura são, primeiro, autoavaliar constantemente a própria compreensão, e segundo, determinar um objetivo para a leitura, devemos entender que o leitor que tem controle consciente sobre essas duas operações saberá dizer quando ele não está entendendo um texto e saberá dizer para que ele está lendo um texto.

As atividades em que o leitor poderá se engajar quando ele não entender o texto são diversificadas c flexíveis, c constituem o indício do funcionamento de uma estratégia para conseguir mais eficiência na leitura: por exemplo, se o leitor perceber que não está entendendo, ele poderá voltar para trás e reler, ou poderá procurar o significado de uma palavra-chave que recorre 110 texto, ou poderá lazer um resumo do que leu, ou procurar um exemplo de um conceito. Enfim, dependendo do que ele detectai' como cau-sa. ele adotará diversas medidas para resolver o problema. Para a realização desses diversos comportamentos faz-se primeiro necessário que ele esteja ciente de sua falha na compreensão.

As ESTRATÉGIAS COGNITIVAS da leitura seriam aquelas opera-ções inconscientes do leitor, no sentido de não ler chegado ainda ao nível consciente, que ele realiza para atingir algum objetivo de leitura. Por exem-plo, o fatiamento sintático é uma operação necessária para a leitura, que o lei-tor realiza, ou não. rápida ou cuidadosamente, isto é, de diversas maneiras, dependendo das necessidades momentâneas, e que provavelmente não pode-rá descrever. Como apontávamos no capítulo anterior, o conhecimento utili-zado para realizar a operação é também um conhecimento implícito, não ver-balizado e que seria quase que impossível de verbalizar para a grande maio-ria dos falantes.

O processamento, que consiste, em grande parte, em procedimentos para os quais utilizamos conhecimento sobre o qual não temos reflexão nem controle consciente (esses procedimentos são de fato chamados também de automatismos da leitura) é. portanto, realizado estrategicamente e não atra-vés de regras.

Dentro dessa visão do processo de leitura, isto c, como um conjunto de estratégias cognitivas e metacognitivas de abordagem do texto, o ensino es-tratégico de leitura consistiria, por um lado, na modelagem de estratégicas metacognitivas, e, por outro, no desenvolvi mento de habilidades verbais sub-jacentes aos automatismos das estratégias cognitivas. Este último tipo de ins-trução seria realizado através de análise textual característica da desautoma-tização do processo.

Será essa concepção do ensino que passaremos a desenvolver: o ensi-no de estratégias metacognitivas será discutido neste capítulo, e o ensino de habilidades 110 próximo.

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4.2 MODELANDO ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS

A característica mais saliente do leitor proficiente é sua flexibilidade na leitura. Ele nào tem apenas um procedimento para chegar aonde ele quer, ele tem vários possíveis, c se um náo der certo, outros serão ensaiados. For is-so. o ensino e modelagem de estratégias de leitura não consiste em modelar um ou dois procedimentos, mas em tentar reproduzir as condições que dão a esse leitor proficiente essa flexibilidade e independência, indicativas de uma riqueza de recursos disponíveis.

O leitor experiente tem duas características básicas que tomam a sua leitura uma atividade consciente, reflexiva e intencional: primeiro, ele lê porque tem algum objetivo em mente, isto é, sua leitura é realizada saben-do para que está lendo, e, segundo, ele compreende o que lê, o que seus olhos percebem seletivamente é interpretado, recorrendo a diversos proce-dimentos para tornar o texto inteligível quando não consegue compreender.

Consideramos que a segunda estratégia, chamada de automonitoração da compreensão, será desenvolvida naturalmente, uma vez que o leitor tenha objetivos para sua leitura. Nesse caso, e só nele, o leitor ficará ciente de um pro-blema de compreensão. j>orque passar o olho pela página não o levará a atingir seu objetivo. Passaremos a discutir, então, ações pedagógicas que poderiam mostrar ao aluno a importância de ler com um objetivo e que poderiam suprir, num primeiro momento, a ausência de objetivos definidos pelo próprio leitor.

Que diferença faz para a atitude do leitor a posse de um objetivo pessoal? Em primeiro lugar, o objetivo, que nào precisa ser altamente especifi-

cado. determina escolhas pessoais, daí que todo programa de leitura deva ter um componente livre, em que o aluno vai à biblioteca da escola e lê o que qui-ser. sem cobrança de nenhuma espécie.

Em segundo lugar, o leitor proficiente faz escolhas baseando-se em predições quanto ao conteúdo do livro. Essas predições estão apoiadas no co-nhecimento prévio, tanto sobre o assunto (conhecimento enciclopédico), co-mo sobre o autor, a época da obra (conhecimento social, cultural, pragmáti-co), o gênero (conhecimento textual). Daí ser necessário que todo programa de leitura permita ao aluno entrarem contato com um universo textual amplo e diversificado. Devemos lembrar que o tipo de texto já coloca restrições quanto aos nossos possíveis objetivos: fica mais difícil, por exemplo, se meu objetivo for saber o que aconteceu no mundo, pensar na página dos anúncios classificados como o texto que melhor me permitirá alcançar esse objetivo.

Alguns objetivos que o leitor proficiente se auto-impõe podem ser imi-tados diretamente no contexto escolar: a leitura em busca de informações que nos interessam pode ser a base de uma atividade relevante, que vai além do va-go "pesquisar sobre tal ou qual assunto", bastante comum no contexto escolar.

Conhecemos algumas experiências com atividades visando a ensinar o aluno, mediante o modelo, a ler com objetivos pré-dcicrminados. Um objetivo pré-definido pelo professor numa 6a série consistia na leitura de um relatório so-bre a gestão de um ex-prefeito da cidade, a fim de se preparar uma entrevista com o mesmoex-prefeito que havia encomendado a elaboração do relatório. O obje-

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rivo dc outra atividade, numa 2a série, consistiu em descobrir, a partir de uma fo-to das personagens de uma estória já lida (Pedrinho esqueleto, de Stella Carr), quem é quem no livro, o que levou as crianças a realizar uma atividade lúdica de investigação que envolvia a leitura e releitura cada vez mais minuciosa do livro, e a realização de inferências cada vez mais elaboradas. No primeiro caso, as crianças leram e resumiram textos informativos com uma finalidade que extra-polava a mera leitura desse tipo de texto; no segundo caso, as crianças procura-ram detalhes para sustentar uma tese como parte de uma atividade lúdica que também permitia extrapolar o objetivo do professor de leitura. Esse objetivo em-bora fosse relevante para o professor pode não parecer relevante para a criança.

Quando os professores das demais matérias se envolvem com o ensino de leitura, como deveriam fazê-lo, as oportunidades de criar objetivos signifi-cativos para a leitura de diversos textos se multiplicam. As oportunidades de di-versificação e ampliação do universo textual do aluno são ilimitadas, desde que a atividade de leitura seja deslocada dc uma atividade meramente escolar, sem outra justificativa a não ser cumprir programa, até uma atividade para cujo de-senvolvimento c realização a leitura sirva como instrumento importante.

Como apontamos anteriormente, o leitor eficiente faz predições basea-das no seu conhecimento dc mundo. xNa aula de leitura é possível criar condi-ções para o aluno fazer predições, orientado pelo professor, que além dc per-mitir-lhe utilizar seu próprio conhecimento, supre eventuais problemas de leitura do aluno, construindo suportes para o enriquecimento dessas predi-ções e mobilizando seu maior conhecimento sobre o assunto.

Analisaremos, a seguir, duas situações de leitura cm que o professor, ou o leitor mais experiente, orienta o aluno na definição de objetivos. No pri-meiro exemplo, veremos como o conhecimento do texto publicitário e a ati-vação ou mobilização desse conhecimento antes e durante a leitura podem enriquecer a reflexão sobre a própria linguagem; no segundo, mostraremos como o conhecimento sobre o assunto e a ativação desse conhecimento po-dem preparar para a compreensão de uma argumentação complexa.

D Um exemplo fundamentado na exploração do conhecimento sobre o

texto publicitário.

O aluno que lê pela primeira vez uma propaganda pode deixar de perce-ber a função de certos aspectos lingüísticos, porque seu conhecimento sobre a intencionalidade desse texto não é mobilizado para a tarefa de leitura. En-tretanto, se o aluno for orientado a pensar no contexto em que essa propaganda foi produzida, qual era o leitor previsto, e qual a intenção que está atrás de textos desse tipo, então a leitura deixa de ser uma análise de palavras para passar a ser uma conscientização sobre os usos (e abusos) da linguagem mediante a leitura.

Consideremos o texto a seguir, em que se combinam eficientemente a linguagem não verbal e a linguagem verbal. Ambas constroem explicitamente uma imagem de um leite puro, seguro, nutritivo (adjetivos estes de fato usados no texto), e natural (esta através das associações que a figura do animal traz):

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w w Obrigado por não ter aditivos,

Caixinha. E natural que você petisc que o

Leite Longa Vida tenha alguma coi-sa. Afinal, os de saquinho duram 1 ou 2 dias e o leite Leite Longa Vida dura meses. Isto porque ele não tem bactérias.

C o m o não tem bactérias o Leite Longa Vida não precisa de aditivos nem conservante algum. Por não conter conservantes . Lei-te Longa Vida, uma vez aberto, precisa ser colocado na geladeira. Não porque acabou a mágica, mas porque lá dentro da caixinha só tem leite puro, seguro e nutritivo.

Você não deve desconfiar quando um leite é tudo isso.

Você deve desconfiar quando um leite não c nada disso.

Pensando bem, você nem pre-cisa agradecer o l ato do Leite Lon-ga Vida fazer tudo isso por você.

Porque, no fundo, isso não é mais que uma obrigação do Leite Longa Vida com todos aqueles que conf iam no leite da caixinha.

Beba Leite. Este.

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Ao ajudarmos o aluno a pensar na intenção do autor, ou de quem enco-mendou o texto, estaremos analisando o texto na procura das marcas lingüís-ticas dessa intencionalidade. Nessa perspectiva, podemos perguntar, por exemplo, por que o autor usa você em vez de vocês, este último também ade-quado do ponto de vista formal. Uma razão bastante plausível, c comprensí-vel para o aluno, já que no discurso em sala de aula ele vive a diferença entre o você e o vocês do professor, está no fato do uso de você permitir a constru-ção de uma relação mais próxima, mais íntima, própria da díade, muito mais difícil de alcançar com um grupo, que o uso do pronome plural vocês impli-caria. O tom intimista é reforçado pela forma do monólogo, que sugere e evo-ca o diálogo: o texto, excetuando o segundo parágrafo, parece consistir de respostas e objeções implícitas de um interlocutor, o leitor, que também é consumidor potencial:

E natural que você pense que o Leite Longa Vida... Vocc não deve desconfiar quando um leite é tudo isso. Você deve desconfiar quando um leite não é nada disso. Pensando bem, você nem precisa agradecer o fato

Existem, no texto, outros aspectos lingüísticos que poderiam ser refle-xos da intencionalidade. Por exemplo, a reiteração excessiva de um elemen-to textual, que constitui a IIIPERLEXICALLZAÇÃO. Um exemplo de hiper-lexicalização é o uso do pronome dêitico isso. O dcitico não tem, por defini-ção, um significado independente do contexto em que funciona. Daí que. de-pendendo desse contexto, ele possa significar muitas coisas diferentes para diferentes pessoas. Como o autor constrói uma estrutura quase que dialoga-da. o pronome isso pode, além da referência interna, sugerir uma referência fora do texto, ligando-se aos elementos da falta desse interlocutor imaginá-rio. Assim, quando o antecedente está no texto, a palavra isso no enunciado

Você não deve desconfiar quando um leite é tudo isso

remete ao parágrafo anterior (isto c. não tem bactérias, não precisa de aditivos, nem conservantes, quando aberto precisa ser colocado na geladeira (?). é leite puro. seguro e nutritivo). Também o pronome disso que encontramos em

VOÍ ê deve desconfiar quando um leite não é nada disso

teria o mesmo antecedente. Já em

Você nem precisa agradecer o Jato do Leite Longa Vida fazer tu-do isso por você

não está claro, do ponto de vista formal, qual poderia ser o antecedente, uma vez que não foram apresentadas açòes relativas ao produto. Devido ao estilo dialogado, seria razoável supor, entretanto, uma ligação que remete ao mun-

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do do leitor, o que tomaria a expressão muito mais vaga. pois seriam múlti-plos os possíveis referentes. Assim o autor sugere, sem precisar explicitar, re-forçando ao mesmo tempo a proximidade com o leiotr. Por último, a quarta ocorrência do pronome, em

Porque, no fundo, isso não é mais que uma obrigação...

deixa também em aberto qual seria o significado, uma vez que o antecedente desse pronome parece s e r f a ze r tudo isso, por sua vez vago.

Como ajjontamos. a hiperlexicalização, isto é, a iteração de um mesmo item lexical, é muitas vezes um índice de relevância tencionada pelo autor. O item assim sobreiLsado fica mais saliente, adquire uma importância maior relativa-mente aos outros itens. Fssc é também o caso do pronome você, que pela repetição salienta a entidade a quem ele se refere, o leitor ou consumidor, obscu-recendo assim o fato de que. dado o tifx> de texto, o mais importante é o produto, cuja imagem positiva deve ser vendida ao leitor. O fenômeno de hiperlexica-lização também faz com que o uso dos verbos desconfiar e confiar como possí-veis estados mentais do leitor-consumidor destaque os estados significados por esses verbos como preocupações importantes do autor.

Note-se que a análise acima não diz respeito ao efeito produzido no leitor. Kste p*xle ou não gostar da propaganda, ou mesmo aderir ou não ao uso desse tipo de leite. Isto é. leitores diferentes, em diversas leituras, poderão divergir na interpretação das pistas linguísticas. Por exemplo, a vagueza referencial 110 uso dos dêiticos pode ser interpretada por alguns como mecanismo para contornar o problema da vagueza conceituai e facnial em relação ao produto, ou pode ser interpretada por outros como o mecanismo que melhor capta a multiplicidade de imagens que o produto quer produzir, uma vez que sua audiência está formada por múltiplos e diferentes consumidores: para uns pode ser abuso para tirar vantagem, para outros será sinal de genialidade. lembramos, em relação a essa questão, as palavras de Paulo Freire: O educador, num processo de conscienti-zação (ou não), como homem, tem o direito a suas opções. O que não tem é o direito de impô-las.

Nessa perspectiva é que podemos dizer que, para o desenvolvimento do leitor, e para que haja uma possibilidade de interação com o autor, é cnicial que a divergência na interpretação esteja fundamentada na convergência que se fundamenta, por sua vez. não em uma leitura autorizada, mas na análise crítica dos elementos da língua que o autor utiliza para conseguir o que ele tenciona conseguir.

2) Um exemplo baseado no conhecimento do assunto.

O segundo exemplo a ser discutido baseia-se na elaboração de um ob-jetivo de verificação de hipóteses de leitura (isto é, exigindo leitura tipo son-dagem para verificar se o que procuramos está no texto), após um trabalho de sala de aula que promove condições para predizer o tratamento e organização

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do tema do texto, facilitando assim essa primeira leitura ao mesmo tempo que um comportamento do leitor experiente é modelado.

Fazer predições baseadas no conhecimento prévio, isto é, adivinhar, informados pelo conhecimento (procedimento que chamamos de formulação de hipóteses de leitura), constitui um procedimento eficaz de abordagem do texto desde os primeiros momentos de formação do leitor até estágios mais avançados, e tem o intuito de construir a autoconfiança do aluno em suas es-tratégias para resolver problemas na leitura. As predições não precisam ficar reduzidas apenas àquelas baseadas cm conhecimentos mais fechados, como as hipóteses a partir do conhecimento sobre o gênero textual no exemplo an-terior, mas podem ser sobre questões muito mais abertas, como por exemplo, o assunto. Como o professor já conhece o texto, ele pode servir de orientador para as predições sobre o desenvolvimento do tema, fornecendo ao aluno aquelas pistas necessárias para a predição. F.ste enfoque, muito comum nos cursos de leitura em língua estrangeira, será exemplificado a seguir, median-te o relato de uma experiência de leitura com adultos.

Antes, porém, uma palavra sobre a viabilidade desse ripo de atividade no ensino de leitura nas primeiras etapas de alfabetização. Relatos de expe-riências de ensino de leitura nas primeiras duas séries mostram que o traba-lho de elaboração de hipóteses sobre uma estória, a partir das ilustrações do texto, é um trabalho que engaja o interesse das crianças: a tarefa assume ca-racterísticas lúdicas, com as crianças defendendo hipóteses divergentes e construindo argumentações sólidas para defender as suas, especialmente porque muitas vezes as ilustrações não encaixam nas hipóteses em curso, promovendo assim condições para a discussão polêmica.

Como apontamos anteriormente, para a elaboração de uma hipótese de leitura é necessário ativar o conhecimento prévio do leitor sobre o assunto. Quanto mais o leitor souber sobre o assunto, mais seguras serão suas predi-ções. Assim, embora o desenvolvimento de um tema específico, como polui-ção atmosférica, por exemplo, não se ja o objetivo da aula de leitura, uma vez que o texto interessa mais enquanto representativo desse tipo, c de qualquer modo aconselhável abordar uma mesma relevante temática de diversos pon-tos de vista, para assim o leitor poder construir uma rede de conhecimento, ou família de conceitos1 que lhe permita aprender e fazer mais e melhores predi-ções sobre o assunto.

O texto a seguir, escolhido para os leitores fazerem predições, traz uma maneira original e criativa de lidar com uma questão altamente polêmica. Daí que seja surpreendente a capacidade dos leitores para predizer não só a posi-ção do autor, facilmente inferível para quem conhece outros trabalhos do mesmo, mas também a maneira como ele desenvolveu a questão para apre-sentar a sua posição.

i. Em alguns casos, quando se irara de conhecimento episódico, como por exemplo, conheci-mento genérico sobre a festa de aniversario, sobre uma viagem aérea, as estruturas de conhe-cimento são chamadas de esquemas.

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Solicitou-se aos alunos a leitura do trecho a seguir, que transcrevemos tal qual apresentado, seguido dos dados do contexto: autor, jornal de que foi ex-traído, data em que foi publicado (o texto completo, que foi lido pelos alunos após a atividade de predição e adivinhação encontra-se no fim deste capítulo):

(2) TENDÊNCIAS/DEBATES

ASSASSINO EM NOME DO POVO Dalmo de Abreu Dallari

Não existe pena de morte sem carrasco. Assim como há pessoas que contratam um matador profis-

sional para matar alguém, o Estado, em nome do povo, contrata um matador profissional para a execução da pena de morte: é o carrasco. Do ponto de vista da legislação brasileira, em caso de homicídio contratado, tanto é considerado criminoso aquele que executou diretamente a ordem, matando uma pessoa, como o contratante, que pagou para que outro matasse. Ambos são as-sassinos; o que matou e o que mandou matar.

Mas desde que o povo. por ampla maioria, decida assumir a condição de assassino, encarregando o Estado de contratar o executor, será necessário observaras regras constitucionais re-lativas á execução desse serviço público. E aqui surgem alguns problemas interessantes, que o povo brasileiro e as autoridades governamentais deverão considerar.

Folha de São Paulo, 15/5/1991

A formulação de hipóteses foi orientada chamando a atenção do leitor para a descrição do trabalho do carrasco como a execução de um serviço pú-blico (para acompanhar melhor a predição, transcrevemos o texto completo no fim do capítulo). Uma vez que os leitores fizeram a inferência de que nes-se caso, o executor do serviço seria um servidor público, solicitou-se aos lei-tores que pensassem quais seriam os problemas interessantes que o autor anunciava em relação a essa questão.

Apesar de o texto dar um tratamento singular, extremamente original ao tema. os leitores conseguiram elaborar hipóteses sobre o desenvolvimen-to da questão bastante próximas da argumentação do autor. Assim, uma vez que a figura do carrasco foi concebida como a de um servidor público, ques-tões relativas ao regime de trabalho, à maneira de selecionar os candidatos, (se por concurso ou designação), aos conhecimentos e experiências exigidos do candidato, como seriam eles aferidos, foram todas levantadas pelos leito-res. Outro aspectos relativos à vida funcional foram também discutidos, co-mo carga horária desse funcionário, tipo de remuneração, gozo de férias; en-fim. a tese original do autor foi levada à sua conclusão lógica mediante uma paródia de uma situação conhecida. Nas duas aulas em que o texto foi lido, a

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ironia do autor pareceu ficar traduzida em muitos risos nervosos dos alunos, quando os argumentos eram levados às suas últimas conseqüências.

Se compararmos essas predições com o tratamento dado pelo autor ao texto, podemos comprovar que embora haja diferenças entre as predições do lei-tor e o desenvol vimento do autor, a exploração, até às últimas conseqüências, de ter que contratar uma assassino para realizar um serviço público é, de fato, cen-tral em ambos. Assim, a partir do quarto parágrafo, cm que se põe em discussão a questão da competência estadual ou federal para a execução da pena de morte, os parágrafos desenvolvem as conseqüências de tal decisão, abordando primei-ro as conseqüências se o cargo for efetivo (parágrafos 6-8) e depois, apresentan do as conseqüências quanto à forma de emprego se o cargo for por comissão. O contraste é marcado pela conjunção contrastiva mas do paragrafo 9.

As diversas conseqüências são apresentadas como problemas, dificul-dades ou riscos decorrentes da situação: um problema complicado será a no-meação ou contratação do carrasco (parágrafo 5). será indispensável a rea-lização de concurso público (parágrafo 6). poderá haver certa dificuldade da fixação das provas e dos critérios de avaliação (parágrafo 7). um pequeno complicador será a preparação dos candidatos... (parágrafo 8). haverá o ris co de nepotismo ou da utilização do cargo para a colocação de cabos eleito-rais (parágrafo 9), outro problema importante é o regime de trabalho do car-rasco. pois existe um grande risco de se criar um marajá (paragrafo 10).

O sarcarmo das soluções ou resoluções, entretanto, reflete a ironia em que o tema global é tratado, contrastando com a seriedade na descrição do problema Sobre o problema da competência, no parágrafo 4, vemos que

... quem acredita que o criminoso é um calculista, que primeiro analisa as penas possíveis para depois resolver se vai ou não praticar o crime, deverá admitir que. por hipótese, haverá os que decidirão praticar homicídios no Piauí, enquanto que ou-tros irão preferir São Paulo ou o Rio Grande do Sul. por acha-rem melhor a forca, a cadeira elétrica ou a câmara de gás.

Sobre a possibilidade de candidatos de notório saber virem a substituir os concursados, no parágrafo 6. o autor afirma que

F bem verdade que o presidente da República ou os governadores poderão invocar a notória especialização para dispensa do con-curso. Nesse caso os assassinos de líderes rurais, os justiceiros e os integrantes de esquadrões da morte serão fortes candidatos.

Sobre a preparação dos candidatos, no parágrafo 8, somos informados de que

... todos logo perceberão a necessidade de estudar para o con-curso e. certamente, os mais estudiosos passarão noites em cla-ro (ou será melhor dizer "no escuro" ?) revendo a matéria e re-

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petindo exercícios para fazerem bonito perante a comissão exa-minadora.

Quanto aos riscos do nepotismo e a incompetência, no parágrafo 9. o autor mantém que

Isso cria a possibilidade de carrascos incompetentes, que pode-rão fazer o condenado cair da forca e sofrer alguma fratura por-que o nó estava mal dado ou que acabarão misturando a ligação da cadeira elétrica com a do ar condicionado ou dos computa-dores. com resultados imprevisíveis.

A parodia continua em todas as propostas culminando no parágrafo 11, em que o defensor da pena de morte não é mais ridicularizado, mas novamen-te acusado, desta vez de assassino hipócrita: E muitos empreiteiros da execu-ção continuarão a dizer-se cristãos e irão à missa, participando compungidos da santa comunhão exibindo solenemente a celebração de sua hipocrisia.

A criatividade e riqueza de elaboração dos argumentos utilizados pelo au-tor só ptxierão ser percebidas durante a leitura, mas antes de o leitor iniciar a lei-tura do texto, ele já terá uma idéia aproximada da linha argumentativa do autor.

De fato. tal idéia é bem mais detalhada do que um leitor teria, numa si-tuação de leitura na vida real. antes de começar a leitura do texto. O maior de-talhamento deve-se ao lato de que atividades como a demonstrada acima são utilizadas para orientar alunos mediante o modelo idealizado da atividade. O objetivo é a elaboração de uma espécie de mapa textual (que os próprios alunos elaborariam junto aos seus colegas, orientados por um leitor experiente), o que facilitaria a entrada no texto. Esse mapa faria com que as dificuldades na leitura desse tipo de texto fossem reduzidas: palavras-chaves (e. mais importante, os conceitos que elas represeniam) já fazem parte da discussão inicial e são escritas pelo professora medida cm que elaboram esse mapa. No exemplo citado houve predições sobre os temas, subtemas. a organização dos mesmos e até sobre o tipo de argumento utilizado pelo autor.

Note-se a diferença entre a atividade descrita acima e a discussão motivadora, passo comum em aula de leitura, tal como foi descrita no Capítulo 2. Esta última reduz-se a uma discussão, provavelmente polêmica, sobre o tema, isto é. a pena de morte. Esse tipo de motivação é genérica demais para o objetivo facilitador de entrada no texto. Após a elaboração de hipóteses, entretando. e de posse do mapa textual resultante desse trabalho, a primeira leitura do texto fica muito mais fácil, até para o aluno com problemas de leitura, que pode assim começar a ler com um objetivo específico, como o exemplificado aqui. ou seja, o de confirmar ou descontinuar suas hipóteses.

Apesar de que uma tarefa de leitura para confirmar uma predição pareceria envolver apenas uma leitura ao pé da letra, consideramos que ela não rouba à atividade de leitura aquilo que lhe é essencial, constitutivo, a sal^er: a percepção da intenção do autor do texto, própria de uma atividade comunicativa. Isto porque, para a atividade ser bem sucedida, o leitor precisa

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conhecer qual a posição do autor em relação à polêmica questão tratada no texto. Esta é fornecida tanto pelo conhecimento prévio que temos sobre o autor, como pelos parágrafos iniciais fornecidos ao aluno, que marcam essa posição inequivocamente contra a pena de morte pela designação de povo as-sassino, matador profissional, contratante, pat a os que a defendem.

O aluno pode não perceber como esse léxico está marcando uma atitude (de fato, numa das turmas houve vários leitores que não conseguiram por si mesmos chegar a inferir essa atitude), mas novamente o papel do adulto ou do leitor mais experiente consiste em promover as condições para que ele consiga fazê-lo independentemente. Essa atividade é coerente com a observação de que quando o aluno ainda não é proficiente na leitura, é na interação que se dá a compreensão.

Também a atividade não se reduz a uma leitura ao pé da letra, porque a argumentação do autor está baseada numa premissa implícita, anterior aos argumentos apresentados, inferível seja mediante a ativação do conhecimen-to prévio sobre o autor e seu contexto, seja através da leitura dos parágrafos iniciais. Essa premissa é a seguinte: a pena de morte é indefensável do ponto de vista ético ou moral.

Essa foi, dc fato. uma inferência bem mais difícil para um dos grupos de leitores, que ficaram incomodados com a paródia frente a um assunto tão sério, que deveria ser tratado, segundo eles, primeiramente do ponto de vista ético. De fato. os risos nervosos de muitos alunos eram expressão desse des-conforto, conseqüência da incapacidade de construir um elo inferencial cru ciai para a compreensão: se o carrasco é um assassino, o povo que lhe permi-te executar seu serv iço, o mandante, é um povo assassino, e o serviço, isto é. a pena de morte, um crime e. embora legal, indefensável do ponto de vista éti-co e moral.

Tal dificuldade explica-se pela complexidade na inferência da premis-sa, que depende da percepção anterior do argumento analógico na compara-ção da pena dc morte com assassinato e pela pouca familiaridade do leitor com uma argumentação em que uma posição que é considerada por eles ain-da polêmica c considerada pelo autor como um dado. uma verdade, um fato que não se discute, em resumo, uma premissa anterior.

Quando questões como essas surgem durante a ati v idade de elaboração de hipóteses, como dc lato surgem, então não existe o perigo de a tarefa resul-tar cm mais uma atividade mecânica de abordagem do texto, apesar de a ati-vidade apresentar uma visão parcial da leitura, c dc modelar uma atividade que exagera ou talvez idealiza a construção de hipóteses pelo leitor experien-te. Este último, após uma primeira hipótese baseada no seu conhecimento prévio, que muitas vezes também lhe orienta no sentido de optar ou não pela leitura daquele texto, não faz predições nesse nível de detalhamento antes de começar a ler, mas prediz em função do que está lendo, à medida em que ele vai lendo, mudando suas predições também no decorrer da leitura.

Tão logo o leitor adquira confiança na sua capacidade de leitura, os ob-jetivos podem então passar a ser aqueles pelos quais o professor geralmente começa: ler para "fazer uma pesquisa", sendo que as perguntas de pesquisa

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devem ser claras, específicas, e devem ainda ser fornecidas; do contrário, so-licitar ao aluno de 5" série (e ao aluno de 3" e 4a séries também) que faça uma pesquisa sobre "a nutrição" só pode tra/.er os resultados que traz. de o aluno geralmente copiar o trecho correspondente ao assunto na enciclopédia, sem que a compreensão tenha mediado essa cópia.

RESUMO

O ensino da leitura é um emprendimento de risco se não estiver funda-mentado numa concepção teórica firme sobre os aspectos cognitivos envol-vidos na compreensão de texto. I'al ensino pode facilmente desemhocar na exigência de mera reprodução das vozes de outros leitores, mais experientes ou mais poderosos do que o aluno.

Uma concepção clara do processo cognitivo, entretanto, permite reprodu-zir em sala de aula, mediante tarefas que imitam o comportamento de leitor pro-ficiente, aquelas estratégias que caracterizam o comportamento reflexi vo. de ní-vel consciente do leitor. Tal imitação, acreditamos, é um passo anterior, neces-sário ao desenvolvimento dessas estratégias 110 aluno. Tal imitação, ainda, cons-titui. se bem elaborada, um suporte temporário, a ser retirado mais tarde, para re-criar o comportamento do leitor experiente. Ao recriá-lo, o professor mostra pa-ra o aluno que o texto não precisa ser necessariamente impenetrável, muito em bora sua experiência inicial com o texto escrito tenha criado essa expectativa.

A nossa proposta nesse sentido consiste no modclamento de estraté-gias metacogniti vas. mediante a formulação de objetivos prévios à leitura e à elaboração de predições sobie o texto. O aspecto mais importante dessa pro-posta é que ela propõe atividades, baseadas na convergência na leitura, até que ele possa desenvolver as estratégias necessárias para uma leitura pessoal, individual, singular. Para que haja uma possibilidade de interação com o au tor, é crucial que a divergência na interpretação esteja fundamentada na con-vergência, que se fundamenta, por sua vez, não em uma leitura autorizada, inas na análise crítica dos elementos da língua que o autor utiliza.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1. A noção de estratégia cognitiva c meracognitiva de leitura, é apresentada em Brown (1980) c reformulada cm Kato (1984, 1985): van Diik e Kintsch (1983 ) discutem as bases para um modelo estratégico da leitura.

2. O fenómeno da hiperlexicalizaçào enquanto recurso do falante para destacar aquilo que considera importante c discutido em Fowlere Kxcss (1979).

1. A teoria de esquemas incorporada a uma teoria de leitura encontra-se em Rumelhart (1980).

4. A noção dc convergência na leitura enquanto base para a divergência está subjacente nos trabalhos de Kleiman (1989).

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BROWN, A. L. "Metacognitive Development in Reading \ in SPIRO, RJ.. BRUCE B. C . & BREWER, W. F. (orgs.) Theoretical Issues in Heading Comprehension. Hillsdale, N.J.: LawrenceErlbaum Asso., 1980.

van DIJK.T. A. & KINTSCH, W. Strategies in Discourse Comprehension. New York: Acade-mic Pres. 1983.

FOWLER. R. & KRESS. G. "Critical Linguistics", in FOWLER. R.. HODGE. B . KRESS. G. & TREW. T. (orgs.) Language and Control. London: Rourledge & Kegan Paul. 1979.

FREIRE, P. Extensão ou comunicação? R.J.: Paze Terra, 1983. Trad, de Ros isca Darcy de Oli-veira.

KATO. M. "Estratégias cognitivas e metacognitivas na aquisição de leitura", Anais do / Encon-tro de leitura. Londrina, 1984. Também cm O aprendi -ado de leitura. S.P.: Martins Fontes. 1985.

Kl .KIMAK, A.B. Leitura: ensino e pesquisa. S. P.: Pontes Editores. 1989. RUMELHART. D. E. & ORI ON Y. A. "The Representation oi"Knowledge in Memory", in AN

DERSON, R. C.. SPIRO. R.J., & MONTAGUE, W. E. (orgs.). Schooling and the Ac-quisition of Knowledge. Hillsdale. N.J.: Lawrence Erlbaum Asso., 1977.

APÊNDICE

Assassino em nome do povo

DALMO DL ABREU DALLARI

N ã o exis te pena de morte sem car-rasco.

Assim c o m o há pessoas que contra-tam um matador profissional para matar alguém, o Estado, em nome do povo, contrata um matador profissional para a execução da pena de morte: é o carrasco. Do ponto de vista da legislação brasilei-ra. em caso de homicídio contratado, tan-to é considerado criminoso aquele que executou diretamente a ordem, matando uma pessoa, c o m o o contratante, que pa gou para que outro matasse. Ambos são assassinos; o que matou e o que mandou matar.

Mas desde que o povo. por ampla maioria, decida assumir a condição de assassino, encarregando o Estado de contratar o executor, será necessário ob-servar as regras constitucionais relativas

à execução desse serviço público. E aqui j á surgem alguns problemas interessan-tes. que o povo brasileiro e as autorida-des governamentais deverão considerar.

h m pr imeiro lugar, será preciso defi-nir se a competência para execução da pena de morte será da União ou dos Es-tados. No caso de a competência ser es-tadual. será razoável permitir que cada Estado decida sobre a fo rma de execu-ção. F. quem acredita que o cr iminoso é um calculista, que primeiro analisa as penas possíveis para depois resolver se vai ou não praticar o cr ime, deverá ad-mitir que. por hipótese, haverá os que decidirão praticar homicídios no Piauí, enquanto que outros irão preferir São Paulo ou o Rio Grande do Sul. por acha-rem me lhora forca, a cadeira elétrica ou a câmara de gás. Os Estados que forem

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pouco escolhidos poderão reclamar da discriminação.

Um problema complicado será a no-meação ou contratação do carrasco, que por exercer atividade pública estará ocu-pando cargo ou função ou lerá um em-prego público. F,m qualquer dessas hipó-teses, ele terá que ser brasileiro, pois a Constituição expressamente o exige, mas será necessário esiabelecer se ele poderá efelivar-se no cargo, se a contra-tação será por tempo determinado, ou se. em lugar disso, será preferível a criação ilc cargo de confiança, para exercício em comissão.

Se for preferida a criação dc cargo para preenchimento em caráter efetivo ou mesmo para conlralação por prazo deter minado, será indispensável a realização de concurso público. F. bem verdade que o presidente da República ou os governa-dores poderão invocar a notória especia-lização para dispensa do concurso. Nesse caso. os assassinos de líderes rurais, os justiceiros e os integrantes dos esqua-drões da morte serão fortes candidatos. Mas será preciso tomar cuidado com os Tribunais de Contas, que às vezes exage-ram no seu zelo e poderão pedir provas da especialização. Assim também será im-portante verificar se a contratação não ocorre em período eleitoral, pois às ve-zes. mesmo quando é óbvio o interesse público em salvar vidas, há tribunais que negam a urgência. Imagine-se então se o problema foi eliminar vidas...

No caso de ser realizado o concurso, poderá haver cena dificuldade na fixa-ção das provas do concurso c dos crité-rios de avaliação. Como a escolha é para o exercício das atribuições de carrasco, não importará saber se o candidato sabe ler e escrever, sendo indispensável esco Iher o que souber matar melhor. E pela natureza das funções, ninguém lia de acreditar que uma simples prova teórica permita a melhor escolha, tomando-se absolutamente necessária a realização de

provas práticas. A única solução que me ocorre para esse impasse é pedir às pes-soas que estão convencidas de que a pena de morte é um benefício para a sociedade que comprovem seu espírito público e sua preocupação com o bem social, ofe-reccndo-se como voluntárias para possi-bilitar a realização da boa seleção dos carrascos.

Um pequeno complicador >será a pre-paração dos candidatos para o concurso. Como todos sabem, brasileiro adora em-prego público e além disso há muito de-semprego no Brasil. Por esses motivos é fácil prever que o número de candidatos será muito grande. Assim sendo, todos logo perceberão a necessidade de estu-dar para o concurso e, certamente, os mais estudiosos passarão noites em cla-ro (ou será melhor dizer "no escuro"?), revendo a matéria e repetindo exercícios para fazerem bonito perante a comissão examinadora. E por falar nisso, qual será a qualificação exigida para alguém ser examinador?

Mas poderá também ocorrer que se dê preferência ao preenchimento em comissão, considerando-se como de confiança o cargo de carrasco. Nesse caso haverá o risco de nepotismo ou da utilização do cargo para a colocação de cabos eleitorais. Isso cria a possibilidade de carrascos incompetentes, que poderão fazer o condenado cair da forca e sotrer alguma fratura porque o nó estava mal dado ou que acabarão misturando a liga ção da cadeira elétrica com a do ar condi-cionado ou dos computadores, com re-sultados imprevisíveis. Tudo isso vai exigir a celebração dc acordos políticos, pois alguns não abrirão mão da faculda-de ile indicar o carrasco de sua confiança.

Outro problema importante é o regi-me de trabalho do carrasco, pois existe um grande risco de se criar um marajá. Como o serviço é de grande responsabi-lidade. a remuneração deverá ser alta. Mas como o número de crimes puníveis

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com pena de morte é mui to pequeno, o carrasco terá muito pouco serviço. E possível que alguém pense no pagamen-to por tarefa, o que não é conveniente se forem considerados o custo e as dificul-dades da escolha d o carrasco em cada caso. Talvez se cogite da privatização, mas neste caso surgem novamente todos os problemas da licitação, com a dificul-dade de que não será fácil o enquadra-mento nos cadastros de contribuintes de empresas especializadas, embora exis-tam hoje no Brasil inúmeros grupos es-pecializados. no campo e na cidade.

Finalmente, supondo-se que todos esses obstáculos sejam superados, che-ga-se ao dia. ansiosamente esperado por muitos, da execução da pena de morte. O carrasco, contratado e pago pe lo povo para fazer a parle su ja, matará um ser hu

mano, certamente um miserável que já nasceu marginalizado, ou um louco. Povo e carrasco serão assassinos, mas muitos irão no m e s m o dia a uma reunião de ecologistas, para impedir que uma foca seja morta ou que se ponha em risco a v idados jacarés. E muitos empreiteiros da execução continuarão a dizer-se cris-tãos e irão à missa, participando com-pungidos da santa comunhão, exibindo solenemente a celebração de sua hipo-crisia.

DALMO DE ABRUU DAI.I.ARI. 58, advogado, é profesor mu lar da Faculdade de Direito da US!' c .secretário dus Negócios Jurídicos {la Prefeitura de S.Paulo. Foi presidente da Comissão Justiça e Paz (SP).

t olha de São Paulo 15/5/91.

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CAPÍTULO 5 A INTERFACE DE ESTRATÉGIAS E HABILIDADES

Há um clichê popular segundo o qual se pode extrair de computadores mais do que se pôs

neles. Tal clichê e verdadeiro apenas em sentido estrondosamente trivial, o mesmo em que Shakespeare não teria escrito nada além do

que seu primeiro professor lhe ensinou a escrever—palavras.

Richard Dawkins

5.1 A APRENDIZAGEM MEDIANTE O ENSINO DE HABILIDADES: UMA PROPOSTA

O leitor proficiente é capaz de reconstruir quadros complexos envolvendo personagens, eventos, ações, intenções para assim chegar àcompreensão do tex-to, utilizando para tal muitas operações que não são foco de reflexão consciente.

Vimos, no Capítulo 3, estratégias de processamento do texto, que per mitein ligar elementos, sejam estes no nível semântico (como a referência a um mesmo objeto, por exemplo) ou no nível sintático (como o fatiamento. que permite identificar as categorias gramaticais c as funções dessas catego-rias). Vimos, lambem, que tais estratégias estão baseadas no conhecimento implícito, interna]izando que temos pelo fato de poder falar a língua, e que, sabemos, não somos capazes de descrever.

O processamento é realizado, em relação à grande maioria das estruturas com que nos deparamos, automaticamente, sem que hajadesautomatizaçãoe re-flexão consciente por parte do leitor experiente de como é que ele realiza essas operações cognitivas. Pelo fato de não envolverem conhecimento reflexivo, es-sas operações são chamadas de operações dc nível inferior, apesar de envolve-rem habilidades lingüísticas complexas e sofisticadas. As estratégias de leitura que pressupõem essas operações são chamadas de estratégias cognitivas.

As estratégias cognitivas são, portanto, operações para o processamen-to do texto que se apoiam, basicamente, no conhecimento das regras grama-ticais (regras sintáticas e semânticas de nossa gramática interna, ou implíci-ta. que não têm nada a ver com a gramática escolar) e no conhecimento de vo-cabulário (que subjazeria de alguma forma ao reconhecimento instantâneo das palavras do texto).

Devido à inacessibilidade das estratégias cognitivas, então, (de fato. quando as trazemos ao nível consciente elas mudam qualitativamente, não sen-do mais estratégias cognitivas), nossa proposta pedagógica envolve o ensino de habilidades linguísticas, isto é, o ensino capacidades específicas, cu jo conjunto compõe nossa competência textual, a nossa competência para lidar com textos.

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Tais habilidades vão desde a capacidade de usar o conhecimento gra-matical para perceber relações entre as palavras, até a capacidade de usar o vocabulário para perceber estruturas textuais, atitudes e intenções. Elas não são exclusivas da leitura, mas mostram correlações muito fortes com a capa-cidade de leitura. Em outras palavras, quem tem essas habilidades, coinci-dentemente é um bom leitor, ou talvez seja um bom leitor porque tem esse conjunto de habilidades.

O ensino dessas habilidades envolveria fazer um trabalho com o texto que visasse, por um lado. desenvolver a capacidade do aluno para usar seu conheci-mento gramatical implícito (morfossintático e semântico), e. por outro, a sua ca-pacidade de identificar palavras mediante reconhecimento visual instantâneo.

Já no Capítulo 3 apresentamos uma série de atividades analíticas que davam um alerta a respeito das dificuldades no processamento sintático c se-mântico causadas pelo livro didático, pelo descaso em relação à forma dos textos. Essas atividades podem também ser vistas da ótica de desenvolvi-mento de habilidades lingüísticas para melhorar a capacidade de processa-mento, pois à medida cm que desfazemos uma ambigüidade ou tornamos mais clara uma construção, estamos trazendo a nível consciente as operações que. como adultos, utilizamos na leitura, e. conseqüentemente, as estamos mostrando para o leitor com menos experiência.

A primeira habilidade, então, pode ser indiretamente desenvolvida me-diante trabalho de análise de pontos que sejam potenciais itens dificultadores da compreensão, como foi exemplificado no caso dos textos didáticos mal escritos, no Capítulo 3. F.claro que nãoé apenas o texto mal redigido que poderá apresen-tar algum ponto de entrave para a compreensão; como apontávamos anterior-mente. a estrutura da linguagem escrita apresenta diferenças ern relação à lin-guagem falada, especialmente em relação à complexidade gramatical e à coe-são, diferenças estas que p<xlem dificultar a compreensão do texto escrito.

Quanto à capacidade de reconhecimento intantânco de palavras, não sabemos ao certo, de que fatores ela depende. Entretanto, um dos fatores de correlação entre habilidade lingüística e capacidade de leitura diz respeito ao dicionário mental do leitor, isto é. ao número de palavras que ele conhece e que tem um espaço mental. Assim, é razoável deduzir que um dos fatores que determinaria reconhecimento instantâneo de palavras seria o conhecimento do vocabulário. Daí ser também razoável propor o ensino de vocabulário co-mo uma maneira de criaras condições para o leitor iniciante ir aumentando o conjunto de palavras que reconhece instantaneamente, sem necessidade de decodificação. Obviamente, o ensino deverá estar ligado ao enriquecimento de vocabulário do aluno, e não a uma mera tarefa burocrática de procura de palavras num dicionário, como costumeiramente é feito em contexto escolar.

Outras habilidades lingüísticas que têm altas correlações com acapaci dade de ler. apontadas na literatura, são a capacidade para apreender o tema e a estrutura global do texto, para inferir o tom, intenção e atitude do autor, para reconstruir relações lógicas e temporais, bem como para realizar atividades de apropriação da voz do autor, resumindo, recontando, respondendo perguntas sobre o texto (a serem discutidos no Capímlo 6). Consideramos que elas de-

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correm das estratégias cognitivas cuja utilização determina a compreensão bem sucedida, isto é, se o leitor for capaz de segmentar c fazer relações estru-turais na linguagem escrita, rápida c eficientemente, guiado pelo seu conheci-mento prévio e pelas suas intenções e objetivos pessoais, então, ele fará as operações necessárias (desde a depreensão de estruturas globais ate a inferên-cia de intenções, passando pela paráfrase) para garantir sua compreensão.

Tendo em vista as considerações anteriores quanto ao léxico, apresen-taremos neste capítulo algumas propostas específicas para o desenvolvimen-to e enriquecimento do vocabulário do aluno mediante a atividade de leitura. Isto é. a leitura é tanto o ponto de partida para o ensino de vocabulário, pois o texto fornece as expressões-alvo do ensino, como ponto de chegada, pois a atividade modelada, que consiste na inferência lexical das expressões, é operação regular a que recorre o leitor proficiente.

Como já apontamos antes, o foco das diversas atividades propostas está no desenvolvimento de uma capacidade específica c não pode estar no ensino de uma estratégia cognitiva, pois essa última não é passível de controle cons-ciente. O ensino de vocabulário não é equivalente ao ensino de leitura propria-mente dito (possível só mediante a leitura), uma vez que essa atividade com-preende muito mais do que a soma do ensino de estratégias e habilidades, mas a inferência em geral, c a inferência do léxico especificamente, é um dos pro-cessos cognitivos envolvidos na compreensão, e portanto, faz parte da leitura.

Devemos ainda lembrar, neste trabalho, que o nosso objetivo não é o enriquecimento do léxico como finalidade cm si. mas o desenvolvimento de estratégias de leitura para. primeiramente, identificar palavras-chaves e pala-vras "incidentais", a fim de o leitor determinar por si próprio, qual a melhor maneira de lidar com o léxico desconhecido: sc aceitando a vagueza inerente à inferência com base nas pistas contextuais, ou se procurando uma definição contextualizada numa enciclopédia. O enriquecimento do vocabulário é de-corrente da atividade, mas, como dizíamos anteriormente, não é suficiente para outras atividades de uso do vocabulário.

Também as atividades que iremos descrever não constituem as únicas atividades para o ensino de vocabulário, que é um objetivo legítimo de outras áreas do ensino de língua, como o ensino de redação, por exemplo. Na aula de redação, o nosso objetivo é quase que oposto ao da aula de leitura: assim como quando lemos, muitas vezes uma idéia vaga sobre o sentido de uma palavra é suficiente para o que queremos entender do texto, quando escrevemos nada serve, exceto aquela palavra que capta melhor aquilo que queremos comunicar.

5.2 O VOCABULÁRIO NO TEXTO: DUAS ABORDAGENS DE ENSINO

Acostumados com o glossário que acompanha todo texto no livro didá-tico. tanto professor como aluno passam a acreditar que a única maneira de aprender novas palavras é através do glossário e do dicionário, que têm fun-ções semelhantes. Ressalve-se que o uso do dicionário é o melhor método pa-ra aprendizagem de léxico apenas em dois casos: quando se trata do signifi-

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cado dc palavras-chaves, que ocorrem repelidas vezes no texto e cuja hiper-lcxicalização marca essa relevância, e quando se trata de itens lexicais cujo significado exalo o essencial, sejam estes elementos-chaves ou não.

Vejamos exemplos de situações em que consideramos que conhecer o significado exalo da palavra c essencial.

No exemplo (1), a seguir, uma mesma palavra-chave e seus derivados, várias vezes repetidos no texto, foram retirados para o leitor experienciar, mesmo que aproximadamente, a frustração que um leitor que desconhece uma palavra-chave deverá sentir quando o significado desta for crucial para fazer sentido do texto. Lembremos, durante a leitura do exemplo, que o aluno que desconhecer a palavra omitida, prov avelmente também desconhecerá o signi-ficado de outras palavras dentro da mesma rede conceituai, como cromosso-mo e hereditário:

i I) PODE UM SÓ FAZER UM IIOMEM?

Será que um único entre os /00000do organismo hu-mano, é responsável pelo sexo masculino'/ Cientistas da Fundação Imperial para Pesquisa do Câncer, na Inglaterra, desconfiam que sim. Eles vasculharam a bagagem de mulheres que. por um problema hereditário, possuíam um par de cromossomos X}' em vez do par XX do sexo feminino. Mas, apesar da presença do cromossomo Y, aquele que determina o sexo masculino, essas mu-lheres nao se desenvolveram como homens. Para os ingleses, isso acontece por causa de um defeito encontrado em certo conhe-cido como Sry, que inibe sua produção de proteínas.

Como o Sry defeituoso era o ponto comum entre os casos analisados, os pesquisadores acreditam que ele possa ser o fabri-cante do chamado fator determinante de testículos, a substância desencadeadora do aparecimento de características masculinas em um ser humano. E cedo, no entanto, para afirmar que o Sry so-zinho consiga fazer um homem: na Universidade de Freiburg, Ale-manha, os cientistas encontraram uma mulher com esse em perfeitas condições e que, mesmo assim, não apresentava si-nais de sexo masculino. Foi a única exceção, é verdade—mas em ciência isso já é suficiente para não transformar uma suspeita em regra geral. (Superinteressante. 4/1991 í.

No exemplo (2), por outro lado. mesmo uma única ocorrência de um irem lexical pode ser essencial para a compreensão do texto pelo leitor/con-sumidor, como seria o caso do vocábulo inalação no texto "Precauções", a seguir, copiado de uma lata de inseticida. Note-se. em relação a este texto, que acordo semelhante ao existente entre leitor e escritor de bula (discutido no primeiro capíruloj está aqui em vigor: o autor escreve para um membro da cultura letrada que considera necessário se informar sobre um produto antes de usá-lo e para quem o texto escrito pode preencher a função de informar:

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(2) PRECAUÇÕES

Durante a aplicação não devem permanecer no local pessoas ou animais. Não aplicar sobre os alimentos e utensílios de cozinha, plantas e aquários. Não fume durante a aplicação. Em caso de intoxicação procure um médico, levando con sigo as embalagens do produto. Não aplicar em quartos de pessoas com problemas respiratórios. Guarde longe do alcance de crianças e animais domésticos. Não reutilize a embalagem vazia. Inflamável! Não perfure o vasilhame mesmo vazio. Não jogue no fogo ou incine-rador. perigoso \'e aplicado próximo a chamas e superfícies aquecidas. Evite inalação e proteja os olhos durante a aplica-ção. Se ingerido, não provoque vômito. Procure um médico. Em caso de contato com os olhos, lave-os com água em abundância. Persistindo irritação, consulte um médico.

Quando a compreensão do tcxio não depende de conhecer a definição exata da palavra, outras abordagens, que imitam a maneira natural de apren-der palavras, são mais adequadas para a aprendizagem de vocabulário. Essas abordagens, ou conjunto de estratégias de INFERÊNCIA LEXICAL, enfati-zam o refinamento gradual que o significado de uma palavra vai adquirindo, à medida que novos encontros, em novos contextos, acontecem. Quando nos deparamos com uma palavra pela primeira vez, uma nova gíria, por exemplo, ou uma nova palavra de uma língua estrangeira, adquirimos uma idéia aproxi-mada do significado da expressão, a partir do contexto lingüístico em que cia c usada. Isto é, inferimos o significado dessa palavra nova a partir do contex to. Aos poucos, mediante novos encontros com a palavra, em outros contex-tos, vamos adiquirindo uma idéia mais precisa do significado. Quando passa-mos a usar a palavra, então há uma transformação desse conhecimento inicial.

A inferência lexical é um processo adequado de aprendizagem de voca-bulário quando o significado aproximado da palavra é suficiente para com-preender a leitura. O trecho a seguir, extraído do texto PALAVREADO, dc Luiz Fernando Veríssimo ilustra bem a necessidade do processo de inferência lexical na leitura, até cm relação a velhas palavras com novos significados:

(3) Não posso ver a palavra lascívia sem pensar numa mu-lher, não fornida mas magra e comprida. Lascívia, imperatriz de Cântaro, filha de Pundonor. Imagino-a atraindo todos os jovens do reino para a cama real. decapitando os incapazes pelo fra-casso e os capazes pela ousadia.

Um dia chega a Cântaro um jovem trovador. Lipídio de Al-bornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo urna bandalhei-ra preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé. Segue através dos becos de Cântaro até um sumario uma espécie de jardim enclausurado—onde ela deixa cair a bandalheira. (Luiz Fernando Veríssimo. '"Palavreado", em O Gigolô das pa-lavras. Porto Alegre: L&PM. 1982)

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O texto joga com as associações que as palavras trazem, pelas suas di-versas conotações, e pouco adianta, para compreender o texto, conhecer o significado das palavras bandalheira, betume ou cabriole, pois os sentidos que lhes construímos no texto durante a leitura não dependem de suas signi-ficações de dicionário. Por exemplo, bandalheira representa no texto algum tipo de vestimenta (talvez indecente?), apesar de serem outros os significa-dos que o dicionário registra para a palavra (isto é, como atimde de bandalho, maltrapilho, e, figuradamente, pouca vergonha, indecência).

A capacidade para perceber a função do contexto é de fundamental im-portância na leitura. A pesquisa mostra que a criança não utiliza o contexto espontaneamente, particularmente aquelas crianças que convivem com uma história de fracasso em relação à leitura. Tal capacidade pode começar a ser desenvolvida desde as primeiras séries, através de textos curtos, apoiados por gravuras, onde as potenciais dificuldades de leitura são contornadas, como no exemplo a seguir, que apresenta de forma lúdica o uso metafórico de lin-guagem e a relação entre contexto e significado:

VSKA&ulárío » « M A

CAVANDO FALTA Folha de Sào Paulo, 5/1986

Uma questão teórica não resolvida diz respeito à existência, ou não, de um significado primário. Não há dúvida, entretanto, que aprendemos os di-versos significados de uma palavra gradativamente, uns antes do que outros. O que a pesquisa mostra em relação a essa questão é que é difícil para a crian-ça aprender novos significados de uma palavra através da leitura, porque, no-vamente, a análise do contexto, que lhe ajudaria a perceber que uma velha co-nhecida tem um significado novo, não é realizada de maneira espontânea.

Textos como a propaganda em (5), que não sobrecarregam a capacida-de de processamento da criança, podem ser utilizados para uma reflexão so-bre a relação entre significado e contexto:

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(9)

QUEM CASA QUER CASA.

O nosso grau de familiaridade com uma palavra dependerá da fre-qüência e intimidade de nossa convivência com ela. Para um médico, por exemplo, o significado da palavra anatomia será muito diferente do signifi-cado que essa mesma palavra tem para um pintor, que por sua vez será dife-rente do significado que a palavra tem para um contador, devido às associa-ções diferenciadas que cada um formou cm relação à palavra na sua expe-riência. O contador, ou outros profissionais cujas atividades não têm nada a ver com o corpo humano, terá uma idéia muito mais imprecisa do significa-do da palavra do que os profissionais que lidam com o corpo humano. A im-precisão é compatível com as necessidades de cada um e não incomoda. As-sim. a imprecisão e até a vagueza de um primeiro contato com a palavra não deve incomodar.

O imóvel que você procura está no Classifolha.

Folha de São Paulo, 7/1986

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A adivinhação ou inferência de palavras desconhecidas evila o maior problema com que o leitor iniciante se depara, quando a proporção de pala-vras desconhecidas interfere e impossibilita a leitura fluente, que deve ir de idéia em idéia com base nos conhecimentos que a palavra mobiliza, é claro, mas não de palavra em palavra. Quase todos nós já tivemos alguma experiên-cia com leitura em uma língua estrangeira; a quantidade de vocábulos desco-nhecidos é tão grande que simplesmente desistimos de ler e/ou abandonamos o texto ou optamos pela tradução direta, palavra por palavra. No caso de lei-tores principiantes, o efeito cumulativo do léxico desconhecido, ainda que na própria língua, pode ser tão devastador para a compreensão como se se tratas-se de uma língua estrangeira.

Mediante o ensino de abordagens baseadas na inferência, estaremos ensinando ao aluno a conviver com a vagueza que caracteriza o nosso conhe-cimento de grande número de palavras. Ao trabalharmos a inferência lexical, ensinamos principalmente uma atitude, isto é, que a convivência com a va-gueza é possível, c mais, é comum, faz parte do cotidiano. Quanto à língua ensinamos também como analisar o contexto lingüístico em que um vocábu-lo desconhecido se insere enquanto fornecedor de pistas para inferir o signi-ficado do desconhecido.

Consideramos importante, no ensino, definir claramente a tarefa para o aluno, isto é. conscientizá-lo sobre as diversas maneiras de aprender vocabu lário. a importância do vocabulário amplo e diversificado para a leitura, bem como a possibilidade de conviver com significados parciais e inexatos.

Rubem Braga, retrata muito bem a postura de aceitação do desconheci-do. quando irrelevante, na crônica NASCER NO CAIRO, SER FÊMEA DE CUPIM, que defende a convivência tranqüila com palavras cujo significado desconhecemos. As palavras que o autor utiliza como exemplos de conheci-mentos irrelevantes, por sua vez, poderiam ser utilizadas para demostrar que nem todo significado é necessário para compreender um texto, demostração essa que poderia servir como ponto de partida para uma reflexão sistematiza-da sobre o léxico. Quando o autor responde à sua própria pergunta "Conhece o vocábulo escardichar?" nos dizendo que

(6) O leitor que responder "não sei" a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Mas. se isso pode servir de algum con-solo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá. meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim. que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua

Já estou mais perto dos cinquenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e es-tou até gordo demais, pensando em meter um regime no organis-

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mo — e nunca soube o que fosse escadichar. Espero que nunca, na minha vida tenha escardichado ninguém; se ojiz. mereço des-culpas, pois nunca tive essa intenção. (Rubem Braga. "Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim", Para gostar de ler, vol.3, S.F.: Ática, 6a. ed.. 1989).

ele está fornecendo um excelente apoio para ensinar ao aluno a inferência le-xical enquanto conteúdo explícito do programa de leitura.

A nossa proposta inclui o ensino de conteúdos que versam SOBRE a leitura, indo além, portanto, da leitura de textos. Consideramos esses conteú-dos mais relevantes para o desenvolvimento do aluno do que muitos conteú-dos da gramática escolar. Ensinar a inferência lexical como conteúdo consis-te em, primeiro, conscientizar o aluno da necessidade de adivinhação para aprender novo vocabulário, mediante a conceitualização do processo de infe-rência e, segundo, analisar tipos de pistas lexicais para a adivinhação, ou in-ferência. de palavras desconhecidas.

O conceito de INFERÊNCIA LEXICAL depende de outros conceitos, como contexto. ou pistas lingüísticas, para ser compreendido. Eles são ne-cessários para explicar aos alunos o processo pelo qual aprendemos as pala-vras paulatinamente, mediante a análise e incorporação dos contextos em que elas se inserem, pois é assim que construímos o conhecimento: construindo "famílias" de conceitos sobre um assunto.

Um texto como a crônica de Rubem Braga, acima citada, apresenta ri-cas possibilidades de ensino do processo de inferência lexical. Vejamos um esboço, à guisa de modelo, de uma lição sobre o assunto, que pressupõe ape-nas que o tema do texto já linha sido depreendido:

Aprendemos palavras constantemente, quase todo dia, aos poucos, sem grandes dificuldades porque quando ouvimos uma palavra nova, ela quase sempre está rodeada de outras que já conhecemos. Essas outras palavras formam o contexto. Po-demos fazer o mesmo quando lemos. Cada vez que encontra-mos uma mesma palavra num novo contexto, rodeada por ou-tras palavras, esse contexto nos ajuda a defini-la um pouco melhor. A leitura é um dos melhores meios para ir aprendendo aos poucos novas palavras que vão ficando, a cada novo en contro, mais claras.

Muitas vezes o significado da palavra não é necessário pa-ra entender o texto: apenas o significado aproximado, o que ela representa, é suficiente para a leitura. Vejamos um exemplo, com a palavra escardichar. que aparece várias vezes no texto li-do. e tentemos responder algumas perguntas sobre essa palavra: 1. Vimos que o autor não leva muito a sério os puristas, nem os professores de língua portuguesa. O autor usa a palavra escardi-char como exemplo de quê em relação a essa questão? Que ou-tros exemplos ele usa?

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2. É necessário, para compreender o texto, saber o significado da palav ra escardichar?

3. Você acha que o significado da palavra escardichar vai ficando mais claro a cada novo uso no texto, abaixo listados:

a) Conhece o vocábulo escardichar ? b) Como também é exagero saber o que quer dizer escardichar. c) Já estou mais perto dos cinqüenta que dos quarenta: vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando cm meter um regime no organismo c nunca soube o que fosse escardichar. d) Espero que nunca, na minha vida. tenha escardichado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção. e) Mas a mim é que não me escardicham assirn. sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo de póstumo nenhum.

4. Ele poderia ter usado outras palavras para ilustrar a mesma coisa? Pode dar alguns exemplos?

5. Compare o uso da palavra escardichar com a palavra vernáculo, no trecho abaixo:

Um deles chegou a me passar um telegrama, felUitando-mepor-que não encontrara, na minha crônica daquele dia. u/n só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma "página de bom vernáculo, exemplar".

6. Bom vernáculo seria equivalente a quê? E importante, para a compreensão do texto, saber o significado de vernáculo? Por quê?

O processo mediante o qual você adivinhou o significado de uma palavra desconhecida (vernáculo, no exemplo acima), é chama-do de INFERÊNCIA LEXICAL. Deve ter ficado claro que nem todas as palavras podem ou devem ser inferidas: para algumas apenas uma classificação é suficiente (como. no exemplo, escar-dichar é uma palavra rara. de pouco uso) enquanto que para ou-tras precisamos de um significado mais específico, a fim de com-preender o texto, e que pode ser adivinhado, ou inferido, como no caso dc vernáculo, que eslava substituindo língua portuguesa.

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5.3 ANÁLISE DO CONTEXTO

Embora nem rodas as relações entre uma palavra e seu conrtexto lin-güístico sejam passíveis de descrição e classificação, muitas delas são predi-zíveis. especialmente quando levamos em conta questões sobre gênero tex-tual. Assim, por exemplo, em textos didáticos ou em textos jornalísticos e in-formativos de vulgarização científica, é comum achar que termos-chaves são definidos no decorrer do texto. Tais definições são muitas vezes assinaladas por diversas pistas lingüísticas.

Apresentaremos, a seguir, uma série de relações entre a palavra e seu contexto que caracteristicamente ajudam a inferir o significado de uma pala-vra desconhecida. A fim de trabalhar a inferência lexical, faz-se necessária, por parte do professor, uma análise cuidadosa do vocabulário do texto antes de ensiná-lo. a fim de determinar, mediante essa análise pré-pedagógica, quais das palavras provavelmente desconhecidas pelo aluno são inferíveis a partirdo contexto, quais não são inferíveis e quais precisam de uma definição também contextualizada, porém mais exara.

Os tipos de contextos que auxiliam a inferência de significados a serem discutidos são o de definição, explicação através de exemplo, sinonímia ou substituição, paralelismo através de comparação ou contraste, conotação me-diante efeito cumulativo e classificação. Será também discutido o uso da ex-periência como uma pista para a inferência.

Definição

Muitas vezes, continuar lendo após o aparecimento da palavra desco-nhecida irá deixar claro o significado dessa palavra, pois a definição vem em seguida. Uma vez que o aluno tem a tendência a parar de ler quando encontra uma palavra desconhecida (isto justamente devido às orientações do profes-sor de "sublinhar todas as palavras que desconhece durante a leitura"), ensi-nar ao aluno a analisar o contexto na procura de pistas implica ensinar, ao mesmo tempo, a fazer uma leitura não linear; isto é, continuar a leitura ainda quando houver incompreensão momentânea, inclusive voltando para trás. re-lendo. pois o contexto pode elucidar o problema.

No exemplo a seguir, está ilustrada a necessidade de continuar a leitu-ra na procura de pistas esclarecedoras:

(7) Outra doença que volta a preocupar os sanitaristas é a leishma-niose visceral, ou calazxtr

Através da inferência lexical chegamos a um significado relativamen-te vago da palavra calazar (é doença endêmica), inferido através do contexto específico (as palavras doença e sanitarista) e do contexto global (o tema do texto é Perigos Tropicais na Seção "Saúde" da revista IstoélSenhor, 13/2/1985). Entretanto, o contexto se torna muito mais específico, permitin-do a construção de um significado bastante mais completo, à medida em que

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o desenvolvimento do tema progride, com a inclusão de noções sobre sinto-mas, maneiras de transmissão e maneiras de controle:

(7a) ...ou calazar. Sob controle até 1964. quando havia campanhas sistemáticas para seu combate, o calazar reapareceu em 1980, quando foram registrados 165 casos (...) A doença, com 1500 ca-sos diagnosticados no ano passado, é transmitida pelo mosquito "biriguT' Lutzomyia longipalpis que se aloja nos cães do-mésticos. Com sintomas como febre, emagrecimento, queda de pêlos e crescimento do abdômen, o calazar pode ser fatal.

Muitas vezes, pode haver uma marcação explícita do contexto defini dor. como nos exemplos (8 a 10) a seguir, cm que a definição é introduzida por palavras específicas, como ou. isto, ou mediante apostos marcados pe-la pontuação. Nos exemplos, o termo definido mediante o contexto está cm negrito:

(8) (...) Inseto hematófago, ou seja, que se alimenta de sangue, o barbeiro procura o rosto para dar sua picada—que não é senti-da, já que ele expele um líquido anestésico. ("Um hóspede terrí-vel", Superinteressante, 5/1991).

(9) Os paralelos são importantes, entre outras razões, porque per-mitem avaliar a latitude de um lugar, isto é, sua distância até o Equador. (4". série).

10) O Ministério da Saúde recebe em abril a primeira remessa de AZT(remédio ministrado a pacientes com A ids) a ser importada este ano. (Folha de São Paulo, 22/2/91).

Explicação Através de Exemplo

Nem sempre a relação entre uma palavra c seu contexto definidor é ex-plicitamente marcada pelo autor. Tal recurso, muito comum cm texto didáti-co e em texto jornalístico informativo, cede lugar a relações mais indiretas, que precisam dc maior exploração por parte do professor, como nos exem-plos (11) e (12) a seguir. Assim, se o problema for a palavra deperecimento. como no exemplo (11), o professor poderá orientar o aluno perguntando pri-meiro, qual é o objeto caracterizado por esse deperecimento; dc posse da in-formação dc que se trata de uma cidade, o aluno deverá ser orientado para continuar a leitura. Como logo depois o autor continua descrevendo a cidade, torna-se legítima a conclusão dc que a palavra deperecimento está sendo ex-plicada a seguir:

(11) Mas Jõao Teodoro acompanhava com aperto de coração o depe-recimento visível de sua Itoaca.

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—Isso já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons. agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábido ordinário como o Tenório. (Monteiro Lobato, "Um homem de consciência").

(12) — Por acaso, o senhor não gosta de carne de coelho? Não esperou pela resposta e prosseguiu: Se gosta, pode procurar outro, porque a versatilidade é meu fraco.

Dizendo isto, transformou-se numa girafa. Os olhos, po-rém, conservavam a anterior tristeza.

A noite continuava — serei cobra ou pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável? (Murilo Rubião, "Teleco, o coelhinho", em Schwartz, S. & Amaro, N. Meu uni-verso, 6* série. S.P.: Edart. São Paulo, 1976).

Sinonímia

As vezes, o item desconhecido é logo repetido no texto, de modo que uma relação de sinonímia pode ser construída entre os itens que aí se substi-tuem. se o aluno conhecer o significado de um dos elementos ligados median-te a substituição, como em (13):

(13) Impossível furtar-se ao jogo da barganha. Recusar-se a ela é desconhecer uma cultura para a qual é fundamental a arte de conversar e a arte de convencer. (Aloure, L. "As fornias e as co-res do Marrocos", Revista Geográfica Universal, 3/1988).

No exemplo (14), o aluno precisa ser orientado para a leitura regressi-va. uma vez que a palavra em questão, estiagens está substituindo seca, já in-troduzida na oração anterior:

(14) Dona Inês. na escola, quase não deu aula. Falou muito tempo da seca. Contou que as pessoas velhas, que já tinham passado por outras estiagens, achavam que esta de agora era um castigo que ninguém merecia. (Albergaria. L. "Cinco anos sem chover", em TL FANO. D. Curso Moderno de Língua Portuguesa. 6a série, S.P.: Editora Moderna, 1987).

Contraste e Comparação

Na analogia, estabelecem-se relações de comparação ou de contraste entre um item desconhecido e algum outro no texto. Essa relação muitas ve-zes está explicitamente marcada no texto, mediante o uso de conjunções ad-versativas como mas. enquanto, ou através de construções que tipicamente marcam o contraste como a construção no exemplo (15), se não gosta de x, é só falar, dizer, fazer etc e terá não x:

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(15) Se eles tocam alto é pras pessoas ouvirem; e se eles não gostas-sem da gente ficar ali ouvindo era só desligar e pronto: todo mundo desguiava logo. (Rubem Fonseca. "O Crioulo dançari-no", cm Preli. D. Português oral e escrito, 6a série. S. P.: Compa-nhia Editora Nacional. 1974).

Conotação: Efeitos Para a Criação de um Tom ou Ambiente

Também através dos efeitos e associações que as palavras sugerem, por pertencerem a um mesmo campo semântico, por exemplo, torna-se às ve-zes possível adivinhar o significado aproximado de uma palavra desconheci-da, desde que ela seja do mesmo campo. O significado inferido a partir do tom que, cumulativamente, vai sendo construído é, naturalmente, muito mais difuso do que aquele que pode ser inferido a partir de um contexto lingüísti-co definidor ou explicador. Esse é o caso, por exemplo, em relaçào à palavra anêmico no exemplo (16) a seguir. Note-se. em relaçào a esses casos, que a percepção de que essa palavra conota algo negativo, oposto à saúde ou bele-za em relação à figura do menino, seria suficiente enquanto conscientização do aluno da possibilidade de inferir através do tom evocado. Naturalmente, não seria suficiente se o objetivo do ensino de vocabulário estivesse ligado à produção de textos:

16 (... )Ali viviam a mãe dele e mais cinco irmãos. Ele era o segun-do, de cima para baixo. Magro, miúdo e desconjuntado, joelhos que pareciam bolas de tênis, loirinho anêmico de olhos azuis descorados—parecia nem ter sangue. (Ganymédes José, "Ama-relinho". em Venantte. I.. & de Mello, R. Escola é Vida, São Pau-lo: Editorado Brasil, 3a. série, 1985).

Classificação: Palavras em Listas ou Séries

Também o recurso de classificar pode funcionar como contexto forne-cedor de significados, quando a palavra desconhecida está inserida numa sé-rie ou lista de palavras de uma mesma classe ou categoria. Novamente, o sig-nificado é apenas aproximado e o professor deverá julgar se tal aproximação é suficiente no caso. Por exemplo, se a palavra cará é desconhecida do leitor, a inferência mediante a classificação implicada na lista será suficiente quan-do se tratar de uma lista de legumes, (isto é. vagem, cenoura, cará. inhame) inserida num texto que descreve a alta no preço de diversos alimentos. Entre-tanto. tal recurso não seria adequado em se tratando da leitura de lima receita para escolher um prato.

O exemplo (17). a seguir, ilustra a inferência, usando palavras numa lista como pistas contextuais. No exemplo cujo subtema são palavras de ori-gem grega na língua portuguesa, entre elas as relacionadas à política, basta ter uma idéia geral para itens como plutocracia, ou oligarquia. Tal aproxima-ção é suficiente uma vez que o assunto do texto é a língua portuguesa, mas es-

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se significado certamente seria insuficiente se o texto versasse sobre esses sistemas políticos:

(17) Nesse terreno, de novo nosso vocabulário é completamente helé-nico. Aristocracia, monarquia, despotismo, plutocracia, oligar-quia. anarquia, tirania sem esses termos, não seremos capazes de pensar com clareza "as coisas da cidade".

Experiência Pessoal

Muitas vezes o contexto que esclarece o significado não é construído intratextualmentc. mas fora do texto pela experiência de vida do leitor. As-sim. por exemplo, se estorricada ou fincados no exemplo a seguir, constituís-sem itens lexicais desconhecidos, o professor poderia apelar para o que o lei-tor já sabe sobre a aparência da terra ressequida pelo sol, ou sobre a maneira de construção dc barracos de favela a fim de chegar a um significado aproxi-mado. porém adequado para continuar a leitura:

(18) Ele caminhava chutando terra. Gostava de chutar a terra verme-lha igual a sangue, quente por causa do sol. seca. meio estorri-cada. O caminho para a cidade era longo, ele morava no último barraco, perto da cerca de arame farpado. Casa? Não era nem! Uns paus fincados de qualquer jeito, paredes de latas de óleo abertas, pedaços de papelão; tinha muitos daqueles barracos por ali, na favela. Dentro, um quadrado de batido, (Ganymédes José. "Amarelinho", cm Venantte. L. & de Mello, R. Escola é Vi-da. São Paulo: Hditora do Brasil, 3a. série. 1985).

No entanto, o uso de experiência prévia como pista para a inferência pode ser cheio de armadilhas e deverá, por isso, ser usado esparsamente, com cuidado. No exemplo a seguir, tendo cm vista a experiência prévia (direta ou indireta ) do leitor aí) subir vários lances de escadas, a palavra encetando poderia sugerir, na re-criação dessa experiência erroneamente, que a empregada não via a subida de mais um andar com grande entusiasmo, que se preparava cansadamente para su-bir mais um lanço etc. Corno apontávamos anteriormente, em tais casos, o glossá-rio constitui tuna maneira mais efetiva de apresentar o vocabulário desconhecido:

(19) Desta vez não leve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos de lá embaixo... Tomado de pânico, olhou ao redor .fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam e. ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. (Fernando Sabino, " 0 ho-mem nu" em Para gostar de ler. vol..?. São Paulo: Ática. 1984).

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.Sc usado com cautela, o ensino da inferência lexical pode ser uma ex-celente prática para o aluno na sua aprendizagem de vocabulário. A cautela deve ser exercida em relação aos dois extremos possíveis neste processo de aprendizagem de léxico: por um lado, não é preciso inferir conscientemente tudo aquilo que desconhecemos; muitas vezes o nosso desconhecimento pas-sa desapercebido, e só se precisamos do conceito que essa palavra traz para resolver alguma contradição, percebemos sua presença (daí que a atividade deva ser limitada àquelas palavras que o próprio aluno questiona e não as que o professor acha que ele desconhece e deve conhecer); por outro lado, tam-bém não é recomendável nem desejável inferir tudo aquilo que pode ser infe-rido, pois muitas vezes um significado aproximado é insuficiente para a com-preensão.

A proposta de ensino de vocabulário aqui apresentada deve ser inter-pretada no contexto específico de ensino de leitura, pois ela não é suficiente como proposta de enriquecimento do léxico quando outras áreas da aprendi-zagem. como a redação, são consideradas. Assim, o ensino da inferência le-xical como uma das formas de aprender novas palavras é uma proposta váli-da quando ela está aliada a um bom programa de ensino de redação, que apre sente o outro lado da questão, isto é, que significados aproximados não bas-tam para nos expressarmos, que as palavras devem ser o retrato mais fiel pos-sível do conceito que queremos expressar, a fim de evocar conceito seme-lhante no nosso interlocutor.

RESUMO

Embora as estratégias cognitivas da leitura não possam ser modeladas, uma vez. que o conhecimento que a elas subjaz não está sob o nosso controle e reflexão conscientes, podemos, mediante o ensino, promover condições pa-ra que o leitor desenvolva as habilidades em que estào apoiadas. Tais condi-ções consistem, essencialmente, na análise de aspectos locais do texto que envolvam nosso conhecimento lingüístico sobre a estrutura da língua e no en-sino de vocabulário.

Quanto a este último, na aula de leitura enfatiza-se um método de des-coberta e adivinhação, bem como uma atitude para aprender a conviver com palavras desconhecidas e com palavras cujo significado é difuso e vago. Quando essa atitude estiver bem enraizada no leitor, espera-se que ele, se de-parando com palavras desconhecidas num texto, mas sabendo por que e para que está lendo, consiga decidir qual o grau de conhecimento necessário para compreender esse texto.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Os conceitos introduzidos no capítulo remclcm aos seguintes trabalhos:

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1. A visão dc lei lura como um conjunto de habilidades lingüísticas, determinadas a par tir dc análise fatorial c altamente correlacionadas com a capacidade de compreensão do leitor cn contra-se em Carroll (1978).

2. Questões relativas ao léxico e ao ensino do léxico, encontram-se cm Kleiman (1987). Também Marcuschi {1984) lida com questões sobre a inferência na leitura, entre elas a inferên-cia de léxico. A classificação dc pisras para a inferência lexical apresentada por Thomas & Ro-binson (1976) serviu dc base para a classificação aqui apresentada.

CARROLL. J.B. (1972) "Definindo a compreensão da linguagem: algumas especulações", in São Paulo — Secretaria dc Educação. Coordenadoria dc Estudos e Normas Pedagógi cas (1978) Subsídios ú proposta curricular dc Lingua Portuguesa, vol.VII. S.P.. SE/CF.NIVUNICAMP. Trad. de A. B. Kleiman.

KLEIMAN A.13. "Aprendendo palavras, fazendo sentido: o ensino dc vocabulário nas primei-ras séries". Trabalhos em Lingüística Aplicada 9:47-81. 1987.

MARCUSCHI, L.A. "Leitura como processo inícrenrial num universo cognitivo", in BARBO-SA. M. H. I.. & CAVALCANTI. M C. < 1984) (orgs.) Anais / Encontro Inteidiscipli-nar de Leitura. Londrina: Universidade Estadual dc Londrina.

THOMAS. E L. Sc H.A. ROBINSON. impiovmx Heading in Every Class. Boston. Mass.: Allyn & Bacon. 1976.

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CAPÍTULO 6 A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO DO TEXTO

No processo de aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isso mesmo, re-inventá-lo; aquele, que é capaz de aplicar o aprendido-

apreendido a situações existenciais concretas. Paulo Freire

6.1 HABILIDADES LINGÜÍSTICAS E COMPREENSÃO GLOBAL

Existem ainda muitos aspectos ligados àcompreensão que foram igno-rados neste volume. A omissão deve-se. parcialmente, ao fato de tratar-se de capacidades mais abrangentes, habilidades lingüísticas pertinentes não só à compreensão do texto escrito, nosso objeto específico, mas à compreensão e produção de linguagem em geral. Assim, neste capítulo teceremos algumas primeiras considerações sobre as habilidades do leitor para compreender as-pectos globais do lexto, isto é, enquanto objeto de um programa para ensinar a leitura.

Dentro do conglomerado de capacidades que é geralmente postulado como con junto de hábil idades de leitura pelos psicólogos c educadores que se preocupam com a questão, são distinguidos os seguintes fatores: a capacida-de para perceber a estrutura do texto (que se trata mais de uma capacidade pa-ra construir uma estrutura), a capacidade para perceber ou mesmo inferir o tom, a intenção, a atitude do autor (que preferimos designar como capacida-de para atribuir uma intenção), a capacidade de fazer paráfrases do texto.

Esta última, a capacidade de fazer paráfrases, é utilizada na literatura com o sentido de designar aquelas operações que estão envolvidas em con-tar o texto com as próprias palavras. A capacidade estaria demonstrada quando o leitor consegue responder perguntas sobre o texto, recontar o tex-to parcial ou totalmente, fazer um resumo do mesmo. Fia depende, em gran-de medida, da percepção das relações entre as estruturas mais locais do lex-to, sendo, portanto, decorrência da utilização de estratégias adequadas de processamento.

No entanto, a paráfrase também vai além da compreensão de pistas lo-cais, pois para fazer um paráfrase adequada o leitor precisa perceber o global, transformar os elementos locais num todo coerente. Como é também a habi-lidade mais visada pelo professor e pelo livro didático (apesar de limitarem.

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muitas vezes, a tarefa de compreensão à solicitação de respostas sobre infor-mações que esrão explícitas no texto), e como depende de habilidades que já foram ou serão discutidas em maior detalhe, não nos deteremos nessa capa-cidade específica, mas abordaremos diretamente as habilidades que envol-vem a atribuição de significados globais ao texto.

Assim, focalizaremos neste capítulo as duas habilidades que contri-buem para a capacidade de construir significado textual e sentido coerentes, tanto mediante a percepção e construção da forma ou estrutura textual, quan-to mediante a atribuição de intencionalidade ao autor. Serão fornecidos exemplos de análise textual focalizando aspectos globais do texto, tal qual poderiam ser construídos com os alunos na aula de leitura, na expectativa de apropriação, por parte do leitor, dessa maneira de analisar o texto, e posterior aplicação a outras leituras de outros textos.

6.2 CONSTRUÇÃO DC ESTRUTURA

Consideramos parte constitutiva da capacidade de construir uma estru-tura. utilizando como materiais as pistas lingüísticas locais, aquelas habilida-des que integram elementos discretos do texto através de operações para a unificação de funções, e para a procura e identificação de categorias superio-res que serviriam como conceito guarda-chuva para os diversos elementos locais.

A fim de entender melhor os conceitos relativos à estrutura do texto, é importante pensar no texto como tendo dois aspectos globais profundos, que não pertencem à superfície, no sentido em que os elementos locais perten-cem. e que devem ser construídos na base desses elementos locais: um relati-vo à construção de um significado e que esta diretamente ligado ao assunto, que seria a MACROESTRUTURA, e outro relativo à construção de uma ar-mação sustentadora do assunto, que estaria ligado ao gênero, que seria a es-trutura ou SUPERESTRUTURA.

No exemplo a seguir temos um texto expositivo, cujo terna é a extinção das emas. A noção tema pertence à conceitualização da SUPERESTRUTU-RA do texto enquanto que a proposição as emas estão em perigo de extinção faz parte da MACROESTR1JTURA, pois é uma proposição que tem a ver com o significado do texto, que se refere ao conteúdo do texto. Faz parte da estrutura do texto marcar a relativa importância das informações mediante a ordenação, a hierarquização das mesmas. O tema. que é principal, é uma das primeiras informações do texto, sendo também várias vezes retornado. No exemplo, o tema pode ser reconstruído a partir da ilustração e legenda, do tí-tulo e do subtítulo e ele ainda é repetido no 1 - parágrafo:

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( I )

Correa e seu traje: 500 -punas

As fantasias mortais Com a chegada do Carnaval, os figurtnistas colaboram para a extinção das emas

A lista de 86 animais considerados em extinção no Brasil, elaborada há onze anos pelo Instituiu Brasileiro de Desen-volvimento Florestal (IBDFJ, está in-completa; na relação falta a ema Esse parente de menor porte da avestruz afri-cana, que em tempos remotos povoou os campos sul-americanos, da Argentina ao Nordeste brasileiro, e ainda resistia há poucas décadas no painpa gaúcho, tam-bém está desaparecendo. Não bastassem os caçadores, apreciadores de sua carne macia, e os fabneantes de espanadores, cm busca dc suas penas, o intensivo uso de agrotóxicos nas lavouras, durante os últimos dez anos. acelerou o processo de rarefaçào da ema. A lodos esses inimigos costumam juntar-se. 110 inicio de cada ano. os figurinislas do Carnaval são poucos os que dispensam a leveza das plumas em suas fantasias.

hmbora desprezadas por carnavalescos célebres como o veterano Clóvis Bomay, do Rio de Janeiro, que prefere penas da avestruz africana, as plumas da ema desfru-iam dc grande prestigio entre os foliões mais modestos, sobretudo cm decorrência de seu preço: em tomo de 400 cruzeiros cada, contra até 7 mil pagos pelas importa-das hm Porto Alegre, por exemplo, Chico

... arrancadas de emas do campa

Correa. íigunnista da escola dc samba de Vila Rcsünga, uma das mais modestas do Carnaval gaúcho, dá os retoques finais numa fantasa que leva quinhentas penas de ema. O íigunnista recusa-se a acreditar que os animais estejam sendo sacrificados. "As penas são apanhadas na época de muda, uma vez por ano", imagina ele. Não é o que ocorrc, porém.

Com efeito, pesquisas recentes dos professores Airton Batista dos Anjos e Henrique Queirol Chiva, da Faculdade dc Zootecnia dc Uruguaiana, no Kio Grande do Sul, na fronteira com a Ar-gentina. chegaram a números dramáti-cos. Ao vasculhar uma área dc 2.380 quilômetros quadrados - um terço do município - . os pesquisadores consegui-ram contar exatas 2.345 emas, ou 78% a menos que as 10.646 aves catalogadas há trinta anos na mesma regiáo Entre as causas do extermínio, o delegado esta-dual do IBDF, João Pedro Simch Bro-chado, relaciona uma particularmente atroz: "Muitas emas morrem cm conse-qüência de inflamações nas feridas aber-tas pelos que arrancam suas penas para vendê-las no comércio". A

IstoÉ, 29/2/1984, 85

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Quanto à hierarquia, ou ordenação ern termos de relativa importância, entre as informações veiculadas no texto, encontramos que a relação dc uma das causas dessa extinção é tão importante quanto a primeira informação te-mática: tamhém faz parte do título, do subtítulo, das gravuras, do primeiro parágrafo. Daí podermos dizer que o tema é o perigo de extinção das emas devido à matança a fim de comercializar suas penas para fazer fantasias.

A aceitação dessa análise, isto é. que essa informação causal também é parte do tema sugere a emergência de uma estrutura mais abstrata em que imi-to o problema, extinção das emas, como as causas do fato. devido à comer-cialização das penas para fantasias, são hierarquicamente equivalentes: o texto expositivo leria uma estrutura binária contendo um evento e as causas do evento, ou melhor, causa e conseqüência. A essa configuração dá-se o no-me de superestrutura. Propomos, para fins pedagógicos, a análise do texto ex-positivo como uma estrutura binária. Tal estrutura binária é básica e aplica vel a diversas formas de organizações do texto expositivo: assim, diversos ti-pos de textos podem ser analisados como tendo estruturas binárias — proble-ma/solução, tese/evidência, generalização/exemplo. Note-se que essa estru-tura é recursiva: por exemplo, a solução de um problema pode ter a estrutura de urna tese e uma evidencia, e assim sucessivamente.

Continuando a análise do texto mediante a retomada dos conteúdos se-mânticos, podemos dizer, então, que entre as causas listadas para a extinção das emas, a mais relevante para o autor desse texto é o comércio de suas pe-nas para fazer fantasias, fazendo parte, portanto, do tema. Outras, menos im-portantes estruturalmente (note-se. por exemplo, que são mencionadas ape-nas uma vez. versus as sete referências às fantasias e ao carnaval) seriam a ca-ça. uso de agrotõxicos.e outros casos de comercialização das penas. Essa é. basicamente, a macroestrutura do texto, isto é, o conjunto de informações e suas relações não superficiais.

A capacidade de perceber a estrutura do texto estaria demonstrada se o aluno percebesse as relações entre diferentes panes do texto para construir um sentido global coerente para esse texto, tal como acima. Essa capacidade implicaria a capacidade do aluno para:

1) depreender o tema: 2) construir relações lógicas e temporais; 3) construir categorias superestruturais ou ligadas ao género: 4) perceber relações de hierarquização entre as diversas informa-

ções veiculadas (por exemplo, idéia principal versus detalhe).

Recapitulando, a depreensão do tema implica a integração das diver-sas informações no texto numa proposição genérica que incluirá todas as in-formações e só elas. Para tal. o leitor deverá perceber as relações entre as di-versas partes do texto e integrá-las num todo que seja coerente com as par-tes. Para a construção de relações lógicas, como as de causa e efeito, por exemplo, o leitor deverá procurar uma categoria maior, que pode ser tema, ou os componentes de um dado tipo de texto (tal como problema c solução

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num texto expositivo), que permita integrar as informações em termos de uma relação abstrata que subjaz à estruturação e boa formação do texto. E assim sucessivamente.

Ate na identificação dc componentes de uni determinado gênero tex-tual — o s componentes da superestrutura — que estariam altamente determi-nados por serem os mesmos para cada exemplar canónico do tipo. o leitor de-vera interpretar as pistas locais em termos de uma categoria global (como, por exemplo, a interpretação dc uma série de verbos no pretérito perfeito co-mo marcadores do início da complicação — um dos componentes da supe-restrutura da narrativa — de uma estória).

A capacidade de perceber o todo com base nas partes, de construir re-lações globais a partir de pistas locais, exige grande capacidade de abstração do leitor. Podemos criar condições para o desenvolvimento dessa capacida-de mediante a leitura dc textos mais simples, que. pelo fato dc não exigir de-mais quando do processamento de aspectos lingüísticos locais (relacionados ã sintaxe da frase, relações coesivas, léxico), permitem-lhe voltar sua atenção à tarefa dc depreensão de aspectos estruturais globais.

Entre os textos mais simples, que assim facilitariam o aspecto proces-sual da leitura, podemos pensar em textos mais curtos, que requerem menos da memória de trabalho, ou em tabelas e gráficos, que além de serem textos curtos, mostram visualmente relações entre as diversas informações, ou ain da em textos que explicitam as relações entre as informações, mediante títu-los. subtítulos, parágrafos anunciatórios. c elementos de coesão na retomada e na antecipação da informação.

Devemos também lembrar que o conhecimento sobre um assunto tor-na-o mais simples, e o conhecimento sobre um evento torna-o mais familiar. Isto pode ser estendido ao gênero do texto: quanto mais diversificada a expe-riência de leitura dos alunos, quanto mais familiaridade eles tiverem com tex-tos narrativos, expositivos, descritivos, mais conhecida será a estrutura des-se texto, e mais fácil a percepção das relações entre a informação veiculada no texto e a estrutura do mesmo.

O Ensino: Exemplos de Gradação de Complexidade

Examinaremos, a seguir, dois exemplares de textos simples que libe-ram a memória de trabalho para fazer abstrações mais profundas: a ilustração com legenda e o gráfico.

Ilustração com Legenda

Trata-se de um texto extremamente simples que permitiria, portanto, voltar a atenção para a realização de tarefas mais complexas. Nos exemplos (2 a 4) a seguir, temos três fotos com legendas que exemplificam três tipos de textos informativos: narrativo em (2). descritivo em (3) e expositivo em (4).

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Consideremos o texto "Garça mergulha no petróleo", a seguir: (9)

GARÇA MERGULHA NO PETRÓLEO Uma garça (foto) mergulhou anteontem em uma poça de óleo na baía de Galveston, no Texas (EUA). Dois milhões de litros de petróleo vazaram

na baia, devido ao acidente com um petroleiro grego, no sábado. .4 coleta e comércio de peixes e outros animais da baía estão proibidos.

Folha de São Paulo, 5/1991

Devido à curta extensão do texto, ao apoio da gravura e à proximidade do assunto, o texto não apresenta grandes dificuldades para um leitor nas séries ini-ciais. apesar de não se tratar de uma narrativa canónica, uma vez que se inicia pe-la complicação. Poder-sc-ia, então, lazer um trabalho para ensinar o aluno a ana-lisar o texto ã procura de estrutura desse relato jornalístico, que, começando com a complicação, ou evento que motiva a estória, passa a fornecer o cenário, que inclui dois episódios — o vazamento de petróleo e a poluição da baia — um de-les sendo pano de í undo e a causa do evento. O fim da estória aponta outras con-seqüências. Através de perguntas sobre o que aconteceu e por que aconteceu, o professor pode reconstniir a estória e as relações entre os diversos episódios (garça atingida, baía poluída, petróleo vazado e fauna em perigo). A tareia do aluno pode ser, por exemplo, a reconstrução da cadeia temporal e causal me-diante a elaboração de um esquema ou mapa das informações do texto, ou a re-dação de uma estória canónica mais elaborada c rica cm detalhes.

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Tarefas semelhantes podem ser pensadas para a leitura de textos como o exemplificado em (3), "Falta de água", a seguir:

(3)

FALTA DE AGUA Um besouro do deserto da Namíbia o mais antigo do mundo— se apóia sobre a cabeça para recolher a umi-dade da neblina, praticamente

a única fonte de água da região (foto). A medida que o vapor se condensa em seu corpo, as gotas escorrem para a boca do besouro.

Folha de São Paulo, 27/9/1990

O texto é basicamente descritivo, e embora forneça informações, ele difere do texto informativo do livro didático, uma vez que a particularização da entidade (um besouro) contribui para uma conotação de atualidade e per-tinência da informação. A estrutura descritiva determina o tipo de perguntas dc compreensão que podem ser feitas: como é o besouro. onde ele mora. co-mo ele coleta sua água, como ele a bebe. por que precisa desse sistema para beber. Entretanto, na medida em que textos descritivos como esse são relati-vamente simples, com uma estrutura binária que consiste do objeto e suas ca-racterísticas, a leitura do texto poderia ser aproveitada para a introdução de elementos estruturais mediante perguntas do seguinte tipo: qual é o tópico do texto (ou assunto), qual é a ideia principal sobre o assunto, o que é detalhe. Novamente, uma das tarefas do aluno poderia ser organizar essa informação hierarquicamente, através de um esquema do texto.

O último exemplo selecionado. "Peixe vivo fora da água Iria", que também conta uma estória, pode ser explorado como um exemplo de uma es trutura expositiva contendo uma tese e uma evidência. O trabalho em torno da tese é facilitado pelo fato de ela estar resumida no título, que remete a uma ciranda que prega a tese contrária, de senso comum (Como pode um peixe vi-

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vo viver fora ci água fria?). A evidencia, por sua vez, consiste de um relato sobre um acontecimento. IJma vez que a evidência mediante relato de expe-riência pessoal é comum na criança, a evidência de relato de um falo não apresentaria maiores dificuldades, ao mesmo tempo em que constituiria um nível intermediário entre a evidência altamente contextualizada da criança e a evidência abstrata de textos dissertativos. por exemplo.

PEIXE VIVO FORA DA ÁGUA FRIA Uma chuva inesperada permitiu ao norte-ame-ricano Tim Berra provar que o peixc-salaman-dra (foto) da Austrália sobrevive cm lagos secos. Da noite para n dia. uma lagoa desabi-tada apareceu cheia de espécimes —inclusive

adultos— que haviam se enterrado na areia úmida ou na lama. Berra sugere que. nesses casos, o peixe respira como uma salamandra de verdade —ou seja. o oxigênio se difunde através de sua pele e vasos sanguíneos.

Folha de São Paulo, 21 /9/1990.

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Pressupondo que o texto se insere num contexto de divulgação cientí-fica. algumas questões relevantes para a leitura seriam o estatuto do norte-americano citado, o que cie disse a respeito do peixe-salamandra e como foi comprovado o que ele dissera. Novamente, se essas questões forem discuti-das utilizando categorias superestruturais superiores, como lese e evidência, ou teoria e prova, ou ainda interpretação e fato, estaremos criando condições para o aluno integrar as informações em categorias maiores.

Gráfico ou Tabela

Trata-se de um outro tipo de texto cuja simplicidade deve-se ao supor-te da ilustração, podendo, portanto, também ajudara criança, segura em rela-ção ao processamento do material escrito, a perceber relações mais abstratas.

Consideremos o exemplo (5). um gráfico retirado de um texto jornalís-tico provavelmente complexo demais para crianças nas séries inferiores do primeiro grau, pois apresenta grande quantidade de informações, algumas de caráter técnico. (O texto completo está no fim deste capítulo).

A poeira que respiramos (microçjramas por metro cúbico!

Locai rfa estação de amostragem

Poeira fina*

Poeira grossa"**

Totais

Sio Pwto (SP) 31 52 83 P*to Akg«« (RS) 15 56 71

Beto Hoaswtíe (MG) 18 28 46 Salvador <BA) 11 24 35 jh.

Vitória (ESI 16 26 « Cnniajem <MG) 14 79 93 Serra da Jurtu (SP) B j iZt—J 13 21

• Rasutta da convttnáo da gases produzidos por combustão am indústrias a cam» e txlng« tfinlarrmiP os ttronqoiòtoi« os áfnJútoé puimonaras

" Levantada pah vmUo sai eta terra 9 da indústrias o causa probiamas ao nariz, oarçanta a tnònqu^os.

Qos: O árwta métimo tviorâvoi para a poeira am suspansio. noa Estados Unidos, á da S3 microgramas pot natro cúM» da ar. O 8fasu ainda rrio tocou o sou Mc*»

Fcr>* QtPA -OW

/stüÉ,2&'3'l9H4.

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Entretanto, se focalizarmos apenas a informação üo gráfico, a leitura do mesmo não somente prepara para a leitura posterior do texto (no Apêndi-ce), mas apresenta, de forma simples, praticamente um resumo do texto que acompanha: cie traz as informações mais importantes e suas relações entre si. O aluno poderá ler o texto de posse da macrocstrutura do mesmo. Note-se que estão aí os tópicos e subtópicos, tais como: índices de poeira fina e de poeira grossa no arem diversas cidades do Brasil; correlação entre industrialização e poluição; tipos de poluição segundo diferentes tipos de indústrias, proble-mas para a saúde que essa poluição acarreta, lista aí também, no desenho do morador de cidade com máscara antigás, a opinião ou comentário sobre a se riedade do problema. A caracterização do evento como um problema pode servir de suporte para relacionar todos os outTos conteúdos e agrupá-los na categoria causa, novamente dentro da estrutura binária causa e conseqüência.

Comparando o gráfico com o texto, falta informação de detalhe: exem-plos e casos, bem como informação sobre o método para determinar os níveis de poluição. Essa última seria, naturalmente, uma pergunta que um leitor que prediz e antecipa poderia lazer a si mesmo, cabendo ao professor portanto, modelar esse comportamento, facilitando ainda mais a leitura do texto de processamento mais complexo. Assim, embora a dificuldade conceituai da informação que está sendo veiculada seja a mesma nos dois tipos de textos, relato e gráfico, na leitura do gráfico, a dificuldade instrínseca do processa-mento de um texto mais comprido seria evitada.

A complexidade da tarefa envolvida na construção de uma macrocstru-tura semântica não é fator apenas da complexidade exigida para o processa-mento. Para toda tarefa de compreensão, seja qual for a extensão do texto en-volvido. o conhecimento prévio do aluno, a posse de conceitos ou famílias de conceitos que lhe permitam interpretar o novo, a interação com o adulto mais experiente, são de suma relevância para fazer das partes um todo.

6.3 INTERAÇÃO: ATRIBUIÇÃO DE INTENCIONALIDADE

Perceber a estrutura do texto é chegar até o esqueleto, que basicamen-te é o mesmo para cada tipo textual. Processar o texto é perceber o exterior, as diferenças individuais superficiais; perceber a intenção, ou melhor, atri-buir uma intenção ao autor, é chegar ao íntimo, à personalidade através da in-teração. E uma abstração que se fundamenta nas outras.

Lembremos da discussão do texto (1), "As fantasias mortais", que concluímos com uma descrição das causas apresentadas pelo autor para o perigo de extinção das emas. A causa principal, tematizada pelo autor, era o comércio das penas durante o carnaval. Lembremos que ela era mencionada no título ( fantasias mortais), no subtítulo (<chegada do carnaval, extinção das emas), no primeiro parágrafo (A todos esses inimigos costumam juntar-se. no início de. cada ano. os figunnistas do Carnaval), era retomada me-diante casos e exemplos no segundo parágrafo, (as plumas da ema desfru-tam de grande prestígio entre os foliões mais modestos;.. .figurinista da es-

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cola de samba...dá os retoques finais numa fantasia que leva quinhentas pe-nas de ema).

Seguia-sc uma série de evidências do desaparecimento das aves. Se lis-tarmos essas evidências, subordinadas à causa principal, teremos dois argu-mentos baseados na autoridade, a saber, a pesquisa de dois professores uni-versitários, que contaram as emas que restam no pampa, e o depoimento de um delegado estadual do Instituto Brasileirode Desenvolvimento Florestal, que viu as emas morrerem (note-se. entretanto, que nenhum desses dados es-tá necessariamente ligado ao uso das penas 110 carnaval). Temos ai. em maior detalhe, a macroestnitura do texto, bem como as relações de subordinação entre as diversas informações.

Tal esquema não reflete, no entanto, aspectos significativos relativos ao viés argumentativo desse texto: em primeiro lugar, ele foi publicado du-rante a época de carnaval, quando justamente as penas seriam mais procura-das; em segundo lugar, ele apresenta uma gravura de um ligurinista com seu traje de 500 penas, descrito no texto em contraposição a uma solitária ema no campo; cm terceiro lugar, nele o autor caracteriza o problema como ex-termínio, e a morte como arroz; em quarto lugar, quando, no segundo pará-grafo, são apresentadas as causas da diminuição das aves. constrói-se uma escala argumentativa cm que as causas do extermínio culminam com o uso das penas no carnaval: Não bastassem os caçadores, apreciadores de sua carne macia. e os fabricantes de espanadores, em busca de suas penas, o in-tensivo uso de agrotóxicos nas lavouras, durante os últimos dez anos, ace-lerou o processo de rarejação da ema. A todos esses inimigos costumam juntar-se. no inicio de cada ano. os figurinistas do Carnaval.... Em quinto lugar, inclui-se. no fim do texto, como arremate final, uma vivida citação do especialista que presenciou a morte das aves: "Muitas emas morrem em conseqüência de inflamações nas feridas abertas pelos que arrancam suas penas para vendê-las no comércio". Por último, esse arremate constitui o argumento final numa série de argumentos a nível global, que começa com a introdução do assunto (no primeiro parágrafo, ao listar os figurinistas do Carnaval como um dos agentes causadores da desaparição das emas), conti-nua mediante a apresentação de dados numéricos quanto ao grau de respon sabilidade dos figurinistas (no segundo parágrafo, em relação ao número de penas necessárias para apenas uma modesta fantasia), prossegue com um terceiro e decisivo argumento, baseado na autoridade, e em números, (as pesquisas recentes dos professores da Faculdade bem como os números dramáticos do terceiro parágrafo) sobre a extensão da matança que pratica-mente já fez desaparecer o animal, até chegar ao quarto e chocante argumen-to, baseado na descrição do sofrimento das aves.

A interpretação dessas e de outras pistas locais e contextuais, numa unida de coerente, implica atribuiruma intencionalidade ao autor. Salientar essas pistas para o aluno é o primeiro passo para ele poder atribuir-lhe uma função nessa di-mensão, para depois, o próprio aluno fazer análises semelhantes de outros textos.

Novamente, a tarefa é mais abstrata, porém fácil de desenvolver, desde que o aluno entenda a leitura como comunicação c interlocução, isto é, o tex-

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to foi escrito para dizer, e mediante o di/er. fazer: persuadir, chocar, enganar. Para criar condições para o aluno paulatinamente ir desenvolvendo sua

capacidade de perceber a relação entre a função do elemento textual e a inten-cionalidade, é importante um trabalho de conscientização lingüística crítica. Is-to c. não é suficiente analisar como a linguagem funciona no texto, mas tam-bém como a linguagem está a serviço das intenções do autor. A tarefa é com-plexa. mas pode ser facilitada fornecendo exemplos de análise, que ajudarão ao aluno a perceber elementos que depois ele passará a perceber em outros textos.

Análise Crítica da Linguagem

Já vimos, no decorrer dos capítulos anteriores, alguns exemplos de análise crítica dos usos da linguagem. No capítulo 1 comparamos a lingua-gem de uma advertência na vida real com uma advertência em bula de re-médio, mostrando como a sintaxe e o vocabulário mais complexos pressu põem um leitor bem informado, para (piem o saber de cunho científico dis-pensa de legitimação, e como a aceitação acrítica dessa atitude interfere negativamente na interação com grupos que não partilham dessa fé na ciência.

No Capítulo 2, apresentamos um exemplo de construção de sentido com uma turma de adultos no início do processo de alfabetização mediante a análise da função de apenas uma palavra, escândalo, que, em vez de ser ana-lisada como polissilábica, ou substantivo singular abstrato, como é de praxe em contexto escolar, pode ser discutida enquanto veículo para a expressão de uma atitude ou de uma opinião.

Vimos exemplo semelhante no Capítulo 4, quando da discussão de uma propaganda que mobilizava o conhecimento sobre o gênero: o foco no pronome pessoal de segunda pessoa do singular cedeu lugar e abriu espaço para discuti-lo como o elemento que. pelo falo de servir para significar rela-ções entre os interlocutores, criava o efeito de bate-papo íntimo e informal entre uma multinacional e seu alvo, o potencial consumidor. Ainda nesse mesmo capítulo, trabalhando o assunto de um texto, mostramos como a re-construção de uma premissa abstrata era facilitada quando o aluno conseguia atribuir uma intenção ao autor pelo fato de ele usar as palavras assassino, as-sassinato, matador profissional. contratante. Esse tipo de percepção, tal qual nos outros exemplos citados, não c facilitada pelo fato de saber que elas per-tencem às classes de nomes e adjetivos, ou de que eles são comuns ou pró-prios, concretos ou abstratos. Se o aluno perceber como a csirutura lingiiísti ca dá suporte ao pensamento e às intenções do autor, ele conseguirá ler criti-camente: se ele apenas souber como classificar partes dessa estrutura, a cons-cientização lingüística crítica é impossível.

Embora a discussão de noções numa análise textual crítica não seja ob-jetivo deste trabalho, apresentaremos aqui os pressupostos de tal análise lin-güística, para, em seguida, retornar alguns conceitos gramaticais que já fo-ram apresentados em diversas passagens e que serão necessários para análi se a seguir.

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Um pressuposto da análise diz respeito ao reconhecimento de que a lin-guagem tem funções diferentes, entre elas a ideacional ou referencial: a inter-pessoal ou social ou expressiva; a poética, que fornecem um marco de análi-se para as diferentes expressões lingüísticas. Assim, podemos analisar o uso do pronome você, no texto propagandístico, relacionando-o a duas funções, a interpessoal, pois marcava uma relação de intimidade entre leitor e autor, e a poética, pois a reiteração, fenômeno que chamamos de hiperlexicalização, produzia o efeito de realçar essa relação, de tomá-la o conceito mais impor-tante do texto.

Um outro pressuposto da análise, ligado ao anterior, diz que é possível perceber significados sociais na gramática, pois as escolhas gramaticais c le-xicais dos interlocutores (mesmo que inconscientes) são produtos de objeti-vos e intenções, que por serem socialmente determinados, por relletirem rela-ções de poder entre os participantes, não são naturais e podem ser objeto do en-sino crítico da língua. A esse ensino dá-se o nome de conscientização crítica da linguagem, enquanto que a área que se preocupa em descrever a relação en-tre forma e relações de poder é conhecida como análise crítica do discurso.

Os aspectos que essa linha de análise considera mais relevantes para o estudo da relação entre forma e fatores sociais são: a modalidade, as noções embutidas nas classes gramaticais e as transformações. Isto é, a análise críti-ca da linguagem procura os significados de cunho social que possam ser per-cebidos no sistema de relações interpessoais entre autor e leitor, nas catego-rias e classes gramaticais, nos processos de transformações sintáticas. Vere-mos alguns exemplos dessas últimas a seguir.

Em relação às classes gramaticais, já examinamos em diversas passa-gens a noção de identificação de um objeto a partir de urna cena perspectiva conseguida através da adjetivação. Pensando no ensino de gramática a partir de uma perspectiva analítica crítica, não interessa saber que se trata da classe que modifica ou dá qualidades ao nome; interessa saber a função, isto é, que é através do adjetivo que o falante descreve, ou identifica, dentro do conjun-to de objetos nomeados pela palavra, aquele sobre qual ele está falando, e que seu ouvinte começa a indentilicação do objeto dessa perspectiva, podendo aceitá-la ou não.

Interessa também, ainda da perspectiva crítica, o processo através do qual o adjetivo (entre outras classes) passa a categorizar, a dar nomes às pessoas: o aidético, o tuberculoso, a feminista. Mediante a criação de uma categoria podemos, por um lado, criar entidades c consolidar novos concei-tos. e por outro, e tornar conspícua aquela característica realçada, apagan-do qualquer outra e, de certa maneira, determinando, num primeiro mo-mento, a maneira como o interlocutor percebe o objeto. Assim, ao catego-rizar alguém como analfabeto (como em O analfabeto não deve votar), des-tacamos apenas aquele aspecto da pessoa referida, apagando outros igual-mente importantes: está se falando do adolescente analfabeto, do operário analfabeto, do peão analfabeto, do líder sindical analfabeto? E claro que a categorização visa a objetivos específicos, para os quais devemos estar atentos, enquanto leitores.

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Um outro processo que também pode ser foco de análise crítica é a transformação de ações em nomes, através do processo de NOMINALI7.A-ÇÃO, como em "A dívida com o governo do Estado é de Cr$ 400 milhões" construção que apaga os participantes, neste caso o agente, quem está deven-do, e o tempo em que a ação aconteceu, isto é, há quanto tempo se está deven do. Essas informações são incluídas quando a construção é transitiva: "O em-presário está devendo CrS 400 milhões ao Estado há meses". Por outro lado, a nominalização, que toma o texto mais impessoal (não temos mais agentes atuando no tempo, mas apenas o resultado da ação) serve efetivamente para tornar uma informação em algo dado, já conhecido dos interlocutores. Esse eleito fica evidente 110 trecho a seguir, onde o que era novo, sendo expresso através de construção transitiva no primeiro período, passa a ser dado, sendo expresso através de construção nominalizada no segundo:

( 6) O empresário Fedro Collor não pagava as contas de luz das Or-ganizações Arnon de Mello — empresa que comandava até di-vulgar as denúncias contra Paulo César Farias , há seis me-ses. A di\ ida com o governo do Estado é de Cr$ 411 milhões. (Folha de São Paulo, 6/1991)

F.sses são alguns exemplos do tipo de trabalho com a gramática que po-dem promover a percepção da relação entre forma e significado, c como o sig-nificado está relacionado aos objetivos e intenções do autor. A leitura c a ativi-dade que criará as melhores condições para a conscientização lingüística críti-ca do aluno, pois no texto essas relações estarão redundantemente marcadas.

O Ensino: Um Exemplo Contrastivo

Não c apenas o texto cuja função principal é a de expressar uma opinião que deve ser lido criticamente: toda leitura de qualquer texto, por mais neu tro que pareça, está inserida num contexto social que determina as maneiras de escrever c de ler. Por outro lado. haverá textos que. do ponto de vista do ensino, facilitam o trabalho de conscientização lingüística crítica, como os editoriais, que justamente permitem a comparação com relatos mais factuais, utilizando para isso o contraste, que é fundamental para aprender.

Desde as primeiras séries, a comparação entre o "fato" e a opinião é uma atividade que pode promover condições para o desenvolvimento de uma habili dade lingüística crítica, que será fundamental não apenas para a leitura, mas tam-bém para a produção de textos. Fica difícil, no entanto, visualizar um trabalho mais crítico com crianças, cuja leitura consiste de textos como no exemplo (7):

(7) Os coelhinhos

Os coelhinhos gostam de comer verdura na horta da Jazenda.

Alguns coelhos têm grandes orelhas...

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Outros têm oreihinhãs graciosas. Os coelhos correm muito depresa. Há coelhos com as mais diferentes cores:

azulado, avermelhado, cinza e alguns com o rabo branquinho. Os coelhos têm sempre grande (sic) famílias. (2a série)

Entretanto, até com leituras como essa. pode-se pensar num trabalho inicial de conscientização sobre a função da adjetivação, se o aluno come-çasse a perceber a diferença entre a descrição mais factual e a avaliação subjetiva. Note se que NÃO recomendamos a leitura de textos como esse; poréin sabemos que tal leitura é uma realidade, pois o livro didático, do qual o exemplo foi retirado ainda é utilizado. Nesse caso, sabendo que as editoras continuam publicando e vendendo livros como esse, e que o pro-fessor continua a usá-los, estamos recomendando que. pelo menos na aula. a atividade seja pensada como um suporte na construção para atividades mais complexas posteriores.

Veremos, a seguir, um exemplo de uma atividade de leitura cujo ob-jetivo era o de fornecer instrumentos ao aluno para perceber diferenças en-tre relatos de notícia e textos fornecedores de opinião. Uma versão dessa atividade foi realizada numa sexta série. Os textos que foram utilizados fo-ram dois relatos de notícia e um editorial sobre o mesmo assunto, de atua-lidade em julho de 1991. Transcrevemos, em (8) a seguir, um dos relatos da notícia:

(8) COLLOR REAGE À PROVOCAÇÃO FAZENDO GESTO OBSCENO

Um protesto de grevistas da Universidade de Brasília durante a solenidade de descida da rampa do Palácio do Planalto. ontem à tarde, provocou duas prisões e levou o presidente Fernando Collor afazer um gesto obsceno (com o dedo médio em riste e o indicador e anular recolhidos) em resposta a gesto idêntico feito por manifestantes. Eram cerca de 30 estudantes, funcionários e professores da UnB, uma das universidade federais em greve, isolados das pessoas que estavam diante do Planalto para a ce-rimônia. A s 18:05, o presidente entrou em seu carro. Pelo menos um dos manifestantes fez o gesto. Collor inclinou-se sobre um se-gurança e esticou o braço direito, devolvendo o gesto (Folha de São Paulo, 13/7/1991).

Embora já haja, embutida no relato, uma avaliação do fato pela carac-terização do gesto como obsceno, e pelo seu destaque, em manchete, o trecho acima está praticamente inocente de outros juízos valorativos. Diferente é o caso do editorial, a seguir, cuja leitura pode servir para realçar as diferenças, tornando a atribuição de intencionalidade, num texto complexo, mais fácil:

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(9) Editorial

IRMANADOS NO GESTO Onde, quando e por que Colloré um modelo a ser imitado

Para convidar alguém a padecer a mesma, humilhante e baixa insinuação, o gesto já foi outro, juntando as pontas do po-legar e do indicador e com estes dedos formando um círculo. Mas a gente gosta de importar modas e trejeitos, e temos até vo-cação para tanto, porque aprendemos depressa. Somos imitado-res formidáveis e assim, vendo em ação na tela vilões de filmes hollywoodianos. ou. no vídeo, o tenista McF.nroe enfurecido com um guarda-linha, substituímos o gesto tradicional. Agora vamos de dedo médio em riste. A operação, é justo reconhecer, ficou simplificada. Mais enxuta, mais econômica pelo envolvimento de um único dedo, sem perder coisa alguma em dramaticidade, possivelmente ganhando. As vezes, a mercadoria importada é de ótima qualidade.

Ideal, a bem do efeito, seria que todos tivéssemos, na hora de produzir o tal gesto, o talento teatral do Presidente Fernando Collor. Ao descer a rampa, há poucos dias. o primeiro mandatá-rio conseguiu um resultado extraordinário erguendo o dedo na direção de umas centenas de manifestantes que o vaiavam. O já citado McEnroe. alguém que realmente está por dentro do as-sunto, ficaria com inveja. Ninguém melhor que Collor consegui-ria imprimir tamanho vigor ao movimento do braço e inflar tão poderosamente as cordas do pescoço, pondo em risco o botão do colarinho crocante, e encher os olhos de raiva igualmente genuí-na. Collor virou o modelo deste específico número de um gestual popularesco e icástico.

O presidente da República é um paradigma em inúmeros domínios, e até parece que alguns jogadores da seleção brasileira de futebol estariam inspirando-se nele (...) (IstoéiSenhor. 24/7/911

Deslocando a atenção do leitor, no parágrafo inicial, para o significado c história do gesto, a autoria do mesmo passa a segundo plano. O fato de o Presidente da República ser autor desse gesto não é mais noticia, isto é, fato diferente, inesperado; passa a ser pano de fundo; já faz, por assim dizer, par-te da paisagem. E não apenas porque a notícia lenha uma semana de vida. mas porque o autor do editorial toma cuidado de construir o texto de maneira que a notícia não lique cm relevo.

Como apontávamos, o processo através do qual transformamos ações em nomes tem o efeito de tornar aquilo que era novo, que estava sendo comu-nicado, em dado, em pressuposição, aquilo que é sabido pelos participantes.

Note-se que esse é o processo sintático em funcionamento na constru-ção do trecho acima. O tópico é o gesto de insinuação humilhante e baixa. Es-

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sas características não são predicadas do gesto (isto é, o autor não afirma que 0 gesto insinua algo humilhante e baixoi, e mais importante ainda, ao con-trário do relato anterior (exemplo 8). que contém várias construções que afir-ma a ação (reage (..) Jazendo gesto obsceno, levou (..) a fazer um gesto obs-ceno. inclinou-se (...) devolvendo o gesto), no primeiro parágrafo do editorial o gesto é tópico, sendo várias vezes retomando: a operação... ficou simplifi-cada. a dramaticidade /da operação /. a mercadoria importada.

A ação foco da notícia não é salientada: ela não c veiculada mediante ora-ção principal. Trata-se de um adjunto adverbial, num caso — ideal seria que to-dos tivéssemos o talento teatral do Presidente (...) na hora de produzir o tal gesto —, e de uma construção de gerúndio, subordinada à principal no outro — conseguiu um resultado extraordinário erguendo o dedo na direção!...). As-sim. essa informação passa a ser pano de fundo para os comentários relativos às características e conseqüências da ação específica. De fato, como pode ser constatado na leitura do texto, o editorial não é mais um comentário sobre a bai-xeza do gesto do Presidente; trata-se de um comentário sobre o modelo (repre-sentado pela acâo dc produzir tal gesto) numa nação sem paradigma.

Semelhante é o tratamento dado por Marta Suplicy ao mesmo fato. três meses mais tarde, num texto intitulado "A perda da compostura" cujo tema é a perda de dignidade na nação devido aos modelos que seus representantes impõem. A ação referida (erguendo o dedo em sinal obsceno para a multi-dãoi é nesse texto apenas numa seqüência dc exemplos de falta de compostu-ra, rodos eles veiculados por construções subordinadas à principal:

(10) TENDÊNCIAS/DEBATES

A PERDA DA COMPOSTURA

(Marta Suplicy)

O país perdeu a noção do que seja dignidade e compostura. Te-mos o presidente da República gritando para o povo que tem "aquilo roxo'', erguendo o dedo em sinal obsceno para a multi-dão. destratando e humilhando publicamente a primeira-dama. Rosane Collor. por sua vez. é acusada de desviar enormes somas de dinheiro para firmas fantasmas de sua família, ao mesmo tem-po em que. ato insólito, seu esposo e presidente diz que ela de na-da sabia. (...) (Folha de São Paulo, 19/10/91)

A leitura de diversos textos sobre o mesmo assunto, ou relatando e co-mentando um mesmo evento pode promover condições, mediante o contras-te e a comparação, para o aluno desenvolver a capacidade de analisar critica-mente o uso da linguagem, e, mediante essa análise, atribuir intencionalida-de ao autor.

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Uma leitura localizada, parágrafo por parágrafo, que permita perceber, por exemplo, como é criado um cenário, ou pano de fundo, pode levar natu ralmente a perguntas sobre objetivos e intenções. No caso do editorial sobre o parentesco dos gestos do Presidente da República e do jogador de futebol, perguntas sobre o contrastes entre a naturalização do gesto versus sua obsce-nidade e falta de propriedade conjugadas a uma análise do léxico utilizado, ajudarão o aluno a perceber o tom irônico do autor; c, a partir de sua experiên-cia com a ironia, e a atribuição de significado e intenção à mesma, ele conse-guirá tornar o texto coerente. Nesse tipo de leitura fica claro quanto é irrele-vante saber que gesto, dramaticidade, operação são substantivos abstratos, especialmente se não percebemos que eles são sinais concretos de uma atitu-de e de uma intenção que formadores de opiniões querem registrar.

Mediante esse ripo de prática, a leitura retoma sua condição dc prática so-cial, uma vez que o leitor se coloca como sujeito, não apenas objeto de ensino, c passa a perceber também o autor como sujeito. Nessas condições a leitura se transforma em interação, isto é. numa relação entre sujeitos que, pelo menos temporariamente, têm um objeto cm comum e definem um objeto a partir de uma perspectiva semelhante, aquela proposta pelo autor, o que constitui um passo prévio necessário à leitura critica em que o leitor resignifíca a linguagem, constituindo seu próprio objeto, que poderá diferir daquele do autor.

RESUMO

Neste capítulo concluímos o elenco dc objetivos da aula de leitura, fo-calizando o trabalho com aspectos globais do texto: por um lado. a estrutura que dá suporte à concatenação de informações locais, e por outro, à intencio-nalidade. que. sendo constitutiva da interação, devolve à atividade sua carac-terística social essencial, permitindo ao aluno uma reflexão e análise críticas sobre o uso dc sua língua materna.

Aqui. como no caso do ensino de vocabulário discutido no Capítulo 5, o texto é ponto de partida e ponto de chegada no processo dc aprendizagem da linguagem. Difere o tratamento dado ao ensino de leitura neste capítulo daquele dos outros capítulos no volume pelo fato de não terem sido apresen-tados aqui nem características do processamento nem estratégias gerais utili-zadas na leitura. No lugar, foram apresentados exemplos de análises que, es-pera-se. servirão como base para a transferência e aplicação do aprendido a outros textos, a fim de fazer leituras críticas do texto enquanto unidade de sig-nificado, mediante a análise de elementos locais.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

Baseia-se o conteúdo deste capílulo nos seguintes autores: 1. Os conceitos de macroeslruturac superestrutura foram originalmente desenvolvidos

por van Dijk (1972) e van Dijk e Kintsch (19K3); no Hrasil eles se encontram ampliados e/ou re

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formulados por Koch (1989). Um tratamento amplo de diversos conceitos pertinentes ã lingüís-tica textual encontra-se em Marcuschi (1983). O conceito de coerência, não introduzido no ca pítulo, mas que subjaz a todo tratamento sobre o sentido do texto enconira-se cm Koch e Trava-r i a (1989). Um tratamento mais restrito do mesmo conceito, apenas do ponto de vista da leitu-ra encontra-se em Kleiman (19X4).

2 . 0 conceito de análise crítica da linguagem pertence ao trabalho de estudiosos do dis-curso na linha pragmática Clark. Fairclough & Ivailic (1978); Fowler e Kress (1979); Vley (1985). Um ponto de vista diferente, relevante pela concepção de linguagem implicada sobre o mesmo fenômeno, jxxlc ser encontrado nos trabalhos de Orlandi (1987a. b), na linha de Análise do Discurso francesa.

3 . 0 conceito dc interação foi desenvolvido por Vygotsky (1978). Hoje ele é investigado em relação à aprendizagem poi psicólogos e educadores ncovygotskianos, como Wcrtsch (1988). eCazdeii (1988).

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APÊNDICE

O pesado ar das cidades Pesquisa mostra quadro fiel da poluição urbana no Brasil

Os moradores de Belo Horizonte, Porto Alegre. Salvador e Vitória prova-velmente já desconfiavam da má quali-dade do ar que respiram em suas cida-des. Até agora, no entanto, não se tinha uma idéia exata da intensidade dessa poluição, geralmente medida através de métodos rudimentares, c o m o os cha-mados copos de sedimentação — reci-pientes expostos ao tempo para reco-lher poluentes suspensos na atmosfera. A primeira medição rigorosa nessas ci-dades acaba de ser feita pelo Grupo de Estudos de Poluição do Ar (GEPA) . do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, que examinou também a si-tuação ern três outros municípios brasi-leiros: São Paulo, Juréia. no litoral pau-lista, c Contagem, na região metropoli tanade Belo Horizonte. Os dois últimos foram incluídos na pesquisa por se tra-tar de casos extremos: Juréia é uma es-tação ecológica c Contagem um dos pontos mais poluídos do país.

Divulgados na semana passada, os resultados são preocupantes ( leia ta-bela). " A si tuação das c idades estuda-das. a exceção de Juréia. não está boa e merece atenção", alerta o coordenador da pesquisa, professor Celso Orsini, 54 anos. que há uma década trocou a física nuclear pela apl icada, na área de meio ambiente . T o d a s elas, com efei-to. exibem concentrações a larmantes de dois tipos de poeira capazes de cau

AMBIENTE

sar danos ao organ ismo humano: a ti-na, resultante da conversão de gases produzidos por combus tão nas indús-trias c nos automóveis , e a grossa, que se desprende do solo ou das indústrias que pulver izam materiais — as fábri-cas de c imento e as torrefações de ca-fé . por exemplo .

Prat icamente só não houve surpre-sa no que sc refere a São Paulo — ca-so provave lmente único . 110 país, de cidade brasileira onde a poluição at-mosfér ica j á v inha sendo cor re tamen-te aval iada. O própr io Orsini não es-perava que Porto Alegre , por exem-plo. es t ivesse co locada apenas 11 pontos atrás da sab idamente poluída capital paulista, c o m uma a tmosfe ra carregada de poeira f ina (enxofre , pr incipalmente) c grossa (silício, fer-ro e cálcio). Belo I lorizonte e Vitória, embora a inda dis tantes dos níveis re-gis trados em São Pau lo e Por to Ale-gre, j á es tão no limiar d o ponto cr í t ico — 55 mic rogramas dc poluentes por me t ro cúbico de ar. s egundo cri térios adotados nos Estados Unidos .

As invest igações de Orsini e seus oito co laboradores deverão es tender-se, a inda es te ano. ao Rio de Janeiro, Recife e Sào Luís. que vão ganhar es-tações para coleta de material idênti-c a s às exis tentes nas c idades j á incluí-das na pesquisa . Os f i l t ros ut i l izados nessas es tações são t ransportados pa ra o câmpus da Univers idade de São Paulo, onde um sof is t icado aparelho, único no Brasil, o acelerador de Pelle-tron, separa o s d iversos e l emen tos que c o m p õ e m a poeira recolhida. O aper fe içoamento desse mé todo , expl i-ca Orsini , permit i rá a lcançar a me ta fi-nal de seu t rabalho — a ident i f icação das fontes poluidoras , passo indispen sável para acabar c o m elas. A

IstoÊ. 28/3/1984

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