angela b. kleiman - a formacao do leitor

39
A FORMAÇÃO DO LEITOR: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL Angela B. Kleiman A leitura tornou-se objeto importante na área de ensino de língua portuguesa quando ficou configurada a crise geral de leitura na escola, já na década de 70. Um quarto de século depois, a crise continua, aparentemente de forma mais aguda, em decorrência dos reflexos da democratização da escola, isto é, da entrada maciça na escola de crianças e jovens das camadas mais pobres, provenientes de famílias com menos escolaridade e menos familiaridade com a escrita. A leitura e seu ensino configuram-se, assim, como um problema social. Tendo em vista a sua importância para o desenvolvimento pleno do aluno, para a cidadania crítica e para a participação plena nas práticas sociais das instituições que usam a escrita, a procura de soluções para essa crise compete a todo professor no seu domínio específico de ação, e ao professor de português, em especial, por ser do seu domínio o ensino de aspectos lingüísticos e discursivos da modalidade escrita da língua. A proposta a ser desenvolvida neste texto parte do pressuposto de que é possível ensinar a leitura como prática social, não apenas como atividade de análise do código escrito. Pode-se pensar no ensino de leitura na

Upload: marco-marzulo

Post on 16-Sep-2015

38 views

Category:

Documents


7 download

DESCRIPTION

Artigo academico sobre literatura

TRANSCRIPT

A FORMAO DO LEITOR: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL

PAGE 2

A FORMAO DO LEITOR: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL

Angela B. Kleiman

A leitura tornou-se objeto importante na rea de ensino de lngua portuguesa quando ficou configurada a crise geral de leitura na escola, j na dcada de 70. Um quarto de sculo depois, a crise continua, aparentemente de forma mais aguda, em decorrncia dos reflexos da democratizao da escola, isto , da entrada macia na escola de crianas e jovens das camadas mais pobres, provenientes de famlias com menos escolaridade e menos familiaridade com a escrita. A leitura e seu ensino configuram-se, assim, como um problema social. Tendo em vista a sua importncia para o desenvolvimento pleno do aluno, para a cidadania crtica e para a participao plena nas prticas sociais das instituies que usam a escrita, a procura de solues para essa crise compete a todo professor no seu domnio especfico de ao, e ao professor de portugus, em especial, por ser do seu domnio o ensino de aspectos lingsticos e discursivos da modalidade escrita da lngua.

A proposta a ser desenvolvida neste texto parte do pressuposto de que possvel ensinar a leitura como prtica social, no apenas como atividade de anlise do cdigo escrito. Pode-se pensar no ensino de leitura na escola como tendo dois objetivos bsicos: um deles o incentivo e desenvolvimento do gosto pela leitura e o outro o desenvolvimento da capacidade de compreenso do texto escrito. Para atingir o primeiro objetivo, precisamos de pessoas, atividades e infra-estrutura que permitam o contato prazeroso com o livro, a experimentao, o manuseio de muitos e variados suportes e repertrios de textos: professores que contagiam com seu entusiasmo pela leitura, contadores de histrias, bibliotecrios prestativos, bibliotecas bem aparelhadas, atividades ldicas que envolvam a leitura so todos necessrios. Para atingir o segundo objetivo, precisamos, ainda, de um professor bem formado, que seja, alm de leitor, formador de novos leitores, orientando os muitos caminhos que podemos tomar para chegar construo de um sentido.

Esta apostila visa discutir aspectos psicossociais da leitura relevantes para o seu ensino na escola, isto , para o segundo objetivo do ensino de leitura. A apostila est dividida em trs unidades temticas, que trataro dos elementos sociais, dos aspectos cognitivos e dos aspectos textuais a serem levados em conta no desenvolvimento de atividades didticas com o objetivo de formao do leitor.

1. Leitura, aprendizagem e prtica social

A relao entre leitura e aprendizagem imbricada: elas se realimentam continuamente, como partes inter-relacionadas num sistema ou organismo movido por um plano, projeto ou finalidade. Se, de um lado a leitura instrumento da aprendizagem, de outro a aprendizagem suscita novos desejos ou necessidades de saber que motivam outras leituras. Entretanto, para agir na escola considerando aprendizagem e leitura atividades que se constituem mutuamente, faz-se necessrio conceber a leitura como uma prtica social, e no como uma competncia individual, mesmo que o desenvolvimento dessa competncia seja, tambm, um objetivo legtimo do ensino de leitura.

A diferena entre ensinar uma prtica e ensinar para que o aluno desenvolva uma competncia no mera questo de terminologia. indiscutvel que, no contexto das instituies com objetivos didticos, a concepo terica sobre objeto e objetivos do ensino determina o mtodo estratgias, atividades e tarefas que fazem parte das aes didticas. A implementao de uma concepo terica na situao concreta de sala de aula passa a ter reflexos na vida real dos alunos obter sucesso ou insucesso na aprendizagem, gostar ou no de ler, atribuir credibilidade e valor, ou no, escrita e s instituies legitimadas pela escrita.

No contexto escolar, a viso de leitura (e, portanto, de ensino de leitura) que predomina a concepo da leitura como competncia. Ou seja, concebe-se a leitura como um conjunto de habilidades de compreenso e interpretao da lngua escrita, progressivamente desenvolvidas, at se chegar a uma competncia leitora ideal, a do leitor proficiente. Em princpio, essa competncia leitora plenamente desenvolvida emanciparia o leitor para continuar sua prpria aprendizagem, independentemente do professor.

De fato, temos a uma boa descrio de um dos objetivos de ensino de leitura. Se considerarmos apenas UMA dimenso da leitura, sua funo facilitadora da aprendizagem de tipo escolar e acadmico, a quantidade e complexidade das capacidades envolvidas so impressionantes:

1. o leitor competente capaz de abordar um assunto desconhecido, selecionando os textos relevantes para entender o assunto que lhe interessa conhecer;

2. o leitor competente capaz de avaliar suas opes, descartando, mudando, acrescendo suas selees, quando necessrio;

3. o leitor competente independente, pois capaz de auto-avaliar seu nvel de conhecimento, compar-lo ao nvel exigido pelo texto e tomar decises em relao ao seu projeto didtico pessoal de leitura, baseado nessas avaliaes e comparaes;

4. o leitor competente capaz de se engajar cognitivamente, utilizando complexas e diversas estratgias para atingir os objetivos especficos de leitura e os objetivos de seu projeto pessoal;

5. o leitor competente conhece como funcionam os discursos que as diversas instituies pem em funcionamento: discurso didtico, discurso de vulgarizao, discurso cientfico, da escola, da imprensa, da universidade, etc.

6. o leitor competente conhece diversos gneros (e seus suportes materiais) com funes didticas em diversas instituies, como a unidade do livro didtico, o verbete do dicionrio, o artigo da enciclopdia, o manual de auto-ajuda ou auto-aprendizagem, os suplementos de cincias no jornal, o texto de divulgao cientfica, o texto introdutrio, etc.

7. o leitor competente conhece as formas de produo, consumo e divulgao desses textos, ou seja, ele sabe se o leitor previsto o grande pblico, o iniciante que comea sua formao na matria, os pares do autor.

Entretanto, mesmo que a capacidade de leitura do adulto possa ser analisada em unidades distintas, discretas as competncias listadas acima, por exemplo se queremos ter sucesso ensinando a leitura, devemos abandonar a noo de ensino de leitura como competncia, ou seja, como conjunto de capacidades a serem desenvolvidas. A noo de competncia esttica, trazendo consigo um significado de qualidade ou capacidade j prontos para realizar um determinado fazer. Como o projeto global de ensino da escola fragmenta o saber e concebe sua aquisio atravs de acrscimos por etapas, tanto nos contedos como nas capacidades visadas, o desenvolvimento de uma competncia pode facilmente transformar-se num conjunto de atividades em torno do texto, com a finalidade de fazer o leitor emergir, mas que nunca chegam a ser atividades de leitura, tal qual as vivenciamos no lar, no local de trabalho, no comrcio.

Assim, em vez de comear a explorar o suporte material da notcia (o jornal) at achar algo que prenda o interesse para ler e comentar com outros, para assim aprender a funo do jornal e chegar a conhecer o gnero notcia, aprende-se a declarar qual(is) a(s) funo(es) do jornal e quais as caractersticas da notcia, ou a discutir o tema ou a forma de um texto xerocado (ou do livro didtico), que foi recortado do jornal em que um dia apareceu. Nenhuma dessas atividades se assemelha prtica social de certos grupos de iniciar o dia lendo o jornal.

Nas atividades de sala de aula e nas unidades do livro didtico comum analisar uma unidade lingstica em processo de leitura palavra, frase, perodo, pargrafo, texto , em vez de analisar a situao comunicativa para determinar as caractersticas do evento: leitura de revista na ante-sala do mdico, leitura de ata em reunio de condomnio, leitura de romance policial e desenvolver atividades para manter tantas caractersticas do evento original quanto forem possveis, conciliando-as com as caractersticas e objetivos da nova situao e novo evento, a saber, a aula de leitura.

Na tpica aula de leitura na escola, quase todo fazer um fazer de contas, porm quase que oposto, perversamente contrrio, situao original ou quilo que o senso comum indicaria como necessrio para alcanar o objetivo visado. Fragmenta-se o texto para aprender a perceber o todo, seja ele um tema, uma idia principal. Impe-se um mesmo texto ao grupo para se desenvolver o gosto pessoal pela leitura, a relao esttica e de prazer ntima e privada. Procura-se fazer com que o aluno responda somente o que est previsto na leitura do professor ou do autor do livro didtico e exige-se um leitor crtico e participativo. Trata-se, em efeito, de uma pedagogia da contradio, marcada por um conjunto de atividades de fazer de conta: o aluno responde s perguntas na seo de interpretao livre, j cerceado, sem liberdade e muitas vezes sem leitura. Ele l sem entendimento, interpreta sem ter lido e realiza atividades sem nenhuma funo na sua realidade sociocultural (ver Kleiman & Moraes, 1999). Contrape-se a essa concepo dominante na escola a chamada pedagogia de atividades ou pedagogia de projetos, baseada na concepo de Dewey (1964), que afirma que a educao um processo de vida e no uma preparao para a vida futura (ver tambm Foucambert, 1994).

Da ser importante, no contexto de desenvolvimento do leitor, partir de uma concepo de leitura como uma prtica social, com mltiplas funes e inextricavelmente relacionada aos contextos de ao. Isso implica, por sua vez, uma concepo de aula de leitura como um evento de letramento. Letramento definido como um conjunto de prticas sociais que usam a escrita em contextos especficos para objetivos especficos (Kleiman, 1995:19). Em eventos de letramento da escola, um dos objetivos importantes o desenvolvimento de leitores, mas no para elaborar atividades analticas da unidade lingstica, seja ela qual for, atravs das quais o aluno ser um dia, provavelmente no futuro longnquo do ensino superior, um aprendiz independente, porque j desenvolveu sua competncia leitora. Pelo contrrio, na perspectiva dos estudos do letramento, ensinar a leitura implica engajar o aluno todo dia, mesmo quando ainda estiver soletrando a escrita, durante todo o processo, em atividades de leitura como uma prtica cultural importante que vale a pena incentivar, e da qual vale a pena participar porque, ao mesmo tempo que ler nos reafirma como membros de um grupo social ao nos dar instrumentos para a cidadania crtica, permite-nos, se assim quisermos, fechar as portas a esse mundo social quando precisamos entrar em contato com o nosso mundo interior.

Se adotamos a perspectiva dos estudos de letramento descrita acima, o aspecto primeiro, mais importante, a ser considerado ao montar um programa de leitura o social. Dentre os aspectos sociais relevantes hoje em dia, temos a realidade social do aluno, que implica em conhecer a sua comunidade, sua famlia e sua escolaridade e, principalmente, sua histria de leituras. Por mais interessante, divertido ou bem escrito que seja um texto, o aluno pouco conseguir aproveitar se ele no entender uma referncia a um outro texto que ele jamais leu. Gostaria de ilustrar a necessidade de conhecer o aluno enquanto leitor com o seguinte exemplo, relatado por uma professora num de meus cursos. Ela lecionava numa turma matutina do primeiro ano do Ensino Mdio (antigo 1(colegial) numa escola estadual do interior de So Paulo e decidiu utilizar, na aula de leitura, uma crnica de Lus Fernando Verssimo, chamada Detalhes (publicada em maro de 1978 na revista Domingo). Nessa crnica, um velho porteiro de palcio volta para sua casa, depois de uma noite de trabalho, muito perturbado e nervoso, e sua mulher vai lhe servindo o caf da manh enquanto o acalma e lhe pergunta o que tinha acontecido no servio que o deixara trmulo. Ele vai direto aguardente e comea a contar o que acontecera durante o baile no palcio.

At esse momento na crnica, a cena a de um casal numa casinha de classe mdia ele porteiro em algum palcio de governo, a mulher o espera com caf da manh reforado, a xcara fumegante, o bolo, a manteiga, as gelias, eles esto na cozinha perto do fogo, enfim, uma cena do cotidiano contemporneo. No seu relato, o porteiro utiliza temas da vida contempornea, comuns nos textos que descrevem a vida social dos ricos, num registro do cotidiano familiar:

comeou tudo bem. As pessoas iam chegando, todo mundo de gala, com convite, tudo direitinho. Sempre, claro, o filhinho de papai sem convite que quer me levar na conversa, mas j estou acostumado. Comigo no tem conversa. De repente chega a maior carruagem que j vi. Enorme.

Embora o registro continue sendo o cotidiano familiar, o relato toma aqui um novo rumo:

E toda de ouro. Puxada por trs parelhas de cavalos brancos. Cavalos! Elefantes! De dentro da carruagem salta uma dona. Sozinha. Uma beleza. Eu me preparo para barrar a entrada dela porque mulher desacompanhada no entra em baile do palcio. Mas essa dona to bonita, to, sei l, radiante, que eu no digo nada e deixo ela entrar.()

() o baile continua. Tudo normal. s vezes rola um bbado pela escadaria mas nada de mais. E ento bate a meia-noite. H um rebulio na porta do palcio. Olho para trs e vejo uma mulher maltrapilha que desce pela escadaria, correndo. Ela perde um sapato. E o prncipe atrs dela.

Auxiliado pelas perguntas cpticas e incrdulas da mulher, o porteiro acaba sua histria:

(..) gritando para segurar a esfarrapada. Segura! Segura! Me preparo para segur-la quando ouo uma espcie de vum acompanhado de um claro. Me viro e

(.) Voc no vai acreditar. () A tal carruagem. A de ouro. Tinha se transformado numa abbora.

A mulher no acredita mesmo e, no final da estria, ela recomenda ao marido pedir a transferncia para o almoxarifado, porque o trabalho no palcio est acabando com ele.

Voltando aula da professora que escolheu o texto porque o achara interessante e engraado, os alunos nem riram, nem mostraram interesse ou qualquer outra reao depois da leitura da histria. Foi ento que ela descobriu o fato inesperado, inacreditvel: apesar de terem ficado pelo menos nove anos na escola, mais da metade dos alunos da sua classe nunca lera Cinderela ou qualquer outro conto da literatura infantil universal. Como veremos na ltima parte desta apostila, podemos dar nome caracterstica da crnica que deu origem ao problema, mas muito antes da questo de anlise e nomenclatura textual vem a questo social: se conhecssemos as histrias de leitura desses leitores, no usaramos o texto sem antes termos feito algum tipo de trabalho que envolvesse, de uma perspectiva interessante para o adolescente e jovem adulto, a leitura de contos da literatura infantil universal, que fazem parte do patrimnio cultural dos grupos letrados e que, certamente, deveriam circular na escola, nica agncia de letramento para muitos.

As prticas de leitura no cotidiano dos grupos com pouca ou nenhuma escolaridade sugerem que, para eles, a funo predominante da lngua escrita a funo referencial. Os textos escritos que lhes so conhecidos servem para registrar fatos e eventos que acontecem, para fazer referncia ao mundo real: os formulrios e papis que registram informaes vitais (certido de nascimento, por exemplo), os bilhetes que a escola manda para casa registrando fatos acontecidos ou por acontecer; os anncios de emprego nas bancas de jornal. A leitura no tem a funo de capacit-los para adquirir novos conhecimentos, nem a de legitimar esses conhecimentos. Isto , a concepo de texto e de escrita desse aluno no prev algumas importantes funes da leitura, justamente aquelas que lhe permitiriam continuar aprendendo e com isso se desenvolver e ajudar o desenvolvimento de seu grupo a leitura para aprender, a leitura para o lazer, por exemplo.

Ensinar a ler a grupos que no vm de famlias de alta escolaridade implica ajudar o aluno a transformar essa viso utilitria da leitura, enriquecendo-a de modo a incluir, dentre outros aspectos no menos importantes, o seu potencial como instrumento para a aprendizagem independente e continuada. Isso envolve partir das necessidades dos alunos, mesmo que sejam de carter instrumentalizador e pragmtico. atravs da prtica de leitura que se pode alcanar a paulatina transformao da concepo do adulto no escolarizado numa concepo com funes sociais ampliadas, que possibilite a aprendizagem independente. atravs da prtica de leitura que podem ser criadas novas necessidades de leitura.

Um caso especfico, apresentado por Kleiman (2000) e que ilustra essa diferena, deu-se numa aula de mulheres em processo de alfabetizao, num ano de eleio. As alunas queriam votar, mas, como no sabiam ler a cdula, pediram a professora que lhes ensinasse a reconhecer os nomes dos vrios candidatos. A leitura da cdula sem uma reflexo consciente sobre o voto , para os sujeitos j aculturados pela escrita, uma pardia do ato de cidadania que o ato de votar representa. Essas alunas, no entanto, no solicitaram ser preparadas para votar nesse sentido mais amplo, mas apenas naquele sentido por elas delimitado, ou seja, o de reconhecer o nome dos candidatos. A professora ento levou as cdulas e realizou uma srie de atividades de decodificao dos nomes e nmeros que constavam na cdula a fim de atender s necessidades de leitura que haviam sido delimitadas pelo grupo. Porm, durante essa atividade, surgiu o interesse, motivado pelas intervenes de professora e alunas, de conhecer melhor as pessoas a quem as palavras aprendidas nomeavam e, ento, pequenos artigos sobre os candidatos biogrficos e programticos foram lidos. Ora, se a professora tivesse tentado comear pela ampliao da concepo de voto dessas mulheres, propondo primeiro a leitura que permitisse conhecer os candidatos para depois ler a cdula, provavelmente nem a primeira nem a segunda atividade teriam sido realizadas com sucesso. A sua deciso de partir da funo instrumental de cdulas para a leitura informativa do jornal mudou a natureza da prtica de leitura.

Uma prtica que envolve o uso da linguagem uma prtica discursiva, portanto socialmente determinada, primeiro, pelo contexto de situao (a aula, a fila no banco, etc.); segundo, pela instituio (o lar, a escola, a igreja, etc.) e, terceiro, pelas relaes sociais que legitimam alguns gneros e prticas mas no outros, estabelecendo uma hierarquizao entre as instituies e suas prticas (escola vs. universidade, agncias publicitrias vs. pintores de cartazes artesanais, remdio farmacutico vs. remdio caseiro tradicional).

Sob o prisma da leitura como prtica de letramento, o fim de atividades didticas de leitura aprender alguma coisa nova. No se justifica a atividade de ler para aprender a ler. O objeto da aprendizagem configurado pelas necessidades e caractersticas do grupo: se so crianas, adolescentes ou adultos; pela instituio de ensino; se a pr-escola, a universidade, a comunidade de base. Embora as atividades possam ser diferentes, a prtica tem o mesmo objetivo, ou seja, o de aprender a usar a lngua escrita para fazer novos sentidos do mundo, para se desenvolver a si mesmo e para contribuir para o desenvolvimento do grupo.

As funes da escrita que vo fazer parte do programa de ensino so da alada da escola, a serem decididas em conjunto por professores e alunos, segundo os objetivos do projetos interdisciplinares. (ver Kleiman & Moraes, 1999). Num projeto interdisciplinar de letramento, podemos superar as concepes funcionais de alunos (e tambm, muitas vezes, de professores, que acham que o aluno deve ler aquilo que tem uma utilidade prtica para a vida bastante limitada que eles imaginam que o aluno ter). O projeto de letramento contribui tambm para superar a noo errnea de que se o aluno no l isso um problema dele, individual: mais provvel que esse aluno encontre algo que gosta e capaz de fazer num projeto coletivo de letramento. O projeto de letramento ainda permite enquadrar as selees textuais num todo significativo, pois o projeto unifica e integra, evitando que uma seqncia de textos para leitura (independentemente de sua qualidade) possa parecer ao aluno um conjunto de fragmentos desconexos entre si e em relao s demais matrias que estuda.

Segundo Kleiman & Moraes (1999: 57), a fim de desenvolver projetos que integrem a leitura como prtica social, preciso levar em conta as seguintes consideraes:

a) as prticas de leitura e de produo de textos escritos so extremamente abrangentes. Numa sociedade complexa, a tecnologia da escrita permeia todas as instituies e relaes sociais e determina at modos de falar sobre os assuntos e os textos;

b) a relao entre oralidade e escrita no de opostos, mas de um contnuo. E, continuam as autoras, embora essa relao tenha sido representada como um contnuo, talvez a metfora que melhor represente a relao entre ambas seja a de relaes reticuladas entre um gnero e vrios outros;

c) as prticas de uso da escrita so dependentes do contexto e da instituio e, portanto, a aprendizagem de prticas de leitura implica a aprendizagem das normas das instituies que legitimam essas prticas.

Tendo essas consideraes em mente, passo a discutir, ento, a questo dos contedos na aula de leitura, a fim de responder seguinte questo:

O que devemos saber sobre a leitura (contedos) a fim de fazer uma seleo e uma anlise pr-didtica do texto adequada, dentre as muitas possibilidades que o gnero em geral j definido pela prprias perguntas e caractersticas do projeto tem a oferecer?

2. Aspectos sociocognitivos da leitura

Um programa de ensino da leitura que vise introduzir o aluno nas prticas sociais valorizadas na sociedade perfeitamente consistente com a focalizao, em alguma de suas etapas, de algum aspecto da competncia leitora, como, por exemplo, os aspectos cognitivos envolvidos na capacidade de leitura com a realizao de atividades meio para o desenvolvimento de estratgias cognitivas eficientes no processo de compreenso do texto escrito.

Alis, se um programa de leitura tiver, como um de seus objetivos, o desenvolvimento de um leitor independente, capaz de entender textos de diversos gneros sem a mediao de um adulto, professor ou leitor mais experiente, ento o programa dever propiciar atividades para o aluno desenvolver um conjunto de estratgias de compreenso de lngua escrita, que envolvem o uso, monitorado ou no, de sua memria, sua capacidade de inferncia, de sua ateno. Visando quele momento de independncia, um programa de leitura deve incluir atividades de leitura mediadas pelo professor, nas quais ele cria atividades e modela estratgias de leitura cada vez mais complexas e que exigem cada vez mais independncia do aluno.

Uma forma de entender a complexidade do processo de compreenso construir um modelo de processamento. A seguir, apresento alguns elementos de um modelo extremamente simples, que s inclui aqueles aspectos cujo funcionamento importante para a formao do professor de leitura (ver Kleiman, 1993). Note-se que, como todo modelo de um processo complexo, as operaes nele envolvidas aparecero como se fossem lineares, uma atrs da outra. No tempo real de leitura, elas se do simultaneamente (ver van Dijk, 1992).

A leitura como atividade cognitiva comea pelo processamento visual da informao escrita, que se nos apresenta, no papel, na tela do computador (ou noutros suportes) em unidades distintas, discretas, segmentada em letras e palavras. O processamento comea pela percepo desses sinais como material lingstico, determinando que, em vez de ver letras, vejamos palavras e frases. Essa operao no material escrito conhecida como fatiamento. E, ao mesmo tempo em que percebemos e fatiamos, estamos buscando, na nossa memria, significados para essas unidades ou fazendo inferncias sobre elas, a fim de chegar a uma interpretao semntica das mesmas. A partir da estaremos engajados num outro processo, tambm interpretativo, no qual a interpretao semntica age como um dos elementos determinantes do sentido que atribumos ao texto.

Os aspectos relativos ao processamento somente interessam na medida em que um texto mal escrito (como muitos dos livros didticos) pode dificultar o processo, embora isso no faa grande diferena no caso de leitores experientes. Por exemplo, se um adulto deparar com um trecho de um livro didtico para a antiga 2a srie do ciclo bsico, que diz o seguinte:

Quando o Brasil foi descoberto, eram os ndios seus moradores. Eles no eram civilizados e tinham medo dos brancos. Os portugueses procuravam agradar aos ndios e aos poucos eles foram se chegando junto a eles (extrado de Kleiman, 1993: 244),

provavelmente conseguir encontrar um referente para as vrias ocorrncias do pronome eles; se for preciso (e relevante para esse leitor), ele reler o trecho at conseguir entender. Dito de outra forma, o leitor adulto mobilizar outras estratgias sobre as quais obviamente ele tem controle quando assim precisar. O fator que determina essa mobilizao tambm uma caracterstica do processo adulto, de automonitorao do processo no s para entender mas tambm para perceber quando no h entendimento e, se necessrio, mobilizar estratgias alternativas. J um leitor principiante, pouco experiente, muitas vezes nem percebe que h problema de significado ambguo no texto ou, se perceber, simplesmente cansa e desiste.

O processamento no deve influenciar na escolha do texto, mas o professor precisa estar atento s caractersticas lingisticas que podem vir a atrapalhar a compreenso dos alunos que esto iniciando sua caminhada como leitores. Para ajudar o aluno no processamento do texto, ento, o professor deve:

1. escolher textos interessantes e bem escritos, sem problemas de redao e ambigidades sem funo textual aparente;

2. facilitar o reconhecimento instantneo de vocabulrio, para o aluno no ter que decifrar slaba por slaba, o que implica certificar-se de que o aluno conhece a maioria das palavras-chave do texto (nas atividades prvias leitura, fazer perguntas a fim de que palavras importantes, em geral ligadas ao tema, possam ser utilizadas oralmente, escritas na lousa, etc.);

3. facilitar a construo de relaes entre partes do texto, o que implica certificar-se de que o aluno percebeu relaes locais entre palavras e frases (em atividades durante a discusso em profundidade, perguntar sobre elementos de coeso potencialmente problemticos: a que se refere essa palavrinha aqui?, etc.).

O processamento lingstico se torna mais fcil porque o leitor no utiliza apenas seu conhecimento do sistema da lngua quando l; de fato, o leitor proficiente mobiliza todo tipo de conhecimento que for relevante para a leitura do texto. Por exemplo, durante a leitura desta apostila, o leitor est utilizando o seu conhecimento textual, que abrange o conhecimento do gnero apostila (um gnero didtico para a divulgao de conhecimentos numa rea, que traz os pontos ou assuntos mais importantes de uma aula ou curso, para uso dos alunos, que se organiza atravs de seqncias explicativas, e que tem linguagem formal), e de outros textos do mesmo gnero ou, ainda, de outros textos da mesma autora. Alm do conhecimento textual, o leitor estar utilizando seu conhecimento enciclopdico, por exemplo, fazendo relaes com o que ele j sabe sobre leitura, linguagem, educao. E, ainda, ele estar utilizando conhecimentos de senso comum, do cotidiano, de suas experincias de vida. Por exemplo, se um leitor achar que um conceito foi muito superficialmente tratado, ou que ficou obscuro, pode utilizar seu conhecimento sobre o curso virtual em andamento para decidir sobre qual ao tomar para entender aquilo que ficou incompreensvel.

A utilizao eficiente de todos os conhecimentos que o leitor julga relevantes para a compreenso do texto que est lendo uma estratgia conhecida pelo nome de ativao de conhecimento prvio. Na rea da Psicologia Cognitiva, esse tipo de estratgia, que pode ser controlada e, portanto, ensinada, conhecida como estratgia metacognitiva (ela nos permite agir sobre o nosso prprio conhecimento) e tem sido considerada, por diversos autores, essencial para facilitar a leitura do leitor em formao (ver Kato, 1985; Kleiman & Moraes, 1999). Quando fazemos perguntas ao aluno sobre o seu prprio conhecimento anterior leitura O que voc sabe sobre x? O que voc gostaria de saber sobre x?, ele antecipa informaes e cria expectativas sobre o que ir ler, facilitando a compreenso na hora da leitura propriamente dita: O que o texto disse sobre x? O que ainda faltou responder?.

Vejamos, atravs da leitura do incio de um texto, como age o leitor, do ponto de vista do funcionamento cognitivo. Imaginemos uma situao experimental na qual o leitor dever fazer uma predio, aps a leitura do seguinte trecho, sobre o tema e/ou o tipo de texto. O ttulo do texto Perdidos no espao, e foi escrito pelo jornalista Marcelo Duarte. Leiamos, ento, o primeiro pargrafo:

De repente, no pequeno cmodo, lanas de ferro pontiagudas saem dos dois lados da parede. A cena assustadora. As lminas, apontadas em minha direo, lembravam uma boca de tubaro. Um tubaro feroz, faminto, louco para ganhar um novo Oscar de efeitos especiais. Oh! As paredes comeam a se fechar. No incio, o movimento do concreto vagaroso. Depois, fica rpido. Fechando, espremendo, sufocando. As pontas das lminas j esto encostando em mim. Estou prestes a ser transformado em estrogonoffe

Sem outras informaes contextualizadoras (como, por exemplo, de onde foi retirado o texto), a hiptese mais provvel do leitor que se trata de um texto que pertence a algum gnero de horror; h remisses a filmes de horror (Oscar de efeitos especiais, Tubaro, e a descrio que d a orientao espacial da narrativa a de um lugar assustador, ameaador e perigoso). Diramos, tal qual um grupo de crianas que leu essa narrativa, que se trata de uma aventura de horror em que o personagem que narra est em perigo de vida numa situao extremamente complicada, pois vai ser exprimido at morrer. Se tivssemos que adivinhar o que vir em seguida, uma inferncia vlida seria a de que vamos saber como que o heri se livrou da situao. Continuemos a leitura desse primeiro pargrafo:

Quem mora em apartamento pequeno e viu a famlia crescer sabe bem como essa sensao. No meu caso, os 74 m2 de rea til pareciam encolher dia a dia.

Confrontado com essa continuao, o leitor ter que revisar suas hipteses prvias. Obviamente, no se trata de um conto de horror mas de uma crnica sobre a vida em apartamento moderno. O texto foi retirado da Seo Espao Livre, da revista CASA CLAUDIA de fevereiro de 1999. Se o leitor tivesse tido acesso a essas informaes desde o incio, talvez no tivesse feito a hiptese de que se tratava de um conto de terror, pois teria reconhecido um recurso comum do texto jornalstico de hoje. Trata-se de uma crnica orientada numa dimenso argumentativa quanto ao tema da habitao nos tempos de hoje. O texto contm, logo na introduo, uma cena que funciona como orientao para um conto de terror. primeira vista, a relao entre o primeiro perodo do primeiro pargrafo e o restante do texto no evidente, havendo uma ruptura na passagem do primeiro para o segundo perodo.

Entretanto, o texto representativo dos gneros jornalsticos (ensaio, crnica) na imprensa brasileira de grande circulao. Trata-se de uma estratgia de composio textual recorrente; muitos desses textos contm, na introduo, a narrao de um fato ou cena, ou a descrio de uma cena, cuja relao com o tema ou assunto da argumentao desenvolvida na seqncia de natureza analgica ou metafrica. Esse modo de composio bastante recorrente e pode ser considerado estratgico, no sentido de buscar a facilitao da compreenso e a aceitao, pelo leitor, do argumento do autor. O tipo de encaixe de seqncias que a se apresenta resulta num texto marcado por uma clara intertextualidade (conto de terror e crnica de orientao argumentativa) capaz de provocar no leitor um certo estranhamento, porque ela inusitada, criando expectativas que no so, mais adiante, levadas em conta. Esse modo de composio visando atrao inicial do leitor pela familiaridade do tema escolhido para a metfora pode se constituir num problema para o leitor pouco familiarizado com o gnero, independentemente da idade. No exemplo em questo, os leitores eram crianas no ltimo ano do primeiro ciclo do Ensino Fundamental (antiga 4a srie), que no conseguiram mudar a hiptese inicial, apesar de os pargrafos seguintes no texto serem todos sobre o tamanho do apartamento. Confiramos, a seguir, alguns trechos, extrados da continuao do mesmo texto:

Existem duas solues: mudar ou improvisar ()

() o primognito chega acompanhado de bero, cadeiro, carrinho para passeios, pacotes de fraldas, um armrio para guardar as roupinhas ()

() Dia das crianas, aniversrio e Natal? Centmetros a menos com brinquedos. ()

() Nasce, ento, o segundo filho. Mais roupas, fraldas, brinquedos. O escritrio danou. ()

() No vou colocar a culpa s nas crianas. Eu tambm continuava comprando livros, CDs, roupas ()

() Tomei de volta os armrios que eram meus na casa de minha me. Levei muita coisa para l e consegui respirar um pouco mais. Ih, as crianas acabaram de ganhar um cachorro. Perigo! Perigo! Perigo!

Fatores de diversas ordens poderiam explicar a dificuldade desses leitores da 4a srie para entender que no se tratava de uma aventura de terror. Do ponto de vista didtico, se o texto tivesse sido melhor contextualizado, com as crianas tendo acesso ao suporte textual, prpria revista, certamente a sua compreenso teria sido facilitada. Do ponto de vista discursivo, uma maior familiaridade com o gnero e com a leitura de analogias e outras figuras retricas habituais na instituio jornalstica e, em geral, na tradio letrada, tambm facilitaria a elaborao de hipteses alternativas. Devemos lembrar que na tradio escolar a nfase recai numa leitura mais literal do texto, em detrimento de uma leitura mais global, orientada pelos fatores de coerncia que extrapolam o sentido literal de palavras e frases. Conforme temos verificado na leitura de professores alfabetizadores de tradio mais oral, eles exibem o mesmo tipo de problema na leitura de ensaios com heterogeneidade discursiva (isto , com metforas remetendo a diversos gneros) do tipo acima exemplificado. Ou seja, do ponto de vista cognitivo, a flexibilidade na mobilizao de estratgias, tpica do leitor experiente, est ainda por ser desenvolvida, no caso dos leitores sejam eles crianas ou adultos em processo de formao (cf. Heath, 1982).

Se a capacidade de mobilizar estratgias e conhecimentos medida que novos dados do texto esto chegando est ainda por ser desenvolvida, cabe perguntar qual o papel do professor nesse desenvolvimento. Em outras palavras, essa capacidade pode ser ensinada? Nossa resposta , naturalmente, afirmativa. De uma perspectiva cognitiva, o ensino de leitura consistiria na modelagem de diversas estratgias de leitura, como a ativao do conhecimento prvio, a elaborao de hipteses de leitura, antecipando, assim, elementos sobre o tema e/ou a composio do texto escrito, numa atividade oral de perguntas e respostas (ver Kleiman, 1989, 1993; Kleiman & Moraes, 1999).

Na aula de leitura, o tipo de pergunta que o professor faz ou seja, a sua mediao entre o leitor em formao e o autor do texto escrito crucial. Antes da leitura, a pergunta tem a funo de (1) explorar e ativar o conhecimento lingistico, textual, discursivo, temtico do aluno e (2) ensinar caractersticas formais do texto (enquanto concretizao de um gnero), desde que elas sejam relevantes para entender o texto selecionado (ver exemplo em Kleiman & Moraes, 1999). Aps a leitura pelo aluno, a pergunta tem a funo de (1) verificar se h problemas de compreenso que tornam o texto ilegvel para o aluno e (2) ajudar o aluno a construir um sentido global fazendo inferncias que integrem aspectos explcitos (elementos presentes no texto) e aspectos implcitos (elementos nas entrelinhas que remetem ao conhecimento sociocultural do leitor).

Da que as perguntas tenham que se afastar da tradio do livro didtico, em que, segundo Marcuschi (1996), a maioria das perguntas 60%, entre perguntas cuja resposta auto-evidente, em que h pedidos de cpias ou que so objetivas e pessoais sequer exige a leitura do texto para ser respondida. Exemplificamos os diversos tipos de perguntas no Quadro 1, a seguir, utilizando as categorias propostas no texto de Marcuschi, acima referido:

Quadro 1: Exerccios de compreenso no livro didtico

PERGUNTAS AUTO- EVIDENTESLigue

Lilian No preciso falar sobre o que aconteceu

Mame Mame, desculpe eu menti para voc 1%

CPIAS Copie a fala do trabalhador

Transcreva o trecho que fala de 16%

OBJETIVAS Quem comprou a meia azul?

O que ela faz todos os dias 53%

SUBJETIVASQual a sua opinio sobre?

O que voc acha do ? 7,5%

VALE TUDODe que passagem voc mais gostou?

Voc concorda com o autor?3%

IMPOSSVEIS D um exemplo de pleonasmo0,5%

METALINGSTICASQuantos pargrafos tem.?

Qual o ttulo do texto?9%

INFERENCIAIS H uma contradio quanto ao uso da carne de baleia no Japo. Como isso aparece no texto?6%

GLOBAISQual a moral dessa histria?

Levando-se em conta o sentido geral do texto, pode-se concluir que 4%

Resumindo, nesta seo tratei de um tipo de contedo relevante para a formao do professor de leitura, os aspectos cognitivos envolvidos no processo. Na seo a seguir, tento responder a mesma questo, referente aos conhecimentos necessrios para a formao do professor na aula de leitura. A pergunta, vale repetir, a seguinte: Quais so os contedos relevantes para o ensino de leitura, isto , para fazer uma seleo e uma anlise pr-didtica dos textos?

3. Aspectos textuais

Como j indicado na primeira seo, no discutiremos a questo de seleo de materiais a partir do gnero a ser escolhido, mas a partir do texto que concretiza um determinado gnero discursivo. Acreditamos que a escolha do gnero est, de certa forma, pr-determinada por questes de ordem didtica e sociodiscursiva que devem ser definidas na montagem dos projetos pedaggicos. Nessa instncia, anterior situao que aqui estamos considerando, a aula de leitura propriamente dita, a escolha do gnero dever levar em considerao as seguintes questes:

1. as caractersticas especficas do projeto de ensino: num projeto sobre a fbrica do bairro, que envolva uma visita ao local, poder haver leitura de documentos sobre a histria da fbrica, leitura de grficos sobre aspectos financeiros, leitura de textos produzidos pelos alunos, como carta formal solicitando visita, formulrio de permisso da famlia para fazer a visita, etc.;

2. a progresso dentro do contnuo entre a oralidade e a escrita, visando introduo gradual de diversos gneros legitimados pelas instituies de prestgio. Continuando ainda o exemplo do projeto de conhecer a fbrica do bairro, a deciso pode recair sobre quais gneros literrios ou jornalsticos que tratem de temticas afins introduzir;

3. o repertrio de gneros do aluno. A seleo do gnero dever levar em conta tambm aspectos como a idade e escolaridade do aluno, bem como sua extrao social. Por exemplo, se o projeto envolve vrias sries e um dos gneros selecionados a notcia jornalstica, as crianas da pr-escola e as do final do ciclo bsico estaro engajadas em atividades diferenciadas: leitura de notcias-curiosidade (faits divers) da seo do cotidiano, ou jornal da cidade, versus leitura de notcias ambientais, da seo internacional do peridico. Realizadas as decises sobre os gneros a serem introduzidos, resta a questo da seleo de textos do gnero. J introduzi, na primeira seo, o aspecto textual que considero mais importante para a seleo, quando da discusso do problema envolvido na seleo de um texto (Detalhes) que remetia a um outro texto (Cinderela), desconhecido dos alunos e que, por isso, comprometeu seriamente a compreenso, ao tornar o texto ilegvel, sem sentido de humor para o aluno.

A remisso de um texto a outros caracterstica de todo texto denominada intertextualidade. Segundo Vigner (1988), a intertextualidade condio do texto que diz respeito s suas relaes com outros textos (no apenas com referentes extratextuais). fator essencial da legibilidade do texto, primeiro porque o texto funciona segundo leis, cdigos e convenes de um gnero (uma norma a ser seguida ou subvertida) cujo reconhecimento regula as expectativas do leitor, e, segundo, porque o texto traz em si fragmentos de sentidos de outras fontes rescrituras de outros textos cuja percepo e interpretao constituem o ato de ler. Segundo o autor (op.cit.: p. 32), s legvel o j lido, o que pode inscrever-se numa estrutura de entendimento elaborada a partir de uma prtica e de um reconhecimento de funcionamentos textuais adquiridos pelo contato com longas sries de textos.

Tratando-se, ento, de um aspecto central e constitutivo da textualidade, aquilo que faz o texto um texto e no um amontoado incoerente de palavras e frases (ver Koch e Travaglia, 1989), que determina a legibilidade do texto, segue-se que consideramos a intertextualidade como o parmetro determinante da seleo de textos.

De fato, outros critrios utilizados pela Lingstica Textual para caracterizar o texto (cf. Beaugrande e Dressler, 1983; Costa Val, 1991; Koch, 1997; Koch e Travaglia, 1989) podem servir como parmetro para avaliar a adequao do texto face a nossos objetivos pedaggicos. Entre esses critrios de textualidade relevantes para a escolha de textos e que devem ser considerados na anlise pr-pedaggica dos mesmos, temos os seguintes:

a) a coeso: a manifestao lingstica das relaes semnticas do texto e que tem a ver com a boa formao textual;

b) a informatividade, que diz respeito quantidade de informao nova, previsvel e tem reflexos nas formas de apresentao da informao e suas relaes com outras, pressupostas como conhecidas do leitor;

c) a intencionalidade/aceitabilidade: que diz respeito s intenes comunicativas do autor e sua aceitao pelo leitor; quanto mais marcada formalmente, maior a possibilidade de o aluno perceber uma inteno e aceit-la ou no.

A aplicao desses critrios na seleo de textos no significa que eles sejam eliminatrios ou exclusivos, at porque eles no podem ser aplicados sem levar em conta os parmetros da situao social: as caractersticas do aluno, os conhecimentos prvios pressupostos, seus interesses. A interao desses fatores contribui para determinar se um texto coerente ou no para determinado leitor. A coerncia, fator emergente na situao comunicativa, dever orientar, em ltima instncia, a seleo e anlise pr-pedaggica do texto para a aula de leitura.

A coerncia, que s vezes tem sido considerada como caracterstica do texto, um elemento construdo a partir da relao que se estabelece entre os interlocutores neste caso, leitor e autor em todo o momento da interao, ou seja, quando o texto est sendo produzido (determinando, assim, decises do autor sobre como dizer aquilo que quer dizer) e, mais relevante para a didtica da leitura, quando o texto est sendo lido.

Considerando, ento, que um texto coerente ou incoerente para algum, uma pergunta relevante a fazermos no momento da aplicao do nosso conhecimento textual : H elementos no texto que possam tornar o sentido (ou um dos possveis sentidos) inacessvel para meu aluno? Essa , para mim, a pergunta-chave da seleo anlise pr-pedaggica e, para responder a ela, os contedos das cincias da linguagem Lingstica (Textual), Pragmtica, Anlise do Discurso so relevantes. Quanto mais soubermos sobre a linguagem, melhor, para poder dar resposta a essas questes, lembrando que, para fazer perguntas relevantes do ponto de vista pedaggico, quanto mais lermos melhor.

Consideremos, para exemplificar, novamente a situao descrita na primeira parte desta apostila, numa aula de leitura do texto Detalhes, que foi mal-sucedida porque os alunos no conseguiram ver o humor do texto. Em outras palavras, no aceitaram o sentido pretendido pelo autor (intencionalidade/aceitabilidade), apesar de ele estar muito marcado pelo contraste entre o tema prprio do gnero conto maravilhoso e o registro, prprio do cotidiano ntimo familiar (coeso). Do ponto de vista da situao comunicativa, no houve sucesso na comunicao entre autor e leitor, apesar da presena de um mediador ou facilitador, a professora de lngua portuguesa, porque a informao pressuposta por ambos, mediador e autor, como conhecida era, de fato, nova para o leitor (informatividade).

A seleo e anlise pr-pedaggica dos textos para aula de leitura so atividades de aplicao e no devem ser confundidas com a atividade de anlise lingstica, seja ela gramatical, textual ou discursiva. O primeiro critrio para seleo de textos no tem a ver com o texto; ele tem a ver com o aluno e a situao comunicativa da aula de leitura. Somente o professor da turma sabe o que interessante e motivador para os alunos; o que pode ajudar a desenvolver o gosto pela leitura e assim sucessivamente. Uma vez feita a escolha, a anlise pr-aula tambm deve se centrar em torno da situao de leitura, no em torno do texto. A pergunta-chave : Como eu, mediador, cheguei a minha interpretao? Por que achei o texto engraado, triste, irnico, complicado, bobo? E a resposta deve ser procurada nos aspectos formais, materiais, do texto. Em outras palavras, o que interessa para o ensino so as pistas lingsticas deixadas pelo autor que apontam para uma determinada interpretao.

Trata-se de voltar atrs, rememorando o processo de leitura, tentando trazer conscincia os elementos formais que aliceram o sentido construdo. Retomando novamente o exemplo da crnica em questo, o aspecto formal que sustenta a interpretao de que o texto engraado a incongruncia da justaposio do relato e do conto maravilhoso, este ltimo supostamente conhecido e introduzido sem aviso prvio.

Se a resposta dada pelo professor, leitor em processo de conscientizao, sobre o seu prprio processo de leitura for que o humor decorre da incongruncia da justaposio intertextual, est implicado o reconhecimento de um outro texto na crnica. Isso lhe conferiria sua caracterstica mais marcante, o humor em conseqncia da intertextualidade. Porm, nem toda remisso intertextual divertida. Da a necessidade de continuar a fazer outras perguntas que orientem para a procura de uma explicao sobre o sentido especfico construdo, o da incongruncia engraada (Porque achei a situao incongruente, que pistas me orientaram para esse sentido?).

A resposta deve ser, como j dito acima, formal; devem ser procurados reflexos formais dessa incongruncia. Primeiramente, porque a linguagem mais especificamente o registro no o registro do conto maravilhoso (Era uma vez, num reino muito antigo, vivia ). a linguagem usada para falar (no para escrever) de coisas do cotidiano (tema no prprio do conto maravilhoso) entre amigos, em famlia (estilo informal falado). Considerando apenas dois exemplos, o registro est evidente na descrio da moderna Cinderela (uma dona, uma beleza, mulher desacompanhada, essa dona, uma mulher maltrapilha, a esfarrapada) bem como na descrio de convidados e aes que contribuem para a atmosfera do baile (todo mundo de gala, todos com convite, um filhinho de papai sem convite querendo entrar, mulher desacompanhada no entra em baile do palcio, bbado rolando pela escadaria), etc.

As ltimas perguntas nessa seqncia para a anlise com fins didticos dizem respeito situao de aula propriamente dita: (a) H algum conhecimento prvio indispensvel que o aluno precisa ter para entender o texto?, (b) Quais as perguntas que devo fazer para que meu aluno perceba essas marcas formais, caso elas sejam relevantes para a compreenso e construo de um sentido para o texto?

Perguntas como essas nos orientam para a formulao de seqncias e passos para a aula. Primeiro, verificar se os alunos conhecem, de fato, os contos maravilhosos da leitura infantil universal. E, segundo, se a resposta for positiva, decidir sobre uma seqncia didtica especfica, que tenha pelo menos os seguintes passos:

(a) perguntas contextualizadoras ou de ativao de conhecimento prvio: perguntas sobre as crnicas que leram, a caractersticas da crnica ou de outros trabalhos do autor, se j os leram, e uma orientao para a leitura, dirigindo a ateno deles para a intruso intertextual que torna o texto humorstico;

(b) leitura silenciosa do texto pelos alunos e observao e registro dessa leitura pelo professor. Por exemplo, no dirio de aula (que todo professor deveria manter) anotar se os alunos riram, se perguntaram alguma palavra e qual, se passaram o olho por cima e se desencumbiram da atividade;

(c) perguntas inferenciais globais e locais. Se os alunos demonstraram ter entendido a histria (pelo seu riso, por exemplo), ento podem ser feitas perguntas globais (por que o texto engraado?) ou locais: como sabemos que o porteiro como a gente? Por que dizemos que ele fala como ns? etc.

Com esse exemplo de uma seqncia mnima de estratgias pedaggicas na aula de leitura, terminamos esta apostila, ponto de partida para nosso mdulo. Durante a nossa interao via Internet, voltaremos aos temas aqui tratados, procurando trazer mais elementos para enriquecer os conceitos aqui apresentados, e propondo atividades que tornem essa conceitualizao mais familiar.

Quem inferiu, a partir da leitura deste texto, que considero a prtica de leitura essencial para o professor sentir maior segurana quanto aos sentidos pessoais que constri para um texto, tem razo. A formao do formador de leitores , de um lado, uma questo tcnica, como vimos acima; de outro lado, entretanto, essa formao depende, de maneira crucial, da histria de leitura do professor e de suas intuies como leitor experiente que reflete sobre os caminhos a serem ensaiados e as mediaes a serem feitas na sua qualidade de formador de leitores.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

Beaugrande, R. A. & Dressler, W. U. (1983) Introduction to text linguistics. Londres: Longman. (Cap. 1)

Costa Val, M. G. (1991) Redao e textualidade. So Paulo: Martins Fontes

Dewey, J. (1964). Democracy and Education. New York: MacMillan. (1a. ed., 1916)

Foucambert, J. (1994). A leitura em questo. Porto Alegre: Artes Mdicas. edio francesa, 1989.(Cap. 1)

Heath, S. B. (1982). What no bedtime story means: Narrative skills at home and school, Language in Society. 11: 49-76.

Kato, M. (1985). O aprendizado da leitura. So Paulo: Martins Fontes.

Kleiman, A. B. (1993). Oficina de leitura. Campinas: .Pontes Editores, 1993. 7a. edio, 1999.

Kleiman, A.B. (1995). Modelos de letramento e as prticas de alfabetizao na escola. In: Kleiman, A. B. (org.) Os significados do letramento. Uma nova perspectiva sobre a prtica social da escrita. Campinas: Mercado de Letras.

Kleiman, A. B. (2000) O processo de aculturao pela escrita: ensino da forma ou aprendizagem da funo? In: Kleiman, A. B. & Signorini, I. (orgs. ) O ensino e a formao do professor. Porto Alegre: Artes Mdicas.

Kleiman, A. B. & Moraes, S. B. (1999). Leitura e interdisciplinariedade. Tecendo redes nos projetos da escola. Campinas: Mercado de Letras (Caps. 2-3) .

Koch, I. G. V. (1997). O texto e a construo de sentidos. So Paulo: Contexto. (Parte 1).

Koch, I. G. V & Travaglia, L. C. (1989). Texto e coerncia. So Paulo: Cortez Editora.

Marcuschi, L. A. (1996) Exerccios de compreenso ou copiao nos manuais de ensino de lngua? Em Aberto, Braslia: MEC, ano 16, N( 69, jan/mar.

van Dijk, T.A.(1992) Cognio, discurso e interao. So Paulo: Contexto. (Cap. 1).

Vigner, G. (1988) Intertextualidade, norma e legibilidade, em Galves, C., (org.). O Texto. Escrita e Leitura. Campinas: Pontes Editores.

PAGE 2