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Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, Nº 7 - Dezembro de 2005 145 DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS COMPANHEIROS: REFLEXÕES SOBRE O ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL Heloisa Helena Barboza SUMÁRIO: 1. Família e sucessão: visão constitucionalizada. 2. Sucessão legítima: alguns conceitos e regras. 3. Artigo 1.790 do Código Civil: uma interpretação constitucionalizada. RESUMO: Procura-se no presente contribuir para a compreensão do artigo 1.790, do Código Civil, mediante interpretação regida pelos princípios constitucionais e pelos conceitos assentes no Direito das Sucessões, não alterados pela nova lei civil. ABSTRACT: It is sought herein to contribute to the understanding of the articles 1.790 of the Brazilian Civil Code, through an interpretation guided by the constitutional principles and by the concepts set forward by the Succession Law, not altered by the civil law. * Professora Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professora do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos – FDC. Procuradora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, inativa.

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DIREITOS SUCESSÓRIOS DOSCOMPANHEIROS: REFLEXÕES SOBRE O

ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

Heloisa Helena Barboza∗

SUMÁRIO: 1. Família e sucessão: visãoconstitucionalizada. 2. Sucessão legítima: algunsconceitos e regras. 3. Artigo 1.790 do Código Civil:uma interpretação constitucionalizada.

RESUMO: Procura-se no presente contribuir paraa compreensão do artigo 1.790, do Código Civil, medianteinterpretação regida pelos princípios constitucionais e pelosconceitos assentes no Direito das Sucessões, nãoalterados pela nova lei civil.

ABSTRACT: It is sought herein to contribute to theunderstanding of the articles 1.790 of the Brazilian CivilCode, through an interpretation guided by the constitutionalprinciples and by the concepts set forward by theSuccession Law, not altered by the civil law.

* Professora Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio deJaneiro – UERJ. Professora do Programa de Mestrado da Faculdade de Direitode Campos – FDC. Procuradora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,inativa.

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A Constituição da República constitui marcoinarredável do ordenamento jurídico brasileiro. Desde suapromulgação em 1988, a proteção integral da pessoahumana1 passou a ser o centro da ordem jurídica,impondo, se não a edição de novas normas, a revisãointerpretativa das que foram por ela recepcionadas.

Este o cenário de aprovação do vigente Código Civil,oriundo de projeto muito anterior, fato que tornou imperiosasua adequação ao novo paradigma. O processo deatualização, se de um lado ajustou a lei à orientaçãoconstitucional, por outro promoveu inovações até opresente debatidas. A assimilação pela lei civil da novaordem familiar, constitucionalmente reconhecida, resultouem profundas alterações no Direito das Sucessões,ensejando diversas dúvidas quanto à aplicação das novasregras.

Os direitos sucessórios dos companheiros,regulamentados pela Lei 10.406, de 10.01.2002,inscrevem-se dentre as matérias mais controvertidas eainda não pacificadas. Destaca-se no tema o artigo 1.790,do Código Civil, que dispõe sobre a sucessão doscompanheiros. Procura-se no presente contribuir para acompreensão do citado artigo, mediante interpretaçãoregida pelos princípios constitucionais e pelos conceitosassentes no Direito das Sucessões, não alterados pelanova lei civil.

1 TEPEDINO, Gustavo. Segundo o autor, “... a escolha da dignidade da pessoahumana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamentalde erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução dasdesigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, nosentido de não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que nãoexpressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior,configuram verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoahumana, tomada como valor máximo pelo ordenamento”. A tutela dapersonalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: Temas deDireito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 50

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1. Família e sucessão: visão constitucionalizada

A estrutura familiar está intimamente ligada aosistema patrimonial. Durante muito tempo a família serviude meio de gerenciamento da propriedade privada. Comoesclarece Remi Lenoir, já no século IV a Igreja Católicaconstruiu um sistema de regras de parentesco fundadono casamento por mútuo consentimento e na liberdadede escolha dos herdeiros, pelo uso do testamento, quepermitiu à Igreja tornar-se uma potência econômica semigual. Para o autor, o modelo familiar que se conhece estáassociado à transformação da seita cristã em Igreja,graças à acumulação de bens alienados a seu favor. Essesistema foi assimilado pelo Estado moderno, que oadaptou aos seus propósitos, consolidando o papel dainstituição familiar como instrumento da ordem social. As“estruturas familiares” tornaram-se categorias deredistribuição e de transferências sociais, fato quemodificou, de acordo com sua própria lógica, o direito defamília. A “defesa da família”, como instituição, assumedesse modo papel primordial.2

Assim também foi no Brasil. Durante mais de oitentaanos, apenas o ato jurídico do casamento constituía umafamília para todos os efeitos jurídicos: pessoais epatrimoniais. Ao longo desse tempo, normas esparsasconcederam direitos fora do casamento, como o direitode reconhecimento do filho extramatrimonial,3 mantido,porém, seu caráter de excepcionalidade.

As famílias resultantes de uniões livres nenhumdireito, por conseguinte, tinham. As conquistas, quer para

2 LENOIR, Remi. Reprodução social e moral familiar. In: LOYOLA, Maria Andréa,(org.). Bioética, reprodução e gênero na sociedade contemporânea. Rio deJaneiro: ABEP, 2005. p. 158-163.3 Sobre a evolução legislativa ver BARBOZA, Heloisa Helena. O direito de famíliabrasileiro no final do século XX. In: BARRETTO, Vicente, (org.). A nova família:problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 87-112

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o casal, quer para os filhos, alguns sequer passíveis deterem sua filiação estabelecida,4 como os havidos por umhomem e uma mulher ambos casados com terceiros,foram lentas, graduais e igualmente revestidas do caráterde exceção. Observe-se, no que concerne aos integrantesdo casal, que a mulher obteve direitos, paulatinamente ea título de proteção, graças aos Tribunais.5

A Constituição Federal de 1988, como assinalado,revolucionou as relações familiares, ao reconhecer trêstipos de família: a resultante do casamento, a união estávele a formada por um dos genitores e sua prole, denominadafamília monoparental.

O reconhecimento constitucional de entidadesfamiliares não oriundas do casamento vem suscitando doisimportantes debates. O primeiro relativo à existência (ounão) de “hierarquia” entre as famílias.6 O segundo quantoa ser o elenco constitucional numerus clausus, sendopassíveis de especial proteção do Estado apenas osmodelos mencionados no artigo 226, da ConstituiçãoFederal. Este tema, de grande relevância em umasociedade pluralista, regida por normas constitucionais deinclusão, escapa, contudo, dos estreitos limites do temaproposto.7

O mesmo não se verifica em relação à primeiradiscussão que incide diretamente na atribuição de direitosaos integrantes das diferentes entidades familiares.

4 O artigo 358, do Código Civil de 1916, em sua redação original, criticada porClovis Bevilaqua, proibia o reconhecimento dos filhos adulterinos eincestuosos.5 Sobre o tema ver GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O Companheirismo:uma espécie de família. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.104-114.6 Sobre os diferentes entendimentos, inclusive fazendo distinção entre famíliae entidade familiar, ver GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., 63-65.7 Sobre o tema ver LOBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiaresconstitucionalizadas: para além do numerus clausus, Revista Brasileira deDireito de Família, Porto Alegre, n. 12, p. 41-55, jan.-mar. 2003

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Impositivo que todas as considerações sejam orientadaspelos princípios constitucionais. A fonte das divergênciasreside na letra do parágrafo terceiro, do artigo 226, daConstituição Federal, que, ao reconhecer a união estávelentre homem e mulher como entidade familiar, estabeleceuque a lei deve facilitar sua conversão em casamento(“devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”).

A parte final do dispositivo ensejou a interpretaçãosegundo a qual o casamento é o modelo familiar priorizadopelo constituinte, motivo da facilitação da conversão. Porconseguinte, o casamento teria uma “superioridade” sobrea união estável, originando uma verdadeira “hierarquia”entre as famílias, posto que, forçosamente, no último nívelestaria a família monoparental.8 As famílias não resultantesdo casamento teriam proteção limitada do Estado edireitos diferenciados ou limitados.

Registrado o respeito devido a seus defensores, talentendimento não se harmoniza, contudo, com um dosfundamentos do Estado Democrático de Direito, adignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), nem com osobjetivos fundamentais da República previstos no artigo3º: construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisoI); reduzir as desigualdades sociais (inciso III); e promovero bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação(inciso IV). Mais diretamente, parece colidir com a garantiade liberdade e igualdade estabelecida no artigo 5º, queigualmente assegura a isonomia entre homens e mulheresem direitos e obrigações, nos termos da Constituição(inciso I).

Se o Estado deve zelar pela construção de umasociedade livre e justa, reduzindo as desigualdadessociais, sem qualquer forma de discriminação, não pode

8 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 17. ed. São Paulo:Saraiva, 2002. v. 5, p. 346-351.

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privilegiar uma forma de constituição da família, em detrimentode outra, sob pena de cercear a liberdade individual, afrontandoo princípio da dignidade da pessoa humana.

Segundo Luís Roberto Barroso,9 os direitosindividuais, uma das quatro grandes categorias de direitosprevistos pela Constituição, “são a afirmação dapersonalidade humana”, “dirigidos à proteção de valoresrelativos à vida, à liberdade...”, os quais preservam aautonomia dos particulares. Tais direitos ou liberdadespúblicas encontram-se declarados no artigo 5º, daConstituição. Esclarece o autor que a cláusulaconstitucional genérica da liberdade no direito brasileirovem expressa no princípio da legalidade, positivado noinciso II, do referido artigo 5º. “A liberdade consiste emnão ter ninguém que se submeter a qualquer vontade quenão a da lei, e, mesmo assim, desde que ela seja formal ematerialmente constitucional”.

A liberdade é garantida em vários incisos do artigo5º, que assegura aos indivíduos a livre manifestação depensamento, de crença, de exercício de qualquer trabalho,de locomoção, de reunião, de associação. Não seriarazoável limitar a liberdade no que se refere “às relaçõesmais íntimas e intensas do indivíduo no social”, naconstituição de família ou à forma de fazê-lo, no momentoem que se atribui à família o “importantíssimo papel napromoção da dignidade humana.” 10

Com propriedade já se afirmou que “o princípio daautonomia privada está presente em matéria matrimonialna liberdade de casar-se, na liberdade de escolha docônjuge, e também, vistas as coisas pelo ângulo reverso,na liberdade de não se casar.” 11 A liberdade de não casar

9 BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro:Renovar, 2001. p. 82-86.10 TEPEDINO, Gustavo. Novas formas de entidades familiares: efeitos docasamento e da família não fundada no matrimônio. In: Temas de DireitoCivil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.372.11 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira.Curso de direito de família. 3. ed. Curitiba: Juruá, 1999. p. 126.

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deve compreender a optar por outro modelo de família,como a união estável. Essa mesma liberdade orienta a“motivação para a conversão”.

A “facilitação” determinada pela norma constitucionalcertamente considera a convivência estável já existente,que permite a dispensa de alguma das muitas formalidadespreliminares do casamento, como por exemplo, apublicação de editais, já prevista para caso de urgência(Código Civil, artigo 1.527, parágrafo único). Sendo ocasamento, por natureza, ato público, haverá oportunidadede oposição de eventual impedimento até o momento dacelebração do casamento (Código Civil, artigo 1.522).

Observe-se, nesse sentido, que, já em 1973,12 sepermitia à mulher a averbação dos patronímicos docompanheiro, sendo a vida em comum, estável eduradoura, ou a existência de filhos, condição para oprocessamento do pedido. A família existente e o lugarnela ocupado pela mulher autorizavam tal procedimento,embora essa comunidade familiar não tivesse sido aindareconhecida como tal.

A análise da legislação brasileira permite constatara gradual construção da igualdade direitos e deveres entreo homem e a mulher nas relações familiares, que veio aser consagrada no artigo 226, § 3º. O fato de o dispositivoreferir-se à sociedade conjugal não autoriza entender que,fora do casamento, não haja igualdade, contrariando umadas garantias constitucionais. Lembre-se que as normasaté então existentes, embora muitas já fossem asconquistas, mantinham direitos diferenciados para ohomem e a mulher no casamento.13 Pode-se constatar omesmo em relação aos filhos.14 O constituinte foi expresso

12 Lei 6.015, de 31.12.73, art. 57, §§ 2º e 3º.13 Observe-se, por exemplo, os artigos 233, 234, 251, do Código Civil de 1916.14 Lembre-se que, mesmo após a Constituição de 1988 persistiam dúvidasquanto ao registro de alguns filhos, só de todo espancadas quando revogadoo artigo 358, do Código Civil de 1916, que vedava o reconhecimento dosfilhos incestuosos e adulterinos, pela Lei 7.841, de 1989.

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quanto à igualdade, em ambos os caso, para os quaishavia normas discriminatórias.

Se não há hierarquia entre as famílias, nada legitimao tratamento diferenciado de seus integrantes,exclusivamente em razão do modelo adotado. Insista-sena indagação: as funções do homem e da mulher na famíliasão de algum modo diferentes em decorrência de seremou não casados? Será que apenas no casamentoassumem mutuamente a condição de consortes,companheiros e responsáveis pelos encargos da família,como previsto pelo artigo 1.565, do vigente Código Civil,na mesma linha da feliz redação do artigo 240,15 da leicivil anterior, dispositivos destinados ao casamento? O quêlegitima tratamento diferenciado para pessoas queexercem a mesma função familiar, salvo quandodecorrente de ato de sua própria vontade, respeitados oslimites constitucionais?

As relações patrimoniais entre homem e mulher nocasamento e na união estável, compreendidas pelo regimede bens, apresentam variações submetidas à decisão docasal, salvo as exceções legais. Sob esse aspecto e,tomando por base a opção do casal, os casamentos nãosão iguais, variando a participação dos esposos nos benscomuns e particulares. A mesma orientação se dá emrelação à união estável, podendo os conviventes contratarsobre suas relações patrimoniais (Código Civil, art. 1.725).

A autonomia do casal, no casamento e na uniãoestável, foi atenuada por força do princípio constitucionalda solidariedade, emergindo da Lei Civil a intenção deamparo recíproco entre os integrantes do casal, cônjugesou companheiros. Dentre os dispositivos do Código Civilque dão efetividade a esse princípio nas relaçõesfamiliares, encontram-se aqueles em que o legisladordetermina a participação de um dos integrantes do casal

15 Redação dada ao artigo 240, pela Lei 6.515/77.

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nos bens do outro para fins sucessórios, diretamente oumediante participação maior (ou mínima conforme onúmero de herdeiros) na sucessão dos bens comuns,como adiante indicado.

É o que se pode constatar da análise sistemáticados dispositivos do Código Civil pertinentes à sucessãodos cônjuges e dos companheiros, que induz concluir que,se para efeitos sucessórios, há diferença entre oscasamentos em função do regime de bens adotado, nãodeve haver distinção entre o cônjuge e o companheiro, noque concerne à participação nos bens do outro, sob penade se criar um privilégio em razão do modelo familiaradotado, que não encontra amparo constitucional, pelasrazões antes expostas.

Desde o reconhecimento constitucional da uniãoestável, tem sido tormentosa sua regulamentaçãoinfraconstitucional, tendente a “clonar” as normas docasamento, não obstante se tenha, de início, questionadoo cabimento da disciplina de relações não formais. Ainformalidade, traço distintivo das entidades em causa, nãoé razão bastante para que se criem discriminações entreuma e outra modalidade de família, sem ferir o princípioda igualdade e, principalmente, sem ofensa ao valormáximo do ordenamento, a proteção da pessoa humana.16

Impressiona, ainda hoje, o ensinamento de Virgiliode Sá Pereira, que em meados do século passado jáesclarecia ser a família um fato natural, que existe semcasamento.17

O homem e a mulher não se dedicam mais oumenos as suas funções familiares (consideradas as

16 Ver nota 1.17 PEREIRA, Virgílio de Sá. Direito de Família. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,1959. p. 89-90, afirma: “Agora dizei-me: que é que vedes quando vedes umhomem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequeninoser, que é o fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, coma sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isto? O acidenteconvencional não tem força para apagar o fato natural.”

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relações internas), em razão de estarem (ou não) unidospor um ato jurídico. O que os reúne e mantém unidos é oafeto. Mesmo não havendo filhos, os integrantes do casalque se desvelam reciprocamente, que conjugam seusesforços na comunhão de vida, o fazem por razõesafetivas, não por determinação legal. Neste exercíciocotidiano, será possível distinguir quem o faz na qualidadede cônjuge ou companheiro? Não estão os que não secasam exercendo sua liberdade de escolha por uma dasformas de família constitucionalmente reconhecidas? Sobo ponto de vista de proteção da pessoa, o que legitima adiferenciação de direitos, em situações iguais, aos queexercem idênticas funções, orientadas pelos mesmosprincípios? Há, efetivamente, algum outro ponto dediferenciação que não seja estranho ao direito, comomotivos religiosos?

Têm razão os que condenam normas inadequadasque acabavam por conceder aos companheiros maisdireitos do que os previstos para os cônjuges. Contudo,não mais procede, data venia, o argumento de que osconviventes adotam a informalidade para escapar dasobrigações matrimoniais,18 submetidos que estão, pela leiatual, aos mesmos deveres dos cônjuges, com o ônuspermanente de comprovação da existência da uniãoestável, preço da informalidade.

Tratando-se de situações familiares iguais, exercendoos integrantes do casal, no âmbito interno, as mesmasfunções familiares, devem os companheiros e cônjuges tersituações jurídicas iguais. Se o cônjuge foi incluído no roldos herdeiros necessários, qual a razão de não o sertambém o companheiro? O apego à literalidade da lei afastao intérprete da orientação constitucional, ao diferenciar asfamílias, ferindo o princípio da solidariedade que as orienta;mais do que isso conduz fatalmente a inadmissíveissupressões de direitos, como adiante apontado.

18 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 346.

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Na verdade, a equiparação dos cônjuges ecompanheiros não é novidade em nosso ordenamento.Observe-se que a Lei 8.971, de 29.12.94, previaexpressamente a participação do companheiro nasucessão do outro, assegurando o direito de usufruto sobreos bens do falecido, nas proporções que indicava, sendoque na falta de descendentes e de ascendentes, ocompanheiro teria direito à totalidade da herança (artigo2º, III), portanto, tendo os mesmos direitos do cônjuge eocupando o mesmo lugar que este na vocação hereditária:terceiro na ordem sucessória, herdeiro legítimo, mas nãonecessário.19

A edição da Lei 9.278, de 10.05.96, causou grandepolêmica, sendo um dos pontos de debate o fato de nadadispor sobre os direitos sucessórios dos companheiros,à exceção da atribuição do direito real de habitação aosobrevivente (artigo 7º, parágrafo único), levando muitosintérpretes a entender as leis como complementares,exatamente para não subtrair qualquer direito sucessóriodo companheiro.20

Ambas as leis foram atingidas pelo Código Civil de2002, que regulamentou inteiramente a matéria relativa àunião estável, exceção feita aos direitos anteriormenteconcedidos, não disciplinados na lei nova, mas com elacompatíveis. Assim, de entender-se ainda em vigor odisposto no artigo 7º, parágrafo único, da Lei 9.278/96, queatribui ao companheiro sobrevivente o direito real dehabitação relativamente ao imóvel destinado à residênciada família. A interpretação contrária parece não seharmonizar com o direito fundamental à moradia e comos princípios constitucionais da dignidade da pessoahumana e da solidariedade.21

19 Resp 397168/SP, RSTJ 188/441.20 Nesse sentido Resp 418365/SP, DJ 28.04.2003. Ver sobre o debate GAMA,Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 494-500.21 Nesse sentido o enunciado 117, aprovado na Jornada de Direito Civil,promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal,de 11 a 13 de set. 2002.

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Constata-se que nas leis anteriores cônjuges ecompanheiros tinham igual situação na ordem de vocaçãohereditária. Na atual, observa-se que o cônjuge, nãoobstante expressamente indicado como herdeironecessário, tem participação diferenciada na herança,concorrendo ou não com os descendentes, conforme oregime de bens (Código Civil, artigo 1.829, I)22 e tendoquinhões mínimos assegurados se concorre comdescendentes comuns ou com ascendentes do autor daherança. Os cônjuges, portanto, não herdam igualmente,embora tenham a qualidade de herdeiros necessários.23

O mesmo se verifica com os companheiros, conformeadiante demonstrado.

Merece consideração o disposto no artigo 2.041, doCódigo Civil, segundo o qual as disposições da nova leirelativas à ordem de vocação hereditária, (artigos 1.829 a1.844), não se aplicam à sucessão aberta antes de suavigência, prevalecendo o disposto no Código Civil de 1916,que não tratava da sucessão do companheiro. Parece quea disposição transitória ratifica a norma contida no artigo1.787: regula a sucessão e a legitimação para suceder alei vigente ao tempo da abertura daquela.

A interpretação da regra de transição pode serbenéfica ou não para o companheiro, de acordo com aépoca da abertura da sucessão e com o entendimentoque se mantenha sobre as normas que regulamentarama união estável: a) será herdeiro legítimo, para os queentendem que a Lei 8.971/94 foi complementada pela Lei9.278/96; b) não será herdeiro, para os que entendem que

22 Observe-se que não se pode, a rigor, assegurar que o cônjuge casadopelo regime da comunhão universal de bens já participa da totalidade dosbens do outro, por força da meação, justificado a não concorrência naherança, uma vez que, mesmo em tal regime, há bens que não se comunicam,conforme artigo 1.668, merecendo atenção o disposto no inciso V.23 O exame do direito sucessório do cônjuge escapa ao objetivo destasbreves reflexões, motivo pelo qual apenas serão feitas algumas referênciasde natureza comparativa.

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a lei de 1996 revogou a lei de 1994. Face ao tempodecorrido, este angustiante problema tende a desaparecer,se já não se extinguiu, devendo prevalecer a regra do artigo1.787, que submete todas as sucessões abertas após 11de janeiro de 2003 ao Código Civil em vigor.

De qualquer modo vislumbra-se que a admissão doscompanheiros como herdeiros necessários encontrasólidos fundamentos fáticos e jurídicos.

2. Sucessão legítima: alguns conceitos e regras

O reconhecimento da qualidade de herdeironecessário aos companheiros é medida que encontraamparo constitucional e legal. Indispensável, contudo, oexame da questão à luz das regras gerais de sucessão,cuja aplicação se impõe.

Parece não haver divergência quanto a serem oscompanheiros herdeiros legítimos, sendo sua vocaçãofeita no artigo 1.790, do Código Civil, em dispositivobastante criticado por sua estranha inserção no capítulodas “disposições gerais,” que inaugura o Título daSucessão em Geral, fato que, por um lado, não afasta aaplicação dos princípios e regras específicos da sucessãolegítima, por outro, exige interpretação cuidadosa para quenão haja prejuízo dos interessados.

A polêmica se dá quanto ao reconhecimento ou nãoda qualidade de herdeiro necessário aos companheiros.Indispensável para a análise da questão que consideremconceitos e princípios que regem a sucessão por causada morte, os quais devem ser aplicados também (enecessariamente) ao caso dos companheiros. Não se tratade apego técnico. Há importantes efeitos práticos em jogo,que vão desde a quota que cabe ao companheiro até suaexclusão da sucessão. Essas as supressões de direitosacima mencionadas.

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Doutrina consagrada assim conceitua herdeironecessário: “... são assim chamados porque constituemsucessores obrigatórios, embora contra a vontade do decujus;” 24 “Herdeiro necessário é o parente com direito a umaquota-parte da herança, da qual não pode ser privado.” 25

Esclarece Caio Mario da Silva Pereira que aconciliação entre a liberdade de testar e o instituto dosherdeiros necessários constitui, de um lado, umconsectário natural do direito de propriedade e, de outro,o meio de se assegurar a certos herdeiros “proteçãocontra as influências da idade, das afeições mal dirigidas,e até paixões impuras que assaltem o disponente naquadra avançada de sua vida.”26

Evidencia-se como característica principal desse tipode herdeiro a obrigatoriedade de participação na herança,sendo-lhe assegurada uma quota parte, a reserva oulegítima, limitando o poder de disposição do autor da herança(CC, art. 1.846).27 Embora fossem expressamentequalificados como tal no Código Civil de 1916 e no atual,não mais se pode exigir a literalidade do texto parareconhecer tal qualidade. Uma interpretação consentâneacom a orientação constitucional há de dar prevalência aosprincípios da Lei Maior, como os da dignidade da pessoahumana, da igualdade (inclusive entre as entidadesfamiliares), da solidariedade e da proteção da família.

Nessa linha, não parece razoável excluir ocompanheiro do rol dos herdeiros necessários, apenaspor não ter sido mencionado no artigo 1.845. Ainda quenão tivesse fundamento constitucional o direito sucessório

24 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva,2003. v. 6 p. 107.25 GOMES, Orlando. Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 40.26 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. 15. ed. Rio deJaneiro: Forense, 2004, v. 6, p.27.27 Sobre o instituto da reserva hereditária e os valores constitucionais verNEVARES, Ana Luiza Maia. A Tutela sucessória do cônjuge e do companheirona legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p.38-70.

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do companheiro, o artigo 1.790 tem redação de naturezaimperativa, deixando evidente que não se trata apenas deum herdeiro legítimo, mas de um herdeiro legítimo quenão pode ser afastado da sucessão, nos termos aliprevistos.

Indispensável observar que, a garantia do direito àherança28 pela Constituição Federal (art. 5º, XXX),relaciona-se, primordialmente, com o direito à propriedadeprivada, assegurando sua transmissão no caso de mortedo titular, conforme a lei. Cabe ao legislador ordinárioestabelecer a vocação hereditária, indicar os herdeirosnecessários, determinar quotas. Contudo, a atribuição daherança deve obedecer aos princípios constitucionaisrelacionados com a proteção da família. As disposiçõeslegais (ou a interpretação) que confrontem tais princípios,insista-se, devem ser afastadas. Nesse sentido, oentendimento relativo ao direito real de habitação acimaesposado.

O legislador de 2002 inovou, estabelecendoquinhões diferenciados da legítima, em alguns casos, deque são exemplo os artigos 1.832 e 1.837. Nítida apreocupação com a proteção do cônjuge, que encontrafundamento no princípio da solidariedade, presentefrancamente nas relações familiares. A previsão legalnesse sentido ganha feição de regra especial, que afastao princípio geral da igualdade na partilha (art. 2.017) noscasos indicados. Razoável se adote tal entendimento parasolução das hipóteses não contempladas pelo legislador

28 Segundo GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Concorrência sucessóriaà luz dos princípios norteadores do Código Civil de 2002. Revista Brasileirade Direito de Família, Porto Alegre, v. 7, n. 29, p. 14, abr.-maio 2005. “Oordenamento jurídico brasileiro atribui a característica da essencialidade doDireito das Sucessões às relações intersubjetivas, evidenciando que asucessão hereditária é tutelada como direito fundamental, nos termos do art.5º, inciso XXX, da Constituição Federal, inserida na perspectiva da construçãode uma sociedade mais livre, justa e solidária, com fulcro no art. 3º, inciso I,do texto constitucional”.

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adiante analisadas: não sendo estabelecida participaçãoespecial ou diferenciada, de aplicar-se o princípio geral damaior igualdade possível na partilha. Tais participaçõesespeciais, na maioria dos casos, são quotas mínimasasseguradas a determinados herdeiros, como seevidencia do artigo 1.832, parte final.

Ao que se constata do Código Civil, a sucessão dosintegrantes do casal está relacionada ao regimepatrimonial adotado, havendo tendência, quandoconcorrem com filhos, à participação nos bens adquiridosdurante a convivência. Nesse sentido, o artigo 1.829, I,segundo o qual o cônjuge sobrevivente concorre com osfilhos se casado pelo regime de separação de bens (artigos1.687 e 1.688). O mesmo se verifica com relação aoscompanheiros, conforme caput do artigo 1.790.

Cabe ressaltar que, havendo filhos, a participação nosaquestos pode-se dar em razão do regime de bens adotadoe por direito sucessório, somando-se à meação, decorrenteda dissolução do estado de comunhão existente em razãoda morte, a quota de participação na herança, como previstono artigo 1.829, I, parte final, para o cônjuge sobreviventecasado pelo regime de comunhão parcial de bens, havendobens particulares. Sendo o regime de separação de bens,não há meação, participando o viúvo da herança . De acordocom a melhor doutrina, herança “é o conjunto patrimonialtransmitido causa mortis,”29 é “o patrimônio do defunto.”30

Percebe-se que o legislador em alguns momentosrefere-se a bens adquiridos durante a convivência e emoutros à herança, sendo indispensável distinguir as hipóteses.Nenhum fundamento constitucional ou legal existe, datavenia, que autorize a equiparação dos termos, notadamenteem razão dos efeitos decorrentes da distinção.31

29 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 3.30 GOMES, Orlando. Op. cit., p.7.31 Ver PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 156-157.

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Na ausência de norma excludente, todos osprincípios e regras da sucessão legítima devem seraplicados à sucessão do companheiro, impondo adequadainterpretação do artigo 1.790, do Código Civil.

3. Artigo 1.790 do Código Civil: uma interpretaçãoconstitucionalizada

Como se procurou demonstrar, fortes fundamentosde ordem constitucional autorizam a inclusão docompanheiro no rol dos herdeiros necessários. A redaçãodo artigo do Código Civil que disciplina a sucessão doscompanheiros é, contudo, bastante imprecisa, exigindoesforço do intérprete para atender a orientaçãoconstitucional e impedir sua injustificada exclusão dasucessão. Observe-se, de início, que o dispositivo seencontra deslocado em meio às disposições gerais dodireito das sucessões, estabelecendo uma vocaçãolegítima paralela a do artigo 1.829, que inaugura o Títulodedicado à sucessão legítima.

Indispensável cuidadoso exame do artigo 1.790, umavez que a adequada qualificação do companheiro comosucessor legítimo exige o confronto com as demaisdisposições que regem a matéria.

De acordo com o artigo 1.789, do Código Civil, oautor da herança, que tenha herdeiros necessários, sópode dispor de metade da herança. Inexistindo taisherdeiros pode dispor da totalidade de seus bens. Deacordo com o artigo 1.845, são herdeiros necessários osdescendentes, os ascendentes e cônjuge. Os colaterais,herdeiros legítimos, mas não necessários, podem serexcluídos da sucessão, bastando para tanto que o testadornão os contemple ao dispor de seu patrimônio (art. 1.850).

Permitida seria a exclusão do companheiro daherança, se considerado apenas herdeiro legítimo, emqualquer dos casos do artigo 1.790, inclusive não havendo

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parentes sucessíveis, podendo o testador dispor datotalidade de sua herança.

Tal interpretação não parece compatível com o artigo1.790, que nitidamente assegura a participação docompanheiro na sucessão, nos termos que indica. Emconseqüência, não parece cabível a aplicação extensivado artigo 1.850 ao companheiro, por não harmônica coma proteção que o Código procurou dar aos integrantes docasal, a qual tem fundamento no princípio da solidariedade,constitucionalmente estabelecido.

Verifica-se que o companheiro não exclui oscolaterais, mas tem assegurado o direito a 1/3 daherança se com eles concorrer (art. 1.790, III).32 Possível,portanto, que o autor da herança exclua os colaterais portestamento, como permite o artigo 1.850, caso em que ocompanheiro receberá a totalidade da herança, por forçado artigo 1.790, IV, respeitadas, à evidência, disposiçõestestamentárias acaso existentes. Observe-se que aconcorrência do companheiro com “outros parentessucessíveis” (art. 1.790. III) deve observar a ordem devocação hereditária estabelecida no artigo 1.829. Dessemodo, a concorrência do companheiro com colaterais,pressupõe a inexistência de ascendentes, em qualquergrau.

O companheiro ao concorrer com ascendentes dequalquer grau tem assegurada a cota mínima de 1/3 daherança (art. 1.790,III), na ausência de previsão legaldiversa, como a existente para o cônjuge que, concorrendocom ascendente(s) além do primeiro grau receberámetade da herança (art. 1.837, parte final),independentemente do número de ascendentessobreviventes.

32 O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu o direito sucessória dacompanheira em concorrência com colaterais, embora qualificando-a comoherdeira facultativa (Agr. Inst. 14421/2003, 18ª Câmara Cível), disponível emhttp://www.tj.rj.gov.br. Acesso em 23 dez. 2005.

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Deve-se considerar que há no Código Civil duasvocações legítimas a serem conjugadas: a do artigo 1.790e a do artigo 1.829, que ensejam a concorrência entreherdeiros necessários. É o que se verifica com o cônjugeem relação aos descendentes e ascendentes (art. 1829, Ie II) e em relação ao companheiro, tendo em vista o artigo1.830. Não há, em princípio, possibilidade do companheiroconcorrer com o cônjuge, se vigente a sociedade conjugalà época da abertura da sucessão, em virtude do dispostonos artigos 1.723, § 1º, e 1.727, da Lei Civil.

O mencionado artigo 1.830 contém verdadeiros“requisitos de admissibilidade” do cônjuge como herdeiro,não previstos para o companheiro, que sofrerá, porém,diversas restrições como adiante exposto. Tal fato,contudo, não deve prejudicar a qualidade de herdeironecessário desse último, que terá sempre o ônus decomprovar a existência da união estável, especialmenteno momento da abertura da sucessão, pressuposto deseu direito sucessório.

Não há vinculação do direito sucessório decorrenteda união estável à adoção de determinado regime de bens,na verdade não bem definido em relação aoscompanheiros, a teor do artigo 1.725. Participará, assim,o companheiro da sucessão, qualquer que seja o regimepatrimonial adotado, devendo ser respeitada a vontade docasal, que pode contratar sobre suas relações patrimoniais(art. 1.725), salvo para pactuar a exclusão da herança,bem como qualquer forma de renúncia prévia a seu direitosucessório, por contrárias à natureza imperativa do direitoà reserva legal e ao artigo 426, do Código Civil.

No que respeita à concorrência com descendentes,a sucessão do companheiro apresenta algumaspeculiaridades, quando feita a comparação com a situaçãodo cônjuge. O sobrevivente casado concorre à herançacom descendentes (art. 1.829, I), recebendo quinhão igualao dos que sucederem por cabeça (art. 1.832, primeiraparte), sejam descendentes comuns e/ou exclusivos do

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autor da herança, por força do artigo 1.834 e do princípioda maior igualdade possível dos quinhões (art. 2.017). Aquota do cônjuge não poderá ser inferior a ¼, se concorrerapenas com descendentes comuns, que a final serãotambém seus herdeiros (art. 1.832, parte final).

O companheiro concorre com descendentes apenasquanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência daunião estável, não participando dos demais bens a títulosucessório, por força do disposto no caput do artigo 1.790.Cabe, porém, distinguir: a) se concorre com filhos comunsterá direito a quinhão igual ao desses (art. 1.790, I); b) seconcorre com descendentes só do autor da herança, terádireito à metade do que couber a cada um daqueles (art.1.790, II).

O dispositivo gera indagações. A primeira respeitaà hipótese de concorrência simultânea do companheirocom filhos comuns e com filhos só do autor da herança,quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência daunião estável. Na ausência de previsão especial, de aplicar-se o critério acima proposto, de adoção do princípio damaior igualdade possível da partilha (art. 2.017),partilhando-se por cabeça entre todos os concorrentes. Aigualdade dos quinhões entre descendentes da mesmaclasse é assegurada pelo artigo 1.834.33

Segunda indagação: o companheiro não concorrecom outros descendentes comuns? O disposto no incisoI, do artigo 1.790, poderia induzir a não concorrência docompanheiro com outros descendentes comuns, já quemenciona apenas filhos. Contudo, a concorrência se dápor força do inciso III, já que aqueles são, sem dúvida,

33 A questão não se encontra, contudo, pacificada. Sobre o tema verimportante trabalho de HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Osistema de vocação concorrente do cônjuge e/ou do companheiro com osherdeiros do autor da herança, nos direitos brasileiro e italiano. RevistaBrasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 7, n. 29, p.45-87, abr.-maio, 2005.

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“outros parentes sucessíveis”, pertencentes à primeiraclasse chamada à sucessão. Tal interpretação beneficiao companheiro, na medida em que passa a concorrer àherança, pelas razões adiante apresentadas, tendoassegurada a quota mínima de 1/3, ao concorrer, porexemplo, com netos comuns.

Indispensável observar que os incisos III e IV, doartigo 1.790, diferentemente do I e II, referem-se àparticipação do companheiro na herança do outro,portanto, em todo seu patrimônio, e não apenas nos bensadquiridos onerosamente na vigência da união estável. Nãosó os dispositivos legais citados são expressos nessesentido, como também esse entendimento é o que melhoratende o princípio da solidariedade.34

Questão complexa respeita aos bens sobre os quaisse dá a concorrência. O cônjuge participa com osdescendentes e ascendentes da herança do falecido, aopasso que o companheiro partilhará com os filhos comunse/ou descendentes só do autor da herança apenas os bensadquiridos onerosamente na vigência da união estável (art.1.790, I e II). Desse modo, havendo filhos comuns oudescendentes só do autor da herança, se não existirembens adquiridos durante a convivência, o companheironada receberá a título sucessório.

Observe-se que, se atrelados os incisos III e IV àprevisão do caput do artigo 1.790, o companheiro seráexcluído por outros parentes sucessíveis, a saber, outrosdescendentes comuns, ascendentes ou colaterais, nocaso de inexistência de bens adquiridos onerosamentena vigência da união estável. O mesmo ocorrerá se nãohouver parentes sucessíveis, caso em que a herançarestaria jacente.

Os mencionados incisos III e IV referem-seexpressamente à herança, aludindo o último à “totalidade

34 Ver PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 150-162, especialmente notado atualizador, p. 162-168.

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da herança”, evidenciando tratar-se da totalidade dopatrimônio do autor da herança. Possível, assim, entenderque nesses dois casos não se aplica a limitaçãoestabelecida no caput do artigo, que parece ter o objetivode assegurar a participação do companheiro na sucessãodo outro.

Diversos trabalhos vêm sendo elaboradosprocurando dar adequada interpretação ao artigo 1.790,do Código Civil. O consenso, se possível, não foi aindaobtido. As presentes reflexões, tentativa de contribuiçãoao debate, buscaram atender a orientação constitucional,em particular de proteção dos integrantes da família, emseus diferentes modelos.

Rio, dezembro de 2005.

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