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2015/1016 Direito Marítimo Professor Doutor Januário da Costa Gomes 大象城堡 | 普京法律的大学

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2015/1016

Direito Marítimo Professor Doutor Januário da

Costa Gomes

大象城堡 | 普京法律的大学

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

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O Mar e as disciplinas jurídicas1

Direito Marítimo e Direito do Mar: o mar impõe-se, de per si; cobrindo uma grande parte do

nosso planeta e provocando natural respeito ao homem, esse «bicho da terra tao pequeno», de

que fala Camões, subjugado perante «tanta tormenta e tanto dano». Interessa-nos, aqui,

constatar as abordagens jurídicas do mar e das atividades marítimas e tentar olhar essas

abordagens tendo presente a chamada enciclopédia jurídica. A nossa perspetiva é, porém,

neste particular, o mais aberta possível: não temos da enciclopédia jurídica uma visão estática

e definitiva. Esta postura resulta de duas considerações: a primeira é a constatação do pulsar

do direito e da sua permanente evolução; a segunda, aliada ontologicamente à primeira, é a

natural falsidade, la lógica popperiana, dos ramos de direito entendidos como divisões e

subdivisões ordenadas a partir da divisão bipolar entre Direito Público e Direito Privado, quer a

nível do Direito interno quer do Direito internacional. Têm sido, aliás, autonomizadas disciplinas

jurídicas sem grande preocupação pela respetiva pertença plena ao Direito Público ou ao Direito

Privado e, dentro de cada um deles, aos clássicos ramos aí pacificamente identificados. Essa

autonomização disciplinar tem sido feita sem dramas existenciais relativos ao código genético

dessas disciplinas e também sem reivindicações firmes relativamente à corporização dessas

mesmas disciplinas como verdadeiros ramos de Direito. Numa primeira abordagem, olhando

para as disciplinas que nas diversas Faculdades de Direito têm como objeto central “o mar e o

seu Direito” – quando as há – ora encontramos uma única disciplina, ora encontramos duas

disciplinas diferentes, sendo uma de Direito do Mar e outra de Direito Marítimo. A análise dos

programas as disciplinas Direito do Mar e Direito Marítimo permite identificar com razoável

segurança o berço de cada uma das disciplinas; enquanto que o moderno Direito do Mar se

apresenta não como um ramo pelo menos como um capítulo do Direito Internacional Público,

o Direito Marítimo surge ancorado no Direito Privado mais concretamente no Direito Comercial.

Sem prejuízo da identificação de um papel ativo do mar, já no Direito Romano e medieval na

criação do Direito Internacional, a respetiva elaboração científica só se iniciou no século XVI,

assumindo papel de relevo, já no início do século XVII, a querela sobre a liberdade dos mares,

protagonizada por Grócio e Selden, entre o mare liberum e o mare clausum – controvérsia em

que Portugal e respetivos interesses tiveram um lugar central2. É por isso que, para muitos, a

1 O Ensino do Direito Marítimo; o soltar das amarras do direito da navegação marítima; por Manuel Januário da Costa Gomes, Almedina, novembro de 2004. (páginas 29 a 68) 2 Na sequência do apresamento pela Companhia Holandesa das Índias Orientais de um navio português (Santa Catarina) no estreito de Malaca, em 1602, e dos protestos que tal apresamento provocou por parte de Espanha e Portugal (constituindo então uma união pessoal), o jovem Hugo Grócio escreveu, em defesa daquela companhia, o texto Mare Liberum, publicado anonimamente em 1608. O apresamento do navio português, justificado pelo facto de a Holanda estar em guerra com a Espanha, cujo soberano era comum a Portugal, constituiu assim a occasio para o aparecimento desta obra fundamental de Grócio, em jeito de carta, cuja aplicação se estendeu bem para além do caso do galeão, sendo os argumentos do Mare Liberum invocados pela Holanda, a partir daí, designadamente no conflito que a opunha à Inglaterra. É o confronto com os interesses ingleses que justifica o aparecimento, na liça, de John Selden, advogado e académico que escreveu, na primeira década de 1600, o Mare clausum, só publicado em 137. Em causa estava agora a liberdade de pesca nos mares próximos da Inglaterra, defendendo Selden o domínio, pelo rei britânico, dos mares circundantes da Grâ-Bretanha. No seu Mare Liberum Grócio defendia as seguintes 12 teses: Que pelo direitos das gentes é livre a todos a navegação para qualquer parte; Que os Portugueses não têm, por título de

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querela mare liberum/mare clausum marca o início do Direito Internacional Público do Mar. Nos

séculos subsequentes, apesar da deslocação das preocupações e das polémicas para outros

domínio, com relevo para o da delimitação das águas territoriais, podemos dizer que o que

continuou sempre a estar em causa, de forma direta ou indireta, foi o direito de utilização de

espaços marinhos pelos Estados. Como dizia O«Connel:

«The History of the law of the sea has been dominated by a central and persistent

theme: the competition between the exercise of governmental authority over the

sea and the idea of the freedom of the seas».

Falar em Direito do Mar – sobretudo a partir da I Conferência das Nações Unidas de 1958,

culminando na II Conferência (Montego Bay) – é centralmente falar de Direito relativo à

utilização de espaços marinhos. Não espanta, assim, que coerentemente com a identificada

tendência de territorialização do mar, a partir, sobretudo, de Montego Bay, o mar seja estudado

em Direito Internacional Público a propósito do território. Como vimos, a querela mare

liberum/mare clausum marca o início do Direito internacional Público do mar. Contudo, a

preocupação do Direito pelos assuntos do mar e as atividades marítimas era já então milenar,

como ilustram as sucessivas compilações de regras marítimas, desde a Lex Rhodia do século III

ou II a.C. até ao famoso Consulat del Mar. O Direito Marítimo pululava cheio de vida antes da

querela mare liberum/mare clausum, pontificando nos mares regras consuetudinárias

conhecidas e aplicadas nos diversos portos e nos tráficos. É pacífico que, devido à necessidade

da sua uniformidade internacional, o Direito Marítimo se desenvolveu de forma total ou

prevalentemente autónoma face ao Direito comum nacional. O Direito Marítimo nunca se

conteve nas fronteiras de um Estado, sendo da sua essência a vocação internacional. Ou seja: o

Direito Marítimo sempre foi naturalmente internacional. Contudo, o acrescento do

internacional, em termos designativos, tem sido utilizado, após a autonomização do que se

designa agora por Direito do Mar, e precisamente para referir esta específica área. É assim que,

sobretudo até à I Conferência das Nações Unidas de 1958, o atual Direito do Mar era designado

por Direito Internacional Marítimo ou por Direito Marítimo Internacional, sendo comum a

distinção entre aquele e o Direito Marítimo, que, entretanto, com as codificações do século XIX,

passou a ser, grosso modo, identificado com o Direito Comercial Marítimo, tal como regulado

nos códigos comerciais. Podemos dizer, com Berlingieri, que as codificações marcaram uma

inversão de tendência no sentido da uniformidade internacional do Direito Marítimo, já que,

apesar das matrizes comuns, as leis nacionais foram estabelecendo regimes específicos; por

outro lado, como também nota Berlingieri, as abolições de jurisdições especiais em matéria

marítima acentuaram a sobredita inversão de tendência. Contudo, o movimento uniformizador

descobrimento, nenhum direito de domínio sobre os Índios, para cujas praias os Holandeses navegam; Que os Portugueses não têm por título de doação pontifícia, o direito de domínio sobre os Índios; Que os Portugueses não têm, por título de guerra, o direito de domínio sobre os Índios; Que o mar que leva aos Índios, ou o direito de nele navegar; não é propriedade dos Portugueses por título de doação Pontifícia; Que o mar, ou o direito de navegar, não é propriedade dos Portugueses, por titulo de ocupação; Que o comércio com os Índios não é propriedade dos Portugueses por título de doação pontifícia; que o comércio com os Índios não é propriedade dos Portugueses pelo direito de prescrição ou costume; Que os Portugueses proibindo o comércio não se apoiam em base alguma de equidade; Que aos Holandeses cumpre manter o direito do comércio com a Índia, quer pela paz, quer pelas tréguas, quer pela guerra. Por sua vez, as teses de Selden centrava,-se em 2 teses: «That the sea by the law of nature is not Common to all men, but capable of private dominion or property as well as the land», e «That the king od Great Britain is lord of the sea flowing about, as an inseparable and perpetual appendant of the Brittish Empire».

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ganhou novo alento a partir do final do século XIX, quer na área do Direito Marítimo Público

que na do Direito Marítimo Privado, graças, sobretudo, ao Comité Marítimo Internacional.

O Consulado do Mar: o Direito Marítimo tem, assim, o conteúdo e a dimensão que resulta da

sua história, da sua rica evolução e do recente destaque do Direito Internacional Público do Mar.

Para uma primeira aproximação, tomemos como nebulosa referencia do que constitui o objeto

do Direito Marítimo, dois importantíssimos documentos anteriores às codificações: O Consulat

del Mar e a Ordennance de Colbert. Há, é certo, outros relevantíssimos documentos da história

e na evolução do Direito Marítimo, mas estes parecem-nos modelares: o primeiro, do século

XIV, reunindo as regras vigentes no Mediterrâneo e constituindo uma espécie de código para

este mar; o segundo, de 1681, herdeiro dos Rôles d’Oléron e do Guidon de la Mer e influenciador

do Code du Commerce. Vejamos, apesar do casuísmo que percorre todo o Livro – de

características compilatórias com finalidades práticas (chegando ao ponto de ter um capítulo

sobre os géneros deteriorados pelos ratos por não haver gato a bordo), o Livro do Consulado

do Mar contém, por vezes de uma forma exaustiva, o grosso das matérias que, mais tarde,

viriam a constar dos códigos comerciais, nos livros ou Partes dedicados ao Comércio Marítimo.

Algumas matérias depois codificadas não constam, porém, do Livro do Consulado do Mar, v.g.,

o seguro marítimo.

Da Ordennace de Colbert ao Code du Commerce: a Ordenança de Colbert de 1681, também

designada Ordenança da Marinha de Luis XIV, constituiu um marco importantíssimo na História

do Direito Marítimo, fazendo a ponte entre a herança das compilações anteriores, com relevo

para o Livro do Consulado do Mar, os Rolos de Oleron, as Leis de Wisby e o Guidon de la Mer –

e os códigos comerciais, com destaque para o primeiro Código Comercial de 1807, cujo livro II

reservado ao Comércio Marítimo, quase constitui uma reprodução dos Livros II e III da

Ordennace. A Ordenança de Colbert vigorava em Portugal como Direito subsidiário, através da

Lei da Boa Razão (1769), que no seu §9.º mandava atender «em matérias políticas, económicas,

mercantis e marítimas», na falta de leis pátrias, «às leis de nações civilizadas da Europa e não

às romanas». Silva Lisboa justificava a inserção da Ordenança na sua obra pelo facto de este

Regulamento ser «o mais conciso, sistemático e completo» da Europa, dizendo, noutro passo,

ser de «geral estimação». Como é sabido, a aplicação da Ordenança de Colbert, por força da Lei

da Boa Razão, não era direta. Esta remetia para as leis das «nações cristãs, iluminadas e polidas»,

dando lugar a dificuldades de vária natureza que, no entanto, no que respeita a dificuldades de

vária natureza que, no entanto, no que respeita a matéria marítima, não se terão feito sentir,

pelo menos no que tange à escolha da lei aplicável. A Ordenança estava dividida em 4 Livro,

cada um deles dividido em Títulos. O Code du Commerce de 1807 dedica o segundo dos deus

quatro livros ao comércio marítimo, aí “marcando” de forma decisiva e com grande influência

nos diversos códigos comerciais, a matéria marítima – rectius, comercial-marítima.

Das primeiras lei marítimas portuguesas até ao Código Comercial de 1833: a matéria

marítima tem naturalmente antecedentes a nível legislativo no Direito pátrio, antes do Código

Ferreira Borges. Destacamos os seguintes marcos:

a. Lei de D. Afonso II (1211) estabelecendo que os navios que, impelidos pela violência das

tempestades, viessem a dar às costas, não fossem entregues ao Fisco ou aos oficiais do

Rei mas permanecessem com os seus antigos Senhorios;

b. No reinado de D. Dinis foram tomadas medidas de proteção do comércio marítimo,

destacando-se a instituição da obrigação de pagamento de uma quantia em função da

tonelagem dos navios;

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c. No reinado de D. Afonso IV foi publicada uma lei sobre fretamento e carga dos navios;

d. Leis de D. Fernando, reconhecendo o proveito e utilidade da navegação ao cumular os

marítimos de privilégios, tendo sido tomadas as seguintes providências: promoção das

construções navais, com a concessão de isenção e privilégios aos proprietários de

navios de mais de cem toneladas; promoção da construção naval, com a permissão de

retirar gratuitamente das matas reais, mastros e madeiras; atribuição de isenções para

os materiais de construção e para as compras e vendas de navios e atribuição ao dono

do navio na primeira viagem dos direitos de alfândega da carga que exportasse e

metade do que importasse. A providência mais conhecida é a criação de uma bolsa

comum em Lisboa e no Porto, instituição relevantíssima em sede de seguros marítimos.

A criação pelo Cardeal D. Henrique do Regimento do Consulado ocupa lugar cativo nas parcas

referências lusitanas ao nosso Direito Comercial. É conhecido o louvor de Ferreira Borges a essa

instituição3, sugerindo que a mesma surge influenciada pelas várias magistraturas especiais

instituídas na Europa, destacando o Consulado do Mar: «Era impossível que não chegasse até

nós o impulso desta regularização Mercantil universal». Segundo informação disponibilizada

pelo próprio Ferreira Borges, a quem se deve, aliás, a primeira impressão do Regimento, o

Tribunal do Consulado foi criado – aliás – recriado – pelo Cardeal D. Henrique, em 1593, tendo

sido abolido em 1602, por Alvará de 13 fevereiro, publicado em 14 março, seguindo-se a

publicação, nas Ordenações Filipinas, em 1603. Não obstante essa revogação, o que é certo é

que o Consulado continuou a vigorar, embora em termos limitados, conforme refere Ferreira

Borges:

«É notável que tendo estas Ordenaçoens sido publicadas depois da abolição do

Consulado, e tendo-lhe até substituído marcadamente o Juízo d’Índia e Mina e

Ouvidoria d’Alfandega, falem no L.º 5.º Títu. 66 §9 do Prior e dos Consules como

existentes ainda e conhecedores dos objetos das québras».

Que a matéria marítima teve um peso especial na criação do Consulado, demonstra-o, desde

logo, o facto de, na Provisão, serem invocados, entre outros fundamentos (o não menos dos

quis era a «falta de ordem»), as muitas perdas que os mercadores «recebem no mar nos roubos

do Corsários». Mais elucidativa era a decisão das causas da competência do Consulado, onde o

relevo da matéria marítima era manifesto. Sendo embora o Código Comercial francês de 1807

a fonte mais direta do Código Comercial de 1833, Ferreira Borges seguiu uma solução mais

radical no que concerne ao comércio marítimo, colocando-o, dentro embora do Código

Comercial, quase que fora dele, numa Parte, a segunda, que lhe é exclusivamente dedicada,

sendo a primeira respeitante ao Comércio Terrestre. A explicação é dada pelo próprio Ferreira

Borges, quando se refere ao comércio marítimo como «ramo que póde fazer um systema á

parte sobre si e talvez elle mesmo um código independente, como por seculos passou entre

muitas nações». Considera Barbosa de Magalhães que «esta separação estava nas tradições do

Direito Mercantil», embora reconheça que nem todos os códigos fazem uma separação tão

acentuada e ainda «que haja quem constate o particularismo do Direito Marítimo, ao mesmo

tempo que em alguns países, como em Itália, há códigos especiais desse ramo de Direito». A

estrutura adotada por Ferreira Borges vem, de resto – embora fique aquém – na lógica da

autonomização do Direito Marítimo, tendo-se conhecimento de que, no ano de 1821, chegou

a mandar-se imprimir um projeto de código marítimo da autoria de Ferreira Borges. Ferreira

Borges afastou-se, efetivamente, quer da sistematização do Código Comercial Francês, quer

3 É um monumento de sabedoria que do cimo de II Séculos accusa a nossa ingorancia hodierna.

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ainda da sistematização do Código Comercial Espanhol de 1829, que dedicava ao comércio

marítimo um livro (ao lado de outros). Excluímos desta ponderação a matéria juridicária e

adjetiva que Ferreira Borges incluiu na Parte I, tendo, contudo, uma vocação mais ampla, em

termos de abranger a matéria do comércio marítimo. Podemos, efetivamente, dizer que todo

o Livro II da Parte I (apesar de relativa ao Comércio Terrestre) tinha também aplicação ao

comércio marítimo.

Do CCom 1833 ao CCom 1888: a aprovação de um Código Comercial fora sentida como uma

necessidade, pese embora a inexistência de um Código Civil que fixasse as traves mestras do

Direito Privado comum, a partir do qual derivaria, então, a matéria comercial. Desse espírito dá

nota o próprio Ferreira Borges, em 1833, na apresentação do Código a D. Pedro IV: «Entre as

muitas necessidades que padece o nosso Portugal, não vai mui longe na lista a mingoa d’um

sistema de legislação comercial. Todos o sentem, e primeiro que todos, o corpo mercantil». Não

muito tempo após a entrada em vigor do Código de 1833, era sentida a necessidade da sua

reforma, sendo disso consequência o Decreto de 13 julho 1859, que nomeou uma comissão

encarregada de «rever, reformar e organizar assim a legislação commercial como o processo

respetivo». Fora enorme o mérito de Ferreira Borges: o de preparar e estruturar um Código

Comercial, inexistindo um Código Civil que, aliás, só faria o seu aparecimento mais de trinta

anos depois. Esse tributo e homenagem foram-lhe prestados, mais tarde, por Veiga Beirão, que

considera o Código de 1833 «a eterna glória do seu autor». Recentemente, Menezes Cordeiro

apelida-o de «jurista de génio». Como não podia deixar de ser, face à inexistente compilação do

Direito Privado comum, o Código Comercial de 1833 revelava uma certa confusão entre Direito

geral e especial, inconveniente que se tornou depois particularmente evidente com a

publicação do Código Civil. Ao fracasso do CCom 1833 não foi, também, estranho, seguramente,

o fraco desenvolvimento da comercialística em Portugal. Dessa ausência, queixa-se, aliás,

Ferreira Borges: «porque me ocorria que a falta d’escriptos em nossa linguagem, a falta d’ensino

do direito mercantil em nossas escolas». Ferreira Borges sentia a enorme dificuldade de legislar

matéria especial antes da codificação da matéria geral ou comum, justificando, assim, a inserção,

no Código Comercial, de matéria civil: «como o direito comercial é direito d’exceição, tornava-

se necessário a regra, e dahi a exceição, para evitar o absurdo de legislar exceição a regra

imaginada ou incerta, ou enfim existente». Ferreira Borges tivera, assim, a preocupação de

deixar o compilador do Código Civil «o fio por onde o de commercio devia, necessariamente, em

harmonia com aquelle, atar-se, unir-se, e amalgamar-se n’um só e inteiro corpo de legislação».

Contudo, como saliente Veiga Beirão, tal fio «ficou prejudicado, como era natural, pelo decurso

do tempo, com o progresso da ciência e pela mudança de circunstâncias, ocorridas de 1833 para

cá, que fizeram variar o próprio sistema adotado no Código Comercial». Para além da

“amálgama” entre matéria civil e comercial constante do código de 1833, avia uma outra que

Veiga Beirão se propôs separar: a do direito substantivo e do direito adjetivo, deixando para a

lei do processo a organização do foro comercial e do processo mercantil. Tendo abandonado a

ideia e o método, revelado improdutivo, das comissões, que se iniciaram em 13 julho 1859 e

continuado em 17 julho 1870, com a nomeação de outra comissão, Veiga Beirão decidiu – em

boa hora, diga-se – recorrer a um outro método: o de «solicitar, particularmente, de pessoas

competentes, a sua cooperação, separada, para todas as partes da reforma, que eu próprio não

pudesse, diretamente, preparar». Ao solicitar a essas pessoas competentes colaboração

específica para partes do futuro código, não deixou Veiga Beirão de indiciar como diretriz e linha

de atuação o facto de ser sua ideia «preparar um novo código comercial, em que, embora

conservadas as disposições da nossa legislação mercantil que o merecessem ser, e introduzissem

todas aquelas reformas que a jurisprudência, o comércio e aprática, têm aconselhado». Para o

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efeito e nesse âmbito, Veiga Beirão recomendou que, sem prejuízo de dever ser tomado por

bom o código então vigente e as suas alterações parciais, «deviam ter-se em vista os códigos

commerciais ultimamente publicados no estrangeiro, e dentre estes, especialmente – não só por

serem os mais recentes, mas pela identidade de circunstâncias d’esses países – o de Itália, de 31

de outubro 1882, e o de Hespanha, de 22 de agosto de 1885, atendendo-se, sempre e

indiferentemente, ás prescrições geraes do nosso direito, ás tradições do commercio nacional e

aos usos das praças do reino». Conforme informação do próprio Veiga Beirão, a parte do código

relativa ao comércio marítimo foi preparada pelos Conselheiros José Pereira – que se ocupou

dos seguros, avarias, arribada, abalroação e assistência – e Eduardo de Serpa Pimentel – que se

ocupou da restante parte do comércio marítimo. A summa divisio entre terrestre e marítimo

não foram, que se saiba, o objeto de autorizados reparos de fundo. Contudo, o Código de Veiga

Beirão afastou-se claramente desta divisão bipolar, adotando o modelo, de inspiração francesa,

de reservar ao comércio marítimo um livro ao lado de outros. Não se encontra, porém, no

projeto de Veiga Beirão, qualquer crítica frontal e fundamentada à divisão bipolar de Ferreira

Borges, nem qualquer defesa sustentada da nova sistematização e abandono da anterior. A

única passagem onde, de forma indireta, a questão é abordada, é aquela em que o autor refere

que curou de seguir no projeto uma distribuição de matérias tanto quanto possível próxima da

ordem do código civil, «de modo que mais facilmente venha a encontrar-se ao par da disposição

geral, a prescrição especial». Neste sentido, que determina o abandono da sistematização de

1833, Veiga Beirão invocava (o que não deixa de ser irónico) o próprio Ferreira Borges, quando

este referia que punha o Direito Civil como regra. Mal justificado com as palavras de Ferreira

Borges, o certo é que o Código Comercial de 1888 segue outra via: a de instituir um livro de

disposições gerais para o comércio em geral, aplicável a toda a matéria comercial (Livro I – Do

comércio em geral), seguida de um Livro II relativo a «Dos contratos especiais de comércio», um

Livro III, relativo a «Do commercio Marítimo» e um Livro IV, relativo a «Das falências». Sob o

estrito ponto de vista formal e de sistematização e uma vez afastada a divisão bipolar de Ferreira

Borges, a opção de Veiga Beirão não terá sido a melhor, porquanto deixa de fora do Livro II os

contratos marítimos que são também especiais do comércio. O artigo 109.º acaba, no entanto,

por, de algum modo, salvar a situação, ao estabelecer que os contratos especiais de comércio

marítimo serão regulados nos termos prescritos no Livro III, justificando, dessa forma, a

incompletude do Livro II (tendo em conta a sua designação). Ou seja: embora a sistematização

adotada seja menos impressiva e reveladora da especialidade do Direito Comercial Marítimo

em relação ao Direito Comercial Geral, a matéria marítima é concentrada num único livro, tal

como o seria se tivesse sido adotado o modelo francês ou italiano de 1883. Como dissemos,

Veiga Beirão não explica o corte com a solução bipolar de 1833. E, mesmo nas referências que

faz à matéria marítima, ou seja, às soluções que adota no projeto, não revela as razões da opção,

partindo certamente do princípio de que o abandono da divisão bipolar não suscitaria dúvidas

ou críticas. Na justificação do projeto, Veiga Beirão alude à matéria comercial marítima em

quatro passagens. Na primeira, em jeito de apresentação geral da arquitetura do projeto, refere

que «o Livro III ocupa-se do commercio marítimo e, por isso, n’elle se trata do direito de

propriedade, não simplesmente mobiliaria, mais importante em commercio, dos navios (parte

III do codigo civil)». A segunda referência é ao facto de o projeto obedecer à «corrente

sympathica e generosa» dos trabalhos do congresso de 1885 sobre a uniformização da letra de

câmbio e do Direito marítimo. A terceira alusão tem um relativo desenvolvimento, atendendo

a que se trata de uma questão pontual específica: o regime da «hypotheca marítima»,

articulado com o contrato de risco marítimo. Face à disposição do artigo 889.º Código de Seabra,

de acordo com o qual a hipoteca só podia recair sobre bens imobiliários, Veiga Beirão entendeu

que seria preferível clarificar a matéria, não obstante o facto de, para alguns, continuar a ser

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possível a hipoteca marítima face ao Código Comercial então vigente: «No estado actual da

sciencia, e nas presentes circunstancias do nosso direito e do commercio nacional, pareceu de

toda a conveniência permitir, claramente, no novo código a hypotheca marítima, regular os

termos em que ella póde ser constituída e registada, e determinar-lhes os efeitos jurídicos». A

quarta alusão à matéria marítima constitui uma súmula enunciativa das soluções do projeto,

em função da diretriz de «tornar mais clara, methodica e adequada ao estado atual da

navegação, que já não é só de vela, mas também a vapor, a parte respeitante ao direito

marítimo». De acordo com Veiga Beirão, foram as seguintes as linhas mestras da clarificação do

Direito Marítimo:

Remissão para lei especial (ato de navegação) a fixação das condições em que o navio

se deve ter como nacional;

Aceitação, tanto quanto possível, da lei do pavilhão como reguladora dos direitos

adquiridos sobre o navio;

Definição dos direitos e obrigações de todos os que intervêm e concorrem para a

viagem do navio, «tratando-se mui cuidadosamente de assegurar e fazer valer os

direitos das tripulações, que, pelo serviços que prestam, pelos riscos a que se aventuram,

merecem especial proteção do Estado, de cuja marinhagem são aliás o viveiro»;

Preocupação em acautelar o estado de navegabilidade dos navios, a fim de evitar, tanto

quanto possível, os sinistros marítimos;

Fixação dos privilégios sobre o navio, carga e frete;

Formulação de regras especiais relativas ao seguro marítimo;

Simplificação da matéria de avarias, «dispensando-se a longa enumeração

exemplificativa dos casos de avaria grossa e dos de simples avaria»;

Adoção de regras precisas para a regulação da abalroação;

Regulação da assistência e salvação;

Prevenção dos termos em que o contrato a risco pode ser admitido e celebrado.

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Capítulo I – Acontecimentos e Relatório de Mar4

1. Introdução: acontecimento de mar será todo e qualquer evento que ocorra no mar e

que tenha reflexos na navegação marítima ou nas atividades que no mar se

desenvolvem. Contudo, a expressão é utilizada para designar eventos não ordinários ou

comuns, quando provocam ou são suscetíveis de provocar danos de qualquer natureza.

Encontramos uma noção no artigo 13.º, n.º1 do Decreto-Lei 384/99, 23 de setembro:

«Todo o facto extraordinário que ocorra no mar, ou em águas sob qualquer

jurisdição nacional, que tenha causado ou possa causar danos a navios,

engenhos flutuantes, pessoas ou coisas que neles se encontrem ou por eles

sejam transportadas.»

A noção do artigo 13.º, n.º1, do Decreto-Lei 384/99 coincide com aquela que tem sido

genericamente apresentada pela doutrina. Nem o Código Comercial de Ferreira Borges

nem o de Veiga Beirão definiam acontecimento de mar. Contudo, o mesmo era

pressuposto da elaboração e apresentação do relatório de mar. No domínio do Código

de Ferreira Borges impunha-se ao capitão o dever de, dentro de vinte e quatro horas

da sua chegada a um porto, apresentar o seu diário de navegação a exame e a fazer o

seu relatório ou testemunhável. O relatório deveria enunciar o lugar e o tempo da

partida, a derrota seguida, os acidentes que ocorreram, as desordens acontecidas e as

demais circunstâncias notáveis da viagem. Para as situações em que tivesse ocorrido

naufrágio, arribada forçada ou avarias, o capitão estava obrigado a formar a esse

respeito um relatório testemunhável conjuntamente com todos os oficiais e gentes da

equipagem que ficasse a bordo, relatório esse que deveria ser apresentado no primeiro

lugar a que aportasse. Todos os relatórios testemunháveis ou protestos, destinados a

comprovar perdas, desastres, avarias ou quaisquer reclamações, deveriam ser

rectificados com juramento, perante a autoridade competente, a qual poderia

interrogar sobre as circunstâncias dos factos expendidos, ficando reservada às partes

interessadas a prova em contrário. Dentre os livros de bordo que o Código Comercial

de 1888 considerava obrigatórios, contava-se o Diário de navegação, que, de acordo

com o então disposto deveria contar as seguintes menções:

A indicação do porto de saída;

As manobras feitas;

O caminho percorrido;

As observações geográficas, meteorológicas e astronómicas;

As ocorrências da viagem;

As avarias sofridas;

A designação dos objetos perdidos ou abandonados;

O assento dos nascimentos e óbitos a bordo;

As resoluções tomadas em conselho e quaisquer outros acontecimentos

ordinários e extraordinários da derrota e navegação;

Curava, depois, da apresentação do diário de navegação aquando da chegada ao porto

de destino, estabelecendo que, dentro de vinte e quatro horas da sua chegada, o

4 Direito Marítimo, IV, por M. Januário da Costa Gomes, Almedina, Coimbra, 2008

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capitão deveria apresentar o livro à autoridade encarregada de o legalizar, para ser

visado. Estabelecia 5 ainda que, no caso de arribada, naufrágio ou evento de que

proviesse demora da viagem ou avaria causada ao navio, carga ou passageiros, o capitão

deveria, em igual prazo, fazer o seu relatório de mar perante a dita autoridade, o qual

seria completado com a informação sumária, prestada pela tripulação e passageiros, se

houvesse ocasião de os interrogar. O relatório de mar surgia, assim, autonomizado do

diário de navegação e independentemente dele, devendo ser apresentado numa sessão

ou audiência, à qual poderiam assistir os interessados ou quem os representasse,

independentemente de procuração e como gestores de negócios. De qualquer modo,

o relatório de mar devia ser escrito pelo capitão ou então reduzido a escrito perante a

autoridade competente. O relatório de mar deveria declarar o porto e o dia de saída do

navio, a derrota percorrida, os perigos suportados, os danos acontecidos ao navio ou à

carga e, em geral, todas as circunstâncias importantes da viagem. A importância do

relatório de mar decorria, desde logo, do caráter anómalo ou extraordinário das

situações – dos acontecimentos – que justificavam a sua apresentação. O relatório de

mar, quando confirmado pela informação sumária, fazia fé em juízo, salvo prova em

contrário. Até que a confirmação tivesse lugar, o artigo procedente proibia o capitão,

salvo casos de urgência ou de força maior, de começar a descarga do navio; como

explicava Adriano Anthero,

«a razão deste artigo é para se poder conferir a tempo esse relatório com o

estado da carga e navio».

2. A caracterização de acontecimentos de mar pelo Decreto-Lei 384/99, 23 setembro:

tendo revogado os artigos correspondentes do Código Comercial, o Decreto-Lei 384/99,

23 setembro, veio enquadrar o relatório de mar no âmbito de um capítulo (o IV) relativo

aos Acontecimentos de mar, conceito que, como dissemos, define, no artigo 13.º, de

forma algo instrumental em relação ao regime dos artigos 14.º e 15.º, relativos ao

relatório de mar. Apesar dessa instrumentalidade, é importante atentarmos na noção

de acontecimentos de mar, tanto mais que estamos perante um conceito radicado na

legislação e na doutrina maritimista, como se constata, verbi gratia no Decreto-Lei

64/2005, 15 março, cujo artigo 1.º contém, em epígrafe, a frase «Acontecimento de mar

de que resulte afundamento ou encalhe». A título claramente exemplificativo, o artigo

13.º, n.º2 do Decreto-Lei 384/99 enuncia um extenso rol de acontecimentos de mar

específicos, terminando com a referência genérica a todos os acidentes ocorridos no

mar que tenham por objeto o navio, engenhos flutuantes, pessoas, cargas ou outras

coisas transportadas a bordo. A preocupação em elencar o maior número de

acontecimentos de mar possível levou o legislador a não ser muito criterioso na

enunciação, já que mistura acontecimentos em sentido próprio com caracterizações

jurídicas ou conceitos de direito. Na verdade, as avarias grosas não serão, em rigor, um

acontecimento mas, antes, a caracterização jurídica, para efeitos de regime (artigo

634.º e seguintes do Código Comercial), de um determinado acontecimento, como seja,

verbi gratia, o alijamento. A mesma observação poderá ser feita, verbi gratia, em

relação à barataria (§1.º artigo 604.º do Código Comercial) – que constitui um conceito

de Direito. Os acontecimentos de mar especificamente enunciados são os seguintes: a

tempestade, o naufrágio (artigo 604.º do Código Comercial), o encalhe, a varação, a

5 No seu artigo 506.º

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arribada, voluntária ou forçada, a abalroação, a simples colisão ou toque, o incêndio, a

explosão, o alijamento ou o simples aligeiramento, a pilhagem, a captura, o arresto, a

detenção, a angária, a pirataria, o roubo, o furto, a barataria, a rebelião, a queda de

carga, as avarias particulares do navio ou da carga, bem como as avarias grossas, a

salvação, a presa, o acto de guerra, a violência de toda a espécie, a mudança de rota,

de viagem ou de navio, e a quarentena. Uma expressão por vezes usada como sinónima

de acontecimentos de mar é fortunas de mar, expressão esta que encontramos, v.g.,

no artigo 604.º do Código Comercial, precisamente para caracterizar genericamente

alguns dos acontecimentos de mar elencados no artigo 13.º, n.º2 do Decreto-Lei

384/99, 23 setembro. Contudo, a fortuna de mar (no singular) tem, tipicamente, um

significado bem diferente, sendo utilizada, genericamente, em sede de limitação da

responsabilidade do proprietário ou armador do navio, traduzida, nos sistemas de

inspiração francesa, no abandono do navio. Mas mesmo no singular, a expressão

fortuna de mar é utilizada para designar um acidente marítimo. Ilustrativa da flutuação

da expressão é uma das caracterizações de que dá nota Ferreira Borges:

«Fortuna de mar é propriamente aquele acidente que acontece a um navio

nas suas viagens por um escolho ou borrasca; porém, em matéria de seguros,

entende-se por fortuna de mar todas as perdas e danos que acontecem no

mar por caso fortuito: da mesma sorte neste denominação se compreendem

os acidentes que ocorrem no curso da viagem pelo mau comportamento do

capitão ou marinheiros. Donde fortuna de mar compreende tudo aquilo por

que os seguradores respondem, salvo convenção em contrário».

Mais preciso é Victor Nunes:

«Portanto, aqui interessa a fora fortuna tuna de mar, quer dizer todo o

evento sucedido no mar e que resultou, apenas, do acaso, da sorte, de causa

estranha ao navio e sua tripulação. Em Direito Marítimo a expressão que

estamos analisando, possui, também, outro significado, que é o de abarcar

o conjunto dos bens do armador ou proprietário de navios, que forma a parte

do seu património ou soma dos capitais aplicados em coisas do mar, por

oposição ao que emprega em bens sitos em terra».

Para Cunha Gonçalves, a expressão fortuna do mar engloba

«qualquer sinistro ocorrido no mar ou por causa do mar, previsto ou

imprevisto, sólito ou insólito, vulgar ou extraordinário, devido a uma força

maior ou a um caso fortuito».

Já de afastar como sinónima de acontecimentos de mar é a expressão sinistros de mar,

expressão esta que está associada a desastres, tendo, de resto, um lugar de relevo no

campo dos seguros. Ainda a título exemplificativo, o artigo 2.º da Convenção

Internacional sobre a Prevenção, Actuação e Cooperação no combate à poluição por

hidrocarbonetos de 1990 (OPRC 90) estabelece uma relação entre acontecimento de

mar e incidente (que pode não ser ainda um sinistro), ao definir incidente de poluição

por hidrocarbonetos como

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«um acontecimento ou uma série de acontecimentos com a mesma origem

tendo como consequência uma descarga real ou presumível de

hidrocarbonetos e constituindo ou sendo suscetível de constituir uma

ameaça para o meio marinho, para o litoral ou para os interesses conexos de

um ou mais Estados, impondo-se uma ação urgente ou uma actuação

imediata».

3. Acontecimento de mar de que resulte afundamento ou encalhe de navio: o Decreto-Lei

63/2005, 15 março, veio estabelecer uma disciplina específica para situações em que,

na sequência de um acontecimento de mar, tenha ocorrido o afundamento ou encalhe

de um navio. Importa apenas dar nota do facto de o artigo 1.º do referido Decreto-Lei

prever que quando, na sequência de sinistro marítimo ou outro acontecimento de mar,

ocorra o afundamento ou encalhe de um navio, o respetivo proprietário, armador ou

representante legal deve, nas situações aí genericamente enunciadas, efetuar a

respetiva remoção, ainda que só existam destroços e assumir a totalidade das

respetivas despesas da operação. As situações em que esse dever de remoção e de

assunção é estabelecido são as seguintes:

a) O navio afundado ou encalhado cause prejuízo à navegação;

b) O navio afundado ou encalhado perturbe o regime ou a exploração de

porto;

c) O navio afundado ou encalhado cause danos ao ambiente, designadamente

para os recursos aquícolas ou piscícolas.

Conforme resulta do descrito, são de duas ordens as preocupações do legislador:

segurança da navegação e proteção do ambiente.

4. Elaboração e apresentação do relatório de mar: o artigo 14.º do Decreto-Lei 384/99, 23

setembro, refere-se à elaboração e apresentação do relatório de mar, em termos que

não coincidem com o s antes consagrados no Código Comercial já que o relatório é

necessário qualquer que tenha sido o acontecimento de mar ocorrido. Refira-se que se

mantém em vigor o artigo 151.º, n.º2 do Regulamento Geral das Capitanias, que impõe

ao capitão (ou quem desempenhe funções de comando) que entre em porto nacional

o dever de apresentar na repartição marítima, dentro do prazo de vinte e quatro horas,

entre outros, o diário da navegação, esclarecendo o artigo que tal apresentação é feita

«a fim de a autoridade marítima proceder nos termos do C. C.». Suscita-se a questão de

saber se se mantém a necessidade de visar o Diário de navegação conforme impunha

o revogado artigo 506.º do Código Comercial. A dúvida pode suscitar-se em virtude da

remissão feita pelo artigo 151.º, n.º2 do Regulamento Geral das Capitanias, remissão

essa que deveria ser lida como reportada, desde logo, ao disposto no artigo 506.º do

Código Comercial. Constituindo o artigo 151.º, n.º2 RGC uma norma remissiva, a dúvida

está em saber se a remissão é estática ou dinâmica6. Sempre sem prejuízo de estarmos,

em rigor, perante um problema de interpretação da norma remissiva, se seguirmos a

diretriz traçada pelo mesmo autor, de acordo com a qual a remissão genérica para um

6 Seguindo Dias Marques, a remissão é estática quando «envolve a aplicação da lei para que se remete nos precisos termos em que o seu conteúdo se encontrava concebido no momento da entrada em vigor da norma de remissão». Ao invés, a remissão é dinâmica quando «não visa incorporar rigidamente um certo conteúdo da norma para que se remete mas tanto o conteúdo da norma atual como o conteúdo de qualquer outra que a venha a substituir no futuro».

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diploma será quase sempre dinâmica, poderemos então apontar no sentido de o visto

do diário ter deixado de constituir uma imposição legal. Não prejudicado está, porém,

o dever que impende sobre o capitão (alínea l) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, 23

setembro), de

«exibir às autoridades competentes ou aos interessados na expedição os

documentos e registos do navio, emitindo as competentes certidões ou

cópias, quando requeridas».

De acordo com o disposto no artigo 14.º, n.º1 do Decreto-Lei 384/99, a elaboração do

relatório de mar pertence ao capitão ou a quem exerça as funções de comando,

devendo ser efetuado «após a ocorrência de acontecimento de mar». Quanto às

menções que devem constar do relatório de mar, as mesmas estão descritas e

enunciadas no artigo 14.º, n.º2: o relatório deve conter a descrição de todos os

elementos úteis que caracterizam o acontecimento de mar a que respeitam, sendo

enunciados, claramente de forma não exaustiva, os seguintes:

a) Identificação e qualidade do subscritor (será o capitão ou quem

desempenhe funções de comando);

b) Elementos indentificadores e características técnicas dos navios e outras

coisas relacionadas;

c) Identificação dos proprietários, armadores, afretadores, seguradores,

carregadores, lesados, credores e demais interessados conhecidos (trata-

se de identificar os sujeitos interessados, hoc sensu, em função do

acontecimento de mar específico);

d) Indicação do local ou área geográfica onde se verificou o acontecimento (a

importância dessa identificação é óbvia, podendo ser também decisiva, ou

pelo menos relevante, para a determinação, desde logo, da lei aplicável);

e) Descrição pormenorizada dos antecedentes, da sequência dos factos, das

consequências e das eventuais causas do acontecimento (trata-se de

elementos que podem ser decisivos para a posterior confirmação);

f) Identificação das testemunhas e indicação de outros meios de prova (a

importância destas menções torna-se evidente, se tivermos presente o

processo tendente à confirmação - artigo 15.º);

De acordo com o artigo 14.º, n.º3, o relatório de mar deverá, depois, ser apresentado

à autoridade marítima ou consular, com jurisdição no primeiro porto de escala onde

essa autoridade exista7, no prazo de quarenta e oito horas contado a partir do momento

em que o navio atracar ou fundear no mencionado porto. Prevenindo a hipótese de

perda total do navio, o artigo 14.º, n.º3 determina que, nesse caso, o prazo conta-se

desde a data da chegada do capitão ou de quem o substitua. Após o decurso do prazo

de quarenta e oito horas sem que o relatório de mar tenha sido apresentado, não fica

precludida a possibilidade de apresentação, mas deixa de ser possível a respetiva

confirmação, conforme decorre do disposto no artigo 14.º, n.º4. Mais concretamente,

a autoridade continua adstrita às investigações a que esteja obrigada mas está impedida

de confirmar o relatório, devendo referir expressamente essa impossibilidade nas

conclusões que lavre, a final. Compreendem-se as razões que estão na base de

7 De acordo com o disposto na alínea f) do artigo 13.º, n.º2 do Decreto-Lei 44/2002, 2 março – diploma que criou o sistema da autoridade marítima – compete ao capitão do porto, no exercício de funções de autoridade marítima, «receber os relatórios e protestos de mar apresentados pelos comandantes das embarcações nacionais, comunitárias e de países terceiros e proceder à respetiva instrução processual, de acordo com o estabelecido em legislação própria».

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indicação de um prazo peremptório: é importante, até para salvaguardar a genuinidade

dos dizeres, dos testemunhos e das provas, que a apresentação seja feita dentro de um

prazo curto e firme. Resulta deste regime que se a autoridade marítima ou consular

confirmar o relatório, apesar de o mesmo ter sido apresentado fora de prazo, tal

confirmação é nula enquanto tal, com as consequências que daí advêm. Admite-se,

porém, que, nesse caso, as conclusões possam valer como elemento a considerar, a par

de outros, em termos de prova. Tal como no regime anterior, o artigo 14.º, n.º5

estabelece que enquanto o procedimento de confirmação do relatório não estiver

concluído, não pode iniciar-se a descarga do navio, salvo havendo, cumulativamente,

urgência nessa mesma descarga e autorização concedida por escrito pela autoridade

competente para a confirmação. Importa ter presente que, para além do relatório de

mar previsto no Decreto-Lei 384/99, a lei pode prever a necessidade de feitura de

relatórios específicos que obedecem a regimes não coincidentes.

5. A confirmação do relatório de mar: o artigo 15.º do Decreto Lei 384/99 disciplina o

processo tendente à confirmação do relatório de mar e os efeitos da confirmação. O

artigo 15.º, n.º1 impõe à autoridade marítima ou consular que receba o relatório de

mar o dever de, com caráter de urgência, investigar a veracidade dos factos relatados,

inquirindo em separado as testemunhas arroladas e os tripulantes, passageiros ou

outras pessoas que considere necessário ouvir para esclarecimento da verdade. Impõe,

por sua vez, o artigo 15.º, n.º2 à autoridade competente para a confirmação do

relatório de mar o dever de recolher as informações e os demais meios de prova

relacionados com os factos relatados. Nesse âmbito, ninguém (ainda que não seja

tripulante ou passageiro) poderá recusar-se a prestar depoimento feito sob a forma de

auto de declarações, salvo impedimento legal, devendo a recusa de colaboração

constar das conclusões do procedimento (artigo 15.º, n.º3)8. Tal como no regime do

Código Comercial, os interessados na expedição marítima, ou os seus representantes

ou gestores de negócios podem assistir ao depoimento das testemunhas e demais

produção de prova (Artigo 15.º, n.º4), podendo também solicitar a quem os detenha os

elementos a que se refere a alínea l) do artigo 6.º. O processo terminará com a

confirmação ou com a não confirmação do relatório, conforme decorre do artigo 15.º,

n.º5: no final da investigação, a autoridade marítima ou consular encerra o

procedimento, lavrando conclusões, nas quais confirma ou não, fundamentadamente,

os factos constantes do relatório de mar. Essa mesma autoridade deverá, depois, logo

que possível, enviar à autoridade marítima do porto de registo do navio em causa cópia

autenticada do procedimento e suas conclusões respeitantes ao relatório de mar

(artigo 15.º, n.º6). Vimos acima que o §2.º do artigo 506.º do Código Comercial

estabelecia que os relatório confirmados «fazem fé em juízo, salvo prova em contrário».

Face ao disposto no artigo 15.º, n.º7, o regime é substancialmente o mesmo, embora

seja adotada uma redação mais rigorosa e também mais abrangente, já que não é

específica do campo jurisdicional: resulta, agora, da lei que os factos constantes de

relatório de mar confirmado pela autoridade marítima ou consular competente, no

pressuposto de que a confirmação foi regular, «presumem-se verdadeiros, salvo prova

em contrário». O pressuposto da regularidade da confirmação e do processo à mesma

8 De acordo com a alínea d) do artigo 4.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 45/2002, 2 de março, constitui uma contra ordenação punível com coima «não colaborar com o capitão do porto em processo de averiguação ao relatório de mar apresentado não permitindo, designadamente, a deslocação ou presença de tripulantes para recolha de declarações».

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conducente resulta da exigência, constante do artigo 15.º, n.º7, de que a confirmação

deverá ser feita «com observância do disposto nos números anteriores?. Parece-nos,

porém, claro que não basta a regularidade do disposto do artigo 15.º: é necessário,

como vimos, o cumprimento do disposto no artigo 14.º. Assim, não há regularidade da

confirmação – que não é, então, assistida da força presuntiva estabelecida no artigo

15.º, n.º7 – quando não tenha sido respeitado o prazo de apresentação estabelecido

no artigo 14.º, nº.3 (conforme artigo 14.º, n.º4). Estamos claramente perante uma

presunção relativa, iuris tantum, admitindo-se que aquele a quem não interessar o teor

do relatório confirmado, possa fazer prova do contrário, nos termos gerais de direito

(Artigo 350.º, n.º2 CC). A importância da presunção é manifesta: suponhamos que

consta do relatório de mar, entretanto regularmente confirmado, que um determinado

contentor carregado de mercadorias foi projetado bora fora, em consequência de uma

grande tempestade com ondas alterosas que deslocaram o contentor, apesar de o

mesmo estar devidamente arrumado no convés. A presunção resultante do artigo 15.º,

n.º7 será, no que à eventual questão de responsabilidade respeita, favorável ao

armador e ao capitão mas já será adversa aos interesses do segurador da mercadoria

que, tendo de satisfazer a indemnização, não logrará, em sub-rogação, recuperar aquilo

que pagou ao carregador ou ao destinatário da mercadoria. Pode, assim, o segurador

propor-se demonstrar em juízo – ilidindo a presunção do artigo 15.º, n.º7 – que não

houve tempestade, ou que a tempestade não foi tão forte quanto o descrito e que a

projeção do contentor resultou ao invés, de má estiva, exigindo, assim, como sub-

rogado (artigo 441.º do Código Comercial), indemnização correspondente ao valor d

indemnização que teve de pagar.

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Capítulo II – Avarias

1. Introdução; noção de avarias; avarias danos e avarias despesas: o Título V do Livro

Terceiro (Do Comércio Marítimo) do Código Comercial é dedicado às Avarias. Estamos

perante um termo que, independentemente da sua nebulosa origem e do seu

significado na linguagem comum, tem um relevo especial. É importante salientar que,

na língua Inglesa – língua que, no domínio do shipping e dos transportes internacionais,

tem o maior relevo – o termo corresponde a avaria (average) é praticamente reservado

ao conceito de avaria grossa, quando associado ao qualificativo “geral” – general

average – não sendo sinónimo de dano: para este, o termo utilizado é damage. O

conceito de avarias que se encontra plasmado no artigo 634.º do Código Comercial é

um conceito amplo, que abarca as chamadas avarias grossas ou comuns e as avarias

particulares ou simples. Do artigo 634.º do Código Comercial resultam serem reputadas

avarias, para efeitos do regime deste código, dois tipos de situações:

a. Todas as despesas extraordinárias feitas com o navio ou com a sua carga,

conjunta ou separadamente;

b. Todos os danos que acontecem ao navio, desde que começam os riscos de mar

até que acabam.

A noção de avarias que encontramos no artigo 634.º do Código Comercial é a natural

continuação da noção que constava do artigo 1 do Titulo VII do Livro III das Ordenanças

da Marinha de Luiz XIV, de 1681, que vigorou no Direito Português por força da Lei da

Boa Razão:

«Toda a despeza extraordinária, que se fizer com os Navios ou mercadorias,

conjuncta, ou separadamente, e de todo o damno, que lhes acontecer desde

a sua carga e partida, até o seu retorno e decarga, serão reputadas Avarias».

Essa definição influenciaria a noção de code de commerce e, a nível interno português

no artigo 1813 do Código de Ferreira Borges. Era a seguinte a redação deste úlitmo:

«Todas as despesas extraordinárias, feitas para com o navio ou mercadorias

conjuncta ou separadamente: todos os damnos, que acontecem aos navios

e fazendas desde o momento, em que os riscos de mar começam e acabam

segundo as disposições d’este código, são reputadas avarias».

A noção do artigo 634.º do Código Comercial deixa, assim, evidenciada a primeira grande

classificação, neste domínio, entre:

a. Avarias despesas; e

b. Avarias danos.

Quanto às avarias despesas, o §1.º do artigo 634.º estabelece um recorte negativo: não

são reputadas avarias mas simples despesas a cargo do navio as que ordinariamente se

fazem com a sua saída e entrada, assim como o pagamento de direitos e outras taxas de

navegação, e ainda com as despesas tendentes a aligeirá-lo para passar os baixos ou

bancos de areia conhecidos à saída do lugar da partida. Já no que respeita às avarias

danos, não surge qualquer delimitação complementar no artigo 634.º: a maior dúvida

suscitável estará em saber se os danos ocorreram efetivamente no arco temporal – que

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nem sempre será de fácil determinação – que vai do começo dos riscos de mar até ao fim

dos mesmos ou se ocorreram a montante ou a jusante desse arco. Voltando ao conceito

de avarias despesas, só relevam, de acordo com a lei, as extraordinárias: não cabem aí,

portanto, as despesas usuais ou ordinárias, algumas das quais se encontram, de resto, no

recorte negativo do §1.º do mesmo artigo 634.º; quanto a estas, a respetivas inserção no

dito recorte apresenta-se repetida, uma vez que já estariam, à cabeça, excluídas – a

contratio – da própria noção de avarias.

2. Natureza supletiva do regime das avarias; as Regras Iorque-Antuérpia: decorre do §2.º

do artigo 634.º do Código Comercial que o regime constante dos artigos 634.º e 653.º

é supletivo: as avarias regulam-se por convenção das partes, valendo, na sua falta ou

insuficiência, as disposições do Código. O caráter supletivo do regime do Código

Comercial é independente do tipo de avarias. Contudo, tal previsão tem sobretudo

interesse para as avarias danos ou avarias despesas que constituam avaria grossa ou

comum, sendo conhecida a cláusula “franco de avaria” ou “franco de avaria recíproca”,

através da qual os carregadores e armadores renunciam a fazer valer as pretensões que

resultariam da aplicação do regime de tais avarias. O maior destaque, neste domínio,

vai, porém, para as Regras de Iorque-Antuérpia. Importa, no entanto, deixar aqui

expressa uma precisão a supletividade aberta pelo §2.º do artigo 634.º circunscreve-se

às matérias diretamente tratadas no citados artigos 634.º a 653.º, não podendo os

interessados na expedição conformar a atuação do capitão na «boa condução da

expedição marítima» (artigo 5.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro). As

Regras de Iorque-Antuérpia (Regras I-A) nasceram da necessidade de uniformização do

regime das avaria grossa ou comum. O impulso para tais Regras nasce de um Congresso

realizado em Glasgow, em 1860, seguindo-se um outro realizado em Iorque, em 1864,

no qual foram aprovadas as Regras de Iorque (11 regras). Mais tarde, em 1877, realiza-

se uma nova conferência em Antuérpia, na qual, para além de algumas modificações

das Regras de Iorque, foi acrescentada uma nova: a XII. Nascem, assim, as Regras de

Iorque-Antuérpia. A aplicação destas está dependente de convenção, só sendo

aplicáveis se forem incorporadas, v.g., no conhecimentos de carga, nas cartas-partidas

ou nas apólices de seguro. Não obstante sua não obrigatoriedade, diversamente do

que aconteceria, quanto aos países ratificantes, se tivessem sido objeto de aprovação

por uma Convenção Internacional, a verdade é que as Regras I-A têm uma enorme

importância e aplicação, não sendo alheio a esse sucesso o facto, já assinalado, de

terem sido objeto de sucessivas atualizações, feitas por especialistas, o que assegura o

seu caráter up-dated relativamente às realidades do shipping. A circunstância de a

aplicação das Regras I-A depender de uma incorporação convencional não exclui que

as mesmas possam ser tidas como usos do comércio internacional, com as

consequências que daí derivam. No que concerne à respetiva estrutura e organização,

as Regras I-A estão, tal como acontece com as Regras de Lisboa 1987, organizadas em

função duma divisão entre Regras Alfabetadas (Regras A a G) e Regras Numeradas

(Regras I A XXIII). Fora dessa classificação e colocadas à cabeça das Regras I-A, está uma

Regra de Interpretação (Rule of Interpretation) e uma Regra Principal ou Predominante

(Rule Paramount). O primeiro parágrafo da Regra de Interpretação, para além de

estabelecer como objeto das Regras a regulação das avarias grossas, afirma a respetiva

procedência relativamente a qualquer lei ou prática contrária. O segundo parágrafo da

mesma Regra atribui prevalência à Regra Paramount e Às Regras Numeradas sobre as

Alfabetadas: não sendo uma situação qualificada como avaria grossa pelas Regras

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Numeradas, pode-o ser pelas alfabetadas. A Regra Paramount é uma regra de

razoabilidade, a qual de compreende facilmente, tendo, no entanto, a desvantagem de

introduzir uma maior discricionariedade na qualificação de uma avaria como grossa ou

comum. De acordo com essa regra,

«in no caso shall there be any allowance for sacrífice or expenditure unless reasonably

made or incurred».

3. Avarias grossas e avarias particulares:

a. Introdução: o nosso Código Comercial começa por dar, no artigo 634.º, uma

noção de avarias, a partir da qual se desdobram as avarias despesas e as avarias

danos. O Código introduz, depois, no artigo 635.º, uma outra classificação,

dispondo que as avarias são de duas espécies: avarias grossas ou comuns e

avarias simples ou particulares. Esta summa divisio foi consagrada pela primeira

vez no nosso Direito Interno no Regulamento das Avarias de 1829, pondo-se,

assim, alguma ordem nas diversas classificações até então existentes. O Código

de 1833 continuou essa classificação, no seu artigo 1815. Torna-se claro que

esta nova classificação não se coloca ao mesmo nível da anterior, já que quer

as avarias despesas quer as avarias danos tanto podem ser grossas como

simples. Estamos perante classificações ou modalidades que tomam como

ponto de partida critérios diferentes: ao distinguirmos avarias despesas de

avarias danos, estamos a classificar as avarias em função do tipo de

desvantagem económica acontecida; ao distinguirmos avarias comuns ou

grossas de avarias particulares ou simples, estamos já a fazer uma distinção

estrutural ou intrínseca com relevantíssimas repercussões em matéria de

regime. E a verdade é que os artigos 636.º e 637.º do Código Comercial deixam

bem evidenciada a diferença de regimes entre as avarias grossas e as avarias

simples. Não obstante é de questionarmos se o próprio regime do artigo 637.º

não estará mais gizado em função de preocupações de delimitação da avaria

grossa e respetivo regime do que em função duma genuína preocupação com

o regime das avarias particulares, já que, em rigor, estas avarias estão sujeitas,

como acima se disse, ao regime comum dos danos, que não ao regime especial

– marítimo – das avarias grossas ou comuns. A especialidade está, portanto,

nas avarias grossas que, conforme decorre de um simples e primeiro confronto

entre as redações dos artigos 636.º e 637.º, não estão sujeitas ao regime

(comum) da suportação ou da responsabilidade mas, antes, a um regime de

repartição e contribuição, que tem como pressuposto uma comunidade de

interesses numa aventura marítima comum. Pode também haver repartição

em situações de avaria particular, mas em termos claramente diferentes, tendo

por pressuposto uma situação jurídica comum de propriedade ou de outra

forma de comunhão. Umas são suportadas por alguém: em princípio por quem

as sofre; outras são repartidas. Ora, nesta diferença entre suportação e

repartição está a explicação para o facto de a qualificação das avarias ser, com

frequência, um campo de batalha judicial, já que, em princípio, aquele que está,

à partida, indicado para suportar ou responder, quererá repartir e aquele que

está indicado para repartir pretenderá que seja outrem a suportar. Resulta,

assim, desde já, evidenciando que o importante, neste sede, é delimitar a avaria

grossa: identificadas as situações de avaria grossa, dentro do universo das

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avarias, determinadas, por exclusão, ficarão as avarias particulares ou simples.

A priori, a identificação das avarias grossas pode ser feita por uma de três vias:

pela enunciação de um critério geral, pela enumeração das situações de avaria

grossa e, finalmente, por uma via mista de enumeração exemplificativa,

seguida ou precedida da enunciação de um critério. Se atentarmos nos nossos

códigos comerciais, constatamos que o código vigente segue a primeira via

identificada. Na verdade, de acordo com o §1.º do artigo 635.º atual, são

avarias grossas ou comuns:

«Todas as despesas extraordinárias e os sacrifícios feitos

voluntariamente com o fim de evitar um perigo pelo capitão ou por

sua ordem, para a segurança comum do navio e da carga, desde o

seu carregamento e partida até ao seu retorno e descarga».

As mesmas vias são grosso modo seguidas quanto à caracterização da avaria

particular ou simples: enquanto que o §2.º do artigo 635 do atual Código

considera que as mesmas são

«despesas causadas e o dano sofrido só pelo navio ou só pelas

fazendas».

b. O pressuposto e os requisitos da avaria grossa ou comum:

i. Introdução: vejamos, então, os requisitos ou os ingredientes da avaria

grossa ou comum. Só estes nos interessam efetivamente, já que a

caracterização das avarias como particulares ou simples surge por

exclusão, dentro do universo das avarias. O que aqui está em causa é,

assim, determinar quais são os requisitos de cuja reunião depende a

conclusão de que uma determinada despesa extraordinária ou um

determinado sacrifício ou dano deve ser qualificado como avaria grossa.

Há um ponto que é pacífico: a diferenciação entre a avaria grossa ou

simples não está associada à dimensão dos danos: numa determinada

expedição, as avarias simples podem assumir um valor

extraordinariamente elevado quando confrontado com o das comuns,

havendo-as. É importante frisar que a conclusão de que um

determinado acontecimento é avaria grossa ou comum é uma

conclusão de direito, não podendo, em rigor, dizer-se – pese embora a

redação do artigo 13.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro,

que inclui as avarias grossas e as avarias particulares no seu elenco

exemplificativo – que as avarias grossas (ou as particulares) são, elas

próprias e qua tale, acontecimentos de mar. Acontecimento de mar é

o evento ou o facto que, depois, pode ser qualificado como avaria

grossa (ou particular). O §1.º do artigo 635.º do Código Comercial

enuncia, literalmente, três requisitos:

1. Caráter voluntário: a despesa ou o sacrifício deverão ter sido

feitos voluntariamente pelo capitão ou por sua ordem;

2. As despesas ou os sacrifícios deverão ter por fim evitar um

perigo;

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3. O objetivo último deverá ser a segurança comum do navio e da

carga.

A enunciação destes requisitos é feita apresentando-se, assim, como

uma primeira enunciação. Tal enunciação não se afasta, de modo

relevante, de enunciações feitas por alguns autores, sendo que, na

prática, o principal ponto de discordância ou de polémica consiste em

saber se, para além dos requisitos grosso modo relevante, de

enunciações feitas por alguns autores, sendo que, na prática, o

principal ponto de discordância ou de polémica consiste em saber se,

para além dos requisitos grosso modo enunciados, será ainda de

acrescentar o resultado útil, conforme tem sido sustentado entre nós.

Considerando outras classificações, designadamente à luz das Regras I-

A, é também de questionar se não deverá ser acrescentado ainda um

outro requisito: o de que a despesa ou o sacrifício relevantes sejam

razoavelmente feitos – reasonable made or incurred, como se lê na

Regra Paramount das Regras I-A. Importa, porém, preliminarmente,

salientar que, no nosso entender, os três requisitos atrás anunciados

têm natureza diversa, já que um deles assume um relevo especial,

sendo, digamos, o ponto de partida – o pressuposto – para os demais.

Distinguimos, assim, entre um pressuposto e dois requisitos. O

pressuposto é a existência de um perigo comum para o navio e para a

carga: se este pressuposto não estiver verificado, a equacionação da

avaria grossa não faz sentido, devendo, então, a atuação do capitão,

que se traduza na prática de atos de sacrifício, merecer outro

enquadramento jurídico. Seguem-se dois requisitos:

1. Uma despesa ou um sacrifício intencional;

2. A despesa ou o sacrifício deverão ter por objetivo a salvação

comum do navio e da carga.

Importa, ainda, clarificar um ponto: o da parametrização temporal das

avarias grossas: no dizer do §1.º do artigo 635.º do Código Comercial,

elas deverão acontecer, para serem qua tale relevantes, «desde o seu

[do navio] carregamento e partida até ao seu retorno e descarga».

Podemos questionar se esse arco temporal coincide ou não com o arco,

também temporal, estabelecido no artigo 634.º: «desde que começam

os riscos de mar até que acabam». A priori, não há razão para introduzir,

em sede de avarias grossas, uma parametrização temporal das avarias

diferente daquela que é feita, em geral, no artigo 634.º. Contudo, mais

do que discutir se os arcos temporais do artigo 634.º e do §1.º do artigo

635.º coincidem rigorosamente, o que importa é saber se os riscos de

mar formulados no artigo 634.º entram na composição do arco

temporal do §1.º do artigo 635.º. A prova dos nove estará nas situações

em que os danos têm lugar quando o navio já está carregado mas ainda

está atracado no cais; se deflagra um incêndio num armazém do porto,

que se comunica, por virtude do vento ao navio, ameaçando a sua

segurança e a da carga, os danos provocados pelo combate ao incêndio

decidido pelo capitão entrarão em avaria grossa ou devemos

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considerar que falta o pressuposto da exposição do navio e carga aos

riscos de mar? Neste sentido, podemos dizer que militaria a letra do

próprio §1.º do artigo 635.º, que não se refere apenas ao carregamento

mas ao carregamento e partida. A questão suscita-nos algumas dúvidas;

contudo, autores como Cunha Gonçalves ou Azevedo Matos parecem

torna a interpretação que flui da letra do §1.º do artigo 635.º como

pacífica, bastando o carregamento, qua tale e tout court, para que as

situações de avaria grossa possam ter lugar. Temos, no entanto,

dúvidas relativamente a esse entendimento, uma vez que nos parece

questionável que o mesmo considere devidamente a necessidade, que

faz parte o coração do instituto, de haver riscos de mar, o que apontaria

para a circunscrição da aplicação da avaria grossa à fase de navegação.

Outro exemplo, agora na oposta fase em que o navio aportou e atracou,

não tendo a mercadoria sido ainda descarregada quando deflagra o

incêndio no armazém do porto, o qual se comunica ao navio, fazendo

perigar a sua segurança e a da sua carga; os danos provocados pelo

combate ao incêndio, ordenado pelo capitão, constituem (ainda) avaria

grossa? Ou dependerá essa qualificação de a origem do incêndio ser

interna ao navio? Não convencidos, embora, admitimos que o

legislador, neste âmbito, por direta influência do artigo 400.º do code

du commerce, possa ter querido evitar as polémicas que seriam,

necessariamente, provocadas por uma ausência de definição clara,

tendo optado por um critério pragmático, bem visível na seguinte

passagem de Ripert:

«A partir do momento em que estão a bordo, as

mercadorias estão unidas ao navio, mesmo antes da

partida, sendo que a estadia no porto comporta certos

riscos».

ii. A existência de um perigo comum para o navio e carga como

pressuposto da avaria grossa: o pressuposto atrás enunciado é,

conforme dissemos, a existência de um perigo para a aventura

marítima comum. É discutida a natureza do perigo, designadamente se

tem de ser atual ou se pode ser futuro, sendo também objeto de

polémica a questão de saber se tem de ser iminente ou real. A doutrina

dá, em geral, nota da caracterização do perigo relevante, mas é

também evidente a dificuldade em definir critérios firmes. Lê-se, assim,

em Rodiére, que

«Não basta que o acidente seja imaginário, é necessário que surja, se

não como provável, ao menos como ceto a curto prazo, em termos de

a ausência de toda e qualquer intervenção correr o risco de agravar as

perdas ou mesmo de não as lograr evitar, mas também na condição de

que a medida tomada apresente o caráter extraordinário exigido pelos

textos e não seja apenas a medida de prudência exigida a todo o

marítimo cioso das suas responsabilidades».

Neste particular, relevará, em especial o juízo do capitão, como

marítimo especialmente qualificado, de quem é exigível uma avaliação

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ciente e prudente da situação identificada como potencialmente

perigosa e da sua evolução previsível, à luz da experiência do mar,

podendo também dizer-se, designadamente à luz das Regras I-A (Regra

A), que a avaliação da existência do perigo e respetiva dimensão devem

ser feitas com razoabilidade. Podemos falar, aqui, com Torrente, num

juízo de probabilidade feito razoavelmente pelo capitão. Neste quadro,

mantêm-se atuais as letras de Cunha Gonçalves:

«A realidade do perigo não pode ser estabelecida por

carateres objetivos; é uma apreciação subjetiva reservada

ao capitão, atendendo todas as circunstâncias do

momento: estado moral e físico da tripulação, resistência

do navio, natureza da carga, etc. E, como essa apreciação

pessoal tem de ser fiscalizada pelos tribunais, se estes

decidirem que o capitão podia razoavelmente supor a

existência dum perigo real, deverão os danos entrar em

avaria comum. Pelo contrário, se o perigo foi fantasiado ou

exagerado pelo espírito excessivamente timorato do

capitão, que se apavorou e fez uma despesa ou causou um

dano, que um capitão prudente, corajoso e sereno evitaria,

falta ao perigo a realidade ou probabilidade».

O exposto evidencia a importância do juízo experiente de prognose do

capitão relativamente a uma situação de perigo potencial para a

expedição. Essa tónica não nos permite, porém, prescindir da

enunciação do perigo real, como pressuposto da avaria grossa, sendo,

assim, possível sindicar a decisão do capitão, mas agora em prognose

póstuma, devendo ser tidas em conta todas as circunstâncias

presentes aquando da mesma decisão: o capitão podia estar

convencidíssimo d bondade da sua decisão, mas esta pode, numa

apreciação objetiva, feita ex post, ser tida como precipitada ou

temerosa, em virtude duma errada identificação de um perigo. É certo

que a sindicante apreciação objetiva do perigo real é feita, digamos, a

frio, após os acontecimentos; contudo, o julgador deve, nesse juízo de

prognose póstuma, considerar qual é que seria a correta decisão de um

bom capitão, colocado exatamente naquele navio, em idênticas

circunstâncias. O perigo só é relevante para efeito de avaria grossa se

for comum ao navio e à carga. Naturalmente que a avaliação do caráter

comum do perigo repousa, também ela, no juízo razoável do capitão,

nos termos atrás referidos. A avaliação feita pelo capitão pode, em

concreto, conduzir a que um perigo que, diretamente e no imediato,

apenas incide sobre o navio, deva ser avaliado como perigo comum par

o navio e carga, considerando a previsível evolução dos

acontecimentos, à luz das circunstâncias e da experiência do mar. Para

o efeito da caracterização do perigo relevante será indiferente que o

mesmo decorra de caso fortuito ou de força maior, de facto de terceiro

ou mesmo de culpa do proprietário do navio ou do capitão. Esta

conclusão pode parecer estranha no caso de na origem do perigo estar

a inavegabilidade do navio ou uma falha de um membro da tripulação.

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Na doutrina portuguesa, encontramos manifestações de dificuldade

deste tema, destacando-se as diferenças entre as posições de Silva

Lisboa e de Cunha Gonçalves. Para o primeiro, norteado pelo regime

da Ordenança de Colbert, as situações de inavegabilidade do navio

deviam determinar a aplicação do regime da avaria particular; esta

solução seria expressamente consagrada no Código Ferreira Borges.

Para Cunha Gonçalves contudo, para a caracterização de uma avaria

comum é indiferente a respetiva causa: causa proxima, non remota,

spectatur; segundo o autor, a caracterização das situações em apreço

como avaria particular era inaceitável, já que

«porque aos lesados é indiferente que o perigo haja resultado de culpa

doutrem ou de caso fortuito ou de força maior; e, desde que há

interessados que aproveitaram com o sacrifício feito, forçoso será que

contribuam à indemnização do lesado, ficando-lhe apenas salvo o

direito de exigirem ao culpado a contribuição que pagaram».

A solução do Direito Marítimo é de total pragmatismo: funciona a

avaria grossa e, depois, são, eventualmente, refeitas as contas. É a

solução mais solidarista, que tem a vantagem de dividir entre todos a

eventual insolvência do responsável remoto pela situação, tendo a seu

favor a Regra D de I-A:

«Right to contribution in general average shall not be

affected, though the event which gave rise to the sacrifice

or expenditure may have been due to the fault of one of

the parties of the adventure; but this shall not prejudice

any remedies or defences which may be open against or to

that party in respect of such fault».

Como diz Baughen

«The loss does not lose its general average character and

the other interest retain their rights of contribution against

each other».

Assim, numa situação em que a decisão de sacrifício de parte da carga,

para salvação comum do navio e da carga, tenha na sua base, como

causa remota, a inavegabilidade do navio, o proprietário do navio não

poderá exigir contribuição mas nem por isso deixam os proprietários

dos bens sacrificados de poder exigir, em avaria grosa, contribuição do

demais carregadores – e do proprietário do navio, naturalmente – os

quais poderão, então, exigir do proprietário do navio o reembolso do

valores pagos e indemnização pelos prejuízos sofridos. Digamos que é

uma espécie de solve et repete, em que o devedor da repetição é… um

terceiro. A questão que se pode colocar é se esta solução pragmática,

incluída, como vimos, nas Regras I-A, é compatível com o regime das

avarias do Código Comercial, quando o mesmo não tenha sido afastado

a favor daquelas Regras ou de outro regime: a priori, parece que a

lógica da avaria grossa, com o seu regime de repartição e contribuição,

deveria ceder perante a identificação de uma imputação e de uma

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consequente verificação dos requisitos da responsabilidade civil, como

no caso em que fique provado que a causa próxima consubstanciada

na decisão voluntária do capitão teve como causa remota o estado de

inavegabilidade do navio ou no caso em que seja provado que a decisão

voluntária do capitão no sentido de combater um incêndio teve na sua

origem um comportamento negligente de um tripulante ou de um

carregador. Parece-nos, porém, que a solução de Direito interno não

pode deixar de acompanhar aquela que se identifica com a lógica da

avaria grossa e com a sua natureza, tal qual reconhecida

internacionalmente: a internacionalidade do Direito Marítimo, por um

lado, e a especificidade do instituto da avaria grossa, por outro,

impedem aqui a aplicação de uma lógica estritamente civilista com

base nas regras da responsabilidade civil. De resto, esta solução

apresenta-se também como a solução mais lógica, já que as relações

inerentes à contribuição desenrolam-se num plano diferente daquele

que respeita às relações derivadas das situações de responsabilidade

civil. Acresce, ainda, que o Código Comercial de 1888 alijou, neste

particular, os artigos do Código Ferreira Borges que excluíam da avaria

grossa as situações em que a causa remota do ato fosse a

inavegabilidade do navio ou um ato do capitão ou de algum membro

da tripulação. Sendo, embora, indiferente a causa remota do ato de

avaria grossa, já não faria sentido que o causador pretenda beneficiar

do regime desta. Podemos também chegar a estas conclusões fazendo

intervir os princípios gerais, de modo a paralisar pretensões que se

mostrem, em concreto, contrárias ao princípio da boa fé. Assim, deve

ser paralisada a pretensão de repartição com base no regime da avaria

grossa feita pelo proprietário do navio na situação acima exemplificada,

em que a causa remota da decisão de despesas extraordinárias ou do

sacrifício feita pelo capitão tenha sido o estado de inavegabilidade do

navio; o mesmo relativamente a similar iniciativa promovida pelo

carregador cujo comportamento negligente tenha estado na causa do

incêndio: tais paralisações são explicadas à luz da proibição de venire

contra factum proprium.

iii. Os requisitos da avaria grossa:

1. O caráter voluntário e intencional do sacrifício: vejamos o

primeiro requisito: o do caráter voluntário do sacrifício ou da

despesa: o sacrifício ou a despesa extraordinária deverão ser

objeto de uma decisão do capitão ou de alguém que exerça as

correspondentes funções (artigo 4.º DL 384/99, 23 setembro).

Conforme resulta, depois, da comum consideração dos demais

requisitos, essa decisão voluntária terá de ser intencional.

Diversamente da tradição do Consulat del Mar, em sede de

avarias, o artigo 635.º do Código vigente não exige que haja

uma “deliberação motivada”. Não obstante, de acordo com o

disposto na alínea h) do artigo 6.º do DL 384/99, 23 setembro,

o capitão é obrigado

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«a convocar a conselho oficiais, armadores,

carregadores e sobrecargas, sempre que for

previsível a ocorrência de perigo para a

expedição suscetível de causar danos ao navio,

tripulantes, passageiros ou mercadorias».

Evidentemente que convocar tal conselho estará, à partida,

prejudicado nas situações em que a urgência não se

compadeça com a delonga que o mesmo implica. Por não

verificação deste requisito, não constituirá uma situação de

avaria grossa aquela em que determinada carga no convés é

arrastada para o mar pela força das ondas. Estamos aqui

perante uma situação de avaria particular, com as

correspondentes consequências a nível de responsabilização

ou de suportação de danos: nesta situação ou haverá

fundamento para responsabilizar o transportador por má

colocação ou arrumação da mercadoria ou haverá dano por

caso de força maior. Refira-se, porém, que, atualmente,

designadamente ao abrigo das Regras I-A, o caráter voluntário

do ato como requisito da avaria grossa não pode ser

absolutizado, conhecendo exceções que, no entanto, não

põem em causa a exigência do caráter voluntário ou

intencional, enquanto regra, mas cuja existência já não nos

permite dizer, como dizia Cunha Gonçalves, que a

voluntariedade era um requisito essencialíssimo da avaria

grossa. A situação que corporiza estas exceções é a das

despesas com a salvação do próprio navio (e carga). Ora,

conforme é sabido, uma vez que a salvação tanto pode ser

espontânea como contratada, não haverá dúvidas de que o

salário de salvação contratada (artigo 6.º DL 203/98 e artigo

8.º da Convenção de Bruxelas de 1910) resulta de um ato

voluntário: da própria celebração do contrato de salvação. As

dúvidas acontecem se a salvação for espontânea. Suponhamos

que o navio está à deriva e o capitão e restante tripulação

tiveram que o abandonar ou não estão em condições de tomar

decisões; poderá, ainda assim, a salvação ser tida como um ato

voluntário? Tal conclusão não parece ictu oculi possível mas

não fará, por no salário de salvação não entrem em regra de

avaria grossa. É assim que se explica que a Regra VI das Regras

I-A estabeleça que a «salvage remuneration» é considerada

ainda que não tenha havido contrato («wether under contract

or otherwise»). É assim também que se explica o facto de, a

nível do nosso Direito interno, o artigo 7.º do DL 203/98

estabelecer que o pagamento do salário de salvação marítima

é feito pelos salvados de harmonia com as regras aplicáveis À

regulação da avaria grossa ou comum. Outra importante

questão que neste domínio se suscita é a de saber se, tendo as

despesas ou sacrifícios sido voluntariamente feitas ou sofridos,

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deverão continuar a ser tidos como de avaria grossa se se

concluir, com segurança, que o mesmo efeito ocorreria ainda

que a tal decisão não tivesse sido tomada. Se tomarmos em

linha de conta o momento em que mercadoria á alijada, haverá

avaria grossa, mas se considerarmos o arco temporal da

aventura marítima, poderíamos equacionar uma avaria

particular, atribuindo relevo a uma causa virtual para excluir a

avaria grossa. Parece-nos que a solução correta está em

atribuir à causa virtual um relevo negativo para exclusão da

avaria grossa, adotando-se, em função da razão de ser do

instituto, um regime correspondente ao da ressalva constante

da parte final do artigo 469 do codice della navigazione: ainda

que estejam verificados os requisitos da avaria grossa no

momento do ato de avaria, não se aplica o regime da avaria

grossa quando o dano voluntariamente produzido seja aquele

que se verificaria necessariamente, de acordo com o curso

normal os eventos. Nas Regras I-A encontramos, em sede de

encalhe voluntário (Regra V) uma solução que se afasta,

quanto a este acontecimento de mar, da posição que

acabamos de expor: o encalhe é admitido como avaria grossa

ainda que o navio pudesse ter encalhado posteriormente;

contudo, na redação de 1950 da mesma Regra, a solução era

inversa, conquanto já fossem admitidas como avaria grossa

(atualmente Regra VII) as perdas e danos sofridos para pôr o

navio a flutuar de novo.

2. O sacrifício deve ser feito para segurança comum do navio e da

carga: o segundo requisito cuja verificação é necessária para

que a avaria seja tida como grossa ou comum traduz-se na

necessidade de a despesa ou o sacrifício serem feitos para a

segurança comum do navio e da carga. Na base deste requisito

está a consideração da comunidade de interesses entre o

navio e carga, a aventura marítima comum, para usarmos uma

expressão clássica, que consta também da Regra A das Regras

I-A. Assim, se deflagra um incêndio em certa mercadoria que,

pela sua natureza e colocação na área do navio, não põe em

causa a segurança das demais mercadorias e do próprio navio,

os danos provocados no combate ao incêndio não entram em

avaria grossa, não havendo, consequentemente, lugar a

repartição com base nesse regime. Atento este requisito,

também não contribuirão as mercadorias que já tenham sido

desembarcadas quando deflagra um incêndio a bordo que

ponha em causa a segurança do navio e da carga ainda

carregada: os danos provocados pela decisão de combater o

incêndio e respetiva execução não serão repartidos pela carga

que já está fora da comunhão de interesses. Pela mesma razão,

por faltar a união material, estabelece o artigo 644.º do Código

Comercial que não contribuem nas perdas acontecidas a bordo,

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para cuja carga eram destinadas, as fazendas que estiverem

em terra: podemos dizer, relativamente às mesmas, que ainda

não começou a aventura marítima comum, não havendo ainda

comunhão de interesses. A despesa ou o sacrifício devem ser

feitos com razoabilidade, como se lê na Regra Paramount de I-

A. Não corresponde a esta exigência a atitude do capitão que

sacrifica mercadoria em quantidade excedente à medida que

seria razoavelmente necessária para o efeito pretendido. A

consequência que daqui decorre é não serem considerados

como avaria grossa os sacrifícios que excedam aquela medida.

Pese embora a importância de acentuação da necessidade de

uma atuação razoável do capitão na medida e dimensão das

despesas ou dos danos, não partilhamos da ideia, sustentada

por vários autores, de que a razoabilidade deva ser erigida em

requisito autónomo da avaria grossa ou comum. No nosso

entender, a exigência de razoabilidade é inerente ao dever de

um capitão diligente (artigo 5.º, n.º3 DL 384/99). Uma questão

controversa é a de saber se o que releva, no âmbito deste

requisito, é a segurança comum (Common safety) ou o

proveito comum (Common benefit). Esta questão, que tem

estado bem presente nas revisões das Regras I-A, tem

sobretudo interesse quanto às despesas: podem entrar como

avaria grossa as despesas feitas em proveito comum do navio

e da carga, conquanto o não sejam, summo rigore, para

segurança comum? Estamos perante conceções diferentes da

avaria grossa e do respetivo âmbito de aplicação. Cunha

Gonçalves, considerando, embora, defensável, em teoria, essa

possibilidade, entendia que a mesma esbarra na letra do §1.º

do artigo 635.º do Código Comercial, que se refere à

«segurança comum» do navio e da carga. Segundo Rose, esta

dicotomia entre Common safety e Common benefit espelha

uma diferença entre o Direito Inglês, procupado com a

primeira – ou seja com a preservation of the property – e os

Direitos europeus continentais, orientados em função da self

prosecution of the adventure, ou seja, em função do Common

benefit. A verdade é que, face ao regime do Código Comercial,

é dificilmente sustentável a filosofia do beneficio comum,

enquanto contraposto à segurança comum. Porém, sendo

aplicáveis as Regras I-A, encontramos nas mesmas aspetos de

regime que demonstram uma clara influência da filosofia do

common bennefit, como decorre nas Regras X e XI de I-A.

Estamos, agora, em posição de voltar um pouco atrás, ao

ponto em que dissemos que as avarias particulares são

determinadas por exclusão das partes, sendo particulares as

avarias que não são grossas. Importa, no entanto deixar

vincado que a caracterização feita no §2.º do artigo 635.º do

Código Comercial é enganadora, já que sugere, erradamente,

que a avaria particular só pode incidir, alternadamente, sobre

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o navio ou sobre a carga. Não é, porém, assim, já que o dano

provocado por caso fortuito ou de força maior, ou mesmo por

decisão voluntária que não corporize uma avaria grossa, pode

atingir, a um tempo, o navio e a carga: se a tempestade

provoca danos no navio e nas mercadorias carregadas a bordo,

estamos seguramente perante uma situação de avarias

particulares ou simples.

iv. Outros requisitos da avaria grossa? É discutido se, para além dos

requisitos atrás mencionados é ainda necessário um outro: um

resultado útil. Esta exigência – a da utilidade – era feita por Silva Lisboa:

«porque o damno, ou despeza feita para o bem, e salvação

comum do Navio, e carga não aproveitou effectivamente,

como casos ditos de alijação, e arribada, antes ao

contrário sem embargo desse expediente, o Navio se

perdeo, salvando-se porém parte da carga, o prejuízo he

avaria simples, e recebe unicamente sobre a propriedade

perdida, sem que o dono tenha direito de exigir

indemnidade por contribuição dos que tiveram as suas

mercadorias salvas».

Já face ao atual Código Comercia, exigem o resultado útil como

requisito da avaria grossa autores como Cunha Gonçalves e Sant’Ana

Silva. A necessidade de um resultado útil parece ter apoio literal no

artigo 639.º do Código Comercial – que estabelece haver repartição de

avaria grossa por contribuição «sempre que o navio e a carga forem

salvos no todo ou em parte» - e ainda no controverso artigo 642.º - de

acordo com o qual

«se, não obstante o alijamento ou o corte de aparelhos, o navio se não

salva, não há lugar a contribuição alguma e os objetos salvos não

respondem por pagamento algum em contribuição de avaria dos

objetos alijados ou cortados».

Apesar destes apoios literais, não parece que o resultado útil seja um

requisito ou um elemento constitutivo da avaria grossa. Certo é, como

diz Rodière, que é necessário chegar a um resultado útil; contudo, tal

resultado será um requisito para a liquidação e para a liquidação e para

a contribuição da avaria grossa, que não para a própria identificação da

avaria grossa. Se, não obstante o sacrifício voluntário de bens perante

um perigo para a salvação comum do navio e da carga, os bens em

causa não se salvarem, nada haverá a repartir. Contudo, se a salvação

de bens ocorrer subsequentemente, apesar do malogro do próprio ato

que constitui avaria grossa, haverá contribuição e repartição, isto

apesar de a decisão do capitão não ter tido, ela própria, um resultado

útil. Deve haver uma específica relação – um nexo de causalidade –

entre o ato do capitão e as despesas ou os danos. O critério consagrado

na Regra C de I-A é o de que os danos e despesas devem ser

consequência direta do ato para que possam ser considerados no

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regime da avaria grossa. Contudo, no 2.º parágrafo da mesma Regra

são excluídos da avaria grossa as perdas, danos ou despesas incorridos

em consequência da libertação de substâncias poluentes da

propriedade envolvida na expedição marítima comum. Excluídos estão

igualmente, segundo a mesma Regra (3.º parágrafo), os danos

decorrentes de atraso ou de qualquer perda indireta de qualquer

natureza. A necessidade de, face à citada Regra C, os danos ou

despesas serem consequência direta do ato, conduz a que, na situação

em que o capitão tenha de vender bens que se encontrem a bordo,

para acudir a uma despesa extraordinária feita para salvação comum

do navio e da carga, apenas esta despesa é considerada em avaria

grossa, sendo as consequências da venda, máxime no que respeita à

tutela da posição do proprietário dos bens alienados, tratada em

conformidade com o regime dos artigos 10.º 3 11.º do DL 384/99.

4. Consequências da caracterização jurídica da avaria como grossa ou como particular:

a. Repartição e contribuição versus princípio casum sensit dominus ou imputação:

concluindo-se que a avaria é grossa ou comum, tem, então, aplicação um

regime de repartição e contribuição. O artigo 636.º do Código Comercial – que

tem natureza supletiva, por força do §2.º do artigo 634.º - aponta para uma

repartição proporcional entre a carga e a metade do valor do navio e do frete.

Trata-se de um critério que tem profundas raízes no tempo, tendo sido

consagrado na Ordenança de Colbert e, depois, no code du commerce. Não é

esse, porém, o critério das Regras I-A, que apontam (Regras G e XVII) para os

valores (integrais) dos bens contribuintes. A repartição das avarias grossas ou

comuns pressupõe, na sua construção e desenvolvimento, a criação de uma

massa credora e de uma massa devedora. A massa devedora é composta pelos

bens e valores que contribuem, sendo a massa credora constituída pelas

despesas extraordinárias ou danos ocorridos durante a aventura marítima.

Pode acontecer que determinados valores devam entrar tanto na massa

credora como na devedora; assim, se o alijamento da mercadoria for

qualificado como avaria grossa, o respetivo valor entrará, naturalmente, na

massa credora. Contudo, ele deve fazer parte também da massa devedora, de

forma que o proprietário da mercadoria sacrificada não fique, a final,

beneficiando relativamente aos demais interessados na aventura marítima e

contribuintes. De outro modo, o proprietário dessas mercadorias receberia o

valor da mercadoria por inteiro, à custa dos demais. Uma vez apuradas a massa

credora e a massa devedora, é calculado o coeficiente de avaria, que se obtém

dividindo a primeira pela segunda; se, ao invés, dividimos a massa devedora

pela massa credora obtemos a percentagem ou taxa, sendo que, em termos

finais (de contas), os resultados idênticos. Pode acontecer que, depois de feita

a repartição, tenha de ser devolvida a contribuição recebida, em virtude de

uma circunstância superveniente. O artigo 646 do Código Comercial impõe o

dever de reposição da contribuição recebida, que impende sobre os donos de

objetos que tenham sido alijados e que, entretanto, tenham sido recuperados:

a contribuição recebida deverá ser restituída aos interessados contribuidores,

em termos proporcionais, podendo, porém, ser deduzido o dano causado pelo

alijamento e as despesas de recuperação. No caso, porém, de o dono dos bens

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alijados os recuperar sem ter reclamado qualquer quantia, esses objetos não

contribuirão nas avarias sobrevindas ao restante da carga depois do alijamento

(§único do artigo 646.º). Sendo a avaria particular, não há, como se disse,

repartição. Estabelece o artigo 637.º do Código Comercial que

«As avarias simples são suportadas e pagas ou só pelo navio ou só

pela coisa que sofreu o dano ou ocasionou a despesa».

O regime a aplicar será, então… aquele que for. O ponto de partida é a aplicação

do princípio casum sensit dominus; o dano será suportado por aquele que o

sofre, que será, em princípio o proprietário (res suo perit dominus); pode,

porém, haver imputação em termos de responsabilidade civil, tudo isto

independentemente de poder ter havido transferência dos riscos através de

um seguro. Assim, se a mercadoria foi danificada por um raio ou pela água do

mar sem que houvesse culpa do transportador marítimo na estiva da

mercadoria, não há imputação a terceiro: o dano é sofrido pelo carregador ou

pelo destinatário, tudo dependendo do contrato subjacente à operação de

transporte. Mas se a mercadoria é contratada para ser transportada no porão

mas é-o no convés, sujeita às ondas do mar e às chuvas, haverá, então, base

para se passar de uma situação de suportação dos danos para uma outra de

imputação e responsabilidade.

b. Avaria comum ou particular versus avaria grossa ou simples: a ilustração

sumárias destas consequências permite destacar o porquê de designação das

avarias como comuns ou grossas, por um lado ou como particulares ou simples,

por outro. Na verdade, sendo, embora, indiferente, para efeitos de regime,

falarmos em avaria grossa ou em avaria comum, a verdade é que, ao referirmos

a avaria grossa, estamos a colocar a tónica no facto de a avaria ser paga ou

suportada por grosso, ou seja, pelo navio e pela carga: socorremo-nos, neste

caso, de um critério que coloca a tónica no objeto. Mas se, ao invés, falamos

em avaria comum, estamos, embora, a aludir à mesma realidade jurídica,

estamos a acentuar os sujeitos: não é apenas o sacrificado que suporta o dano

mas todos os interessados na expedição marítima. Ao usarmos esta designação,

estamos, assim, a utilizar um critério subjetivo. Também nas designações avaria

simples ou particular há, respetivamente, um critério objetivo e subjetivo: na

primeira expressão, acentuamos o facto de a avaria recair apenas sobre o bem

que a sofreu: o navio ou a mercadoria. Na segunda (avaria particular),

acentuamos o prisma do sujeito: a avaria não é suportada por todos, pela

comunidade de interesses, mas só por aquele que a sofreu ou que lhe deu

causa. Podemos, assim, dizer que, se utilizarmos o critério do objeto, as avarias

ou serão grossas ou serão simples; se, ao invés, utilizarmos um critério

subjetivo, as mesas ou serão comuns ou serão particulares.

5. A origem da avaria grossa e a questão da sua atualidade: falar em avaria grossa oou

comum é falar de um instituto que se perde na noite dos tempos. É frequente a

indicação da Lex Rhodia de jactu como estando no dealbar do instituto, dela dizendo

Luzzatti que constitui a sua primeira fonte segura. Contudo, tem sido apontado o facto

de a contribuição em avaria grossa ser um uso marítimo anterior àquela lei. O Digesto

(D. XIV) dedica um capítulo à Lex Rhodia, sendo destacada uma definição de PAULUS.

Com o tempo, estendeu-se o âmbito de aplicação do instituto, inicialmente

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praticamente centrado no alijamento. Por outro lado, durante a Idade Média, o seu

fundamento ético e equitativo evolui, mas sem perder completamente essa matriz,

para explicações e enquadramentos de cariz associativo ou para-societário, sendo

identificadas diversas formas de comunhão e divisão de risco, com destaque para a

comenda e para o germinamentum, figura típica do Consulado do Mar. Seria, de resto,

essa lógica associativa que, segundo alguma doutrina, explicaria o relevo do “conselho

de bordo” ou a necessidade de o sacrifício ser deliberado. A avaria grossa surge, assim,

em vários tetos medievais, para além do citado Consulado do Mar; assim, v.g., nas Leis

de Wisby, nos Rolos de Oléron, no Guidon de la Mer ou no Ius Hanseaticum Maritimus.

A Ordenança da Marinha de 1681 marca uma nova época, estabelecendo claramente a

diferença entre avaria grossa e avaria particular, em termos que seriam continuados no

code de commere e, por influência deste, em múltiplos códigos europeus. É discutida

atualmente a necessidade do instituto da avaria grossa, cujo papel já estaria esgotado,

sendo o seu declínio, se não mesmo inutilidade, consequência da enorme importância

e divulgação do seguro marítimo. É conhecida a tirada de que avaria grossa deve a sua

sobrevivência ao faco de constituir a vaca sagrada dos maritimistas ou estoutra de que

a avaria grossa seria uma velha dama com uma má saúde de ferro. Na nossa opinião, a

avaria grossa está longe do estertor que alguns lhe prognosticam: estamos perante um

instituto que, seguindo as palavras de Yves Tassel, continua a estar no coração do

Direito Marítimo, sendo uma manifestação, por excelência, de um princípio solidarista,

sendo que continua a garantir uma equilibrada e justa repartição dos riscos. Ora, sendo

embora certo que o seguro marítimo ganhou uma enorme pujança, o mesmo não

remove nem substitui a lógica da avaria grossa, convivendo com a mesma naturalmente

em moldes diferentes relativamente àqueles que aconteciam quando o seguro tinha

uma divulgação incipiente. Não se vê, de resto, como é que o seguro substituiria a avaria

grossa, v.g., na situação em que o capitão provoca deliberadamente o encalhe do navio,

para salvação comum do mesmo e da respetiva carga, sofrendo com isso danos

vultuosíssimos. Pois bem, a aplicação da lógica do seguro i30mplicaria, no fundo, que

esse prejuízo seria transferido para a seguradora e em exclusivo suportado por esta,

sem nada poder recuperar, por estar, ab ovo, impedida de repercutir nos demais

interessados na expedição um tal dano. Ora, como é evidente, uma solução deste tipo

poderá ter importantes consequências a nível do quantum dos prémios de seguros, que,

assim, podem atingir valores vultuosos. De resto, a persistência do instituto é também

justificada por razões programáticas, senão mesmo estratégicas, chamando Lima

Pinheiro a atenção para o facto de, na sua falta, o capitão, confrontado com um perigo

para a segurança comum do navio e da carga, ser tentado a escolher a solução menos

onerosa para o armador, ainda que essa solução represente um maior sacrifício para o

conjunto dos interesses em jogo. Em suma, sem prejuízo da necessidade de adaptação

do instituto às novas realidades; longa vida à avaria grossa.

6. Sobre a tormentosa questão da natureza jurídica da avaria grossa: a questão da natureza

jurídica da avaria grossa ou comum tem constituído um interessante mas algo

desconhecido campo de debate entre teorias que a procuram explicar à luz de figuras

ou institutos clássicos de Direito Civil, desde a locatio operis ao enriquecimento sem

causa, passando pela equidade, pela comunhão, pela associação, pela sociedade, pelo

seguro-mútuo, sem esquecer o estado de necessidade e a gestão de negócios. É

frequente a vaga e, por vezes, simultânea invocação da equidade, da justiça e da

solidariedade, sendo ilustrativa a seguinte passagem de Silva Lisboa:

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«Este princípio consiste, em que de deve indemnizar, por contribuição geral

dos beneficiados, o damno que foi utilmente feito para o bem, e salvação

de todos: pois não se póde considerar causa mais conforme a equidade,

que sentirem comum detrimento os que, interessando na perda acontecida,

conseguirão pelo sacríficio dos outros o salvarem as pessoas, conseguirão

pelo sacrifício dos outros o salvarem as pessoas, e propriedades; he de

razão, que as pessoas que receberão beneficio pelo damno do outro,

contribuirão proporcionalmente ao seu interesse, a fim de indemnizarem o

prejuízo sofrido para a ventagem geral».

Lê-se, por sua vez, em Cunha Gonçalves:

«O conceito de avaria comum baseia-se num altíssimo princípio de

equidade, conhecido como não locupletamento à custa alheia; pois sendo

sacrificados os bens de um interessado para a salvação dos bens dos outros,

é justíssimo que todos estes suportem, proporcionalmente, essa perde e

contribuam para a indemnização do lesado».

Ora, estas justificações parecem-nos demasiado vagos para constituírem explicações

plenas do instituto. Dentre as teorias enunciadas, destacam-se as que pretendem

reconduzir a avaria grossa à gestão de negócios e ao enriquecimento sem causa. A

recondução da figura à gestão de negócios falha, desde logo, pelo facto de o gestor agir

não apenas no interesse dos carregadores mas também no do navio, ou seja, no

interesse dos carregadores mas também no do navio, ou seja, no interesse do seu

comitente, o armador do navio. Ora, como é sabido, o gestor de negócios age no

interesse e por conta de terceiro, com quem não tem, à partida, qualquer relação,

diversamente do que acontece na avaria grossa, atenta a relação de comissão entre o

capitão e o armador ou o proprietário do navio (artigo 4.º do DL 202/98, 10 de junho).

Acresce que o capitão tem, por força da lei (artigo 5.º, n.º2 do DL 384/99, 23 de

setembro), o dever de atuar profissionalmente com vista a uma boa condução da

expedição marítima, o que envolve com vista a uma boa condução da expedição

marítima, o que envolve, naturalmente, não apenas o navio mas também os demais

interesses envolvidos, máxime a carga. Resulta ainda da lei (artigo 5.º, n.º3 do DL

384/99) que o capitão deve atuar com o cuidado de um capitão diligente. Ora, nada

disto é compatível com a gestão de negócios, própria ou imprópria, já que o presumido

ato gestório não o é, summo rigore, à luz da figura em causa, uma vez que o capitão

está, à partida, obrigado a agir no sentido de uma boa decisão que seja favorável aos

interessados da expedição. Afastamos, assim, a hipótese de explicação da avaria grossa

através do instituto da gestão de negócios. Outra tese que temos igualmente por

insatisfatória é aquela que pretende explicar o instituto da avaria grossa através do

enriquecimento sem causa: para além de a natureza subsidiária do enriquecimento sem

causa (artigo 474.º do Código Civil) impedir que lhe seja reconduzida a avaria grossa,

atento o regime legal plasmado no Código Comercial, parece claro que a explicação

com base em tal instituto nunca poderia constituir uma explicação global, já que,

quando muito, teria uma vocação apriorística para explicar o dever de contribuição dos

diversos interessados, não logrando explicar o próprio ato do capitão, que está a

montante desse dever de contribuição. Acresce que é dificilmente sustentável a ideia

de que os proprietários da carga não sacrificada enriquecem com a manutenção de algo

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que já é seu. Tem sido também invocado o estado de necessidade, lendo-se em Cunha

Gonçalves que

«a avaria comum é determinada por um estado de necessidade é um mal

menor, voluntariamente causado a uns, para evitar um mal maior – o de

todos».

A plena explicação da avaria grossa com base no estado de necessidade esbarra, porém,

com grandes dificuldades, quando confrontamos o âmbito e o regime das figuras, a

começar pelo facto de o ato do capitão suscetível de consubstanciar avaria grossa não

se esgotar na destruição ou danificação de coisa alheia (artigo 339.º, n.º1 Código Civil).

Não obstante, a similitude com o estado de necessidade tem algo de fortemente

sugestivo e de pedagógico, tendo a vantagem de salientar o facto de, tal como no

estado de necessidade, haver, na avaria grossa, uma situação de ofensa lícita a direitos

de outrem. Contudo, essa similitude – efetiva – não chega para explicar plenamente a

avaria grossa. Na nossa opinião, as tentativas de explicação plena da avaria grossa com

recurso às figuras do Direito Civil falham rotundamente, na medida em que

desconsideram a especificidade ou, se quisermos usar uma expressão consagrada, o

particularismo, da avaria grossa, como instituto de Direito Marítimo: a avaria grossa é

um instituto a se, que não se deixa captar pelos institutos comuns. Isso não significa

que não encontremos similitudes com este ou aquele instituto e não significa também

que não procuremos saber o fundamento – a ratio. Na nossa opinião, esta encontra-se

na comunhão de riscos no perigo ou seja na aventura marítima comum, com o que tal

expressão em si carrega. Ao acentuarmos essa comunhão, poderíamos colocar em

destaque, igualmente, a solidariedade, mas esta não constitui, ela própria, uma

explicação completa, para além de não ser também muito definida: solidariedade

daqueles cujas mercadorias são sacrificadas para com os demais interessados ou

solidariedade daqueles cujos interesses são salvos para com os primeiros? Ora, a

acentuação da solidariedade só poderia ser colocada na fase da contribuição, após,

portanto, o próprio ato do capitão, mostrando-se, assim, incapaz de explicar esse

próprio ato. Importa, naturalmente, reconhecer que a lógica da comunhão de riscos só

é válida dentro do universo da avaria grossa, de que estamos a tratar: ela não funciona

nos casos em que os danos de avaria particular, sendo, assim, inoperante nas situações,

que constituem o ponto de partida quando há danos, em que vigora o princípio casum

sensit dominus. Alguma doutrina aponta como fundamento da avaria grossa a lei ou o

contrato, consoante seja aplicado o regime supletivo legal ou um regime convencional.

Contudo, este entendimento assenta num equívoco, já que, quando muito, tal

fundamento em alternativa formulado, só poderia valer para as obrigações de

contribuição, que não para o próprio instituto: mesmo quando é afastado o regime

supletivo legal e é aplicado, por exemplo, o regime das Regras I-A, não se pode radicar

o instituto exclusivamente na autonomia privada; ainda que os interessados acordem

na inserção da cláusula “franco de avaria”, continua por explicar o ato do capitão. Na

verdade, a renúncia negocial à contribuição não bule com o dever legal imperativo que

tem o capitão de zelar pelo bom sucesso da expedição marítima: no âmbito dos

poderes-deveres que lhe cabem, está incluído o de sacrificar os bens necessários para

que o objetivo seja conseguido, sendo para o efeito indiferente que, na previsão de tal

situação, as partes tenham acordado não haver contribuições. Aqui chegados, cremos

ter-se tornado evidente que aplicada à avaria grossa no seu todo, não podemos deixar

de diferenciar o ato do capitão – o ato de avaria grossa – da contribuição de avaria

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grossa. O ato de avaria grossa é juridicamente explicado à luz do estatuto do capitão,

como sujeito que tem o dever de zelar pelo bom sucesso da expedição marítima,

conduzindo-a nesse sentido (artigo 5.º, n.º2 do Decreto-Lei 384/99, 23 setembro). O

capitão diligente (artigo 5.º, n.º3 do Decreto Lei 384/99, 23 setembro), é aquele que,

perante a situação de perigo comum para o navio e para a carga, atua em conformidade

com o objetivo do bom sucesso da expedição marítima, sacrificando bens, se necessário,

para que a expedição seja bem sucedida. O sacrifício de bens (do terceiro) que, noutro

quadro, constituiria um ato ilícito, é, no contexto da verificação dos cima apontados

pressuposto e requisitos de avaria grossa, um ato ilícito, fazendo aqui pleno sentido o

paralelismo com o estado de necessidade, como causa de exclusão da ilicitude. Já

quanto à repartição e contribuição, a sua natureza legal supletiva, prevista no Código

Comercial, é a de um mecanismo de indemnidade, em benefício daquele cujos bens

foram sacrificados – tornar indemne , sem dano – à margem da lógica da imputação

delitual da responsabilidade civil e consequente ressarcimento, porque moldada na

lógica de comunhão de riscos no perigo acima apontada. Claro que essa indemnidade

não é total, mas é a máxima possível no quadro da comunhão e dentro da possibilidade

da massa devedora. Uma questão que neste âmbito se suscita – fruto do facto de os

interessados na expedição marítima poderem, à partida, modelar os termos da

contribuição, é a de saber o que é que acontece em sede de composição das massas,

quando o s regimes de contribuição dos diversos interessados sejam diferentes. A

questão é delicada, havendo quem, como Brunetti, considere que cada regime em

relação a cada carregador deve ser adotado no pressuposto da sua adoção cumulativa

relativamente a outros carregadores, de modo a que todos os interessados na

expedição estejam sujeitos uniformemente ao mesmo regime, numa lógica de

comunhão nos riscos; não sendo esse o caso, seria, então, aplicável o regime supletivo

legal. O problema é que esta solução parece brigar com o caráter supletivo do regime

da avaria grossa e com a licitude da cláusula franco de avaria. Uma solução possível,

seria aplicar, em relação a cada interessado, o regime clausulado no respetivo

conhecimento de carga (se for este o caso), deixado, porém, ao carregador prejudicado

pelo facto de os demais não estarem vinculados nos mesmos termos, o direito de agir

contra o transportador, por culpa in contrahendo, por não ter acordado em relação a

todos o mesmo regime de avaria grossa. Não é este, porém, no nosso entender, o

caminho certo. No nosso entender, se no contrato entre o transportador e o carregador

X fica acordada a aplicação das Regras I-A, isso tem um significado que vai claramente

para além das estritas relações entre as partes, já que essas Regras pressupõem que,

numa situação de avaria grossa, todos contribuem, não havendo privilégios traduzidos

no facto de alguém, cujos bens foram salvos à custa do sacrifício de outros, poder

paralisar uma pretensão de contribuição, quando, na situação oposta, beneficiaria da

contribuição dos demais interessados. Parecendo-nos artificioso invocar, nas relações

entre cada carregador e o transportador, o contrato a favor de terceiro, desde logo,

mas não só, porque os efeitos para o terceiro que não seriam apenas os favoráveis,

inclinamo-nos no sentido de que a existência de uma expedição marítima comum, à

qual estão tipicamente associados perigos – riscos – cumulada com o facto de haver

um regime imperativo das funções do capitão, adstrito a zelar pelo bom sucesso da

expedição, custe o que custar, tudo isso nos conduz à ideia da existência alemã designa,

conquanto noutra sede, como relação obrigacional de ordem superior. Neste quadro,

será uma questão de interpretação, determinar qual é o regime aplicável essa relação:

se o do Código Comercial, o das Regras I-A ou outro, dúvida que poderá ser resolvida

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atentando no panorama global dos diversos contratos existentes. Assim, valerá, em

princípio, o regime acordado para a maioria dos contrato, ficando, porém, o carregador

que, em concreto, se considere prejudicado pelo facto de não ter sido seguido o regime

especificamente acordado com o transportador, com direito de ação contra este. A

solução mais cristalina será, conforme sugere Righetti, aplicar as Regras I-A; contudo,

essa solução parece forçada nas situações em que tais Regras não tenham sido

consideradas em qualquer dos conhecimentos de carga. Não sendo aceite esta

construção, que passa pela identificação de uma relação obrigacional de ordem

superior, teríamos que considerar nulas por ofensivas dos bons costumes (artigo 280.º,

n.º2 CC) – bons costumes marítimos, como é claro – as cláusulas que, face a situações

de perigo comum, criem, sem o acordo de todos os interessados, privilégios de alguns

(Que recebem e não pagam) em prejuízo de outros (que pagam e não recebem).

7. A determinação das massas credora e devedora na avaria grossa:

a. O capital contribuinte: de acordo com o estabelecido no artigo 639.º do Código

Comercial, haverá repartição de avaria grossa por contribuição

«sempre que o navio e a carga forem salvos no todo ou em parte».

Já tivemos, contudo, oportunidade de identificar situações de avaria grossa,

ainda que não se salve o navio ou não se salve a carga. À composição do capital

contribuinte, refere-se o §1.º do artigo. O capital compõe-se dos seguintes

elementos:

Valor líquido integral que as coisas sacrificadas teriam ao tempo no lugar

da descarga;

Valor líquido integral que tiverem no mesmo lugar e tempo as coisas salvas

e também da importância do prejuízo que sofreram para a salvação comum;

Frete a vencer, deduzidas as despesas que teriam deixado de se fazer se o

navio e a carga se perdessem na ocasião em que se deu a avaria.

Realce-se que, de acordo com o §2.º do mesmo artigo 639.º,

«Os objetos de uso e o fato, as soldadas dos marinheiros, as

bagagens dos passageiros e as munições de guerra e de boca na

quantidade necessária para a viagem, posto que pagas por

contribuição, não fazem parte do capital contribuinte».

b. Situações especiais: a determinação das massas credora e devedora suscita

dificuldades especiais, apresentando, por vezes, grande complexidade. O artigo

640.º do Código Comercial regula a questão de saber o que é que acontece

relativamente à carga clandestina, tomando a expressão num sentido amplo,

ou, mais concretamente, relativamente à carga

«de que não houver conhecimento ou declaração do capitão ou

que se não achar na lista ou no manifesto».

Uma tal carga está sujeita a um duplo regime desfavorável: o respetivo

proprietário não recebe mas paga. Tal carga contribui na avaria grossa,

salvando-se, o que bem se compreende, já que beneficia da despesa

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extraordinária ou do sacrifício. Contudo, se tal carga for sacrificada – se for

“alijada”, diz o artigo 640.º, conquanto isso não nos pareça limitativo – tal carga

não fará parte da massa credora, tudo se passando, relativamente a essa carga,

como se a avaria fosse particular. Este regime é consoante com a Regra XIX das

Regras I-A:

«(a) Damage or loss cause to goods loaded without the knowledge

of the Shipowner or his agent or to goods wilfully misdescribed at

time of shipment shall not be allowed as general average, but such

goods shall remain liable to contribute, if saved».

A explicação de tal regime é óbvia: o combate à fraude e ao transporte

clandestino, o que justifica a sanção – ou o castigo – da não inclusão na massa

credora, fazendo, porém, todo o sentido a inclusão na massa devedora. A

explicação dada por Cunha Gonçalves continua perfeitamente atual:

«porque o capitão, conluiando com um dos carregadores, podia

apresentar como alijadas cousas que não estavam a bordo, ou

poderia um carregador embarcar clandestinamente certas

mercadorias, ou perigosas, com o fim de lesar o armador na taxa

do frete».

Quanto às mercadorias no convés, as mesmas têm um regime especial,

constante do artigo 641.º do Código Comercial, regime especial esse que não é

aplicável à composição da massa devedora, já que, se as mesmas se salvarem

contribuem. No que respeita às Regras I-A, tem relevo a Regra I:

«No jettison of cargo shall be allowed as general average, unless

such cargo is carried in accordance with the recognised custom of

the trade».

Não se salvando essas mercadorias, o Código consagra um regime especial,

regime esse que tem como pano de fundo o facto de as mercadorias carregadas

no convés estarem sujeitas a um maior risco ou probabilidade de alijamento no

caso de tal ser necessário para o bom sucesso da expedição marítima comum.

Assim, se os bens em causa tiverem sido carregados na coberta sem o

consentimento do dono, sendo os mesmos alijados ou danificados pelo

alijamento, o proprietário tem direito a ação de indemnização (§único do artigo

641.º Código Comercial)

«contra o capitão, navio e frete»;

Atento o regime consagrado nos artigos 4.º e 5.º Decreto-Lei 202/98, essa ação

de indemnização poderá ser intentada contra o proprietário ou armador, como

comitente, e contra o capitão como comissário, respondendo solidariamente.

Se, porém, tiver havido consentimento do dono para que os bens sejam

carregados na coberta, há lugar a uma contribuição especial que não prejudica

a contribuição geral para as avarias comuns de todo o carregamento; nessa

contribuição especial, só entram o navio, o frete e as mercadorias em causa e

as demais mercadorias carregadas nas mesmas circunstâncias. Importa ainda

referir, de novo, o regime do artigo 644.º: não contribuem nas perdas

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acontecidas a navio, para cuja carga eram destinadas, as fazendas que

estiverem em terra. A razão de ser é lógica: essas mercadorias ainda não

integram a expedição marítima comum – a comunhão de interesses a esta

inerente.

c. Estimação da carga: revela-se igualmente muito importante a estimação da

carga na composição das massas credora e devedora. O artigo 648.º do Código

Comercial trata da estimação das fazendas e mais objetos, estabelecendo que

as fazendas e os mais objetos que devem contribuir, assim como os objetos que

devem contribuir, assim como os objetos alijados ou sacrificados, serão

estimados segundo o seu valor, deduzidos o frete, direitos de entrada e outros

encargos de descarga, tendo-se em consideração os conhecimentos, as faturas

e, na sua falta, outros quaisquer meios de prova. Pode acontecer que nos

conhecimentos ou outros documentos estejam designados uma qualidade e

um valor das mercadorias que não corresponda ao seu valor real. Nessa

situação, há que distinguir consoante as mercadorias valham mais ou menos:

se valerem mais (§1.º do artigo 648.º), contribuirão pelo seu valor real, mas em

caso de alijamento ou avaria, conta o valor dado nos conhecimentos; se

valerem menos (§2.º do artigo 648.º), as mercadorias contribuem segundo o

valor indicado se forem salvas, mas antender-se-á ao valor real se forem

alijadas ou estiverem avariadas. Revela-se também importante a estimação da

avaria na carga, dispondo o §único do artigo 638.º que nessa estimação é

determinado qual teria sido o valor da carga, se tivesse chegado sem avaria, o

qual deve ser confrontado com o seu valor atual, tudo isso independentemente

da estimação do lucro esperado, sem que, em caso algum, possa ser ordenada

a venda de carga para se lhe fixar o valor, salvo a requerimento do respetivo

dono. Finalmente, o artigo 649.º contém um regime especial para a estimação

das mercadorias carregadas: ela e feita, segundo o seu valor, no lugar da

descarga, deduzidos o frete, os direitos de entrada e outros de descarga. O §1.º

a 3.º do mesmo artigo 649.º contemplam situações especiais. O §1.º reporta-

se às situações em que a repartição for feita em lugar do país donde o navio

partiu ou tivesse de partir; o §2.º trata da estimação dos objetos avariados e o

§3.º cura da estimação nas situações em que

«a viagem se rompeu ou as fazendas se venderam fora do reino e

a avaria não pôde lá regular-se»

A estimação dos valores das cargas quer das sacrificadas quer das salvas consta

das Regras XII, XVI e XVII das Regras de I-A. Enunciemos os princípios gerais. De

acoro com o parágrafo (a) da Regra XVI (1.º período), a quantia permitida como

avaria grossa por danos ou perda da carga sacrificada será o prejuízo sofrido

por tal motivo, baseado no valor no momento da descarga, calculado com base

na fatura enviada ao destinatário ou, não havendo tal fatura, com base no valor

embarcado. Segundo parágrafo (a) (i) da Regra XVII, a contribuição para a avaria

grossa basear-se-á nos valores líquidos reais dos bens no fim da aventura, a não

ser que o valor da carga seja o valor no momento da descarga, calculado a partir

da fatura enviada ao destinatário, ou, se não existir essa fatura, a partir do valor

embarcado. De acordo com o primeiro período do parágrafo (1) da Regra G, a

regulação das avarias grossas deve ser baseada nos valores, no momento e no

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local em que a aventura termina, quer para a avaliação das perdas, quer para a

contribuição.

d. Estimação do valor do navio: no que respeita ao navio, o artigo 647.º do Código

Comercial dispõe que o mesmo contribui pelo seu valor no lugar da descarga,

ou pelo preço da sua venda, deduzida a importância das avarias particulares,

ainda que sejam posteriores à avaria comum. Nas Regras de I-A assumem

particular relevo as Regras XIII, XIV e XVIII. Destaquemos alguns aspetos das

Regras XVII e XVIII. De acordo com o parágrafo (a) (iii) da Regra XVII – que tem

como pressuposto o facto de, segundo o parágrafo (a) (i) da mesma Regra, a

contribuição se basear nos valores líquidos reais dos bens – o valor do navio é

calculado sem ter em consideração os benefícios ou prejuízos de qualquer

cessão ou contrato de fretamento temporário. A Regra XVIII trata das avarias

no navio, prevendo que a quantia a considerar em avaria grossa pelas perdas e

danos do navio, nas suas máquinas e ou no seu aparelho, decorrentes de um

ato de avaria grossa, será calculada, em função de ter ou não havido

substituições ou reparações. No primeiro caso, será considerado o custo atual

e razoável das substituições e reparações, com as deduções previstas na Regra

XIII; no segundo caso, deverá ser considerada uma depreciação razoável

resultante dessas perdas ou danos, mas que não exceda o estimado custo das

reparações.

8. Algumas situações específicas: nestas breves análises não incluímos os casos da arribada

forçada e da salvação marítima, que serão vistos quando estudarmos estas figuras.

Limitamos a nossa atenção ao alijamento, ao incêndio, à varação e à perda total do

navio. O alijamento é o acontecimento de mar que, desde tempos remotos, mais bem

ilustra as situações de avaria grossa, admitindo, claro está, que estão em concreto,

verificados os respetivos pressupostos e requisitos. Tanto é assim que, nalgumas

disposições do nosso Código Comercial, a referência ao alijamento serve de paradigma

para as situações de avaria grossa: assim acontece, por exemplo, no artigo 640.º, cujo

regime não vale apenas para a carga alijada, mas, em geral, para a carga sacrificada.

Tomado como boa a noção constante do Glossário Marítimo-Comercial, alijamento é

«o ato de lançar ao mar mercadorias, mantimentos ou partes do próprio

navio com o objetivo de aumentar o seu poder de flutuação, reduzindo o

calado para suportar melhor o mau tempo, contrabalançar os efeitos de

um rombo, facilitar um desencalhe ou impedir a propagação de um

incêndio».

Temos já salientado aspetos de regime relacionados com o alijamento, destacando-se

o estabelecido nos artigos 640.º, 641.º, 642.º e 646.º do Código Comercial. A nível das

Regras I-A, referem-se especificamente ao alijamento as Regras I e II. De acordo com a

Regra I nenhum alijamento de carga será permitido como avaria grossa, a não ser que

tal carga seja transportada de acordo com os reconhecidos usos do comércio. Por sua

vez, de acordo com a Regra II, serão permitidos como avaria grossa as perdas ou danos

à propriedade envolvida na aventura marítima comum, por um sacrifício feito para a

segurança comum, ou resultantes deste, e os feitos pela água entrada nos porões

através das escotilhas abertas ou por qualquer outra abertura praticada com o fim de

se efetuar um alijamento para a salvação comum. Um dos acontecimentos que maiores

dificuldades suscitam, no que concerne à determinação do regime de avarias a aplicar,

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e o incêndio a bordo. Apesar de incluído na enumeração do artigo 13.º, n.º2 do Decreto-

Lei 384(99, 23 de setembro, o incêndio não será, propriamente, um típico

acontecimento de mar. As causas dos incêndios a bordo estão normalmente associadas

a caso fortuito ou a situações de negligência a bordo. Face a uma situação de incêndio,

os danos diretamente provocados por este constituem avaria particular. Já quanto aos

danos resultantes do combate ao incêndio, decidido pelo capitão para salvação comum

do navio e da carga, os mesmos constituem avaria grossa. A Regra III de I-A estabelece

que são permitidos como avaria grossa os danos causados ao navio ou à carga, pela

água ou doutro modo, com o fim de extinguir um incêndio a bordo, incluindo os

causados por imersão ou rombos feitos para o mesmo fim; contudo, essa permissão

não abrange os danos causados pelo fumo ou pelo calor do fogo. Falamos de varação

como sinónimo de encalhe do navio feito voluntariamente. Naturalmente que, em sede

de avaria grossa, só interessa a varação que seja feita intencionalmente para salvação

comum do navio e da carga. A questão que se poderia discutir é a de saber se os danos

decorrentes da varação também entram em avaria grossa nas situações em que se

conclua que, não fora o ato voluntário do capitão, o navio teria encalhado. Atualmente,

a Regra V de I-A dispõe que quando, por manobra voluntária, um navio der à costa para

salvação comum, quer esse navio pudesse ou não ter dado à costa, as consequentes

perdas ou danos sofridos pela propriedade envolvida na aventura marítima comum são

permitidos em avaria grossa. As Regras VII e VIII de I-A curam da inclusão em avaria

grossa de danos e despesas eventuais subsequentes à varação. Uma situação que

suscita algumas dúvidas é aquela em que, pese embora a prática de atos tendentes à

salvação comum do navio e da carga, ocorre a perda total do navio. O regime, algo

confuso, que encontramos no artigo 642.º do Código Comercial, tem as suas raízes

modernos nos artigos 15.º e 16.º do Título VIII do Livro III da Ordenança de 1681. A

perda do navio e a sua relação com a avaria grossa seria tratada, sucessivamente, pelo

Regulamento das Avarias de 1820 e no Código Comercial de 1833. Estabelece o corpo

do artigo 642.º do atual Código que se, não obstante o alijamento ou o corte de

aparelhos, o navio se não salva, não há lugar a contribuição alguma e os objetos salvos

não respondem por pagamento algum em contribuição das avarias dos objetos alijados,

avariados ou cortados. A ideia subjacente a este regime é a de que se, apesar do corte

de aparelhos ou do alijamento de mercadorias o navio não se salvar, é porque esse

resultado era inevitável, não fazendo, então, sentido que os objetos salvos respondam

pelo navio. O §1.º do mesmo artigo 642.º reporta-se a uma situação diferente, com

origem no citado artigo 16.º da Ordenança:

«se pelo alijamento ou corte de aparelhos o navio se salva, e continuando

a viagem perece, os objetos salvos contribuem só por si no alijamento no

pé do seu valor, no estado em que se acharem, deduzidas as despesas de

salvação».

Conforme justifica Adriano Anthero:

«Se o corte dos aparelhos e alijamento contribuíram para salvar o navio e os

demais objetos, embora o navio pereça depois, é justo que esse objetos

contribuam também para a avaria que resultou d’esse corte d’apparelhos e

alijamento».

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Naturalmente que entre os bens que entram na contribuição por avaria grossa, não se

conta o navio, por se ter perdido, não figurando em nenhuma das massas. Na linha da

solução do corpo do artigo 642.º, o seu §3.º estabelece que

«a carga não contribui para o pagamento do navio perdido ou declarado

inavegável»;

Isso é justificado por Adriano Anthero, como sendo corolário do princípio de que

«perdendo-se o navio, não há contribuição».

Importa, no entanto, deixar claro que, pese embora a redação do artigo 642.º, situações

há, em que, pela aplicação dos princípios da avaria grossa, a perda total do navio não

impede a contribuição. Assim, se o navio foi, ele próprio, sacrificado, vindo a perder-se

totalmente contra as rochas da costa para onde foi atirado pelo capitão, não há lugar

à aplicação do regime do artigo 642.º, já que, como refere Cunha Gonçalves, uma coisa

é navio perdido, outra é navio sacrificado. Naturalmente que estamos a pressupor que

essa manobra foi feita, à partida, para segurança comum do navio e da carga.

9. Outros aspetos de regime: sobre a lei aplicável na regulação e repartição das avarias,

dispõe o artigo 650.º do Código Comercial, que é aplicável a lei onde a carga for

entregue. No entanto, conforme resulta do que temos visto, a carga pode não ser

entregue, por ter sido sacrificada. Por esta razão é mais lógica a redação do artigo 74.º

do Código de Processo Civil, quando considera competente para a regulação e

repartição da avaria o tribunal do porto «onde for ou devesse ser entregue a carga». O

problema destas e similares previsões legislativas resulta do facto de, normalmente,

não haver apenas um contrato de transporte mas várias, com vários locais previstos

para a entrega das cargas. Por esta razão, a tendência dominante é regular os conflitos

de leis pela lei do port de reste – ou seja, o porto onde se refugiou o navio após a decisão

de avaria grossa e onde se inicia o processo de regulação de avarias. Quanto à

promoção da regulação e repartição das avarias, há que considerar o disposto no artigo

652.º do Código Comercial: a regulação e repartição das avarias grossas – cujo processo

consta do artigo 1063.º e seguintes do Código de Processo Civil – fazem-se a diligência

do capitão e, deixando ele de a promover, a diligência dos proprietários do navio ou da

carga, sem prejuízo da responsabilidade daquele. Este dever de promoção é,

naturalmente, independente dos deveres que impendem sobre o capitão e que

resultam das alíneas j) e l) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, 23 setembro, de

«informar o armador, os carregadores e os sobrecargas, sempre que

possível e, em particular, depois de qualquer arribada, sobre os

acontecimentos extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as

despesas extraordinárias efetuadas ou a efetuar em benefício do navio e

sobre os fundos para o efeito constituídos»

E de

«exibir às autoridades competentes ou aos interessados na expedição os

documentos e registos do navio, emitindo as competentes certidões ou

cópias, quando requeridas».

Conforme parece óbvio, o capitão só tem o dever de promover a regulação e repartição

da avaria grossa se entender que a mesma teve lugar durante a expedição marítima.

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Neste quadro, assume particular relevo o relatório de mar e os respetivos dizeres, bem

como o ter sido ou não confirmado. A quem cabe o ónus da prova da existência de

avaria grossa? Naturalmente que será àquele a quem interessa uma determinada

qualificação, a não ser que tenha já seu favor a presunção que resulta da confirmação

do relatório de mar (artigo 15.º, n.º7 Decreto-Lei 384/99). Assim, o interessado na

mercadoria que desapareceu no mar (o respetivo proprietário ou então a companhia

de seguros sub-rogada), resultando do relatório de mar que a mercadoria foi arrastada

pela força de ondas gigantes, terá interesse em provar, se tiver elementos para tal, que,

diversamente do que consta no relatório, as mercadorias foram alijadas por decisão

intencional do capitão, tendo em vista fugir à tempestade e salvar o navio e restante

carga. Se o interessado lograr fazer essa prova, o regime a aplicar será o da avaria grossa.

Mas podemos imaginar uma situação inversa, em que os factos constantes do relatório

de mar apontam no sentido de uma avaria grossa ou comum: os interessados na

expedição a quem não interesse contribuir, têm o ónus de fazer a prova de factos que

demonstrem que a avaria era simples e não grossa, sendo, então, aplicável a lógica da

suportação ou da responsabilidade, que não já a da contribuição em avaria. De acordo

com a Regra E (primeiro parágrafo) das Regras I-A, o ónus da prova de que determinada

despesa ou dano é realmente admitida em avaria grossa recai sobre aquele (a parte)

que reclama tal avaria. Os créditos fixados na repartição das avarias grossas são

assistidos de privilégio creditório sobre a carga e o frete, respetivamente de acordo com

o n.º 6 do artigo 580.º e o n.º3 do artigo 582.º do Código Comercial. Pode, porém,

acontecer, por força do desencontro entre os regimes dos artigos 581.º e 583.º do

Código Comercial, por um lado, e o do artigo 1068.º do Código de Processo Civil, por

outro, que os privilégios se extingam antes de a ação de avaria ser intentada.

Destacamos, a propósito, o regime da Regra XXII de I-A: sendo efetuados depósitos em

dinheiro relativos à contribuição da carga para a avaria grossa, tais quantias devem ser

depositadas, sem demora, numa conta especial conjuntamente em nome de um

representante do proprietário do navio e de um representante dos depositantes do

proprietário do navio e de um representantes dos depositantes, num banco escolhido

por ambos. As quantias depositadas e correspetivos juros, se os houver, serão

consideradas como garantia de pagamento a quem de direito, de créditos constituídos

no âmbito da avaria grossa, pagáveis pela carga. Finalmente no que respeita à

prescrição, constata-se que o Código Comercial nada dispõe. Contudo, o artigo 1068.º

do Código de Processo Civil estabelece um prazo para a ação de avaria grossa: ela só

pode ser intentada dentre de um ano, a contar da descarga, ou, no caso de alijamento

total da carga, da chegada do navio ao porto de destino. No âmbito das Regras I-A,

assume agora relevância a Regra XXII, cuja aplicação é preterida se houver algum

regime legal imperativo aplicável. De acordo com o parágrafo (a) (i) dessa Regra,

quaisquer direitos a contribuição por avaria grossa extinguem-se se não for intentada

ação exigindo tal contribuição no prazo de um ano após a data em que tiver sido

publicada a repartição da avaria; contudo, em caso algum pode ser intentada tal ação

após seis anos a contar do fim da aventura marítima comum; estes prazos (ii) podem,

contudo, ser alargados se as partes assim o acordarem após o fim da citada aventura;

contudo, segundo o parágrafo (b) da mesma Regra, estas limitações não são aplicáveis

entre as partes na avaria grossa e as respetivas seguradoras.

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Capítulo III – Arribadas Forçadas

1. Introdução: as arribadas forçadas constituem um acontecimento de mar, regulado

nos artigos 654.º a 663.º do Código Comercial. O Código Comercial não apresenta

qualquer noção de arribada forçada, iniciando o artigo 654.º a abordagem da

matéria, através da enunciação de «justas causas de arribada forçada». Era diversa

a opção do Código Ferreira Borges, que fazia anteceder a enunciação das justas

causas de arribada forçada de uma definição:

«Diz-se arribada forçada a entrada necessária em porto ou lugar

distinto dos determinados na viagem do navio».

No seu Diccionario, Ferreira Borges apresentava a seguinte definição:

«O ato de entrar num porto, durante a viagem, que não é a do destino

ou de escala estipulada no fretamento».

O Capítulo CI do célebre Consulat del Mar respeitava a matéria de arribada, sendo

aí decisiva a posilão dos mercadores, num quadro de grande insegurança da

navegação, designadamente por causa da pirataria. Nas Ordenações Filipinas

encontramos indicações claras impostas aos capitães dos navios no sentido de, na

torna-viagem, só tocarem outros portos ou locais em caso de extrema necessidade

(Livro V, Título CVII, §13.º); a arribada em porto ou local não previsto só seria lícita

em situações excecionais em que o capitão se visse forçado a tal, «para sua

segurança e navegação». Pese embora o facto de as disposições do Código

Comercial estarem gizadas no pressuposto de o lugar da arribada ser um porto

(artigos 660.º - descarga no porto de arribada – e 663.º - injustificada demora no

porto de arribada), não tem de ser necessariamente assim: o local de arribada pode

ser, por exemplo, uma baía ou uma enseada onde o navio se abriga, v.g., para e

furtar a uma perseguição de piratas). Por identidade de razão, julgamos que deverá

ser aplicado o regime da arribada forçada às situações em que o navio retarda a

saída de um porto de escala, v.g., em virtude do temor fundado de inimigos: não

faria sentido que, para aplicar o regime da arribada, fosse necessário forçar o navio

a sair a barra, com série perigo para a expedição, para de imediato regressar ao

porto. Trata-se de uma situação diferente daquela que surge diretamente regulada

no artigo 663.º do Código Comercial, já que esta última pressupõe que o porto em

causa seja um porto de arribada e não um porto de escala. À arribada forçada

contrapõe-se a arribada voluntária. A diferenciação entre arribada forçada e

arribada voluntária é, prima facie, enganadora, já que mesmo as chamadas

arribadas forçadas são voluntárias, no sentido estrito e natural do termo, uma vez

que são efetuadas por decisão voluntária do capitão. A diferença está de, nas

chamadas arribadas forçadas, o capitão se ver forçado, em virtude de um

determinado evento ou de uma situação, a procurar um porto ou lugar não previsto

na rota, o qual pode consistir no porto de embarque ou no porto de anterior escala

– ou mesmo no porto de destino, na medida em que o capitão tenha de sacrificar

algum porto de escala para arribar. O capitão toma a decisão de arribar –

independentemente, mas também sem prejuízo, dos requisitos da lei para o efeito

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– porque a tanto o obriga o sucesso da expedição marítima ou a segurança comum

do navio, das pessoas ou dos bens. Refere, a propósito, Cunha Gonçalves:

«A arribada é voluntária quando motivada por mero capricho do

capitão ou deste e dos tripulantes. É forçada ou necessária quando

determinada por um caso fortuito ou de força maior».

Para o efeito da determinação do caráter voluntário ou forçado da arribada, não

importa apurar se há responsabilidade de alguém e, no caso afirmativo, a quem

podem ser imputados os prejuízos causados pela arribada. Claro que esse

apuramento será importantíssimo mas numa fase posterior, a jusante da conclusão

pelo caráter voluntário ou forçado da arribada. Para o efeito da determinação do

caráter forçado da arribada, é mister que, na base da mesma, exista uma justa

causa. Na consideração da justa causa da arribada, deverá ser ponderada a situação

concreta, desde logo no que respeita à escolha do porto ou lugar de arribada: se

um navio navega diretamente de Lisboa para os Açores e o capitão constata a

insuficiência de combustível quando está a poucas milhas da Madeira, a priori, a

arriada forçada adequada à situação passará pela escolha de um porto madeirense

sendo inadequada aquela que se traduza num regresso ao porto de origem: se for

este o caso, ainda que se traduza num regresso ao porto de origem: se for este o

caso, ainda que a arribada pareça legítima à luz do previsto no n.º1 do artigo 658.º

do Código Comercial, ela deve ser tratada parcialmente como ilegítima, no que

respeita ao percurso e ao tempo despendidos em excesso, comparativamente com

aqueles que seriam o percurso e o tempo se o porto de arribada tivesse sido bem

escolhido. O caráter legítimo da arribada não sofrerá, já, contestação se o regresso

ao porto de embarque for, por exemplo, ditado pelo mau tempo no mar daquela

ilha.

2. O relevo de uma justa causa de arribada:

a. As justas causas de arribada forçada: o artigo 654.º do Código Comercial

enuncia três justas causas de arribada forçada, as quais correspondem,

grosso modo, às justas causas. A primeira dúvida que se pode gerar é sobre

o caráter taxativo ou simplesmente exemplificativo do elenco do artigo

654.º. Aparentemente, a lista é fechada, posição esta que parece reforçada

a cumprir, remete-se para

«qualquer dos casos previstos no artigo precedente».

Ainda que interpretadas atualisticamente, as causas enunciadas no artigo

654.º não cobrem o universo de situações justificadoras da arribada. Deve,

assim, considerar-se como justa causa de arribada toda a situação em que

esta se apresente como justa causa de arribada toda a situação em que

esta se apresente como necessária ao bom êxito da expedição marítima,

não podendo, portanto, considerar-se a enumeração constante do artigo

654.º como um numerus clausus de justas causas de arribada forçada.

Assim, pode ser considerada também justa causa de arribada a entrada

num porto não previsto na rota, para abrigar-se de uma súbita e forte

tempestade que force o capitão a tal decisão ou a situação – que, no

entanto, numa determinada interpretação, admitimos que possa caber no

número 3 do artigo 654.º - em que sobrevenha uma avaria no sistema de

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comunicação. Em rigor, uma tal avaria não inabilitará o navio de continuar

a navegação, mas pode, considerando o mar onde navega e o seu estado,

impedi-lo de fazer uma navegação minimamente segura. Azevedo Martins

considera, ainda, a doença contagiosa a bordo e a quarentena como justas

causas de arribada. A primeira justa causa enunciada no artigo 654.º é a

falta de víveres, aguada ou combustível. A situação fala por si, não havendo

dúvidas de que essa é uma situação justificativa da arribada: qualquer que

tenha sido a causa da falta assinalada – aspeto que, no entanto, interessará,

conforme veremos, para a determinação do caráter legítimo ou ilegítimo

da arribada – o bom sucesso da expedição marítima supõe que a deficiência

seja suprida. Naturalmente que a falta verificada terá de ser, in casu, de

relevo: ela tem de ser suficientemente grave para pôr em causa o bom

sucesso da expedição marítima. A segunda causa enunciada no artigo 654.º

é o temor fundado de inimigos. Ao enunciar como justa causa o temor

fundado e não apenas o temor, podemos dizer que esse qualificativo deve

ser concretizado nos termos do n.º2 do artigo 658.º. Ora, sendo assim,

podemos concluir que, diversamente do que acontece nas demais

situações de arribada forçada se a mesma for legítima: se não houver

temor fundado de inimigos, concretizado à luz do n.º2 do artigo 658.º, a

arribada pode ser, sequer, considerada como forçada mas como voluntária.

Que inimigos relevam para o efeito? Julgamos que todos, sendo de afastar

uma qualquer restrição aos inimigos declarados em situação de guerra.

Inimigos serão, assim, todos aqueles que tenham uma atitude hostil em

relação ao sucesso da expedição marítima e que a possam perigar. A

terceiro causa enunciada radica na relação entre a navegação e um

acontecimento que constitua um acidente: qualquer acidente que inabilite

o navio de continuar a navegação. Não se exige, agora, que se trate de

acidente acontecido ao navio. Podemos, assim, dizer que o acidente

relevante não tem de ser interno ao navio: pode ser exterior a ele, desde

que o mesmo impossibilite ou condicione seriamente a navegação. Usando

a linguagem que encontramos, v.g., no artigo 16.º do Decreto-Lei n.º

180/2004, 27 julho, tanto de poe tratar de acidente quanto de incidente,

desde que relevantes.

b. Formalidades da arribada forçada: o artigo 655.º do Código Comercial

disciplina as formalidades a cumprir pelo capitão antes de proceder à

arribada, curando o respetivo §1.º da posição dos interessados na carga

face à «deliberação tomada de proceder à arribada» e o §2.º da feitura do

relatório de mar perante a autoridade competente. Contradizendo a

previsão constante do artigo 506.º do Código Comercial, o o§2.º indica um

prazo mais amplo para a apresentação do relatório: quarente e oito horas

e não apenas vinte e quatro. Apesar de não ter sido objeto de revogação

expressa, parece-nos que o artigo 655.º do Código Comercial deve

considerar-se prejudicado – e, logo, tacitamente revogado – pelo Decreto-

Lei n.º 384/99, mais concretamente pelo estabelecido nas alíneas h) e j) do

artigo 6.º. Na verdade, de acordo com a citada alínea h), o capitão é

obrigado a convocar a conselho oficiais, armadores, carregadores e

sobrecargas, sempre que foi previsível a ocorrência de perigo para a

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expedição suscetível de causar danos ao navio, tripulantes, passageiros ou

mercadorias. Cremos que a perspetiva da necessidade de arribada, em

função, v.g., do termos de inimigos, cabe, desde logo, na previsão da alínea

h), sendo de afastar a interpretação – que se escudaria num simples

confronto literal com a redação da alínea j) – segundo a qual nas situações

de arribada, ao capitão bastaria uma informação ex post. Há uma aparente

diferença de regime entre o regime do Código Comercial e o que resulta,

agora, das alínea h) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99: enquanto que, no

domínio do §1.º do artigo 655.º daquele Código, os interessados na carga

não pareciam poder participar do processo tendente à decisão de arribada,

só podendo intervir depois, manifestando o seu protesto, face à citada

alínea h), os interessados participam no processo, manifestando a sua

posição, que pode ser de oposição. Contudo, essa diferença de regime não

é segura, sendo sustentado por alguns, no domínio do Código Comercial,

que o capitão devia também ouvir os interessados na carga: não deixando

de reconhecer que os interessados na carga não eram «principais da

tripulação» (artigo 655.º), Cunha Gonçalves dava relevo ao disposto no n.º

6 do artigo 508.º, também do Código, que impunha ao capitão

«chamar a conselhos os oficiais, armadores, caixas e

carregadores que estiverem a bordo, ou seus representantes,

em qualquer evento importante de onde puder vir prejuízo à

embarcação ou à sua carga».

Posição oposta a esta era sustentada por Adriano Anthero, para quem se

justificava a exclusão dos interessados na carga:

«Os interessados na carga que estiverem a bordo não são

ouvidos; porque não são técnicos, e, por outro lado, o interesse

de não interromper a viagem ou qualquer terror pânico podia

cegá-los».

Pensamos que, no domínio do Código Comercial, a razão estava com

Adriano Anthero, já que o argumento do relevo do número 6.º do artigo

508.º (Cunha Gonçalves) era anulado pelo facto de o mesmo artigo 508.º

realçar no n.º9 a especificidade do regime das arribadas forçadas. Apesar

de, formalmente, se poder dizer que a alínea h) do artigo 6.º Decreto-Lei

384/99 seria herdeira do n.º6 do artigo 508.º Código Comercial e que a

alínea j) do artigo 6.º Decreto-Lei 384/99 seria a continuadora do n.º9 do

artigo 508.º do mesmo Código, embora com um âmbito bem mais amplo,

a verdade é que – com as cumulativas revogações dos artigos 508 (de

forma expressa) e 655 (de modo tácito) – passou a haver uma certa

sobreposição entre as situações previstas nas duas alíneas, o que é

justificável, desde logo, pelo facto de nem sempre ser possível convocar os

carregadores a conselho e ainda porque, ainda que ouvidos previamente,

os carregadores têm o direito de ser informados sobre os mesmos,

vicissitudes e consequências do ocorrido. Qual é o efeito de uma oposição

à arribada? Conforme já realçava Cunha Gonçalves, conquanto no quadro

do §1.º do artigo 655.º do Código Comercial, a oposição ou protesto pode

ter lugar mas não paralisa a decisão do capitão, como magister navis que

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é. Contudo, a oposição à arribada, designadamente – mas não só – quando

manifestada pelos oficiais, não impedindo, embora, a arribada, pode ser de

grande relevância para futuro, designadamente no que tange à

caracterização da arribada como legítima ou ilegítima. Face ao disposto na

alínea j) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, o capitão está obrigado a

informar o armador, os carregadores e os cobrecargas sempre que possível

e, em particular, depois de qualquer arribada, sobre os acontecimentos

extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as despesas

extraordinárias efetuadas ou a efetuar em benefício do navio e sobre os

fundos para o efeito ou a efetuar em benefício do navio e sobre os fundos

para o efeito constituídos. Este dever de informação impõe-se, ainda que

os tais interessados tenham sido ouvidos, nos termos da alínea h), já que

se tratará, então, de informar sobre o modo como foi efetivada ou

concretizada a arribada. Perguntar-se-á, agora, se o incumprimento, pelo

capitão, do dever estabelecido na alínea h) ou mesmo na alínea j) do artigo

6.º do Decreto-Lei 384/99, inquina, de algum modo, o processo ou se

condiciona o regime da arribada. Pensamos que não, sem prejuízo de

considerarmos que o estabelecimento de tais deveres de informação faz

pleno sentido. O que não parece sustentável é que o cumprimento dos

mesmos continua um requisito ou uma condição da arribada, podendo,

não obstante, a pessoa que se sinta lesada por ausência ou deficiência de

informação exigir indemnização nos termos gerais da responsabilidade

aquiliana (Artigo 483.º e seguintes CC). Importa, finalmente, vincar que a

revogação tácita do §2.º do artigo 655 do Código Comercial não decorre

das citadas alíneas h) e j) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, mas, antes,

do artigo 14.º do mesmo diploma – relatório de mar.

3. A arribada legítima e a arribada ilegítima: a arribada forçada pode ser legítima ou

ilegítima, resultando da caracterização que possamos fazer, neste particular,

importantíssimas consequências de regime, conforme decorre do artigo 659.º

CCom. O artigo 657.º define a arribada legítima e o artigo 658.º define a ilegítima.

A técnica utilizada não é, tanto quanto nos parece, a melhor, uma vez que as

caracterizações da arribada como legítima ou ilegítima surgem em termos

relativamente estanques quando, na realidade, tem de existir uma relação

estreitíssima entre ambas. Ensaiando uma orientação, parece-nos que a

caracterização constante do artigo 657.º está dependente da caracterização da

arribada ilegítima do artigo 658.º, no sentido de que só está determinada a

funcionar após a caracterização da arribada forçada como ilegítima, precisamente

nos termos do artigo 658.º. Ou seja: à luz, estreitamente, das disposições do Código

Comercial, uma vez feita uma primeira caracterização da arribada como ilegítima,

nos termos do artigo 658.º, a mesma poderia se corrigida, para legítima, através da

invocação e prova de que não houve culpa na situação por parte do armador, do

capitão ou da tripulação. Em termos jurídicos, e no que respeita Às justas causas do

n.º1 e 3.º do artigo 654.º - a que correspondem, depois, na sequência, os n.º1 e 3.º

do artigo 658.º - uma vez verificados os requisitos da arribada forçada, aquele a

quem interessasse a caracterização da arribada forçada como ilegítima, teria de

fazer a respetiva prova, tendo, depois, o dono, capitão ou a tripulação de provar a

ausência de culpa. Esta forma de interpretar a articulação entre os artigos 654.º,

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657.º e 658.º CCom deve ser, porém, atualizada, face ao que dispõe o artigo 5.º,

n.º1 do Decreto-Lei 384/99: o capitão, como encarregado do governo e da

expedição do navio, responde como comissário do armador pelos danos causados,

salvo se provar que não houve culpa da sua parte, podendo também invocar a

relevância negativa da causa virtual, fazendo prova de que a situação ocorreria, de

igual modo, ainda que não houvesse culpa sua. Assim, ocorrendo uma arribada,

impende sobre o capitão uma presunção de culpa, nos termos do citado artigo 5.º,

n.º1, a qual pode ser ilidida nos termos gerais, já que se trata de uma presunção

iuris tantum, podendo, assim, o capitão do navio demonstrar a ausência de culpa

na situação concreta. Na prática, o capitão tem a seu cargo uma dupla e sucessiva

prova: a de que a arribada era forçada e ainda a de que a mesma era legítima. Se

não conseguir fazer essas provas, a única via desresponsabilizatória que lhe assiste

é a da relevância negativa da causa virtual. A situação do termos fundado de

inimigos (n.º2 artigo 654.º e n.º2 artigo 658.º CCom) é, neste aspeto, peculiar: uma

vez que a arribada, para ser forçada, tem de ser legítima, terá de ser feita prova do

justo temor de inimigos, prova essa necessariamente objetivada por factos

positivos: se ela existir, a arribada é forçada e é legítima; se não existir, é voluntária

e, logo, ilegítima. O n.º1 do artigo 658.º CCom considera ilegítima a arribada em

três situações:

Caso de falta de víveres, aguada ou combustível proceder de se não ter feito

o necessário fornecimento, ou de se haver perdido por má arrumação ou

descuido (n.º1). À luz desta ideia de que há uma presunção de culpa do

capitão, este terá de fazer prova de que a arribada foi forçada, tendo,

depois, o n.º1 do artigo 658.º um sentido apenas indicativo das situações

que podem ter estado na base da falta de víveres, aguada ou combustível,

cabendo ao capitão a prova de que foi feito o necessário fornecimento ou

que a perda não se deveu a má arrumação ou a descuido, etc. Nessa prova,

não terá relevância o facto de terceiro que o arrumador ou o capitão

devesse ou tivesse o ónus de controlar. Como é óbvio, o capitão não pode

pretender que a arribada foi legítima; a sua culpa está no facto de ter

partido sem ter abastecido convenientemente o navio;

Caso de temor de inimigos não justificado por factos positivos (n.º2):

estamos perante uma situação em que o capitão pode ilidir a presunção de

culpa do artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei 384/99, demonstrando que a arribada

foi forçada em virtude do temor fundado de inimigos, só relevando para o

efeito a prova (a justificação, como diz o n.º2 do artigo 658.º) através de

factos positivos.

O acidente que inabilitou o navio de continuar a navegação provém de falta

de bom conserto, apercebimento, esquipação e má arrumação ou constitua

o resultado de disposição desacertada ou de falta de cautela do capitão. À

luz da posição acima defendida, centrada na lógica de uma presunção de

culpa do capitão, este terá de demonstrar, sucessivamente, que a arribada

era forçada (n.º3 do artigo 654.º), e que a mesma não decorreu de culpa

sua, designadamente de qualquer das situações mencionadas no n.º3 do

artigo 658.º.

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4. A caracterização da arribada e respetivas consequências:

a. As despesas ocasionadas pela arribada: de acordo com o artigo 656.º CCom,

são por conta do armador ou fretador as despesas ocasionadas pela

arribada forçada. O comando legislativo é independente do caráter

legítimo ou ilegítimo da arribada. Aliás, as dúvidas que se poderiam gerar

seriam só no caso de arribada legítima, já que, sendo a mesma ilegítima, as

despesas entrariam no cômputo dos danos a suportar pelo armador ou

proprietário. O disposto no artigo 656.º deve, porém, ser entendido em

função do regime das avarias: se a arribada forçada dever ser caracterizada

como avaria grossa ou comum (artigos 634.º e 635.º CCom), as despesas

entram, naturalmente, nesse regime. A delimitação entre o regime das

despesas e dos prejuízos em sede de arribada forçada é, de resto, coerente

com a diferenciação, feita no artigo 634.º CCom, entre avarias-danos e

avarias-despesas. É de recordar, a propósito, o pertinente reparo de Cunha

Gonçalves:

«Convém salientar, porém, que o legislador, tanto neste código

como no de 1833, donde esta matéria foi copiada, regulou em

especial a arribada forçada somente como avaria particular,

isto é, supôs que a arribada não foi determinada pela salvação

comum do navio ou da carga; pois, de contrário, haveria uma

grave antinomia entre os Títulos V e VI. Assim, quando a falta

de víveres ou de combustível resultar de um alijamento; quando

o terror dos inimigos for fundado, não em simples notícias, ou

receios, mas sim na efetiva perseguição de um navio de guerra

inimigo, à qual só se pode escapar entrando num porto neutro

ou num porto nacional armado; quando o navio se inabilitar a

continuar a viagem, não por acidente ou caso fortuito, mas sim

por um ato voluntário inspirado pela salvação comum; em

todos estes casos, a arribada forçada, além de ser legítima,

constituirá uma avaria comum».

b. Quais as consequências da caracterização da arribada forçada como legítima

ou ilegítima? De acordo com o §único do artigo 659.º CCom, se a arribada

for ilegítima, o capitão e o dono serão conjuntamente responsáveis até à

concorrência do valor do navio e do frete. Realce-se que o §único do artigo

659.º deu lugar a dúvidas, sendo de destacar o reparo feito por Cunha

Gonçalves, à palavra “conjuntamente”:

«Convém notar, além disso, que a palavra conjuntamente foi

aqui empregada sem rigor; pois, nem o capitão pode limitar a

sua responsabilidade ao valor do navio, e do frete, que não lhe

pertencem, nem a responsabilidade do armador é conjunta,

mas sim solidária, como se infere do artigo 492.º e está

expresso no Código Civil, aplicável a todos os casos de

responsabilidade dos comitentes pelos atos dos seus

empregados».

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Atualmente, face ao disposto, no artigo 5.º Decreto-Lei 384/99, 23

setembro, não há dúvida de que a responsabilidade se processa nos termos

da comissão (artigo 500.º CC), respondendo o armador ou proprietário

como comitente e o capitão (ou membro da tripulação) como comissário:

enquanto que aquele responde objetivamente, este último responde

subjetivamente, sendo, aliás, presumida a sua culpa no artigo 5.º, n.º1

Decreto-Lei 384/99. Assim sendo, é patente que a responsabilidade que

está aqui em causa é uma responsabilidade solidária e não conjunta ou

parciária. Interpretado o §único à luz do regime da comissão, conforme, de

resto, já sugeria Cunha Gonçalves, é de questionar se se mantém em vigor

a limitação da indemnização, constante da parte final, ao valor do navio e

do frete. Pensamos que sim, divergindo de Cunha Gonçalves: estamos

perante uma das tais situações de limitação de responsabilidade do

proprietário – da qual beneficia também o capitão – às forças dos bens que

tem na concreta expedição marítima: o navio e o frete. Sendo a arribada

forçada legítima, resulta do artigo 659.º CCom que nem o dono nem o

capitão respondem pelos prejuízos que da mesma possam resultar aos

carregadores ou proprietários da carga: cada um suporta os seus próprios

prejuízos, na lógica casum sensit dominus. Como parece evidente, o regime

consagrado no artigo 659.º terá de ser articulado com o regime da avaria

grossa ou comum: se a arribada for caracterizada como tal (artigos 634.º e

635.º CCom) é aplicável o regime da repartição associado a essas avarias.

Assume, agora, particular relevo determinar o momento em que termina e

o momento em que cessa o acontecimento arribada. O início da arribada

inicia-se com o desvio de rota: a partir daqui, a determinação das despesas

e prejuízos estão dependentes do estabelecimento de um nexo de

causalidade entre os membros e a arribada, valendo, neste particular, o

regime estabelecido no artigo 562.º e seguintes CC. Tratando-se de

arribada forçada, ela só o é enquanto persistirem as razões que a

determinaram, podendo converter-se em voluntária, com as

consequências que daí possam avir em termos de regime. E quando a

arribada deva ser caracterizada como voluntária? A dúvida que se levanta

é a de saber se a mesma deve ter um tratamento idêntico ao da arribada

ilegítima ou se tem um tratamento autónomo. As situações de arribada

voluntária e arribada ilegítima surgem amiúde confundidas. Em termos de

regime, o capitão e, enquanto comitente, o proprietário ou armador serão

responsáveis por todos os prejuízos sofridos pelos demais interessados na

expedição, designadamente os carregadores. Neste particular, não surgem

diferenças em relação ao regime da arribada forçada ilegítima. O único

aspeto em que podemos questionar uma diferença de regime será na

questão da limitação da responsabilidade, já que não se aplicaria à arribada

voluntária o limite estabelecido no §único do artigo 659.º. Contudo, a

circunstância de o artigo 12.º Decreto-Lei 202/98 manter, nos termos no

mesmo previsto, o regime do abandono liberatório, permite-nos concluir

pela inexistência, na prática, de diferenças relevantes entre o regime da

arribada forçada ilegítima e o da arribada voluntária.

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5. A arribada forçada e a avaria grossa: a arribada forçada é regulada no Código

Comercial de costas voltadas para o regime das avarias, ou seja, à margem da

respetiva caracterização como avaria grossa ou como avaria particular. Contudo,

na medida em que se verifiquem o pressuposto e os requisitos traçados no §1.º do

artigo 635º CCom – haver um perigo comum para o navio e carga e ser a arribada

fruto de uma decisão voluntária do capitão para a segurança comum do navio e da

carga – estamos perante uma situação de avaria grossa, aplicando-se,

consequentemente, o respetivo regime. Sendo supletivo o regime do Código

Comercial em matéria de avarias (§2.º do artigo 634.º), importa ver, em termos

necessariamente sumários, como é que as Regras de Iorque-Antuérpia tratam a

arribada forçada, acontecimento que é aí abrangido pela sugestiva designação de

porto ou lugar de refúgio – designação esta que, no entanto, tem vindo a ser

utilizada, estando mesmo legislativamente consagrada, para designar uma situação

que envolve preocupações de defesa do ambiente e de prevenção de acidentes e

de poluição causada por navios no mar. De acordo com a Regra X (a) (i) das Regras

I-A, poderão ser permitidas como avaria grossa as despesas de entrada do navio

num porto ou lugar de refúgio quando essa entrada seja consequência de um

acidente, sacrifício ou outras circunstâncias extraordinárias que tornem essa

entrada necessária para a segurança comum – o mesmo acontecendo, verificados

os mesmos pressupostos, com as despesas de regresso ao porto ou lugar de

carregamento. Ainda de acordo com a mesma Regra X (a) (i), também serão

admitidas como avaria grossa as despesas decorrentes da saída do navio a partir

desse porto ou lugar após tal entrada ou retorno, com toda ou parte da carga inicial.

Face a esta Regra, e de acordo com Lowndes/Rudolf, não constituirá avaria grossa

a situação em que um navio não avariado procura porto ou lugar de abrigo apenas

para evitar uma muito provável tempestade ou vento muito forte; contudo, se

tivesse ocorrido algo de tal forma que o navio e a sua carga estejam em perigo, já

estaremos perante matéria de avaria grossa. Tudo dependerá, porém, no nosso

entender, do relevo que se dê às outras características extraordinárias, parecendo-

nos que o núncio fundado de uma tempestade se revele, a priori, perigosa para a

segurança comum do navio e da carga, se poderá enquadrar nesse âmbito. O

segundo parágrafo (ii) da Regra X (a) refere-se à situação em que um navio esteja

num porto ou lugar de refúgio e tenha, necessariamente, de ser removido para

outro porto ou lugar de refúgio pelo facto de as reparações não poderem ser feitas

no primeiro porto ou lugar; prevê-se que a Regra X possa ser aplicada ao segundo

porto ou lugar de refúgio como se o navio estivesse no primeiro, sendo permitidas

como avaria grossa as reparações provisórias e o reboque, sendo também

aplicáveis as disposições da Regra XI ao prolongamento da viagem determinado por

essa remoção. Conforme acontece com todas as Regras, têm surgido dúvidas de

interpretação, compreendendo-se que possam, em concreto, surgir polémicas

relativamente à natureza ou à dimensão das reparações ou então em relação à

escolha do novo porto ou lugar de refúgio para reparação. A Regra X (b) refere-se,

o seu primeiro parágrafo (i), ao custo de manutenção a bordo ou de desembarque

da carga, ao combustível e provisões num porto ou lugar de refúgio; os mesmos

poderão ser permitidos como avaria grossa quando a manutenção ou

desembarque tiverem sido necessários para a segurança comum ou para permitir

a reparação de danos sofridos pelo navio, em consequência de sacrifício ou

acidente, na medida em que a reparação seja necessária para a prossecução da

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viagem em segurança. São, porém, excecionados os casos em que dano sofrido pelo

navio seja descoberto num porto ou lugar de carregamento ou de escala, sem que

tenha havido qualquer acidente ou outras circunstâncias extraordinárias associadas

a tal dano que tenham tido lugar durante a viagem. O segundo parágrafo (ii) da

Regra X (b) afasta, porém, a consideração como avaria grossa das despesas

referidas no parágrafo (i) quando as mesmas tenham tido lugar exclusivamente

com o propósito de nova estiva, em consequência das deslocações ocorridas

durante a viagem, a não ser que essa nova estiva seja para a segurança comum. Em

termos sequenciais, a Regra X (c) estabelece que, sendo o custo da manutenção ou

desembarque da carga, combustível ou provisões permitidos como avaria grossa,

os custos de armazenamento, incluindo seguro, feito em termos razoáveis, novo

carregamento e estiva de tal carga, combustível ou provisões, poderão ser

igualmente permitidos como avaria grossa. A mesma Regra manda aplicar a Regra

XI ao período extra, ocasionado por tal novo carregamento ou nova estiva. A

mesma Regra X (c) exceciona o caso em que o navio esteja condenado ou não

continue a viagem inicial: nesses casos, as despesas de armazenamento só são

permitidas como avaria grossa até à data da condenação do navio – ou seja até à

data em que é estabelecido que o navio é comercialmente irreparável – ou do

abandono da viagem ou até à data em que se completou a descarga, quando a

condenação ou abandono tenham tido lugar anteriormente. De acordo com a

Regra XI (a), os salários e a manutenção do capitão, oficiais e da tripulação, quando

em termos razoáveis, e o combustível e provisões consumidos durante o

prolongamento da viagem ocasionada por um navio que entre num porto ou lugar

de refúgio ou regresse ao seu porto ou local de carregamento, será tido como

avaria grossa quando as despesas de entrada nesse porto ou lugar sejam permitidas

como avaria grossa, de acordo com a Regra X (a). As alíneas (b) e (c) da mesma

Regra, complementam a alínea (a), em termos que não podemos aqui aprofundar.

6. Situações no porto de arribada:

a. Descarga no porto de arribada: o artigo 660.º CCom faz depender a

regularidade da descarga no porto e arribada do facto de a mesma ser

indispensável para conserto do navio ou reparo de avaria na carga. A

autorização deverá ser dada, segundo o mesmo artigo 660.º, pelo juiz

competente; se for no estrangeiro, a autorização deverá ser dada pelo

agente consular ou, na sua falta, pela autoridade competente. Pode

questionar-se se o regime agora estabelecido nos artigo 10.º e 11.º

Decreto-Lei 384/99 não permitirá dispensar a autorização exigida pelo

artigo 1506 Código Processo Civil, uma vez que essas disposições

consideram lícita a utilização de coisas a bordo do navio, ouvidos os

principais da tripulação. A mesma dúvida se coloca, de resto, como

veremos, em relação à matéria do artigo 662.º CCom. Embora a dúvida seja

legítima, pensamos que continua a ser necessária a autorização referida no

artigo 660.º CCom: trata-se de disposição especial em sede de arribada,

enquanto que o artigo 10.º, Decreto-Lei 384/99 tem um âmbito de

aplicação e uma ratio bem definidos: «durante a expedição marítima e no

seu interesse». De resto, o artigo 10.º Decreto-Lei 384/99, disposições que

conviviam perfeitamente com o artigo 660.º. De acordo com o artigo 661.º

CCom, o capitão responde pela guarda e conservação da carga

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descarregada, salvos os acidentes de força maior. Atualmente, face ao

regime do artigo 4.º Decreto-Lei 202/98, 10 julho e do artigo 5.º Decreto-

Lei 384/99, 23 setembro, responderão solidariamente o proprietário (ou

armador) como comitente e o capitão como comissário. Os deveres que

impendem sobre o capitão são os deveres típicos do fiel depositário (artigo

1185.º CC): ele tem o dever de guarda ou custódia, dever esse que

coenvolve o dever de conservação material da carga descarregada.

b. Reparação ou venda da carga avariada: independentemente de a

mercadoria ter sido, o artigo 662.º CCom permite que a carga avariada seja

reparada ou venida, segundo as circunstâncias, precedendo (artigo 660.º

CCom) autorização do juiz competente (se no estrangeiro, havendo agente

consular, havendo-o, ou, na sua falta, da autoridade local). Nessa situação,

o capitão deverá comprovar ao carregador ou consignatário a legitimidade

do seu procedimento, sob pena de responder pelo preço que a mercadoria

teria como boa no lugar de destino. O artigo 662.º suscita a questão, já

abordada a propósito do artigo 660.º, saber se, face ao regime dos artigo

10.º e 11.º do Decreto-Lei 384/99, se mantém em vigor a exigência de

autorização. Pensamos que essa exigência se mantém,

independentemente da questão da sua bondade, à luz do direito a

constituir. Realce-se, aliás, o facto, já assinalado a propósito do artigo 660.º,

de o regime dos artigo 10.º e 11.º do Decreto-Lei 384/99 corresponder,

grosso modo, ao regime dos revogados artigos 510.º e 512.º CCom,

disposições essas que conviviam perfeitamente com o artigo 662.º. Claro

que a exigência de autorização só faz sentido no caso de o capitão ou o

armador não conseguirem contatar o interessado na carga, sendo certo,

face ao disposto no artigo 5.º, n.º2 e na alínea j) do artigo 6.º Decreto-Lei

384/99, que o capitão deve tentar obter previamente indicações

específicas sobre o destino da carga. Na atualidade serão certamente raras

as situações em que o capitão ou o armador não conseguem esse contacto.

A articulação do artigo 662.º CCom com o disposto no artigo 10.º Decreto-

Lei 384/99 permite destacar a eventualidade de situações em que, por

ocasião da arribada, seja necessário proceder à alienação de coisas que se

encontrem a bordo, no interesse da expedição. Se for esse o caso, a

mercadoria pode ser vendida nos termos do citado artigo 10.º, sem

necessidade de autorização mencionada no artigo 662.º. A diferença de

regime é ditada pelo facto de, nesses casos, estarem em jogo ou em causa

os interesses da expedição – cujo julgador é o capitão – e não apenas o

interesse de um ou mais carregadores.

c. Injustificada demora no porto de arribada: de acordo com o disposto no

artigo 663.º CCom,

«o capitão responderá pelos prejuízos resultantes de toda a

demora injustificada no porto de arrabada; mas, tendo esta

procedido de temor de inimigo, a saída será deliberada em

conselho dos principais da equipagem e interessados na carga

que estiverem a bordo, nos mesmos termos legislados para

determinar a arribada».

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Como é evidente e resulta do que atrás dissemos, a responsabilidade pelos

prejuízos resultantes de demora injustificada não serão suportados

singularmente pelo capitão, já que continua a funcionar a lógica da

comissão, nos termos do artigo 4.º Decreto-Lei 202/98, 10 julho, e do

artigo 5.º Decreto-Lei 384/99, 23 setembro. Os prejuízos deverão ser,

naturalmente, provados pelo lesado. Assim, supondo que a arribada

forçada foi legítima, só contarão, para efeitos de responsabilização do

proprietário (ou armador) e do capitão os prejuízos que sejam

consequência da demora injustificada: ou seja aqueles prejuízos que, sem

tal demora injustificada: ou seja aqueles prejuízos que, sem tal demora,

provavelmente não teriam ocorrido (artigo 563.º CC). A saída do porto é

decidida pelo capitão, salvo quando a arribada tenha tido por causa o

temor justificado de inimigos – situação em que a saída é deliberada em

conselho, o qual englobará também os interessados na carga. Esta

diferença de regime face ao artigo 665.º, é explicada por Adriano Anthero

pelo facto de, no caso de saída,

«já se não dão as mesmas circunstâncias nem há tanta razão

que motive um temor pânico».

A articulação com o regime do Decreto-Lei 384/99 não suscita dificuldades:

o artigo 663.º apresenta-se como uma disposição especial em sede de

arribada, contendo um regime aplicável a uma situação que não se

encontra contemplada em qualquer das alíneas do artigo 6.º do diploma.

7. A problemática dos locais de refúgio: a expressão local de refúgio, utilizada nas

Regras I-A, tende a designar uma realidade associada à segurança da navegação e

à proteção do ambiente 9 . Têm sido invocadas referências a bases normativas

associadas a lugares de refúgio. Deixando de parte a Convenção de Bruxelas de

1989, sobre intervenção em alto mar em caso de acidente causado ou podendo vir

a causar poluição por hidrocarbonetos, pertencente às convenções da primeira

geração, há que destacar, desde logo, a Convenção de Montego Bay de 10

dezembro 1982, sobre o Direito do Mar, a Convenção de Londres de 1989 sobre

salvação marítima, a Convenção de Londres de 1990 sobre a prevenção, atuação e

cooperação no combate à poluição por hidrocarbonetos, e a nível comunitário, a

Diretiva 2002/59/CE, relativa à instituição de um sistema comunitário de

acompanhamento e de informação de tráfego de navios, entretanto transposta

para o direito interno português. A transposição da Diretiva 2002/59/CE para o

Direito Português foi feita pelo Decreto-Lei 180/2002, 27 julho. Através dele, e

conforme reza o artigo 1.º, n.º2, são estabelecidas regras relativas à instituição, no

território nacional, de um sistema de acompanhamento e de informação do tráfego

9 O caso do Castor é elucidativo: no final do ano 2000, o navio, navegando no Mediterrâneo, pediu, sucessivamente, para entrar nas águas de cinco Estados mediterrâneos, em ordem a realizar um transbordo da carga de gasolina; face às recusas recebidas, o navio foi rebocado para o alto mar para efetivação de tal transbordo. Mais presente está o caso do Prestige, cuja catástrofe poderia ter sido evitada se o navio tivesse sido recebido num porto ou lugar de refúgio onde pudesse ser retirada a carga perigosa. O tema dos lugares de refúgio é tão atual e premente quão difícil: a dificuldade decorre do facto de os mesmos constituírem um difícil compromisso entre a segurança da navegação, a tutela do ambiente e os interesses dos Estados costeiros.

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de navios com vista a aumentar a segurança e a eficácia do tráfego marítimo,

melhorar a resposta das autoridades a incidentes, acidentes ou a situações

potencialmente perigosas no mar, incluindo operações de busca e de salvamento,

e contribuir para uma melhor prevenção e deteção das poluição causada pelos

navios. Dentre as definições constantes do artigo 3.º, destaca-se, na alínea o), local

de refúgio:

«um porto ou parte de porto ou outro espaço para manobrar ou

fundeadouro de proteção, ou qualquer outra área de refúgio

identificada em plano de recolhimento de navios em dificuldade».

O artigo 18.º refere-se às medidas e caso de incidente ou acidente marítimo,

remetendo o n.º2 para uma lista (Anexo IV), não exaustiva, das medidas que podem

ser tomadas pelas autoridades, destacando-se entre as mesmas (alínea d)) o

«intimar comandante a seguir para um local de refúgio em caso de

perigo iminente, ou impor a pilotagem ou o reboque do navio».

O artigo 19.º respeita especificamente aos locais de refúgio mas fica aquém das

expectativas, remetendo para uma posterior elaboração os planos de acolhimento

de navios em dificuldade. Essa elaboração – em como a manutenção em termos

atualizados – é cometida ao IPTM, ar articulação com a DGAM, o Comando Naval,

o Instituto da Conservação da Natureza e o Instituto de Tecnologia Nuclear. As

diretrizes constantes do decreto-Lei 180/204 são mínimas elas cingem-se à

indicação, constante do artigo 19.º, n.º2, de que os planos a elaborar – e que serão

objeto de aprovação em Resolução de Conselho de Ministros (artigo 19.º, n.º3) –

deverão definir a entidade dou entidades responsáveis pela decisão de acolher ou

não um navio num local, bem como as disposições e os procedimentos necessários,

tendo em cota as restrições de ordem operacional, de segurança e ambiental. A

problemática dos portos de refúgio ultrapassa largamente os problemas clássicos

da arriada forçada do Código Comercial no quem nem é ponderada a hipótese de

uma convenção internacional sobre portos de refúgio, sendo que permanece de pé

um conjunto de problemas por resolver neste âmbito, pese embora os vários

trabalhos desenvolvidos internacionalmente, designadamente a nível do Comité

Marítimo Internacional (CMI)e da Organização Marítima Internacional (IMO).

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Capítulo IV – Abalroação de Navios

1. Introdução: a aventura marítima tem inerente o perigo. Acontecimentos de vária

natureza podem determinar perdas para o navio, para a carga e para as pessoas. Dentre

os perigos que a aventura marítima está sujeita – riscos ou fortunas de mar – assuma

particular relevo o caso da abalroação. A abalroação é um perigo constante dos navios

desde sempre. Contudo, ela é um perigo cada vez maior, por virtude da maior

velocidade e tonelagem dos navios, do grande aumento do tráfego marítimo e da

utilização das mesmas rotas. Certo é que as modernas técnicas vieram auxiliar a

prevenir as abalroações; no entanto, tomando como exemplo o radar, o mesmo

introduziu, no dizer expressivo de Rodière,

«une illusion de sécurité qui augmente l’audace des manoeuvres».

Por outro lado, o material de que são feitos os navios determina o aumento das avarias

– dos danos – em caso de abalroação. As abalroações objeto do nosso estudo não são

apenas as que ocorrem no alto mar mas também as que têm lugar nos portos,

designadamente aquando das manobras de atracagem ou de largada. A abalroação é

um acontecimento de mar, enquadrando-se na previsão do artigo 13.º do Decreto-Lei

n.º 384/99, 23 setembro.

2. O que é abalroação para o Código Comercial e para a Convenção de Bruxelas de 1910:

do artigo 664.º e seguintes do Código Comercial não resulta uma noção de abalroação;

parece depreender-se, porém, dos mesmos que, para o Código, a abalroação será um

choque ou colisão de navios. Assim parece resultar do artigo 664.º, do artigo 665.º, do

artigo 666.º, do artigo 667.º, do artigo 668.º, do artigo 674.º, n.º2, e do artigo 674.º,

n.º3. Há que reconhecer, porém, que as expressões utilizadas apenas fazem presumir

a necessidade de colisão mas não são inequívocas nesse sentido, num prisma jurídico,

eixando, assim, campo aberto para o relevo, mesmo face ao Código Comercial, da

abalroação sem colisão. Na verdade, a única exigência segura que podemos associar à

abalroação, face às disposições do Código Comercial, é que a mesma envolva dois ou

mais navios. Envolvendo necessariamente dois ou mais navios, não será abalroação

para o Código Comercial o choque ou embate de um navio contra um cais ou outro

corpo fixo ou flutuante, caso esse que, na falta de outra regulamentação, específica,

seguirá as regras gerais da responsabilidade civil. Lê-se, assim, em Veiga Beirão:

«Não há abalroação no sentido technico da palavra no embate de um navio

contra um corpo fixo, tal como um escolho, uma barragem, etc., ou corpo

flutuante, não susceptivel de navegar, tal como um tronco, um pontão, um

navio submergido».

Os casos mais polémicos serão os de colisão contra navios encalhados e abandonados,

contra navios afundados ou contra destroços de navios, havendo que estabelecer

diferenças entre diversas situações sendo um critérios norteador possível o da

existência ou inexistência de navegabilidade. Também aos navios imobilizados, que

tenham perdido a primitiva destinatio ad navigandum, não será aplicável o regime da

abalroação. Ilustrando, não seria aplicável o regime da abalroação do Código Comercial

ou da Convenção de Bruxelas de 1910, mas o Código Civil, a uma colisão que

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acontecesse entre um navio desgovernado no porto do Funchal e o célebre Vagrant,

antes pertença dos Beatles, que jaz na baía dessa cidade como atrativo e

estabelecimento de restauração. A abalroação é independente de os navios em causa

estarem em movimento: pode um estar fundeado e o outro em movimento. Utilizamos

indistintivamente as expressões abalroação (Código Comercial ou Decreto-Lei 384/99)

ou abalroamento (Convenção sobre o Regulamento Internacional para evitar

Abalroamentos no Mar – COLREG). Veiga Beirão sinonimizava abalroação,

abalroamento e abordagem, mas, por exemplo, Cunha Gonçalves evitava a utilização

do termo abordagem. Entendem alguns que a abalroação supõe o contacto direto,

lendo-se, por exemplo, em Adriano Anthero que a abalroação é o encontro de um navio

contra outro; em consequência, não considera haver abalroação no caso

«em que a submersão ou damno do navio fosse causado pela brusca

agitação das ondas, produzidas por outro navio que passasse muito veloz

junto d’elle».

Lê-se, por sua vez, e no mesmo sentido, em Cunha Gonçalves:

«Não haverá abalroação também quando um navio, pela velocidade da sua

deslocação, agitar as águas de modo a fazer desequilibrar e naufragar um

barco junto do qual passou».

Refira-se, porém, que esta conceção restritiva não coincide com a constante da

Convenção de Bruxelas de 23 de setembro de 1910 para a unificação de certas regras

em matéria de abalroação (CB 1910). Refira-se também que as Regras de Lisboa de

1987 (CMI) definem, para os respetivos efeitos, collision em termos que abrangem

situações de abalroação sem colisão:

«means any accident involving two or more vessels which causes loss or

damage even if no actual contact has taken place».

Não acompanhamos a conceção restritiva identificada: para além de, como se disse, ela

não ter por si, de forma decisiva, a letra dos artigo 664.º e seguintes do Código

Comercial, a mesma desconsidera as realidades da navegação e a real existência de

situações em que há danos claramente provocados por outro navio, ainda que não

tenha havido contacto físico. No sentido da necessidade de uma colisão, poderia

eventualmente invocar-se o disposto na alínea d) do artigo 166.º do Regulamento Geral

das Capitanias (RGC) que consagra um dever de assistência após uma colisão,

relativamente «à embarcação com que tenha colidido». Não nos parece, porém, que

esta referência – que não surge em sede de regime de abalroação mas de assistência –

possa servir de suporte a uma tomada de posição sobre o próprio conceito de

abalroação. Aliás, temos as mais sérias reservas a uma interpretação literal da citada

alínea d), a qual deve ser interpretada no sentido de abarcar também a abalroação sem

colisão. Não nos parece, por outro lado, possível extrair qualquer conclusão, neste

particular, do regime do Decreto-Lei 384/99, 23 setembro, quando enuncia como

acontecimento de mar, a par da abalroação, a simples colisão ou toque (artigo 13.º,

n.º2): quer a simples colisão quer o toque constituem, juridicamente, casos de

abalroação, face ao regime do Código Comercial e da CB 1910. Face ao entendimento

exposto, prejudicada está a questão de saber se a colisão tem de ser violenta. De

qualquer modo, sempre diremos que, a ser adotada a visão restritiva acima criticada,

de acordo com a qual seria necessário um choque ou colisão, não veríamos razão para

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excluir o simples toque (artigo 13.º, n.º2 Decreto-Lei 384/99) do conceito e do regime

da abalroação: uma tal exclusão não teria razão de ser, face ao regime do Código

Comercial quer face ao da CB 1910. O regime da abalroação constante do Código

Comercial está norteado em função da situação de abalroação típica ou usual: aquela

que provoca danos: isso é claro logo no artigo 664.º, continuando nas disposições

seguintes. Não obstante, a ocorrência de danos não é um elemento caracterizador ou

constitutivo da abalroação. Se do contacto físico (se tiver sido esse o caso) entre navios

não resultou qualquer dano, nem por isso deixamos de estar perante uma abalroação:

o que acontece é que não há um pressuposto essencial para o funcionamento da

responsabilidade civil, o que não significa, obviamente, que o acontecimento não tenha

relevância noutros campos, designadamente no disciplinar. Há um ponto que deixamos

aqui alertado: o conceito de navio. O artigo 664.º do Código Comercial refere-se, de

facto, a abalroação de navios. O conceito de navio é-os dado, no Direito Interno, pelo

Decreto-Lei 201/98, 10 julho, que o define, para efeitos d diploma (Estatuto Legal do

Navio), como

«o engenho flutuante destinado à navegação por água».

Idêntica noção é-nos dada pela alínea a) do artigo 1.º do Decreto-Lei 202/98, 10 julho.

O Regulamento Geral das Capitanias não trata especificamente dos navios mas das

embarcações, que inclui as de comercio, as de pesca, de recreio, rebocadores, de

investigação, auxiliares e outras do Estado. Para efeitos deste Regulamento,

embarcação é (artigo 19.º, n.º3)

«todo o engenho ou aparelho de qualquer natureza, exceto um hidroavião

amarado, utilizado ou suscetível de ser utilizado como meio de transporte

sobre água».

Para efeitos de abalroação e respetivo regime, releva não só a ocorrência (máxime

colisão) com a própria estrutura do navio (casco) mas também com quaisquer

elementos que façam parte integrante do mesmo (artigo 1.º, n.º2 do Estatuto Legal do

Navio): assim, está também sujeito ao regime da abalroação o embate contra a âncora

e respetiva corrente presa ao navio. O princípio é o de que o regime do Código

Comercial, conquanto pensado em função da realidade dos navios mercantes, será

aplicável a todas as demais embarcações, incluindo as de pesca e as de recreio. Ficamos,

ainda assim, longe da noção de navio (vessel) das Regras de Lisboa do CMI, que envolve

as plataformas fixas («means any ship, craft, machine, rig or platform wether capable

of navigation or not, which is involved in a collision»), noção que vale para os específicos

efeitos das Regras. Quanto a um hidroavião amarado, já vimos que o mesmo não é

considerado embarcação para efeitos do RGC; contudo, ele é considerado navio para

efeitos do COLREG, conceito este que é definido (regra 3, parágrafo a)) como

«todo o veículo aquático de qualquer natureza, incluindo os veículos sem

imersão, os veículos WIG e os hidroaviões, utilizado ou suscetível de ser

utilizado como meio de transporte sobre a água».

Não haveria qualquer ilogicidade na identificação de uma incoincidência entre o

conceito de navio, para efeitos do regime da abalroação do Código Comercial e o

conceito de navio para o COLREG; não obstante, somos favoráveis a uma interpretação

ampla, que considere complexivamente todos os normativos aplicáveis, numa lógica de

sistema, propendendo-se, assim, para a aplicação do regime da abalroação também ao

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hidroavião amarado. A CB 1910 abrange a abalroação entre navios de mar ou entre

navios de mar e embarcações de navegação interior, no que Vialard vê uma

manifestação, entre outras, do «imperialismo do Direito Marítimo sobre domínios que

nada têm de marinho». A questão é, naturalmente, importante para efeitos de regime:

quando não se verifiquem os pressupostos de aplicação do Código Comercial ou da CB

1910, o regime aplicável, na falta de outro regime específico, será o regime geral da

responsabilidade civil. A jurisprudência portuguesa não tem colocado reservas à

aplicação do regime da abalroação do C.Com a situações que envolvam barcos de pesca.

Também as gruas flutuantes têm sido consideradas navios para efeitos do regime da

abalroação.

3. Âmbito de aplicação do Código Comercial e da Convenção de Bruxelas de 1910. A CLC

1992: a regulamentação da abalroação consta do Código Comercial (Artigos 664.º a

675.º), mas há que tomar em consideração a já focada Convenção de Bruxelas de 23

setembro de 1910. Há que considerar também as Convenções de Bruxelas de 10 de

maio de 1952 relativas à unificação de certas regras relativas à competência civil (uma)

e penal (outra) em matéria de abalroação. Na disciplina aplicável à abalroação, há que

considerar ainda o Regulamento Internacional para evitar Abalroamento no Mar

(COLREG). Quais os campos de aplicação dos artigos 664.º e seguintes do Código

Comercial face à Convenção de Bruxelas de 1910? Conforme vimos, a CB 1910 tem

aplicação no caso de abalroação entre navios de mar ou entre navios e embarcações

de navegação interior – independentemente das águas em que se tenha dado a

abalroação (artigo 1.º). De acordo com 12.º da CB, as suas disposições são aplicáveis a

respeito de todos os interessados, quando todos os navios de que se tratar

pertencerem aos Estados das Partes Contratantes e ainda nos demais casos previstos

nas leis nacionais. O mesmo artigo 12.º deixa entendido, no seu parágrafo 1.º, que a

respeito dos interessados pertencentes a um Estado não contratante, poderá um dos

Estados contratantes subordinar à condição de reciprocidade a aplicação das

disposições da Convenção. Ainda o artigo 12.º deixa claro (parágrafo 2.º) que quando

todos os interessados, bem como o tribunal que houver de julgar o feito, pertencerem

a um mesmo Estado, será aplicável a lei nacional e não a Convenção. Face ao Código

Comercial, há que tomar em devida conta o artigo 674.º, que distingue três situações:

a. Abalroação nos portos e águas territoriais (Ainda que os navios os sejam de

nacionalidades diferentes); a lei local (lex loci) e não a lex fori;

b. Abalroação no mar alto entre navios da mesma nacionalidade; lei da bandeira;

c. Abalroação no mar alto entre navios de nacionalidades diferentes: cada um é

obrigado nos termos d alei do seu pavilhão, não podendo receber mais do que

esta lhe conceder.

O artigo 11.º CB 1910 afasta a sua aplicação os navios de guerra e aos navios

pertencentes ao Estado e exclusivamente empregados em serviço público. Neste

domínio, importará ter em linha de conta a Convenção Internacional para a unificação de

certas regras respeitantes as imunidades dos navios do Estado (1926), cujo artigo 3.º (I),

estabelecendo, embora, a imunidade de navios do Estado (navios de guerra, yatchs do

Estado, navios de fiscalização, navios-hospital, navios auxiliares, navios de

reabastecimento e outras embarcações pertencentes a um Estado ou por ele explorados

e afetados exclusivamente, no momento da constituição do crédito, a um serviço

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governamental e não comercial) – os quais não podem ser objeto de arresto, penhora ou

apreensão judicial, nem de qualquer processo judicial in rem – prevê expressamente que

os interessados têm o direito de apresentar as suas reclamações perante os tribunais

competentes do Estado proprietário do navio ou que o explora sem que este Estado

possa prevalecer-se da sua imunidade, designadamente (1.º) nas ações relativas a

abalroação ou outros incidentes de navegação. Não podemos deixar de chamar a atenção

para a mesma, está o regime da CLC 1992, cujo artigo IV estabelece que quando ocorrer

um evento no qual estejam envolvidos dois ou mais navios e do qual resultem prejuízos

devidos à poluição, os proprietários dos navios envolvidos devem ser, sob reserva do

disposto no artigo III, solidariamente responsáveis pela totalidade do prejuízo que não

for razoavelmente divisível.

4. O regime aplicável à abalroação10:

a. Abalroação fortuita; a presunção de fortuitidade: diz o artigo 664 CCom que

«ocorrendo a abalroação de navios por acidente puramente fortuito ou devido

a força maior, não haverá direito de indemnização». Para este efeito, o caso

fortuito e o de força maior têm o mesmo valor. É claramente a lógica do

princípio casum sensit dominus, de acordo com o qual os danos serão

suportados pelo lesado – regra da suportação pela própria esfera onde

ocorram – o que, em geral, acontece quando não é identificado o lesante ou,

sendo-o, a conduta deste não é a molde a permitir a imputação. Conforme

explica Brandão Proença, tal princípio, «o primeiro na ordem natural das coisas,

não deixa deslocar da esfera do lesado os chamados danos fortuitos

relacionados com acontecimentos exteriores de tipo natural (tempestades, seca,

aluimento de terras, ciclone, etc.) ou, mais genericamente, deixa com o lesado

os danos sem um responsável». O artigo 664.º CCom é completado pelo artigo

669.º CCom: a abalroação presume-se fortuita, salvo quando tiverem sido

observados os regulamentos gerais de navegação e os especiais do porto. Ou

seja: quando não tenha havido inobservância dos regulamentos aplicáveis, o

ponto de partida é o caráter fortuito da abalroação: àquele a quem interessar,

deverá fazer a prova da culpa ocorrida. Nos casos em que tenha havido violação

de um regulamento – caso em que, repete-se, não funciona a presunção de

caso fortuito – caberá, então, àquele a quem a invocação do caso fortuito

aprouver, a respetiva invocação. O número de abalroações tidas como de caso

10 Brevíssima nota histórica: no Direito Romano, encontramos referências à figura da abalroação. Assim, nos fragmentos de Ulpiano, é clara a aplicação da responsabilidade aquiliana quando a abalroação fosse culposa. Quando a abalroação resultasse de tempestade ou de outra força maior, o navio abalroado não tinha já a actio legis Aquiliae contra o proprietário do navio abalroador. Cumpre destacar, entre outras fontes, o Consulat del Mar, apesar de só regular a abalroação no interior dos portos. Considera Bissaldo que, com o Consulat del Mar, é dado um passo significativo no sentido do conceito mais moderno da repartição do dano, não se ficando pelo judicium rusticorum de origem nórdica da repartição em partes iguais: a tarefa da divisão é cometida a peritos, de forma a que sejam tomadas em devia conta as circunstâncias do caso. A matéria da abordagem era regulada na Ordennance de Colbert de 1681, que estabelecia

«No caso de abordagem de Navios o damno será pago igualmente pelos Navios, que a tiverem feito, e soffrido, seja em viagem, seja em bahia ou porto».

Acrescentava, ainda: «Se todavia a abordagem tiver sido feita por falta de hum dos Mestres, o damno será reparado por quele que o tiver causado».

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fortuito é diminuto, graças ao facto de os navios possuírem características

técnicas especiais e de poderem contar com ajudas à navegação. O regime do

artigo 2.º CB 1910 coincide, no que à abalroação fortuita respeita, com o

regime do artigo 664.º CCom: se a abalroação tiver sido fortuita ou devido a

algum caso de força maior, os danos serão suportados pelos navios que os

houverem sofrido. Aparentemente, a coincidência não é total, já que o artigo

2.º CB 1910 só se preocupa, literalmente, com os danos nos navios.

Diversamente, a redação do artigo 664.º CCom é mais abrangente, uma vez

que estende o princípio casum sensit dominus a seca expressão «não haverá

direito a indemnização« não deixa dúvidas de que a previsão cobre, para além

dos navios, também as cargas e as pessoas. Parece-nos, porém, que estas

diferenças de redação não correspondem a diferenças de regime. O §2.º do

artigo 2.º CB 1910 pode suscitar, porém, alguma perplexidade, ao estabelecer

que «esta disposição é aplicável ao caso de estarem fundeados os navios ou só

um deles, na ocasião do sinistro». A dúvida que se poderia suscitar, face à

versão em língua portuguesa, é sobre se o regime estabelecido no §1.º só tem

aplicação nos casos em que um ou ambos os navios estejam fundeados; a ser

assim, nos casos em que a colisão ocorra no alto mar, sendo a mesma acidental

ou provocada por força maior, não haveria regime específico na Convenção. A

dúvida não tem, porém, fundamento, conforme se pode ver, claramente,

consultando a versão em língua inglesa ou em língua francesa: o que é

estabelecido no §2.º é que o regime consagrado no §1.º é aplicável ainda que

(nowithsanding the fact; Cette disposition reste applicable dans le cas) os navios

– ou só um deles – estejam fundeados. Não poderia, alías, ser de outro modo.

b. Abalroação culposa

i. Culpa de um dos navios:

1. Regime do Código Comercial e da Convenção de Bruxelas de

1910: de acordo com o artigo 665.º CCom, se a abalroação for

causada por culpa de um dos navios, os prejuízos sofridos

serão suportados pelo navio abalroador. O regime do artigo

665.º CCom, consagrado também no artigo 3.º CB 1910, não

causa nenhuma perplexidade, sendo claramente explicável à

luz da responsabilidade aquiliana, cujos requisitos constam do

artigo 483.º CC – regime que se aplica na integralidade, tendo

de considerar-se, depois, o disposto no artigo 562.º e

seguintes CC, em relação à obrigação de indemnização. Refere

a doutrina que a culpa tanto pode resultar de ação como de

omissão. Melhor será dizer que a apreciação da culpa deverá

ser feita independentemente de o facto se ter traduzido numa

ação ou numa omissão. Aliás, a referência quer à ação quer à

omissão surge feita na doutrina em sede do requisito facto

voluntário do agente e não a propósito da culpa que é,

analiticamente, um posterius. A culpa que pode estar em causa

tanto se pode traduzir em dolo quanto em negligência,

admitindo-se – no caso de negligência consciente – a aplicação

do regime do artigo 494.º CC: a indemnização, pautada que é

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pela teoria da diferença, pode ser fixada em quantidade

inferior aos danos, limitação essa que aproveita também ao

proprietário ou armador, objetivamente responsável. A

referência a abalroações por culpa dos navios é usual e tem

mesmo expressa previsão na letra dos artigos 665.º e 666.º

CCom, bem como nos artigos 3.º e 4.º CB 1910. Não sendo o

navio pessoa jurídica, a expressão não pode deixar de ser

entendida em sentido metafórico. A culpa que está em causa

tanto pode ser do capitão ou de outro membro da tripulação,

como , v.g., do piloto ou mesmo de alguém (como o

proprietário ou o armador) que não esteja, no momento do

sinistro, em condições efetivas – operacionais – de determinar

a navegação e rumo do navio ou as suas manobras. Sendo

plúrimas as situações possíveis de imputação subjetiva,

dobradas ou não por imputação objetiva, como a do artigo 4.º

DL 202/98, 10 julho, a expressão culpa do navio acaba por ser

fortemente sugestiva e, nessa medida, positiva. A

consideração da culpa do navio passa por um juízo de cotejo

ou confronto com aquele que é exigido a um capitão, a um

piloto ou a um profissional marítimo competente. A Regra 2.ª

do COLREG faz precisamente apelo à experiência normal do

marinheiro e às circunstâncias especiais de cada caso:

nenhuma disposição das Regras servirá para ilibar qualquer

navio ou seu proprietário, comandante ou tripulação das

consequências de qualquer negligência quanto à aplicação das

Regras ou quanto a qualquer precaução que a experiência

normal de marinheiro ou as circunstâncias especiais do caso

aconselhem a tomar.

2. Presunção de culpa? O artigo 6.º - II CB 1910 é expresso no

sentido da inexistência de uma presunção de culpa quanto à

responsabilidade por abalroação11. A questão que se coloca é

a de saber se, no Direito interno, face ao regime específico do

Código Comercial e ao geral do Código Civil, é possível

identificar presunções de culpa, como ocorre, por exemplo, no

artigo 493.º, n.º2 CC. No que respeita ao Código Comercial, a

questão centrar-se-á no já referido artigo 669.º que, como

vimos, estabelece uma presunção de fortuitidade, aplicável

apenas nos casos em que não tenha havido violação dos

regulamento. Pode extrair-se do mesmo artigo 669.º uma

presunção de culpa aplicável apenas nos casos em que não

11 A origem da regra é situada na prática jurídica inglesa anterior à CB 1910 que se pretendia afastar: estabelecia que quando um navio infringia uma regra de navegação imediatamente antes da abalroação presumia-se culpado, podendo, porém, provar que as circunstâncias do caso exigiam que infringisse a regra. Referem Gabaldón Garcia / Ruiz Soroa, que o que era verdadeiramente presumido era a relação de causalidade entre a infração e o resultado danoso; mais entendem que esta presunção é a que é tida em vista no artigo 6.º CB 1910, sendo necessário demonstrar que a infração cometida teve relevância causal na abalroação, já que entre a infração e o sinistro pode ter havido infração do outro navio que interrompa o nexo de causalidade ou pode tratar-se de culpa sine efectu.

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tenha havido violação dos regulamentos. Pode extrair-se do

mesmo artigo 669.º uma presunção de culpa aplicável aos

casos em que tenha havido violação de um regulamento da

navegação ou de um porto? Não vemos tal conclusão como

possível: o estabelecimento de uma presunção de culpa

suporia, pela sua excecionalidade face ao regime geral, uma

específica e inequívoca previsão legal, o que, no nosso

entender, não acontece no artigo 669.º CCom. A dúvida está

em saber se a navegação marítima constitui uma atividade

perigosa para efeitos do disposto no artigo 493.º, n.º2 CC,

disposição na qual tem sido identificado um nível mais objetivo

de responsabilização face ao que acontece nas presunções

paralelas (v.g. do artigo 493.º, n.º1 CC). Na doutrina, Antunes

Varela não tem dúvidas em considerar a navegação marítima

– tal qual, aliás, a aérea – como atividade perigosa. Na

apreciação, pela jurisprudência, do problema, o STJ, no

Acórdão 29/11/1977, onde uma grua grua flutuante estava

amarrada num dos cais de Lisboa quando, devido ao vento que

soprava, partiu as amarras e subiu o Tejo, abalroando,

sucessivamente, vários navios, entendeu carecer de

fundamento a pretensão de que o artigo 669.º CCom teria sido

revogado pelo artigo 493.º, n.º2 CC, uma vez que a lei geral

não revoga a lei especial, não estando revelada intenção

inequívoca do legislador no sentido da revogação, conforme

impõe o artigo 7.º, n.º3 CC. Para o STJ, «no que respeita à

presunção da natureza fortuita do abalroamento, prevista

especialmente no citado artigo 669.º, nada revela que o

legislador tivesse pretendido substituí-la pela presunção

oposta da culpa do causador do dano, estabelecida no n.º2 do

citado artigo 493.º». No Acórdão 30/11/2004, a situação que

originou a formulação do pedido de indemnização foi uma

colisão entre duas motos de água, que integram o conceito de

embarcações de recreio, par efeitos do Regulamento da

Náutica de Recreio. O STJ equacionou a aplicação, ao caso, da

CB 1910 ou das disposições do CCom em sede de abalroação,

tendo afastado a aplicação daquela, por força do seu artigo

12.º - II, §2.º, que manda aplicar a lei nacional quando todos

os interessados, bem como o tribunal que houver de julgar o

feito, pertencerem ao mesmo Estado. Pese embora considerar

pacífica tal aplicação, o STJ afastou-se claramente da doutrina

que desenvolvera no acórdão anteriormente mencionado, ao

considerar aplicável à navegação com motos de água a

presunção de culpa do artigo 493.º, n.º2 CC: «atendendo às

características das motos de água, de modo particular à sua

potência e rapidez, ao tipo de contracto com a água quando

em circulação e à grande mobilidade, trata-se de meio em que

os perigos que genericamente a navegação comporta se

encontram em grau fortemente elevado; reflexo disso ou não,

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o certo é ainda o Regulamento da Náutica de Recreio ter

disposto a seu respeito de limitações que para as outras

Embarcações de Recreio condicionou menos (artigos 49.º e

50.º) deve considerar-se, como bem qualifica a sentença, como

atividade perigosa, pela sua própria natureza, a prática

desportiva consistente na sua circulação, o que torna aplicável

o disposto no artigo 493.º, n.º2 CC». Uma vez que, no caso, a

colisão se dera entre duas motos de água, o STJ entendeu

aplicável a presunção de culpa a cada um dos intervenientes,

considerando as culpas equivalentes, já que nenhum dos

intervenientes lograra ilidir a respetiva presunção de culpa. A

importância deste aresto do STE decorre, por um lado, do

aparente reconhecimento da navegação como atividade

perigosa («os perigos que genericamente a navegação

comporta») e, por outro, da total desconsideração da anterior

argumentação do mesmo STJ, no acórdão 29/11/1997,

argumentação essa centrada na especialidade do regime do

artigo 664.º CCom face ao regime da responsabilidade do CC,

designadamente o seu artigo 493.º, n.º2. Considerando,

embora, aplicável ao caso o regime da abalroação do Código

Comercial, o STJ não logrou explicar – nem o tentou, aliás – a

desconsideração a que votou o regime constante do artigo

664.º e seguintes, designadamente o artigo 669.º que alberga

uma presunção de fortuitidade. No nosso entender, como

ponto de partida e independentemente das situações de

abalroação, se questionarmos se a atividade de navegação

marítima constitui uma atividade perigosa, não podemos

deixar de deixar expressa a nossa inclinação nesse sentido:

quer em função da sua natureza quer em função dos meios

utilizados, a atividade de navegação marítima é uma atividade

que envolve um especial perigo de produção de danos,

cabendo àquele que a exerce demonstrar que empregou todas

as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os

prevenir. Somos, assim, favoráveis ao enquadramento da

atividade de navegação marítima no âmbito da previsão do

artigo 493.º, n.º2 CC. Simplesmente, no que à abalroação

concerne, existe um regime especial estabelecido a nível

internacional na CB 1910 e, a nível interno, no artigo 664.º e

seguintes do Código Comercial, regime esse que afasta o

regime do Código Civil. Diversamente do regime geral de

presunção de culpa, que flui do artigo 493.º, n.º2, no campo

da abalroação o regime regra é, antes, o da presunção de caso

fortuito, do artigo 669.º CCom, conquanto a mesma só seja

aplicável aos casos em que tenham sido observados os

regulamentos gerais da navegação e os especiais do porto.

Assim, há uma clara contraposição de regime entre uma

presunção de culpa e um presunção de fortuitidade. Assim

sendo, consideramos aplicável o regime geral da presunção de

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culpa do artigo 493.º, n.º2 CC nos casos que não devam ser

considerados como abalroação para o Código Comercial. Uma

objeção se poderia, nesta sede, suscita: a de saber e não será

aplicável à abalroação o disposto no artigo 5.º, n.º1 DL 384/99,

23 setembro, que onera o capitão, comissário do armador,

com uma presunção de culpa – presunção essa que ele pode

ilidir, podendo também fazer atuar a relevância negativa da

causa virtual ou hipotética. Julgamos, porém, que essa

presunção – que oneraria, de reto, os capitães dos navios

envolvidos – não atua no campo específico da abalroação,

atenta a já referida existência de um regime especial. Face ao

exposto diríamos que na colisão de uma moto de água contra

um banhista funcionará a presunção de culpa do artigo 493.º,

n.º2 CC, mas já não a abalroação entre duas embarcações,

caso em que o regime geral do Código Civil é prejudicado pelo

regime especial do Código Comercial. Resta, porém, como

campo de indagação, o da existência de presunções de culpa

derivadas das regras da experiência.

3. Presunção com base no id quod plerumque accidit: a doutrina

tem aludido, quer face ao Código Comercial quer face à CB

1910, a ressunções de facto, baseadas na experiência, lendo-

se em Azevedo Matos: «o vício próprio do navio abalroador, a

falta de luzes, a amarragem em local proibido, a ausência de

sinais indicando o rumo, a omissão de sinais fónicos, a

velocidade excessiva em nevoeiro, a falta de assistência em

seguida ao choque, etc., são presunções de culpa». Lê-se, por

sua vez, em Joaquim Crisóstomo: «o capitão que for menos

zeloso e proceder com negligência, deixando de observar os

regulamentos marítimos, torna-se responsável por todos os

prejuízos que causar, em virtude de qualquer falta,

irregularidade, ou imprevidência que cometer». Como é sabido,

as presunções naturais, simples ou hominis, a que o artigo

351.º CC chama judiciais, são provas de primeira aparência

(prima facie), baseadas nas regras da experiência, que

correspondem à res ipsa loquitur do Common law. O

funcionamento da presunção é assim explicado por Menezes

Cordeiro: «O juiz, na base do id quod plerumque accidit (o que

normalmente sucede) ou prima facie (na primeira aparência)

infere conexões normais ou sequências típicas de factos». Lê-

se, por sua vez, em Calvão da Silva: «O juiz, no seu prudente

arbítrio, deduz de facto provado (…) a culpa (…) porque o quod

plerumque accidit ou experiência comum (Common knowledge)

lhe ensina que aquele é habitualmente indício desta, que

normalmente entre aquele e esta há conexão ou ligação, que

geralmente aquele não ocorre(ria) na ausência desta». Adverte,

finalmente, Carneiro da Frada que a base da experiência usual

«não se reduz meramente à (subjetiva) do julgador, antes

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abrange aquela que é comum a uma comunidade». Quanto à

neutralização da prova prima facie, considera Calvão da Silva

que a mesma se basta com «simples prova contrária, que torne

incerta a sua existência». Há um conjunto de regras práticas

que funcionam como presunções de facto. Trata-se, como

dizem, Gabaldón Garcia / Ruiz Soroa, de apresentação de

factos que, ligados a certas regras da experiência, permitem

suspeitar que a culpa é a de um dos navios. Quanto à regra

designada por last oportunity rule – de acordo com a qual a

culpa recairá sobre o navio que teve a última oportunidade

para evitar o choque e que, por infringir uma regra de

navegação, não a conseguiu – consideram Gabaldón Garcia /

Ruiz soroa que se trata de uma regra «muy practicona e

grosera, que tinde a ser abandonada modernamente, a favor

de un análisis no cronológico sino causativo de las infracciones

cometidas por cada buque». No acórdão 13/11/1970, o STJ

concluiu pela existência de culpa, «baseada em regra de

experiência e não em norma de direito». No Acórdão

29/11/1970 (caso da grua flutuante), o STJ teve de se

pronunciar sobre se a inobservância de regulamentos gerais da

navegação ou dos especiais do porto teriam o efeito de o

abalroador se dever supor culpado numa lógica de presunção

de facto. O STJ admitiu que tal conclusão pudesse ser possível

mas afastou-a, no caso, por entender que a mesma envolvia

matéria de facto, subtraída aos poderes cognitivos do tribunal

de revista: «esta solução funda-se na jurisprudência pacífica de

que envolve matéria de facto apurar a violação das regras

gerais de prudência em que se funde a obrigação de

indemnizar». O escrupuloso cumprimento dos regulamentos

pode não afastar a culpa do navio; adverte-o, de resto, a Regra

2.b do COLREG, de acordo com a qual, na interpretação e

aplicação das regras devem ser tidos em conta todos os

perigos da navegação e os riscos de abalroamento, bem como

as circunstâncias particulares, nomeadamente as limitações de

utilização dos navios em causa, que podem tornar necessário

o não cumprimento exato das Regras para evitar um perigo

imediato. As Regras nem sempre são suficientemente precisas

de modo a permitirem conclusões seguras em sede de culpa.

Observa e bem Azevedo Matos que o respeito escrupuloso

pelos regulamentos internacionais e locais não afasta

automaticamente a responsabilidade do navio: «O

abalroamento pode ser culposo se o capitão, observando todos

os regulamentos, não precedeu, contudo, a manobra,

conforme a experiência marítima o aconselhar e conforme as

circunstâncias, para evitar a colisão ou atenuá-la, se o podia

fazer». Há, por outro lado, casos em que tem sido entendido

que a realização de uma manobra por um navio em termos

contrário a um regulamento não envolverá a culpa da sua

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parte; assim acontece nos casos de manobras in extremis ou,

digamos, “em estado de necessidade – in agony of collision.

Como diz Azevedo Matos, a manobra in agony of collision é a

feita em presença de perigo iminente de abalroamento: «é

princípio admitido, em geral, que quando um barco comete

erro de manobra, no instante preciso em que a colisão está

iminente, por causa de ato culposo de outro, a

responsabilidade dessa falsa manobra recai sobre este último».

Ainda segundo este autor, «a manobra de última hora não é só

aquela que é feita quando a abalroação é inevitável, mas

também a praticada quando é razoável supor que o

abalroamento é por tal forma iminente que o perigo é palpável

e ela se impõe».

4. Culpa e mau estado de navegabilidade do navio: o caráter

culposo da abalroação pode decorrer do mau estado de

navegabilidade do navio. Ou seja, ainda que não haja culpa do

capitão, se o navio estiver em mau estado de navegabilidade,

tal situação pode conduzir, em concreto, a um juízo de culpa.

Lê-se em Azevedo Matos que «pode haver abalroação culposa,

mesmo sem culpa do capitão, quando o navio estiver em mau

estado de navegabilidade, não obedecer rapidamente aos

comandos, tornar morosa e difícil a manobra, quer pelo mau

estado das máquinas, dos aparelhos de governo, quer por

outro vício próprio, cabendo então a responsabilidade ao

armador».

ii. Concurso de culpas dos navios envolvidos: o artigo 66.º CCom prevê que,

havendo culpa de ambos os navios, se forma um capital dos prejuízos

sofridos, o qual será indemnizado pelos respetivos navios, em

proporção à gravidade da culpa de cada um. O artigo 666.º reporta-se

literalmente ao caso de culpa de ambos os navios mas o mesmo regime

é, obviamente, de aplicar no caso de envolvimento culposo de mais do

que dois. As faltas de cada um dos artigos não precisam de ser do

mesmo tipo (cada um violou uma específica e diversa norma

regulamentar) nem precisam ser simultâneas, sem prejuízo de poder

relevar o tempo decorrido, em sede de graduação da culpa. A

determinação da proporção da gravidade da culpa de cada navio é uma

questão delicada que pertence ao tribunal fixar, numa operação de

algum modo semelhante Àquela que ocorre em sede de colisão de

veículos (artigo 506.º CC). E se não for possível atribuir a proporção da

culpa de cada um? Entre nós, Azevedo Matos considera que os danos

se repartem por metade, invocando o próprio artigo 666.º. Parece-nos

avisada a posição de Azevedo Matos, que é aqual que corresponde aos

princípios gerais e que está também consagrada no artigo 4.º CB.

Estamos, naturalmente, a pressupor que há culpa de ambos os navios;

se assim não for, então teremos o caminho aberto para eventual

aplicação do regime do artigo 668.º. Quanto aos prejuízos causados a

terceiros, máxime carregadores, eles estão indicados na previsão do

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artigo 666.º CCom: cada navio responderá na proporção da gravidade

da culpa respetiva, constituindo o regime do artigo 666.º CCom um

regime especial em relação ao regime geral do artigo 497.º CC, do que

resultaria a responsabilidade solidária das «várias pessoas responsáveis

pelos danos». Posição diferente era sustentada por Cunha Gonçalves

para quem, relativamente às cargas e às pessoas que estavam a bordo,

os navios respondem solidariamente pela totalidade dos prejuízos

«como no caso de ser duvidosa a culpa, aplicando-se por analogia a 2.ª

parte do artigo 668.º». A posição defendida por Cunha Gonçalves não

nos parece sustentável: o artigo 666.º CCom tem um âmbito de

aplicação próprio, diferente do traçado no artigo 668.º para a

abalroação duvidosa, estabelecendo um regime próprio, onde não é

possível identificar uma lacuna cuja integração permita suscitar a

aplicação do regime do artigo 668.º - regime que, de resto, pressupõe

a inexistência ou, pelo menos, o não apuramento de culpa, que é um

pressuposto da aplicação do artigo 666.º. Aliás, é bem evidente a

diferença de redação entre os artigos 666.º e 668.º CCom, com o

segundo a consagrar um regime de solidariedade, mas num quadro

claramente diferente do do âmbito de aplicação do primeiro. O artigo

666.º CCom consagra, assim, um regime de parciariedade em sede de

responsabilidade, face, v.g., aos carregadores 12 . Vejamos agora o

regime do artigo 4.º CB 1910. De acordo com o §1.º, sendo a culpa

comum, a responsabilidade de cada um dos navios é proporcional à

gravidade das culpas respetivas. Contudo, se em face do caso, não for

possível estabelecer-se a proporção, a responsabilidade é partilhada

em partes iguais; idêntico regime é aplicável se as culpas se mostrarem

12 Para tentar obter ressarcimento integral pelos danos causados à mercadoria transportada no navio A, culpado em 70%, os carregadores respetivos terão de demandar também o navio B, culpado em 30%, já que, de outro modo, apenas lograrão obter 70% da indemnização devida. O problema deste regime é que o transportador A pode, em função do regime aplicável, ter uma causa de exoneração de responsabilidade, v.g., por a abalroação estar abrangida no elenco dos excepted perils do artigo 4.º, n.º2 CB 1924, relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimentos de carga, circunstância que determina, pelo menos prima facie, que o carregador apenas poderá exigir indemnização ao navio B, indemnização essa que, pautando-se pelo regime da parciariedade e não da solidariedade, será determinada pela medida da culpa, o que significa que, no exemplo referido, estará limitada a 30% dos danos apurados. Ou seja, estamos perante um claro concurso da responsabilidade extra obrigacional com as regras da responsabilidade obrigacional – problema cadente em sede geral de responsabilidade civil – problema que, in casu, parece dever ser resolvido, no que concerne às relações entre o carregador e o seu navio, pela prevalência do regime do transporte, em detrimento do funcionamento da responsabilidade extra obrigacional: não faria, de facto, sentido que o navio A tivesse que satisfizer 70% do valor da indemnização para, depois – e só depois, numa lógica de solve et repete, fazer atuar a exclusão de responsabilidade por falta náutica, face ao regime da CB 1924. Ora, precisamente para evitar que um navio que, à partida, poderia excecionar a exclusão da sua responsabilidade, seja, depois, responsável, é que quer nas cartas-partidas quer nos conhecimentos de embarque é amiúde a cláusula both to blame colision, que permite ao navio transportador exigir, em regresso (sucessivamente, será um segundo regresso, só que o sujeito ativo do segundo é o sujeito passivo do primeiro) ao carregador a indemnização que tenha tido de satisfazer ao outro navio interveniente na abalroação. Como explica Carbone, o escopo da cláusula é evitar para o armador um ónus económico não devido com base no contrato de transporte, no caso em que a lei reguladora da ação extracontratual contra o outro navio preveja a responsabilidade solidária do dois armadores em relação aos proprietários das mercadorias.

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equivalentes. De acordo com o §2.º, os danos causados (aos navios,

aos seus carregamentos, aos efeitos ou outros bens das tripulações,

dos passageiros ou demais pessoas que se encontrem a bordo) são

suportados pelos navios culpados na proporção referida no §1.º, sem

solidariedade relativamente a terceiros. Podemos dizer, assim, que até

ao seu §2.º inclusive, o regime do artigo 4.º CB 1910 consagra, tal como

no artigo 66.º CCom, um regime de parciariedade. Esta parciariedade

é, porem, excecionada no §3.º, no sentido da solidariedade, quando

haja danos pessoais (morte ou ferimentos), sem prejuízo do direito de

regresso daquele que haja pago uma quantia superior àquela que

deveria suportar, de acordo com o critério do §1.º do mesmo artigo (a

propósito, também o artigo 7.º, §2.º, no que concerne à prescrição).

Note-se, porém, que haverá que considerar o regime da Convenção de

Bruxelas de 10 de outubro de 1957, sobre responsabilidade de

proprietários de navios de alto mar. O §4.º, finalmente, comete às

legislações nacionais a determinação, no que concerne ao regresso, do

alcance e efeitos das disposições contratuais ou legais que limitem a

responsabilidade dos proprietários dos navios para com as pessoas que

se encontram a bordo. Ressalta, portanto, do regime do artigo 4.º CB

1910 a constatação de que, com exceção das situações de danos e

ferimentos a terceiros – nas quais existe uma responsabilidade

solidária dos navios envolvidos na abalroação – o regime da CB é

harmónico com o do artigo 66.º CCom. Também neste campo se

suscitam as questões relativas ao concurso de responsabilidade extra

obrigacional com a obrigacional, sendo que, no âmbito de aplicação da

Convenção, o artigo 10.º dá força à posição acima adotada no âmbito

interno:

«Sob reserva de ulteriores convenções, as presentes

disposições não alteraram as regras sobre limitação de

responsabilidade dos proprietários de navios, tais quais se

acham estabelecidas em cada país, nem tão pouco as

obrigações resultantes do contrato de transporte ou de

quaisquer outros contratos».

c. Abalroação duvidosa: o artigo 668.º CCom permite autonomizar, ao lado dos

tipos de abalroação já referidos, ainda a abalroação duvidosa, a qual acontece,

de acordo com a letra do artigo, «havendo dúvida sobre qual dos navios deu

causa à abalroação». Se for esse o caso, determina do artigo 668.º que cada

navio suporta os prejuízos que sofreu, acrescentando, porém, que todos

respondem solidariamente pelos prejuízos causados às cargas e às pessoas.

Importa, em primeiro lugar, frisar que a própria delimitação do conceito de

abalroação duvidosa é, digamos, duvidosa, sustentando Joaquim Crisóstomo

que a mesma acontece quando há «impossibilidade de se determinar qual dos

dois navios foi o culpado», enquanto que Azevedo de Matos entende que é

aquela «cuja causa é inescrutável». A autonomização da abalroação duvidosa

ao lado da abalroação fortuita e da abalroação culposa não é comum nas

legislações, não sendo por acaso que o artigo 2.º CB 1910 dá aos casos em que

«houver dúvidas sobre as causas da abalroação» exatamente o mesmo

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tratamento que dá aos casos de abalroação fortuita, ou seja: os danos são

suportados pelos navios que os houverem sofrido. A doutrina portuguesa é algo

nebulosa e até contraditória sobre a interpretação a dar ao artigo 668.º: este

não tem aplicação, parece-nos, no caso de haver culpa de ambos os navios e

não se saber ou poder determinar a proporção das culpas em causa. Nesse caso,

a lógica que parece resultar do artigo 666.º é que a proporção é tida por igual

(é essa também, como vimos, a lógica do artigo 4.º CB). A primeira dúvida que

se pode suscitar é a de saber se, a nível de regime, há alguma diferença entre

a abalroação duvidosa e abalroação fortuita, na qual, como vimos, cada navio

suporta os seus próprios danos. A diferença de regimes parece-nos clara:

enquanto que na abalroação fortuita não há lugar a qualquer indemnização

quer aos navios quer às cargas quer ainda às pessoas, na abalroação duvidosa

é feita uma cisão a nível de regime: quanto aos navios funciona a lógica casum

sensit dominus mas quanto às cargas e às pessoas é estabelecido um regime de

responsabilidade solidaria. Ora, é precisamente a circunstância da

responsabilidade solidária consagrada no artigo 668.º que impõe a

autonomização, no direito interno, da abalroação duvidosa, não podendo,

porém, deixar de se reconhecer que a mesma tem um difícil campo de

delimitação face à abalroação fortuita. O critério para determinar o caráter

duvidoso da abalroação não pode, no nosso entender, deixar de ser o seguinte:

a abalroação duvidosa é aquela em que não foi possível apurar o caráter

fortuito ou culposo. O regime da abalroação duvidosa acaba, assim, por ser

subsidiário em relação ao da abalroação fortuita e ao da balroação culposa.

Afastamo-nos, deste modo, da posição de Cunha Gonçalves, para quem «a

espécie jurídica de que se trata agora é a de haver certeza de que a abalroação

foi culposa, ou não foi acidental, mas não se ter conseguido apurar se a culpa

foi comum ou a qual dos navios é imputável». O artigo 668.º prevê, nos casos

em que tenha aplicação indemnização pelos prejuízos causados às cargas e às

pessoas, funcionando em termos de solidariedade. Independentemente das

reservas que possam ser colocadas à solução legal, a mesma é incontornável,

não podendo, contudo, deixar de se assimilar o facto de se verificarem, nesta

sede, dificuldades similares àquelas que vimos supra, em sede de abalroação

culposa, no que respeita às responsabilidades de cada navio interveniente em

relação às cargas que transporta.

5. O regime aplicável às pessoas transportadas em virtude de contrato de transporte de

passageiros por mar: limitando-nos ao Direito material português, importa, em primeiro

lugar, atentar ao regime base da responsabilidade por danos pessoais, constante do

artigo 14.º DL 349/86, 17 outubro, diploma que regula o contrato de transporte de

passageiros por mar. Diversamente do que a isolada redação do n.º1 do artigo poderia

fazer supor, o artigo 14.º DL 349/86 consagra, a final, um regime típico de

responsabilidade extra obrigacional, quando o que seria ictu oculi lógico seria o da

presunção de culpa, consagrado, genericamente, no artigo 799.º, n.º1 CC, em sede de

responsabilidade obrigacional. De acordo com o artigo 14.º, n.º1, o transportador

«responde pelos danos que o passageiro sofra no navio, durante a viagem, e ainda pelos

que ocorram desde o início das operações de embarque até ao fim das operações de

desembarque, quer nos portos de origem, quer nos portos de escala». À primeira vista,

o artigo 14.º, n.º1 albergaria uma situação de presunção de culpa – plenamente

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consentânea com o facto de nos situarmos no âmbito de uma situação de origem

contratual – se não mesmo perante uma responsabilização objetiva. Contudo, o n.º2

do artigo refreia qualquer dessas interpretações, cometendo ao lesado – como nos

termos gerais da responsabilidade aquiliana (artigo 487.º, n.º1 CC9 – o ónus de provar

a culpa do transportador ou dos seus auxiliares. Há, no regime do artigo 14.º, uma

cadência interessante: admite-se a responsabilidade do transportador, se o lesado

demonstrar que o navio não estava em estado de navegabilidade convenientemente

armado, equipado e aprovisionado para a viagem; a partir daqui, inverte-se o ónus da

prova: o transportador exonera-se de responsabilidade – no fundo, ilide a presunção

de culpa associada à situação do navio – se fizer a prova de que procedeu de modo

adequado e diligente à observância das condições de segurança impostas pelos usos,

regulamentos e convenções internacionais. O artigo 15.º do mesmo DL 349/86 introduz

aquilo que podemos considerar um regime especial quando os danos no passageiro

sejam consequência de um dos seguintes acontecimentos de mar: naufrágio,

abalroação, explosão ou incêndio do navio. Nestes casos, o artigo 15.º, n.º1 consagra a

responsabilidade do transportador, em termos similares aos da redação do artigo 14.º,

n.º1, para os danos pessoais em geral. Contudo, numa solução diversa da constante do

artigo 14.º, n.º2, o artigo 15.º, n.º2, ao estabelecer que incumbe ao transportador

provar que os acontecimentos de mar não resultaram de culpa sua ou dos seus

auxiliares, deixa claro que estamos perante uma presunção legal de culpa, consentânea

com a estabelecida no artigo 799.º, n.º1 CC. A presunção de culpa consagrada no artigo

15.º, é, no que tange concretamente à matéria da abalroação – sendo que a conclusão

valerá também para os demais acontecimentos de mar referidos no artigo 15.º, n.º1 –

uma presunção interna, circunscrita às relações entre o transportador e o passageiro13.

6. Outras questões em sede de responsabilidade civil:

a. Verificação dos requisitos gerais da responsabilidade aquiliana: conforme

resulta do que vimos dizendo, a ocorrência de abalroação não determina,

necessariamente, o funcionamento do instituto da responsabilidade civil: para

que tal aconteça, é necessário que ocorra a cumulativa verificação dos diversos

requisitos ou pressupostos que a doutrina tem vindo a identificar em sede de

responsabilidade aquiliana. No que respeita ao cálculo dos danos e, logo, da

indemnização, há que considerar o regime do artigo 562.º e seguintes CC, no

que tange à obrigação de indemnização. Em decorrência da aplicação dessas

regras, tanto relevam os danos emergentes quanto os lucros cessantes, quer

em relação ao navio quer em relação à carga – tudo sem prejuízo da limitação

de indemnização que seja aplicável. Sendo possível a reparação, haverá que

considerar «o curso da reparação, despesas de assistência, reboque e salvação,

descarga, armazenagem, entrada e estadia em doca, peritagens,

reclassificação, salários e sustento da tripulação». Quanto aos lucros cessantes,

há que considerar o frete e a imobilização do navio. No caso de navios de pesca

o valor da indemnização será fixado em função das campanhas. Em aplicação

das regras gerais, haverá que considerar o regime da compensatio lucri cum

damno. O artigo 670.º CCom contém uma presunção (iuris tantum) quanto à

13 Não faria sentido, mais especificamente, sentido que o navio B, que não transporta passageiros, seja brindado com uma presunção de culpa do navio A, no que respeita á abalroação ocorrida entre ambos, pelo simples facto de este último transportar passageiros.

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dimensão do dano: se um navio avariado por abalroação de perde quando

busca porto de arribada para se consertar, presume-se ter sido a perda

resultante da abalroação. No fundo, o que o artigo 670.º estabelece é uma

presunção de nexo de causalidade – relevante para efeitos de responsabilidade

civil – entre o facto ou evento da abalroação e o dano subsequente ou sucessivo

da perda do navio. Àquele a quem a presunção não interessar, caberá o ónus

de a ilidir, demonstrando a ocorrência de uma situação ou evento idóneo ao

efeito de quebrar o nexo de causalidade. Uma situação objeto de alerta é a do

naufrágio provocado, tendo em vista a obtenção de uma indemnização

superior. Quanto à carga, ao seu valor, à partida seria aplicável o critério do

artigo 566.º, n.º2 CC – teoria da diferença – critério esse que, aparentemente,

se sobreporia, anulando-a, à polémica de que dá nota, por exemplo,

Vasconcelos Esteves: enquanto que para este autor, que invoca o ensinamento

de Rodière, o cálculo da indemnização deverá ser feito em função do preço das

mercadorias à data do julgamento – admitindo, porém, que, no caso de a vítima

ter substituído ou reparado as mercadorias perdidas ou avariadas, seja

considerado o preço pago nessa altura – já para Azevedo Matos a indemnização

deveria ser calculada com base no valor das coisas no porto de destino, no dia

da chegada ou daquele em que deveriam chegar. A consideração do valor das

mercadorias à data do julgamento conforme propõe Vasconcelos Esteves,

parece dar relevo ao disposto no artigo 566.º, n.º2 CC, ou seja «à data mais

recente que puder ser atendida pelo tribunal», imposta pela teoria da diferença.

Contudo, essa aparência não corresponde à realidade, já que a consideração

de tal data é em relação à «situação patrimonial do lesado», que não em

relação ao valor dos bens atingidos14. Ora, tratando-se de avarias na carga, a

dúvida está em saber se releva o valor da mesma no momento da abalroação

ou o valor que teria no porto de destino, conforme propõe Azevedo Matos.

Pensamos que alógica da expedição marítima impõe esta última solução, não

sendo por acaso que a mesma é expressamente consagrada nos lugares

paralelos constituídos pelo artigo 662.º CCom, em matéria de arribadas

forçadas e pelo artigo 11 DL 384/99, 23 setembro, no que concerne à

responsabilidade pelas coisas utilizadas a bordo. Advirta-se, porém, que não há,

neste particular, nenhuma afronta à teoria da diferença consagrada no artigo

566.º, n.º2 CC, teoria essa que é estabelecida em função, como vimos, do

apuramento do dano patrimonial e não do dano real. Assim, se o navio

abalroador, responsável pela abalroação, não indemnizar, em devido tempo, o

dono das mercadorias transportadas no navio abalroado, a medida da

indemnização é calculada de acordo com a teoria da diferença. Importa ainda

chamar a atenção para um ponto de particular importância: o facto de poder

haver regimes concretos de responsabilidade aquiliana numa mesma

abalroação em relação a sujeitos colocados, à partida, em situações idênticas15.

14 Dizendo de outra forma, o artigo 566.º, n.º2 estabelece uma diferença entre a situação patrimonial do lesado em dois momentos: um real – a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal – e um putativo – a que teria nessa data se não existissem danos. 15 Exemplificando com a carga, o carregador do navio A, poderá exigir ao navio B, único culpado na abalroação, indemnização pela totalidade dos prejuízos sofridos, mas o mesmo pode não acontecer,

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b. O terceiro navio: de acordo com o artigo 667.º CCom, sendo a abalroação

«motivada por falta de um terceiro navio e não pode prevenir-se, é este que

responde»; o artigo refere-se a uma situação (de abalroamento indireto) em

que intervêm pelo menos três navios, sendo a abalroação provocada por um

deles: está em causa saber quem suporta os danos ocorridos entre os outros

dois. Exemplo: o navio A abalroa o navio B que, em virtude do choque, abalroa

o navio C. O navio A suportará os danos sofridos pelos navios B e C. O artigo

667.º ressalva «e não pôde prevenir-se». A expressão tem em vista, segundo

Cunha Gonçalves, a posição de B, no exemplo, servindo para confirmar a

doutrina de que «o navio abalroador não se presume culpado» e de que

«haverá culpa comum se o abalroado ou não preveniu ou não evitou a colisão».

Uma questão já discutida na jurisprudência portuguesa é a da abalroação entre

um navio rebocador ou um navio rebocado e um terceiro navio. Assim, no caso

apreciado pelo STJ no Acórdão de 20/10/1964, foi considerado que a culpa da

abalroação pertencera ao rebocador e ao rebocado, sendo, por isso, ambos

condenados a reparar os danos sofridos no navio abalroado. O problema foi

analisado, entre nós, nomeadamente, por Cunha Gonçalves, que,

relativamente à situação em que a abalroação de um terceiro navio ocorre

enquanto os outros dois iam em reboque, depois de considerar necessário

distinguir as relações entre o rebocador e o rebocado e entre estes e o terceiro,

dá nota de diversas soluções adiantadas pela doutrina para determinar quem

irá suportar os danos sofridos pelo terceiro navio que não tenha tido culpa na

abalroação. Mais do que uma presunção de culpa, o artigo 10.º, n.º1 DL 431/86

parece consagrar uma presunção de imputação, a qual tem, seguramente, uma

coloração mais objetiva ou, se quisermos, menos subjetiva do que a primeira.

Na verdade, não bastará ao contraente que tenha a direção do trem de

reboque provar que não teve culpa: ele tem o ónus de provar que o facto

danoso não lhe é imputável, ou seja não lhe é atribuível ou devido –

independentemente de culpa. As soluções adiantadas são três:

i. A primeira vai no sentido da responsabilidade do rebocador e do

rebocado como um conjunto culposo;

ii. A segunda responsabiliza apenas o rebocador porque lhe cumpre

«efetuar em boas condições o reboque»;

iii. Na terceira deve responder o navio rebocado porque «é ele quem

dirige a manobra do rebocador». Assim, se o rebocador fez as

manobras conforme as ordens do capitão do navio rebocado, é este o

responsável. Se, pelo contrário, a manobra é dirigida somente pelo

capitão do rebocador, deverá este indemnizar o abalroado, sendo o

armador do navio abalroador responsável somente pelas faltas do

capitão e da tripulação do seu navio como é expresso no art. 492.º/3.

Se a manobra for da responsabilidade do piloto, aplicam-se as regras

concernentes à intervenção desta entidade. III. Actualmente, face ao

disposto no art. 10.º DL 431/86, a solução passa pela determinação da

parte do contrato de reboque que tem a direcção do trem de reboque.

na mesma situação, com o carregador no navio B, relativamente ao qual vale o regime resultante do contrato de fretamento ou de transporte.

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O princípio (art. 8.º/1) é o de que a direcção do trem de reboque

pertence ao contratante-rebocado, sendo exercida pelo capitão,

mestre ou arrais do rebocado. O art. 10.º/1 responsabiliza a parte a

quem pertencer a direcção do trem de reboque, pelos danos ocorridos

durante a execução do contrato, admitindo, porém, a prova de que os

danos ‘não resultam de facto que lhe seja imputável’. O art. 10.º/2 vem

coadjuvar a presunção do n.º1, ao presumir ordenada pela parte a

quem pertence a direcção do trem de reboque a manobra efectuada

pelo rebocador e pelo rebocado. Do disposto no art. 10.º/1 DL 431/86

resulta claro que, entre rebocador e rebocado, a responsabilidade

pelos danos que algum dos navios sofra é determinada em função da

direcção do trem de reboque (p.e.: quando um dos navios em operação

de reboque pare subitamente, sendo abalroado por outro). Contudo,

o art. 10.º/1 tem virtualidades aplicativas para além das estritas

relações entre rebocador e rebocado, como no caso em que é

abalroado um terceiro navio por um dos navios que integram o trem

de reboque, sendo, porém, essencial delimitar claramente as situações

em que o art. 10.º/1 tem aplicação. Assim, não faria sentido aplicar,

sem mais, a presunção do citado art. 10.º/1 no caso em que o navio A,

tendo a direcção do trem de reboque e que reboca o navio B, colida

frontalmente com o navio C: não há razão para beneficiar C com uma

presunção de que não beneficiaria se a colisão fosse contra o mesmo

navio A mas fora de uma operação de reboque. Mas já passará pela

consideração da presunção estabelecida no art. 10.º/1 a resolução de

situações de abalroação do navio rebocador pelo rebocado ou vice-

versa. O critério na delimitação do campo de aplicação do art. 10.º/1 e

da presunção aí estabelecida passa por uma determinada conexão de

causalidade com a operação de reboque: se o facto do reboque, in casu,

inadequado no processo tendente à abalroação, não funcionará a

presunção estabelecida no art. 10.º/1: a abalroação terá tido lugar por

ocasião do reboque mas não no âmbito ou no exercício do mesmo.

Mais do que uma presunção de culpa, o artigo 10.º/1 DL 431/86 parece

consagrar uma presunção de imputação, a qual tem, seguramente,

uma coloração mais objetiva ou, se quisermos, menos subjetiva do que

a primeira. Na verdade, não bastará ao contraente que tenha a direção

do trem de reboque provar que não teve culpa: ele tem o ónus de

provar que o facto danoso não lhe é imputável, ou seja não lhe é

atribuível ou devido – independentemente de culpa.

c. Abalroação entre sister ships: pode acontecer que a abalroação aconteça entre

dois navios pertencentes ao mesmo proprietário. Nesse caso, não haverá,

naturalmente, lugar a indemnização por parte do proprietário do navio A ao

proprietário do navio B, já que o lesante se confunde com o lesado. Subsiste,

no entanto, um extenso campo de aplicação das regras da responsabilidade

civil, desde logo no que respeita à ação de indemnização do proprietário contra

a pessoa responsável (membro da tripulação ou piloto). Assim, se foi o capitão

de um dos navios que, com a sua atuação culposa, deu causa à abalroação, esse

capitão responderá perante o proprietário dos navios pela totalidade dos danos

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ocorridos. Por outro lado, no que respeita aos passageiros e à carga, subsiste o

regime de responsabilidade aplicável, como se os proprietários dos navios

fossem diferente. Assim, admitindo que a abalroação constitui um caso de falta

de náutica, para efeitos do regime da CB 1924 sobre conhecimentos de carga,

o carregador do navio A, sendo este culpado em 40%, só poderá exigir ao

proprietário do seu navio, não nessa qualidade mas na qualidade de

proprietário do navio B, uma indemnização correspondente a 60% dos danos,

na medida em que navio B seja culpado em 60% na abalroação. Finalmente, a

abalroação entre sister ships não prejudica o normal funcionamento do regime

dos seguros, situação que se torna particularmente evidente quando os navios

estão segurados em companhias diferentes.

d. Ação de indemnização: o artigo 673.º CCom estabelece que a abalroação por

perdas e danos resultante da abalroação de navios deve ser apresentada no

prazo de três dias à autoridade do lugar em que sucedeu ou do primeiro a que

aportar o navio abalroado, sob pena de não ser permitida. Lê-se no §único do

artigo que «a falta de reclamação, quando aos danos causados ás pessoas e

mercadorias não prejudica os interessados que não estavam a bordo e que se

achavam impedidos de manifestar a sua vontade». Porém, o artigo 6.º CB 1910

refere que a ação de perdas e danos sofridos por efeito do abalroamento não

depende nem de protesto nem de qualquer outra formalidade especial.

Parece-nos que o regime do artigo 673.º CCom, nos termos no mesmo

expressos, está ultrapassado – estando mesmo tacitamente revogado –

primeiro face à Lei 35/86, 2 setembro, e, depois, face ao regime dos artigo 13.º

e 14.º DL 384/99, 23 setembro. A Lei 35/86, que institui os tribunais marítimos,

revogou a alínea oo) do artigo 10.º do Regulamento Geral das Capitanias, que

cometias aos capitães dos portos resolver, entre outros, os litígios referentes a

(n.º2) «avarias marítimas e indemnizações devidas por danos produzidos ou

sofridos por embarcações ou outros corpos flutuantes». Também o Capitulo XI,

para onde remetia a citada alínea oo), respeitante a regras processuais, foi

quase integralmente revogado pela citada Lei 35/86. Não há, assim,

formalidades prévias impeditivas, se não realilzadas, de uma ação de perdas e

danos, cujo prazo de prescrição será o fixado no artigo 498.º CC, para a

responsabilidade aquiliana: três anos a contar d data em que o lesado teve

conhecimento do direito que lhe compete. Quando, porém, o regime aplicável

seja o da CB 1910, o prazo de prescrição das ações de indemnização que

tenham a abalroação como causa de pedir é de dois anos a contar do evento.

De acordo com o §2.º, é, porém, de um ano o prazo para intentar as ações de

regresso a que se refere o §3.º do artigo 4.º da mesma Convenção. Recorde-se,

finalmente, que, nos termos do artigo 13.º DL 384/98, 23/9, a abalroação é um

acontecimento de mar que deve dar lugar a um relatório de mar (Artigo 14.º),

a apresentar, em princípio, no prazo de 48 horas, calculado nos termos do

artigo 14.º, n.º3. A importância do relatório de mar, quando confirmado,

decorre, como vimos supra, do artigo 15.º, n.º7: os factos presumem-se

verdadeiros, salvo prova em contrário. O artigo 675.º CCom refere-se ao

tribunal competente para a ação, mas o mesmo encontra-se prejudicado pelo

artigo 79.º CPC, que o revoga tacitamente, sendo que o regime é muito

semelhante: «A ação de perdas e danos por abalroação de navios pode ser

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proposta no tribunal do lugar do acidente, no do domicílio do dono do navio

abalroador, no do lugar a que pertencer ou em que for encontrado esse navio e

no do lugar do primeiro porto em que entrar o navio abandonado». Há, porém,

que considerar a procedência, quando a haja, das regras constantes da

Convenção Internacional para a unificação de certas regras relativas à

competência civil em matéria de abalroação, assina da em Bruxelas em 10 maio

1952 e aprovada para ratificação pelo DL 41.007, 16 fevereiro 1957. Da mesma

data e aprovada para ratificação pelo mesmo diploma interno, há ainda a

Convenção Internacional para a unificação de certas regras relativas à

competência penal em matéria de abalroação e outros acidentes de navegação,

também assinada em Bruxelas em 10 maio 1952.

e. A garantia do crédito de indemnização por abalroação: constituído o crédito de

indemnização por abalroação de um navio, estará esse crédito assistido de

privilégio creditório? É essa a conclusão a que chegamos por força e nos termos

do n.º4 do artigo 2.º CB 1926 – Convenção Internacional para a unificação de

certas regras relativas aos privilégios e hipotecas marítimos, assinada em

Bruxelas em 10 abril 1926 – que considera privilegiados «sobre o navio, sobre

o frete d viagem dura o crédito privilegiado e sobre os acessórios do navio e do

frete adquirido desde o início da viagem (…) as indemnizações por abalroação

ou outros acidentes de navegação, assim como por danos causados as obras de

arte dos portos, docas e vias navegáveis; as indemnizações por lesões corporais

aos passageiros e às tripulações; as indemnizações por perdas ou avarias da

carga ou de bagagens». O privilégio – que, de acordo com o disposto no artigo

6.º - I, não está limitado à última viagem do navio – extingue-se «pela expiração

do prazo de um ano» (artigo 9.º - I), correndo, no caso das indemnizações

decorrentes de abalroação e outros acidentes e das lesões corporais (artigo 9.º

- I) «desde o dia em que o dano foi causado». Importa, ainda, referir que, face

à CB 1952 – Convenção Internacional para Unificação de certas regras sobre o

arresto de navios de mar, assinada em Bruxelas em 10 maio 1952 – entre o

número de créditos marítimos constante da closed list do artigo 1.º,

encontram-se os «danos causados por um navio, quer por abalroação, quer por

outro modo».

7. Exclusão e limitação da responsabilidade do proprietário do navio: no domínio de

vigência do artigo 492 CCom, o seu n.º1 estabelecia a responsabilidade civil do

proprietário do navio «pelos atos e omissões do capitão e da tripulação», mas o §1.º do

mesmo artigo não incluía essas situações dentre daquelas que podiam originar o

abandono liberatório do navio e do frete ganho ou a vencer. Na verdade, o citado §1.º

só permitia o abandono liberatório (exceto no caso de obrigações contraídas para

pagamento de soldadas à tripulação) nas situações de responsabilidade do proprietário

(artigo 492.º, n.º2) «pelas obrigações contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua

expedição». Este regime era considerado ilógico por alguns autores, lendo-se em Viegas

Calçada: «Para as obrigações contraídas pelo capitão na sua atividade administrativa,

isto é, para aquelas obrigações que o próprio armador pode contrair, a lei concede a

este limite de responsabilidades por meio do abandono do navio e do frete; para os atos

técnicos de transporte e navegação, atos que o armador não pode ou não sabe praticar,

a lei não concede limitação de responsabilidade». Ainda para o mesmo autor, tal

situação «encerra algo de contrassenso e não se nos afigura nem lógica, nem justa, e

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para mais contraria a proteção que todas as legislações dispensam aos

empreendimentos de tráfego marítimo». É neste ambiente crítico que Viegas Calçada

procura uma base legal para defender a limitação da responsabilidade do proprietário

no caso de abalroação, acabando por fundamentá-la nos artigo 665.º a 68.º CCom, na

acentuação que fazem da responsabilidade e culpa do navio, que não do seu

proprietário; lê-se, a certo passo: «parece assim que o legislador com a forma de dizer

que empregou, teve ideia e até propósito de tornar o dono somente responsável até ao

valor do navio, pois em outros passos do código, como nas arribadas e salvação – artigo

659.º e 689.º - faz referência expressa à responsabilidade do dono e do capitão». A

posição defendida por Viegas Calçada parece-nos dificilmente sustentável. Refira-se,

em primeiro lugar, que os artigo 659.º e 689.º CCom limitam expressamente a

responsabilidade do sujeito, o mesmo não acontecendo, no artigo 654.º s seguintes;

ora, isso pode querer significar exatamente o contrário do sustentado por Viegas

Calçada. Em segundo lugar, não é razoável supor que um aspeto de regime tão

importante quanto o é a limitação da responsabilidade possa ser apenas inferido de

expressões personificadoras do navio, expressões essas que, de resto, são usuais em

Direito Marítimo. O exposto não significa que não haja vias de limitação da

responsabilidade do proprietário do navio: o que pretendemos significar é que as

mesmas não se fundam no regime dos artigo 664.º a 675.º CCom: no Direito interno

português, há que considerar, agora, o regime do abandono liberatório consagrado no

artigo 12.º DL 202/98, 10 julho; a nível internacional, há que atentar, designadamente,

nas Convenções de Bruxelas de 1924 e 1957 sobre limitação da responsabilidade de

navios, na Convenção de Bruxelas de 1924.º relativa à unificação de certas regras em

matéria de conhecimento de carga ou na CLC 1992. De acordo com o estabelecido no

artigo 1.º CB 1924 para a unificação de certas regras relativas à limitação da

responsabilidade de navios do mar, o proprietário de um navio do mar só é responsável

até à concorrência do valor do navio, do frete e dos acessórios do navio pelas

indemnizações aí enumeradas, destacando-se, com interesse para a temática da

abalroação, os n.º1 e 2: pelas indemnizações devidas a terceiros por prejuízos causados,

em terra ou no mar, por factos ou faltas do capitão, da tripulação, do piloto, ou de

qualquer outra pessoa ao serviço do navio (n.º1); pelas indemnizações devidas por

prejuízos causados tanto à carga entregue ao capitão para ser transportada, como a

todos os bens e objetos que se achem a bordo (n.º2). Essa limitação de

responsabilidade não é aplicável, de acordo com o artigo 2.º, entre outras, «às

obrigações resultantes de factos ou faltas do proprietário do navio»; contudo (artigo 2.º

- II), se o proprietário ou comproprietário do navio for ao mesmo tempo o capitão, não

poderá invocar a limitação da sua responsabilidade em relação às faltas que cometer e

que não sejam de caráter náutico e às faltas das pessoas ao serviço do navio. Saliente-

se, ainda, o facto de, de acordo com o artigo 3.º, o ónus da prova do valor do navio, do

frete e dos acessórios do navio pertence ao proprietário que invocar a limitação da

responsabilidade. A data ou época a considerar na determinação do valor é indicada no

mesmo preceito. Substituindo e revogando a Convenção de Bruxelas de 1924, no que

respeita às relações entre os Estados que ratificaram ou aderiram à nova Convenção, a

Convenção de Bruxelas de 1957 – Convenção Internacional sobre limite de

responsabilidade dos proprietários de navios de alto mar – permite, no seu artigo 1.º,

n.º1, que o proprietário de um navio de alto mar limite a sua responsabilidade ao

montante determinado no artigo 3.º da mesma Convenção, em relação aos pedidos de

indemnização resultantes de qualquer das causas enumeradas nas suas diversas alíneas,

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a menos que o motivo que deu origem ao referido pedido tenha resultado de culpa

pessoal do proprietário. Entre as causas que maior conexão poderão ter com a matéria

da abalroação contam-se a (alínea a) ) morte ou lesões corporais de qualquer pessoa

encontrando-se a bordo do navio para ser transportada, perdas ou danos de quaisquer

bens a bordo do navio e (alínea b) ) morte ou lesões corporais de qualquer outra pessoa,

quer em terra, quer no mar, perdas ou danos de quaisquer outros bens ou infrações a

quaisquer direitos causados pela ação, negligência ou dolo de qualquer pessoa a bordo

do navio, por quem o proprietário seja responsável, ou de qualquer outra pessoa que,

não se encontrando a bordo do navio e por quem o proprietário é responsável, desde

que, neste último caso, a ação, negligência ou dolo se refiram à navegação ou à

administração do navio ou ao carregamento, transporte ou descarregamento da sua

carga, ou ao embarque, transporte ou desembarque dos passageiros. De acordo com o

artigo 2.º, n.º1, a limitação da responsabilidade – cuja invocação não implica o

reconhecimento de responsabilidade (artigo 1.º, n.º7) – é aplicável ao conjunto dos

pedidos de indemnização, quer corporais, quer materiais, que tenham derivado do

mesmo evento, sem se referir aos pedido de indemnização resultantes ou que venham

a resultar de um outro evento. Esclarece, depois, o artigo 2.º, n.º2 que se o conjunto

dos pedidos de indemnização que derivam do mesmo evento exceder os limites de

responsabilidade, tais como são determinados pelo artigo 3.º, o montante global

corresponde a esses limites poderá constituir-se num fundo de limitação único; o fundo

assim constituído será, então, conforme dita o artigo 2.º, n.º3, exclusivamente

consignado ao pagamento dos pedidos de indemnização em relação as quais a limitação

de responsabilidade pode ser invocada. Ressalvando o disposto no artigo 3.º, n.º2, o

artigo 4.º da Convenção dispõe que as normas relativas à constituição e repartição do

fundo de limitação, se as houver, e todas as normas de processo devem ser

determinadas pela lei nacional do Estado em que o fundo for constituído. A nível

interno, impõe-se a consideração do regime constante do DL 49.028, 26/5/1969, e do

Decreto 49.029, da mesma data. Este diplomas têm também aplicação, conquanto com

as alterações constantes dos artigos 13.º a 18.º DL 202/98, 10 julho, quando o

proprietário possa, nos termos do artigo 12.º deste último diploma, abandonar o navio

e o valor do frete em risco aos credores, com vista à constituição de um fundo de

limitação de responsabilidade: como é sabido, o artigo 12.º tem uma aplicação

subsidiária, quando não estejam em causa pedidos de indemnização abrangidos nos

tratados e convenções internacionais que admitem limitações de responsabilidade.

Importa, finalmente, fazer uma breve referência à Convenção de Bruxelas de 1924

relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimento de carga. Conforme

é sabido, a difícil détente entre os interesses dos carregadores e dos transportadores,

presente na CB 1924, passa por uma diferenciação, para efeitos de regime, entre faltas

náuticas e faltas comerciais. Ora, é relativamente ao pacífico que, dentre os excepted

perils elencados no artigo 4.º CB 1934, se pode incluir o caso da abalroação – admitindo

que não foi dolosa ou indesculpável. Lê-se, por exemplo, em Azevedo Matos que «o

abalroamento constitui a falta náutica por excelência». Já tivemos oportunidade,

conquanto de forma suméria, de nos referirmos supra ás dificuldades de concurso das

regras da responsabilidade contratual com a extracontratual, designadamente quando

um dos navios culpados se pode exonerar de responsabilidade face aos seus

carregadores mas não o pode fazer em relação ao s carregadores do outro navio

envolvido, que agirão contra o primeiro com base nas regras da responsabilidade extra

obrigacional.

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8. O recurso a piloto obrigatório16: de acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º1 DL 384/99,

23 setembro, que provou o regime jurídico relativo ao capitão e à tripulação do navio,

«o piloto, em quaisquer circunstâncias, é um assessor do capitão, o que não afeta a

responsabilidade deste, do armador ou do proprietário do navio perante terceiros»;

dispõe, depois, o artigo 7.º, n.º2 que «o piloto responde, perante o armador ou

proprietário do navio, nos termos gerais de direito». Saliente-se que, nos termos do

artigo 6.º, alínea e) do mesmo diploma, o capitão é obrigado «a tomar piloto ou prático

em todas as barras de portos ou outras paragens, sempre que alei, o costume ou a

normal diligência o determinem». Importa ainda realçar que, de acordo com o disposto

no artigo 3.º DC 48/2002, 2 março – diploma que regula o exercício da atividade de

pilotagem – o serviço de pilotagem é exercido por profissionais de pilotagem dos portos

e barras, devidamente habilitados e certificados, com experiência na condução e

manobra de navios em áreas restritas e conhecedores das características físicas locais

e das disposições legais e regulamentares aplicáveis. Por sua vez, o artigo 8.º

Regulamento Geral do Serviço de Pilotagem, aprovado pelo mesmo diploma,

estabelece serem obrigações do piloto perante o comandante da embarcação pilotada,

informar e assessorar sobre a navegação, movimentos e manobras a efetuar (alínea a) ),

informar sobre quaisquer condicionamentos que possam afetar a segurança (alínea b) )

e ainda informar sobre as condições em que fica a embarcação, sugerindo as

precauções adequadas, bem como sobre as obrigações impostas pela regulamentação

em vigor (alínea c) ). Quid Iuris quando a abalroação se deva ao ato ou omissão do piloto?

Face ao disposto no artigo 4.º, n.º1 DC 202/98, 10 julho, não há dúvidas de que o

armador proprietário do navio responde objetivamente, perante terceiros, por tais atos

ou omissões – responsabilidade essa que, conforme decorre expressamente do artigo

4.º, n.º2 – funciona de acordo com as regras da comissão do artigo 500.º CC: assim, o

armador responde como comitente, sendo comissário o piloto. O mesmo regime vale

quanto ao armador não proprietário e quanto ao simples proprietário, por força,

respetivamente, dos artigos 5.º e 6.º do DL 202/98. Face ao disposto na alínea b) artigo

4.º, n.º1, deixaram de fazer sentido as dúvidas, determinadas pela difícil conjugação do

disposto nos artigos 672.º e 492.º (§3.º) CCom, de que dá nota, entre outros, Cunha

Gonçalves, sobre se a responsabilidade objetiva do armador se mantinha quando o

piloto não tivesse sido tomado voluntariamente pelo capitão: a lei é clara no sentido de

que a responsabilidade nos termos da comissão funciona, mesmo quando «o recurso

ao piloto ou prático seja imposto por lei, regulamento ou uso». Este regime está, de

resto, de acordo com o estabelecido no artigo 5.º CB 1910, de acordo com o qual a

responsabilidade prevista nos artigos anteriores «subsiste no caso de abalroação ser

causada por culpa de um piloto, ainda quando seja obrigatória a intervenção deste». É

de destacar a importância do artigo adicional à CB 1910. De acordo com o mesmo, o

artigo 5.º da Convenção que fixa a responsabilidade no caso de a abalroação ser

causada por culpa de um piloto obrigatório não entraria de pleno direito em vigor senão

quando as Altas Partes Contratantes se houvessem concertado sobre a limitação da

responsabilidade dos proprietários dos navios. Assim, o artigo 5.º CB 1910 só passou a

ter aplicação após a Convenção de Bruxelas de 1924 – Convenção Internacional para a

unificação de regras relativas à limitação da responsabilidade dos proprietários de navio

de mar – cujo artigo adicional veio reconhecer aos Estados ligados pela CB 1924. Pode

questionar-se agora se o artigo 672.º CCom se mantém em vigor, atento o regime

16 Ler de forma conjugada com a página 126 da presente sebenta para a atualização da questão

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estabelecido no DL 202/98. Pese embora a patente desatualização do artigo 672.º face

ao regime do DL 202/99 e do DL 384/99, na parte que se refere à responsabilidade do

capitão, parece-nos que há uma margem de sobrevivência no artigo 672.º quando e na

parte em que admite que o direito de regresso seja exercido em primeira linha,

alternativamente em relação à corporação que nomeia o piloto e em relação ao próprio

piloto, tido como comissário pelo artigo 4.º, n.º1 DL 202/98. A situação de liquidação

no domínio das relações internas revela-se, assim, mais rica do que numa situação de

solidariedade normal, já que, na prática, é como se o armador comitente tivesse dois

comissário solidários. Claro que, numa situação em que o direito de regresso seja

exercido contra a corporação, esta poderá fazer repercutir no piloto a indemnização

paga, uma vez que a sua intervenção (salvo a existência de culpa in elegendo vel

intruendo vel vigilando) é – à semelhança do que acontece com o comitente – de

garante da indemnização a cargo do piloto. Voltando ao campo das relações externas,

pode questionar-se se o lesado pode, em termos de libera electio ou de subsidiariedade,

agir diretamente contra a corporação dos pilotos. O artigo 672.º CCom não resolve essa

dúvida, cuja solução passará pela caracterização da responsabilidade perante terceiros

nos mesmos termos em que o piloto responde. Ora, uma vez que, de acordo com as

regras da comissão (artigo 500.º CC) e da solidariedade passiva, o credor (o lesado, no

caso) tem libera electio, é de concluir que o terceiro pode optar, à partida, por

demandar a corporação. Pode também questionar-se se o artigo 671.º CCom se

mantém em vigor. Diríamos que não, face ao regime da comissão consagrado nos artigo

4.º, 5.º e 6.º DL 202/98, e ao artigo 5.º, n.º1 DL 384/99, dos quais resulta a

responsabilidade solidária entre os comissários – os autores da culpa (artigo 671.º

CCom) – e o comitente, havendo lugar a direito de regresso (artigo 503.º CC) no caso

de ser o comitente a indemnizar o lesado. De qualquer modo, sempre se dirá que o

regime constante do artigo 671.º CCom – a disposição platónica de que fala Azevedo

Matos – se mantém aggiornato face ao regime da comissão do artigo 500.º CC, sendo,

consequentemente improdutiva qualquer polémica sobre a sua vigência. Na realidade,

o artigo 671.º CCom contempla a eventual responsabilização direta do autor da culpa

(v.g. o capitão) face ao terceiro – o que cabe perfeitamente na disciplina da

solidariedade passiva entre o comitente e o comissário, assim como contempla, in fine,

um direito de regresso do comitente em relação ao comissário. Naturalmente que a

responsabilidade do comitente que estamos a prefigurar pressupõe (artigo 500.º, n.º2

CC) que o ato tenha sido praticado pelo comissário «no exercício da função que lhe foi

confiada».

9. Dever de prestar assistência: o dever de prestar assistência ou socorro constitui

concretização de um princípio e valor fundamental em Direito Marítimo – o da

solidariedade no mar. O dever de prestar assistência encontra-se, desde logo,,

consagrado no artigo 98.º da Convenção de Montego Bay, em sede de disposições

sobre o alto mar (artigo 86.º e seguintes), em termos que abrangem também as

situações de abalroação. Decorre da alínea c) do artigo 98.º, n.º1 que todo o Estado

deve exigir do capitão de um navio que arvore a sua bandeira, desde que o possa fazer

sem acarretar perigo grave para o navio, para a tripulação ou para os passageiros, que

o mesmo «preste, em caso de abalroamento, assistência ao outro navio, à sua

tripulação e aos passageiros e, quando possível, comunique ao outro navio o nome do

seu próprio navio, o porto de registo e o porto mais próximo em que fará escala». A nível

mais específico, o artigo 8.º CB 1910 consagra, a cargo do capitão, um dever de prestar

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socorro após a abalroação, deixando claro (§3.º) que a omissão do capitão não

responsabiliza o proprietário do navio. O dever de prestar socorro impende (§1.º) sobre

o capitão de cada um dos navios envolvidos na abalroação e tem por objeto a outra

embarcação, os seus tripulantes e passageiros. O dever essa quando a respetiva

prestação envolva grave perigo para o navio, respetiva tripulação e passageiros. Por

outro lado, a intensidade do socorro está naturalmente limitada à medida do possível.

O §2.º do artigo 8.º CB impõe ainda ao capitão o dever de, na medida do possível, «dar

a conhecer ao outro navio o nome e o porto de registo da sua própria embarcação,

assim as localidades de onde vem e para onde vai». A nível interno, há que realçar o

artigo 166.º Regulamento Geral das Capitanias que diz ser «obrigação dos comandantes,

mestres, arrais ou patrões de embarcações nacionais, desde que o possam fazer sem

perigo sério para a sua embarcação, tripulação ou passageiros» - alínea d) - «após uma

colisão, prestar à embarcação com que tenha colidido, à sua tripulação e aos seus

passageiros a assistência compatível com as circunstâncias e, na medida do possível,

indicar-lhes o nome da sua própria embarcação, o seu porto de registo e o porto mais

próximo que tocará». Por sua vez, o artigo 3.º, n.º1 DL 202/98 – que regula a salvação

marítima – estabelece genericamente um dever de prestar socorro «a pessoas em

perigo no mar, desde que isso não acarrete risco grave para a sua embarcação ou para

as pessoas embarcadas, devendo a sua ação ser conformada com o menor prejuízo

ambiental». Pode o armador ser responsabilizado pelo incumprimento, por parte do

capitão, de um dever de prestar assistência? Pensamos que, neste campo, não funciona

a responsabilidade objetiva, como comitente, dos artigos 4.º, 5.º e 6.º DL 202/98, uma

vez que o dever em causa deve ser configurado como um dever pessoal de quem está

no salso palco – o capitão – dever esse que é alheio às preocupações e razões que estão

na base do regime da comissão. Mesmo quando não sejam diretamente aplicáveis,

militam neste sentido, como manifestações de um regime geral, o já referido §3.º do

artigo 8.º CB 1910 – que desresponsabiliza o proprietário do navio pela violação do

dever de assistência por parte do capitão – e ainda o artigo 3.º , n.º3 DL 203/98 que –

conquanto para o domínio de aplicação traçado no artigo 3.º, n.º1 (prestação de

socorro a pessoas) – só admite a responsabilização do proprietário e do armador da

embarcação quando haja culpa dos próprios. Fora do quadro da responsabilidade

objetiva, é de admitir a responsabilização subjetiva do armador quando haja culpa

própria na não prestação de assistência, maxime em caso de culpa na escolha do

capitão (Culpa in elegendo).

10. O Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (COLREG): a

necessidade de um Regulamento Internacional para evitar abalroamentos no mar surge

como evidente face à densidade e internacionalidade do tráfico e aos valores que se

pretende preservar. As regras atualmente em vigor foram aprovadas, entre nós, para

ratificação, pelo Decreto n.º 55/78, 27 junho, diploma que aprovou a Convenção

Internacional sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento no Mar,

feita em Londres em outubro de 1972. Essa Convenção visou rever e atualizar as Regras

Internacionais do mesmo teor de 1960, constituindo, então, o Anexo B à Convenção

para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (DL 493/70, 23 outubro). Posteriormente,

a Convenção seria objeto de emendas. Em termos de conteúdo, o Regulamento está

dividido em 5 Partes numerada, contendo, cada uma delas, Regras alfabetadas.

Seguem-se 4 Anexos. A primeira Parte (Parte A) é de “Generalidades”. Destaca-se, na

Regra 1 (Campo de Aplicação), a alínea a): «As presentes Regras aplicam-se a todos os

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navios no alto mar e em todas as águas que com ele tenham comunicação e sejam

praticáveis pela navegação marítima». A Regra 2 da Parte A respeita a

“Responsabilidade”, dispondo a alínea a) que «Nenhuma disposição das presentes

Regras servirá para ilibar qualquer navio ou o seu proprietário, comandante ou

tripulação das consequências de qualquer negligência quanto à aplicação das presentes

Regras, ou quanto negligência quanto à aplicação das presentes Regras, ou quanto a

qualquer precaução que a experiência normal de marinheiro ou as circunstâncias

especiais do caso aconselham a tomar». E a alínea b): «Ao interpretar e aplicar as

presentes Regras, devem ter-se em devida conta os perigos da navegação e os riscos de

abalroamento, bem como todas as circunstâncias particulares, nomeadamente as

limitações de utilização dos navios em causa, que podem tornar necessário o não

cumprimento exato das presentes Regras, para evitar um perigo imediato». Dentre as

definições constantes da Regra 3, destaca-se a de navio: «A palavra “navio” designa

todo o veículo aquático de qualquer natureza, incluindo os veículos sem imersão, os

veículos WIG e os hidroaviões, utilizado ou suscetível de ser utilizado de transporte sobre

a água». A Parte B contém «Regras de manobra e de navegação» (Regras 4 a 19),

destacando-se o §1.º da Regra 6: «Todo o navio deve manter uma velocidade de

segurança tal que lhe permita tomar as medidas apropriadas e eficazes para evitar um

abalroamento e para parar numa distância adequada às circunstâncias e condições

existentes». A Parte C respeita a “faróis e balões» (Regras 20 a 21), a Parte D a «sinais

sonoros e luminosos» (Regras 32 a 37) e a Parte E contém uma Regra (n.º 38)

respeitante a «Isenções». Finalmente, os Anexos respeitam, sucessivamente, às

seguintes matérias: Localização e características técnicas dos faróis e balões (Anexo I),

Sinais adicionais para navios de pesca pescando na proximidade uns dos outros (Anexo

II), Características técnicas para material de sinalização sonora (Anexo III) e Sinais de

perigo (Anexo IV).

11. As Regras de Lisboa do CMI: As Lisbon Rules 1987 estão estruturadas, tal qual, v.g., as

Regras de Iorque-Antuérpia, numa divisão entre regras alfabetadas e regras numeradas.

A Regra A delimita as situações em que é possível a aplicação das Regras – os casos em

que haja pedidos de indemnização na sequência de uma abalroação («cases where

damages are claimed following a collision») – ao mesmo tempo que deixa claro que as

mesmas dependem da livre adoção pelos interessados («are available for adoption») e

que a respetiva adoção não tem o efeito de admissão de responsabilidade («Their

adoption does not imply any admission of liability»). A Regra B delimita o âmbito de

aplicação das Regras: elas aplicam-se apenas à determinação dos danos («assessment

of the damages»), não sendo extensível à determinaçpão da responsabilidade e não

afetando os direitos de limitação de responsabilidade. A Regra C estabelece o critério

de nexo de causalidade: com sujeição ao disposto nas regras numeradas, o lesado (o

claimant) só pode exigir indemnização pelos danos que possam ser razoavelmente

considerados como consequências direta e imediata da colisão («as many reasonably

be considerered to be the direct and immediate conequence of the collision»). Esta Regra

é dobrada pela Regra D que, ressalvando a aplicação da Regra C e das regras numeradas,

estabelece que a indemnização deverá colocar o lesado na mesma posição financeira

que teria se a colisão não tivesse ocorrido. Finalmente, a Regra E reporta-se ao ónus da

prova, que pertence ao claimant; contudo, numa solução que no Código Civil encontra

algum paralelo no regime do artigo 570.º, a indemnização será reduzid («Damages shall

not be recovered to the extent») se o lesado lograr provar que o lesante poderia ter

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evitado ou minorado os prejuízos se tivesse agido de uma forma razoavelmente

diligente («by the exercise of reasonable diligence»).

12. As Convenções de Bruxelas de 1952: a preocupação com a unificação de regras relativas

à matéria da abalroação fez-se sentir no campo processual: em 10 maio 1952 foram

assinadas em Bruxelas duas convenções internacionais: a Convenção Internacional para

a unificação de certas regras relativas à competência civil em matéria de abalroação e

a Convenção Internacional para unificação de certas regras relativas à competência

penal em matéria de abalroação e outros acidentes de navegação. Ambas as

Convenções foram aprovadas para ratificação por Portugal através do DL 41.007,

16/2/1957. O âmbito de aplicação da Convenção sobre competência civil resulta, a um

tempo, do estabelecido nos artigos 4.º a 8.º. Os artigos 4.º e 8.º, I, estabelecem

delimitações positivas. Assim:

a. A Convenção aplica-se a todas as ações que visem a reparação de prejuízos

causados por um navio a outro navio ou às coisas ou às pessoas que nele se

encontrem, em virtude de execução ou omissão de manobra ou de

inobservância de regulamentos, ainda que não haja abalroação (artigo 4.º);

b. A Convenção é aplicável em relação a todos os interessados, quando todos os

navios pertencerem a Estados Altas Partes Contratantes (artigo 8.º I); ressalva-

se (artigo 8.º, II, §2.º) a situação em que todos os interessados bem como o

tribunal perante o qual corre a ação, pertencerem a um mesmo Estado, caos

em que será aplicável a lei nacional.

As delimitações negativas resultam dos artigos 5.º a 7.º. Assim:

a. Não prejudicialidade das regras de Direito em vigor nos Estados contratantes,

relativamente às abalroações que afetem navios de guerra ou navios

pertencentes ao Estado ou que estejam ao serviço do Estado (artigo 5.º);

b. Inaplicação da Convenção às ações provenientes de contratos de transporte ou

de quaisquer outros (artigo 6.º);

c. Inaplicação da Convenção aos casos abrangidos pelas disposições da

Convenção revista sobre a Navegação do Reno, de 17 outubro 1868 (artigo 7.º).

No que conserne ao âmago da Convenção, o artigo 1.º, n.º1 fixa os tribunais onde a ação

proveniente de abalroação, ocorrida entre navios de mar e barcos de navegação interior,

poderá ser proposta, cabendo a sua escolha ao autor (artigo.º1, n.º2):

a. Tribunal da residência habitual do réu ou no tribunal de uma das sedes da sua

exploração (alínea a) );

b. Tribunal do lugar onde o navio acusado ou qualquer outro navio pertencente

ao mesmo réu, se encontre arrestado (alínea b) );

c. Tribunal do lugar onde o arresto poderia ter sido realizado e onde o réu tenha

prestado caução (alínea b), in fine);

d. Tribunal do lugar da abalroação, quando esta tenha ocorrido em portos ou

ancoradouros ou em águas interiores (alínea c) ).

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O artigo 1.º, n.º3 estabelece que o autor não poderá intentar contra o mesmo réu nova

ação pelos mesmos fundamentos, perante qualquer outra jurisdição, sem desistir da ação

já proposta. Conforme destaca Rodière, esta regra visa evitar os inconvenientes

provocados pelo fórum shopping autorizado no artigo 1.º, n.º1, considerando, ademais,

que a CB 1952 consegue, assim, realizar uma relevante cooperação judiciária

internacional, já que – diversamente do que acontece no direito comum, no qual uma

sentença estrangeira só tem autoridade de caso julgado se tiver revestida de exequator

– aqui é possível invocar a exceção de caso julgado, desde que tenha sido proferida

sentença por uma das jurisdições competentes nos termos do artigo 1.º. O artigo 3.º

contém uma miscelânea de previsões: o artigo 3.º, n.º1 reporta-se aos pedidos

reconvencionais resultantes da mesma abalroação contra a mesma parte. Finalmente, o

artigo 3.º, n,.º3 refere-se às situações de abalroação que envolvam vários navios,

deixando claro que nada na mesma Convenção se opõe a que o tribunal onde a ação

tenha sido proposta em obediência às regras do artigo 1.º, se declare competente, de

acordo com as regras da competência da sua lei nacional, para julgar todas as ações

intentadas em razão do mesmo evento. A Convenção Internacional para a unificação de

certas regras relativas à competência penal tem a sua origem no célebre caso Lotus17. O

âmbito de aplicação desta segunda Convenção surge delimitado pela positiva no artigo

1.º, e pela negativa no artigo 4.º. De acordo com a 1.ª parte do artigo 1.º, a Convenção

tem aplicação em caso de abalroação ou outro qualquer acidente de navegação relativo

ao navio de mar, que possa envolver responsabilidade penal ou disciplinar para o capitão

ou disciplinar para o capitão ou outra pessoa ao serviço do navio. O artigo 4.º, I, exclui da

aplicação da Convenção as abalroações ou outros acidentes de navegação ocorridos em

portos, ancoradouros e águas interiores. Numa clara sequela do caso Lotus, a 2.ª parte

do artigo 1.º estabelece que o procedimento por qualquer dos acidentes referidos na sua

1.º parte só poderá ser intentado perante autoridades judiciais ou administrativas do

Estado cujo pavilhão o navio arvorar no momento da abalroação ou do acidente de

navegação. Nesses casos, estabelece o artigo 2.º, a apreensão ou retenção do navio,

ainda que para efeitos de instrução, só pode ser ordenada pelas autoridades do Estado a

que respeitar o pavilhão arvorado por esse navio. É também importante a ressalva

constante do artigo 3.º: Nenhuma disposição da Convenção impede que qualquer Estado,

em caso de abalroação ou outro acidente de navegação, atribua às suas próprias

autoridades o direito de tomar todas as medidas respeitates a certificados de

competência e licenças por eles concedidas, ou de proceder contra os seus nacionais por

infrações cometidas a bordo dum navio que arvore o pavilhão doutro Estado. Importa,

finalmente, referir que o regime da Convenção de Bruxelas 1952 em análise não é

17 Na noite de 2 para 3 de agosto de 1926, o navio francês Lotus abalroou no alto mar o navio turco Bozkourt do que resultaram vítimas mortais neste último. Aquando de uma escala do Lotus em Istambul, as autoridades turcas prenderam oficial do Lotus que estava de quarto aquando da abalroação, tendo o mesmo sido julgado e condenado a uma pena de prisão. A questão foi colocada pela França no Tribunal de Haia: a tese francesa era no sentido de que um Estado não podia perseguir um estrangeiro por um delito cometido no estrangeiro. Vingou, porém, a tese turca, em sentido oposto, uma vez que o código penal turco acolhia a ideia de uma competência penal universal, quando houvesse vítimas turcas. A decisão do Tribunal de Haia, prefira em 1927, teve como consequência a promoção de trabalhos, por parte do CMI, em ordem a uma futura convenção internacional sobre competência penal em matéria de abalroação, surgindo os trabalhos para uma convenção sobre competência civil a reboque dos primeiros. Os trabalhos da CMI culminaram na CB 1952 para a unificação de certas Regras relativas à Competência Penal, convenção essa onde triunfa a tese que fora rejeitada, anos antes, pelo Tribunal de Haia.

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aplicável apenas aos casos de abalroação, abrangendo também «outros acidentes de

navegação», cujo exemplo mais eloquente será o naufrágio – ainda que não precedido

de colisão.

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As Traves Mestras da CL 1989 e o Regime Português

da Salvação Marítima18

1. Introdução Condições Gerais: publicado no dia em que, em homenagem aos oceanos, o

diário oficial português saiu azul, Portugal tem desde 1998 – mais concretamente desde

a Lei da Salvação Marítima (LSM) aprovada pelo DL 23/98, de 10 julho – um novo regime

da Salvação Marítima. O diploma revogou o disposto nos artigos 676.º a 691.º do cada

vez mais desintegrado Código Comercial – que estavam inseridos num título designado

«Da salvação Marítima e assistência». Quebrando a tradição que vinha do Código de

Ferreira Borges e que se manteve no Código de Veiga Beirão, a LSM optou por fundir as

clássicas figuras da salvação e da assistência numa única figura que, na linha do salvage

anglo saxónico, designou não simplesmente por salvação mas por salvação marítima. A

separação conceitual entre salvação e assistência tinha uma clara tradução nos códigos

comerciais, tendo-se os maritimistas e a jurisprudência, ao longo de muitos anos,

afadigado em traçar com algum rigor as ténues fronteiras entre os dois institutos,

fronteiras essas que as disposições legais não tinham o condão de marcar com nitidez.

Podemos citar, a título exemplificativo, os traços delimitadores feitos ou apontados

pelos clássicos Ferreira Borges, Veiga Beirão, Adriano Anthero, Cunha Gonçalves ou

Azevedo Matos. Causa, assim, alguma estupefação que, no preâmbulo da LSM, se leia

que em Portugal «nunca se defendeu com perseverança a distinção entre os dois

conceitos, tendo prevalecido o entendimento de que assistência e salvação não são atos

diversos, visto que ambos significavam o socorre restado, conjunta ou separadamente,

a um navio, à sua carga e às pessoas que se encontram a bordo». É certo que, noutro

universo de aplicação, encontrava-se – e encontra-se – a Convenção de Bruxelas de 23

setembro 1910, para a unificação de certas regras em matéria de assistência e salvação

marítima que, pese embora a dupla designação (assistência e salvação), consagra

apenas um instituto, sendo a mesma dupla designação explicada por um compromisso

terminológico entre a designação anglo saxónica – salvage – e a francesa – assistance.

Essa circunstância, que provoco ou certo equívoco em autores como Serra Brandão ou

mesmo Mota Pinto, não deveria ser de molde a obscurecer o facto de, no Direito

Interno Português, haver uma clara diferença de conceitos e de regime entre a salvação

marítima e a assistência, com consequências bem evidentes a nível dos salários,

respetivamente de salvação (artigo 681.º CCom) e de assistência (artigo 682.º CCom).

Assim, não podemos deixar de acompanhar Mário Raposo, quando imputa a afirmação

de preâmbulo a descuido do legislador. O que é certo é que o legislador português,

rendendo-se, finalmente, à unicidade em termos conceituais e designativos, optou por

designar o instituto como salvação, na linha da Convenção de Londres de 1989 (CL

1989). No preâmbulo da LSM, o legislador Nacional revela-se rendido às diretrizes da Cl

1989, mostrando-se, aparentemente, alheado do facto de a nova Convenção não ter

sido – então como agora – ratificada por Portugal. A circunstância da assinatura da

Convenção foi tida como razão de peso para modernizar o regime da salvação, de

acordo com a filosofia daquela Convenção. O resultado não deixa de ser singular.

18 O Ensino do Direito Marítimo; o soltar das amarras do direito da navegação marítima; por Manuel Januário da Costa Gomes, Almedina, novembro de 2004. (páginas 177 a 124).

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Portual está internacionalmente vinculado à vetusta CB 1910, abstendo-se de ratificar

a moderna CL 1989; contudo, a nível interno, adota as linhas orientadoras desta última.

Não há, aqui, parece-nos, uma incompatibilidade estrutural, mas o conjunto apresenta-

se desarmónico e, com tal, potenciador de perturbações. A salvage da Cl 1989 não é só

marítima: a alínea a) do artigo 1.º não se refere especificamente ao mar mas,

amplamente, a «navigable waters or in any other water whatsoever». É certo que o

artigo 1.º CB 1910 não limita a sua aplicação às salsas águas; contudo, cinge o instituto

às «embarcações marítimas sem que haja de atender-se às águas» em que os serviços

são prestados. Ora, esta última limitação – a das «embarcações marítimas» - não a

conhece a CL 1989 que, para além de considerar como objeto passível da salvação «a

vessel or any other property», define navio (vessel) em termos que não apontam para a

circunscrição ao meio marítimo: «any ship or craft, or any structure capable of

navigation». Apesar de tudo isto, o legislador nacional parece, numa primeira análise

do diploma, circunscrever o regime da salvação à salvação marítima. Para além de o

preâmbulo começar com a afirmação de que «o presente diploma ocupa-se da salvação

marítima», a alínea a) do artigo 1.º, n.º1 define salvação marítima como «todo o ato ou

atividade que vise prestar socorro a navios, embarcações ou outros bens, incluindo o

frete em risco, quando em perigo no mar». Contudo, logo o artigo 1.º, n.º2 revela que,

afinal, o regime da salvação marítima não está circunscrito ao mar, já que considera

salvação marítima «a prestação de socorro em quaisquer outas águas sob jurisdição

nacional, desde que desenvolvida por embarcações». A salvação marítima é, afinal, tal

como na CL 1989, salvação aquática. Competirá, agora, à doutrina e à jurisprudência

afinar critérios, neste particular, evitando-se conclusões absurdas, aparentemente

facultadas pela letra da lei, mas muito longe do seu espirito e do berço do instituto que

é o mar e o perigo que lhe é inerente. Neste particular, podemos dizer, com Bonassies,

que «le nouveau texte va à l’extrême».

2. Delimitação da salvação marítima na CL 1989 e na LSM:

1. Os bens em perigo no mar: a LSM mantém o perigo no mar como requisito

essencial da salvação marítima. Não podia, aliás, deixar de ser assim: o perigo

dos bens, maxime do navio, constitui, desde sempre e universalmente, a nota

característica do instituto que lhe confere justificação e autonomia. A existência

de perigo no mar servirá para marcar a especificada da salvação, ao mesmo

tempo que a delimita de figuras que, de algum modo, lhe são próximas, como

o reboque. O perigo que correm os bens objeto da salvação é também pacífico

nas Convenções Internacionais sobre a matéria: quer a CB 1910 («embarcações

marítimas em perigo») quer a CL 1989 («a vessel or any other property in

danger») o acentuam. Não há, assim, nenhuma inovação da LSM relativamente

ao Direito anterior ou ao quadro normativo internacional, quando erege o

perigo no mar como requisito essencial da salvação. A extensão do artigo 1.º,

n.º2 da mesma LSM forçará, porém, à conclusão de que, verdadeiramente, a

salvação tem como requisito essencial o perigo na água. O que importa agora

focar é o universo de bens que podem ser objeto de salvação: ou seja dos bens

que, estando em perigo no mar, podem ser socorridos, em termos de a tal

socorro ser aplicável o regime da salvação. Sem preocupações de distinção

entre o campo de aplicação da salvação e o da assistência, o CCom era claro no

sentido da relevância, não só do navio, mas também das fazendas ou da carga.

Isso é incompatível pela leitura do artigo 681.º, nos seus vários números, e do

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artigo 682.º. Havia também alusão ao salvamento de pessoas, no §2.º do artigo

687.º, alusão que, no entanto, surgia algo lateralmente, a propósito da

repartição do salário. Deixando de lado o caso, demonstrativo, entre outros, da

«noblesse du droit maritime», da salvação de pessoas – que tem um regime

próprio, dito, por isso, de salvação obrigatória, quer face à LSM, quer face, entre

outros, à CB 1910 ou à CL 1989 – centremo-nos nos bens que podem constituir

objeto da salvação voluntária, à luz da CL 1989 e da LSM – independentemente

de ser espontânea ou contratual. A CB 1910 considera, no seu artigo 1.º, como

objeto possível de salvação, as embarcações marítimas, as coisa que se

encontrem a bordo, o frete e o preço da passagem, relevando também os

serviços de igual natureza, mutuamente prestados por embarcações marítimas

e de navegação interior. A CL adota uma fórmula mais larga, referindo-se a

qualquer ato ou atividade para socorrer um navio ou qualquer outro bem em

perigo («to assist a vessel or any other property in danger»). O objeto passível

da salvação seria, face à alínea a) do artigo 1.º, n.º1 CL 1989, qualquer bem em

perigo na água. Contudo, o artigo 3.º da mesma Convenção exclui do seu

âmbito de aplicação as plataformas fixas e as unidades de perfuração

(«platforms and drilling units»). A exclusão terá resultado, por um lado, da

pressão norte americana, em função do caráter altamente especializado dessas

estruturas de funcionamento e, por outro, do facto de estar, então, em

preparação um projeto de Convenção – que acabou por não ter sequência –

sobre as plataformas. O legislador nacional seguiu a solução universal da CL

1989, ao referir-se ao socorro a «navios, embarcações ou outros bens, incluindo

o frete em risco» (artigo 1.º, n.º1, alínea a) ), mas não excecionou as

plataformas e as unidades de perfuração. Ou seja, o legislador bem poderia ter-

se limitado a referir o «socorro a bens em perigo no mar» ou, em respeito pela

figura do navio, o «socorro a navios ou outros bens em perigo no mar», que a

solução não seria diversa daquela que resulta da letra da citada alínea a) do

artigo 1.º, n.º1 LSM. A nova fórmula tem consequências de relevo,

designadamente, conforme adverte Bonassies, a nível dos achados, havendo

que reequacionar o regime das épaves, distinguindo em função da existência

ou não de perigo no mar.

2. A atividade relevante: a CL 1989 caracteriza a operação de salvação como

«qualquer ato ou atividade desenvolvida para socorrer um navio» («any act or

activity undertaken to assist a vessel»). A CL 1989 afasta-se, assim, claramente,

do modo como, embora com relevantes vozes discordantes, vinha sendo

interpretada a CB 1910, que apontava no sentido de a salvação constituir uma

relação entre navios. Podemos invocar, neste sentido restritivo – do “navio a

navio” – da CB, expressões retiradas de algumas das suas disposições, como o

artigo 1.º («serviços de igual natureza mutuamente prestados por embarcações

marítimas e de navegação interior»), 5.º («se haja dado entre navios»), 6.º, III

(«ao serviço de cada um dos navios salvadores»), 8.º, alínea a) («o perigo que

tiverem corrido o navio socorrido, os seus tripulantes e passageiros, a sua carga,

os salvadores e o navio salvador»), 11.º, I («sem grave perigo para o seu navio»),

15.º, I («quer o navio assistente ou salvador, quer o navio assistido ou salvado»),

ou 15.º , II, §2.º («não será obrigatório senão entre navios»). Face à CL 1989, o

quadro altera-se significativamente: ao admitir como relevante para efeitos de

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qualificação com salvação any act or activity undertaken to assist, a CL

escancarou as portas à salvação a partir de terra ou do ar. Ora, a LSM enveredou

por esse caminho, considerando todo o ato ou atividade que vise prestar

socorro a bens em perigo no mar. Competirá à doutrina e, particularmente, à

jurisprudência, acertar critérios, deixando para o Direito Civil (v.g. regime da

gestão de negócios) o tratamento dos atos ou atividades sem relevância

salvadora. A citada opção da CL 1989 e, por inspiração da mesma, da LSM, de

considerar relevante «todo o ato ou atividade», põe termo a uma outra

polémica: a de saber se a opção de socorro teria de ser material ou se,

diversamente, poderia ser intelectual. Rodière entendia que a não

consideração do socorro intelectual como assistência, resultava do facto de

esta dever ser feita por um navio a outro navio. Face à redação utilizada, quer

na CL 1989 quer na LSM, o socorro prestado a navio em perigo via rádio, via

internet ou por outra qualquer via não material, constituirá também salvação.

3. Embarcações do Estado: o artigo 14.º CB 1910 delimita o âmbito de aplicação

da Convenção estabelecendo a sua não aplicação aos navios de guerra e aos

navios pertencentes ao Estado e exclusivamente empregados em serviço

público. Contudo, a nível interno, o Decreto 16.060, 14/10/1928, diploma que

aprovou o Regulamento para o Serviço de Salvação e Assistência no Mar,

prestados por navios de guerra, veio prever a remuneração por esses serviços,

previsão que não foi estendida aos outros navios do Estado, quando

exclusivamente empregados em serviço público. Entretanto, a nível

internacional, foi reconhecido que a solução do artigo 4.º CB 1910 não seria a

mais adequada, razão pela qual foi elaborado o Protocolo de 1967, prevendo a

aplicação da Convenção também aos navios de guerra e aos outros navios do

Estado ou pelo mesmo explorados ou afretados. Contudo, esse Protocolo não

foi ratificado por Portugal, tendo tido, aliás, uma fraca adesão. Numa solução

que, de algum modo, continua a do artigo 14.º CB 1910, o artigo 4.º, n.º1 CL

1989 afasta a aplicação da Convenção aos navios de guerra ou a outros navios

não comerciais pertencentes a um Estado ou por ele explorados que, aquando

das operações de salvação, tenham direito a imunidade, de acordo com os

princípios geralmente reconhecidos do Direito Internacional, a não ser que esse

Estado decida de outro modo. O artigo 16.º LSM surge com uma redação

inspirada no Protocolo de 1967 à CB 1910 e, de certo modo, na abertura do

artigo 4.º, n.º1 Cl 1989. Contudo, essa inspiração é apenas parcial, limitando-se

ao lado ativo: é aplicável o regime da salvação marítima quando o socorro é

desenvolvido por navios ou embarcações de guerra ou outras embarcações não

comerciais propriedade do Estado ou por ele exploradas, mas já não o é quando

tais embarcações sejam objeto de operações de salvamento. A um nível mais

amplo, importa salientar o disposto no artigo 9.º CL 1989 que deixa claro que a

mesma Convenção não prejudica o direito de cada Estado costeiro de tomar as

medidas conformes aos princípios geralmente reconhecidos no Direito

Internacional, a fim de proteger o seu litoral ou interesses conexos, face a

situações de poluição ou ameaça de poluição resultantes de um acidente de

mar ou de atos relacionados com um acidente desse tipo, dos quais se possam

razoavelmente prever as consequências mais graves; nessas medidas, o artigo

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9.º inclui também o estabelecimento de instruções ou diretivas no que tange

às operações de salvação.

3. Os contratos de Salvação Marítima:

1. Introdução: nem o CCom 1833 nem o CM 1888 continham uma regulamentação

dos contratos de salvação marítima, que só surge com a LSM. Contudo, nenhum

desses códigos estava alheado da realidade desses contratos, estabelecendo o

artigo 1608.º do Código Ferreira Borges que «toda a convenção, transação ou

promessa sobre salários de assistência ou salvados será nula, sendo feita no mar

alto ou ao tempo da varação com o capitão ou outro oficial, quer a respeito do

navio, quer das fazendas que se acharem em perigo». O mesmo artigo previa,

na sua 2.ª parte, a validade de «transações e ajustes amigáveis» após terminado

o perigo, sendo que os mesmos só vinculariam os donos, consignatários ou

seguradores, havendo acordo destes. Este regime correspondia já, grosso

modo, ao que vinha do Consulado do Mar. A Ordenança de Colbert declarava

nulas todas as promessas feitas aos pilotos feitos aos pilotos da barra e outros

marinheiros «no perigo do naufrágio». Por sua vez, o artigo 684.º do Código

Veiga Beirão estabelecia que todos os contratos feitos na constância do perigo

podiam ser «reclamados por exageração e reduzidos pelo juízo competente».

Também o artigo 685.º aludiu à existência de contratos, a estabelecer que os

critérios para fixação do salário de salvação ou assistência aí apontados tinham

lugar «na falta de convenção». A CB 1910 dedica uma maior atenção aos

contratos de salvação: para além de estabelecer (artigo 6.º) que o montante da

remuneração e a proporção da repartição entre os salvadores é fixado por

convenção das partes e, na sua falta, pelo juíz, dedica o artigo 7.º, nos seus dois

§, aos remédios relativamente às situações de vícios no consentimento e de

falta de equidade na remuneração estipulada. A CL 1989 dá aos contratos de

salvação um tratamento central, podendo dizer-se, com Bonassies, que ela

«ouvre une large place ao contrat». É, por outro lado, reconhecido que a

própria CL 1989 tem larga inspiração da prática da contratação, sendo muitas

das suas inovações inspiradas na versão de 1980 do Lloyd’s Open Form for

Salvage Agreement (LOF 1980).

2. Os contratos de salvação na CL 1989: o artigo 6.º, n.º1 CL 1989 consagra,

claramente, o caráter supletivo da Convenção relativamente aos contratos de

salvação. Os únicos limites à subsidiariedade resultam do artigo 6.º, n.º3 que,

assim, considera imperativo o regime do artigo 7.º, respeitante à anulação ou

modificação dos contratos de salvação, e ainda a obrigação do salvador de

evitar ou minorar danos ambientais. Os direitos e os deveres das partes – do

salvador e do salvado – resultam do artigo 8.º, dispondo que, no entanto, não

tem aplicação circunscrita à salvação contratual, aplicando-se igualmente à

salvação espontânea e mesmo à salvação obrigatória. Os contratos de salvação,

digamos, clássicos, aceitam a lógica do no cure no pay, não deixando, porém,

os contratos que consagrem uma remuneração segura, mesmo na ausência de

resultado útil, de ser verdadeiros contratos de salvação. Isso mesmo resulta,

aliás, claramente, do artigo 12.º, n.º2 CL: «except as otherwise provided, no

payment is due under this convention if the salvage operations have had no

useful result». A mesma conclusão resultaria, já, do facto de o artigo 6.º, n.º3

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da mesma Convenção não considerer imperativa a dependência do salário de

salvaçã em relação ao resultado útil – ou seja, não considerer imperative o no

cure no pay. Quanto à legitimidade e aos poderes para celebrar contratos de

salvação – matéria não regulada pela CB 1910 – o artigo 6.º, n.º2 CL 1989

consagra duas situações de representação legal; primeira: o capitão tem

poderes para celebrar contratos de salvação em nome do proprietário do navio;

segunda: o capitão ou o proprietário do navio têm poderes para celebrar tais

contratos em nome do proprietário dos bens que se encontrem a bordo. O

capitão, na medida em que representa, a um tempo, o proprietário do navio e

os proprietários dos bens, tem, assim, «ostensible authority» para aceitar

celebrar contratos de salvação, sujos efeitos se repercutem nesses interessados

na expedição. Na linha do artigo 7.º CB 1910, o artigo 7.º CL 1989 prevê que o

contrato de salvação ou qualquer das suas cláusulas possa ser anulado ou

modificado em duas situações. A primeira é se o contrato tiver sido celebrado

sob coação ou sob influência de um perigo, não sendo as respetivas cláusulas

equitativas. A segunda respeita à remuneração convencionada, quando a

mesma seja excessivamente elevada ou diminuta, atentos os serviços

efetivamente prestados.

3. O contrato LOF e a cláusula SCOPIC: o modelo standard de contrato de salvação

mais conhecido é, sem dúvida, o LOF, cuja última versão é do ano 2000.

Conforme é sabido, existiu, aliás, uma interação entre a prática contratual da

Lloyd’s e a preparação da CL 1989, em termos de esta Convenção acolher as

mais importantes inovações dos formulários LOF. Por outro lado, através da

cláusula J (Governing law), a CL 1989 acabou por ser incorporada no LOF 2000,

tudo isto sem prejuízo da especificidade das situações em que é acordada a

cláusula SCOPIC. Do modelo LOF 2000, destacamos, para além da sua cláusula

SCOPIC, a obrigação principal dos salvadores (contractor’s basic obligation) da

Cláusula A: os salvadores devem envidar os melhores esforços para salvar os

bens («hereby agree to use their best endeavours to salve the property»).

Podemos dizer que a origem próxima da cláusula SCOPIC (Special Compensation

Protection & Indemnity Club Clause) está no caso do navio The Nagasaki Spirit.

O navio em causa fora objeto de operações de salvação muito difíceis, na

sequência de um incêndio. A polémica, que acabou por ser decidida na Câmara

dos Lordes, centrou-se na questão de saber se a compensação especial prevista

no artigo 14.º CL 1989 permite considerar incluído nas despesas suportadas

pelo salvador (artigo 14.º, n.º2) um elemento de lucro. A Câmara dos Lordes

entendeu que a expressão fair rate do artigo 14.º, n.º2 CL 1989 não permitia

incluir esse elemento de lucro. Como dizem Hodges/Hill, «salvors have shown

themselves to be unhappy with the final decision in The Nagasaki Spirit». A

SCOPIC Clause nasce, a partir daqui, como forma de, por via contractual,

ultrapassar as limitações do artigo 14.º CL, fixando a fortait uma compensação,

ainda que não haja resultado útil e mesmo que não estejam em causa danos

ambientais suscetíveis de serem causados pelo navio ou pela sua carga. A

SCOPIC Clause surge referida na Cláusula C do LOF 2000, como opção,

constituindo uma Adenda ao contrato LOF (Main Agreement) e contendo várias

subcláusulas. Segundo Rebora, podemos apontar as seguintes características

principais da SCOPIC Clause:

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a. Destina-se a remediar os efeitos da decisão

The Nagasaki Spirit e ainda algumas incertezas

ligadas à interpretação da CL 1989;

b. Não questiona o princípio do resultado útil,

pretendendo apenas substituir a aplicação do

artigo 14.º CL 1989;

c. Só é aplicável se o salvador o quiser;

d. A iniciativa de pôr fim às operações cobertas

pela cláusula SCOPIC pertence ao salvado e ao

salvador;

e. É aplicável mesmo na ausência de ameaça real

ao ambiente;

f. É aplicável independentemente da situação

geográfica do bem objeto de salvação;

g. Não cobre o conjunto das prestações levadas

a cabo pelo salvador;

h. Irá provocar, progressivamente, uma

standardização das operações de salvação.

c. Os contratos de salvação na LSM:

i. A conformação do conteúdo do contrato de salvação: a LSM dedica o artigo 2.º

especificamente aos contratos de salvação marítima, começando (no n.º1) por

definir o espaço de atuação do princípio daliberdade contratual: toda a matéria

da salvação pode ser regulada livremente pelas partes, exceto no que concerne

ao preceituado nos artigos 3.º, 4.º, 9.º e 16.º. Consagra, assim, o artigo 2.º, n.º1,

o caráter supletivo do regime da LSM, com as apontadas exceções. Conforme é

sabido, as operações de salvação são objeto de uma intensa atividade,

obedecendo, normalmente, os contratos de salvação a modelos pré

preparados, o mais conhecido dos quais é seguramente o LOF (agora LOF 2000),

sendo também bastante conhecidos o SALVHIRE e o SALVCOM, publicados pela

BIMCO. O leque de matérias subtraídas à modelação do contrato é,

aparentemente, maior do que na CL 1989 (artigo 6.º, n.º3) onde, recorde-se, é

apenas ressalvado o disposto no artigo 7.º e os deveres de prevenir ou minorar

danos ambientais. O artigo 2.º, n.º1 LSM vai, como dizíamos, mais além, mas

abstém-se de considerar como imperativo o regime do n.º3 do artigo, que

contém matéria equivalente à do artigo 7.º CL. Não obstante a não inclusão

expressa da anulação ou modificação do contrato, temos por seguro estarmos

perante matéria subtraída ao acordo das partes, sendo, consequentemente

nulas as cláusulas que visem excluir oi limitar os direitos de anulação e de

modificação, designadamente através da inserção de cláusulas de renúncia.

Milita neste sentido, desde logo, o facto de a previsão da anulação ou da

modificação ter sido inserida após a consagração (não absoluta) do caráter

supletivo do diploma, sugerindo que o mesmo tem aplicação ao contrato de

salvação formado – ao contrato enquanto regulamento – independentemente

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de as respetivas cláusulas terem sido (na medida em que o possam ser)

construídas pelas partes ou resultem da aplicação do regime legal supletivo.

Em segundo lugar, a matéria do artigo 2.º, n.º3 LSM coloca-se, em rigor, fora

da construção do conteúdo do contrato, estando acima dessa operação.

Acresce que a redação do artigo 2.º, n.º3 aponta claramente no sentido da sua

imperatividade. Finalmente, last but not least, as situações de invalidade

podem, nos termos gerais, ser objeto de convalidação, em qualquer das suas

formas, mas não de renúncia antecipada; a confirmação, que é tida,

pacificamente, como a principal forma de convalidação dos negócios anuláveis,

só pode ter ligar após o desaparecimento do vício que constitui motivo da

anulabilidade, conforme resulta, aliás, do artigo 288.º, n.º2 CC. Daqui decorre

que uma renúncia ao direito de anular nunca poderia ter lugar; é esse o

momento em que, como diz Carvalho Fernandes, a ordem jurídica torna o

sujeito titular do direito potestativo de anulação ou confirmação «árbitro dos

seus próprios interesses». A primeira ressalva feita no artigo 2.º, n.º1 LSM é em

relação ao preceituado no artigo 3.º do mesmo diploma, que se refere ao dever

de prestar socorro a pessoas em perigo no mar. Já tivemos oportunidade de

chamar a atenção para a especificidade destas situações de salvação

obrigatória, que não suscitam dificuldades no que à respetiva imperatividade

concerne, de acordo, quer com múltiplos instrumentos internacionais,

designadamente a CL 1989 no seus artigos 10.º e 16.º, quer com outros

normativos internos, nos vários países. Também não suscita dúvidas o facto de

o dever de prestar socorro não ser um dever absoluto: ele tem lugar, como diz

o artigo 10.º, n.º1 CL 1989, referindo-se ao capitão, «so far as he can do so

without serious danger to his vessel and persons thereon» ou , como estabelece

o artigo 3.º, n.º1 LSM, «desde que isso não acarrete risco grave para a sua

embarcação ou para as pessoas embarcadas». A questão que se pode suscitar

– tanto mais que, como vimos o artigo 6.º, n.º1 CL 1989 não ressalva o disposto

no artigo 10.º da mesma Convenção – é a da necessidade ou da utilidade da

ressalva feita no artigo 2.º, n.º1 LSM, no que se refere ao artigo 3.º. Pensamos

que essa ressalva era, em rigor, desnecessária, já que é evidente o caráter

imperativo do disposto no artigo 3.º, cuja violação já dá lugar a sanções,

inclusive do foro penal, com base noutros normativos. Num prisma civilístico,

qualquer cláusula contratual que impusesse uma atuação desconforme com o

estabelecido no artigo 3.º, n.º1 seria já, de per si, nula por contrariedade à

ordem pública (artigo 280.º, n.º1), entendendo-se por esta «um complexo

valorativo que deve ser em qualquer caso mantido dentro da comunidade». Fora

a polémica, em rigor também desnecessária, por resultar já do próprio artigo

486.º CC, é a remissão para este último dispositivo feita pelo artigo 3.º, n.º2.

Outro regime, que o artigo 2.º, n.º1 LSM considera necessariamente integrado

no conteúdo do contrato de salvação, é o que resulta do artigo 4.º a mesma Lei.

Todo o elenco de obrigações do salvador aí enunciado – e não apenas o da

alínea b), relativo ao evitar ou minorar danos ambientais, conforme seria se o

legislador nacional se cingise aos termos do artigo 6.º, n.º3 CL 1989 – faz assim

parte do regulamento contratual. Nada há, do nossos ponto de vista, a objetar

a esta opção, independentemente das dificuldades que o cumprimento de

algum dos deveres aí enunciados acarrete, sob o ponto de vista jurídico. O

legislador nacional considera, também, imperativo o regime da compensação

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especial do artigo 9.º. Também aqui vai mais longe do que o estabelecido no

artigo 6.º, n.º3 CL 1989, que se limita a considerar imperativos os deveres de

prevenir ou minorar danos ambientais. A solução da SLM é positiva: ela pecaria

por defeito se considerasse imperativo o dever de evitar ou minorar danos

ambientais (inserido na alínea b) do artigo 4.º) e não atenuasse a rigidez da

regra no cure no pay, nos termos do que resultam, grosso modo, do artigo 14.º

CL 1989 e do artigo 9.º LSM. Finalmente, faz parte do conteúdo necessário do

contrato de salvação o regime que resulta do artigo 16.º. Estamos perante uma

originalidade do legislador nacional que não tem antecedente na CL 1989 ou na

CB 1910. Admitindo – fiados, iuris et de iure, no facto de não ter avido

retificação do diploma, neste ponto – que o legislador quis, de facto, remeter

para o artigo 16.º, supomos ter tido sobretudo em vista a posição dos navios

do Estado enquanto salvadores e, nessa medida, eventuais credores, nos

termos do artigo 5.º, 9.º, ou 11.º. Por sua vez, ao considerar imperativa a não

aplicação do regime da LSM quando as embarcações do estado sejam objeto

de operações de salvamento, o legislador nacional terá querido,

aparentemente, evitar que o Estado tenha de suportar as remunerações em

causa. Contudo, esta situação é geradora de perplexidades: o artigo 16.º, que

o artigo 2.º, n.º1 considera imperativo, veda a aplicação da LSM e não a própria

celebração de contratos de salvação marítima, v.g. o LOF 2000; ou seja: não

impede o regresso da lógica da CL 1989, pela via do LOF, antes impossibilitado

pela via do artigo 16.º LSM. Todo este quadro terá de ser, por sua vez, articulado

com o disposto no artigo 14.º CB 1910, a que Portugal está vinculado.

ii. As representações na celebração do contrato de salvação: o artigo 2.º,

n.º4 LSM ocupa-se dos poderes para celebrar contratos de salvação no

que ao salvado concerne, investindo o capitão do navio objeto de

salvação – o quem nele desempenhe funções de comando – na

qualidade de representante de todos os interessados na expedição

marítima. A solução está na linha da adotada no artigo 6.º, n.º2 CL 1989,

tendo a vantagem, em relação a esta, de ser mais simples, uma vez que

não erege o proprietário do navio em representante, a par do capitão,

dos proprietários dos bens que se encontrem bordo do navio. À

margem do regime da salvação, o capitão é já um representante do

proprietário ou do armador do navio em tudo o que se relacione com

a expedição marítima: assim resulta do artigo 8.º DL 384/99, 23

setembro – que, compreensivelmente, retira essa qualidade ao capitão

no local da sede do proprietário ou do armador. Aliás, conforme resulta

do artigo 5.º, n.º1 do mesmo DL, o capitão, enquanto encarregado do

governo e da expedição do navio, responde como comissário do

armador, qualidade esta que o DL 202/98, 10 julho, lhe reconhecia

(artigos 4.º a 6.º), na linha, de resto, do regime do artigo 492.º CCom.

O mesmo DL 202/98, no seu artigo 8.º, n.º1, já consagrava o regime

constante, também, do citado artigo 8.º DL 384/99, exatamente nos

mesmos termos, estabelecendo o artigo 8.º, n.º2, curiosa e

significativamente, que essa representação «não é afetada pela

presença do proprietário, do armador ou de outros seus

representantes». A especificidade do regime do artigo 2.º, n.º4 está,

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assim, no facto de o capitão surgir como um representante – legal,

naturalmente – não só do proprietário ou armador do navio, mas de

todos os interessados na expedição marítima. A fórmula é feliz, sendo

aquela que se apresenta mais consonante com o facto de, em princípio,

a celebração de contratos de salvação, por parte do navio salvdo,

constituir avaria grossa, na qual, como é sabido (artigo 685.º, §1.º),

está em causa uma atuação do capitão ou por sua ordem «para a

segurança comum do navio e da carga». Estando em causa – e na

medida em que esteja em causa – mais do que o navio, o capitão

vincula todos os interessados na expedição, ainda que celebre o

contrato de salvação contra ordem expressa do proprietário ou do

armador. A circunstância de ter poderes de representação não

dispensa, como é óbvio, o capitão do cumprimento dos deveres

elencados designadamente nas alíneas h) e j) do artigo 6.º DL 384/99 –

deveres esses que já resultariam, aliás naturalmente, da sua qualidade

de representante. Mais concretamente, o capitão deve (alínea h) ),

«convocar a conselho oficiais, armadores, carregadores e sobrecargas,

sempre que for previsível a ocorrência de perigo para a expedição

suscetível de causar danos ao navio, tripulantes, passageiros ou

mercadorias» e, ainda (alínea j) ), «informar o armador, os

carregadores e os sobrecargas, sempre que possível (…) sobre os

acontecimentos extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as

despesas extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as

despesas extraordinárias efetuadas ou a efetuar em benefício do navio

e sobre os fundos para o efeito constituídos».

iii. Características e natureza do contrato de salvação: o contrato de

salvação marítima está sujeito a forma escrita, conforme impõe o

artigo 2.º, n.º2 LSM. A solução é algo rígida, não constando da CB 1910

nem d CL 1989, conquanto surja, depois, atenuada pela admissão, no

âmbito da forma escrita, de, designadamente, cartas, telegramas, telex,

telecópia e outros meios equivalentes, criados pelas novas tecnologias,

incluindo-se neste âmbito as potencialidades da contratação eletrónica.

O contrato de salvação marítima surge, depois, claramente, como um

contrato obrigacional, sem notas de realidade, quer quoad effectum

quer quoad constitutionem. Independentemente – e sem prejuízo –

das polémicas sobre a natureza jurídica da salvação espontânea, têm-

se suscitado dúvidas sobre a natureza da salvação contratual. Sendo

seguramente um contrato típico e nominado, não parece ser possível

negar-lhe a pertença à grande família dos contratos de prestação de

serviços, conquanto o «certo resultado», a que se refere o artigo 1154.º

CC, deva ser entendido, não como o resultado útil associado ao

princípio no cure no pay, mas como o efeito dos melhores esforços,

tendo em vista a salvação. Finalmente, no que respeita à dicotomia

gratuitidade/onerosidade, a dúvida surge, fundamentalmente, quando

o contrato de salvação se apresente sujeito à regra – supletiva – no

cure no pay do artigo 5.º, n.º1 da LS, não estabelecendo as partes uma

remuneração fixa ou mínima. Essa dicotomia, tal qual aceite pela

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doutrina, não capta a especificidade destes contratos, que nos

parecem melhor situados nessa categoria, algo nebulosa, dos

contratos de risco.

iv. As situações de anulabilidade ou de modificabilidade dos contratos de

salvação: vimos já supra, com referência ao Consulado do Mar e ao

CCom 1833, ser antiga e justificada a suspeição em relação aos

contratos celebrado a bordo no mar, na medida em que a situação de

dependência da vida e dos bens de uma das partes ponha em causa o

equilíbrio contratual. Viu-se também que o CCom 1888 previa, no seu

artigo 684.º, a possibilidade de reclamação por exagero bem como de

redução pelo juízo competente, em relação aos contratos feitos

durante o perigo. Adriano Anthero explicava o regime do artigo 684.º

em unção da sua harmonia com o disposto no artigo 666.º Código de

Seabra, que considerava nulo o contrato, «sendo o consentimento

extorquido por coação», independentemente de o mesmo provir de

algum dos contraentes ou de terceiros. De forma mais eloquente e

certeira, Cunha Gonçalves, depois de referir que «o capitão do navio,

que está em iminente risco, encontra-se manifestamente num estado

de coação», assinala diferenças entre a solução do artigo 684.º CCom

e ado artigo 666.º CC, em função da inadequação da solução da

invalidade: «Admitir a possibilidade de se anular o contrato era o

mesmo que sistematizar na lei a ingratidão, tão natural, depois de ter

recebido o favor, na maioria dos homens, que são destituídos de

memória moral. Estas razões militavam, segundo o autor, a favor do

justíssimo princípio do artigo 684.º, de acordo, de resto, com os

Congressos de Antuérpia de 1885 e de Bruxelas de 1888. Na linha do

estabelecido no artigo 7.º CB 1910 e do artigo 7.º CL 1989, a LSM vem,

no seu artigo 2.º, n.º3, prever a possibilidade de anulação ou

modificação das «disposições dos contratos de salvação marítima»,

numa dupla base: nos termos gerais de direito e ainda nos casos

enunciados nas alíneas a) e b) do artigo 2.º, n.º3. A referência do

legislador nacional a «disposições dos contratos» é obviamente infeliz,

devendo ler-se no sentido lógico e natural de «os contratos ou

qualquer das sauas cláusulas» - correspondente, de resto, às seguintes

expressões das versões francesas e inglesa do artigo 7.º CL 1989: «un

contrat ou l’une quelconue de ses clauses» e «a contract or any terms

thereof». A remissão para a anulação nos termos gerais de Direito fala

por si, não cabendo aqui a inventariação das situações sobre as quais

pode impender a sanção da anulabilidade. É, porém, evidente que as

figuras que, com mais probabilidade e frequência, terão aqui aplicação

são a coação moral, o estado de necessidade enquanto vício da

vontade e o negócio usurário. Conforme é destacado pela doutrina, a

ameaça ilícita a que se refere o artigo 255.º, n.º1 CC – que diz quando

é que a declaração negocial é feita sob coação moral – pode dirigir-se

contra qualquer bem jurídico, sendo essencial que o sujeito se tenha

determinado precisamente por força do medo e um mal. O estado de

necessidade exlui o ilícito por ser uma causa de justificação (artigo

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339.º), mas pode ser visto como vício na formação da vontade, caso

em que se imporá a respetiva delimitação face à coação moral. Na

caracterização de Manuel de Andrade, «estado de necessidade é uma

situação de forte temor ou receio ocasionada por um perigo grave de

origem natural ou proveniente de um facto humano». Elucidativo do

relevo do estado de necessidade com vício da vontade nas situações

de perigo no mar é o facto de Manuel de Andrade19, tratando do valor

dos negócios jurídicos realizados em estado de necessidade, tomar

como referência da solução que considerava mais justa – a

redutibilidade dos negócios – o disposto no artigo 684.º CCom. Para

aquele autor, a solução do citado artigo do Código Comercial,

conquanto tivesse em vista apenas o perigo no mar, devia ser

generalizada, por analogia, aos contratos feitos em estado de

necessidade proveniente de um perigo de outra ordem. De qualquer

modo, face ao Código Civil atual, as situações de estado de necessidade

já não são tratadas como vício da vontade, mas no âmbito da figura do

negócio usurário: o artigo 282.º, n.º1 CC trata, precisamente, como

usurária, a exploração da situação de necessidade de outrem. O

negócio é usurário quando alguém explora a situação de especial

vulnerabilidade de outrem, obtendo para si ou para terceiro a

promessa ou a concessão e benefícios excessivos ou injustificados. A

exploração dessa situação de vulnerabilidade – que, de acordo com o

artigo 282.º, n.º1 CC, pode resultar de uma situação de necessidade,

inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de

caráter de outrem – determina a anulabilidade do negócio, mas, numa

técnica diferente da adotada quanto a vícios de vontade, permite

também a reductio ad aequitatem, nos termos do artigo 282.º CC. De

resto, conforme refere Menezes Cordeiro, os negócios usurários

correspondem a um instituto autónomo, direcionado para as situações

em que há um desequilíbrio não justificado das prestações, não sendo,

portanto, recondutível nem aos bons costumes nem aos vícios na

formação da vontade. No caso da salvação marítima, a exploração

típica será a data da situação de necessidade do salvado, cujos bens

estão em perigo no mar. Importa finalmente referir, com Menezes

Cordeiro, remetendo-se quanto ao mais para o regime geral da usura,

que as proposições do artigo 282.º CC devem ser interpretadas na

lógica dum sistema móvel: «quando a lesão seja muito grande, a

exploração e a fraqueza do prejudicado poderão estar menos

caracterizadas. E quando a dependência do prejudicado seja

escandalosa – por exemplo – não será de exigir um tao grande

desequilíbrio. Quanto à modificabilidade nos termos gerais de direito,

ela pode resultar, como vimos, do próprio regime da usura. Como

refere Pais de Vasconcelos, o regime da modificação «tem como

finalidade a reposição do equilíbrio económico do contrato, através da

correção e da eliminação do desequilíbrio que o inquina». O artigo

283.º, n.º1 CC permite, efetivamente, ao lesado, requerer a

19 Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, pp. 281-282

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modificação do negócio segundo juízos de equidade. Por sua vez,

requerida a anulação, a parte contrária tem a faculdade de opor-se ao

pedido, declarando aceitar a modificação do negócio (Arrigo 282.º,

n.º2). A preocupação com o aproveitamento do negócio é clara no

artigo 282.º: contudo, essa conservação terá de ser feita numa lógica

de eliminação do desequilíbrio viciador da justiça interna do contrato.

Também nos termos gerais, o contrato de salvação pode ser objeto de

modificação nos termos do artigo 437.º, n.º1 CC: alterando-se

anormalmente as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão

de contratar, a parte lesada tem direito à modificação do contrato

segundo juízos de equidade, ou à resolução, desde que a exigência das

obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé

e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. Têm aqui

aplicação, em sede de contrato de salvação, os contributos que a

doutrina nacional tem trazido para a consideração das alterações

relevantes – para a alteração anormal – para a grave afetação do

princípio da boa fé, para a tónica na exigência das obrigações para a

determinação dos riscos próprios do contrato, ou para a modificação

baseada em juízos de equidade. Não cabendo, aqui e agora, a análise

desses pontos, não podemos deixar de focar, contudo, o problema da

determinação do risco próprio do contrato de salvação. Essa

determinação não respeita a um risco abstrato do tipo do negócio mas

ao risco ou à álea do contrato que esteja em causa: assim, se o contrato

de salvação é celebrado relativamente a um navio que corre um

determinado e identificado perigo e, antes das operações de salvação,

em virtude da imprevista e imprevisível alteração das condições do mar

e do estado do navio, esse perigo se agrava consideravelmente em

termos de tornar substancialmente mais onerosas e perigosas as

mesmas operações, é de facultar ao salvador a solução de,

conservando o contrato, modificar as respetivas cláusulas, máxime, no

caso concreto, o salário que tenha sido fixado. O artigo 2.º, n.º3 LSM

permite a anulação ou a modificação do contrato de salvação nos casos

previstos nas suas alíneas a) e b). Aparentemente, atenta a anterior

previsão da anulação ou modificação «nos termos gerais de direito», as

alíneas em causa conteriam matéria nova, não abrangida por aquela

previsão. O primeiro caso específico de anulação ou modificação

previsto no artigo 2.º, n.º3 é (alínea a) ) o de «o contrato ter sido

celebrado sob coação ou influencia de perigo, não se apresentando

equitativas cláusulas». Abstraindo da má redação em língua

portuguesa da frase inicial – que segue de perto as expressões inglesas

e francesas da alínea a) do artigo 7.º CL 1989 – constatamos de

imediato a referência à celebração do contrato de salvação sob coação.

Não é crível que o legislador se tenha querido referir à coação física,

restando a coação moral, já abrangida, como vimos, pela remissão para

a anulação nos termos gerais. Haveria, porém, ainda numa primeira

leitura, uma originalidade nesta referência específica à coação:

enquanto que, nos termos gerais, a coação moral “apenas” determina

a anulabilidade do negócio (artigo 256.º CC), nos termos da alínea a)

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do artigo 2.º, n.º3 LSM, ela permitira, não só a anulação mas também,

à semelhança do que ocorre no negócio usurário, a modificação do

contrato. Parece-nos, porém, que a coação referida na citada alínea a)

não é a coação moral do artigo 255.º CC mas, antes, a coação no

sentido comum do termo, equivalente à «pression abusive» da versão

ou à «undue influence» da versão inglesa. Assim sendo, tal situação de

pressão abusiva, destinada a obter vantagens desconformes com a

equidade – ou seja, vantagens desproporcionadas, que ferem o

equilíbrio contratual – corresponderá à situação caracterizada na nossa

lei como negócio usurário no artigo 282.º CC. E o mesmo se dirá da

outra situação prevista na alínea a) do artigo 2.º, n.º3: a influência do

perigo. Na verdade, se o contrato é celebrado sob influência do perigo

e as cláusulas se apresentam, em consequência dessa influência,

atentatórias do equilíbrio contratual, isso significará, na linguagem do

artigo 282.º CC, que terá havido exploração da situação de necessidade

associada ao perigo, o que nos conduz, de novo, para os braços do

negócio usurário. Ou seja e em resumo, as situações da alínea a) do

artigo 2.º, n.º3 LSM estão contidas na remissão para a anulação ou

modificação nos termos gerais de direito, já que lhes devem ser

aplicados os requisitos exigidos para a caracterização de um negócio

como usurário. O segundo caso específico de anulação ou modificação

previsto no artigo 2.º, n.º3 LSM (alínea b) ) é o de «o salário de salvação

marítima ser manifestamente excessivo ou diminuto em relação aos

serviços prestados». O legislador toma por referência uma situação

objetiva – a situação em que existe um desequilíbrio manifesto entre

as prestações de cada uma das partes – e, independentemente de

quaisquer ponderações subjetivas, como um vício da vontade

identificável na coação ou na exploração da situação de outrem, como

ocorre na usura, determina a suscetibilidade da modificação da

cláusula relativa ao salário de salvação. Aparentemente, o legislador

permitiria, também, a anulação na situação da alínea b). Contudo, não

nos parece que assim seja. Na verdade, estamos perante uma situação

de manifesto desequilíbrio entre as posições das partes, que pressupõe

a ocorrida prestação dos serviços de salvação. Ou seja, a desproporção

manifesta de posições acontece, não numa fase genética do contrato,

mas numa fase posterior, fase essa em que, prestados os serviços, a

única reação que faz sentido económico e jurídico é a da modificação.

Contudo, essa modificação não é equivalente à do artigo 437.º, n.º1 CC,

já que não se funda numa alteração das circunstâncias: ela basta-se,

para ter lugar, com a identificação do desequilíbrio manifesto.

Podemos concluir, assim, que a previsão da alínea b) do artigo 2.º, n.º3

da LSM é autónoma, por não estar já, integrada na remissão para os

«termos gerais de direito». Propendemos, ainda, no sentido de à

previsão da alínea b) só poder, por interpretação restritiva, ser aplicada

a solução da modificação e não também a da anulação.

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Limitação de Responsabilidade por Créditos

Marítimos20

1. O abandono in natura nos códigos comerciais de 1833 e de 1888:

1. As situações de responsabilidade do proprietário do navio e as de abandono

possível: quer o Código Comercial de 1833, quer o de 1888 consagravam

expressamente a faculdade de abandono do navio e do frete por parte do

proprietário do navio, abandono este que era tido como sendo um abandono

in natura. A consagração do abandono in natura nos Códigos Comerciais

portugueses, fortemente influenciados pelo sistema francês, não suscita

qualquer perplexidade, tanto mias que o sistema de abandono estava já em

vigor em Portugal, por força da Ordonnance da Marinha de Colbert21, aplicável

por força da Lei da Boa Razão. Reproduzindo praticamente a versão inicial do

Code du Commerce, o Código de 1833 começava por estabelecer que «todo o

proprietário de navios» era civilmente responsável «pelos factos do capitão ou

mestre, em quanto relativos ao navio e a sua expedição». Seguia-se a previsão

do abandono: «cessa em todo o caso a responsabilidade do dono pelo abandono

do navio, e do frete, ganho ou a vencer». Na doutrina, Ferreira Borges dava nota

da polémica da doutrina francesa relativamente ao âmbito do abandono

possível, face à redação inicial do Code du Commerce, considerando como

«doutrina verdadeira que pelo abandono do navio e frete os danos do navio se

livrão de toda a responsabilidade provenientes quer de facto quer de delictos do

mestre». O Código Veiga Beirão veio também consagrar a responsabilidade do

proprietário do navio, o que é feito no artigo 492.º, em termos que suscitam

alguma perplexidade, quando confrontamos as situações de responsabilidade

com aquelas em que é facultado o abandono. Mais concretamente, o artigo

492.º - que só viria a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 202/98, 10 julho –

consagrava a responsabilidade civil do proprietário do navio (artigo 1.º) pelos

atos ou omissões do capitão e da tripulação (artigo 2.º) pelas obrigações

contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição (artigo 3.º) pelos

prejuízos ocorridos durante o tempo e por ocasião de qualquer reboque e

(artigo 4.º) pelas faltas de pilotos ou práticos tomados a bordo. Já no que

respeita à faculdade de abandono do navio e do frete, o §1.º do mesmo artigo

limitava-a às situações de responsabilidade previstas no n.º2, afastando, assim,

do seu âmbito de aplicação, o conjunto das situações paradigmáticas ou

históricas do instituto – desde a Ordonnance, passando pelo Code du Commerce

e pelo Código Ferreira Borges – ou seja o conjunto dos factos do capitão e da

20 Limitação de Responsabilidade por Créditos Marítimos, Capítulo III – Responsabilidade pela Expedição Marítima e a sua Limitação, Januário da Costa Gomes, Almedina; páginas 114 a 219. 21 Segundo Viegas Calçada, a doutrina do abandono era seguida, em Portugal, antes mesmo da Ordonnance, «pelo consentimento e aplicação dos preceitos do Consulado do Mar»; contudo, o autor não indica nenhuma fonte que possa servir de suporte a esta afirmação. De resto, há quem, como Pardessus, coloque o Portugal da Idade Média sob a influência atlântica dos Rolos de Oléron – que não previam a limitação da responsabilidade do armador – que não sob a influência mediterrânea do Consulat del Mar.

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tripulação relativos ao navio e à expedição22, não foi explicada, tanto mais que

nos textos inspiradores do Código de 1888, desde o Code du Commerce até ao

Código Comercial Italiano de 1882 ou ao Código Comercial Espanhol de 1885,

diplomas apontados como tendo influenciado o legislador de 1888, não

encontramos apoio para uma tal opção que, ao fim e ao cabo, excluía das

situações de abandono possível os casos de responsabilidade civil extra-

obrigacional. Não espanta, assim, que uma das perplexidades manifestadas

pela doutrina – de algum modo tolhida pela aparente clareza da letra da lei –

tenha incidido, precisamente, sobre a questão da dimensão da faculdade de

abandono. Dentro da fieira de delicados problemas suscitados pelo abandono

do navio e do frete – uma vez assumida, conquanto não necessariamente

compreendida, a especificidade do regime no §1.º do artigo 492.º Código

Comercial – a principal tarefa do intérprete centrava-se na, tanto quanto

possível rigorosa, delimitação das situações em que o abandono liberatório era

possível, situações essas albergadas sob a designação de «obrigações

contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição». Previamente a uma

concretização, pela positiva, da previsão do n.º2 artigo 492, da qual derivará,

per relationem, o âmbito de incidência do abandono liberatório no Código

Comercial de 1888, importa vincar a exclusão do abandono – mantendo-se,

obviamente, a responsabilidade do proprietário do navio – relativamente às

obrigações contraídas para pagamento de soldadas à tripulação, por força do

artigo §1.º artigo 492.º. A exclusão da eficácia liberatória do abandono

relativamente aos créditos de soldadas era explicada quer com base no caráter

não imprevisto de tais despesas quer com razões de humanidade, lendo-se,

assim, em Adriano Anthero: «já porque a equipagem foi formada de harmonia

com o proprietário e, portanto, este obriga-se pessoalmente e diretamente a

pagar-lhe; já, porque o débito dos salários não é um débito imprevisto e, pelo

contrário, é tal que, até ao fim da expedição, deve julgar-se inevitável; já porque

os salários dos tripulantes são, como vulgarmente se diz, sagrados, por serem a

paga do suor dos pobres; e ainda porque a lei os considera tão favorecidos, que

até lhes dá o privilégio sobre o navio e frete, nos termos dos artigos 578.º, n.º6,

e 572.º, nº.2». A responsabilidade do proprietário do navio pelas obrigações

contraídas pelo capitão apresentava-se como lógica, atento o facto de este ser

um representante daquele. A falta dessa representação seria a explicação para

o facto de o n.º2 artigo 492.º não se referir também – diversamente do que

acontece no n.º1 – às obrigações contraídas pelos membros da tripulação. Esta

mesma lógica da representação era erigida por Adriano Anthero como

explicação da circunscrição do abandono do navio relativamente às situações

previstas no n.º2 artigo 492.º: «Ora, todo aquele que contratar com o capitão

deve conhecer que ele é apenas um representante do proprietário quanto ao

navio, e que não tem, portanto, poderes, além do objeto mandato, que vem a

ser o valor do mesmo navio». E conclui «Por isso, também o contraente não

pode contar com mais nada para o seu pagamento, além do mesmo navio; e,

por consequência, não se pode queixar se o proprietário lho abandonar em

pagamento da dívida». Delimitação, pelo recorte negativo, plasmado no §1.º

22 Situações essas nas quais tanto se compreendiam os casos de responsabilidade extra-obrigacional como de responsabilidade obrigacional.

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do artigo 492.º, o âmbito do abandono do navio e do frete ganho ou a vencer,

determinada estava a correspondência entre a previsão do n.º2 e do §1.º do

artigo 492.º: o abandono liberatório era possível relativamente a todas as

obrigações contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição, salvo as

que espeitassem às soldadas da tripulação. Substancialmente, mas com a citada

exce3ção, o abandono podia ser feito relativamente às obrigações contraídas

pelo capitão no exercício das suas funções. Assim é que se admitia o abandono

do navio e do frete relativamente a todas as obrigações contraídas pelo capitão,

ainda que fora do navio, relativas ao navio e expedição, quer essas obrigações

decorressem da atividade normal do capitão, quer de incumprimento ou

cumprimento defeituoso de obrigações assumidas.

2. Responsabilidade do proprietário ou do proprietário-armador? Tal qual

acontecia no domínio de vigência do artigo 1339.º Código Ferreira Borges, o

artigo 492.º Código Comercial consagrava, literalmente, os termos da

responsabilidade do proprietário do navio, estando, também literalmente, a

faculdade de abandono gizada com referência a esse responsável. Era essa, de

resto, a solução literal do Código Comercial Francês e também do Italiano.

Contudo, os atos e factos relativamente aos quais era estabelecida a

responsabilidade do proprietário do navio eram, na sua maioria e na sua

esmagadora expressão, atos ou atividades resultantes da exploração do mesmo,

suscitando-se, em consequência, a lógica dúvida sobre se a responsabilidade e

o abandono estavam, summo rigore, previstos para o proprietário do navio, qua

tale, ou se, diversamente, deveria entender-se a referência a «proprietário»

como se reportando a «armador» ou então, pelo menos, a «proprietário-

armador». Dúvidas similares tinham sido também levantadas e profusamente

discutidas em França e em Itália, face, respetivamente, ao teor do artigo 216.º

Code e ao do artigo 491.º do códice di commercio. Na doutrina portuguesa,

encontramos, desde cedo, autores consagrados, como Adriano Anthero, para

quem, ainda que o armador fosse pessoa diversa do proprietário, este

respondia pelas faltas do capitão, «já porque o código não distingue, e já porque

o navio é que vem a ser a garantia do capitão e da tripulação». A

responsabilidade do proprietário do navio resultava, para o autor, do facto de

o capitão ser seu mandatário e ainda do facto de, regra geral, o capitão «não

tem meios por onde responda ou não se sabe onde os tem». A reação contra

esta ideia surge, sobretudo, com Cunha Gonçalves, para quem a

responsabilidade consagrada no artigo 492.º do Código era do armador-

proprietário e não do simples proprietário, considerando mesmo

«completamente inaceitável» a posição contrária. No entanto, já depois de

Cunha Gonçalves, autores como Frederico Martins sustentaram a

responsabilidade do proprietário do navio, nos termos do artigo 492.º,

independentemente de o mesmo cumular a qualidade de armador: «não

parece natural que ao legislador escapasse uma hipótese tão vulgar, como é a

de ser o armador pessoa distinta da do proprietário, e antes significa que no

espírito da lei está o propósito de manter o proprietário do navio responsável

pelos atos do comandante e tripulação, qualquer que seja o armador», e ainda:

«os interesses do comércio exigem que haja uma entidade certa responsável por

tudo o que se passa no navio, e o proprietário é a única entidade conhecida de

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101

terceiros, porque tem o seu nome inscrito nos respetivos registos». Também

Palma Carlos se mostra, aparentemente, insensível a uma interpretação do

artigo 492.º CCom que concentre na figura do proprietário as qualidades de

proprietário-armador. Segundo Cunha Gonçalves, a responsabilidade dos

proprietário dos navios pelos atos do capitão e da tripulação e pelas obrigações

contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição não era fundada «no

simples facto da propriedade do navio, mas sim no princípio geral em que

assenta a responsabilidade dos comitentes, consignado no artigo 2380 CC, e,

portanto, no uso do navio ou no exercício da indústria de transportes

marítimos». A partir daqui, explicado o regime especial do artigo 492.º CCom

pelos termos do regime geral do artigo 2380 Código Seabra, o autor justifica o

porquê da própria necessidade do artigo 492.º, com o seguinte argumento:

«embora a matéria da responsabilidade do comitente esteja regulada no Código

Civil, nada se perdeu determinando-se no Código Comercial os casos de

responsabilidade do proprietário-armador, antes isto era indispensável para se

estabelecer a limitação de responsabilidade em cada caso, limitação que se não

encontra na lei geral». O exposto argumento de Cunha Gonçalves, admitindo o

pressuposto do autor de que a responsabilidade do armador – o armador-

locatário ou armador-fretador, que não o armador-gerente – pelos atos do

capitão resultava do princípio geral do artigo 2380.º CC, poderá, a priori,

apresentar-se como pouco convincente, podendo questionar-se se o legislador

precisava repetir no artigo 492.º o regime geral do Código Civil, para efeitos de

estabelecer um mecanismo específico de limitação da responsabilidade

circunscrito a apenas algumas das situações de responsabilidade, mais

concretamente às no n.º2 artigo 492.º. Aparentemente em resposta ao

argumento de que o navio e o frete seriam uma garantia dos terceiros credores,

que julgam contratar com o navio, ripostava Cunha Gonçalves: «porque o

abandono, longe de ser uma garantia, um benefício e um direito real instituído

a favor dos credores, só importa um a diminuição das suas garantias, pois a

responsabilidade dos armadores fica assim limitada ao navio e ao frete». A

poucos anos da revogação do artigo 492.º CCom pelo Decreto-Lei n.º 202/98,

Menezes Cordeiro veio sustentar que a referência ao proprietário,

designadamente no artigo 492.º CCom, deveria ser objeto de cuidada

interpretação, em ordem ao apuramento sobre se o legislador se referia,

efetivamente, ao proprietário ou, antes, ao armador ou mesmo ao proprietário-

armador. Para o autor, a imputação prevista nos termos do artigo 492.º CCom

operava a título de risco, no regime da comissão, sendo aí consagrada «uma

especial versão da responsabilidade do comitente»; nesta lógica, o mesmo autor

sustentava que essa responsabilidade como comitente recaía sobre o armador,

independentemente de ser proprietário: «pode proclamar-se que apenas o

armador ou o proprietário-armador responde, como comitente,

independentemente da culpa, pelos danos causados pelo navio ou a seu

propósito; o proprietário não-armador não responde senão pelo ilícito próprio».

A posição de Menezes Cordeiro surge, depois, contrariada por Mário Raposo,

para quem, «perante terceiros, o responsável é o navio, seja ele prefigurado pelo

proprietário ou pelo armador», considerando, ademais, que a solução

sustentada por Menezes Cordeiro, que enquadra num «evidente tentame

doutrinal e jurisprudencial para uma atualização do sistema do artigo 492.º», é

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«uma solução que arruma na gaveta problemas complexos». Na jurisprudência,

importa destacar o Acórdão do STJ 1 fevereiro 1983, que segue de perto a

posição de Cunha Gonçalves, entendendo que «só existe responsabilidade do

proprietário do navio pelas obrigações contraídas pelo capitão desde que a

navegação seja por ele exercida, quer diretamente quer por meio de um

gerente». Conforme resulta do exposto, quer a teoria que sediava no artigo

492.º CCom uma responsabilidade do proprietário-armador, quer aquela que

admitia a responsabilidade do simples proprietário, tinham a seu favor

argumentos de peso. Digamos que, sob o ponto de vista dos princípios gerais

da responsabilidade civil, a tese que, a priori, nos surge como mais atrativa é

aquela que foi sucessivamente defendida, entre outros, por Cunha Gonçalves e

Menezes Cordeiro, identificando o proprietário do citado artigo 492.º com o

proprietário-armador. Por um lado, não parecia fazer sentido responsabilizar o

mero proprietário pela expedição, cujo dominus é o armador; por outro, o

direito de abandono do navio e do frete só se apresentava como lógico

relativamente a quem, sendo proprietário do navio, fosse também responsável

pela expedição. Não obstante, a argumentação destes autores, parece não

considerar devidamente as especificidades maritimistas (e não civilistas como

marcadamente apontam), deixando na obscuridade a, digamos, “erro

colbertiano” de se centrar no proprietário do navio, desconhecendo a realidade

do armamento e a figura do armador como distinta do proprietário. Tal crítica

não pode ser aceite em absoluto, já que o Código Comercial continha várias

disposições das quais resultava, de modo claro, a inconfundibilidade entre a

figura do armador e a do proprietário do navio; assim:

a. O §2.º do artigo 494.º considerava armadores os proprietários

ou afretador que fizessem equipar o navio;

b. O §1.º do artigo 495.º indicava, supletivamente, o capitão

como caixa da parceria, quando esta fosse feita entre os

armadores e a tripulação;

c. O §2.º do artigo 495.º apontava critérios supletivos para a

distribuição dos lucros e perdas na parceria marítima, em

função do interesse de cada armador, distinguindo, para o

efeito, consoante o armador fosse proprietário do navio ou

afretador;

d. O artigo 498.º dispunha no sentido da necessidade de o capitão

ouvir «os armadores ou proprietários do navio», quando

presentes, para formar e ajustar a tripulação;

e. O n.º11 do artigo 508.º impunha ao capitão deveres de

informação aos «armadores ou caixas ou aos seus

representantes»;

f. O artigo 509.º atribuía ao capitão poderes para representar em

juízo «os proprietários ou armadores do navio», considerando-

o também seu mandatário «em tudo o que diz respeito à

gerência e expedição do navio»;

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g. O §único artigo 509.º cerceava alguns poderes do capitão

«estando presente algum dos proprietários ou armadores do

navio»;

h. O artigo 511.º impunha ao capitão o dever de avisar

imediatamente os «armadores, afretadores e destinatários»,

quando, no decurso da viagem, tenha necessidade de dinheiro

para situações de «urgência do navio»;

i. O §3.º artigo 511.º impunha ao capitão, em determinados

termos, antes de partir do porto onde teve de fazer despesas

extraordinárias, o dever de enviar aos «proprietários ou

armadores do navio» uma conta-corrente das mesmas;

j. O artigo 522.º, que previa a indemnização a aplicar se a viagem

deixasse de se verificar «por facto de proprietário, capitão, ou

afretadores»;

k. O §2.º do artigo 534.º identificava situações em que o capitão

não podia exigir dos «proprietários ou armadores» o reembolso

de indemnizações pagas a membro das tripulação.

Estas disposições mostram claramente – diríamos mesmo que demonstram –

que, para o legislador de 1888, tal qual, de resto, já acontecia no domínio do

Código de 1833, a figura do proprietário do navio não se confundia com a do

armador, podendo, assim, admitir-se, como primeira presunção, que a

referência ao proprietário do navio feita no artigo 492.º CCom era querida e

assumida, ficando, então, a partir daqui, campo para apreciações críticas, como

seja aquela que considera tal regime distorcido ou desfocado por se basear na

propriedade, que não na exploração do navio. É certo que podia não ser assim:

o legislador português podia ter feito uma opção diferente centrando-se na

responsabilidade do proprietário-armador. Contudo, não parece ter sido esse

o caso, conforme ilustram as disposições citadas. Contra a posição exposta,

poderá, com Menezes Cordeiro, suscitar-se o facto de o simples proprietário

nada ter a ver com a exploração do navio, não fazendo, assim, sentido que

responda perante terreiros por atos ou atividades que dessa exploração

resultem. Assim é, efetivamente, no Direito Civil, mas cremos que não, nos

mesmos termos, em Direito Marítimo, cuja especificidade neste domínio

ressalta de uma análise global ou de conjunto. Na verdade, o regime do artigo

492.º CCom não podia ser isolado do facto de o artigo 578.º do mesmo Código

consagrar então – e continuar a consagrar – privilégios creditórios sobre o navio,

ainda que os créditos que de tais privilégios são assistidos tenham origem na

exploração do navio feita por armador não proprietário: trata-se de situações

em que o proprietário do navio não pode pretender a inaplicação ou

inexistência de tais privilégios pela circunstância de não ser o explorador do

navio – de não ser o armador, admitindo que este é não apenas o que arma e

equipa o navio mas que o explora também. É mister explicar, assim, como é

que, numa situação em que o proprietário do navio não tem a respetiva

exploração – que é desenvolvida por outrem, por sua conta e risco – o navio

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fica, de acordo com o artigo 578.º CCom, onerado com privilégios creditórios

para garantia de créditos decorrentes de:

i. Despesas de pilotagem e reboque da entrada do porto (n.º4);

ii. Direitos de tonelagem, faróis, ancoradouro, saúde pública e

quaisquer outros de porto (n.º5);

iii. Despesas com a guarda do navio e com a armazenagem dos

seus pertences (n.º6);

iv. Despesas de soldados do capitão e tripulantes (n.º7);

v. Embolso do preço das fazendas do carregamento, que o

capitão precisou vender (n.º9);

vi. Prémios de seguros (n.º 10 e 14.º);

vii. A indemnização devida aos carregadores por falta de entrega

das fazendas ou por avaria que estas sofressem (n.º15), para

nos referirmos apenas àquele que estão claramente associados

à exploração do navio, que não à sua propriedade.

Não será, certamente, por acaso que a Convenção de Bruxelas de 1926 para a

unificação de certas regras relativas aos privilégios e hipotecas marítimos,

consagra privilégios (designadamente) sobre o navio que resultam da respetiva

exploração, ainda que o navio não seja pertença de quem o explora. Assim,

claramente, os casos de créditos resultantes de

i. Direitos de tonelagem, farolagem, do porto e as demais taxas e

impostos público das mesma natureza (artigo 2.º, n.º1);

ii. Despesas de pilotagem, guarda e conservação desde a entrada

do navio no último porto (artigo 2.º, n.º1, in fine);

iii. Créditos resultantes do contrato de arrolamento do capitão, da

tripulação e de outras pessoas contratadas a bordo (artigo 2.º,

n.º2);

iv. Indemnizações por lesões corporais aos passageiros e às

tripulações (artigo 2.º, n.º4);

v. Indemnizações por perdas ou avarias da carga ou de bagagens

(Artigo 2.º, n.º4, in fine);

vi. Créditos contraídos nos termos previstos no artigo 2.º, n.º5,

«para as necessidades reais da conservação do navio ou da

continuação da viagem».

Não é ainda por acaso que a Convenção de Bruxelas de 1952 sobre arresto de

navios de mar permite, no artigo 3.º, n.º4, o arresto de navio por créditos

decorrentes da respetiva exploração feita por sujeito diverso do proprietário do

navio. O que é que tudo isto demonstra? Que a responsabilidade decorrente da

exploração do navio não está desligada do próprio navio, não está desligada da

“responsabilidade do navio”, cuja atuação nos sistemas continentais, maxime

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de inspiração francesa, passa pela intervenção do respetivo proprietário e pela

consagração de um regime de responsabilidade pessoal. Ou seja: pretende-se

responsabilizar o navio, mas como o sistema geral de responsabilidade é avesso

à responsabilidade real, responsabiliza-se aquele que tem o ius disponendi do

navio, ou seja o respetivo proprietário, salvando-se, assim a lógica da

responsabilidade pessoal. Essa ideia surge, ainda que nem sempre de forma

clara, entre nós, nos autores “maritimistas”, enquanto que os “civilistas” não

consideram a responsabilidade do proprietário do navio e m termos globais –

em termos, digamos, de “sistema marítimo”. Na verdade, os autores

maritimistas defendiam, na sua maioria, que o artigo 492.º responsabilizava o

proprietário do navio, ainda que não armador. É, porém, de reconhecer que

não encontramos nessa mesma doutrina uma explicação global ou de sistema.

A interpretação exposta – que tem, depois, continuação no regime do Decreto-

Lei n.º202/98 – evidencia um sistema de responsabilidade pensado para o navio

mas redigido para o seu proprietário: um sistema de responsabilidade querido

como real, mas não assumido, já que é normativizado em termos de

responsabilidade pessoal. Contra esta interpretação, não nos parece decisivo o

facto de o abandono liberatório estar consagrado, a um tempo, para o

abandono do navio e do frete, já que só o proprietário-armador poderia

abandonar esses dois bens. Trata-se de um argumento que tem sido objeto de

atenção ao longo do tempo, mas que, no nosso entender, não é

suficientemente forte para permitir contrariar o sentido da posição exposta.

Tudo estará na determinação do que seja o frete relevante numa tal situação.

Foi também suscitada a questão de saber se o proprietário do navio podia

abandonar o produtor da venda do mesmo ou a importância da indemnização

que houvesse recebido em consequência da perda do navio, em caso de sinistro.

Alguma doutrina francesa admitia mesmo que o proprietário do navio pudesse

socorrer-se do abandono em situações em que o navio já tivesse sido vendido

judicialmente, tendo o produto da venda sido distribuído aos credores. Era

mesmo invocado o seguinte argumento a fortiori: se o proprietário do navio

podia abandonar aos credores um navio desaparecido para sempre no fundo

do oceano, porque não podia abandonar o preço do navio vendido? Entre nós,

Frederico Martins, confessando nortear-se mais «pelos princípios mais

maleáveis da equidade» do que pela letra da lei, e pese embora o

reconhecimento que o §1.º artigo 492.º CCom devia, enquanto normal

excecional, ser interpretado em sentido estrito, considerava ser «de pouca

equidade negar ao proprietário que foi forçado, por motivos alheios à sua

vontade, a alienar o seu navio ou que o perdeu, em consequência de sinistro, a

faculdade de limitar a sua responsabilidade aos valores representativos do navio

alienado ou destruído, porque, embora a letra da lei o não permita

expressamente, as razões são as mesmas». Independentemente da posição a

tomar neste problema, o que importará aqui realçar é o facto de dúvidas como

esta porem a nu as debilidades do regime do abandono in natura e a sua

incapacidade para lidar com situações não rigorosamente enquadráveis na

situação paradigma: aquela em que, no fim da viagem, o proprietário do navio,

avalia e confronta o ativo do navio com o passivo da expedição.

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c. Abandono pelo armador não-proprietário? Outra dúvida suscitada pela redação

do artigo 492.º Ccom respeitava à delimitação das situações em que o

abandono era possível, uma vez aceite, de iure constituto e atenta a clareza da

letra da lei, a circunscrição das situações de abandono aos casos do n.º2 do

artigo 492.º. Naturalmente que a questão das fronteiras do abandono

dependia também da resposta à questão acima suscitada, ou seja à questão de

saber se a responsabilidade consagrada no artigo 492.º pressuponha a

qualidade de armador por parte do proprietário ou se bastava a singela

qualidade de proprietário. Admitindo a responsabilidade do armador não

proprietário, com fundamento no regime civil da comissão ou com base no

regime do artigo 492.º CCom, suscitava-se a dúvida sobre se a faculdade de

abandono do navio e do frete estava reservada ao proprietário do navio –

simples proprietário ou proprietário-armador – ou se o mesmo benefício

poderia ser invocado pelo armador não proprietário relativamente às dívidas

da expedição marítima. Com relação a idêntica dúvida no quadro do Code du

Commerce, a maioria da doutrina fazia depender o exercício do abandono da

qualidade de proprietário do navio, tudo isto pressupondo, naturalmente, a sua

responsabilidade Na verdade, par aqueles que sustentavam que a

responsabilidade consagrada nesses dispositivos pressupunha a cumulativa

qualidade de armador, a questão do abandono não se colocava, à partida, nos

casos em que o proprietário não tivesse também essa qualidade, uma vez que

não fazia sentido equacionar a limitação da responsabilidade relativamente a

um sujeito não responsável. Já para aqueles que dispensam a qualidade de

armador para a responsabilização do proprietário do navio, não havia dúvidas

de que o proprietário responsável podia abandonar o navio e o frete. Quanto

ao armador não-proprietário, dizíamos que, em geral, a doutrina não admitia o

abandono do navio, pela razão de que o mesmo não podia abandonar uma

coisa alheia; esta posição era, no geral, comungada não só por aqueles para

quem a responsabilidade consagrada nos citados dispositivos se bastava com a

simples qualidade de proprietário do navio como para aqueles para quem tal

responsabilidade pressuponha a adjunção da qualidade de armador. Saliente-

se, contudo, que estas posições não eram totalmente pacíficas23. No Direito

Português, perante idêntica dúvida suscitada face ao artigo 492.º CCom,

23 Em Danjon, por exemplo, a sustentação de que o armador-fretador podia abandonar o navio, não obstante não ser seu proprietário, era feita com base num mandato tácito do proprietário para a efetivação do abandono; para Ripert, o armador-fretador, responsável como comitente pelos atos do capitão, podia, não obstante não ter a sua situação diretamente contemplada na previsão de abandono do artigo 216.º Code du Commerce, limitar a sua responsabilidade, mais considerando que, numa legislação que permitisse o abandono de valor, o armador deveria ser autorizado a liberar-se, pagando o valor do navio e o frete (essa limitação seria conseguida pelo conjugado abandono do frete por parte do armador e do navio por parte do respetivo proprietário); Grosso modo, no mesmo sentido, era a posição sustentada por Bonnecase, autor que, considerando, embora, que o proprietário mencionado no artigo 216.º era o proprietário-armador e não o simples proprietário, entendia que o armador-fretador não podia abandonar o navio por ser proprietário do mesmo (contudo, tanto o armador-fretador quanto o armador-usufrutuário beneficiavam do abandono, mas duma maneira apropriada às respetivas situações): neste quadro, uma aplicação do princípio ou da lógica do património de mar impunha uma adaptação do abandono às circunstâncias; os credores poderiam exigir o navio ao proprietário, o frete ao armador e, eventualmente, o gozo do navio ao armador-usufrutuário.

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Frederico Martins entendia que o abandono estava reservado ao proprietário

do navio, o mesmo acontecendo com Viegas Calçada e com Azevedo Matos,

mas Cunha Gonçalves, reconhecendo, embora, que, pelo princípio nemo plus

ius transfere potest quam ipse habet, o armador não proprietário não podia

dispor da propriedade do navio através de abandono, admitia («poderá

sustentar-se»), à semelhança de posições doutrinais sustentadas em Espanha

que o armador não proprietário se pudesse libertar entregando aos credores

«não o navio, mas uma soma que represente o navio e o frete ganho durante a

viagem». Para Menezes Cordeiro, o benefício do abandono estava limitado ao

proprietário-armador, respondendo o armador não-proprietário com todo o

seu património. Na nossa opinião, o abandono do navio previsto no §1.º do

artigo 492.º CCom só podia ser feito pelo proprietário, único titular do ius

disponendi sobre o navio. Na verdade, resultando, a final, do abandono

liberatório uma perda da propriedade do navio, seria necessário demonstrar

que o armador-afretador tinha legitimidade para alienar coisa alheia. Contudo,

pese embora o facto de os privilégios poderem recair sobre o navio à revelia do

seu proprietário, não encontramos um suporte suficientemente forte para

sustentar uma tal legitimidade alienatória. Pelo contrário, o artigo 513.º CCom,

ao fazer depender a validade da venda do navio pelo capitão- com exceção do

“caso único de navegabilidade” – de autorização especial do proprietário do

navio, fornecia um argumento adicional no sentido da ineficácia de um

abandono do navio por parte do armador não-proprietário. A partir daqui, é

manifesta a distorção do sistema de limitação de responsabilidade consagrado

no Código Comercial, porque centrado no abandono do navio quando o

armador não proprietário também podia ser responsável, não fazendo sentido,

quanto a este, nem a não previsão de qualquer forma de limitação da

responsabilidade nem a ausência de responsabilidade. A distorção está no facto

de o legislador ter laborado no pressuposto da concentração numa só pessoa

das figuras do proprietário e do armador, não tendo curado da limitação da

responsabilidade do armador não proprietário. Contudo, o facto de o sistema

de responsabilidade estar, substancialmente, assente no navio, conquanto

normativizado numa lógica de responsabilidade pessoal, permite sustentar que

o limite de responsabilidade era prefigurado pelo navio e pelo frete. No entanto,

não podendo o armador abandonar o navio, liberava-se abandonado o frete e

o valor do navio, único sub-rogado lógico deste. Era esta, de resto, a posição

defendida po Cunha Gonçalves – para quem «posto que o nosso legislador só

se refira ao abandono do navio, entendo que o armador pode também

abandonar o valor do navio, poupando aos credores o trabalho e as despesas

duma liquidação do mesmo navio» - e por Frederico Martins, autor que

invocava a equidade para permitir como objeto de abandono o valor

representativo do navio. Em qualquer aso, a admissão do abandono do valor

do navio por parte do armador pressuponha, necessariamente, a fixação

objetiva do respetivo valor, não podendo, obviamente, o armador abandonar

liberatoriamente o valor que ele próprio determinasse.

2. O convívio do abandono in natura do Código Comercial com os regimes das Convenções

de Bruxelas sobre limitação de responsabilidade:

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1. O convívio entre o regime de responsabilidade e do abandono do Código

Comercial e o regime da Convenção de Bruxelas de 1924: a vinculação de

Portugal à Convenção de Bruxelas de 1924 (CB1924) para a unificação de certas

regras relativas á limitação da responsabilidade dos proprietários dos navios de

mar suscita a questão da convivência entre o sistema da responsabilidade e do

abandono constantes do Código Comercial e o regime daquela Convenção.

Aparentemente, a dúvida pode surgir como estranha, atento o facto de

estarmos a questionar a articulação entre o Direito Interno – com o seu próprio

espaço de aplicação – e uma Convenção Internacional, cuja aplicação se

desenvolva precisamente no campo das relações internacionais. Acontece,

porém, que a citada Convenção é de aplicação direta nos Estados que a

ratificaram: nos termos do seu artigo 12.º, as disposições da Convenção

«serão aplicáveis a cada Estado contratante, desde que o navio em

relação ao qual foi invocado o limite da responsabilidade seja

nacional de um Estado contratante, assim como nos outros casos

previstos nas leis nacionais».

A dúvida que se levanta é a de articulação da CB1924 com o Direito interno, até

ao Decreto-Lei n.º 202/98, 10 julho, mais concretamente com o regime do

Código Comercial em matéria de responsabilidade dos proprietários de navios

e respetiva limitação. O problema foi suscitado em França, por exemplo, por

Ripert, para quem a aplicação da Convenção exigiria, então, a modificação do

artigo 216.º Code du Commerce, já que, considerava, seria impossível

«d’appliquer à la fois les dispositions de la convention et celles d’une lou

nationelle différent». Contudo, esta posição não se apresentava como segura;

entre nós, Viegas Calçada colocava a questão nos seguintes termos: uma vez

que a Convenção não revogava, direta ou indiretamente, as normas do Código

Comercial, o armador passaria a ter ao seu dispor – tendo liberdade de escolha

– o abandono liberatório do Código Comercial ou o sistema de limitação da

Convenção de Bruxelas de 1924. Escreve, a certo passo, o autor:

«Quando os princípios do abandono estiverem em oposição com os

da limitação, o armador escolherá aquele que mais lhe convier para

atenuar a sua responsabilidade».

A posição que, na doutrina nacional, tinha como representante Viegas Calçada

afigura-se-nos dificilmente sustentável. Na verdade, das duas uma: ou a CB

1924 passou a ser Direito interno e, nessa caso, não fazia sentido atribuir ao

proprietário do navio a faculdade de poder escolher entre o regime do Código

Comercial e o da Convenção, ou a esta deveria ser mantida num (estrito)

quadro das relações convencionais internacionais – caso em que a sua aplicação

estaria dependente da identificação dos fatores de internacionalidade

relevantes. Na primeira hipótese, ou seja, na consideração das normas da CB

1924 como Direito interno português, a relação entre o regime do abandono

do Código Comercial e o regime da Convenção tinha, dogmaticamente, que ser

colocada em termos de aplicação da lei no tempo, revogando o Direito

posterior o Direito anterior. A partir daqui, havia que suscitar a questão do

caráter total ou parcial da revogação ou a existência de uma revogação de

sistema, parecendo-nos que a solução correta era a de procurar as zonas de

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sobrevivência do regime do Código Comercial face ao da Convenção de

Bruxelas. A questão era relevantíssima, bastando salientar o facto de a

Convenção só se aplicar ao proprietário de navio de mar, na medida em que ao

mesmo pudesse ser aplicado o regime do artigo 492.º. Por outro lado, haveria

que testar a coincidência entre o âmbito de aplicação das situações do artigo

1.º CB 1924 e o das situações de responsabilidade e de abandono do artigo

492.º CCom. Finalmente, haveria que considerar o facto de Portugal ter feito

reservas à Convenção24. Admitida a receção da CB 1924, em virtude da cláusula

geral de receção então vigente, a CB 1924 passou a vigorar internamente, mas

em termos que, no nosso entender, não prejudicavam a manutenção em vigor

do regime do artigo 492.º CCom. Refira-se que aparte do artigo 492.º CCom

que está aqui em equação não é a da imputação da responsabilidade ao

proprietário do navio, já que a CB 1924 não é uma Convenção de imputação

mas, antes, de limitação de responsabilidade. Ora, estabelecendo o artigo 12.º

CB1924 que a mesma é aplicável em cada Estado contratante, desde que o

navio em relação ao qual é invocado o limite de responsabilidade seja nacional

de um estado contratante25, o regime da Convenção passou a ser também

aplicável às situações internas, desde que, claro está, o navio relativamente ao

qual fosse invocada a limitação fosse português ou de outro Estado contratante.

Ficou, assim, institucionalizado um dualismo de regimes, mantendo-se o de

fonte interna do abandono, designadamente para os casos em que o navio em

relação ao qual fosse invocado o limite de responsabilidade não fosse

português ou nacional de qualquer outro Estado contratante. Não obstante, ou

em virtude do pouco sucesso da Convenção ou em resultado das dúvidas

geradas pela sua aplicação, a verdade é que os países que não alteraram as

respetivas legislações internas continuaram, no geral, a aplicar os regimes de

fonte interna aos casos internos. Saliente-se que a entrada em vigor da

Convenção no Direito interno provocou, na realidade, uma alteração de relevo

nas situações em que o navio relativamente ao qual era invocada a limitação de

responsabilidade fosse português ou de outro Estado contratante: o

proprietário do navio passou a poder limitar a sua responsabilidade – nos

termos das disposições da Convenção, naturalmente – mesmo em situações

que, no regime do Código Comercial, eram insuscetíveis de limitação, por

estrem enquadradas no n.º1, que não no n.º2, do artigo 492.º CCom.

2. O convívio da responsabilidade e do abandono do Código Comercial com as

normas das Convenções de Bruxelas de 1924 e 1957: a retificação por Portugal

da Convenção de Bruxelas de 1957 (CB 1957) suscitou novas e importantes

dúvidas sobre, por um lado, a sobrevivência dos regimes da responsabilidade

24 (Viegas Calçada): as reservas referiam-se expressamente à não admissão da limitação da responsabilidade ao valor do navio, dos acessórios e do frete relativamente aos prejuízos causados às obras de arte dos portos, doas e vias navegáveis e às despesas de remoção dum casco afundado; ficou, no entanto, entendido que o limite de responsabilidade por motivo desses prejuízos não podia ultrapassar oito libras estrelinas por tonelada de arqueação de navio, exceto quanto às despesas de remoção dum casco afundado. 25 Refere-se, ainda, o artigo 12.º/I, in fine, aos «outros casos previstos pelas leis nacionais». Por sua vez, de acordo com o artigo 12/II, o princípio formulado no artigo 12/I não prejudica o direito dos Estados contratantes de não aplicar as disposições da presente Convenção a favor dos nacionais dum Estado não contratante.

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do proprietário do navio e do abandono constantes do Código Comercial face à

nova Convenção e, por outro, admitindo essas sobrevivências, sobre os termos

das mesmas. Neste particular, teremos de considerar a Convenção de Bruxelas

1957 qua tale, enquanto Convenção Internacional, mas também o facto de o

Decreto-Lei n.º 49.028, 26 maio 1969, ter, declaradamente, firmado a vigência

da Convenção no Direito interno. No que respeita ao primeiro plano, parece

poder afirmar-se com segurança que, não tendo Portugal denunciado a

Convenção de 1924, diversamente do que fizeram outros países, continuou à

mesma vinculado, passando, assim, a estar obrigado nos termos das duas

Convenções, sendo aplicável uma ou outra em função dos Estados envolvidos;

assim resulta do facto de o artigo 16.º CV 1957 determinar, no seu §1.º, a

substituição e revogação da Convenção de Bruxelas 1924, no que respeita às

relações entre os Estados que ratificaram ou aderiram à Convenção. De acordo

com o artigo 7.º, n.º1 CB 1957, a mesma é aplicável sempre que o proprietário

de um navio ou qualquer outra pessoa com os mesmos direitos em virtude do

artigo 6.º, limite ou procure limitar a sua responsabilidade perante os tribunais

de um dos Estados Contratantes, ou procure libertar o navio ou qualquer outro

bem arrestado ou uma caução ou qualquer outra garantia prestada dentro do

território de um desses Estados. Parece, assim, claro que, a não ser que os

Estados contratantes optem por excluir a aplicação da Convenção a qualquer

Estado não contratante, conforme permite o artigo 7.º, n.º1 CB 1957 26 , a

Convenção de 1957 não consagra, diversamente do que acontece com a de

1924, um regime dualista, sendo a Convenção aplicável, à partida, ainda que o

navio, em relação ao qual é pedida a limitação de responsabilidade seja

pertença de um nacional de um Estado não Contratante ou arvore bandeira de

um Estado não Contratante, sendo, antes, determinante o facto de a limitação

ser pedida em tribunal de um Estado contratante. Assim, podemos dizer, com

Taborda Ferreira, que a Convenção deve aplicar-se, em princípio, como lex fori.

Assim, considerando o disposto no artigo 7.º/I, é defensável que a Convenção

de Bruxelas de 1957 passou a ter aplicação direta nos diversos Estados

contratantes. Contudo, alguns países, ao abrigo da reserva da alínea c) do n.º2

do Protocolo de Assinatura, optaram por inserir as normas da Convenção no

Direito Interno ou por lhe dar força de lei, considerando que a aplicação da

Convenção às situações internas estava dependente de uma dessas medidas.

Ora, no caso português, o Decreto-Lei n.º 49.028 pretendeu dar expressão e

sequência às reservas das alíneas a) e c) do n.º2 Protocolo de Assinatura,

manifestando o propósito de dar à Convenção «força de lei» (do Preâmbulo) e

estabelecendo o artigo 1.º que a mesma passou a vigorar «por força do presente

preceito, como Direito interno português». Não tendo atualmente interesse

direto discutir se a Convenção só passou a ter aplicação após o Decreto-Lei n.º

49.028 ou se já a tinha anteriormente, o que importa é apurar as repercussões

26 O artigo 7.º n.º1 permite que cada Estado Contratante exclua, no todo ou em parte, do benefício da Convenção qualquer Estado não Contratante ou qualquer pessoa que não tenha, no momento em que toma as medidas para limitar a sua responsabilidade ou para obter, de harmonia com o artigo 5.º, a libertação de um navio ou de qualquer outro bem apreendido ou da caução ou outra garantia, a sua residência habitual ou sede principal de exploração dos negócios num dos Estados contratante, ou cujo navio em relação ao qual procura limitar a sua responsabilidade ou obter a libertação não arvore, no momento referido, o pavilhão de um dos Estados contratantes.

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da introdução no Direito interna do regime da Convenção de Bruxelas de 1957,

no que concerne, por um lado, ao regime do artigo 492.º CCom e, por outro, ao

regime da Convenção de Bruxelas de 1924. Não está de novo em causa a

imputação de responsabilidade, já´ que, conforme veremos, a Convenção de

Bruxelas não é, tal qual não é também a de 1924, uma convenção de

responsabilidade – de imputação – mas de limitação de responsabilidade. Ora,

tanto quanto nos parece, a aplicação do regime de limitação do artigo 492.º

CCom – regime do abandono – passou a estar recortada pelo âmbito de

aplicação traçado pelo diploma de 1969. Na prática, uma vez que, à partida,

tanto o regime do artigo 492.º CCom quanto o regime da Convenção de 957

eram aplicáveis a navios de mar, podemos dizer que o âmbito de aplicação do

abandono in natura ficou reduzido às situações não cobertas pelo regime

resultante das normas a Convenção de Bruxelas 957 e do Decreto-Lei n.º 49.028.

Já no que respeita aos efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 49.028 a nível das

normas da Convenção de 1924, internamente aplicáveis, parece-nos que estas

passaram a ficar prejudicadas pelo regime das normas da Convenção de 1957.

A Convenção de 1924 continua, no entanto, a ser aplicável no caso em que o

navio relativamente ao qual seja invocado a limitação de responsabilidade seja

nacional de um Estado contratante desta Convenção, desde que este Estado

não seja também contratante da Convenção de 1957. Esse convívio do regime

do abandono do Código Comercial com o regime resultante das normas da

Convenção de Bruxelas 1927 e do Decreto-Lei n.º 49.028, manter-se-ia nos

mesmos termos após o Protocolo de 1979 àquela Convenção, Protocolo esse

que, como vimos, substituiu o sistema do franco Poincaré pelo das unidades de

conta, atualizando, simultaneamente, os limites máximos de indemnização a

cargo dos proprietários de navios legitimados para limitar a respetiva

responsabilidade. Pode-se questionar se o regime resultante do Protocolo vale

também nas situações internas, já que o Decreto-Lei n.º 6/82, 21 janeiro, não

internalizou o Protocolo de 1979, conforme fizera o Decreto-Lei n.º 49.028,

relativamente à Convenção de 1957, tendo-se limitado a aprová-lo para

ratificação; nesta lógica, seria sustentável que, a nível do regime interno da

limitação de responsabilidade dos proprietários de navios de mar, o regime

aplicável teria continuado a ser o do Decreto-Lei n.º 49.028, articulado com o

regime do Código Comercial. A ser assim, teríamos necessariamente que

concluir pela existência de um pernicioso descompasso entre o regime

internacional da Convenção e respetivo Protocolo de 1979 e o regime interno,

continuando este pautado pelo sistema de limitação com referência ao franco.

Pensamos, porém, que tal conclusão não é de sufragar, pese embora a

diferença de técnica usada pelo legislador nacional em 1969 e em 1982. Na

verdade, parece agora claro, face ao regime expressamente plasmado no artigo

8.º, n.º2 CRP, que o Protocolo de 1979 foi recebido no ordenamento interno,

automática e plenamente, pelo que o regime de limitação aplicável nas

situações internas passou a ser também estruturado em função do sistema das

unidades de conta.

3. O regime interno de responsabilidade do proprietário do navio e do armador, após o

Decreto-Lei nº 202/98, 10 julho:

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1. Introdução: ao revogar o secular regime do artigo 492.º CCom, o Decreto-Lei

n.º 202/98, 1 julho, institui, a partir do seu artigo 4.º, um novo regime de

responsabilidade civil, no qual são, consideradas, de modo expresso, as

situações de não coincidência entre as qualidades de proprietário e armador do

navio. O mesmo diploma reporta-se, depois, no artigo 12.º, aos «limites da

responsabilidade do proprietário», em termos que, pelo menos à partida,

suscitam alguma perplexidade, já que, contra os ventos e marés do Direito

Comparado e das Convenções Internacionais, o legislador nacional recupera o

abandono in natura por parte do proprietário do navio, abandono esse cujo

âmbito de aplicação ficará fortemente abalado pelas normas da Convenção de

Bruxelas de 1957 e do Decreto-Lei n.º 49.028. Não despiciendo é também o

regime do artigo 11.º do mesmo Decreto-Lei que, em situações específicas, nele

mencionadas, permite a responsabilidade do navio, não só por dívidas do

proprietário mas também do armador. Ao dar, em termos de sequência de

regime, a primazia à determinação da responsabilidade do proprietário-

armador (artigo 4.º), deixando para segundo plano a do armador não

proprietário (artigo 5.º) e a do simples proprietário (artigo 6.º), o legislador do

Decreto-Lei n.º 202/98, conhecedor das dúvidas que o artigo 492.º CCom

propiciava, terá pretendido deixar claro o quadro de imputações possíveis.

Apesar de, literalmente, o artigo 4.º consagrar o regime de responsabilidade do

proprietário-armador, podemos dizer que, substancialmente, o regime aí

consta é o da responsabilidade do armador, sendo, de resto, sintomático que o

artigo 5.º remeta para o artigo 4.º, quanto ao regime da responsabilidade do

armador não proprietário. Ao adotar a sequência que se encontra nos artigos

4.º a 6.º, o legislador optou por uma postura, digamos, pedagógica, partindo

das situações de coincidência entre as qualidades de proprietário e de armador

até à de simples proprietário, passando pela de armador não proprietário. O

efeito seria o mesmo se o legislador tivesse optado por não autonomizar a

matéria do artigo 5.º e tivesse concentrado no artigo 4.º o regime da

responsabilidade do armador, deixando expresso que o mesmo seria

independente de o armador ser também proprietário.

2. A responsabilidade do armador:

a. O armador do navio: o armador do navio é definido na alínea c) do artigo

1.º Decreto-Lei n.º 202/98 como aquele que «no seu próprio interesse,

procede ao armamento do navio», sendo depois o armamento

caracterizado (alínea d) do artigo 1.º) como o «conjunto de atos jurídicos e

materiais necessários para que o navio fique em condições de empreender

viagem». Se noção de armamento, noção esta que o Decreto-Lei n.º

202/98 formula em termos estáticos, sem expressão da dinâmica da

exploração do navio – do exercício da atividade comercial da exploração

do navio. Só esse exercício justifica, aliás, a responsabilidade do armador,

como comitente, consagrada nos artigos 4.º e 5.º do citado diploma. De

resto, nada obsta a que um sujeito – que não será, então armador, pelo

menos para efeitos do regime de responsabilidade pautada pela comissão

– arme o navio, não para o explorar diretamente, mas para o ceder em

exploração, através de um fretamento; nesse caso, não fará qualquer

sentido que tal afretador possa exonerar-se da responsabilidade associada

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à exploração do navio, como comitente, com o argumento, estritamente

literal, de que não foi ele a proceder ao armamento. Mais rigorosa, neste

particular ponto, se apresenta a noção de armador do Decreto-Lei n.º

196/98, 10 julho, que o define como «aquele que, no exercício de uma

atividade de transporte marítimo, explora navios de comércio próprios ou

de terceiros, como afretador a tempo ou em casco nu, com ou sem opção

de compra, ou como locatário». Sem prejuízo das críticas que possam ser

feitas ao apuro técnico desta noção, estamos face a uma disposição que,

valendo, embora, para os estritos efeitos de licenciamento administrativo

da atividade dos transportes marítimos, que não – pelo menos

diretamente – para efeitos do estabelecimento do regime de

responsabilidade do armador, tem a vantagem de acentuar o aspeto

dinâmico que fenece na noção do Decreto-Lei n.º 202/98. Essa mesma

associação dinâmica à exploração do navio surge, agora, em termos de

projeto, no artigo 32.º PLNCM, ao definir o armador de comércio como

«aquele que exerce a atividade de transporte marítimo», noção esta que

terá também a vantagem de evitar o desencontro entre uma noção

material de armador e uma outra válida para efeitos de licenciamento de

exercício de atividade. O artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98 consagra

presunções da qualidade de armador. Trata-se, ictu oculi, de presunções

relativas, conforme resulta da expressão «salvo prova em contrário», no

pressuposto de que tal prova se destina a contrariar a presumida qualidade

de armador27. A primeira presunção (alínea a) artigo 2.º, n.º1) recai sobre

o proprietário do navio: ele é presuntivo armador do navio, tendo o ónus

de provar que o não é, máxime na situação em que seja seccionado como

proprietário-armador para responder nos termos do artigo 4.º. A prova da

não qualidade do armador permitir-lhe-á, se acompanhada da invocação

do regime do artigo 6.º, subsidiarizar a sua responsabilidade. Cremos que,

aqui, o legislador podia ter ido mais além: a presunção poderia ter recaído

sobre quem figura no registo como proprietário e não sobre o proprietário

tout court; assim, aque3le que queira invocar a presunção da alínea a) do

artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98 tem o ónus de provar que o sujeito

a quem pretende imputar responsabilidade como armador é proprietário

do navio. É-lhe, para o efeito, dado valer-se da presunção resultante do

registo, nos termos geris. Também é presumido armador (alínea b) do

artigo 2.º, n.º1) o «titular do segundo registo, havendo duplo registo».

Assim, estando um navio registado no Registo Internacional de Navios da

Madeira (MAR), como segundo registo, o respetivo titular é presumido

armador. A terceira presunção (alínea c) do artigo 2.º, n.º1) recai sobre «o

afretador, no caso de fretamento em casco nu», caso este em que,

segundo a noção do artigo 33.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril, o fretador

27 Não consideramos, assim, na sua expressão, o teor literal do citado artigo 2.º, n.º1 («salvo prova em contrário, presume-se armador do navio»), que indiciaria estarmos face a uma espécie de presunção (iuris tantum) de presunção (cuja caracterização como relativa ou absoluta teria que se discutida); ou seja, presumir-se-ia haver presunção da qualidade de armador. Ao não nos nortearmos exclusivamente pela letra da lei, lemos o artigo 2.º n.º1 como se a respetiva redação fosse a seguinte: «salvo prova em contrário, considera-se armador do navio», ou, então, simplesmente: «Presume-se armador do navio».

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se obriga a pôr à disposição do afretador, na época, local e condições

convencionados, um navio, não armado nem equipado, para que este o

utilize durante um certo período de tempo. Uma situação em que

poderemos ver uma não coincidência entre as qualidades de afretador em

casco nu e de armador será aquela em que, após o fretamento, o afretador

tenha subfretado a tarefa de armar e equipar o navio. A ser aplicável, em

termos plenos, o regime geral do artigo 342.º CC, aquele sobre quem recai

a presunção de armador poderia fazer a prova do contrário por qualquer

meio, obtendo, dessa forma, a exclusão da responsabilidade ou, então, a

sua subsidiarização, nos temos do artigo 6.º. Contudo, o artigo 2.º, n.º2

Decreto-Lei n.º 202/98 dificulta, neste domínio, substancialmente, a

posição do presumido armador: este logrará elidir a presunção se

conseguir provar que aquele que invoca a presunção sabe quem é,

efetivamente, o armador. Estamos aqui situados num verdadeiro jogo de

cabra cega jurídico, já que, de acordo com o citado artigo 2.º, n.º2, ao

presuntivo armador não aproveita provar (apenas) que não é armador ou

quem é o efetivo armador: ele tem de provar que aquele que invoca a

presunção sabe que é o armador: com essa prova – que, em concreto,

pode consubstanciar uma verdadeira diabolica probatio – o presuntivo

armador logrará afastar, definitiva ou temporariamente, a

responsabilidade que sobre si impenda. Face a esta limitação dos meios de

prova, não andaremos longe da realidade, sob o prima jurídico, se, em vez

de qualificarmos as presunções do artigo 2.º, n.º1 como presunções

relativas, as caracterizarmos antes como presunções próximas das

presunções iuris et de iure, admitindo-se, porém, a respetiva paralisação

através da citada prova. Substancialmente, o regime resultante do artigo

2.º, n.º2equivale à necessidade da prova de má fé do terceiro que,

conhecendo a pessoa do armador responsável, pretende imputar a

responsabilidade a quem não tem, efetivamente, essa qualidade – a qual

resultaria, apenas, da presunção do artigo 2.º, n.º1.

b. Os termos da responsabilidade do armador:

1. O armador como comitente: de acordo com o disposto no artigo 4.º,

n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98 28 , o armador responde,

independentemente de culpa, pelos danos derivados de atos e

omissões das pessoas que identifica nas suas três alíneas, remetendo,

depois, o artigo 4.º, n.º2, no que concerne a tal responsabilidade, para

as disposições da lei civil que regulam a responsabilidade do comitente

pelos atos do comissário29. Manifestamente, o legislador enquadra a

relação entre o armador e qualquer das pessoas identificadas nas

alíneas a) a c) do artigo 4.º, n.º1 como uma relação de comissão,

remetendo para o regime do artigo 500.º CC, cuja redação, de resto,

acompanha de perto. Para já, quer para facilidade de expressão quer

por ser essa, desde sempre, a relação paradigmática, vemo-nos centrar

28 Naturalmente que o artigo 4.º, n.º1 se refere ao proprietário-armador, que não no “simples” armador, mas, conforme vimos, essa aplicação valerá por força do artigo 5.º do mesmo Decreto-Lei. 29 Embora com alterações de redação, o artigo 385.º PLNCM mantém, grosso modo, o mesmo regime.

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em situações que envolvem o capitão, distinguindo três relações

jurídicas identificáveis: a relação entre o armador e o capitão, a relação

entre o armador e os lesados e a relação entre o capitão e os lesados.

A análise da situação jurídica de responsabilidade civil do armador pode

ser feita tomando, alternadamente, como ponto de partida a relação

de comissão ou, alternadamente, como ponto de partida a relação de

comissão ou, antes, a verificação dos requisitos da responsabilidade

civil relativamente ao capitão. Esta última abordagem parece-nos, hic

et nunc, preferível: partimos da constatação dos danos e seguimos o

percurso da imputação, pressupondo, pelo menos para já, que a

imputação ao capitão é feita em termos de responsabilidade subjetiva

e aquiliana. Assim, perante um ato ilícito e culposo, praticado pelo

capitão, no exercício das suas funções, do qual resultem danos, os

lesados poderão, à partida, responsabilizar o capitão do navio. Essa

estrita imputação não permite aos lesados ir além dessa

responsabilização. Para que uma outra imputação tenha lugar, é

necessário trazer à colação a relação de comissão existente entre o

armador e o capitão. Falta um terceiro passo, já que não basta uma

apriorística e estatutária relação de comissão: é ainda necessário que o

ato de comissário tenha sido praticado no âmbito das funções de

capitão. Só então será viável a imputação ao comitente; só então terão

os lesados o direito de responsabilizar diretamente o armador,

solidariamente com o capitão-comissário30; só então é que os lesados

terão a garantia de um património adicional de proprietário-armador,

é que os credores lesados terão a garantia de poderem satisfazer os

respetivos créditos com o bem a priori mais visível e emblemático da

fortuna do mesmo: o navio. Para que o armador responda como

comitente, é mister que os «atos ou omissões» praticados pelo capitão,

o tenham sido no exercício das suas funções, ou seja no âmbito do

necessário para a boa condução da expedição marítima, para usarmos

uma expressão retirada do artigo 5.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 384/99, 23

setembro, e que tem antecedentes sólidos na legislação marítima,

como por exemplo no n.º2 do revogado artigo 492.º CCom ou no artigo

496.º CCom («governação e expedição do navio»). Neste particular, a

remissão feita pelo artigo 4.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98 para as

«disposições da lei civil que regulam a responsabilidade do comitente

30 A caracterização da relação da responsabilidade do comissário face aos lesados, por um lado, com a do comitente face aos mesmos lesados-credores é considerada responsabilidade solidária, conforme resulta diretamente do artigo 497.º, n.º1 CC e se encontra, de algum modo, indiretamente admitido no artigo 500.º, n.º3 CC. A dúvida estará em saber se estamos perante um verdadeira ou genuína solidariedade, para usarmos uma expressão, de resto não pacífica, que acompanha preocupações de grande parte da doutrina. Conquanto na prática, por razões que se prendem com as capacidades económicas do proprietário e do capitão, a responsabilidade (rectius, a responsabilização) direta perante os lesados recaia, normalmente, sobre o primeiro, não há, no Direito Civil, no campo das relações externas – ou seja, no das relações com os lesados – qualquer canalização (liberatória do comissário, entenda-se) da responsabilidade para o comitente, ou seja, in casu, para o proprietário-armador. Já no campo das relações internas, o artigo 500.º, n.º3 prevê o regresso do comitente; contudo, como já observa Victor Nunes, normalmente, em função da fraca capacidade económica do capitão, resta ao armador recorrer ao despedimento.

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pelos atos do comissário» não pode ser interpretada rigidamente,

tendo que ser harmonizada com a especificidade das funções de

capitão. Mais concretamente, a responsabilidade do armador como

comitente tem lugar, como princípio, relativamente à responsabilidade

civil decorrente de qualquer ato ou omissão praticado pelo capitão

enquanto tal, não podendo aquele furtar-se nas situações em que não

tenha confiado – para usarmos uma expressão retirada do artigo 500.º,

n.º2 CC – uma específica tarefa ao capitão. Em suma, a

responsabilidade do armador como comitente decorre, em geral do

exercício da função do capitão, ainda que se trate da execução de

atribuições não especificamente cometidas pelo armador mas

decorrentes da lei (artigo 5.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 384/99). Há, no

entanto, que excecionar aquelas situações em que, por força da lei, as

consequências de um ato ou omissão do capitão são circunscritas à sua

própria esfera jurídica, sendo as consequências de tais atos, como

princípio, insuscetíveis de dar lugar a uma (nova) imputação, desta vez

ao armador. Exemplo eloquente é o caso da não prestação de socorro

a pessoas em perigo no mar: de acordo com o que decorre do disposto

no artigo 3.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 203/98, o princípio é o de que o

capitão suporta sozinho as consequências da sua omissão, só podendo

haver imputação ao proprietário ou ao armador e termos de

responsabilidade subjetiva 31 – estes só respondem se tiverem tido

culpa. Haverá também que excecionar, parece-nos, aquelas situações

em que as funções desempenhadas pelo capitão se revelam, na sua

natureza, alheias à exploração comercial do navio, respeitando, antes,

ao exercício de funções típicas de oficiais públicos. Last but not least,

há que precisar que, relativamente aos atos praticados pelo capitão em

representação do armador – representação com poderes,

naturalmente – a vinculação do armador-representado decorre do

funcionamento da representação, que não de um título de imputação

em sede de responsabilidade civil, como é a comissão. O confronto do

regime do artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98 com o do regime de

imputação imediatamente anterior, constante do artigo 492.º CCom,

permite verificar alterações de muito relevo. A primeira consubstancia-

se na colocação do armador – que não do proprietário – em centro

subjetivo de imputação secundária. Trata-se de uma medida positiva

que vinha sendo reclamada pela lição do Direito Comparado e também

pela doutrina nacional mais recente. A expressa colocação do armador

como sujeito passivo de imputação impunha-se, na verdade, em

virtude de ser ele o sujeito que toma a seu cargo a expedição marítima

e quem suporta os respetivos custos e riscos. A segunda grande

alteração de relevo, ainda num confronto geral entre os dois regimes,

respeita ao facto de o artigo 4.º ter uma redação mais abrangente,

deixando claro que o armador responde objetivamente pelosa tos ou

31 A nível de Convenções Internacionais, é esse o regime consagrado, designadamente no artigo 11.º Convenção de Bruxelas de 1910 para unificação de certas regras em matéria de assistência e de salvação marítima.

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omissões praticados por qualquer pessoa ao serviço da expedição

marítima e no respetivo âmbito.

2. O âmbito das imputações ao capitão e ao armador:

a. A imputação primária ao capitão: ao remeter para o regime civil da

responsabilidade do comitente, o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98

deixa em aberto uma questão discutida a propósito dos requisitos

da comissão estabelecidos no artigo 500.º, n.º1 CC: a de que sobre

o comissário «recaia também a obrigação de indemnizar». Mais

concretamente, discute-se se a responsabilidade do comitente

pressupõe a verificação, em relação ao comissário, dos requisitos

da responsabilidade subjetiva ou e, ao invés, a comissão também

funciona, em termos de responsabilidade, nas situações em que a

imputação de responsabilidade ao comissário seja objetiva ou por

facto lícito. Na doutrina mais recente, podemos ver, como

representativos da posição que podemos considerar clássica na

doutrina portuguesa, Menezes Leitão, que considera duvidosa a

possibilidade de no artigo 500.º, n.º1 serem abrangidas as

situações de responsabilidade pelo risco ou por sacrifício praticado

pelo comissário. No traçar de argumentos, o facto o de o artigo

500.º, n.º3 prever que o comitente tem o direito de, no âmbito das

relações internas, exigir ao comissário o reembolso de tudo

quanto haja pago, é apontado como argumento no sentido de a

imputação ao comitente pressupor – ou, pelo menos, parecer

pressupor – uma imputação subjetiva primária ao comissário. Não

faltam, porém, bons argumentos, esgrimidos por autores como

Menezes Cordeiro, contra esta posição, encontrando-se em Graça

Trigo a mais recente defesa da posição da desnecessidade de culpa

do culpa do comissário. Para esta autora – que ilustra a defesa do

orientação mais ampla com a indicação de situações em que faz

sentido a imputação objetiva ao comitente, havendo imputação

objetiva ou pelo sacrifício ao comissário – a correta interpretação

do problema em análise impõe que nos soltemos da letra do artigo

500.º, n.º3, considerando que o mesmo não regula nem pretende

regular todas as situações de relações interna entre o comitente e

o comissário. Esta via de interpretação parece-nos convincente,

em função da ratio da responsabilidade objetiva do comitente,

consagrada no artigo 500.º, n.º1: garantir aos lesados a efetivação

do direito à indemnização, num quando em que o ato foi praticado

pelo comissário no exercício das suas funções, o que significa que

o foi por conta do comitente. O argumento retirado da letra do

artigo 500.º, n.º3 CC, ou seja o facto de o comitente (que não

tenha tido “também” culpa) ter direito do regresso contra o

comissário pela totalidade de tudo quanto tenha pago aos lesados,

não impressiona, já que – independentemente de se poder refutar

a valia do argumento literal – o inciso determinante, neste

particular, é o n.º1 do artigo 500.º, que não o seu n.º3. De facto,

só no caso em que tenha havido culpa do comissário é que fará

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sentido o direito de regresso do comitente, sendo, assim,

sustentável que aquilo que pressupõe a culpa do comissário é o

direito de regresso do comitente, que não a imputação objetiva a

este. Sem prejuízo do exposto, há que tomar em devida conta o

facto de o artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99 consagrar uma

presunção de culpa do capitão. Nos termos dessa disposição, o

capitão responde, como comissário do armador, pelos danos

causados, podendo, porém, fazer a prova, como forma de se

exonerar de responsabilidade, que não houve culpa da sua parte

ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não

houvesse culpa sua – situação de relevância negativa da causa

virtual ou hipotética. Esta presunção constitui, seguramente, uma

grande vantagem para os lesados que, assim, não terão de fazer a

(primeira) prova de culpa do capitão-comissário (vantagem esta

que o artigo 386.º LNCM se propõe manter). Não obstante essa

acentuação da culpa, não nos parece que o regime plasmado no

artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99 possa ser aqui trazido à

colação, para efeitos de fixar o entendimento de que a

responsabilidade do armador como comitente pressuporia

sempre a responsabilidade subjetiva do comissário; ou seja: a

questão mantém-se exatamente no mesmo pé, podendo, no

nosso entender, haver situações em que o armador deve

responder como comitente mas sem que haja culpa – e

responsabilidade subjetiva – do capitão. Assi, se durante a

expedição marítima e no seu interesse, for necessário utilizar

mantimentos que seguem como carga no navio, sem que haja

responsabilidade do capitão pela falta de mantimentos a bordo,

destinados à tripulação e passageiros, estamos perante uma

situação de responsabilidade por facto ilícito (artigos 10.º, n.º1 e

11.º Decreto-Lei n.º 384/99), não podendo, a nosso ver, o armador

furtar-se à responsabilidade perante os interessados na carga,

com o argumento da falta de culpa do capitão. Neste exemplo,

estamos, naturalmente, a pressupor a inexistência de culpa por

parte do armador, já que, sendo a mesma identificada, não se

suscitarão dúvidas sobre a responsabilidade subjetiva do armador-

transportador face aos lesados.

b. A imputação secundária ao armador como comitente: o primeiro

problema que, em sede de imputação secundária ao armador,

importará analisar, é o de saber se tal imputação é

necessariamente uma imputação objetiva ou se, ao invés, pode ser

subjetiva, mas em termos de se considerar incólume a relação de

comissão. Trata-se, substancialmente, de saber se a

responsabilidade do comitente é, por natureza, uma

responsabilidade objetiva ou se, ao invés, estamos perante uma

responsabilidade para cuja afirmação é irrelevante a culpa do

comitente, conforme, de resto, sugere o segmento do artigo 500.º,

n.º1 CC «independentemente de culpa». Pergunta-se, assim, se as

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clássicas situações de culpa in elegendo, in instruendo ou in

vigilando, quando identificadas na pessoa do comitente, colocam

a situação jurídica fora do âmbito da comissão ou se, ao invés,

continuamos no seu seio. Aplicando às situações em análise,

poderá dizer-se que o armador que faz uma (má) escolha de um

mau capitão é responsável em termos objetivos face aos lesados

por ser comitente e que a identificação da culpa in elegendo só

opera no âmbito das relações internas, para efeitos de regresso

(artigo 500.º, n.º3)? No nosso entender, sendo identificada culpa

in elegendo do comitente, este responde em termos subjetivos,

ainda que sobre o comissário não recaia qualquer obrigação de

indemnizar, como será, seguramente, o caso extremo em que, no

momento do ato, o comissário esteja em situação de

inimputabilidade. É que, conforme observa Almeida Costa, a

exigência de que sobre o comissário recaia obrigação de

indemnizar constitui simples pressuposto da responsabilidade

objetiva do comitente, sendo o mesmo dispensável quando se

identifica uma atuação culposa deste. Assim, no referido caso

extremo, sendo o ato danoso praticado no exercício da comissão,

o comitente responde em termos subjetivos, não apenas com base

no artigo 483.º CC mas nos termos conjugados dessa disposição

com o artigo 500.º: é a relação de comissão que permite

estabelecer a ligação entre o agente e o comitente – que permite

a canalização para este da responsabilidade, mas em termos de

imputação subjetiva, uma vez que a culpa seja identificada na sua

esfera. Daqui decorre que, em rigor, diversamente do que sugere

a inserção sistemática do artigo 500.º CC, numa secção intitulada

«Responsabilidade pelo risco», a responsabilidade do comitente

tanto pode ser subjetiva como objetiva, sendo que quando é

subjetiva não funciona estritamente com base no artigo 483.º CC,

sendo, para tal, essencial o suporte da relação de comissão. Isto

significa que, havendo má escolha ou deficientes instruções do

comissários, a responsabilidade do comitente deriva

complexivamente dessa má escolha e da prática do facto danoso

pelo comissário. O segundo problema é o de saber se a

responsabilidade do armador apenas funciona nas situações de

responsabilidade extra-obrigacional, conforme sugere a letra do

artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98, ou se, ao invés, ela também

acontece grosso modo em relação às situações anteriormente

previstas no n.º2 do artigo 492.º CCom: «pelas obrigações

contraídas pelo capitão relativas ao navios e sua expedição». A

referência a «atos ou omissões» sugere claramente – não só pelo

paralelismo que pode ser estabelecido com a situação do n.º1 do

artigo 492.º CCom – mas também pela especificidade da

terminologia utilizada no quadro dos pressupostos da

responsabilidade civil extra-obrigacional – que a responsabilidade

do comissário que faz funcionar a imputação ao comitente é uma

responsabilidade extra-obrigacional. Assim, as situações antes

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previstas no n.º2 do artigo 492.º - «obrigações contraídas pelo

capitão relativas ao navio e sua expedição» - estão fora do regime

da comissão, o que, de resto, se ajusta à tradicional circunscrição

das situações de comissão à responsabilidade extra-obrigacional e

à também tradicional arrumação das situações de

responsabilidade obrigacional no quadro do artigo 800 CC –

dispositivo este que pressupõe que o comportamento dos

auxiliares constitua ou represente a violação de um vínculo

obrigacional existente. No nosso entender, a responsabilidade do

proprietário armador consagrada no artigo 4.º Decreto-Lei n.º

202/98 e pressuposta no artigo 5.º Decreto-Lei n.º 384/99 é

dirigida às situações de responsabilidade extra-obrigacional.

Quanto às demais situações que envolvam o capitão do navio, não

se colocará, em princípio, em questão de responsabilidade este, já

que, atuando ele como representante do proprietário ou do

armador (artigo 8.º Decreto-Lei n.º 202/98 e artigo 8.º Decreto-Lei

n.º 384/99), os efeitos jurídicos dos atos que pratica repercutem-

se na esfera do representado, sendo este último – que não o

capitão, que é um mero agente – a parte nos contratos celebrados

com terceiro e sendo ele o sujeito sobre quem impenderá a

eventual responsabilidade obrigacional (artigo 800.º, n.º1 CC),

ainda que a atuação culposa tenha sido identificada na esfera do

auxiliar e projetada na esfera do devedor.

3. Os demais sujeitos por cujos atos ou omissões o armador responde:

a. Membros da tripulação: temos vindo a tomar como referência a

figura do capitão enquanto comissário do armador. Contudo, a

responsabilidade do armador como comitente estende-s-e aos

atos ou omissões dos demais membros da tripulação, conforme

prevê a alínea a) do artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98, na

tradição da previsão constante do n.º1 do artigo 492.º CCom. Tal

como em relação ao capitão, a responsabilidade do armador por

atos ou omissões de membros da tripulação pressupõe que os

mesmos estejam no exercício das respetivas funções, conforme

impõe o artigo 500.º, n.º2 CC, aplicável por força do artigo 4.º, n.º2

Decreto-Lei n.º 202/98; após um primeiro juízo de inserção

espacial-temporal, excluem-se, num segundo juízo aferidor-

corretor – juízo se conformidade, numa abordagem objetivo-

vivencial – aqueles atos ou omissões que tenham com o exercício

de funções de membro da tripulação uma relação causal ou

acidental, aquilo que podemos designar como uma não-relação.

Desse juízo poderá resultar a imputação de responsabilidade ao

armador, enquanto comitente, ainda que o ato praticado não

tenha com o exercício da função uma relação essencial ou

necessária – ainda que não exista a íntima conexão de que falava

Cunha Gonçalves.

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b. Piloto ou prático tomado a bordo: particularmente polémico tem

sido o caso do piloto ou prático tomado a bordo. O caráter

polémico não resulta tanto, atualmente, da estrita previsão da

responsabilidade do armador, enquanto comitente, pelos atos ou

omissões do piloto, mas do facto de, ao longo do tempo, se ter

questionado se essa responsabilidade se mantinha nos casos em

que o piloto (ou prático da costa) fosse imposto por lei,

regulamento ou uso32. A solução do artigo 492.º CCom era clara: o

proprietário do navio respondia, em princípio, «pelas faltas de

pilotos ou práticos tomados a bordo» (n.º4), mas (§3.º) excluía

essa responsabilidade «quando a admissão do piloto ou prático for

ordenada pela respetiva lei local». De qualquer maneira, segundo

Adriano Anthero, a exclusão de responsabilidade contida no §3.º

do artigo 492.º não estava sintonizada com os regulamentos dos

serviços de pilotagem, atento o facto de «o piloto ser um simples

guia cujas indicações podem ser ou não seguidas». Cunha

Gonçalves referia (com alusão a sucessivos Regulamentos de

Pilotagem, com destaque para o de 1914) quer o dever de tomar

piloto, quer o dever, também a cargo do capitão, de seguir as suas

indicações, assumindo completa e inteira responsabilidade pelas

consequências do não acatamento daquelas. O regime atual

parece cristalino: o piloto é, em quaisquer circunstâncias, um

assessor do capitão, conforme estabelece o artigo 7.º, n.º2

Decreto-Lei n.º 384/99, o que não afeta a responsabilidade do

capitão, do armador ou do proprietário do navio perante terceiros.

É, por sua vez, claro, face à letra da alínea b) do artigo 4.º, n.º1

Decreto-Lei n.º 202/98, que, ainda que o piloto seja imposto por

lei33, regulamento ou uso, o armador responde pelos seus atos ou

omissões. A caracterização do piloto como assessor revela-se

coerente com o estatuto dos pilotos, tal como resulta do

Regulamento Geral dos Serviços de Pilotagem (aprovado pelo

Decreto-Lei n.º 48/2002, 2 março), de acordo com o qual as

funções de piloto se caracterizam, essencialmente, por ações de

informação e assessoria34, não lhe cabendo a execução de tarefas

32 Refira-se, a propósito, o facto de a Convenção Bruxelas 1910 para a unificação de certas regras em matéria de abalroação, tendo, embora, clarificado, no seu artigo 5.º, que a responsabilidade consagrada nos artigos precedentes não era prejudicada pelo facto de a abalroação ser causada «por culpa de um piloto, ainda quando seja obrigatória a intervenção deste», ter estabelecido uma espécie de moratória, no Artigo Adicional, no sentido de que o citado artigo 5.º não entraria em vigor «senão quando as Altas Partes Contratantes se houverem concertado sobre a limitação da responsabilidade dos proprietários de navios». Efetivamente, o Artigo Adicional da Convenção Bruxelas 1924, relativa à limitação da responsabilidade dos proprietários de navios de mar a, de modo expresso, levantar a suspensão de vigência do referido artigo 5.º. 33 Neste sentido, também a expressão «em quaisquer circunstâncias», que encontramos no artigo 7.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99. 34 Sobre a natureza jurídica do contrato de pilotagem: Arroyo, inclina-se no sentido da caracterização do “contrato de practicaje” como um contrato sui generis, com fortes conexões com o contrato de empreitada, mas acentuando o facto de o piloto apresentar o interesse público da segurança da navegação; Gabaldón Garcia e Ruiz Soroa preferem acentuar o facto de a obrigação a cargo do piloto

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que se prendem com a condução e manobra do navio 35 . Isso

corresponde à ideia do piloto como «carte marine parlante»

(conforme Brunetti). A dúvida que, neste particular, se pode

suscitar é a de saber se a previsão do armador como comitente e

do piloto como comissário é coerente com a caracterização deste

como um assessor. Pode, na verdade, questionar-se se o assessor

pode ser responsabilizado nas relações externas com os lesados

ou se, ao invés, no que tange a tais relações, tal responsabilidade

é exclusiva do armador, que poderia exercer posteriormente o

regresso, no domínio das relações internas. No nosso entender, no

que respeita à pilotagem abrangida pelo Regulamento Geral dos

Serviços de Pilotagem, e apenas a ele nos cingimos, a circunstancia

de a própria lei impor deveres de informação e assessoria ao piloto

determina, nos termos gerais, considerando o regime dos artigo

483.º e 485.º, n.º2 CC – mas com a ressalva que em seguida se fará

– que o piloto possa responder no âmbito das relações externas,

já que, no que ao requisito da ilicitude respeita, parece-nos que o

«círculo de interesses privados que a lei visa tutelar» não é

consubstanciado apenas pela segurança da navegação marítima

qua tale, em abstrato, mas também pela tutela dos bens

(patrimoniais e não patrimoniais) dos sujeitos que possam ser

lesados com erros de navegação ou de manobras36. Esta conclusão

é reforçada pelo facto de o artigo 4.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98

mandar aplicar à responsabilidade do armador pelos atos ou

omissões, entre outros, do piloto o regime da comissão do artigo

500.º CC, regime esse no qual, conforme já frisámos, a

responsabilidade objetiva do comitente pressupõe que recaia

sobre o comissário a obrigação de indemnizar a cargo do

comissário desenvolve-se no âmbito das relações externas, face

ser uma obrigação de meios, que não de resultado. Entre nós, Mário Raposo, reconduz também o contrato de pilotagem a um contrato sui generis, que integra nos “contratos de conselho” de que fala Sinde Monteiro. 35 Destaque-se o disposto no artigo 8.º Regulamento, que estabelece como obrigações do piloto, «perante o comandante da embarcação pilotada», informar e assessorar sobre a navegação, movimentos e manobras a efetuar (alínea a) ), informar sobre quaisquer condicionamentos que possam afetar a segurança (alínea b) ) e informar sobre as condições em que fica a embarcação, sugerindo as precauções adequadas, bem como sobre as obrigações impostas pela regulamentação em vigor (alínea c) ). Por usa vez (alínea d) do artigo 9.º, n.º1 do mesmo Regulamento), o comandante da embarcação pilotada tem o dever de «providenciar pela correta execução das tarefas que se prendem com a condução e manobra da embarcação dentro da área de pilotagem obrigatória, tendo em conta as informações prestadas pelo piloto». 36 Destaque-se, a propósito, o facto de a alínea e) do artigo 6.º Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro, impor ao capitão o dever de «tomar piloto ou prático em todas as barras ou portos ou outras paragens, sempre que a lei, o costume ou a normal diligência o determinem». A questão é, no entanto, mais controversa no âmbito da pilotagem facultativa, na qual a informação e assessoria do piloto ao capitão e, indiretamente, ao armador parece, prima facie, circunscrever-se ao estrito âmbito das relações internas. Contudo, e face à influência e ao regime do Codice della Navigatione, Mário Raposo considera que «a função de serviço público cumprido pelos pilotos não interfere no seu estatuto de responsabilidade, conforme sejam pilotos obrigatórios ou facultativos». Fora deste quadro, parecem estar os casos de pilotagem ou praticagem facultativa não integrados no serviço público de pilotagem.

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aos lesados, que não no das internas face do comitente. Fizemos

acima uma ressalva: trata-se de uma restrição das situações em

que o piloto pode ser responsabilizado por terceiros lesados. No

nosso entender, tal responsabilização não é possível nos casos de

culpa leve, para usarmos a expressão e o conceito

(desresponsabilizadores) constante do artigo 7.º, n.º1 RRCEE.

Independentemente da questão da responsabilização da entidade

pública que nomeia o piloto, este não poderá ser responsabilizado

quando, tendo havido, embora, culpa sua, a mesma não deva, em

concreto, ser qualificada como dolo ou culpa grave (artigo 8.º

RRCEE). Há, no entanto, que reconhecer, no que respeita à

responsabilidade do piloto e às demais responsabilidades em volta,

a existência de uma aparente sintonia entre o regime do artigo 4.º

Decreto-Lei n.º 202/98 – que aponta para uma possível

responsabilidade externa do piloto, no quadro da

responsabilidade solidária decorrente da identificação e

funcionamento da comissão – e o regime do artigo 7.º Decreto-Lei

n.º 384/99, dispositivo este que parece apontar no sentido de a

responsabilidade do piloto ser apenas interna, não respondendo

perante terceiros. Na verdade, conforme vimos, o artigo 7.º, n.º1

estabelece que a circunstância de o piloto ser um assessor não

afeta a responsabilidade do capitão, do armador ou do

proprietário do navio perante terceiros, o que parece indiciar que

o legislador pretender resguardar o piloto perante terceiros. Esta

ideia parece ser, de resto, confirmada pelo próprio preâmbulo do

Decreto-Lei n.º 384/99, onde se lê que «perante terceiros,

respondem agora os interessados no navio ou este». Ainda a

corroborar a ideia de que o legislador de 1999 pode ter pretendido

imunizar o piloto no âmbito das relações externas, o artigo 7.º,

n.º2 do mesmo diploma, colocando, aparentemente, o seu âmbito

de aplicação normativa no momento subsequente ao da satisfação

dos lesados, vem prever a responsabilidade do piloto perante o

armador ou proprietário numa aparente circunscrição, repete-se,

às relações internas. Quer dizer desta aparente tensão entre o

artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98 e o artigo 7.º Decreto-Lei n.º

384/99? Em primeiro lugar, não nos parece que possamos aqui

aplicar, sem mais, a lógica da prevalência da lei mais recente, pela

razão elementar de que os dispositivos em causa têm âmbitos de

aplicação diversos. Na verdade, o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98

trata da responsabilidade do armador (rectius, do proprietário-

armador), enquanto que o artigo7.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99

cura da relevância que a caracterização do piloto como assessor

tem a nível da responsabilidade do capitão, do armador e do

proprietário. Uma vez estabelecida a relevância negativa da

qualidade de assessor, para efeitos de desresponsabilização dos

«interessados no navio» (expressão usada no preâmbulo do

Decreto-Lei n.º 384/99), o artigo 7.º, n.º2 do mesmo diploma

contempla a previsão, não dispensando o piloto de

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

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responsabilidade nas relações internas, quando alguns dos

interessados respondam nas externas. Assim sendo, o artigo 7.º

Decreto-Lei n.º 384/99 não visará desresponsabilizar o piloto no

âmbito das relações externas, mas, antes, deixar claro que os

interessados não podem, a nível dessas relações, exonerar-se com

o argumento de terem sido seguidas as indicações feitas pelo

piloto, no âmbito da sua assessoria. Nesta lógica, o regime do

citado artigo 7.º não impede que, sobre o piloto, recaia obrigação

de indemnizar, face aos lesados, na medida em que se verifiquem,

em relação a ele, os requisitos da responsabilidade civil, mas sem

prejuízo da ressalva acima exposta. Aliás, a não ser assim, o regime

positivo vigente albergaria uma contradição, já que, por um lado,

absolveria o piloto no âmbito das relações externas mas, por outro,

admitiria a responsabilidade do armador no âmbito dessas

mesmas relações quando esta última responsabilidade tem, como

vimos, por pressuposto, nos termos do artigo 500.º, n.º1 CC, que

sobre o comissário «recaia também a obrigação de indenizar». É

certo que sempre seria possível sustentar que este requisito,

centrado no piloto, serviria (apenas) para fundar a imputação ao

comitente, havendo, depois, uma imunização externa do mesmo

piloto, em virtude de uma canalização jurídica para o comitente,

por força do artigo 7.º Decreto-Lei n.º 384/99; contudo, não nos

parece que uma tal construção tenha suficiente suporte no

conjunto constituído pelo artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98 e

artigo 7.º Decreto-Lei n.º 384/99. Outra dúvida suscitável, com

referência aos casos em que a má assessoria do piloto conduza,

por exemplo, a uma situação de abalroação, é a de saber se,

conforme resulta do vetusto artigo 672.º CCom, os lesados podem

responsabilizar diretamente a “corporação” que nomeia o piloto,

bem como – mas agora no âmbito das relações internas – se o

armador que tenha satisfeito a indemnização pode, em regresso

exigir à “corporação” a indemnização que tenha satisfeito. Na

nossa opinião 37 , a corporação que nomeou o piloto pode ser

responsabilizada como comitente, nos termos do artigo 500.º CC,

verificados os requisitos da comissão. Isto significa que à partida,

o proprietário de um navio abalroado em consequência de uma

má assessoria do piloto obrigatório do navio abalroador, pode agir

em três frentes: contra o armador – enquanto comitente do piloto

contra o piloto – como pessoa relativamente À qual se verificam

os requisitos da responsabilidade civil aquiliana; e contra o

organismo que nomeou o piloto38 – enquanto comitente deste.

37 Ver nota 16, página 77, para a atualização do pensamento do Professor na matéria do recurso obrigatório a piloto (8.) 38 Para o efeito, não será necessário que tenha sido identificada culpa desse organismo, máxime na escolha do piloto: por força do artigo 8.º, n.º2 RRCEE, basta que as ações ou omissões tenham sido cometidas no exercício das funções e por causa das mesmas para que a pessoa coletiva de Direito Público seja responsável em solidariedade com o agente. Enquadrando, ainda no domínio do Decreto-

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Em função das perspetivas de abordagem, tanto podemos dizer

que tudo se passa como se o armador-comitente tivesse dois

comissários – o piloto e o organismo – como podemos, antes,

identificar, centradas na pessoa do piloto, a dupla condição de

comissário do armador e do organismoo que o nomeou. Mas há

que, em rigor, identificar, pelo menos nalguns casos, uma terceira

condição de comissário, desta vez relativamente ao capitão,

respondendo este perante terceiros por atos ilícitos praticados por

si, sob indicação ou assessoria do piloto. Teremos, então, uma

espécie de sub-comissão, em que a comissão principal é a que

acontece entre o armador e o capitão e a sub-comissão é a que

tem lugar entre este e o piloto. Trata-se de uma construção que

não suscitaria reservas no Direito anterior, quando o capitão tenha

um papel mais central na expedição marítima; a sua dificuldade no

Direito atual resulta, desde logo, do facto de o artigo 7.º, n.º2

Decreto-Lei .º 384/99 não dar nota de situações de

responsabilidade do capitão por atos do piloto, uma vez que tal

dispositivo só alude à responsabilidade (interna) do piloto, nos

ermos gerais, perante o armador ou proprietário do navio. Não

obstante, parece-nos que não se trata de um argumento

irremovível: face à remissão para os termos gerais, feita pelo artigo

7.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 384/99, importa saber se a

responsabilização resulta do facto de o piloto, como comissário do

armador (alínea b) do artigo 4.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98),

poder responder solidariamente com o capitão. Assim, se é o

capitão a responder perante terceiros por uma situação que tem,

na sua origem, um erro do piloto, o direito de regresso contra este

fará todo o sentido.

c. Outras pessoas ao serviço do navio: o armador responde ainda,

agora por força do que dispõe a alínea c) do artigo 4.º, n.º1

Decreto-Lei n.º 202/98, pelos atos e omissões de qualquer outra

pessoa ao serviço do navio, para além das que estão identificadas

nas alíneas a) e b), não constituindo impedimento o facto de essas

pessoas integrarem o conceito de “indivíduos não marítimos”, tal

como referidos no artigo 64.º Decreto-Lei n.º 280/2001, 3 outubro:

ponto é que estejam ao serviço do navio. Pretende, assim, o

legislador ultrapassar as dúvidas que se suscitavam relativamente

a algumas pessoas que, não fazendo parte da tripulação,

estivessem ao serviço do navio e da expedição. Essas pessoas são

tidas como comissários (artigo 4.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98),

para efeitos de responsabilidade civil, ainda que não exista o

vínculo de subordinação jurídica que caracteriza as relações ius-

laborais.

Lei n.º 48.051, a responsabilidade solidária da Administração, à luz do artigo 22.º CRP (conforme Rangel de Mesquita).

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d. O gestor de navios: um outro sujeito por cujos atos – quando

relativos ao armamento do navio (artigo 7.º Decreto-Lei n.º

202/98) – o armador igualmente responde é o gestor de navios,

caracterizado pela alínea e) do artigo 1.º Decreto-Lei n.º 202/98

como sendo aquele que, contratualmente, foi encarregado pelo

armador da prática de atos de armamento do navio. As situações

típicas que determinam a responsabilidade do armador são

relativas a atos materiais de armamento do navio, a atos jurídicos

em que o gestor tenha atuado em seu próprio nome ou, então, em

que tenha atuado em nome do armador mas sem poderes de

representação para o efeito. Já quanto às situações em que o

gestor tenha praticado atos jurídicos, munido de poderes de

representação, a responsabilidade do armador decorre da lógica

do instituto da representação. No que respeita à responsabilidade

pelos atos do gestor, não estaremos longe do quadro da comissão

e respetivos requisitos: o armador responde pelos atos praticados

pelo gestor no exercício das funções que lhe foram confiadas,

tendo em vista o armamento do navio. Há, porém, duas

especificidades importantes: a primeira é a de que a

responsabilidade pelos atos do gestor não se reporta apenas,

conforme é típico da comissão, a situações de responsabilidade

extra obrigacional. A segunda é a de que a vinculação do armador

não é apenas posterior à verificação dos requisitos da

responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar, não estando

tal vinculação dependente da violação do contrato celebrado pelo

gestor e da evolução do dever de prestar para dever de indemnizar:

o armador está, desde logo, vinculado, à prestação não tornada

ainda prestação indemnizatória. Trata-se, no fundo, de um efeito

que o apelo à figura do mandato comercial – na qual o mandatário

atua por conta do mandate – permite cabalmente explicar.

4. A responsabilidade do simples proprietário:

a. O simples proprietário do navio: despois de regular,

sucessivamente, os termos da responsabilidade do proprietário-

amador e do armador não proprietário, o Decreto-Lei n.º 202/98

prevê a responsabilidade do proprietário não armador,

designando-o por simples proprietário. A noção de proprietário do

navio consta da alínea b) do artigo 1.º: entende-se por proprietário

do navio «aquele que, nos termos da lei, goza, de modo pleno e

exclusivo, dos direitos de uso, fruição e disposição do navio». Trata-

se de uma definição de sabor realista, diretamente importada do

artigo 1305.º CC. Definição essa que o artigo 31.º PLNCM se

propõe igualmente adotar. Não obstante, independentemente do

apuro dogmático da noção, a mesma deve ser cautelosamente

interpretada e aplicada, já que, em concreto, num determinado

momento, o direito de uso, bem como o de fruição do navio, pode

não pertencer ao respetivo proprietário, que o pode ter alugado

ou fretado. Nem da alínea b) do artigo 1.º Decreto-Lei n.º 202/98,

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nem do artigo 2.º Decreto-Lei n.º 201/98, 10 julho (ENL), que

sujeita a registo «os navios e os factos a eles respeitantes», se

retira a consequência de que a propriedade do navio dependa do

respetivo registo, ou seja, que este seja constitutivo do direito de

propriedade: tal consequência não resulta também doo artigo 72.º

Regulamento Geral das Capitanias ou do Decreto-Lei n.º 42.644,

14 novembro 1959. Sem prejuízo do exposto – ou seja, no

pressuposto de que o registo do navio não é constitutivo da sua

propriedade – poderá questionar-se se, para efeitos do concreto

regime do artigo 4.º decreto-Lei n.º 202/98, e, mais amplamente,

de todo o diploma, o proprietário relevante não deveria ser a

pessoa, em cujo nome o navio se encontra, como tal, registado.

Parece-nos que, por razões de segurança jurídica e de tutela dos

terceiros, assim deveria ser; contudo, não vemos tal conclusão

como possível face ao Decreto-Lei n.º 202/98, diploma que adota

uma noção de proprietário de navio alheada da lógica registal, ao

mesmo tempo que se mostra atento a algumas situações registais,

conforme ilustra a presunção constante da alínea b) do artigo 21.º.

Esta conclusão não é, naturalmente, prejudicada pela aplicação da

presunção derivada do registo, quanto aos navios mercantes39,

não sendo, igualmente, contrariada pela constatação de, por vezes,

a lei associar determinados aspetos de regime ao registo de

propriedade do navio, como acontece na CLC/92 (artigo 1.º, n.º3).

Tal como a noção de proprietário do artigo 1305.º CC, a de

proprietário do navio, da alínea b) do artigo 1.º Decreto-Lei n.º

202/98, deve ser reportada ao facto de, como diz Oliveira

Ascensão, a propriedade conceder «a universalidade dos poderes

que se podem referir à coisa»: assim, o exercício, por exemplo, dos

poderes de uso e fruição do navio não afeta o casco ou raiz do

direito de propriedade, sendo tais poderes retomados ou

retomáveis pelo proprietário, de acordo com a elasticidade

própria do direito em causa.

b. A responsabilidade subsidiária do simples proprietário: conforme

dissemos, o artigo 6.º Decreto-Lei n.º 202/98 prevê a

responsabilidade do simples proprietário, estabelecendo que o

mesmo «responde subsidiariamente perante terceiros, nos

mesmos termos do proprietário armador». Conforme é patente, a

redação do artigo 6.º contém uma contradição intrínseca, já que

se o simples proprietário respondesse nos mesmos termos do

proprietário-armador não responderia subsidiariamente; mutatis

39 O regime aplicável ao registo de navios mercantes continua a constar do Decreto-Lei n.º 42.644, 14 novembro 1959 e do decreto n.º 42.646, da mesma data (artigo 5.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 403/86, 3 dezembro, que aprovou o Código do Registo Comercial). A presunção – de que existe a situação jurídica nos termos precisos em que é definida – é associada ao registo definitivo e resulta do artigo 7.º Código Registo Predial, tendo paralela consagração no artigo 11.º Código Registo Comercial. A questão dos efeitos presuntivos do registo é, no entanto, discutida sobretudo em registo predial, cuja dogmática aproveita também ao registo comercial.

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mutandis, se responde subsidiariamente não responde nos

mesmos termos do proprietário-armador. Assim, a remissão para

os termos da responsabilidade do proprietário-armador só pode

ter o sentido de colocar – colocação que acontece ex vi legis – o

simples proprietário na posição de comitente responsável pelos

atos ou omissões das pessoas referidas nas alíneas do artigo 4.º,

n.º1, como se fosse também armador. Há, então, a relevante

diferença de o simples proprietário só responder subsidiariamente

perante o terceiro lesado, o que significa que, em primeiro lugar,

responderá o armador, nos termos conjugados dos artigos 4.º e

5.º; temos, assim, a situação singular de os mesmos comissários

terem dois comitentes, colocados em graus ou planos diferentes:

um comitente principal e natural (o armador) e um comitente

subsidiário (o simples proprietário), cuja responsabilidade

funciona num segundo plano, como mecanismo de reserva ou

garantia. O regime plasmado no artigo 6.º suscita as seguintes

dúvidas:

(i) A da modalidade de subsidiariedade aí consagrada: o facto

de a lei não utilizar a terminologia que emprega

normalmente para as situações de subsidiarização de

responsabilidade – como faculdade ou benefício – leva-

nos a pensar que estamos perante uma situação de

responsabilidade em sentido próprio, ou seja, perante

uma situação de subsidiariedade forte. Daqui decorre que

os credores só podem responsabilizar o simples

proprietário após a execução do património do primeiro

responsável ou de um conjunto de responsáveis. Estamos

perante uma responsabilidade patrimonial de atuação

sucessiva, na qual a prévia execução do património do

devedor primário funciona como autêntico pressuposto

da efetivação da responsabilização do devedor subsidiário.

Isto significa que, diversamente do que acontece nas

situações em que o devedor goza de um simples

benefitium, como na fiança subsidiária, os terceiros têm, à

partida, libera electio entre a responsabilização do

proprietário-armador e do simples proprietário. Assim, o

simples proprietário não tem um mero poder ou faculdade

de subsidiarizar a sua responsabilidade, já que, à partida,

a subsidiariedade em causa não é meramente vital ou

potencial, mas faz parte da natureza da sua

responsabilidade, conforme é típico da subsidiariedade

forte: os credores só podem responsabilizar o devedor

subsidiário após o esgotamento (excussão) do património

do devedor primário.

(ii) A questão de saber se a subsidiariedade é apenas em

relação ao armador ou se é também em relação ao

comissário: cabe-nos saber se o devedor primário,

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relativamente ao qual se afirma a responsabilidade

subsidiária do simples proprietário do navio, é apenas o

armador ou também o capitão ou outra das pessoas

integradas nas alíneas do artigo 4.º, n.º1 Decreto-Lei n.º

202/98. As consequências de uma ou outra conclusão são

patentes: se o simples proprietário puder invocar a

subsidiariedade não apenas em relação ao armador mas

também em relação ao comissário, conseguirá, por essa

via, um reterdamento da sua efetiva responsabilização –

se não mesmo uma prejudicabilidade, se, entretanto, os

lesados forem satisfeitos com recurso ao património do

comissário. Parece-nos, porém, que não é esta a solução

do artigo 6.º: o simples proprietário entra como

responsável em substituição direta do armador cujo

património tenha sido precedentemente excutido. Daqui

resulta que os lesados continuarão a ter como devedores

(se for o caso) o comissário e, agora, o simples proprietário

do navio enquanto devedor subsidiário já primarizado pela

ocorrida excussão do património do armador, ou seja, pela

verificação do pressuposto da sua responsabilidade. Neste

quadro, é patente que a previsão de sub-rogação total ou

parcial do simples proprietário nos direitos do terceiro

contra o armador pode constituir uma disposição

platónica, na medida em que se aceite que a sub-rogação

do simples proprietário na posição do terceiro satisfeito e

na medida da satisfação dos respetivos créditos, ocorre

não apenas em relação ao armador mas também em

relação ao comissário, que, de outro modo, ficaria

injustificadamente liberado.

Como justificar a responsabilidade do simples proprietário,

quando a dívida resulta da exploração do navio? Cremos que,

substancialmente, a explicação está no navio, cuja exploração, não

sendo, embora, feita pelo simples proprietário, é pelo mesmo

permitida ou disponibilizada. Ora, tratando-se de créditos

associados à exploração do navio, os credores contam, no limite,

com as forças deste para a satisfação dos respetivos créditos.

Contudo, uma vez que o sistema de responsabilidade civil está, no

ordenamento português, tal como, em geral nos ordenamentos da

família romano-germânica, estruturados em função da pessoa,

que não da coisa – responsabilidade pessoal (actio in personam)

que não real – a lei responsabiliza o proprietário do navio, quando

conhecido, equiparando-o, para o efeito, ao armador-comitente.

É certo que se poderá trazer para aqui à colação a função de

garantia de indemnização associada à responsabilidade objetiva

do comitente: trata-se, porém, de uma explicação que, não

deixando de ser correta, não vai, no nosso entender, ao âmago da

questão e à especificidade marítima da situação.

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c. Situações de responsabilidade solidária do proprietário e do

armador: conforme vimos, o Decreto-Lei n.º 202/98 alberga uma

situação de responsabilidade subsidiária do simples proprietário

do navio, assumindo o armador o papel de devedor primário, em

solidariedade, nas relações externas, com o capitão ou outro

comissário. Nestas situações de subsidiariedade própria –

independentemente da polémica sobre se a mesma se alberga no

amplo perímetro da solidariedade passiva, tal qual traçado no

artigo 512.º CC – não se suscitam, à partida, dúvidas de que os

lesados não têm libera electio entre a responsabilização do

armador-comitente e a do simples proprietário. Há, no entanto, a

nível de regimes especiais, situações em que o proprietário

responde a par do armador, tendo, então, os lesados libera electio,

nos termos da solidariedade passiva e tendo o cumprimento por

um deles um efeito extintivo recíproco. O artigo 1.º Decreto-Lei n.º

64/2005, 15 maio, impõe ao «proprietário, armador ou legal

representante» de navio afundado ou encalhado o dever de

efetuar a «necessária remoção», ainda que só existam destroços,

e de assumir a totalidade das despesas da operação40: a ocasio em

que este dever é estabelecido é aquela em que, na sequência de

um «sinistro marítimo ou outro acontecimento de mar», ocorra o

afundamento ou encalhe de um navio que:

(i) Cause prejuízo à navegação ou ao regime e à exploração

do porto; ou que

(ii) Cause danos ao ambiente, designadamente a nível dos

recursos aquícolas ou piscícolas41.

Verifica-se, porém, que o regime plasmado no Decreto-Lei n.º

64/2005 vai para além das questões centradas na remoção do

navio afundado ou encalhado e respetivos destroços, já que o

artigo 9.º, n.º2 responsabiliza o proprietário e o armador, em

termos solidários, por todos os prejuízos causados pelo

afundamento, encalhe ou abandono do navio, responsabilização

essa a que é aditada a responsabilidade pela não remoção do navio,

bem como pelos danos originados quando a remoção deste seja

efetuada de forma defeituosa ou não atempada. Parece, assim, de

concluir, que, conquanto não assumido como tal, o Decreto-Lei n.º

64/2005 institui um regime de responsabilidade próprio para

situações de afundamento ou encalhe do navio,

independentemente da remoção dos destroços e das eventuais

40 Conforme parece óbvio, não se trata, em rigor, diversamente do que sugere a letra do artigo 1.º, de um dever de assumir a totalidade das respetivas despesas da operação, dever esse cujo incumprimento possa gerar uma obrigação de indemnização: trata-se, antes, de uma verdadeira imputação legal de responsabilidade pelas despesas da operação. 41 O artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 63/2005 impõe aos mesmos sujeitos procedimentos específicos, não só no caso de ocorrência (efetiva, entenda-se) de poluição marítima mas também no de “perigo de ocorrência”.

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patologias associadas a tal remoção. Nesses casos, é instituída a

responsabilidade solidária do proprietário e do armador do navio,

responsabilidade essa que não cessa pelo facto do abandono do

navio, conforme estabelece expressamente o artigo 8.º, n.º6 do

mesmo diploma 42 – que, assim, afasta claramente um efeito

liberatório do abandono do navio, no sentido plasmado nos n.º1 e

2 do artigo 8.º. Idêntica responsabilidade solidária do proprietário

e do armador do navio é estabelecida no artigo 9.º, n.º1, relativo

ao «pagamento de todas as despesas resultantes das operações de

remoção» efetuadas ao abrigo do diploma, quando as mesmas

sejam suportadas por entidade administrativa. Causa perplexidade

que o artigo 9.º pareça isentar o representante legal do armador

quando, nas disposições anteriores, tinha abarcado, como sujeito

de deveres e responsável, aquele representante, a par do

proprietário e do armador representado, conforme resulta

claramente, designadamente do já citado artigo 8.º, n.º6, segundo

o qual o abandono do navio em resultado de acontecimento de

mas não afasta a responsabilidade do proprietário, armador ou

representante legal pelos prejuízos ou danos causados. O Decreto-

Lei n.º 67/2005 adota uma técnica maximalista, assente, a um

tempo, no estabelecimento ex lege de situações de solidariedade

passiva, na criação de mecanismos de garantia e na estatuição de

contraordenações, numa clara estratégia de disparar em todas as

direções – estratégia pouco serena essa, de que se ressente o

diploma, na sua clareza e apuro técnico.

4. Responsabilidade do navio: uma vez feita, nos termos dos artigo 4.º a 6.º Decreto-Lei

n.º 202/98, a imputação secundária, em termos de responsabilidade objetiva,

sucessivamente, ao armador e ao (simples) proprietário do navio, o artigo 11.º do

mesmo diploma estende, in extremis, a responsabilidade ao próprio navio,

responsabilidade essa cuja imputação pressupõe um requisito fundamental: a

impossibilidade efetiva de imputação ao armador ou ao proprietário do navio. Já

acima fizemos referência – justificando, desse modo, a imputação ao simples

proprietário – ao facto de o regime de responsabilidade civil, nos sistemas romano-

germânicos, em que se insere o português, ser ad personam, que não ad rem. Ora,

essa característica, para além de explicar a natureza subsidiária da responsabilidade

do simples proprietário, explica também porque é que a responsabilização do próprio

navio, como se pessoa jurídica fora, só acontece em última instância – em desespero

de causa, digamos – quando as imputações secundárias dos artigos 4.º a 6.º Decreto-

Lei n.º 202/98 já não são possíveis. Nesse caso, responderá o navio, não enquanto

bem pertencente ao simples proprietário – desde logo porque essa relação entre

titular e elemento do património fenece, por se desconhecer quem é o dono – mas

42 O artigo 8.º, n.º6 refere-se ao «abandono do navio em resultado de acontecimento de mar», deixando claro que o mesmo não afasta a responsabilidade do «proprietário, armador ou representante legal pelos prejuízos ou danos causados». Pese embora a circunscrição da referência feita no artigo 8.º, n.º6 ao «abandono em resultado de acontecimento de mar», não há qualquer fundamento para concluir – conclusão que seria baseada num juízo a contrario – que o abandono que não seja feito em resultado de acontecimento de mar já seria liberatório.

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enquanto, digamos, personagem principal da expedição marítima. Ou seja, trata-se

de situações nas quais, por impossibilidade de assegurar a efetivação da

responsabilidade, nos termos da responsabilidade pessoal, o ordenamento recorre a

uma solução típica da lógica da responsabilidade real – funciona em termos

subsidiários relativamente à responsabilidade pessoal – coisa bem diversa de

responder subsidiária e sucessivamente em relação ao armador e ao simples

proprietário do navio. Conforme parece lógico, se for o proprietário do navio a

responder efetivamente, assegurada está, por essa via da responsabilidade pessoal, a

possibilidade de ser penhorado o navio, como bem integrante do património desse

devedor. As situações em que, de acordo com o artigo 11.º, n.º1 Decreto-Lei n.º

202/98, é possível a responsabilização direta do navio são aquelas em que «o

proprietário ou o armador não forem identificáveis»43; nesse caso, resulta ainda do

citado artigo 11.º, n.º1 que o navio responde, perante os credores interessados, nos

mesmos termos em que o proprietário ou o armador responderiam. Para o efeito, o

artigo 11.º, n.º2 do mesmo diploma atribui ao navio, personalidade judiciária e investe

o agente de navegação que tenha requerido o despacho na qualidade de

representante em juízo; trata-se de uma atribuição lógica, como forma de o navio –

por não ser pessoa jurídica pelo menos em termos plenos – poder responder, sendo

parte em juízo. Vejamos, mais detalhadamente, os termos em que o navio responde,

perante os credores interessados, distinguindo, sucessivamente, as situações em que

(i) Não é identificado o proprietário do navio nem o armador: não sendo

identificado nenhum dos sujeitos relativamente aos quais o diploma efetiva

imputações secundárias, o navio responde diretamente, nos termos e por

força do artigo 11.º, n.º1;

(ii) Não é identificado o armador: nesta situação, sendo o proprietário

conhecido44, a responsabilidade direta do navio não terá lugar, respondendo

o simples proprietário com todo o seu património, incluindo, naturalmente, o

navio; ou

(iii) Não é identificado o simples proprietário: onde, sendo o armador conhecido,

ocorrerá a responsabilização direta do navio nos mesmos termos em que este

último responderia, ou seja, subsidiariamente em relação à responsabilidade

do armador.

Uma situação específica em que alei marítima interna prevê a responsabilidade direta

do navio ocorre no domínio do transporte de mercadorias por mar, estabelecendo o

artigo 28.º Decreto-Lei n.º 352/86 a responsabilidade direta do navio que efetue o

transporte, perante os interessados na carga, nos mesmos termos em que

responderia o transportador, em duas situações distintas:

(i) Se ocorrer a nulidade prevista no artigo 10.º, n.º1 do diploma; ou

43 O artigo 11.º, n.º1 refere-se à situação em que o proprietário ou o armador não forem identificáveis «com base no despacho de entrada da capitania». Parece-nos, porém, que esta referência é exemplificativa, não tendo, assim, caráter limitativo. Neste particular, o artigo 392.º, n.º1 PLNCM vai no bom sentido, ao retirar a expressão aqui em destaque 44 Trata-se, no entanto, de uma situação de difícil verificação, já que, em função da presunção da alínea a) artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98, o proprietário é presumido armador, não havendo, então, cisão entre as duas figuras.

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(ii) Se o transportador marítimo não for identificável com base nas menções

constantes do conhecimento de carga.

Para o efeito dessa responsabilização, o artigo 28.º, n.º1 atribui ao navio

personalidade judiciária, cabendo a sua representação em juízo ao proprietário, ao

capitão ou ao seu substituto, ou ao agente de navegação que requereu o despacho

do navio. Uma das várias dúvidas suscitadas pelo artigo 28.º prende-se com a

ressalva prevista no seu n.º3, de acordo com a qual a responsabilidade estabelecida

no n.º1 não prejudica a efetivação da responsabilidade estabelecida no artigo 10.º,

n.º2 do mesmo diploma, nos termos gerais de direito. Parece-nos não haver aqui

identificação dos termos da responsabilidade do navio com os termos da

responsabilidade das pessoas identificadas no artigo 10.º, n.º2: estas respondem

nos termos gerais de Direito: aquele responde nos mesmos termos do transportador.

Por outro lado, não há nenhuma relação de subsidiariedade entre as duas

responsabilidades, admitindo-se, porém, que o navio que responda possa exercer

direito de regresso contra tais pessoas, em termos equivalentes aos que vigoram na

solidariedade passiva.

5. O abandono liberatório do navio face ao Decreto-Lei n.º 202/98:

a. Introdução: a revogação do artigo 492.º CCom pelo artigo 20.º

Decreto-Lei n. 202/98 fazia supor que o legislador nacional teria

optado, em sede de regime de limitação de responsabilidade do

proprietário do navio, por abandonar o regime do abandono do

navio. Não foi isso, porém, eu aconteceu: o artigo 12.º do citado

diploma, que tem por objeto, precisamente, a figura da limitação

de responsabilidade do proprietário do navio, mantém a figura do

abandono, conferindo-lhe, no entanto, aparentemente, um

âmbito de aplicação mais limitado. Mais concretamente, o artigo

12.º admite que o proprietário do navio restrinja a sua

responsabilidade ao navio e ao valor do frete a risco,

abandonando-os aos credores com vista à constituição de um

fundo de limitação de responsabilidade, mas essa faculdade só é

possível quando não estejam em causa pedidos de indemnização

abrangidos pelos regimes de limitação de responsabilidade

admitidos nos tratados e convenções internacionais vigentes em

Portugal. A admissão do abandono apresenta-se, assim,

claramente, como subsidiária relativamente à aplicação das

limitações de responsabilidade resultantes dos tratados e

convenções citados: trata-se, mais rigorosamente de um regime

supletivo, cuja aplicação pressupõe a não aplicação aos pedidos de

indemnização que estejam em causa do regime de limitação de

algum tratado ou convenção internacional em vigor em Portugal.

Nesta lógica, o advérbio além, com que o legislador inicia o artigo

12.º, é, prima facie, enganador, já que pode sugerir – sugestão que

é, depois, desdita- uma aplicação cumulativa ou alternativa de

regimes. Não deixa, neste particular, de ser curiosa a simbiose de

regimes e mesmo de sistemas de limitação adotados pelo

legislador português no artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98: por um

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lado, mantém o abandono in natura, de coloração continental; po

outro, associa o abandono à figura anglo-saxónica do fundo de

limitação. Assinale-se, porém, que o fundo de limitação é definido

como uma quantia, um montante – mais concretamente, como

(alínea h) do artigo 1.º) «o montante global a que o proprietário de

um navio pode limitar a sua responsabilidade por danos causados

a terceiros» - quando, na Convenção de Bruxelas de 1957, o fundo

de limitação é, pelo menos ictu oculi, algo bem mais complexo. Ou

seja, adotando, embora, a técnica e a linguagem do fundo de

limitação, o legislador transforma-o, em termos de definição, num

simples montante, num quantum. Contudo, a nível de regime

(artigo 13.º e seguintes) o Decreto-Lei desdiz a ideia simplista de

que o fundo seja um mero montante. A que tratados e convenções

de reporta o legislador? Prima facie, seria de afastar a hipótese de

os tratados ou convenções relevantes serem os que vinculam

Portugal a nível internacional, já que, quanto aos mesmos, não

faria sentido vir o legislador ordinário recordar que, no âmbito de

aplicação da lei internacional, o Direito interno tem uma aplicação

subsidiária, em função da primazia da lei internacional. Contudo,

atentos os termos da receção do Direito internacional no Direito

interno e tendo em conta as considerações, feitas supra,

sucessivamente, em relação às Convenções de Bruxelas 1924 e

1957, parece-nos que, no que se refere aos regimes uniformes

gerais, o legislador terá em mente os regimes resultantes daqueles

Convenções, em particular da de 1957, tendo também em conta o

regime plasmado no Decreto-Lei n.º 49.928, complementado pelo

Decreto 49.029. Nesta lógica, acaba, a final, por ganhar algum

sentido o advérbio além, atrás refutado, o qual evidencia que os

instrumentos normativos visados pelo legislador corporizam

Direito interno, tal qual o regime do abandono previsto na parte

final do mesmo artigo. Também nesta lógica, a única que permite

salvar a coerência das soluções legislativas nesta matéria, o

legislador terá pretendido deixar claro que entre o regime

resultante do Decreto n.º 49.029 (com a Convenção de Bruxelas

1957 internalizada) e o do abandono, recuperado na parte final do

artigo 12.º, o primeiro tem primazia aplicativa sobre o segundo,

apesar de este constituir lei posterior. É certo que, em princípio,

não haveria conflito de aplicação possível, atento o facto de o

legislador ter deixado claro que o regime do abandono é supletivo,

só tendo aplicação quando os pedidos de indemnização não

respeitem a matérias abrangidas pelas convenções vigentes em

Portugal; contudo, parece-nos positivo que o legislador tenha tido

o cuidado pedagógico de deixar vincado que o abandono só tem

aplicação nos espaços deixados pelos normativos de fonte

internacional. O pressuposto de que não estejam em causa

pedidos de indemnização abrangidos pelos tratados e convenções

internacionais, vigentes em Portugal, deverá ser entendido em

termos estritos, isto é: é a circunstância de os pedidos de

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indemnização estarem cobertos ou abrangidos por tais tratados

que impedem a aplicação supletiva do regime do abandono, ainda

que o proprietário do navio não logre limitar, efetivamente, a sua

responsabilidade ao abrigo dos mesmos. Discutia-se, no sistema

de abandono do Code du Commerce e do artigo 492.º CCom, se o

abandono só podia ser efetuado pelo proprietário do navio ou se

o podia ser também pelo armador não proprietário.

Independentemente da posição mais correta a tomar face àquela

legislação revogada, parece-nos seguro que tal polémica não tem

espaço no regime do Decreto-Lei n.º 202/98. Na verdade,

distinguindo este diploma, com toda a clareza, entre as figuras do

armador e do proprietário, estabelecendo, também com clareza,

um sistema de responsabilidade desses sujeitos (artigos 4.º a 6.º)

e tratando o artigo 12.º dos limites de responsabilidade do

proprietário, não vemos como seja possível, no quadro desse

mesmo diploma, estender a faculdade de abandono ao armador

não proprietário; de resto, a lei circunscreve, expressis verbis, o

abandono ao proprietário do navio. Aliás, o facto de o diploma ter

optado por uma lógica de abandono em espécie ou in natura –

abandono da res – que passa pela venda judicial do navio, que não

por um abandono do valor do navio, inviabiliza a extensão de tal

modo de limitação de responsabilidade ao armador não

proprietário. Daqui resulta uma desarmonia entre o regime de

limitação ao abrigo da Convenção de Bruxelas de 1957 – que

permite ao armador não proprietário limitar a sua

responsabilidade (artigo 6.º, n.º2) – e o regime de limitação

concretizado através do abandono com vista à constituição de um

fundo de limitação de responsabilidade, reservado ao proprietário

do navio. Daqui decorre, portanto, que, quanto aos créditos não

abrangidos pelo artigo 1.º, n.º1 CB 1957 e salvo algum regime

especial aplicável, a lei interna portuguesa não faculta ao armador

não proprietário do navio nem a qualquer das demais pessoas

mencionadas no artigo 6.º, n.º2 CB 1957 um regime de limitação

de responsabilidade, solução esta que, na lógica da admissão de

um regime de limitação de responsabilidade relativamente a

créditos marítimos, é de duvidosa coerência. Estando o abandono

circunscrito ao proprietário do navio, é de exigir que o proprietário

em causa seja também armador? Neste sentido militaria o facto

de, entre os elementos abandonados, estar o frete a risco, frete

esse que, tipicamente, é auferido pelo armador no âmbito da

exploração do navio. Contudo, não nos parece que, no quadro do

regime do Decreto-Lei n.º 202/98, o argumento do frete seja

impeditivo do abandono liberatório pelo simples proprietário:

para além do facto de o artigo 12.º não limitar o abandono ao

proprietário-armador – figura esta a que dá um relevo central no

seu artigo 4.º - o simples proprietário que disponibiliza o navio a

um armador, fretando-o, aufere também um frete (artigo 1.º

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Decreto-Lei n.º 291/87), elemento este que poderá ser integrado

no quid a abandonar.

b. Créditos abrangidos pela limitação através do abandono: o sistema

de abandono in natura consagrado na Ordunnance du Colbert e

sucessivamente adotado nos códigos comerciais mais diretamente

influenciados pelo Code du Commerce, tinha como espaço natural

e lógico de aplicação o universo dos créditos da expedição

marítima: da viagem. De resto, o n.º2 do artig 492.º CCom – com

referência ao qual ou às situações nele previstas, o §1.º do mesmo

artigo consagrava o abandono do navio e do frete ganho ou a

vencer – referia-se às «obrigações contraídas pelo capitão,

relativas ao navio e sua expedição». Entendia-se, porém, que os

créditos relativamente aos quais era possível o abandono do navio

não eram apenas os créditos da última expedição ou viagem,

podendo abranger créditos de expedições ou viagens anteriores,

mas aí com a desvantagem para os correspondentes credores,

menos lestos no exercício dos seus créditos, por força da restrição

resultante do §único do artigo 578.º CCom. É de questionar agora

se, quanto ao abandono com vista à constituição de um fundo de

limitação, vale a citada interpretação defendida na vigência do

Código Comercial ou se, ao invés, é de aplicar alguma limitação.

Nessa última opção, o legislador de 1998 tinha, grosso modo,

como critérios de consideração possíveis, o da viagem – critério

utilizado, conquanto não em termos plenos, na Convenção de

Bruxelas de 1924 (artigo 3.º, n.º3) ou no Codice della Navigazione

– ou o do evento – critério este utilizado quer na Convenção de

Bruxelas de 1957 (artigo 2.º, n.º1) quer na Convenção de Londres

1976 (artigos 6.º, n.º1 e 7.º, n.1º). Apesar de o artigo 12.º Decreto-

Lei n.º 202/98 não nos fornecer indicações claras no sentido de um

critério delimitador específico, parece-nos que a alínea a) do artigo

14.º, n.º1 – ao exigir a identificação do «facto de que resultaram

os prejuízos» - permite, ainda assim, sustentar a relevância do

evento (occasion), tal como ocorre na CB 1957, no Decreto-Lei n.º

49.028 e no Decreto n.º 49.02945. Não fora esta circunscrição –

que, logicamente, impõe que o fundo só possa ser constituído

após o evento – o abandono do navio e do frete a risco com vista

à constituição de um fundo de limitação de responsabilidade,

poderia ser feito, genericamente, relativamente a quaisquer

créditos sobre o proprietário do navio, na medida em que os

mesmos tivessem conexão com o navio objeto do abandono.

c. O quid objeto do abandono:

1. Introdução: a restrição da responsabilidade do proprietário

do navio prevista na 2.ª parte do artigo 12.º Decreto-Lei n.º

202/98 processa-se através do abandono do navio e do valor

45 Em sentido diverso temos Sofia Enriquez para quem «os elementos componentes da fortuna de mar devem ser determinados no fim de cada viagem que ocasionou dívidas marítimas».

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do frete a risco. Conquanto a letra do artigo 12.º não dê

alento à hipótese, tão discutida no domínio de vigência do

artigo 492.º CCom, de o abandono se processar, também

liberatoriamente, através de abandono do valor do navio,

importa analisar este ponto. O esclarecimento desta questão

revela-se de particular importância na perspetiva do

proprietário do navio e ainda na do armador não proprietário,

conquanto exista, neste último caso, a acrescida dificuldade

de o artigo 12.º limitar expressamente o abandono ao

proprietário do navio. À partida, admitido que seja o

abandono e a respetiva eficácia liberatória, não veríamos

impedimento a que o mesmo se pudesse processar não

apenas in natura mas também em valor, em função da opção

do abandonante. Com esta admissão poderiam, a um tempo,

ser satisfeitos os interesses do proprietário do navio e os dos

credores: o primeiro por, eventualmente, pretender

continuar a exploração daquele navio, oferecendo aos

credores uma quantia correspondente ao respetivo valor; os

segundos porque, em princípio, terão mais interesse numa

indemnização pecuniária do que no navio, para cuja

exploração não estarão vocacionados. Aliás, no sistema

previsto no Decreto-Lei n.º 202/98, o credores não recebem,

a final, o próprio navio mas, antes, o produto da respetiva

venda, razão pela qual a admissão do abandono do valor seria

uma forma de, antecipando procedimentos e com ganho de

tempo, serem satisfeitos igualmente os interesses dos

credores, sempre dentro do quadro do sistema de limitação.

Naturalmente que a determinação do valor liberatório não

pode depender da apreciação ou juízo unilateral do

proprietário do navio, devendo, antes, resultar de uma

avaliação objetiva do mesmo, num processo que contasse

com a participação dos credores interessados. Acontece,

porém, que o abandono do navio, com vista à constituição de

um fundo de limitação, passa, nos termos dos artigos 14.º,

n.º4 e 15.º Decreto-Lei n.º 202/98, pela venda judicial do

navio, só ficando, de resto, o fundo constituído quando se

mostre realizado o depósito do produto da venda. Neste

quadro, não havendo, processualmente, mecanismos que

permitam ao proprietário do navio substituir o navio pelo

respetivo valor, não vemos como possível a eficácia

liberatória do abandono do respetivo valor ou, se quisermos,

a eficácia liberatória da oferta (real) de tal valor como

alternativa, ex voluntate debitoris, ao abandono liberatório.

Não obstante, nos termos gerais, sempre será possível essa

eficácia, não no âmbito unilateral do abandono, mas no de

um acordo de regularização de dívida celebrado entre o

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proprietário do navio e os credores46. É certo que, através

desse contrato, os credores liberarão o devedor, aceitando

uma indemnização inferior àquela que corresponderia ao

montante dos danos; contudo, esse acordo pode ser

manifestação de uma atitude realista de quem sabe que, pela

via do abandono, provavelmente não receberá mais, para

além de receber mais tarde.

2. Navios abandonados: tal como no domínio de vigência do

artigo 492.º CCom, importa questionar que tipo de navios

pode ser objeto do abandono previsto no artigo 12.º Decreto-

Lei n.º 202/98. Era então sustentado, naturalmente com

referência aos navios de mar, únicos enquadráveis no Livro

Terceiro do Código, aplicável ao «Comércio Marítimo?, que

na previsão do artigo 492.º podiam caber também os navios

de pesca47, não havendo, porém, unanimidade de posições

no que respeitava às embarcações de recreio: enquanto que

Frederico Martins defendia a inaplicação, quanto às mesmas,

da «vantagem do abandono», Viegas Calçada opinava, ao

invés, que as razões da admissão do abandono para os navios

de comércio aplicavam-se, igualmente, aos navios de recreio,

opinião esta que encontramos também em Azevedo Matos.

Face ao regime do artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98, pese

embora o facto de a noção de navio, constante da alínea a)

do artigo 1.º, ser suficientemente ampla para englobar

quaisquer embarcações, independentemente do fim e até,

independentemente das águas de navegação, o abandono

não pode ser admitido com tanta amplitude. Em primeiro

lugar, conforme resulta da história e da especificidade do

instituto, não fará sentido equacionar a respetiva aplicação

fora do domínio marítimo. De resto, a própria articulação,

estabelecida no artigo 12.º, com convenções internacionais,

postula a circunscrição aplicativa de todo o regime do artigos

a navios de mar, já que a principal convenção sobre a matéria

vigente em Portugal – a Convenção de Bruxelas de 1957 – tem

o seu âmbito de aplicação delimitado em função dessa

característica dos navios. Pressupondo esta delimitação,

cremos que as razões que presidem à admissão do regime de

46 São, naturalmente, possíveis vários cenários contratuais. Um desses cenários poderá ser o de um negócio de fixação ou de acertamento, seguido de cumprimento, designadamente quando não haja certeza sobre o montante de indemnização devida ou sobre a verificação dos pressupostos para a limitação de responsabilidade. 47 Conforme nos diz Viegas Calçada, com o argumento de que os navios de pesca «são para todos os efeitos navios de comércio e não é lícito cercear aos seus donos a faculdade de abandono»; Azevedo Matos, com a especificidade de diferenciar consoante o local de pesca, diz-nos: a faculdade de abandono só teria aplicação aos navios empregados no exercício da pesca do alto mar, quando as operações relativas ao navio e à sua expedição fossem contraídas pelo capitão fora do porto da matrícula. A doutrina portuguesa refletia, de resto, uma polémica que existia noutros ordenamentos jurídicos.

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limitação de responsabilidade do proprietário do navio,

através de abandono, valem também para os barcos de pesca,

já que os mesmos são, do mesmo modo que os navios

mercantes, aplicados em operações de transporte, palco e

protagonistas de atividades económicas, cujo exercício

postula o risco de afrontar os perigos do mar, justificando,

assim o benefício ou a vantagem do abandono. Não vemos,

porém, que tais razões sejam ou possam ser aplicáveis aos

navios de recreio, sendo mesmo chocante admitir que o

proprietário de um iate possa ver a sua responsabilidade

limitada por danos pessoais e materiais, decorrentes, por

exemplo, de uma abalroação a um navio de pesca. Não vemos,

de facto, justificação para uma benesse desse jaez, não sendo

a simples circunstância de se tratar de um navio de mar e de,

como tal, enfrentar os resp4tivos riscos, justificação bastante.

De resto, se bem olharmos para o regime do abandono,

consagrado no Decreto-Lei n.º 202/98, o facto de um dos

elementos a abandonar ser, necessariamente, o valor do

frete a risco, constitui, de per si, uma indicação relativamente

ao âmbito de aplicação do instituto do abandono, já que esse

elemento é dificilmente perscrutável nas embarcações de

recreio. Refira-se, finalmente, que, nesta sede, o regime a

adotar não tem de se pautar pela solução que, para similar

problema, se coloca na Convenção de Bruxelas de 1957, cuja

interpretação se pauta pela lógica próprio do Direito

uniforme, lógica essa que não tem de ser transposta para a

interpretação das normas de fonte interna.

3. O navio perdido: no sistema de abandono in natura era

sustentado, como vimos, que a eficácia liberatória o

abandono não dependia, algo paradoxalmente, da existência

de navio: ainda que este se perdesse totalmente, ainda assim

era possível a limitação de responsabilidade. Era esta a

posição sustentada, entre nós, por exemplo, por Adriano

Anthero, que defendia a eficácia liberatória não só do

abandono de navio destroçado mas também de navio

totalmente perdido, «pois o proprietário abandona o navio

como o tem». O mesmo entendimento era sufragado por

Azevedo Matos, parra quem o abandono devia «ser feito no

estado em que o navio for encontrado no momento em que

ele se realiza, mesmo depois de naufrágio, sendo neste caso

que desempenha a sua função». Contra este argumento,

insurgiu-se Cunha Gonçalves, para quem «não se pode,

evidentemente, abandonar o que não existe», mais

ponderando que a recusa ao devedor do direito de

abandonar um navio perdido não constituiria uma negação

da limitação da responsabilidade «pois não se pode

abandonar o nada». Frederico Martins não aludia

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diretamente ao problema, inferindo-se, no entanto, que

acompanhava a posição de Cunha Gonçalves, em função da

circunstância de discutir se, no caso de navio perdido, o

proprietário pode limitar a sua responsabilidade através do

abandono do respetivo valor ou da indemnização recebida. O

problema ganha novos contornos face ao regime do Decreto-

Lei n.º 202/98, no qual a eficácia liberatória do abandono do

navio e do valor do frete a risco passa pela constituição de um

fundo de limitação de responsabilidade, para cuja efetivação

é necessário (artigos 14.º, n.º2 e 15.º) o depósito do produto

da venda do navio. Assim sendo, parece poer concluir-se com

segurança que, para o Decreto-Lei n.º 202/98, a eficácia

liberatória do abandono passa, cumulativamente, pelo

depósito do valor do frete a risco (artigo 15.º, n.º3) e do

produto da venda do navio, não se afigurando defensável a

posição que e traduza na defesa da ideia de que a limitação

por abandono liberatório pode ter lugar com o depósito

possível, ou seja, na hipótese que estamos a equacionar,

apenas com o depósito do valor do frete. De resto, ainda que

não se acompanhem os exatos termos da indignação, por

exemplo, de Ferrara, relativamente à admissão do abandono,

com efeito liberatório, de um navio caído nos abismos

marinhos não nos parece que, na atualidade, seja possível

sustentar uma tal draconiana posição, cuja sustentação

brigaria, de resto, seguramente, com os princípios

constitucionais vigentes. Um problema a colocar será, então,

o de saber se o depósito efetuado o foi do produto da venda

de um navio ou de meros destroços (épaves): se tiver sido

este último o caso, a limitação através de abandono

liberatório não é possível, por faltar um dos elementos cujo

cumulativo abandono faculta a liberação. Sem pretender

fazer jogos de palavras, parece evidente que o proprietário

do navio não pode abandonar um navio já abandonado.

Referimo-nos, concretamente, às situações em que o navio

seja considerado abandonado nos termos do artigo 17.º

Decreto-Lei n.º 202/98 e do artigo 8.º Decreto-Lei n.º

64/2005, situações estas não subsumíveis ao abandono

liberatório nem confundíveis com o mesmo. De resto, o artigo

18.º Decreto-Lei n.º 202/98 consagra um regime específico

de tutela dos titulares de créditos «sobre o navio

abandonado» ou de que seja devedor o seu anterior

proprietário, parecendo-nos seguro que, não sendo tal

abandono liberatório, os credores não estão impedidos de

recorrer à restante fortuna do devedor.

4. O frete a risco: um dos elementos abandonados pelo

proprietário do navio, tendo em vista conseguir o efeito

liberatório, à luz do §1.º do artigo 492.º CCom, era, para além

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do navio, «o frete ganho ou a vencer». Uma das dúvidas que,

então, se suscitava era a de saber se o frete a abandonar seria

o frete bruto ou o frete líquido, dúvida essa comum, de resto,

às doutrinas dos diversos ordenamentos inspirados pelo

modelo do Code du Commerce. Quer para Adriano Anthero,

quer para Cunha Gonçalves, quer ainda para Frederico

Martins, o frete relevante era o frete bruto ou integral, o que

era justificado, por este último, nos seguintes termos: «a

faculdade de abandono representa, para o proprietário do

navio uma vantagem bastante grande e até bastante

exorbitante dos princípios do direito comum, para que não

seja fácil justificar-se qualquer limitação no objeto do

abandono». Já Viegas Calçada não se mostrava convencido

relativamente à bondade dos argumentos que sustentavam

ser relevante o frete bruto, optando, no entanto, a final, por

uma solução de compromisso, mas não muito clara, tudo

fazendo depender das condições em que o frete fora

contratado. Nos casos em que o proprietário do navio não

recebesse frete por a carga lhe pertencer, entendia a

doutrina que esse proprietário teria de pagar uma soma

correspondente à carga transportada. Outro ponto

controverso, no domínio de aplicação do artigo 492.º CCom,

era o de saber se o frete a abandonar era o frete da viagem

na qual se constituíam as obrigações do proprietário o navio

ou o da viagem em que o abandono foi feito. Cunha

Gonçalves optava por esta segunda solução «porque, se assim

não fosse, de um lado, a soma a abandonar teria de variar

conforme os créditos fossem da última ou das anteriores

viagens; e doutro lado, o proprietário teria de abandonar

somas que já entraram na sua fortuna de terra». Confrontado

com o regime do artigo 492.º CCom, o frete a abandonar, nos

termos do artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98, é o «frete a

risco», ou seja, o frete a vencer: o legislador terá, porventura,

considerado que o frete já vencido e pago já está integrado

na «fortuna de terra», não se justificando, assim, a sua

inclusão no abandono. Independentemente da bondade da

solução, a verdade é que se quebra, neste particular, um

regime que já vinha, pelo menos, no que ao Direito aplicável

em Portugal concerne, desde a Ordunnace du Colbert, através

da Lei da Boa Razão. Já quanto aos fretes posteriores aos da

viagem em que se deu o abandono ou ao da viagem que teria

lugar imediatamente após o abandono, questão bastante

controversa no domínio do artigo 492.º CCom, parece-nos

que, a existirem, integral o quid a abandonar, já que se

enquadram no «frete a risco». Importa, neste ponto, realçar

que o depósito do valor do frete a risco a que se refere o

artigo 14.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 202/98 não está dependente

do efetivo pagamento do mesmo: o proprietário do navio tem

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142

o ónus de efetuar esse depósito no âmbito do processo,

mantendo a qualidade de credor do frete, mas fora do

processo de limitação.

d. Exclusão do direito de limitação através do abandono: no domínio

de vigência do artigo 492.º CCom, a questão da identificação de

situações de exclusão do direito de limitação da responsabilidade

através de abandono não foi objeto de particulares atenções.

Prova do escasso relevo que este problema suscitava é o facto de

Viegas Calçada, que ao tema da limitação de responsabilidade

dedicou uma monografia, não ter feita alusão ao assunto. Nem

artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98 nem qualquer das

subsequentes disposições identificam situações ou

comportamentos cuja verificação impeça a limitação de

responsabilidade do proprietário do navio, parecendo, assim,

prima facie, que a faculdade de abandono é independente de

culpa e do respetivo grau. Trata-se, porém, de uma conclusão que

se apresenta como juridicamente inaceitável, havendo, no nosso

entender, bons argumentos no sentido de ser aplicável à limitação

de responsabilidade através de abandono, grosso modo, os

mesmos limites aplicáveis ao direito de limitação de acordo com

as normas da Convenção de Bruxelas 1957, limites esses que têm

aplicação no Direito interno por força do Decreto-Lei n.º 49.028:

de acordo com o artigo 1.º, n.º1 CB 1957, havendo «culpa pessoal»

do proprietário do navio fica excluída a faculdade de limitação.

Grosso modo no mesmo sentido, podemos invocar a Convenção

de Bruxelas 1924 para a unificação de certas regras relativas à

limitação de responsabilidade dos proprietário de navios de mar,

cujo artigo 2.º, n.º1 veda a invocação da limitação de

responsabilidade ao proprietário do navio, relativamente às

obrigações resultantes de «factos ou faltas» do mesmo. Um lugar

paralelo invocável nesta sede é constituído pelo regime de

limitação da responsabilidade do transportador marítimo de

mercadorias, à luz da Convenção de Bruxelas 1924 e do Decreto-

Lei n.º 37.748, 1 fevereiro 1950 48 . Apesar de a Convenção de

Bruxelas 1924 sobre conhecimentos de carga – Convenção que

consagra um regime de limitação da responsabilidade do

transportador – não prever, na versão anterior ao Protocolo de

Visby, a exclusão do direito de limitação, a doutrina tem acentuado

– agora com apoio expresso na alínea e) artigo 4.º, n.º5,

introduzida em Visby – o facto de a «faute inexcusable» do

transportador permitir ao contrainteressado paralisar a pretensão

de limitação. Sem prejuízo do relevo da normativização de

«conducts barring limitation», a nível do Direito dos Transportes,

parece-nos que os regimes especificamente marítimos apontados

são suficientes para firmarmos o princípio, vigente também no

48 Através do Decreto-Lei n.º 37.748, a Convenção de Bruxelas 1924 passou, de acordo com este controverso diploma, a ser Direito interno português.

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143

ordenamento jurídico português, de que o beneficiado com o

direito de limitação perde esse direito quando a sua conduta o

torne imerecedor do benefício que tal direito encerra. A partir

daqui, a questão está e identificar qual é o comportamento ou

atitude do proprietário do navio que o impede de limitar a sua

responsabilidade através do abandono do navio, tarefa esta que

se não mostra fácil em virtude de, à partida, serem diferentes os

regimes de «conduct barring limitation» nas Convenções de

Bruxelas de 1924 e de 1957 sobre limitação de responsabilidade e

na Convenção de Bruxelas de 1924 sobre conhecimentos de carga.

No nosso entender, o regime a aplicar terá de ser equivalente ao

estabelecido na Convenção de Bruxelas 1957. NA verdade, tendo

este regime sido transposto para o Direito interno e disciplinado

pelo Decreto-Lei n.º 49.028 situações não especificamente

reguladas pela Convenção, podemos considerar que o regime

uniforme que conhece no Direito português maior intensidade

aplicativa é o daquela Convenção. Assim, por razões de coerência

e unidade do sistema, defendemos a aplicação analógica do

regime de preclusão do direito de limitação vigente da Convenção

1957 às situações de abandono do navio e do frete, ao abrigo do

artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98.

e. Processo de limitação de responsabilidade: como vimos, o artigo

12.º Decreto-Lei n.º 202/98 admite que o proprietário do navio

abandone aos credores, nas condições aí expressas, o navio e o

valor o frete a risco, com vista à constituição de um fundo de

limitação de responsabilidade. Tendo provavelmente presentes

nas intermináveis polémicas centradas na natureza jurídica do

abandono do navio – cuja causa radicava, em grande parte, no

facto de o legislador comercial ter omitido a regulamentação dos

termo do abandono – o Decreto-Lei n.º 202/98 consagra os seus

artigos 13.º a 16.º ao processo de responsabilidade, através do

abandono do navio e do frete a risco, remetendo, no seu artigo

13.º, mas sem o nomear, para o Decreto n.º 49.029, 26 maio 1969,

diploma que, na sequência da indicação constante do artigo 4.º

Decreto-Lei n.º 29.028, da mesma data, contém a regulamentação

de caráter processual relativa à Convenção Internacional sobre o

limite de responsabilidade dos proprietário de navio de mar de

1957. Naturalmente que a remissão para o Decreto n.º 49.029 é

feita «com as necessárias adaptações», conforme se impõe,

considerando, desde logo, o facto de, no caso do Decreto-Lei n.º

202/98, constituição do fundo de limitação ter lugar através do

abandono do navio e do frete a risco, enquanto que o Decreto n.º

49.029 admite, em geral, a constituição do fundo de limitação com

recurso a qualquer das modalidades de prestação de caução. O

processo de constituição do fundo de limitação através do

abandono do navio e do valor do frete a risco inicia-se com um

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requerimento do proprietário do navio (Artigo 14.º Decreto-Lei n.º

202/98), que deve mencionar:

(i) O facto de que resultaram os prejuízos; bem como

(ii) O montante do frete a risco;

Tal requerimento deve (Artigo 14.º, n.º2) ser acompanhado da

relação dos credores conhecidos com direito a participar na

repartição do fundo, indicando os respetivos domicílios e o

montante dos seus créditos. Trata-se de uma indicação similar à

exigida na alínea a) artigo 2.º, n.º2 Decreto n.º 49.029, que surge

como necessária tendo, designadamente, em vista a posterior fase

de citação de credores reclamação de créditos. Pese embora o

laconismo do legislador de 1998, parece que o requerimento de

constituição do fundo deverá ser o primeiro passo de um processo

específico, tendo em vista a limitação de responsabilidade através

dos abandonos. É certo que o artigo 16.º Decreto-Lei n.º 202/98

parece sugerir a ideia de que a constituição do fundo é feita – ou,

pelo menos, pode ser feita – por uma via de exceção, devendo o

requerimento ser apresentado até ao termo do prazo para a

contestação da ação fundada em crédito a que seja oponível a

limitação de responsabilidade. Pensamos, porém, que o artigo 16.º

se limita a estabelecer o prazo dentro do qual o proprietário do

navio demandado em ação se dívida para pagamento de um

crédito ao qual sea oponível a limitação, pode paralisar a

pretensão indemnizatória, nos termos em que é formulada,

através da apresentação de prova de que requerer a constituição

do fundo. Parece-nos assim, possível concluir que o requerimento

de constituição do fundo de limitação tanto pode ter lugar em ação

como em exceção, à semelhança do que ocorre com o

requerimento de constituição do fundo para efeitos de limitação

de responsabilidade, ao abrigo da Convenção de Bruxelas 1957. Se

não houver lugar a indeferimento liminar, o juiz ordem que o

requerente deposite o valor do frete a risco e nomeia depositário

para o navio (artigo 14.º Decreto-Lei n.º 202/98). Compreende-se

perfeitamente a imposição do depósito do valor do frete a risco,

uma vez que faz parte dos bens abandonados. Já quanto à

nomeação de depositário para o navio, verifica-se que o legislador

não enquadrou tal nomeação, definindo a situação jurídica do

navio. Mais concretamente, essa nomeação como depositário não

tem na sua base um qualquer novo regime aplicável ao navio,

sendo lógico que o legislador tivesse mandado aplicar aqui, quer

em termos adjetivos quer em termos substantivos, o regime da

penhora, sem prejuízo das necessárias adaptações. Nada disso é

feito, porém, limitando-se a lei a prever a nomeação de um

depositário, sem definir, ao certo, o respetivo estatuto e funções.

Dir-se-ia que a remissão feita no artigo 8.º, n.º2 Decreto n.º 49.029

para o processo executivo determina a aplicação do referido

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regime da penhora e do depositante; contudo, uma tal conclusão

está longe de ser cristalina, uma vez que o citado artigo 8.º, n.º1

só remete para o regime dos artigo 789.º e seguintes CPC, em fase

de reclamação de créditos reclamados, fase essa bem a jusante da

penhora. A única conclusão segura que julgamos poder formular,

neste particular, de modo a dar um sentido útil à nomeação de um

depositário, é a de que – tal como nas situações de penhora

(artigos 757.º, n.º1 e 772.º CPC) – a posse efetiva do navio passa

para o depositário, não nos parecendo possível ir mais além, em

termos de se sustentar a aplicação do regime de inoponibilidade

plasmado no artigo 819.º CC. Daqui decorre que, sendo vendido o

navio, pelo respetivo proprietário, após a nomeação de

depositário, tal ato deve ser interpretado como uma renúncia ao

direito à limitação de responsabilidade através do abandono,

ainda que o mesmo proprietário venha a demonstrar, mais tarde,

que o produto obtido com a alienação corresponde ao valor

comercial do navio e ainda que se proponha depositar á ordem do

tribunal a quantia correspondente. A perplexidade mantém-se

face ao facto de o artigo 14.º, n.º4 do mesmo Decreto-Lei n.º

202/98 estabelecer que, uma vez efetuado o depósito do valor do

frete, «é ordenada a venda judicial imediata do navio», não tendo,

também aqui, o legislador tido o cuidado de remeter para o

processo executivo, já que, mais uma vez, o Decreto n.º 49.029

não contém um regime específico aplicável, pelo menos

diretamente, uma vez que está gizado numa lógica de constituição

do fundo através da prestação de caução. O encadeamento de

situações estabelecido no artigo 14.º Decreto-Lei n.º 202/98

sugere que o legislador se terá convencido – cremos que com

alguma ingenuidade – que a ordem de venda judicial imediata do

navio (artigo 14.º, n.º4) tem o condão de permitir que o mesmo

seja efetivamente vendido de imediato – o que não corresponde

minimamente à realidade, a não ser que, por absurdo, se

interpretasse a previsão legislativa no sentido de legitimar

qualquer venda a qualquer preço, que não pelo seu valor

comercial. Uma vez realizado o depósito do produto da venda do

navio 49 , o juiz declara constituído o fundo de limitação da

responsabilidade (artigo 15.º Decreto-Lei n.º 202/98). Mas o juiz

deve ir mais além e designar um prazo entre 30 a 60 dias para a

reclamação de créditos (artigo 3.º, n.º3 Decreto n.º 49.029),

seguindo-se, com as necessárias adaptações, o regime

estabelecido no artigo 5.º e seguintes Decreto n.º 49.029. Entre as

especificidades a assinalar – especificamente esta que se retira da

lógica do abandono e que não pode ser contrariada pela simples

remissão para o regime da reclamação de créditos do processo

executivo, feita, «com as necessárias adaptações», pelo artigo 8.º

49 Não é a venda do artigo 18.º Decreto-Lei n.º 202/98, mas a do CPC. Na verdade o navio abandonado referido no artigo 18.º não é o do artigo 12.º mas o do artigo 17.º do mesmo diploma.

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Decreto-Lei n.º 49.02950 – está o facto de a reclamação de créditos

não estar dependente da titularidade de uma garantia real: podem

reclamar créditos todos os titulares de créditos marítimos relativos

ao navio abandonado, ainda que sejam credores comuns, não

titulares de causas legítimas de preferência. Tratando-se de

titulares de créditos não marítimos, os respetivos credores só

poderão reclamar os créditos que beneficiem de uma garantia real

sobre o navio: tais credores não poderão ser despojados das

garantias de que beneficiem, despojamento esse que, de resto, a

estar previsto, teria de ser acompanhado da previsão de uma

contrapartida, sob pena de inconstitucionalidade, já que

equivaleria a um confisco. No que respeita à repartição do fundo,

o Decreto-Lei n.º 202/98 e, mais uma vez, omisso. Ora, sendo

seguro que tal repartição não pode ser feita nos termos da

Convenção de Bruxelas 1957 – cujo artigo 3.º, n.º2 impõe a

aplicação do princípio par condictio creditorum – a mesma deverá

considerar as posições dos credores com títulos legítimos de

preferência, conforme acontece nos processos de execução,

designadamente singular. Fora de hipótese está, no nosso

entender, a aplicação do regime do artigo 3.º, n.º2 daquela

convenção pela via da remissão do artigo 13.º Decreto-Lei n.º

202/98 pra as «normas de processo», uma vez que,

manifestamente, o citado artigo 3.º, n.º2 não se enquadra nesse

qualificativo.

f. O efeito da constituição do fundo de limitação: uma vez constituído

o fundo de limitação que, como vimos, pressupõe que se mostre

realizado o depósito do produto da venda do navio (Artigo 15.º

Decreto-Lei n.º 202/98), importa ver os efeitos que a tal

constituição estão associados. Mais concretamente, importa

apurar, em primeiro lugar, a posição dos credores cujos créditos

estão sujeitos a limitação através do abandono, relativamente ao

restante património do proprietário do navio; importa, depois,

igualmente, indagar sobre a posição dos demais credores – dos,

digamos, credores de terra – relativamente ao fundo de limitação

de responsabilidade que integra os bens abandonados. Quanto ao

primeiro aspeto, ou seja, quanto aos credores cujos créditos estão

sujeitos a limitação, entendemos ser de aplicar integralmente o

efeitos estabelecidos no artigo 4.º Decreto n.º 49.029, 26 maio

1959, por força do artigo 13.º Decreto-Lei n.º 202/98. Assim,

(i) Os créditos sujeitos a limitação deixam de vencer juros; e

(ii) Deixam esses credores de poder instaurar ou prosseguir

ação ou execução por créditos aos quais a limitação seja

50 Sendo este, por sua vez, aplicável «com as necessárias adaptações» (!), por força do artigo 13.º Decreto-Lei n.º 202/98.

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147

oponível, sendo as ações ou execuções pendentes

apensadas ao processo de constituição do fundo.

Substancialmente, a partir da constituição do fundo de limitação,

o proprietário do navio pode paralisar, material e processualmente,

qualquer ação ou execução que contra o mesmo seja intentada

por créditos abrangidos pela limitação, só podendo os credores

satisfazer os respetivos créditos com base nas quantias que

constituem e integram o fundo de limitação51. A quem pertencem

as eventuais sobras do fundo de limitação? No nosso entender, se

o volume de créditos reconhecidos ficar aquém da soma das

quantias resultantes do depósito do valor do frete a risco e do

produto da venda do navio, o saldo pertence ao proprietário do

navio, estabelecendo-se, também aqui, um paralelismo com o

processo executivo. Diversa seria a solução se o abandono fosse

gizado pelo Decreto-Lei n.º 202/98 como uma alienação do navio

aos credores, caso em que pertenceria a estes o produto da venda

de um bem de sua propriedade. Pergunta-se agora qual o efeito

da constituição do fundo relativamente ao demais credores do

proprietário do navio, ou seja, relativamente àqueles cujos

créditos não estão sujeitos à limitação através do abandono – do

abandono concreto. Pensamos ser necessário distinguir duas fases:

a primeira, a montante da constituição do fundo e após a

nomeação de depositário para o navio (artigo 14.º, n.º4 Decreto-

Lei n.º 202/98); a segunda, após a própria constituição do fundo.

O problema com que nos deparamos, nesta sede, no que concerne

à primeira fase, é que nem o Decreto-Lei n.º 202/98 nem o Decreto

n.º 49.029, para onde este remete, contêm uma disposição como

a do artigo 2.º, n.º3 CB 1957, que imunize o fundo – in casu, o frete

a risco depositado e o navio com depositário nomeado –

relativamente às ações dos demais credores do proprietário do

navio, sejam ou não beneficiários de garantias reais sobre esses

bens. O legislador de 1998 não atentou neste aspeto, como que

desconhecendo, ingenuamente, que o proprietário do navio pode

ter outros credores, que considerem, em função da situação

patrimonial daquele, que o abandono do navio e do frete pode

fazer perigar a probabilidade de satisfação dos respetivos créditos.

De resto, o legislador já tinha demonstrado o seu alheamento do

processo e das suas vicissitudes, ao não fazer associar claramente

a nomeação de depositário para o navio ao efeito da penhora.

Substancialmente, isto significa que o abandono, tal qual previsto

no Decreto-Lei n.º 202/98 assemelha-se a uma medida naïf do

51 Ainda que sejam credores desconhecidos. Tal como os credores conhecidos (artigo 14.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98), os credores desconhecidos (artigo 5.º, n.º2 Decreto n.º 49.029) podem reclamar os respetivos créditos, não sendo aplicável ao fundo de limitação constituído nos termos do Decreto-Lei n.º 202/98 o estranho regime do artigo 9.º Decreto n.º 49.029, desde logo pela circunstância de o mesmo pressupor uma «quantia reservada», prevista na Convenção de Bruxelas de 1957 (artigo 3.º, n.º4), mas já não no Decreto-Lei n.º 202/98.

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legislador nacional, já que o navio não está, até à venda, imune de

diligências de penhora feitas por «credores de terra» ou por outros

«credores de mar», que não os abandonatários. Se o legislador

tivesse pretendido que, através do abandono, se constituísse um

património autónomo, teria tomado medidas normativas de modo

a assegurar esse efeito, tanto mais que tinha presente um modelo

de autonomia resultante da CB 1957, convenção essa presente na

1.ª parte artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98. Assim sendo, diríamos

que, até à constituição do fundo de limitação, o regime atual do

abandono se aproxima mais da caracterização que, relativamente

aos credores não abandonatários, era feita por Viegas Calçada,

também no domínio de vigência do artigo 492.º CCom. Segundo

este autor, «o abandono é estabelecido para fazer cessas as

responsabilidades do dono do navio, sem limitar a não dos credores

a quem o abandono não é ou não deve ser feito». Uma vez vendido

o navio e constituído o fundo de limitação (artigo 15.º Decreto-Lei

n.º 202/98), não só deixa de ser, logicamente, possível a penhora

do navio, como deixa também de ser possível a penhora do sub-

rogado do navio vendido, ou seja do produto (depositado) da

venda do navio: a partir daí, apenas poderá ser penhorado o

eventual saldo de restituição a favor do ex-proprietário. Na

verdade, pese embora o silêncio do Decreto-Lei n.º 202/98,

também neste particular, parece-nos que é essa a solução que

permite estabilizar ou cristalizar o processo de limitação, de modo

a assegurar a subsequente fase de reclamação e de graduação e

créditos. Neste sentido milita, de resto, a definição de efeitos feita

no artigo 4.º Decreto n.º 49.029, aplicável por força do artigo 13.º

Decreto-lei n.º 202/98.

g. O abandono do navio e do frete e o princípio par condictio

creditorum: do exposto resulta que a distribuição das quantias

depositadas (valor do frete a risco e produto da venda do navio)

não é feita de acordo com o princípio par condictio creditorum.

Quer os credores abandonatários que sejam, eventualmente,

titulares de garantias reais, quer os não abandonatários que, por

serem titulares de garantias desse jaez, tenham reclamado

créditos, têm direito, nos termos gerais, a ver os respetivos

créditos reconhecido e graduados em conformidade com a

preferência de que gozem. Estão aqui em causa,

fundamentalmente, os créditos garantidos por hipotecas ou por

privilégios creditórios, mas também os garantidos por penhora do

navio, quer esta seja anterior quer seja posterior ao requerimento

de constituição do fundo de limitação. O problema não se colocará,

porém, em princípio, relativamente ao frete, já que o quid

abandonado não é o crédito de frete – que até pode,

eventualmente, estar empenhado – mas (artigo 14.º, n.º3

Decreto-Lei n.º 202/98) a quantia correspondente ao valor do

frete. Ora, como é patente, do funcionamento deste processo

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pode resultar, afinal, algo que se adivinha como evidente: os

credores abandonatários podem nada receber, ou receber uma

quantia irrisória, o que significará, então, que o proprietário do

navio terá conseguido, não a mera limitação da sua

responsabilidade mas a própria exclusão. Parece-nos, porém, que

– independentemente de outras vias de reação de que os credores

abandonatórios se pudessem valer numa situação deste tipo – o

Decreto-Lei n.º 202/98 permite sustentar que, numa tal situação

e, mesmo noutras de menor gravidade, a sentença prevista no

artigo 8.º, n.º5 Decreto n.º 49.029 deve considerar a liberação sem

efeito, enquanto o proprietário do navio não efetuar um depósito

adicional que permita suprir a destinação das quantias em

concreto necessárias para satisfazer os credores com garantia real

alheia ao «facto de que resultaram os prejuízos», para usarmos a

expressão que consta da alínea a) do artigo 14.º, n.º1 Decreto-Lei

n.º 202/98. Recorde-se, a propósito, que a alínea h) artigo 1.º

Decreto-Lei n.º 202/98 define fundo de limitação da

responsabilidade como «o montante global a que o proprietário do

navio pode limitar a sua responsabilidade por danos causados a

terceiros». Recorde-se também que a alínea a) do artigo 14.º, n.º2

do mesmo diploma se reporta ao «facto de que resultaram os

prejuízos». Estas referências legislativas permitem sustentar –

ainda que, reconheçamos, com algum labor – que os montantes

depositados que permitem a declaração de constituição do fundo

de limitação (artigo 15.º) definem também o quantum da

responsabilidade do proprietário do navio perante os credores

abandonatários, em termos de permitir a sua liberação. Assim, se

o navio está onerado com privilégios a favor de terceiros um vez

que, como vimos, não á forma de o juiz deixar de considerar os

créditos beneficiados com esses privilégios, o proprietário do

navio deverá ser convidado para refazer o montante global

prejudicado com a situação dos credores não abandonatários com

causa legítima de preferência, sob a cominação de não poder

funcionar a liberação (plena) associada ao abandono liberatório.

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150

Arresto de Navios52

Regime Internacional:

1. Caracterização do arresto: diz o artigo 1.º, n.º2 CB 1952 que o arresto de

navios «significa a imobilização de um navio, mediante autorização de

autoridade judiciária competente, em garantia de um crédito marítimo, mas

não compreende a apreensão de um navio baseada em título exequível». A

frase final do preceito pretende excluir do conceito o que se poderá chamar

de arresto executivo, ou seja, o que tenha a finalidade imediata de

concretizar uma execução. Refere-se usualmente que o arresto de navios é

um meio de pressão sobre o devedor de um crédito marítimo. Realmente, a

mera imobilização tem custos elevados: manutenção, encargos com a

tripulação, suspensão dos lucros de exploração, etc53. Cabe às autoridades

portuárias (em sentido amplo)54 o dever de recusar a saída do navio. Isto

embora possam promover a deslocação do navio arrestado dentro do porto,

a fim de facilitar que, neste, a movimentação de outros navios se processe

com maior facilidade. Tratar-se-á de uma detenção física, de «una suerte de

restricción material o immovilización material, incompatible, por tanto, com

una simples anotación registal» 55 . Exatamente por seu uma medida

extremamente gravosa para o requerido, é de entender que o requerente do

arresto possa ser obrigado a prestar caução. Não alude a CB 1952

explicitamente a esse tipo de caução. É, no entanto, de assentar em que,

estando prevista na lei portuguesa56, é admissível, por via do disposto do

artigo 6.º CB 1952. Deverá a caução assegurar o pagamento da

indemnização em que o requerente poderá vir a ser condenado em caso de

wrongful arrest. São, pois, as leis nacionais (artigo 6.º CB 1952), a regular

52 Mário Raposo 53 O arresto não implica que a manutenção do navio, lato sensu, passe a estar a cargo do credor requerente do arresto. 54 Conforme a Lei n.º 35/86, 4 setembro, referente aos Tribunais Marítimos e a extensa Exposição de Motivos n.º 17/IV, que lhe deu origem; também o Decreto-Lei n.º 370/2007, 6 novembro. 55 Ignacio Arroyo. 56 Artigo 620.º CC («o requerente do arresto é obrigado a prestar caução, se essa lhe for exigida pelo tribunal»). A prestação de caução não é, pois, ex lege, obrigatória, dependendo do critério do juiz. Assim também o artigo 374.º, n.º2 e artigo 376.º, n.º2, ambos CPC.

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«todas as questões relativas à responsabilidade do autor». Dispõe o artigo

621.º CC que o requerente do arresto é responsável se não tiver agido «com

a prudência normal». Não se exige, pois, dolo ou culpa grave, mas a mera

negligência. O critério legal português estará, pois, na linha do assumido em

Espanha e na Alemanha. Quanto ao polo oposto, para que o requerido possa

pôr termo ao arresto terá, ele próprio, que prestar caução (artigo 5.º CB

1952). Na falta de acordo das partes «sobre a importância da caução ou

garantia» celebrará ao tribunal «fixar a sua natureza e montante». No

entanto, se o arresto tiver sido decretado com base nos crédito marítimos

previstos nas alíneas o) e p) do artigo 1.º, n.º1 CB 1952 (relacionados com a

propriedade, compropriedade ou posse contestadas do navio e da sua

exploração) o levantamento do arresto não poderá ser autorizado. O regime

aplicável será então o do artigo 7.º, n.º2 Cb 1952. Realmente, se o forum

arresti não for o competente para julgar do fundo da causa – o que em alguns

casos acontecerá – o tribunal que decretou o arresto deve fiar o prazo dentro

do qual a ação deverá ser proposta no tribunal competente (artigo 7.º, n.º2

CB). E o mesmo poderá acontecer na hipótese do artigo 7.º, n.º3 CB 1952.

Se a ação não for proposta no prazo fixado pelo juiz do arresto o arrestado

pode pedir o levantamento do arresto ou da caução prestada (artigo 7.º, n.º4

CB 1952)57. Contas feitas, poderá concluir-se, face às regras do artigo 7.º CB

1952, que o arresto não pode ser caracterizado como um meio de pressão

mas como uma fase (a de garantia) de um iter processual que culminará

numa sentença de mérito e na sua possível concretização? É evidente que

o arresto que o arresto tem as duas valências sendo um falso problema

ignorar qualquer delas. Que funciona como garantia de um crédito marítimo

é dito pela própria Convenção (artigo 1.º, n.º2). Que constitui um

eficacíssimo meio de pressão mostra-o a mais captável realidade e

lembram-no todos os autores. Como sintetiza Marta Zabaleta Díaz:

«A maior desgraça que pode acontecer a um armador ou

afretador é a de o navio que explora comercialmente ser

arrestado e, por conseguinte, imobilizado. A falta de mobilidade

57 Diz o artigo 7.º, n.º3: «Se as convenções das partes contêm cláusula atributiva de competência a outra jurisdição ou cláusula arbitral, o tribunal poderá fixar o prazo de propositura da ação principal». Ao invés do que se passa no n.º2 desse artigo 7.º o Juiz não estará adstrito a fixar um prazo para a propositura da ação. Apenas o poderá fazer.

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do navio impede aquele que o explora de obter lucros. Não

obstante, porém, continua a suportar os mesmos encargos e

despesas que suportaria se ele estivesse a navegar. Dizia já um

velho aforismo popular que “barco parado não ganha frete”».

Entretanto, e como é óbvio, qualquer procedimento cautelar tem uma função

instrumental. Assim, o arresto (qualquer tipo de arresto) «constitui um

importante meio de defesa de direitos de natureza creditícia, atentas as

possibilidades que revela no tocante à conservação da garantia patrimonial

do credor»58. É uma instrumentalidade bifronte: de um lado como meio de

pressão, de outro como garantia do crédito que a determina, e da sua tutela

jurisdicional59. Dispõe, entretanto, o artigo 5.º CB 1952 que na hipótese de

não poder ser levantado (definitivamente) o arresto mediante prestação de

caução (v.g. se os créditos marítimos em que ele se fundou forem os

previstos no artigo 1.º, n.º1, alíneas o) e p) CB 1952) poderá o Juiz «autorizar

a exploração do navio pelo possuidor, desde que este preste garantias

bastantes, ou regular a gestão do navio durante a pendência do arresto».

Tratar-se-á então, em termos de realidade, de autorizar o possuidor do navio

a efetuar uma ou mais viagens determinadas, durante prazos pré-fixados.

2. … E a sua aplicação: nos termos do artigo 8.º, n.º1 CB 1952 as disposições

desta são aplicáveis em qualquer dos Estados contratantes «a todo o navio

que arvore a bandeira de um Estado contratante». Entendeu o Supremo

Tribunal da Irlanda que deste preceito advém implicitamente a não

aplicabilidade da Convenção a um navio que arvore a bandeira de um Estado

não contratante. Esta regra apenas comportaria uma exceção: a

possibilidade de arrestar um navio com bandeira de um Estado não

contratante, nos termos do artigo 8.º, n.º2 CB 1952. E, segundo o Supremo

Tribunal Irlandês, aproveitar-se-ia apenas da Convenção a listagem contida

no artigo 1.º, n.º1. Discorda Francesco Berlimgieri deste critério, por

considerar que todas as disposições da CB 1952, são aplicáveis a navios

com bandeira de Estados não contratantes. E comenta que limitar a

aplicabilidade a esses navios do artigo 1.º, n.º1, por ser o único preceito

58 Abrantes Geraldes. 59 A funcionalidade do arresto como meio de pressão concretizar-se-á na medida em que, para obviar à imobilização do navio, paralisante da sua atividade, o requerido tenderá a promover o seu levantamento.

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referido no artigo 8.º2. O que este artigo 8.º, n.º2 diz é que um navio com

bandeira de Estado não contratante pode ser arrestado com base num

crédito marítimo constante do artigo 1.º, n.º1, ou com base num crédito que

autorize o arreste segundo a lei deste Estado. Pierre Bonassies apoia

decididamente a aplicabilidade da Convenção aos navios de bandeira de

Estado não contratante, apenas com a dualidade constante do artigo 8.º,

n.º3. Esta posição foi, aliás, a adotada pela Cour de Cassation. Bonassies

afasta, assim, a leitura que limita a aplicação da CB 1952 aos créditos

marítimos que poderão dar causa a um arresto (artigo 1.º, n.º1), dicando

todo o processamento deste regulado pelas leis do Estado da bandeira. É

evidente que a recusa prevista no artigo 8.º, n.º3 não pode ser feita caso a

caso. Terá que o ser com caráter genérico pelo órgão competente do cada

Estado 60 . Diz o artigo 8.º, n.º4 que «nenhuma disposição da presente

Convenção modificará ou afetará a lei interna dos Estados contratantes no

respeitante ao arresto de um navio na jurisdição do Estado cuja bandeira

ele arvora, por pessoa com residência habitual ou principal estabelecimento

nesse Estado». Significa isto que o regime da Convenção não se aplica ao

arresto em Portugal de um navio português por um residente português num

tribunal português. Ou seja, a Convenção apenas se aplicará quando um de

três elementos – local do arresto, bandeira do navio a arrestar e requerente

do arresto – for estranho ao Estado onde tiver lugar o arresto.

3. Arresto duplo: consagra o artigo 3.º, n.º3 CB 1952 o princípio da proibição

de um segundo arresto no mesmo navio, ou de outro pertencente ao mesmo

proprietário pelo mesmo crédito. Explicita, portanto:

«nenhum navio poderá ser arrestado e nenhuma caução ou

garantia poderá ser prestada, mais de uma vez, na jurisdição de

um ou vários Estados contratantes, pelo mesmo crédito e a

pedido do mesmo autor; e se um navio for arrestado numa das

ditas jurisdições, e prestada caução ou garantia, quer para fazer

levantar o arresto, quer para o evitar, qualquer aresto ulterior,

desse navio ou de outro pertencente ao mesmo proprietário,

60 Dispõe este artigo 8.º, n.º3, que qualquer Estado contratante pode recusar todas ou parte das vantagens da Convenção a qualquer Estado não contrate ou a qualquer pessoa que à data do arresto não tenha a sua residência habitual ou o seu principal estabelecimento neste Estado. Portugal não declarou atempadamente a recusa.

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efetuado a solicitação do autor e pelo mesmo crédito marítimo,

será levantado ou liberado o navio pelo tribunal ou jurisdição

competente do referido Estado, a não ser que o mesmo prove,

em termos considerados bastantes pelo tribunal ou autoridade

judiciária competente, que a garantia ou caução foi

definitivamente extinta antes da realização do arresto

subsequente ou que não existe qualquer razão válida para a

manter».

A ideia essencial a reter de tão alastrada e só arduamente entendível norma

é a de, como regra, não ser admitido o re-arresto61. É de concluir, pois, que

um segundo arresto, ou re-arresto, será apenas de decretar quando o

requerente prove que, por qualquer razão, o primeiro arresto já não é

bastante como garantia eficaz do crédito reclamado. Em concreto, o

fundamento invocado será a insuficiência da caução. Entretanto, o re-

arresto terá sempre um caráter excecional. A Convenção de Genebra de

199962, que se propõe, até agora com quase completo inêxito, substituir a

Convenção de Bruxelas de 1952 revela maior abertura em relação à

possibilidade de obter um segundo arresto, quer sobre o mesmo navio, quer

sobre outro que seja arrestável. Embora mais inteligível e praticável, o artigo

5.º da Convenção ainda é objeto de reparos da doutrina, até porque não

prevê que o arresto recaia desde logo, simultaneamente, sobre dois navios.

Define. Entretanto, claramente, as causas do re-arresto:

(i) Inadequação da garantia;

(ii) Superveniente incapacidade do garante em assegurar o

cumprimento desta;

(iii) Cancelamento da garantia.

4. Créditos marítimos: passa como moeda corrente que, nos termos da CB

1952, bastará alegar a existência de um do créditos constantes da lista

61 Relatando Francesco Berlingieri, invocando, como frequentemente acontece, os trabalhos preparatórios da Convenção; metodologia que, não obstante a muito especial autoridade do Mestre italiano participante qualificado que foi da formação de muitas Convenções Internacionais pode não se ajustar por inteiro à do artigo 9.º CC. De qualquer modo, os trabalhos preparatórios ajudam a reconstruir a vontade do legislador, embora não esgotando os demais critérios de interpretação. 62 Não ratificada por Portugal.

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exaustiva (e de aplicação restritiva) do artigo 1.º, n,º.1 para que um navio de

mar possa ser arrestado. Não há que justificar o receio de perda da garantia

patrimonial. O simplismo deste pressuposto, que não encontrou até agora

dissonância consistente, mostra «à quel point la saisie conservatoire peut

s’avérer être um formidable moyen de pression de la part des créanciers»,

refere Cécile Navarre-Laroche. E, por isso mesmo, lembrava já Rodière que

«un pareil système ne peut être viable que par la menace de Lourdes

indémnités un cas d’abus du droit da saisir». Não é necessário alegar (e

muito menos provar) o requisito do periculum in mora, como desnecessária

é a verificação de «une créance certaine, liquide et exigible». Nunca surgiu

controvérsia minimamente consistente sobre o que constitui o primum

movens da CB 1952: basta a alegação do crédito marítimo(!). Entretanto,

como quase sempre acontece, há opiniões dissonantes. Designadamente, o

Acórdão do STJ de 21/5/1996, embora revogando o Acórdão da Relação de

Lisboa que decidira ser necessária a prova do receio de perda da garantia

patrimonial, considerou que para obter o arresto bastava fazer a prova do

crédito marítimo. Ora, como aliás se mostra da CB 1952, não é necessário

provar a existência do crédito sendo suficiente a simples alegação. Como

sintetizou Antonio Vialard, a alegação de um crédito marítimo consiste no

simples facto de se emitir uma pretensão nele fundada. Ou seja, de o invocar

como fundamento do arresto. É, entretanto, evidente que o crédito marítimo

terá que ser um dos que consta a listagem do artigo 1.º, n.º1 CB 1952, o que

é tarefa exegética nem sempre fácil. Será essa, até certo ponto, a ideia de

Léo Delwaide, quando conclui que a alegação não deve referir-se a um

crédito inverosímil. O mesmo que é dizer de um crédito que não cabe,

mesmo com esforço interpretativo, no elenco do artigo 1.º, n.º1 CB 1952. A

questão não é debatida na doutrina em Portugal, como não o é nos restantes

países. Apenas na jurisprudência surgem dissonâncias, e mesmo essas

raras. Na doutrina não serão encontráveis autores de relevo que, face à CB

1952, sustentem que não bastará a alegação de um crédito marítimo para

fundamentar o pedido de arresto. Isto pelo menos recentemente. Como é

evidente, o que se acaba de esboçar tem apenas a ver com casos em que

não há distinção entre o responsável do crédito marítimo e o proprietário do

offending ship. Uma das mais recorrentes críticas que se fazem à CB 1952

tem a ver com o elenco de créditos marítimos contidos no artigo 1.º, n.º1 ou

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com a deficiente redação de algumas das suas alíneas. E foi essa uma das

mais fortes motivações da nova Convenção de Genebra de 1999. Era,

designadamente, motivo de reparo não estarem os prémios de seguros

incluídos na referida previsão. O mesmo acontecia com os créditos

decorrentes de um contrato de agência marítima. Na Convenção de Genebra

de 1999, concluiu-se, a final, que seria de manter o sistema na CB 1952

consagrado, embora com as correções e aditamentos que a realidade tinha

vindo a demonstrar. Assim, entre outras inovações, foi incluído um novo

crédito marítimo, decorrente da recuperação dos danos causados (ou

suscetíveis de causar) no meio ambiente e interesses conexos e do custo

das medidas tomadas para os evitar (alínea d) ). Foram, finalmente,

incluídos (alínea q) ) os prémios de seguros. Isto como mera amostragem,

Entretanto, e de qualquer modo, é de evidenciar a gravidade da não inclusão

na atual listagem de créditos, dos prémios de seguro e da reparação e da

prevenção dos danos ambientais. É de referir que a jurisprudência, com a

concordância da melhor doutrina, tem entendido que o arresto de navio é

viável mesmo que somente parte do crédito invocado seja um crédito

marítimo. Assim, decidiu o Tribunal de Comércio de Marselha em 4/6/2003.

5. Arresto de navios. Mas de que Navios? Não dá a CB 1952 um conceito de

navio. Tem-se entendido, no entanto, que para esse efeito não releva a sua

afetação ao comércio, à pesca, a recreio ou à investigação científica. Mas

serão de considerar como navios quaisquer engenhos flutuantes? É de

admitir que a CB 1952 incluirá na sua previsão «sailing ships or craft not

self-propelled». Existe uma irrecusável anfibiologia no concreto. O critério

da auto-propulsão tem na jurisprudência italiana uma grande

preponderância. O problema já se pôs em Portugal, a doutrina. E os hóteis

flutuantes? E as dragas? Para o Supremo Tribunal da Irlanda, em 22/1/1998

a draga é um navio, não só quando navegar, mas quando estiver fixa, no

local da sua atividade, não sendo necessária a autopropulsão ou mesmo a

existência de leme ou de outro mecanismo direcional. E no mesmo sentido

veio a julgar o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América em

22/2/2006. Mas o Tribunal de Marselha em 19/7/206 foi de opinião diversa.

Poderá um navio cm graves avarias ou mesmo quase afundado ser

considerado como tal para efeitos de arresto? Berlingieri entende que sim:

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«The physical condictions os the ship do not affect the

application of the Convention. Therefore the Convention applies

to ships which are not capable of sailing because they are

stranded, sunken or damage beyond repair».

De parecer substancialmente diverso foi a Corte di Cassazione em 5/4/2005.

Para ela um navio com graves avarias não corresponde já aos requisitos que

permitem o transporte. Para nós parece evidente que, para efeitos de

arresto, o que releva é que o navio tenha possibilidade de recuperação,

sendo restituível à sua condição de elemento válido e operante do

património respondente. É mais uma questão de grau, não sendo um

postulado a encarar acriticamente, como tese geral.

6. O arresto dos navios aparentados e as single-ship companies: comoo

regra pode ser arrestado o navio ao qual o crédito se refere («offending ship»)

ou qualquer outro navio que na data da constituição do crédito marítimo do

proprietário daquele navio. É o que dispõe o artigo 3.º, n.º1 CB 1952.

Completando este quadro normativo dispõe o n.º2 do artigo 3.º que «reputar-

se-á terem o mesmo proprietário os navios cujas quotas-partes pertençam

em propriedade à mesma ou mesmas pessoas». Pensou-se inicialmente que,

desde que o capital de duas sociedades single-ship pertencesse

inteiramente à mesma pessoa ou entidade, ficaria preenchida a previsão

daquele n.º2 do artigo 3.º. Entretanto, logo em 1994 Jean-Serge Rohart deu

como certo que o preceito «vise les parts de propriété du navire e non les

parts des sociétés propriétaires de navires». Só que a realidade é por vezes

mais complexa do que a norma. Tem-se desenvolvido uma estratégia de

dispersão dos grandes patrimónios de mar, repartindo-os por «single-ship

companies» (Sociedades de um único navio). Por esta via cada single-ship,

tendo património diverso da empresa-mãe, com ela não se poderia confundir.

E sobre ela recairia a responsabilidade pelos danos pelos quais, sem essa

figuração, responderia a empresa-mãe. Preocupou-se a jurisprudência,

sobretudo em França, em desmontar os conglomerados de single-ships

companies, interligados por uma gestão comum (a nível superior), pelas

mesmas instalações ou por sistemas de organização globais. A existência

de uma comunidade de interesses deu causa ao que foi chamado de teoria

da aparência. Exemplo clássico desta foi o arresto do navio Brave Mother

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pertencente a uma sociedade formalmente diversa de uma outra, à qual

pertencia o navio Brave Thémis. A Cour d’Appel de Rennes, em 21/6/1989

considerou que aos dois navios era aplicável o regime do artigo 3.º CB 1952.

No caso, a aparência de uma comunhão de interesses advinha:

«da semelhança do nome dos navios: Brave Mother e Brave

Thémis; da circunstância de as sociedades de as sociedades

terem administradores comuns, a maior parte deles pertencendo

à família de Andreas Petrakis, ele mesmo presidente das duas

sociedades;

«de ambas as sociedades terem a mesma sede e um mesmo

código telefónico».

Será, pois, de apontar – refere Tassinari – para uma interpretação literal do

artigo 3.º, n.º4. E não é exato – como pretende Fancesco Berlingieri – que do

artigo 9.º CB 1952 implicitamente resulte que o crédito reclamado deva ser

um crédito privilegiado. O pressuposto de que parte Berlingieri é o de que

«la Convenzione é stata prediposta di sequestro di navi». Foi também

sempre essa a ideia de Pierre Bonassies: a Convenção deverá ser lida em

termos de «mieux proteger la liberte de la navigation maritime» - o que

aponta para a redução dos interesses dos credores marítimos. Ou seja, só

os que tiverem créditos privilegiados poderão aceder ao direito de requerer

o arresto dos navios fretados (artigo 3.º, n.º4 CB 1952). Mas não é assim. E,

pelo contrário, capta-se no teor geral da Convenção um bem marcado favor

arresti. Ou, como diz Ignacio Arroyo:

«Entiendo que el Convenio deve perseguir la protección del

comercio marítimo. Y el comercio se potencia dando protección

al crédito. Y el embargo del buque es la mejor garantía – y en

ocasiones la única viable – de esa protección. Por isso el Covenio

instaura una instituición marítima, el llamado embargo del buque,

que opera (…), de forma sencilla y con gran efectividad».

Aliás, o regime geral da CB 1952 atribui já aos créditos marítimos constantes

da lista fechada do artigo 1.º, n.º1, um regime de exceção relativamente a

outros créditos que poderiam ser tidos como de natureza marítima. Realmente

– revele-se a insistência – bastará, quanto a tais créditos marítimos, a sua

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alegação, ao invés do que acontece com todos os demais créditos. Mas a

evidente fragilidade da teoria da aparência e da verificação da comunidade

de interesses que lhe era subjacente levou a Cour de Cassation a alterar o

critério sobre o entendimento até então dado ao artigo 3.º, n.º2 CB 1952. A

razão decisiva considerada desde então foi a de a sociedade criada com o

propósito de subtrair a empresa-mãe a responsabilidade que de outro modo

lhe seria exigível ser considerada uma sociedade fictícia, «une une société de

façade».

7. O arresto de navio fretado: se o devedor do crédito marítimo for o

proprietário do navio que se pretende arrestar poderão surgir questões de

conceção da CB 1952 mas poucos e não dificilmente enfrentáveis serão os

problemas de exegese. Mais complexo será o entendimento a dar à CB 1952

quando o navio que se pretende seja objeto de arresto não pertencer ao

devedor do crédito marítimo. Estará aí o punctum dolens do sistema da CB

1952. Pensa Berlingieri que o arresto fica desprovido de eficácia se o crédito

não puder ser feito valer sobre o navio, mediante a sua venda judicial.

Acontece, no entanto, que a CB 1952 «não se ocupa minimamente dos

problemas ligados à execução forçada do navio» e, bem ao contrário, toma

«in specifica considerazione il tema del rilascio di garazie per la sua

liberazione». As duas áreas de indagação situam-se em planos

completamente diversos. O arresto previsto na CB 1952 implica uma mera

imobilização do navio, «del tutto svincolata della fase executiva». Está em

causa, na perspetiva de Sergio La China, um conceito totalmente novo de

tutela cautelar, autossuficiente e com tendência a bastar-se a si mesmo.

Certo é que a redação da CB 1952 nem sempre se mostra clara e facilmente

apreensível. Com efeito, e por exemplo, dispõe no artigo 3.º, n.º4, §1.º que

«no caso de fretamento de navio, com transferência de gestão

náutica, quando só o afretador responder por um crédito

marítimo relativo a esse navio, o autor poderá arrestar o mesmo

navio ou outro pertencente ao afretador, com observância das

disposições da presente Convenção, mas nenhum outro navio

pertencente ao proprietário poderá ser arrestado por tal crédito

marítimo».

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No preceito está previsto um fretamento em casco nu. Corresponde este à

charter by demise e ao bareboat charter dos anglo-saxónicos. Por regra, no

1.º caso o capitão e parte da tripulação são fornecidos pelo armador-

proprietário; no 2.º caso o navio é entregue sem qualquer tripulação.

Ocorrem, como é óbvio, inúmeras variantes, dentro da liberdade contratual

que as partes têm. Entretanto, e de qualquer modo, esta formulação cria

um distinguo relativamente à do §2.º desse artigo 3.º, n.º4. Neste, alarga-

se a previsão legal a «todos os casos em que pessoa diversa do proprietário

é devedora de um crédito marítimo». O entendimento largamente dominante

é o de que a hipótese que cabe neste §2.º é a do fretamento a tempo ou,

talvez, a do fretamento por viagem. Obviamente que, a ser assim neste §2.º,

também caberia a hipótese formalizada no §1.º.

8. O artigo 9.º CB 1952 e os statutory rights: disse Patrick Simon ao refletir

sobre a vantagem que haveria em encontrar entendimentos próximos dos

grandes textos internacionais de Direito Marítimo, que «je pense en

particulier au fameux article 3 de la Convention de 1952 sur la saisie des

navires: ce texte donne lieu d’un pays à un autre de très nombreaux et

divergente interprétations». Ora, precisamente quanto ao artigo 3.º, n.º2 CB

1952, não é exato que do artigo 9.º se possam extrair as inferências que para

Berlingieri dele despontam – e que implicam a necessidade de um crédito

privilegiado. Desde logo, o artigo 3.º, n.º4 não cria, por si só, um direito de

ação («right of action») que, «fora das suas estipulações, não existiria». Ao

arresto só excecionalmente se segue no tempo uma execução. Dele apenas

advêm a imobilização do navio e o reforço da garantia que ele já

representava. Não se cria uma nova garantia: consolida-se a existente. O

arresto é, sobretudo, um meio de pressão. E porque paralisa «une

exploitation três conteuse, la manque à gangner qui en resulte est efficace».

Entre o arresto e a execução intercalar-se-á a apreciação jurisdicional do

mérito da causa, da qual decorrerá um título exequível. E dá-se o mesmo o

caso de o arresto caducar se o seu requerente não propuser a ação principal

dentro do prazo estabelecido pelo Juiz que o decretou (artigo 7.º, n.º2, 3 e 4

CB 1952). E o tribunal competente para a causa principal nem será

necessariamente o do arresto. Certo é que sobre o navio arrestado pode, no

desenvolver do iter processual, ser ulteriormente requerida uma execução.

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Mas esta só cinematicamente tem a ver com o arresto, com ele não tendo

qualquer relação causal. A execução pode recair sobre quaisquer bens do

dono do navio, esteja (ou tenha sido) ou não arrestado. O título em que

fundará a execução não será o arresto, mas qualquer dos que a lei geral

estabelece. A venda judicial, que eventualmente possa ocorrer na fase

própria da execução, nada tem a ver com o arresto, tal como está

configurado na CB 1952. É de insistir na síntese de Belén Mora Capitán:

«Uma das particularidades da CB 1952 que, precisamente, dota

o arresto («embargo preventivo») de uma grande eficácia prática

é a sua desvinculação face a uma eventual e futura execução. É

por isso que a Convenção não exige que o devedor seja

simultaneamente proprietário do navio ou que o crédito seja

privilegiado para poder arrestar o navio que deu origem ao

crédito que se reclama. Isto permite arrestar um navio quando o

devedor é o afretador do navio e o crédito não é privilegiado».

9. Ainda os statutory rights of action: no Direito Inglês (e, mais

genericamente, em common law) é o arresto tido como uma actio in rem.

Mas como a uma actio in rem estará associado um maritime lien,,

multiplicaram-se com isto os créditos privilegiados – o que para além de

desvirtuar o conceito de maritime lien, implicaria a ampliação desmesurada

de cargas ocultas sobre el buque. Daí o surgimento dos statutory rights in

rem, que viabilizarão um arresto (tido como uma actio in rem) sem que o

credor disponha de um crédito privilegiado. Enquanto que o maritime lien

tem caráter substantivo, sendo anterior à actio in rem, o statutory right

constitui uma medida meramente processual, que apenas surge quando se

requer o arresto – e por este ser uma actio in rem. Aconteceu precisamente

que os statutory rights in rem surgiram no Direito Inglês a propósito do

arresto de navio, entendido este como uma actio in rem.

«English Law, in giving to the 1952 Arrest Convention as enacted,

created other liens called statutory liens».

Aos true maritime liens sucederam no referente ao arresto os lesser rights

in rem,

«apply to all other categories of claim in connection with a ship».

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Não integram o estatuto do crédito como os true liens: conferem direitos de

mera garantia processual, sem natureza substantiva. É de concluir que a

invocabilidade da natureza, meramente processual, dos statutory rights não

afronta, e antes se ajusta, ao §2.º do artigo 9.º CB 1952. É de concluir, assim,

que todos os maritime claims, ou seja os créditos marítimos exaustivamente

elencados no artigo 1.º, n.º1 CB 1952 são statutory rights na britânica aceção.

Gozam, com efeito, de um estatuto de privilégio em relação a todos os

demais créditos a que o navio pode dar causa. E dá-se mesmo a

circunstância de alguns créditos privilegiado nos termos gerais da lei interna,

como os prémios de seguros, não fazerem parte dessa lista do artigo 1.º,

n.º1 CB 1952, não sendo, pois, na perspetiva desta, maritime claims.

10. O mistério do artigo 9.º, n.º2 CB 1952: e se o offending ship – i.e., o navio

ao qual se refere o crédito marítimo – for transmitido a um terceiro,

designadamente por um contrato de compra e venda? O afretador já não

será nesse caso assimilado ao proprietário e o crédito reclamado já não

resultará da exploração do navio atual. O “direito” ao arresto não se fundará

então (diretamente) na CB 1952 mas na lei interna sobre privilégios

marítimos ou na Convenção Internacional que os regula (a de 1926, já que

Portugal não ratificou a de 1993). Será então de invocar com total

pertinência a hipótese prevista no artigo 9.º, n.º2 CB 1952. O direito de

sequela que será exercido é o que a Convenção de 1926 consagra e para o

qual aponta o aludido artigo 9.º, n.º2 CB 1952. Dispõe, realmente, o artigo

8.º Convenção de 1926 «que os créditos privilegiados acompanham o navio,

seja qual for o seu possuidor». E acrescenta o artigo 13.º que «as disposições

precedentes são aplicáveis aos navios explorados por um armador não

proprietário ou por um fretador (afretador?) principal».

11. Mareva Injunction: o alter ego do arresto de navios… O sistema britânico

só com dificuldade se acomodou à CB 1952. Daí ter surgido em 1975 um

novo instituto em parte dele substantivo, invented by Lord Denning, na

Câmara dos Lordes. Trata-se de uma medida cautelar in personam, dirigida

à imobilização do navio, através de uma ordem dada pelo Juiz proibindo a

sua deslocação para outro local. E, pois, um mandado de imobilização, cuja

inobservância será tida como contempt of Court. Distingue-se, entretanto,

do arresto da CB 1952, porque quem a requerer terá que demonstrar que

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possui um good arguable case e que existe periculum in mora. Mas também

não é uma actio in rem. A Mareva injunction não visa apreender o navio

(quando ele é o bem de que se trata). Destina-se a evitar que seja

desrespeitada a imposta imobilização. Por isso mesmo é uma medida in

personam destinada a imobilizar uma coisa e não a apreendê-la… que tem

provado bem. Dizia já Christopher Hill diz anos depois da invenção da

Mareva Injunction:

«Now that the 1985 stance is effective in the United Kingdom

Lord Denning seems to have been proved correct (not for the first

time!)».

Passou a fazer parte da rotina dos tribunais marítimos

12. Lei interna: quando e como se aplica: no Direito Português dizem respeito

ao arresto de navios de mar disposições contida no Código Civil, no Código

de Processo Civil, na Lei dos Tribunais Marítimos63 e no Decreto-Lei n.º

201/98, 10 julho, relativo ao Estatuto Legal do Navio. Acontece ainda que no

Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro, respeitante à tripulação do navio e

acontecimentos de mar, o arresto surge incluído entre os acontecimentos

de mar (artigo 13.º, n.º2). Por aplicação do artigo 491.º CCom (1888) o navio

despachado para viagem não poderia ser arrestado ou penhorado, a não ser

por dívida contraída para o aprovisionamento dessa mesma viagem ou para

caução de responsabilidade por abalroação. A assimilação do arresto do

navio ao arresto da carga é, como se viu, uma tradição do nosso Direito.

Adriano Anthero ainda tentou separar as águas, assinalando que o §único

do artigo 491.º CCom se regeria «não ao arresto ou penhora por dívidas do

navio e sobre ele, mas sim ao arresto por dívidas de qualquer carregador

feito sobre os géneros que carregou. Só que a prudência de tão distantes

anos foi cedendo o passo a alguma contemporânea ligeireza. E é assim que

agora nos deparamos com o n.º2 do artigo 9.º Decreto-Lei n.º 201/98 e com

o mais avisado n.º1 do artigo 746.º, n.º1 CPC, aplicável ex vi do artigo 394.º,

conjugado com o artigo 391.º, n.º2, também do CPC. Curiosa e

significativamente no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 201/98 qualificam-se as

63 E, por decorrência, na Lei de Organização do Sistema Judiciário.

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normas do Código Comercial de 1888 de antiquadas. E comenta-se, com

pleno à vontade:

«Consagra-se o princípio de que o arresto e a penhora do navio

e mercadorias podem ser efetuados mesmo que o navio já se

encontre despachado para viagem, perfilhando-se assim a

solução da Convenção [de 1952]»

Ora, como é notório, a Convenção de 1952 nem de longe nem de perto fala

do arresto da carga. A menção feita naquele preâmbulo é, pois,

completamente errada. Foi, no entanto, o referencial que pautou a feitura

do Decreto-Lei .º 291/98. Obviamente que será possível arrestar (ou

penhorar) mercadorias carregadas num navio se o proprietário delas for

devedor do requerente do arresto. Só que ao arresto de mercadorias

carregadas num navio não se aplica, quer na lei internacional, quer nas

modernas leis internas (estrangeiras), o regime do arresto de navios. Não

existe qualquer unidade pertinencial ou de regime entre o navio e a carga

nele transportada com base num contrato de transporte celebrado com o

armador. Obviamente, terá que haver uma fórmula processual que evite a

imobilização do navio no qual é transportada a carga que, pelos meios

comuns, seja arrestada. Nos termos da lei francesa, o capitão do navio

poderá então fazer descarregar e consignar a mercadoria. Nesse plano é de

figurar uma solução próxima da constante no artigo 746.º CPC, que sob a

epígrafe «penhora de mercadorias carregadas em navio» contém já um

princípio de solução para a descarga em que ela se pode operar. Era já a

ideia, agora melhorada, contida no §único do artigo 491.º CCom. Por

completo inconfigurável será a modelação (e o espírito) do artigo 394.º CPC,

que integralmente parifica o arresto do navio e o arresto da carga. E o

mesmo será de dizer do artigo 9.º Decreto-Lei n.º 201/98, com a ampliada

agravante de o diploma ser intencionalizado a desfazer as dúvidas que sobre

o instituto existiriam. E, se não, repare-se no que nele se define e esclarece

(artigo 9.º):

«1. O navio pode ser arrestado ou penhorado mesmo que se

encontre despachado para viagem.

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«2. O disposto no número anterior é aplicável aos géneros ou

mercadorias carregadas em navio que se achar nas

circunstâncias previstas no número anterior».

…E é tudo. Esquece-se que, como regra com raras exceções, a mercadoria

transportada não é do transportador, que tem a obrigação de a entregar no

destinatário. A detenção da mercadoria pelo transportador é uma detenção

a título precário e em nome e interesse alheios. O arresto de um navio nada

tem a ver, no essencial, com o arresto a carga. A única conexão figurável

será meramente instrumental. Ou seja, estará em causa o modo de

compatibilizar a atividade do navio com o arresto da carga. Ao invés do que

aconteceria se o arresto fosse decretado com aplicação da CB 1952 dispõe

a lei portuguesa (CPC) que o credor terá que justificar o periculum in mora,

ou seja, o «justificado receio de perder a garanti patrimonial» (391.º, n.º1

CPC). E o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são

aplicáveis as disposições relativas à penhora (artigo 391.º, n.º2 CPC). Deve

o requerente do arresto aduzir factos que tornem provável a existência do

crédito e justifiquem o receio invocado (artigo 392.º, n.º1 CPC). Terá ainda

o requerente que demonstrar que a penhora é admissível (artigo 394.º, n.º1

CPC). A apreensão do navio não se realizará se o devedor oferecer desde

logo caução que o credor aceite ou que o Juiz (dentro de dois dias) julgar

idónea, ficando sustada a saída do navio até à prestação da caução (artigo

394.º, n.º2 CPC). Entretanto, com a remissão feita nesse artigo 394.º CPC

para o regime da penhora e, nesta, com o protagonismo atribuído ao agente

de execução potenciado pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, 20 de novembro, é

de supor que o regime da nossa lei interna se afastou marcadamente da

saisie-conservatoire regulada na CB 1942, aproximando-se da saisie-

exécution. Ora, por ser assim, parece difícil coordenar o sistema da

Convenção com as nossas regras processuais, como dispõe o seu artigo 6.º.

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A Transferência do Risco na Venda

Marítima64

Capítulo I – Noções e considerações fundamentais

Noções:

1. Venda marítima (noção e natureza jurídica): venda marítima é um

complexo de situações jurídicas que se caracteriza, essencialmente, pelo

cruzamento entre um contrato de compra e venda e um contrato de

transporte de mercadorias por mar, surgindo, normalmente, no seu seio,

também, um contrato de seguro das coisas vendidas e uma abertura de

crédito documentário65. Quando o objeto mediato de compra e venda – a

coisa vendida – é, também, objeto mediato de um contrato de transporte

de mercadorias por mar, havendo ligação funcional entre os dois contratos,

estamos perante uma venda marítima. Também no conceito de venda

marítima se deve incluir o complexo de situações jurídicas, no âmbito do

qual se cruze o contrato de compra e venda com o contrato de fretamento66,

pressupondo, claro está, a referida ligação entre os dois. A venda marítima

designa, portanto, não só a venda em que se recorra a um contrato de

transporte de coisas por mar para as levar à posse do comprador mas

64 Marques, André Sousa; A Transferência do Risco nas Vendas Marítimas – o risco nos contratos de alienação (páginas 171 a 198). 65 O crédito documentário é uma operação que tem como fim o pagamento do preço em contratos de compra e venda á distância, máxime, internacionais. No termos da cláusula de crédito documentário, ínsita no contrato de compra e venda, o comprador obriga-se a dar ordem de abertura de crédito num banco determinado pelas partes, o qual irá pagar o preço da venda, contra a entrega de determinados documentos por parte do vendedor. Assim, vendedor celebrará um contrato de abertura de crédito, com o banco designado, nos termos do qual este ficará obrigado, perante o comprador, a apagar preço do vendedor contra a entrega de determinados documentos por parte deste último. 66 Assim é porque o transporte de mercadorias em sentido amplo – que não exclusivamente relacionado com o contrato de transporte de mercadorias – tanto pode ser feito ao abrigo de conhecimento de carga (artigo 8.º Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, e artigo 1.º, alínea b) e 3.º, n.º3 CB 1924, relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimentos de carga), como ao abrigo de uma carta-partida (artigo 6.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril). O contrato de fretamento está definido no artigo 1.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril, diploma que o regula.

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também aquela em que se recorra a um contrato de fretamento para esse

mesmo efeito. Analisaremos, contudo, a venda marítima à luz do contrato

de transporte de mercadorias por mar, sem prejuízo de as conclusões a que

chegarmos poderem ser aplicadas, com eventuais adaptações, à venda

marítima consubstanciada por uma compra e venda e um contrato de

fretamento. Para que de venda marítima se possa falar, não basta que a

coisa vendida seja, também, objeto de um transporte marítimo. É, ainda,

necessário que exista uma relação funcional entre a compra e venda e o

transporte de mercadorias, ou seja, que os contratos se encontrem unidos

funcionalmente para um mesmo fim. Terá, na prática, de se verificar um

transporte de coisas por mar ao serviço de um contrato de compra e venda.

A denominação venda marítima surge na doutrina por causa da incidência –

talvez mais circunstancial do que jurídica, como tentaremos demonstrar –

que o transporte marítimo tem no contrato de compra e venda. Foi essa,

portanto, a razão que esteve na base da consubstanciação, por parte da

doutrina, do transporte marítimo e da compra e venda. De facto, a relação

funcional entre os dois contratos e a referida interferência jurídica de um no

outro aconselham um tratamento unitário, que possibilitará, em termos

juscientíficos, uma visão mais abrangente, mais consciente de toda a

problemática em jogo. Por outras palavras, a análise conjunta dos dois

contratos potencia resultados científicos que excedem a mera soma das

análises separadas. Não existe, contudo, um contrato legalmente típico –

nem sequer nominado – denominado de venda marítima. Apesar de em

termos doutrinários ela ser considerada, a verdade é que a lei não a consagra

como um contrato típico. Será, ainda assim, correto considerar a venda

marítima um contrato – ou socialmente típico, ou atípico legal e socialmente,

mas contrato? Não. A operação global venda marítima não é um só contrato.

De facto, quer a compra e venda, quer o contrato de transporte de coisas

por mar – quer ainda o fretamento, se for esse o caso – mantêm a sua

autonomia. Reza o n.º2 do artigo 405.º CC que as partes podem reunir no

mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente

regulados na lei. Quando isso acontece, estamos perante a figura doo

contrato misto. O contrato misto será, por definição, um contrato atípico –

pelo menos legalmente, podendo a reiterada prática desse contrato levar a

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que se torne socialmente típico –, fazendo fronteira com a união de contratos.

Na união de contratos há uma interconexão entre dois ou mais tipos

contratuais, sem qualquer prejuízo da individualidade de cada um, enquanto

no contrato misto, as cláusulas dos vários contratos misturam-se para

originar um único contrato. Assim, o ponto decisivo que conduz à rejeição

ou aceitação da venda marítima como um só contrato reside, precisamente,

na intensidade da ligação entre os dois contratos, que nela se

consubstanciam: se essa ligação for tal, que se prejudique a individualidade

de cada um, será a venda marítima um contrato (misto); se, apesar da ligação,

os contratos mantiverem a sua autonomia, teremos, em princípio, uma mera

união de contratos. Mas qual a pedra de toque, que nos permita aferir da

existência de um contrato misto ou, ao invés, de uma união de contratos? A

questão não se apresenta fácil. De facto, como refere Pedro Pais de

Vasconcelos,

«saber onde se encontra a autonomia suficiente para que haja uma

união de contratos e não um contrato misto (…) é algo que a

doutrina tradicional mal consegue expor e dificilmente consegue

pôr em prática».

A existência de três sujeitos distintos, no âmbito da venda marítima, é um

argumento para a não consideração da mesma como um contrato misto,

mas apenas como uma união de contratos, pois, apesar de haver uma

interconexão entre a compra e venda e o contrato de transporte, existem,

estruturalmente, duas relações jurídicas bem distintas: uma entre o

comprador e o vendedor; outra entre o transportador, por um lado, e o

vendedor ou o comprador, por outro. A existência de três sujeitos distintos,

no âmbito da venda marítima, é um argumento para a não consideração da

mesma como um contrato misto, mas apenas como uma união de contratos,

pois, apesar de haver uma interconexão entre a compra e venda e o contrato

de transporte, existem, estruturalmente, duas relações jurídicas bem distintas:

uma entre o comprador e o vendedor; outra entre o transportador, por um

lado, e o vendedor ou o comprador, por outro. Consideramos, assim, que na

compra e venda marítima a ligação dos contratos não prejudica a sua

individualidade. Apesar de haver uma relação global, uma dependência entre

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os contratos – que existe sempre na união interna de contratos –, a união

não é tal, ao ponto de os contratos unidos perderem a sua autonomia. Resta-

nos, então, confirmar se a venda marítima é uma união de contratos. Que

há interconexão entre eles, não há dúvidas. Mas será que é interconexão

bastante para que se fale de união de contratos? A doutrina costuma

exemplificar a união de contratos com situações em que os dois ou mais

contratos unidos são celebrados pelas mesmas partes. Mas, na venda

marítima, temos três sujeitos distintos. Isso seria, à partida, por si só, um

óbice à consideração da venda marítima como uma união de contratos.

Contudo, consideramos as vendas marítimas em que incumba ao vendedor

celebrar o contrato de transporte de mercadorias por mar, como uma união

de contratos com dependência interna, na medida em que resulta, ainda que

implicitamente, do contrato de compra e venda que o comprador só o

celebra se o vendedor, por sua vez, celebrar um contrato de transporte de

mercadorias por mar ou um contrato de fretamento. As coisas são diferentes

se o vendedor não estiver obrigado a celebrar o contrato de transporte, mas

apenas a entregar os bens vendidos ao transportador. Neste caso, não existe

sequer uma união de contratos, pelo menos com dependência, na medida

em que o comprador celebra a compra e venda sem subordinar esse

contrato à celebração, por parte do vendedor, do contrato de transporte de

mercadorias, pois é ele próprio, comprador, que o vai celebrar. Concluímos,

portanto, que só na venda marítima em que o vendedor se obrigue a

celebrar o contrato de transporte teremos uma verdadeira união de

contratos com dependência. Na venda marítima em que não haja essa

obrigação por parte do vendedor – mas apenas a de entregar a mercadoria

ao transportador marítimo – existe, sem dúvida, uma união funcional entre

os dois contratos, mas não no sentido técnico-jurídico de união interna de

contratos. Apesar de apenas se verificar uma verdadeira união interna de

contratos na venda marítima em que exista a obrigação por parte do

vendedor de celebrar o contrato de transporte das coisas por mar, isso não

significa, porém, que nos casos em que tal obrigação inexista não estejamos,

também, perante uma venda marítima. A nomenclatura continua a justificar-

se mesmo nesses casos, pois, neles, não deixa de existir uma união funcional

– que não necessariamente jurídica – entre os dois contratos. Sendo algumas

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vendas marítimas uma união interna de contratos, resta saber se as mesmas

consubstanciam uma união interna com dependência unilateral ou bilateral.

A dependência é unilateral quando apenas um dos contratos depende do

outro, e bilateral quando cada um depende do outro. Ora, neste caso, a

união interna é bilateral: o comprador compra, desde que o vendedor

celebre um contrato de transporte; inversamente, o contrato de transporte

só é celebrado se a mercadoria for adquirida.

a. Risco:

i. O risco real (risco estático inerente à titularidade de um

direito real): em termos simples, podemos afirmar que o risco

consiste na suscetibilidade, a potencialidade de ocorrência de

danos numa esfera jurídica. Ora, assim, será importante

definirmos, primeiro, o conceito de dano, que está implícito

na noção de risco. Seguimos, quanto à noção de dano, a

definição de Menezes Cordeiro, para quem «em Direito, o

dano [se traduz] na supressão ou diminuição duma situação

favorável que estava protegida pelo ordenamento». De facto,

o dano pressupõe que haja algo para danificar: uma situação

favorável. A noção de situação favorável, apesar de não ter

rigorosamente significado técnico-jurídica, tem a vantagem de

abranger direitos, interesses legalmente protegidos e toda a

situação vantajosa, independentemente de qualquer discussão

doutrinária sobre a arrumação dogmática dessa situação

vantajosa. Porém, tem de ser uma situação favorável que

esteja protegida pelo Direito: é o Direito que contém em si a

previsão das possíveis situações favoráveis. Sendo essa

situação favorável que o Direito confere às pessoas suprimida

ou diminuída, verifica-se, então, o dano. Circunscrevemos o

conceito de dano apenas às pessoas, pois só a elas o Direito

atribui situações favoráveis, cuja supressão ou diminuição se

consubstancia num dano. Só as pessoas sofrem, portanto,

danos – no sentido jurídico – e não as coisas. Assim, por

questões de rigor terminológico, entendemos dever ser

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reservada a expressão dano para as pessoas, rejeitando a

locução – comumente usada pela doutrina - «danos sofridos

pelas mercadorias. Usaremos, portanto, a expressão avaria ou

deterioração das mercadorias para nos referirmos a esses. Não

é sem outras consequências terminológicas que fazemos esta

precisão. É que, desta forma, incluímos a perda da mercadoria

no conceito de dano. Uma perda não deixa de ser um dano,

nos termos em que o definimos. Não será, portanto, correta a

usual expressão «perdas e danos», porque uma perda é um

dano. A perda de uma coisa é a supressão de uma vantagem,

de uma situação favorável detida pelo proprietário dessa coisa,

pelo usufrutuário, etc. Assim, em vez de perdas e danos,

parece-nos mais pertinente perdas e avarias, reservando o

conceito de dano para o ser humano. Deste modo, quer as

avarias quer as perdas das mercadorias consubstanciam danos

sofridos por uma ou mais pessoas. Definido o dano,

desenvolvamos agora o conceito de risco-estático. É uma

evidência que o titular de um direito real corre o risco de ver,

a todo o tempo, afetada a sua posição, por força da avaria ou

perda da coisa sobre a qual incide o seu direito. A este risco

chamaremos o risco inerente à titularidade de um direito real

ou risco-estático67. A titularidade deste risco-estático na esfera

do detentor do direito real é algo que resulta da própria

natureza das coisas – evidência expressa pelos romanos

através do brocardo res suo domino perit – e é refletido, por

exemplo, no artigo 796.º, n.º1 CC, que de modo salomónico –

embora eventualmente criticável – refere que

«nos contratos que importem a transferência do

domínio sobre certa coisa ou que constituam ou

transfiram um direito real sobre ela, o perecimento

67 Usaremos as expressões risco-estático, risco inerente à titularidade de um direito real ou risco da coisa como sinónimas.

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ou deterioração da coisa por causa não imputável

ao alienante corre por conta do adquirente»

Não é, contudo, o risco inerente à titularidade de um direito

real, aquele que constitui o objeto do nosso estudo. O risco

inerente à titularidade de um direito real, aquele que constitui

o objeto do nosso estudo. O risco, nesta aceção, acompanha

a titularidade do direito real e, consequentemente, o

momento em que ocorre a transferência desse direito. Ora,

nem sempre é a descoberta do momento em que se dá a

transferência desse risco-estático que nos permitirá responder

à questão essencial que coloca o nosso estudo, a saber:

destruídas ou perdidas ou perdidas as coisas objeto da venda

marítima, permanece ou extingue-se o direito de crédito ao

preço? É que pode já ter havido transferência da propriedade

e, consequentemente, do risco-estático, mas não se ter

transferido ainda para o comprador o chamado risco do preço,

isto é, o risco de pagar o preço, mau grado a impossibilidade,

não imputável ao vendedor, de cumprimento da obrigação de

entrega da coisa por parte do mesmo. A pedra de toque da

transferência do risco na venda marítima encontra-se,

portanto, no risco do preço e não no risco-estático. Este

encontra-se fora da órbita contratual, sendo que no presente

estudo o que nos interessa é o risco inserido na dinâmica

obrigacional. Pode, porém, acontecer que a transferência do

risco-estático seja concomitante com a transferência do risco

do preço. Pode até ser aquela a dar origem a esta; por esta

razão, o risco-estático assumirá também importância no

presente estudo. Contudo, é sempre o risco do preço que

imediatamente nos responde à questão acima colocada, ainda

que, mediatamente, o risco-estático nos possa, também, dar

essa resposta.

ii. O risco obrigacional:

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1. O risco da prestação: definido o risco-estático,

passemos agora à definição do risco da prestação

(Leistungsgefahr). O risco, nesta aceção, diz respeito à

impossibilidade da prestação. Está em causa a seguinte

averiguação: a que sujeito da relação obrigacional o

ordenamento jurídico atribui a perda patrimonial

ocorrida em virtude da verificação do evento gerador

da impossibilidade da prestação? A resposta afigura-

se-nos simples. Tal como o titular de um direito real

corre, a todo o tempo, o risco de ver esse direito

perturbado, nos termos já expostos, outro tanto sucede

com o titular de um direito de crédito:

«O credor corre o risco de ver, a qualquer

tempo, impossibilita-se, total ou

parcialmente, o comportamento humano

que constitui o objeto do seu direito».

Na verdade, e como refere Nuno Aureliano,

«em face da exoneração do devedor

determinada pelo n.º1 do artigo 790.º, a

doutrina é unânime na atribuição do risco

da prestação ao credor, que suporta, assim,

o sacrifício patrimonial associado à sua

não realização».

Tendo o contrato por objeto uma coisa corpórea, o

brocardo, res perit domino dará lugar ao axioma

jurídico res perit creditor. Tal como vimos a propósito

do risco-estático, também não é no risco da prestação

que reside a pedra de toque da transferência do risco

na venda marítima. Na verdade, o risco da prestação,

mais uma vez de acordo com a natureza das coisas,

está sempre do lado do credor, e isto mesmo que o

devedor tenha provocado culposamente a

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

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impossibilidade da sua prestação. O que acontece,

neste caso, é que o devedor incorrerá nos esquemas

próprios da responsabilidade civil e risco são coisas

distintas. Assim, na nossa opinião, não é também no

risco da prestação que se encontra a resposta à

questão de saber o que acontece ao peço depois de

perdidas ou deterioradas as coisas objeto de uma

venda marítima. E por isso que entendemos que ao

instituto da transferência do risco nas obrigações,

interessa exclusivamente o risco da contraprestação ou

do preço.

2. O risco da contraprestação (do preço): centremo-nos

agora no risco da contraprestação, aquele que

verdadeiramente interessa na temática da transferência

do risco obrigacional e, portanto, no presente estudo.

Falar em risco da contraprestação pressupõe, desde

logo, que a prestação se tornou impossível, por causa

não imputável ao devedor. Em causa está o destino da

contraprestação face à impossibilidade não culposa de

realização da prestação. Isto porque o devedor da

prestação impossibilitada – sem culpa sua – é, por sua

vez, credor de uma prestação ainda possível (a

contraprestação). Deter o risco da contraprestação

significa ter o dever de realizar a contraprestação – de

pagar o preço, por exemplo –, apesar de não ser

recebida a prestação ou de ser recebida

defeituosamente. O artigo 795.º é uma disposição

fundamental para o enquadramento do risco da

contraprestação no Direito português. O artigo 795.º é

uma disposição fundamental para o enquadramento do

risco da contraprestação no Direito Português. Dispõe

o seu n.º1 que a impossibilidade de uma das prestações

num contrato sinalagmático tem como consequência

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que o credor fique desobrigado da sua prestação – ou

seja, da contraprestação –, e, ainda, que, se já a houver

realizado, tenha o direito de exigir a sua restituição nos

termos prescritos para o enriquecimento sem causa. O

artigo 795.º é, pois, uma regra de bom senso: um

reflexo do princípio da interdependência das

obrigações sinalagmáticas, visando evitar que o

devedor chegue de mãos vazias ao credor, exigindo-

lhe a prestação. O artigo 795.º acolhe, pois, a propósito

do risco da contraprestação, a máxima res perit debitori:

a perda patrimonial associada à contraprestação é

suportada, por regra, pelo devedor da prestação

(portanto, credor da contraprestação). Conforme já

referimos, é o risco nesta aceção que está em causa

quando se fala na transferência do risco nas obrigações.

Contudo, como também dissemos acima, a averiguação

do momento em que ele se transfere pode estar

dependente da transferência do risco-estático. Por isso,

também o risco-estático tem interesse no âmbito do

nosso estudo, mas apenas na exata medida da

influência decisiva que exerce sobre o momento da

transferência do risco da contraprestação.

3. O risco-evento e o risco-situação jurídica: por

transferência do risco, no âmbito do presente estudo,

entende-se, muito simplesmente, a passagem do risco-

situação-jurídica (do preço) de uma esfera para a outra.

O momento em que essa passagem ocorre é,

precisamente, o momento da transferência do risco. No

sentido de risco que aqui mais nos interessa – o risco

da contraprestação –, podemos definir, desde já, a sua

transferência para o comprador como o momento a

partir do qual se consolida na esfera jurídica do

vendedor o direito ao preço, independentemente de

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qualquer perda ou avaria – que não lhe seja imputável

– da coisa vendida. Se o vendedor tiver culpa pela

perda ou avaria da coisa, isso não dará, porém, origem

à re-transferência do risco para si. Nesse caso, ele

incorrerá nos esquemas próprios da responsabilidade

civil pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso

da sua obrigação. O objeto do nosso estudo é,

precisamente, conforme acima foi referido, encontrar os

critérios que presidem à determinação do referido

momento em que se dá a transferência do risco da

contraprestação na venda marítima. Temos, contudo,

pelo menos aparentemente, um fator de perturbação

da estrita lógica da transferência do risco no contrato

de compra e venda, qual seja a existência de um

transporte marítimo, que visa a deslocação das coisas

vendidas até ao comprador.

2. O Risco e a responsabilidade civil: definidos que estão a venda marítima e

as várias modalidades do risco e, ainda, a noção de dano e a ideia básica de

transferência do risco, importa, agora, proceder a uma demarcação clara da

transferência do risco face ao instituto da responsabilidade civil. Conforme

já referimos, o titular do risco da contraprestação tem a sua esfera jurídica

apta para perder o direito de crédito ao preço, mau grado a impossibilidade

da sua prestação lhe não ser imputável – caso seja o vendedor esse titular –

ou para manter a obrigação de pagamento do preço, não obstante a perda

ou deterioração da coisa – se for o comprador esse titular. Pode, porém,

acontecer que a coisa se perca ou deteriore, mas que estas sejam devidas a

culpa de uma das partes ou até de terceiro, eventualmente o transportador.

Suponhamos que, não obstante o risco da contraprestação estar do lado do

comprador, as coisas vendidas se deterioraram por culpa do vendedor: neste

caso, como já dissemos, o vendedor será civilmente responsável. Nesta

situação, não há qualquer re-transferência (ou inversão) do risco da

contraprestação para o vendedor. O titular do risco continua a ser a mesma

pessoa que a lei ou a autonomia privada determinaram. Acontece, porém,

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

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que o sacrifício patrimonial suportado pelo titular do risco – o comprador –,

com a materialização do mesmo (o risco-evento) é como que neutralizada

pelo instituto da responsabilidade civil. A responsabilidade civil constitui um

desvio à regra segundo a qual os danos são suportados pelas esferas onde

ocorram, na medida em que por causa da imputação do dano resultante da

responsabilidade civil, ele é atribuído a uma outra esfera que não aquela

onde ocorreu inicialmente. A transferência do risco, por sua vez, está a

montante da responsabilidade civil. Ela indica-nos quem irá suportar o dano

ou quantidade negativa patrimonial caso o risco se materialize, o qual poderá

ser, eventualmente, neutralizado, pela imputação do dano ao civilmente

responsável. Deste modo, na venda marítima, o sacrifício patrimonial

resultante da perda ou deterioração da coisa vendida, poderá ser suportador

pelo comprador, pelo vendedor ou até, em última análise, pelo transportador:

(i) Pelo comprador, se o risco da contraprestação já tiver

passado para si, pois terá de pagar o preço, mesmo ficando

sem os bens ou com eles deteriorados;

(ii) Pelo vendedor, se o risco ainda não tiver passado para o

comprador, pois perderá o direito à contraprestação, não

obstante não ter culpa na perda ou deterioração os bens;

(iii) Por fim, pelo transportador, se, em virtude do funcionamento

da responsabilidade civil, a perda ou deterioração dos bens

lhe for imputada, o que neutralizará o risco suportado pelas

partes na compra e venda.

Um aspeto ainda, apesar de elementar, deverá ser frisado: na venda marítimo,

o risco nunca se transfere para o transportador. A passagem do risco dá-se

sempre e apenas entre vendedor e comprador, pois são estas as partes,

respetivamente, ativa e passiva, da contraprestação, cuja transferência do

risco se indaga.

3. Identificação do problema: a questão do risco é fundamental na

configuração da venda marítima. É, no seu âmbito, a matéria que gera maior

índice de litigiosidade. Podemos formular o problema em análise no presente

estudo com a colocação da seguinte questão: se entre a celebração de um

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contrato de compra e venda – com subsequente transporte marítimo – e o

momento da sua integral execução as mercadorias se perdem ou avariam,

por causa não imputável a qualquer das partes, quem suportará o sacrifício

patrimonial daí resultante? É o vendedor que fica, assim, sem as mercadorias

ou com elas deterioradas e sem o valor correspondente ou é, ao invés, o

comprador que tem de pagar o preço, mesmo não recebendo a mercadoria

ou recebendo-a deteriorada? Saber de que lado está o risco – e, portanto,

saber quando ocorre a sua transferência do vendedor para o comprador –

em determinado momento da execução da venda marítima é o pressuposto

para poder responder a estas questões. Na questão que ora analisamos,

repita-se, porque dogmaticamente importante, está em causa não o risco-

estático de lesão do direito de propriedade, por perda ou avaria da

mercadoria, mas sim o risco da contraprestação. A pedra de toque da

transferência do risco na venda marítima encontra-se, portanto, no risco do

preço. O risco-estático apenas relevará na medida em que determine,

também, o risco do preço. Aconteceria, por exemplo, numa venda marítima

à qual fosse aplicável o Código Civil e para a qual as partes não estipulassem

regras sobre a transferência do risco. Nesse caso, e sendo aplicável a regra

do artigo 796.º, n.º1, que determina que o risco passa com a transferência

da propriedade, a transferência do risco da contraprestação seria ditada,

portanto, pela transferência do risco-estático. Poder-se-ia pensar que o tema

em análise – a transferência do risco na venda marítima – diz respeito, apenas,

ao tratamento das relações entre o vendedor e o comprador, e não tanto

das relações destes com o transportador – até porque o presente assunto se

reporta à transferência do risco, e este, como já dissemos, nunca passa para

o transportador. Porém, não é bem assim. A venda marítima caracteriza-se,

essencialmente, como referimos já, pela incidência que o transporte marítimo

acaba por ter na relação de compra e venda. Interceta-se, por exemplo, o

transporte marítimo com o contrato de compra e venda na medida em que

o mesmo influencia as estipulações das partes do contrato de compra e

venda, designadamente do que diz respeito à obrigação de entrega da

mercadoria e ao momento da transferência do risco. Desta forma, apesar de

não haver efeitos jurídicos oriundos do contrato de transporte de

mercadorias por mar – ou do fretamento – no contrato de compra e venda,

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179

a verdade é que ele influencia as próprias cláusulas do contrato de compra

e venda68. Um dos objetos do presente estudo é, portanto, a análise da

interferência do contrato de mercadorias por mar na situação das partes no

contrato de compra e venda face às coisas vendidas e às vicissitudes que

essas coisas possam sofrer por causa da intermediação do transporte, ou

seja, a análise da interferência do contrato de transporte na relação entre o

comprador e o vendedor. Tendo em conta que o Direito Privado português

se encontra dividido entre o civil e o comercial, cabe referir, ainda, que o

presente estudo, apesar de abarcar estes dois grandes ramos do Direito

Privado, releva, essencialmente, do Direito Comercial. A venda marítima é o

resultado da congregação de um transporte de coisas por mar e de um

contrato de compra e venda. Ora, o Direito dos Transportes – essencialmente

Direito dos contratos de transporte – é um capítulo do Direito Comercial. O,

ainda, Código Comercial, designadamente dos seus artigos 366.º e seguintes.

O transporte marítimo, por sua vez, encontrava-se, conjuntamente com

outras matérias, ao longo do Título I (dos navios) do Livro III (do comércio

marítimo) do Código Comercial (artigos 485.º a 573.º), título esse que foi

sendo, paulatinamente, revogado por legislação extravagante que se viria a

ocupar da matéria. Refira-se, ainda, sem entrar na problemática sobre as

doutrinas subjetivistas e objetivistas em torno da interpretação do artigo

230.º CCom, eu «haver-se-ão por comerciais as empresas singulares ou

coletivas, que se propuserem transportar, regular e permanentemente, por

água ou por terra, quaisquer pessoas, animais, alfaias ou mercadorias de

outrem» (artigo 230.º, n.º7). Assim, o Direito dos Transportes é Direito

Comercial, pois os transportes são comerciantes (praticando, portanto, em

regra, atos de comércio subjetivos) e, além disso, o contrato de transporte é,

em regra, objetivamente comercial (artigo 1.º, e 2.º CCom). O transporte por

mar, sendo um capítulo do Direito dos Transportes, é, outrossim, um capítulo

do Direito Marítimo, disciplina, também, especializada do Direito comercial.

O contrato de compra e venda poderá pertencer tanto ao Direito Civil, como

ao Direito comercial. A compra será comercial se se inserir num processo de

68 Exemplo, por excelência, dessa influência são, precisamente, os INCOTERMS FAS, FOB, CFR, CIF, DES e DEQ que, sendo termos apostos nos contratos de compra e venda, pressupõem a existência de um contrato de transporte marítimo das coisas vendidas.

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

180

compra para futura revenda; a venda sê-lo-á se a coisa vendida havia sido

adquirida com o intuito de revender (artigo 463.º CCom). Só assim não será

se as compras ou vendas se enquadrarem num dos números do artigo 464.º

CCom. Ora, a esmagadora maioria das compras de coisas a serem

transportadas por mar são compras para futura revenda. Assim, a venda

marítima é uma realidade, essencialmente, mercantil. Ainda assim, tudo o

que dissermos relativamente á transferência do risco na venda marítima

aplicar-se-á, como veremos, a todo o Direito Privado, quer seja civil, quer

seja comercial. Refira-se, por último, que as vendas marítimas pertencem ao

grupo das vendas com expedição, sendo, de entre elas, o tipo paradigmático.

As conclusões a que, ao longo deste estudo, chegarmos a seu respeito serão,

portanto, igualmente aplicáveis, com as necessárias adaptações, às outras

vendas com expedição: ferroviária, fluvial, aérea ou rodoviária.

67.º - O Direito Geral dos Transportes69

Generalidades; aspetos institucionais e materiais: o ser humano tem a capacidade de se

deslocar levando, com ele, utensílios e outros bens. Os nossos antepassados surgidos, tanto

quanto se sabe, no Centro de África, vieram, em vagas sucessivas e dispondo apenas de meios

rudimentares, a ocupar toda a superfície do Planeta. Está ao alcance da Humanidade, com a

tecnologia disponível, iniciar a colonização do Sistema Solar: ponto é que o progresso do

Direito fosse capaz de acompanhar os das Ciências da Natureza e da Tecnologia, pondo termo

as conflitos e aos desperdícios. A movimentação de pessoas e de bens permite introduzir a

ideia de transporte. No transporte, em sentido técnico-jurídico, procede-se à deslocação

voluntária e promovida por terceiros, em termos organizados, de pessoas ou de bens, de um

local para o outro. O papel dos transportes nas sociedades industriais e pós-industriais mal

carece de referência. Desde o momento em que se proceda a uma divisão acentuada do

trabalho, tudo tem de ser transportado: as matérias-primas para os locais de processamento;

os materiais processados para as unidades de fabrico; as peças fabricadas para os locais de

montagem; os equipamentos para os locais de distribuição e de venda; os bens diversos, para

a residência de consumidores. A população tem, a nível global, uma mobilidade crescente:

cada vez é mais inverosímil que alguém nasça, viva e morra na mesma localidade.

Independentemente das migrações por razões económicas, sociais ou pessoas, as pessoas

viajam em negócios, em estudos, em lazer. Todo o dia-a-dia depende de uma rede de

transportes em perfeito e permanente funcionamento, assente em incontável miríade de atos

jurídicos especializados, a tanto destinados. Podemos admitir que a teia de transportes se

desenvolva de modo espontâneo, pelo menos nas sociedades abertas. Todavia, a partir de

certa dimensão, impõe-se uma especialização profissionalizante, com intervenção dos Estados

69 Cordeiro, António Menezes; Direito Comercial; 3.ª edição; Almedina Editores; 2012.

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

181

e com uma colaboração planificada entre todos os agentes. Esse aspeto mais se acentua

quando os transportes passem, por sistema, a implicar o cruzamento das fronteiras dos

Estados, internacionalizando-se. O Direito dos Transportes assume, assim, uma dupla

dimensão. Por um lado, ele vai regular as organização nacionais e internacionais tendentes a

disciplinar ou a normalizar os transportes e os próprios transportadores, na medida em que,

pelos valores em jogo, não possam deixar de satisfazer determinados requisitos. Trata-se do

Direito institucional dos transportes. Por outro, o Direito dos Transportes regula os negócios

pelos quais o transportador se compromete, perante um interessado, a assegurar o transporte

de pessoas ou de bens de um local para outro. É o Direito material dos Transportes. O Direito

material dos transportes reporta-se, essencialmente, ao Direitos dos Contratos de Transporte.

Trata-se de um capítulo do Direito Comercial, Apesar da evidente especialidade, parece

excessivo proclamar a sua autonomização como disciplina. De modo significativo, a importante

reforma do Direito dos Transportes alemã, de 1998, foi formalmente inserida no HGB: aí

regressaram numerosas normas que, anteriormente, andavam dispersas em diplomas

extravagantes. E também entre nós, o essencial do regime relativo ao contrato de transporte

se mantém no Código Veiga Beirão.

O Código Comercial e o papel das cláusulas contratuais gerais: pela sua própria natureza, o

Direito dos Transportes tem significativos planos internacionais. Não obstante, como fonte

básica enformadora de conceitos e de valorações gerais, mantém-se o régie interno e comum

do contrato de transporte, ainda hoje constante dos artigos 366.º a 393.º CCom. Esses

preceitos só não têm uma aplicação direta e de princípio ao transporte marítimo – artigo 366.º

- nem ao transporte aéreo, inexistente em 1888. O contrato de transporte pode implicar

vertentes técnicas consideráveis, assim como particularidades especificas, condicionadas pelo

objeto a transportar ou pelo meio utilizado. Além disso, o transporte atual efetiva-se, quanto

possível, em massa, de modo a reduzir custos. Tudo isso obriga a uma normalização dos

contratos a celebrar e a uma aceleração de todo o processo. Esses vetores são prosseguidos

através de cláusulas contratuais gerais. Muitas vezes exaradas nos próprios títulos de

transporte ou nos conhecimentos, elas dão corpo às regras contratuais concretas. O esforço

de unificação levou, na Alemanha, à preparação de cláusulas contratuais gerais, à disposição

de todos os transportadores. Também entre nós, os diversos transportadores recorrem a essa

técnica de contratação, inevitável perante as realidades dos nossos dias. Impõe-se proceder à

sua sindicância, à luz da LCCG. Existe jurisprudência nesse domínio.

Quadro geral dos contratos de transporte: referenciadas às diversas fontes, podemos passar

a expor um quadro geral classificatório dos contratos de transporte. De acordo com a realidade

a transportar, o transporte diz-se de mercadorias ou de passageiros. Este último abrange,

ainda, a bagagem que acompanhe os passageiros em causa. A via distingue os transportes em

terrestres, aéreos e marítimos. Subdistinção nos terrestres é a que contrapõe os rodoviários

aos ferroviários. Os transportes fluviais seguem, no essencial, o regime dos terrestres, como

se infere do próprio artigo 366.º. Os contratos de transporte marítimo constituem uma

disciplina comercial especializada, dispondo o contrato de transporte rodoviário nacional de

mercadorias do regime adotado pelo Decreto-Lei n.º 239/2003, 4 outubro. O transporte

poderá ser interno ou internacional, consoante venha bulir com o Direito de um único Estado

ou com os de diversos Estados. Trata-se de uma distinção rica em consequências, como melhor

resultará da consideração do Direito Internacional dos transportes. A crescente interação dos

transportes leva, muitas vezes, a que qualquer operação de transporte implique a utilização

combinada de diversos meios de transporte. Fala-se, a tal propósito, em transporte

multimodais. As Nações Unidas aprontaram, em 24 maio 1980, uma Convenção sobre o

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

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transporte Multimodal de mercadorias, a TMI: todavia, esta ainda não entrou em vigor.

Existem certas regras da CNUDCI/UNCITRAL relativas aos documentos de transporte

multimodal, de 1975, revistas em 1991.

Capítulo II – Fontes de Regulação da venda marítima70

4. Determinação do Direito aplicável à venda marítima:

a. Venda marítima nacional: vejamos agora qual o Direito aplicável à

venda marítima. Se for nacional serão aplicáveis, quanto ao contrato

de compra e venda, as regras do Código Civil e, quando mercantil,

também as do Código Comercial. Relativamente ao contrato de

transporte, a questão não é tão simples. Há que considerar a

Convenção de Bruxelas de 1924 e o Decreto-Lei n.º 352/86, sendo

que o artigo 2.º deste Decreto-Lei estabelece que o contrato de

transporte de mercadorias por mar é disciplinado pelos tratados e

Convenções Internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente,

pelas suas disposições. Dispõe, por seu turno, o artigo 10.º da referida

Convenção que as suas disposições se aplicam a todo o

conhecimento de carga criado num dos Estados contratantes.

Segundo uma interpretação literal desta norma, num transporte

marítimo puramente interno, a CB 1924 também seria aplicável, caso

fosse emitido um conhecimento de carga. Porém, somos da opinião

de que, no artigo 10.º, o legislador disse mais do que queria.

Entendemos, antes, que a Convenção se aplica a todo o

conhecimento de carga criado num dos Estados contratantes, mas no

pressuposto de que o transporte é internacional. Ou seja, a CB 1924

só se aplica a situações plurilocalizadas e não a transportes

puramente internos. Foi, aliás, o que o Protocolo de Visby veio

estabelecer ao dar nova redação ao artigo 10.º da Convenção.

70 Marques, André Sousa; A Transferência do Risco nas Vendas Marítimas – o risco nos contratos de alienação (páginas 198 a 200).

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Destarte, ao transporte de mercadorias por mar puramente interno

aplicar-se-á o Decreto-Lei n.º 352/86.

b. Venda marítima Internacional: se a venda marítima for internacional,

por os elementos da situação jurídica estarem em conexão com mais

de um Estado, a determinação do regime do contrato de compra e

venda exige uma prévia aferição do Direito aplicável, com base nas

regras do Direito Internacional Privado. Deve ser feita, neste caso,

uma distinção, conforme haja ou não convenções de arbitragem.

Caso haja, o Direito Transnacional da Arbitragem e as normas internas

determinarão o Direito a aplicar (artigo 33.º da Lei da Arbitragem

Voluntária). Assim, nos termos do artigo 33.º da Lei da Arbitragem

Voluntária, o Direito a aplicar pelos árbitros é o escolhido pelas partes.

Podem, também, os árbitros julgar segundo a equidade, se tal tiver

sido convencionado. Esta asserção é valida tanto para a compra e

venda como para o contrato de transporte de mercadorias por mar.

Em ambos pode funcionar a determinação da lei aplicável. Não

existindo convenção de arbitragem devemos, quanto à compra e

venda, distinguir duas situações: uma, se a questão se verificar num

Estado que é parte contratante da CVVIM; outra, se se verificar num

Estado não contratante. Na primeira situação, aplicar-se-á a CVVIM,

se estiver preenchido o seu âmbito de aplicação. NA segunda

situação – como ocorre em Portugal, que não aderiu à CVVIM –, terá

de ser determinada a lei aplicável através do Direito Internacional

Privado. Podem, inda assim, os tribunais portugueses vir a aplicar a

CVVIM. Isso acontecerá em duas situações. Em primeiro lugar, nos

casos em que as nossas regras de Direito Internacional Privado

remetam para a alei de um Estado que tenha ratificado a Convenção

de Viena. Em segundo lugar, quando as partes, ao abrigo da sua

autonomia privada, tiverem escolhido como lei aplicável a CVVIM

(artigo 3.º Convenção de Roma de 1980). Pode, ainda, a CVVIM ser

utilizada por tribunais portugueses como «elemento de interpretação

de um contrato internacionais de compra e venda de mercadorias».

Quanto ao contrato de transporte (internacional), será aplicável a

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Convenção de Bruxelas de 1924 se o conhecimento de carga for

emitido num dos Estados contratantes, nos termos do seu artigo 10.º.

5. A autonomia privada: INCOTERMS (Interncional Commercial Terms):

apesar da importância da determinação do Direito aplicável, a verdade é que,

salvo raríssimas exceções, não é o Direito positivo que vai solucionar – pelo

menos imediatamente – a questão da transferência do risco na venda

marítima. Assim é, porque as regras legais aplicáveis à transferência do risco,

designadamente o Código Civil e a CVVIM, são supletivas e a matéria da

transferência do risco na venda marítima é, comummente, regulada pelas

partes, através da remissão para os INCOTERMS. Apesar de os INCOTERMS

não constituírem Direito Positivo, entendemos pertinente incluí-los no

ressente capítulo, como fontes de regulação da venda marítima, pois é por

eles que a maioria das vendas marítimas é, na verdade, regulada. Faremos,

portanto, a propósito das fontes de regulação da venda marítima uma breve

caracterização dos INCOTERMS. A palavra INCOTERMS constitui uma

abreviatura da expressão International Commercial Terms. Os INCOTERMS

são regras uniformes, elaboradas pela Câmara do Comércio Internacional

(CCI), para a interpretação dos termos mais usuais nas vendas para a praça

– de que são exemplos FOB, FAS, DES e DEQ. O objeto dos INCOTERMS é o

contrato de compra e venda internacional (necessariamente, portanto, com

expedição das coisas vendidas) e a sua finalidade é regular direitos e

obrigações das partes na compra e venda. O regime dos INCOTERMS está

centrado, especialmente, na obrigação de entrega das mercadorias, na

transferência do risco, nas despesas com o transporte e, também, na

obrigação de celebração do contrato de seguro das mercadorias. Sendo

principalmente destinados à venda internacional, nada obsta a que os

INCOTERMS seja utilizados em vendas nacionais que impliquem transporte.

As regras de interpretação e integração dos INCONTERMS são publicadas

pela Câmara de Comércio Internacional desde 1936, data da primeira versão.

Seguiram-se, depois, as versões de 1953, 1980, 1990 e de 2000 e, agora, de

2010. Há uma querela relativamente à questão de saber se os INCOTERMS

constituem ou não usos do comércio internacional Lima Pinheiro considera

que pelo menos as principais regras de interpretação e integração dos

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termos específicos da venda marítima, que são as cláusulas FOB, FAS, CFR,

CIF, DES e DEQ, são verdadeiros usos da venda internacional. Arroyo

Martinez, por sua vez, entende que não, porque os usos consistem em

normas de geração espontânea, ao passo que os INCOTERMS foram

elaborados de acordo com um plano preconcebido e em atenção a

finalidades concretas. Da nossa parte, consideramos que a CCI se limita a

recolher e a dar forma a regras que tivera, uma geração espontânea, pelo

que, nessa medida, seriam usos. Porém, haverá, eventualmente, algumas

parcelas constantes dos INCOTERMS que não corroboram usos, porquanto

correspondem a atividade criativa da própria CCI. Assim, diríamos que os

INCOTERMS, conforme estão publicados pela CCI, são usos internacionais ou

não, conforme os corroborem ou não. Desta forma, a natureza dos

INCOTERMS é uma questão que terá de ser vista caso a caso e consoante o

espaço geográfico em causa. Uma outra questão discutida a propósito dos

INCOTERMS é a da sua articulação com as cláusulas contratuais gerais. Mais

concretamente, questiona-se se, quando um INCOTERMS é adotado num

contrato ao qual se aplique o Direito português, está ou não sujeito ao

regime das cláusulas contratuais gerais. Lima Pinheiro entende que não.

Segundo este autor, os INCOTERMS não constituem cláusulas pré-

elaboradas, que as partes se limitam a propor ou a aceitar (artigo 1.º, n.º1

Decreto-Lei n.º 446/85, 25 outubro – LCCG), constituindo, antes, termos

normalizados que se referem a cláusulas típicas do tráfico negocia. As partes

podem, pois, no entender do autor, escolher entre os diferentes termos e

modelar o conteúdo das cláusulas que designam, não sendo, portanto,

confrontadas com a alternativa entre adesão e desistência do negócio,

característica das cláusulas contratuais gerais. Menezes Cordeiro, por seu

turno (e como será exposto adiante), os INCOTERMS dão azo a verdadeiras

cláusulas contratuais gerais. Para o autor, os INCOTERMS visam contraentes

indeterminados e, quando adotados por proposta de uma das partes,

traduzem a típica rigidez, salvo quando se prove que não correspondem a

nenhuma proposta firme, antes tendo advindo de negociação. Além disso,

refere que os INCOTERMS surgem, em regra, inseridos em textos contratuais

mais vastos, que são, eles próprios, cláusulas contratuais gerais. Na nossa

opinião, os INCOTERMS dão azo, em princípio a verdadeiras cláusulas

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contratuais gerais, por traduzirem a típica rigidez destas, podendo, porém,

em concreto, demonstrar-se que não o são. Assim, o INCONTERM usado

num determinado contrato de venda marítima deve ser comunicado e

explicado, pela parte que o apôs no contrato, à parque que dele não tenha

conhecimento, nos termos do artigo 5.º e 6.º LCCG. Isto porque, conforme

Menezes Cordeiro, «mostra a experiência que muitos pequenos e médios

operadores nacionais são levados a subscrever clausulados que contêm

INCOTERMS sem deles terem uma ideia precisa e completa». O utilizador

assume, portanto, o encargo de explicar os termos, ou, pelo menos, de

remeter o aderente para o site da Câmara do Comércio Internacional, onde

este poderá obter todos os esclarecimentos. A consequência da falta de

comunicação ou de informação poderá ser a exclusão do INCOTERM do

contrato de venda marítima, nos termos do artigo 8.º LCCG. Neste caso, as

regras sobre a transferência do risco serão substituídas pelas regras

supletivas aplicáveis, que analisaremos detalhadamente abaixo.

68.º - O Direito Internacional dos Transportes; os INCOTERMS

As Convenções Internacionais: a globalização dos transportes e as necessidades daí

decorrentes, cada vez menos limitadas às fronteiras de cada Estado nacional, levaram a uma

multiplicação de Convenções Internacionais. Os diversos contratos de transporte não podem

deixar de se confrontar com essas fontes. Vamos, por isso, proceder a uma breve enunciação.

A harmonização do Direito dos Transportes foi iniciada em 1890, com a Convenção de Berna

sobre os Transportes Ferroviários. Seguiu-se a Convenção de Bruxelas de 1924, relativa ao

Transporte Marítimo sob Conhecimento ou Guia e a Convenção de Varsóvia, de 1929, quanto

ao transporte aéreo. Culminando este esforço surge a Convenção de Genebra, de 19 de maio

1956, aprovada pelo Decreto-Lei .º 46.235, 18 março de 1965 e relativa ao contrato de

transporte internacional de mercadorias por estrada. Aderiram à Convenção de Genebra,

conhecida pela sigla CMR, todos os Estados do Ocidente Europeu, salvo a Islândia e a Albânia,

bem como os Estados da antiga União Soviética. O Direito português decidiu transpor, para a

ordem interna, o essencial dessa convenção: tal o papel do Decreto-Lei n.º 239/2003, 4 de

outubro, cujo preâmbulo é elucidativo. O transporte internacional rodoviário de passageiros e

bagagens, mercê dos cuidados da UNIDROIT, veio a conhecer uma Convenção, assinada em

Genebra a 1 março 1973, ou CVR. Ela não foi ratificada por Portugal tendo, todavia, entrado

em vigor no dia 12 abril 1994. No campo rodoviário há ainda que ter em conta um elevado

número de acordos bilaterais. No tocante aos transportes ferroviários surgiram, como foi dito,

os primeiros esforços para a harmonização internacional. A citada Convenção de Berna, de

1890, regulava transportes internacionais ferroviários de mercadorias. Aquando da revisão de

1924, foi adotada uma Convenção Internacional relativa ao Transporte de Passageiros e de

Mercadorias por Caminho de Ferro. Seguiram-se diversas revisões, até à de 1980. Esta,

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assinada em 9 maio 1980, veio a ser conhecida por Convenção Relativa aos Transportes

Internacionais Ferroviários ou COTIF, aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 50/85, 27

novembro. A COTIF institucionalizou a antiga União de Berna, que passou a Organização

Internacional para os Transportes Internacionais Ferroviários (COFIF), dotada de diversos

órgãos, entre os quais a assembleia geral (OTIF) e um secretariado: a Repartição Central dos

Transportes Internacionais Ferroviários (OCTI). Como Apêndice A surgem as denominadas

Regras Uniformes relativas ao Transportes Internacional Ferroviário de Passageiros e Bagagem

ou CIV e, como Apêndice B, as Regras Uniformes relativas ao Contrato de Transporte

Internacional Ferroviário de Mercadorias ou CIM. A COTIF foi alterada pelo Protocolo aprovado

a 20 dezembro de 1990 pela OTIF, aprovado para ratificação, pelo Decreto n.º 10/97, 19

fevereiro. No domínio dos transportes aéreos, devemos recordar, quanto às aeronaves, a

Convenção sobre Aviação Civil Internacional, de Chicago, assinada em 7 dezembro 1944,

aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 36:158, 17 fevereiro 1947 e a Convenção

Relativa ao Reconhecimento Internacional de Direitos sobre Aeronaves, concluída em Genebra,

em 19 junho 1948, aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 33/85, 4 setembro. Os contratos

internacionais de transporte aéreo foram objeto da Convenção de Varsóvia de 12 outubro de

1929, modificada pelo Protocolo de Haia de 28 setembro de 1955 e pelo Protocolo de Montreal

de 15 setembro 1975, ratificado por Portugal em 1982. O transporte por mar conhece também

múltiplos instrumentos. Trata-se, contudo, de matéria autonomizada em Direito Marítimo,

disciplina especializada do Direito Comercial.

As diretrizes comunitárias: as exigências da integração europeia levaram ao aparecimento de

diretrizes com relevância no setor dos transportes. Especialmente em causa estão aspetos

institucionais de acesso à categoria de operadores. No campo dos transportes internacionais

rodoviários de mercadorias, vieram dispor as Diretrizes n.º 89/438/CEE e n.º 91/224/CEE,

ambas do Conselho. A matéria foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 279-A/92, 17 dezembro, que

estabeleceu o novo regime jurídico do transporte público internacional rodoviário de

mercadorias. Quanto ao transporte ferroviário, cumpre citar a Diretriz n.º 91/440, 29 julho

1991. A matéria dos transportes vem, assim, a suscitar uma diferenciação crescente. Os

princípios jurídicos que a conformam bem como numerosas das suas concretizações mantêm-

se, porém, fiéis à comercialística privada.

Os INCOTERMS: no Comércio Internacional, particularmente no setor dos transportes, foi-se

tornando habitual a utilização de cláusulas típicas, expressas pelas siglas respetivas em Inglês.

A lista de siglas em uso foi-se alongando, com inevitáveis flutuações. Para evitar os

inconvenientes daí resultantes, a Câmara de Comércio Internacional, de Paris, procurou

interpretar as cláusulas em uso, consolidando-as. Assim surgiram os INCOTERMS: de

Internacional Commercial Terms. Foram publicadas versões sucessivamente mais

aperfeiçoadas: a primeira data de 1936, seguindo-se versões de 1953, de 1980, de 1990, de

2000 e de 2010. Como se vê, a tendência é de uma revisão de dez em dez anos. Cumpre dar

uma ideia dos INCOTERMS em uso. Temos:

Grupo E: de ex, partidas: a obrigação mínima para o exportador: a mercadoria é

entregue no local da produção ou fábrica;

Grupo F: de free, livre: a mercadoria é entregue ao transportador, não sendo o

transporte principal da responsabilidade do exportador;

Grupo C: de cost ou carriage, custo: o custo do transporte principal é assumido

pelo exportador: mas não os riscos subsequentes ao embarque;

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Grupo D: de delivery: chegada ou entrega: a obrigação máxima para o exportador,

que assume todos os riscos e os custos até ao local de entrega.

Posto isto, os INCOTERMS são os seguintes:

Grupo E:

o EXW (ex works): a mercadoria é entregue na fábrica, sendo o transporte

alheio ao exportador;

Grupo F:

o FCA (free carrier): a mercadoria é entregue ao transportador, aí cessando

o papel do exportador;

o FAS (free alonside ship): idem, sendo a mercadoria entregue ao lado do

navio;

o FOB (free on board): idem, sendo a mercadoria entregue a bordo do navio.

Grupo C:

o CFR (cost and freight): o exportador assume o custo e o frete;

o CIF (cost, insurance and freight): idem, mas incluindo, também, o seguro;

o CPT (carriage paid to): idem, mas especificando-se o local até onde o porte

é pago;

o CIP (carriage and insurance paid to): idem, incluindo o seguro.

Grupo D:

o DAF (delivered and frontier): o vendedor assume os custos e os riscos até

à fronteira acordada;

o DES (delivery ex ship): o vendedor arca com os custos e os riscos do

embarque e do transporte; a transferência dos riscos e custos faz-se a

bordo do navio, no local de chegada;

o DEQ (delivered ex quay): idem, mas no cas do porto de chegada;

o DDU (delivered duty unpaid): a mercadoria é entregue com os impostos a

cargo do comprador;

o DDP (delivered duty paid): idem, mas com os impostos pagos.

A presente indicação visa, apenas, dar uma ideia dos INCOTERMS atuais: ela não dispensa a

análise cuidadosa, nas fontes, do efetivo alcance de cada um destes termos. Temos, de resto,

bons exemplos de análise na jurisprudência. Esta matéria deve ser manejada com cuidado. Em

primeiro lugar, quando se usem INCOTERMS da CCI, haverá que especificar, no contrato:

INCOTERMS 2010 ou INCOTERMS CCI 2010. Há INCOTERMS de sentido não coincidente,

usados nos Estados Unidos; há INCOTERMS arcaicos e há figuras atípicas, que podem não

corresponder ao sentido preciso de nenhum dos 13 INCOTERMS oficiais. Ainda a este propósito,

cumpre reter que a CCI não tem qualquer poder normativo não assumido, livremente, pelas

partes. Limita-se a propor os INCOTERMS, em geral aceites: mas não obrigatórios. Pergunta-se

se os INCOTERMS não assumem uma força vinculativa, na qualidade de usos do comércio. No

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

189

domínio internacional, poder-se-á falar, efetivamente, numa prática reiterada. Todavia, a força

vinculativa dos INCOTERMS provém sempre da sua inclusão em contratos. Deriva, pois, da

autonomia privada. Não obstante, quando pactuados, há uma forte indicação no sentido de as

partes terem pretendido, precisamente, assumir o sentido fixado pela CCI. Pelo menos, assim

o entenderia o destinatário normal.

Segue; aplicação interna e natureza: os INCOTERMS podem ser usados no plano interno.

Quando isso suceda, operam as considerações acima expendidas sobre o seu alcance. A

positividade dos INCOTERMS advém sempre da autonomia privada, assumindo o alcance que

lhes daria o destinatário normal. Esse alcance será, em princípio, o da CCI, admitindo-se,

todavia, que outra possa ser a solução concreta. Quanto ao alcance material: logo se verifica

que, embora esta matéria surja no domínio dos transportes, ela assume um alcance que o

transcende, penetrando no campo da compra e venda, dos seguros e de diversas prestações

de serviço. O principal interesse reside na sua natureza sintética sempre de três iniciais – e na

normalização rápida que permitem. Pergunta-se se os INCOTERMS dão azo a cláusulas

contratuais gerais. Entre nós, já se respondeu negativamente (Lima Pinheiro). Todavia, cremos

que se trata, muito claramente, de cláusulas contratuais gerais: visam contratantes

indeterminados e, quando dotados por proposta de uma das partes, traduzem a típica rigidez,

salvo quando se prove que não corresponderam a nenhuma proposta firme, antes tendo

advindo de negociação. Além disso, os INCOTERMS surgem, em regra, inseridos em textos

contratuais mais vastos que são, eles próprios, cláusulas contratuais gerais. Isto dito, temos

algumas especificadas. Assim:

Os INCOTERMS correspondem a cláusulas experimentadas e equilibradas; só por

si, não incorrem nas proibições da LCCG, ainda que a sua articulação com outras

cláusulas não deva deixar de ser sindicada

A interpretação dos INCOTERMS, quando se determine que se trata dos

INCOTERMS 2000 da CCI, deve seguir o indicado por esta orientação: sempre sem

prejuízo da sua articulação global, que deverá atender à LCCG.

Muito importante pelo prisma do Direito Português é a necessidade de comunicação e a de

informação, previstas nos artigo 5.º e 6.º LCCG. Mostra a experiência que muitos pequenos e

médios operadores nacionais são levados a subscrever clausulados que contêm INCOTERMS

sem, deles, terem uma ideia precisa e completa. O utilizador assume o encargo de desdobrar,

traduzir e explicar os terms ou, pelo menos, de remeter o aderente para os sítios da CCI onde

podem ser obtidos os competentes esclarecimentos. No limite, as cláusulas atingidas não se

incluem nos contratos singulares (artigo 8.º LCCG), sendo substituídas por regras supletivas

aplicáveis. É certo que estas, muitas destas, acaba por revalidar os INCOTERMS. Tudo depende,

todavia, e em concreto, das articulações que possam surgir com outras cláusulas contratuais.

Finalmente, cabe referir que a nossa jurisprudência conhece e aplica os INCOTERMS, deles

retirando os competentes desenvolvimentos jurídico-normativos.

Trade terms: além dos INCOTERMS, cumpre ainda referir os trade terms. Trata-se de cláusulas

usualmente presentes em contratos internacionais, particularmente de compra e venda, mas

que têm uma especial presença nos contratos de transporte, mesmo internos. Uma primeira

versão normalizada foi publicada, em 1923, pela Câmara do Comércio Internacional, sendo a

última versão de 1953. Não têm a solidez do INCOTERMS 2000; além disso, verifica-se a

existência de diversas versões, algumas de proveniência norte-americana. Correspondem,

tecnicamente, a cláusulas contratuais gerais, que devem ser comunicadas e esclarecidas por

quem as proponha à adesão de outrem, nos termos gerais.

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Capítulo III – A transferência do risco na venda marítima71

6. A transferência do risco na venda marítima no Código Civil: sempre que

estivermos perante uma venda marítima puramente interna aplica-se, nos

termos vistos acima, o Código Civil, no que respeita à questão da

transferência do risco. Sendo a venda marítima internacional, o Código Civil

será aplicado se, por força das regras de Direito Internacional Privado, se

concluir ser aplicável o Dirieto Português. Mas note-se que o Código Civil

português apenas será aplicável à problemática da transferência do risco se

as partes não tiverem, elas próprias, regulado esta matéria, porquanto têm,

dentro dos limites da lei, liverdade para o fazer (artigo 405.º CC). Revela-se

portanto, importante a análise do Código Civil a este respeito, não só porque

pode ser aplicável ao caso concreto – ainda que seja raro, pois, em regra, as

partes regulam estas matérias por remissão para os INCOTERMS –, mas,

principalmente, porque o percurso pelo regime da transferência do risco na

compra e venda no Código Civil será fundamental para a boa compreensão

da problemática em jogo no presente estudo.

a. O regime geral da transferência do risco nos contratos alienatórios:

i. Generalidades: a regra base do Código Civil sobre a

transferência do risco nos contratos alienatórios encontra-se

vertida no seu artigo 796.º, dispõe o seu n.º1 que

«nos contratos que importem a transferência do

domínio sobre certa coisa ou que constituam ou

transfiram um direito real sobre ela, o perecimento

ou deterioração da coisa por causa não imputável

ao alienante corre por conta do adquirente».

Esta norma insere-se no âmbito das matérias relativas ao não

cumprimento de uma obrigação por impossibilidade, quando

71 Marques, André Sousa; A Transferência do Risco nas Vendas Marítimas – o risco nos contratos de alienação (páginas 204 a 289).

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Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016

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não imputável ao devedor. Ela regula o problema do risco na

contraprestação nos contratos com eficácia real. Regulando o

risco da contraprestação, o artigo 796.º, n.º1 reflete, outrossim,

um princípio de Direitos Reais segundo o qual, e de acordo

com a natureza das coisas, é o titular do direito real que corre

o risco de, a qualquer momento, ter esse seu direito lesado,

por causa da perda ou deterioração da coisa dele objeto – res

perit domino. A questão da transferência do risco da

contraprestação, à luz do artigo 796.º, n.º1, acaba, portanto,

por redundar numa outra, a saber: e, que momento ocorre a

transferência de direito? E é aí que repousa a resposta ao

problema do risco do preço, nos termos do artigo 796.º, n.º1

CC. Como podemos ver, sendo aplicável o artigo 796.º, n.º1,

os momentos da transferência do risco-estático – ou risco da

coisa – e do risco da contraprestação – o risco do preço –

coincidem. Quando passa o risco da coisa, também nos

termos dessa norma, o risco do preço passou. Podemos,

portanto, dizer que, nos termos da regra ínsita no n.º1 do

artigo 796.º CC, o risco da contraprestação se transfere

coevamente com a transferência do direito, coincidindo, assim,

com a transferência do risco da coisa. Enquanto o momento

da transferência do risco da coisa resulta da natureza das

coisas, já aquele em que se dá a transferência do risco do

preço resultará, antes, de uma mera opção do legislador ou

das partes. Tanto assim é, que o artigo 797.º CC vem

estabelecer a transferência do risco da contraprestação com o

cumprimento da obrigação de entrega; isto mesmo que a

propriedade – e, portanto, o risco da coisa – já se tivesse

transmitido antes, com a celebração do contrato (artigo 408.º

CC). Desta forma, repisamos, para se saber qual o momento

em que, em regra, à luz do Código Civil se transfere o risco

da contraprestação nos contratos alienatórios – como é o caso

da compra e venda –, tem de se descobrir, primeiro, o

momento em que se dá a transferência do direito (artigo 796.º,

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n.º1 CC). É o artigo 408.º CC que nos dá a resposta. Refere o

n.º1 deste artigo que «a constituição ou transferência de

direitos reais [se dá] por mero efeito do contrato». Consagra

esta norma o princípio da consensualidade: a transferência

do direito de propriedade depende apenas do consenso das

partes. Bastam, portanto, as declarações de vontade das partes

para produzir o efeito de transferência do direito. Não é, assim,

necessário qualquer ato posterior de entrega ou outro ato

formal. Porém, a transferência do direito só se dá por mero

efeito do contrato quando a coisa, sobre a qual ele incida seja

determinada. O n.º1 do artigo 408.º alude a coisa determinada.

Para além disso, o próprio n.º1 do artigo 408.º CC, ao referir,

na sua parte final, «salvas as exceções previstas na lei», abre a

possibilidade de haver exceções ao princípio da

consensualidade». Refere, então, o n.º2 do artigo 408.º,

excecionando a regra ínsita no n.º1, que se a transferência

respeitar a coisa futura ou indeterminada, o direito apenas se

transfere quando a coisa for adquirida pelo alienante ou

determinada com conhecimento de ambas as partes,

respetivamente, sem prejuízo do disposto em matéria de

obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém,

a transferência respeitar a frutos naturais ou partes

componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no

momento da colheita ou separação. Quando a lei alude a coisa

indeterminada (artigo 408.º, n.º1 CC), refere-se às obrigações

com prestações indeterminadas. Destas, as mais importantes

são as obrigações genéricas. Torna-se, assim, importante, no

âmbito do nosso estudo, proceder à análise do momento em

que ocorre a transferência do direito de propriedade quando

está em causa este tipo em causa este tipo do obrigações.

Desta forma, saberemos, então, em que momento se dará a

transferência do risco, nos termos do artigo 796.º, n.º1, nas

vendas marítimas de coisas genéricas.

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ii. Obrigações genéricas: na venda de coisas genéricas, a

transferência da propriedade verifica-se no momento da

concentração da obrigação. A concentração da obrigação

genérica dá-se, em regra, com o cumprimento da mesma.

Nesse momento, a obrigação passa de genérica a específica.

Esta asserção retira-se do artigo 540.º, que refere que

«enquanto a prestação for possível com coisas do género

estipulado, não fica o devedor exonerado pelo facto de

perecerem aquelas com que se dispunha a cumprir». Assim,

até ao cumprimento da obrigação, e enquanto ele for possível

com coisas do género estipulado, o perecimento de outras do

mesmo género com as quais o devedor pensava cumprir, não

obsta a que ele recorra a outras coisas, dentro do género, para

realizar a prestação. É por isso que a concentração da

obrigação, ou seja, a sua passagem de genérica a específica,

só se dá, em regra, no momento do cumprimento. Porém, o

artigo 541.º CC, que tem como epígrafe «concentração da

obrigação», enumera quatro situações nas quais, segundo o

disposto no mesmo, a obrigação se concentrará antes do

cumprimento. Vejamo-las: a primeira situação que o artigo

541.º consagra como exceção à concentração da obrigação no

momento do cumprimento é o acordo das partes. Nãos nos

parece, porém, que se trate de uma verdadeira exceção.

Tratar-se-á, sim, da mera convolação de uma obrigação

genérica em obrigação específica. Na segunda situação prevê-

se a concentração da obrigação antes do cumprimento

quando o género se extinguir a ponto de restar apenas uma

das coisas nele compreendidas. Nesta situação, a obrigação

genérica transforma-se em específica por facto da natureza: é

a própria natureza das coisas que determina que a obrigação

mais não possa ser genérica, pois, a partir do momento em

que só resta uma das coisas compreendidas no género, a

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obrigação torna-se, naturalmente, determinada. A terceira

situação que a lei prevê como exceção à concentração da

obrigação no momento do cumprimento da mesma é a mora

do credor. Contudo, não nos parece que seja verdadeiramente

uma situação de concentração da obrigação antes do

cumprimento. Se o devedor entretanto, e após a mora, optar

por cumprir a obrigação com outras coisas do mesmo género,

mas diferentes daquelas com que se dispôs inicialmente a

cumprir, pode fazê-lo, e o credor não tem o direito de negar

o cumprimento. Assim, ao referir a situação de mora como

exceção à concentração da obrigação no momento do

cumprimento, o que o artigo 541.º CC vem determinar é, na

verdade, a extensão do regime do artigo 815.º CC à situação

de mora por, sem motivo justificado, não aceitar a prestação

que lhe é oferecida nos termos legais ou não praticar os atos

necessários ao cumprimento dessa obrigação (artigo 813.º CC),

então, transfere-se para si o risco do preço. Ou seja, como não

houve concentração da obrigação por efeito da mora do

credor, a propriedade não se transferiu verdadeiramente, e,

por isso, não se transferiu o risco da coisa, tendo-se, contudo,

transferido o risco do preço. Destarte, se, após a mora do

credor, as coisas com que o devedor se dispôs a cumprir

sofrerem uma deterioração ou se perderem, por causa não

imputável a dolo do vendedor, o comprador terá, ainda assim,

de pagar o preço das mesmas. A última situação que a lei

menciona como geradora da concentração da obrigação antes

do cumprimento é a prevista no artigo 797.º CC, que será,

mais à frente, objeto de análise detalhada. Contudo, a previsão

deste artigo não encerra, também, uma exceção à

concentração da obrigação no momento do cumprimento,

pois nele prevêem-se situações em que o cumprimento da

obrigação se dá, precisamente, com a entrega ao

transportador ou expedidor da coisa ou à pessoa indicada

para a execução do envio. É esse o lugar do cumprimento

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referido na norma. Assim, neste caso, a concentração da

obrigação ocorre, precisamente, com o cumprimento.

Podemos, pois, para já, concluir que, na venda de coisas

genéricas, a transferência da propriedade se verifica com a

concentração da obrigação sendo que esta ocorre, regra geral,

com o cumprimento da obrigação; só assim não é, de acordo

com o que expusemos acima, nos casos de extinção do género

ao ponto de restar apenas o quantitativo com que o devedor

se obrigava a cumprir. Nesse momento, ainda que não tenha

havido cumprimento, a obrigação genérica concentra-se, pois

a coisa passa a ser determinada. Mas, a situação regra é a de

que a obrigação genérica se concentra com o cumprimento.

Sendo assim, o direito transfere-se, também, em regra, com o

cumprimento da obrigação. Logo, e aplicando o artigo 796.º,

n.º1 Cc, podemos referir que nas obrigações genéricas, o risco

– tanto o risco do preço como o risco da coisa – se transfere,

em regra, com o cumprimento da obrigação. Assim, podemos

concluir o seguinte: sendo as vendas marítimas,

maioritariamente, vendas de coisas genéricas, então – e caso

se aplique o Código Civil, por as partes não terem, elas

próprias, regulado a matéria do risco –, o risco transferir-se-á

do vendedor para o comprador, em regra, no momento em

que se dá o cumprimento da obrigação, pois só nesse

momento ocorre a sua concentração – exceto, como já

referimos, nos casos em que o género se extinga ao ponto de

restar apenas uma das coisas nele compreendidas, ou então

nos casos de mora do credor ou de acordo das partes (artigo

541.º CC), casos em que o risco de transfere antes do

cumprimento – e só aquando desta se dá a transferência do

direito, sendo que foi esse o momento designado pelo

legislador para determinar a transferência do risco (artigo

796.º, n.º1 CC). Nas obrigações indeterminadas que não sejam

genéricas a transferência de propriedade e, portanto, do risco,

ocorre, nos termos do artigo 408.º, n.º2 CC, quando a coisa

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indeterminada for determinada com conhecimento de ambas

as partes. Será o caso das obrigações alternativas, previstas no

artigo 543.º CC. Para as obrigações genéricas não será

necessário, como vimos, o conhecimento de ambas as partes.

Precisamente por isso, o artigo 408.º, n.º2 CC, exceciona do

regime da transferência da propriedade das coisas

indeterminadas a matéria das obrigações genéricas, referindo

«sem prejuízo do disposto em matéria de obrigações

genéricas».

iii. Compra e venda mercantil: como já referimos, as vendas

marítimas serão maioritariamente vendas comerciais. Importa,

portanto, proceder à verificação do regime da compra e venda

comercial, a fim de indagarmos a existência de alguma

especificidade em matéria de risco. A venda comercial vem

regulada nos artigos 463.º a 476.º CCom. É importante ter em

conta que, aquando da elaboração do Código Comercial, o

Código Civil em vigor era o de 1867. Assim, o regime da

compra e venda comercial foi gizado por referência ao regime

vigente para a compra e venda no Código Civil de Seabra.

Acontece, porém, que o Código Civil de 1966, nas normas

respeitantes ao contrato de compra e venda, veio estabelecer,

com generalidade, aquilo que já resultava de algumas normas,

relativas àquele contrato, no Código Comercial, retirando-lhes,

assim, importância. De qualquer forma, será importante

averiguar se das modalidades específicas que vêm

consagradas no Código Comercial podemos retirar

especificidades relativamente à transferência do risco. Para

tanto, temos de nos centrar num aspeto: saber se alguma das

modalidades da compra e venda comercial existe

especificidade relativamente ao regime da transferência da

propriedade, pois mesmo no campo do Direito Comercial é

aplicável o artigo 796.º, n.º1 CC (artigo 3.º CCom) e, portanto,

a transferência do risco verifica-se com a transferência da

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propriedade. É necessário averiguar, então, se nas várias

modalidades das vendas comerciais existem momentos de

transferência da propriedade diferentes daquele que se

estabelece no artigo 408.º, n.º1 CC. De facto, temos situações

de vendas comerciais em que a transferência da propriedade

ocorre depois da celebração do contrato. Refere o artigo 469.º

CCom que «as vendas feitas sobre amostra da fazenda, ou

determinando-se só uma qualidade conhecida ao comércio,

consideram-se sempre como feitas debaixo da condição de a

coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada».

A venda sobre amostra ou por designação de padrão acabou

por ser regulada pelo Código Civil, no artigo 925.º (venda

sujeita a prova). No nosso entender, a condição a que se refere

o artigo 469.º CCom é uma condição suspensiva, a menos que

as partes lhe dêem a natureza de resolutiva. Fazemos esta

interpretação com base na leitura do artigo 471.º CCom, que

dispõe que a condição referida no artigo 469.º CCom haver-

se-á por verificada e o contrato como perfeito se o comprador

examinar a coisa comprada no ato de entrega e não reclamar

contra a sua qualidade, ou, não a examinando, não reclamar

dentro de oito dias. Ora, se um contrato fica perfeito por

verificada uma condição é porque essa condição é suspensiva.

De resto, o artigo 925.º CC veio, também, estabelecer em

relação à venda sujeita a prova que, à partida, a condição é

suspensiva, a menos que as partes estabeleçam que é

resolutiva. Ora, o caráter suspensivo da condição tem efeitos

ao nível do regime da transferência da propriedade: quando

um negócio é sujeito a condição suspensiva, o mesmo só

produz os seus efeitos depois de verificada a referida condição

(artigo 270.º CC). Desta forma, a transferência da propriedade

– e isto partindo do princípio de que as coisas vendidas são

determinadas, pois se forem indeterminadas, como já

explicámos, a transferência da propriedade ocorre, de

qualquer modo, em momento posterior ao da celebração do

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contrato –, dar-se-á depois de verificada a condição, pois só

após a sua verificação é que o contrato de compra e venda

produz os seus efeitos. Assim sendo, nos casos de venda sobre

amostra ou por designação de padrão, o risco do preço

transfere-se, em regra, no momento em que se cumpre a

obrigação de entrega, tal como já tínhamos visto para as

obrigações genéricas. E isto porque é no momento do

cumprimento da obrigação de entrega que o comprador

procederá ao exame das coisas compradas e que, caso não

reclame contra a sua qualidade, a condição se considera

verificada e, consequentemente, a propriedade transferida.

Poderá, ainda assim, nas vendas sob amostra ou por

designação de padrão, a transferência do risco ocorrer em

momento posterior ao do cumprimento da obrigação de

entrega, se o comprador, apesar deste cumprimento, não

examinar as coisas. Neste caso só passados oito dias, se

verifica a condição e, assim, a transferência do risco (artigo

471.º CC). Vejamos agora as compras de coisas que não

estejam à vista nem possam designar-se por um padrão,

previstas no artigo 470.º CCom. Tais compras consideram-se

sempre como feitas debaixo da condição de o comprador

poder distratar o contrato, caso, examinando-as, não lhe

convenham. Este regime foi corroborado pelo Código Civil, no

artigo 924.º (segunda modalidade de venda a contento).

Entendemos que, neste caso, e face à redação do artigo 924.º,

não existe qualquer condição, quer suspensiva, quer resolutiva.

Temos, antes, um contrato eficaz logo que celebrado, mas nos

termos do qual o comprador fica com o direito, caso a coisa

não lhe agrade, de proceder à sua resolução. Fica, portanto,

ao livre arbítrio do comprador a resolução do negócio. Neste

caso, não há, pois, nenhuma especialidade relativamente à

transferência do risco: se a coisa, que não esteja à vista e que

não possa designar-se por um padrão, for indeterminada,

então segue o regime da transferência da propriedade para

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as coisas indeterminadas, já analisado acima, passando o risco

no momento dessa transferência; se for determinado, o risco

transfere-se, em regra, com a celebração do contrato, pois

nesse momento se transfere o dinheiro. O Código Comercial

consagra, ainda, uma outra modalidade de venda comercial:

são as vendas por conta, peso ou medida, previstas no artigo

472.º CCom. Porém, e como refere Menezes Cordeiro, este

tipo de vendas segue o regime das obrigações genéricas,

previsto nos artigos 539.º a 542.º CC, pelo que nada há a

acrescentar ao que acima foi dito. São estas as especificidades

que encontramos na compra e venda mercantil. No entanto,

as várias modalidades de compra e venda nada de novo

trazem relativamente ao regime geral da transferência do risco,

conforme estabelecido no Código Civil: com ele se terão, pois,

de articular. À primeira vista, o artigo 796.º, n.º1, ao determinar

a transferência do risco coevamente com a transferência da

propriedade, parece consagrar um regime pouco consentâneo

com a lógica das transações comerciais. Não parece, prima

facie, um regime equitativo, pois, pareceria mais adequado

que se transferisse o risco do preço apenas quando as coisas

vendidas estivessem na posse do comprador, uma vez que só

a partir desse momento este as pode controlar. Acontece,

porem, que, por causa de regras de transferência do direito

de propriedade que se afastam do princípio da

consensualidade refletido no artigo 408.º, n.º1 CC –

nomeadamente as relativas às obrigações indeterminadas e às

modalidades de compra e venda mercantil –, associando essa

transferência, maxime, ao cumprimento da obrigação de

entrega, a regra do artigo 796.º, n.º1 CC acaba por se adaptar

ao Direito comercial e à compra e venda mercantil, pois o risco

transferir-se-á, mormente, como vimos, com a entrega. Há que

ressalvar, contudo, desde já, que a regra geral – que

articulámos acima com o regime das obrigações genéricas e

da compra e venda mercantil – da transferência do risco do

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preço com a transferência do direito de propriedade, sofre,

porém, exceções, importantíssimas, nos n.º2 e 3 do artigo

796.º e no artigo 797.º CC. Para além disso, como veremos, e

pela forma como interpretamos o artigo 797.º CC, da qual

daremos conta mais à frente, em todas as vendas com

expedição – e não somente nas vendas com expedição simples,

como literalmente resultaria da norma – o risco se transferirá,

não com a transmissão do direito, mas com o cumprimento

da obrigação de entrega, pelo que grande parte de

argumentação que temos expendido para demonstrar que,

apesar da regra do artigo 796.º, n.º1, o risco se transfere, o

mais da s vezes, com o cumprimento da obrigação de entrega,

acaba por perder alguma importância para as vendas

marítimas – e para todas as vendas com expedição –, na

medida em que para estas – quer as diretas, quer as indiretas

– aplicaremos o artigo 797.º, que prevê como momento da

transferência do risco aquele em que se cumpre a obrigação

de entrega da coisa.

iv. Venda sobre documentos: esta modalidade de venda é

regulada nos artigos 937.º e 938.º CC. A venda marítima

poderá ser uma venda sobre documentos, na medida em que

do contrato de transporte de mercadorias por mar decorre

que o transportador deve emitir um conhecimento de carga,

documento representativo da mercadoria, sendo que, caso tal

resulte do contrato de compra e venda, a entrega deste

documento pode substituir a entrega da própria mercadoria

(artigo 937.º CC). Cabe, portanto, ver que especialidade o

artigo 937.º, ao estabelecer o cumprimento da obrigação de

entrega com a entrega do título representativo da mercadoria,

poderá ter relativamente à transferência do risco, tendo em

conta a regra geral ínsita no artigo 796.º, n.º1 CC. Se a coisa

for determinada, a transferência do risco na venda sobre

documentos dar-se-á com a celebração do próprio contrato,

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pelo que o problema se põe apenas nas situações – que vimos

anteriormente – em que a transferência do risco ocorre com

o cumprimento da obrigação de entrega, em virtude de só

nesse momento se transmitir verdadeiramente a propriedade.

Ora, aplicando o artigo 937.º CC a todas as situações nas quais

o risco ocorre com o cumprimento da obrigação de entrega,

concluímos que a entrega dos documentos operará tal

transferência.

v. Venda de coisa em viagem: na secção relativa à venda sobre

documentos vem prevista, no artigo 938.º CC, a venda de coisa

em viagem. Esta verifica-se quando, no momento em que é

celebrado o contrato de compra e venda, a coisa vendida está

em trânsito. O artigo 938.º prevê, no que à transferência do

risco na venda de coisa em viagem diz respeito, um regime

especial relativamente à regra geral prevista no artigo 796.º,

n.º1 CC. Se a coisa em viagem for objeto de um seguro contra

os riscos do transporte, então o risco transfere-se no

momento em que a coisa for entregue ao transportador, ou

seja, num momento prévio o da própria transferência da

propriedade (artigo 938.º, n.º1, alínea a) CC). A razão de ser

desta regra prende-se com o facto de o vendedor ter

celebrado um contrato de seguro contra os riscos de

transporte. Assim, e como referem Pires de Lima e Antunes

Varela, na verdade, o que se vende é aquilo que foi entregue

ao transportador, ou a respetiva indemnização do seguro, se

a coisa se perdeu ou deteriorou, e não aquilo que existe, e tal

como existe, no momento do contrato. Como o comprador

adquire uma coisa que é objeto de um contrato de seguro de

transportador de coisas, não considerou o legislador razoável

fazer depender a transferência do risco da transferência da

propriedade, pois já antes dessa propriedade ter sido

transferida o objeto estava segurado.

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vi. Vendas marítimas sujeitas a termo ou condição:

debrucemo-nos, agora, sobre as situações em que a coisa

vendida fica em poder do alienante, em consequência de

termo constituído a seu favor. Como referimos, a propósito

do n.º1 do artigo 796.º, a regra de distribuição ou de

transmissão do risco é criticável, na medida em que não

parece muito adequado fazer correr sobre alguém um risco

relativamente a uma coisa que ainda não está em seu poder.

De facto, a solução mais justa e adequada – que vigora por

exemplo, no Direito Alemão – seria a de fazer coincidir a

transferência do risco com o momento em que se cumpre a

obrigação de entrega, pois, nesse momento, o comprador

passa a ter a coisa em seu poder, sendo, a partir daí, natural

exigir que ele tenha de pagar o preço, não obstante a coisa

sofrer uma deterioração ou se perder. Todavia, a verdade é

que, como já dissemos, conjugando o artigo 796.º, n.º1 CC

com as regras da venda comercial e das obrigações genéricas,

facilmente nos apercebermos de que, afinal, a eventual

injustiça do preceito é quase esvaziada por aquelas regras,

que fazem coincidir o momento da transferência da

propriedade com o momento em que se considera cumprida

a obrigação de entrega. Mas, para além disso, a hipótese de

a transferência do risco não se dar coevamente com a

celebração do contrato verifica-se, também, nos casos previsto

no artigo 796.º, n.º2 CC. Refere-nos a norma que se «a coisa

tiver continuado em pode do alienante em consequência de

termo constituído a seu favor, o risco só se transfere com o

vencimento do termo ou a entrega da coisa». Consideramos,

contudo, que está em causa no referido preceito uma situação

de responsabilidade civil e não de inversão do risco. E isto

pela situação de responsabilidade civil e não de inversão do

risco. E isto pela simples razão de que o n.º2 do artigo 807.º

CC atribui ao devedor a possibilidade de provar que o credor

teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido

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cumprida em tempo. Esta possibilidade harmoniza-se mal com

a lógica do risco. Quem tem o risco não deixa de o ter por

provar que os danos teriam ocorrido mesmo sem um qualquer

seu comportamento. Quem suporta um risco, suporta-o

sempre, independentemente de provar seja o que for

relativamente à origem do danos. A responsabilidade é, porém,

objetiva pois ela ocorre mesmo que a perda ou deterioração

dos bens não seja imputável ao devedor (artigo 807.º, n.º1, in

fine CC). O artigo 807.º CC baseia-se na presunção de que a

impossibilidade do cumprimento da obrigação devida a facto

não imputável a qualquer das partes se verificou por causa da

mora e é, precisamente, por se tratar de uma presunção que

vem, depois, o n.º2 referir que «fica, porém, salva ao devedor

a possibilidade de provar que o credor teria sofrido

igualmente os danos se a obrigação tivesse sido cumprida em

tempo». A mora do credor, prevista no artigo 815.º, tem, sim,

o efeito de inverter o risco. Neste caso, não vislumbramos

qualquer indício que nos aproxime de uma situação de

responsabilidade civil, diversamente do que ocorre no caso da

mora do devedor. Note-se, contudo, como, mais uma vez, se

encontra patente na lei a confusão entre risco e

responsabilidade civil. Refere o n.º1 do artigo 815.º CC que a

mora faz recair sobre o credor o risco de impossibilidade

superveniente da prestação que resulte de facto não

imputável a dolo do devedor. Parece, então, que se o facto

que provocar a impossibilidade superveniente da prestação

resultar de dolo do devedor, então o risco corre por sua conta.

Acontece que, caso o devedor seja causador doloso da

impossibilidade superveniente da prestação, então ele

incorrerá nos esquemas da responsabilidade civil.

b. O regime especial da transferência do risco nas vendas com

expedição:

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i. Venda com expedição simples e venda com expedição

qualificada: passemos agora à análise do artigo 797.º CC.

Refere esta norma que «quando se trate de coisa que, por

força da convenção, o alienante deva enviar para local

diferente do lugar do cumprimento, a transferência do risco

opera-se com a entrega ao transportador ou expedidor da

coisa ou à pessoa indicada para a execução do envio». Antes

de mais, torna-se imperioso averiguar a que tipo de situações

e aplica o preceito. Nos seus próprios termos, ele aplica-se

quando, por força do estipulado pelas partes, o alienante deva

enviar a coisa para local diferente do lugar do cumprimento.

A uma primeira leitura, a norma parece contraditória, pois se

alguém tem o dever de enviar uma coisa para um

determinado local, é porque esse é o lugar do cumprimento;

ter o dever de enviar uma coisa para local diferente do lugar

do cumprimento parece, pois, uma contradição nos próprios

termos. Mas não. O que esta em causa são situações em que

o vendedor se obriga apenas a entregar a coisa ao

transportador (cumprindo, então, a sua obrigação de entrega),

sendo que este, naturalmente, a irá enviar para local diferente

do lugar do cumprimento. O local de cumprimento é, portanto,

o local de expedição. O legislador referiu-se, portanto, no

artigo 797.º, às chamadas vendas com expedição simples.

Podemos definir venda com expedição simples como o

contrato de compra e venda, que surge funcionalmente ligado

a um contrato de transporte de mercadorias, pelo qual se fará

chegar a coisa até ao comprador, mas em que, nos termos

daquele contrato, é estipulado que a prestação da coisa se

realiza com a entrega ao transportador. Não é exclusivamente

necessário, para que se fale de venda com expedição simples,

que tenha de ser o vendedor a celebrar o contrato de

transporte; é necessário, sim, que o vendedor tenha de enviar

a mercadoria para um local diferente do lugar do

cumprimento, a pedido do comprador. A característica

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essencial da venda com expedição simples é, portanto, a de

que o lugar do cumprimento é diferente do lugar para onde

a mercadoria irá ser levada. Para compreender melhor a noção

de venda com expedição simples será importante distingui-la

da venda com expedição qualificada. Esta ocorre quando é

celebrado um contrato de compra e venda, os termos do qual

o vendedor apenas cumpre a sua obrigação de entrega, não

já com a simples entrega ao transportador, mas sim com a

entrega ao próprio comprador. Trata-se de uma venda que

implica a celebração de um contrato de transporte, sendo que

o vendedor tem o dever de proceder à entrega da mercadoria

no local de destino do transporte e não apenas no local onde

se dá o seu início. Ora, o artigo 797.º, literalmente, prevê

apenas as vendas com expedição simples, porquanto refere

que, por força da convenção, o alienante deva enviar a coisa

para local diferente do lugar do cumprimento; não é o que se

passa nas vendas com expedição qualificada: nestas, o local

para onde o alienante deve enviar é, precisamente, o lugar do

cumprimento. Podemos, em conclusão, dizer que nas vendas

marítimas simples ou indiretas o vendedor marítimo assume

apenas a obrigação de entregar as mercadorias ao

transportador no porto de embarque, e a esse tipo de vendas

se refere literalmente o artigo 797.º CC. Nas vendas marítimas

qualificadas ou diretas, o vendedor, nos termos do contrato,

obriga-se a proceder à entrega das mercadorias no porto de

destino.

ii. Dissociação da transferência do risco face à transferência

da propriedade: o artigo 797.º CC consagra uma regra

especial de transferência do risco relativamente àquela que

vem prevista no n.º1 do artigo 796.º. Enquanto nos termos

deste preceito, o risco se transfere com a transmissão da

propriedade, na regra contida no artigo 797.º «a transferência

do risco opera-se com a entrega ao transportador ou

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expedidor da coisa ou à pessoa indicada para a execução do

envio». Nesta norma consagra-se, portanto, como momento

da transferência do risco o do cumprimento da obrigação de

entrega. Não se compreende porque razão, ou com que

critério, no artigo 797.º, o legislador se afasta da regra que

estatui no artigo 796.º, n.º1. De facto, como resultará claro

mais abaixo, o artigo 797.º parece destoar no nosso sistema72.

Uma tentativa de com ele harmonizar a norma, poderia passar

por defender a sua aplicação apenas à alienação de coisas

indeterminadas, em que a transmissão do direito real se dá

com o cumprimento da obrigação de entrega e, portanto, com

a concentração, de uma obrigação genérica ou alternativa73.

Porém, não estamos certos de que o artigo 797.º se aplique

apenas às obrigações indeterminadas. Na verdade, não

dizendo o legislador expressamente que a norma se aplica às

obrigações genéricas e estando ela, sistematicamente, inserida

numa subsecção dedicada à impossibilidade do cumprimento

e mora não imputáveis ao devedor, em sede geral, parece-nos

que se trata de uma norma aplicável a todos os contratos

alienatórios. Consagrando-se, no artigo 797.º, o momento da

transferência do risco, como aquele em que se cumpre a

obrigação de entrega, essa transferência tanto pode ser

72 Esta afirmação não significa que tenhamos uma visão unitária do fenómeno de distribuição do risco contratual assente no brocardo res perit dominus. 73 São vários os autores que defendem a aplicação do artigo 797.º apenas às obrigações genéricas: Menezes Cordeiro, Paulo Mota Pinto ou Ribeiro de Faria. De facto, se atendermos que esta norma se aplica apenas às obrigações genéricas, então a sua razão de ser está explicada: tem com objetivo anular quaisquer dúvidas relativamente expedição simples. É que como nestas vendas a obrigação genérica nas vendas com a entrega ao transportador, a obrigação concentra-se nesse momento, e é importante referi-lo, pois nas vendas com expedição qualificada, em que o vendedor se obriga a entregar a coisa no destino, a concentração da obrigação só se dá quando a coisa é aí entregue. Assim para que dúvidas não houvesse, o legislador teria consagrado esta norma; seria, portanto, essa a sua explicação. Evita-se, assim, a incoerência sistemática com o artigo 796.º, n.º1. Quanto às obrigações alternativas, diz-se no sentido de que o artigo 797.º se aplica apenas às obrigações alternativas veja-se Jorge Morais Carvalho que refere, acertadamente, ser o artigo 797.º inútil relativamente às obrigações genéricas, pois que, como vimos acima, nestas o risco transferir-se-ia, de qualquer forma, com a entrega, ao passo que no caso das obrigações alternativas seria, ainda, necessário o conhecimento de ambas as partes (artigo 408.º, n.º2, ex vi artigo 796.º, n.º1), pelo que a utilidade do artigo 707.º seria a antecipação do momento da transferência do risco, nas obrigações alternativas, para o momento da entrega ao expedidor.

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anterior como posterior à transferência da propriedade. Se

estivermos perante uma coisa determinada, então, o risco

transferir-se-á, em princípio, em momento posterior ao da

transferência da propriedade, isto porque na venda de coisa

determinada a propriedade transfere-se com o contrato

(artigo 408.º, n.º1), enquanto o risco se irá transferir, apenas,

quando a mercadoria for entregue ao transportador. Ora, isso

sucederá, em regra, em momento posterior ao da celebração

do contrato. Mas pode, também, acontecer que, com a

aplicação do artigo 797.º, a transferência do risco seja anterior

à transferência da propriedade. Nas prestações

indeterminadas, que não sejam genéricas, a propriedade

transfere-se quando a coisa for determinada com

conhecimento de ambas as partes (artigo 48.º, n.º2). Ora,

nestes casos, quando a coisa é entregue ao transportador e

este não tem poderes para representar o comprador, não se

considera que a coisa tenha ficado determinada, pois não

houve, ainda, o conhecimento do comprador, que ocorrerá

posteriormente. Assim, neste caso de coisas indeterminadas,

que não genéricas, apesar de o risco se transferir com a

entrega da mercadoria ao transportador, a propriedade só se

transferirá depois, ou seja, quando a coisa for determinada

com conhecimento do comprador. Pode acontecer, também,

que a regra do artigo 797.º acabe por determinar que a

transferência do risco ocorra em momento idêntico ao que

resultaria da aplicação do artigo 796.º, n.º1. Verifica-se esta

situação, por exemplo, nas obrigações genéricas. Nestas, dá-

se a concentração da obrigação, nos termos do artigo 797.º,

ex vi do artigo 541.º, precisamente no momento em que se

dá a transferência da propriedade (artigos 408.º, n.º2, 541.º e

797.º). Mas, nesses casos, também o risco se transfere, nos

termos do artigo 797.º, quando a coisa é entregue ao

transportador. Ora, então, para as obrigações genéricas, o

artigo 797.º não vem acrescentar nada relativamente ao que

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resultaria do artigo 796.º, n.º1. Todavia, mantém-se a

interrogação: porque é que esta norma em operar um regime

especial relativamente ao artigo 796.º, n.º1? Tentamos indagar

nas origens do artigo 797.º o seu eventual fundamento.

iii. Análise crítica do artigo 797.º: o artigo 797.º tem como fonte

inspiradora o §447.º n.º1 BGB, o qual trata, precisamente, da

transferência do risco nas vendas com expedição simples.

Contextualizemos este último preceito. Ele insere-se num

sistema em que a propriedade se transfere, conforme já

referimos, através de um negócio abstrato pelo qual se opera

a tradição da coisa – sistema do modo – e em que a passagem

do risco se dá, naturalmente – e em coerência com o referido

sistema –, com a entrega da coisa venda ao comprador, tal

como resulta do §446.º BGB. O §447.º BGB, que trata

especificamente da passagem do risco no caso de venda com

expedição, está sistematicamente inserido imediatamente

após a norma sobre a passagem do risco em geral ( o §446.º).

Mas, na verdade, parece que ele não acrescenta nada

relativamente ao que já resultava do §446.º. Vejamos.

Determina o §447.º que na venda com expedição simples, isto

é, na venda em que o vendedor, a pedido do comprador, deva

enviar a coisa vendida para um local diferente do lugar do

cumprimento, o risco passa com a entrega ao transportador.

Porém, isso resultava já do próprio §446.º. E resultava já deste

artigo, pela decisiva razão de que, segundo a sua estatuição,

o risco passa para o comprador com o cumprimento da

obrigação de entrega. Ora, o local da obrigação de entrega é,

de acordo com a previsão do §447.º - e porque as partes o

determinaram, pois estabelece a norma alemã «se o vendedor,

a pedido do comprador» –, precisamente, o local da expedição,

nomeadamente o porto de embarque. Ora, se o §447.º BGB

não vem acrescentar nada relativamente à regra geral

resultante do §446.º, qual é, então, a sua utilidade? Não muita.

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209

Estamos, sem dúvida, perante uma redundância normativa,

que tem, a nosso ver, a intenção de tornar claro que, nas

vendas com expedição simples, apesar de a mercadoria ter de

ser transportada para determinado local, não é esse o local do

cumprimento e, naturalmente, não é aí que se dá a passagem

do risco. Assim, na nossa opinião, o legislador alemão apenas

consagrou o n.º1 do §447.º para que dúvidas Não houvessem

relativamente ao momento da passagem do risco nas vendas

com expedição simples. Podemos, portanto, concluir que o

§447.º BGB tem uma função essencialmente clarificadora do

momento da passagem do risco. Ele não vem operar qualquer

desvio à regra geral, que resulta do §446.º, mas antes tornar

claro que nas vendas com expedição simples o risco se

transfere quando as coisas são entregues ao transportador.

Deste modo, e aplicando o Direito alemão ara decidir da

transferência do risco nas vendas com expedição qualificada,

podemos concluir que essa transferência ocorre com a entrega

das coisas vendidas no porto de desembarque. Isto porque,

nestas vendas, como já explicámos, a obrigação de entrega se

cumpre no porto de desembarque (§446.º). Concluímos,

portanto, que apesar de pouco útil, o §47.º harmoniza-se

perfeitamente com o sistema de que faz parte, porque a regra,

nesse sistema, é a da transferência do risco com o

cumprimento da obrigação de entrega (£446), regra que o

referido preceito corrobora. Ora, o legislador português

importou, a nosso ver mal, esta solução do BGB. Se ela se

harmoniza – nos termos acima expostos – com o sistema a

que pertence, a verdade é que no sistema português, ela gera

diferenças de tratamento inadmissíveis. De facto, no nosso

sistema, esta solução está em desarmonia com a regra

constante do n.º1 do artigo 796.º, o que gera uma distorção

valorativa grave nas vendas de coisas determinadas, não

sujeitas aos n.º2 e 3 do artigo 796.º. Como bem refere Nuno

Aureliano,

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«não existe uma completa unidade valorativa

entre as soluções do n.º2 do artigo 796.º e do

artigo 797.º. De facto, se no n.º2 do artigo 796.º

o risco é suportado pelo alienante em virtude do

interesse na detenção da coisa posteriormente à

transmissão do direito real sobre ela, o suporte

pelo alienante do risco contratual até à entrega

ao transportador já pressupõe a preponderância

do interesse do adquirente, a satisfazer com a

entrega da coisa ao transportador, e não com a

produção do direito real pelo contrato».

Não há, de facto, nenhuma razão que justifique a diferença de

tratamento. Se numa situação o risco se transfere com o

cumprimento da obrigação de entrega, então, na outra, por

maioria de razão, o risco se deveria transferir, também, com a

prestação da coisa. Resulta, portanto, claro do exemplo dado

que a importação acrítica do §447.º BGB gerou uma distorção

sistemática. A norma constante do artigo 797.º CC, similar

àquela que consta do §447.º BGB, faria todo o sentido num

sistema que, como o alemão, determinasse como regra a

transferência do risco com o cumprimento da obrigação de

entrega. Porém, não é essa a regra do nosso sistema, pelo que

o artigo 797.º está em completa desarmonia com ele74.

iv. Aplicação extensiva do artigo 797.º à venda marítima com

expedição qualificada: vista a contradição valorativa a que o

regime consagrado no artigo 797.º dá origem, torna-se

necessário corrigi-lo por via de uma interpretação que o

coloque em harmonia com o sistema. Existem três vias

possíveis de o interpretar de molde a garantir a sua harmonia

74 E, repetimos, esta conclusão a que chegamos não radica numa visão unitária do fenómeno de distribuição do risco contratual assente no paradigma do res perit domino. Mesmo assumindo o fenómeno de distribuição do risco contratual como sujeito, não a um princípio básico regulador, mas a diferentes princípios, não se pode deixar de constatar a incompatibilidade, ainda que ela apenas se manifeste em casos contados, do artigo 796.º, n.º1, com o artigo 797.º

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211

com o sistema jurídico-civil. A primeira, que já foi referida,

consistiria em considerar que o artigo 797.º apenas se aplicaria

às obrigações indeterminadas. Interpretada assim, a norma

não traria quaisquer problemas de coerência sistemática, pois

na venda de coisa indeterminada o risco apenas se transfere,

como demonstrámos, após o cumprimento da obrigação de

entrega, pelo que o referido preceito estaria em harmonia com

essa regra. Rejeitamos, porém, essa tese, pelas razões já

apontadas. De facto, literalmente, nada na norma nos faz crer

que ela se aplique apenas às obrigações indeterminadas,

sendo que a sua inserção sistemática, numa subsecção

dedicada à impossibilidade do cumprimento – de toda e

qualquer obrigação, que não apenas das indeterminadas – e

mora não imputáveis ao devedor, depõe no sentido de a

mesma ser aplicável a todos os contratos alienatórios. Acresce

que, quanto às obrigações indeterminadas genéricas, a norma

é inútil, na medida em que vem corroborar aquilo que já

resulta da aplicação do artigo 796.º, n.º1, em conjunto com os

artigos 408.º, n.º2 e 541.º, todos do Código Civil. Uma

segunda via passaria por sustentar que o artigo 797.º apenas

se aplica às situações em que, de acordo com as disposições

primariamente competentes, a transferência do risco dependa

da entrega da coisa ao adquirente: o seu objetivo seria, então,

o de antecipar o momento da transferência do risco. Parece

ser esta a posição sustentada por Maria de Lurdes Pereira ao

defender que a aplicação do artigo 797.º apenas terá lugar no

caso de «dívidas de envio ou de remessa cujo regime do risco,

de acordo com a disposição primariamente competente,

dependeria da entrega da coisa ao adquirente», concluindo,

depois, pela aplicação da norma não só às obrigações

genéricas, como também aos casos que, a não existir o artigo

797.º, se subsumiria à previsão do artigo 796.º, n.º2. Assim, é

uma posição coerente e conciliadora do artigo 797.º com o

artigo 796.º, n.º1, evitando, por cortar o mal pela raiz,

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incoerências sistemáticas e axiológicas, como aquela que

demonstrámos acima. Ela presta-se, contudo, às mesmas

críticas que fizemos à primeira via de interpretação do artigo

797.º . Vejamos, então, a terceira via possível. Se na venda

marítima simples (venda com expedição simples), isto é,

naquela em que o vendedor se obriga a enviar a coisa ao

transportador, nos termos da letra do artigo 797.º, então, or

maioria de razão, na venda marítima qualificada (venda com

expedição qualificada), isto é, naquela em que o endedor se

obriga a entregar a coisa no local de destino, o risco não

deveria passar, nos termos do artigo 796.º, n.º1, com a

transferência da propriedade, mas antes com a entrega da

mercadoria ao comprador, nos mesmos termos em que passa

qnado a venda é de expedição simples. Parece-nos ser esta a

única solução adequada e sistematicamente coerente.

Propendemos, portanto, para a opinião de que as palavras do

artigo 797.º atraiçoaram o pensamento do legislador. Afigura-

se-nos que se quis incluir, no seu âmbito, todas as vendas que

postulassem transporte e, nomeadamente, as vendas

marítimas, quer simples, quer qualificadas. Para tal

entendimento recorremos, necessariamente, a uma

interpretação extensiva do artigo 797.º. Entendemos que a

restrição literal do artigo 797.º apenas a uma parcela das

vendas com expedição se deve, pura e simplesmente, ao facto

de a norma ter resultado, ao que parece, de uma tradução

literal do §447.º BGB. Sem prejuízo do exposto, recorde-se que,

na maior parte das vendas marítimas o risco se transfere com

o cumprimento da obrigação de entrega. É esse o regime das

obrigações genéricas, de algumas das modalidades que vimos

da venda mercantil e, ainda, dos casos subsumíveis aos n.º2 e

3 do artigo 796.º. Não será, por isso, necessária, em regra, a

interpretação extensiva do artigo 797.º para se obter uma

solução jurídica, nos termos da qual o risco na venda marítima

se transfira com o cumprimento da obrigação de entrega.

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Contudo, a interpretação que fazemos do artigo 797.º tem a

vantagem de diminuir a hipótese de soluções desastrosas.

7. A transferência do risco nos INCOTERMS: conforme já referimos, a análise

do regime da transferência do risco na venda marítima decorrente do Código

Civil, apesar de teoricamente interessante, principalmente para a boa

compreensão da problemática em jogo no presente estudo, assume pouca

relevância prática. Na grande maioria dos casos, a venda marítima é

acompanhada de cláusulas que preveem o regime da transferência do risco,

afastando, assim, as regras do Código Civil. Neste ponto, assumem particular

relevância os INCOTERMS. A venda marítima, como já tivemos oportunidade

de referir, tem subjacente um complexo articulado em que vários contratos

coexistem: reúne em si um contrato de transporte de mercadorias por mar,

um contrato de compra e venda, com frequência um contrato de seguro, e,

eventualmente, uma abertura de crédito documentário; sendo que todos os

regimes dos referidos contratos se relacionam e se interpretam. É, então,

precisamente para regular os diversos problemas, decorrentes da articulação

destas várias relações contratuais com o contrato de compra e venda, que

existem os INCOTERMS. Estes surgem, portanto, da necessidade de se

regulamentar de forma unitária estas operações – nomeadamente, a venda

marítima – que postulam a articulação de vários contratos, mas apenas

cingindo-se às relações entre comprador e vendedor. Como dissemos no

início do nosso estudo, um dos objetivos do mesmo é averiguar se, afinal, o

contrato de transporte de mercadorias por mar tem alguma influência no

regime da transferência do risco na venda marítima. Já tivemos oportunidade

– mesmo sem dar uma resposta conclusiva – de afirmar que essa influência

é meramente fática ou circunstancial e não jurídica. Ou seja, não existirá,

verdadeiramente, uma influencia do contrato de transporte, ao nível dos

efeitos jurídicos, no regime da transferência do risco na venda marítima. Por

outras palavras: não é das regras que brotam do contrato de transporte que

se vai decidir o momento da passagem do risco do vendedor para o

comprador. Porém, a verdade é que, a respeito da passagem do risco do

preço, quer as soluções consagradas pelo legislador, quer aquelas que estão

ínsitas nos INCOTERMS, quer, muitas vezes, as próprias cláusulas que as

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partes estipulam, são influenciadas pela existência fática de um contrato de

transporte. Quer dizer: o facto de haver um transporte, pelo qual se deslocará

a coisa vendida, do vendedor para o comprador, não é aleio a opções

legislativas como, por exemplo, a do artigo 797.º CC. Assim, a existência de

um transporte acaba, portanto, por influenciar mediatamente – através da

interferência nos comandos ius-positivos – as regras da transferência do risco

na compra e venda. Ora, os INCOTERMS são, precisamente, a maior evidência

de que o transporte de mercadorias exerceu e exerce a sua influência

circunstancial, nas regras que as próprias partes no contrato de compra e

venda, ao longo dos tempos, usaram e costumaram estipular: os INCOTERMS

são, essencialmente, uma compilação de usos e costumes comerciais. O

principal objetivo dos INCOTERMS é determinar dois aspetos fundamentais

das compras e vendas internacionais: por um lado, a parte que tem a

obrigação de providenciar pelo transporte das mercadorias vendidas; por

outro, o momento em que se dá a transferência do risco do preço do

vendedor para o comprador. Podemos, desde já, adiantar que o princípio

comum subjacente a todos os INCOTERMS, designadamente aos que se

referem especificamente à venda marítima, é o de que a passagem do risco

ocorre com o cumprimento da obrigação de entrega da mercadoria, tal

como se verifica no Direito alemão. O mesmo princípio, como afinal

acabámos por concluir, é refletido no Direito português, o que diz respeito

aos contratos de compra e venda com expedição – quer simples, quer

qualificada. A transferência do risco nos INCOTERMS é, pois, conforme

veremos, completamente alheia à transferência do direito de propriedade

sobre as coisas vendidas. Os INCOTERMS encontram-se estruturados por

ordem crescente das obrigações contratuais que impendem sobre o

vendedor. Quer dizer, desde o grupo E até ao D, as obrigações do vendedor

e o momento até ao qual ele suporta risco do preço agudizam-se. Iremos

analisar não só os termos FAS (Free Aloside Ship), FOB (Free On Board) –

refletores das vendas com expedição simples –, DES (Delivery Ex Ship) e DEQ

(Delivery Ex Quay) – refletores das vendas com expedição qualificada –,

exclusivamente marítimo, poderá ser aposto numa venda que, por implicar,

entre outros, o transporte marítimo, seja marítima. Analisaremos, também,

os termos CFR (Cost And Freight) e CIF (Cost Insurance Freight) que, apesar

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de estruturalmente, no que à transferência do risco diz respeito, serem

próximos do termo FOB, assumem, na verdade, uma diferença relevante,

conforme veremos.

a. Grupo E (EXW): o grupo E é aquele que encerra uma menor

intensidade obrigacional para o vendedor. A inicial E é-o da palavra

ex, que significa partidas. Neste termo, o vendedor cumpre a sua

obrigação de entrega logo à partida, no local da produção ou fábrica,

sendo esse o momento em que o risco se transfere. É o termo que

contém a obrigação mínima para o vendedor. O grupo E tem apenas

um INCOTERM, o EXW, abreviatura da expressão ex works. Segundo

a previsão A4 deste INCOTERM, o vendedor cumpre a sua obrigação

de entrega quando, na data ou dentro do prazo acordados, colocar

a mercadoria à disposição do comprador, no local mencionado para

a entrega, sem carregamento em qualquer veículo transportador.

Grosso modo, a mercadoria será entregue na fábrica (nas instalações

doo vendedor), sendo o transporte alheio ao vendedor. É também

este, precisamente, o momento em que se dá a transferência do risco

do preço do vendedor para o comprador, pois como é referido em

B5, «o comprador suportará todos os riscos de perda ou avaria dos

bens», a partir do momento do cumprimento da obrigação de

entrega, nos termos de A4. Como podemos ver, o momento em que

ocorre a transferência do risco coincide, pois, com aquele em que se

considera cumprida a obrigação de entrega do vendedor. O termo

EXW prevê que o risco passa para o comprador no momento em que

os bens tenham sido colocados à disposição do comprador nas

instalações do vendedor. Acontece, porém, que há situações em que

se pode tornar difícil apurar qual o momento em que se considera

cumprida a obrigação de entrega, decisiva para definir o momento

da passagem do risco. Suponhamos uma hipótese em que o

comprador e o vendedor, numa venda marítima, tenham aposto o

termo EXW, acordando que a mercadoria seria colocada à disposição

do comprador no estabelecimento do vendedor durante um

determinado prazo, por exemplo, entre o dia 1 e o dia 5 de

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determinado mês. O vendedor, no dia 1, coloca a mercadoria no seu

estabelecimento à disposição do comprador, avisando-o desse facto.

Em que existência ou não do direito de o comprador determinar o

momento, dentro do período estipulado – do dia 1 ao dia 5 – para o

levantamento da mercadoria (previsão B7). Se esse direito existir,

então o risco só se transfere no dia 1 se o comprador tiver notificado

o vendedor de que esse seria o dia para a entrega. Se não o fez, o

risco não se transfere no referido dia, sendo que o comprador teria

até ao dia 5 para fazer a notificação do vendedor. Se não a fizer até

ao referido dia, entra em mora (do credor) e o risco transfere-se,

então, a partir desse momento, desde que, nesse caso, a mercadoria

esteja determinada (B5, 2.ª parte). Se o direito não existir, então o

risco transfere-se no momento em que, colocando o vendedor a

mercadoria à disposição do comprador, dentro do período estipulado,

o avisa desse facto, de acordo com A7. Contudo, se o vendedor não

avisar o comprador, de acordo com A7, que colocou a mercadoria à

sua disposição, o risco não se transfere, pois nesse caso não se pode

considerar que o devedor cumpriu integralmente a sua obrigação de

entrega: o aviso ao comprador, da colocação da mercadoria à sua

disposição, faz, naturalmente, parte da sua obrigação de entrega.

Assim podemos concluir que a existência do direito de determinar o

momento, dentro do período estipulado e/ou local exatos para o

levantamento da mercadoria, influencia decisivamente o momento da

transferência do risco. Segundo este termo, o carregamento e

transporte da mercadoria são, como já vimos, por conta e risco do

comprador. Podem, porém, as partes acrescentar-lhes a estipulação

«loaded upon departing vehicle», que significa, traduzido à letra,

carregado em veículo a sair. Neste caso, o carregamento do veículo

de recolha será feito por conta e risco do vendedor.

b. Grupo F (FCA, FAS, FOB): passemos agora à analise do grupo F, de

free. Neste grupo o vendedor terá a obrigação de entregar as

mercadorias ao transportador e não apenas, tal como no grupo E, de

as colocar à disposição do comprador nas suas instalações.

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i. FAS: comecemos, então, por analisar o termo FAS. Este termo

abrevia a expressão Free Alongside Ship ou livre ao longo do

navio. Estamos perante as chamadas vendas indiretas ou com

expedição simples ou ainda, contratos de embarque (shipment

contracts) ou de partida. Para começar, e em termos simples,

podemos dizer que, segundo a cláusula FAS, o vendedor

assumirá o risco do transporte até ao porto de embarque de

mercadorias, designadamente até à sua colocação ao lado do

navio. Refere a sua previsão A5 que «o vendedor deve, tendo

em conta o disposto em B5, suportar todo o risco de perdas

ou avarias da mercadoria até ao momento em que esta tiver

sido entregue, de acordo com o previsto em A5»,

mencionando esta última – que disciplina a obrigação de

entrega –, que «o vendedor deve colocar a mercadoria ao

longo do navio e no lugar de carga mencionado pelo

comprador, no porto de embarque designado, na data ou

dentro do prazo estipulados e de acordo com os usos desse

porto». Podemos, pois, concluir que, no termo FAS, o risco se

transfere para o comprador quando o vendedor entrega a

mercadoria ao longo do navio, na zona de carga do porto

mencionado pelo comprador e na data ou dentro do prazo

estipulados nos termos do contrato de compra e venda.

Temos, porém, para completar a análise, de atentar em B5,

previsão que estabelece a regra da transferência do risco,

afora, do prisma do comprador. Na sua primeira parte, em

sintonia com A5, refere que o risco se transfere para o

comprador quando a mercadoria for entregue de acordo com

o previsto em A4. Porém, a 2.ª parte da previsão B5 determina

a transferência do risco, independentemente do cumprimento

da obrigação de entrega, em quatro situações:

1. Quando na data acordada ou na data em que expire o

prazo estipulado para a entrega, a mercadoria não

tenha ainda sido entregue porque o comprador não

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notificou o vendedor com a antecedência suficiente do

nome do navio, do lugar de carga ou do prazo de

entrega exigido, conforme previsto em B7;

2. Na hipótese do navio ter chegado a tempo;

3. Na hipótese de o navio ter tido possibilidade de

receber a mercadoria;

4. Na hipótese de o navio ter encerrado ao carregamento

mais cedo do que a data notificada, em conformidade

com B7.

Contudo, para que o risco se transfira, nestas quatro hipóteses,

é necessário que, como refere a parte final de B5, «a

mercadoria esteja devidamente afetada ao contrato, ou seja,

claramente separada ou identificada de qualquer outra forma

como sendo a mercadoria objeto do contrato». Está em causa

a necessidade de determinação da mercadoria para que se

possa proceder à transferência do risco, pois se ela não está

determinada, significaria isso que se transferiria o risco do

preço sem se saber, afinal, com que mercadoria contar o

comprador, o que seria inadmissível. Consideremos, ainda,

uma situação peculiar. Pode acontecer que o porto, pelas suas

próprias condições e/ou por causa das dimensões do navio,

ou até por causa do tipo de mercadoria a ser transportada,

não permita que a mesma seja carregada diretamente do cais

para o navio, sendo necessário recorrer a pequenas

embarcações que assegurem o carregamento das mercadorias

entre o cais e o navio transportador. Refere Susana Maltez que,

nesses casos, «a obrigação de entrega só se considera

cumprida quando a mercadoria estiver efetivamente colocada

em embarcações, ao longo do navio», sendo que «o risco do

transporte por barcaças onera, deste modo, o vendedor, na

medida em que este transporte é anterior ao cumprimento da

obrigação de entregar». Lima Pinheiro parece defender a

mesma ideia ao referir que «quando o navio tem de carregar

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num fundeadouro, o vendedor tem de assegurar a colocação

da mercadoria no fundeadouro, em barcaças, a menos que as

partes estipulem que a entrega deve ser feita free on lighter,

caso em que o vendedor cumpre a obrigação de entrega com

a transposição da amurada da barcaça». Esta conclusão não

resulta, contudo, indubitavelmente do termo FAS. Somos da

opinião de que, se as partes apuserem este termo, e nada

mais acrescentarem, não é crucial defender que o risco se

transfere com a colocação da mercadoria nas embarcações

auxiliares. Isso atentaria contra a segurança jurídica. Na

verdade, o significado do termo FAS, no que à transferência

do risco diz respeito, na sua pureza, é bastante popular entre

os agentes do comércio internacional e não parece que as

partes lhe deem outro sentido que não o da transferência do

risco com a colocação da mercadoria no cais ao longo do

navio.. Defender que o risco, nestes casos, se transferiria com

a transposição da apurada das barcaças, seria introduzir o

critério do ship’s rail – do cais até às barcaças – tão

característico da venda FOB, numa venda FAS. Não podemos,

pois, concordar. Só assim não será, se as partes acordarem

claramente que o lugar de carga é efetivamente as barcaças,

operando-se, nesse caso, uma modelação no termo FAS.

Podemos, portanto, concluir que no termo Free Alongside

Ship o risco do preço se transfere com a colocação da

mercadoria ao longo do navio, no lugar de carga mencionado

pelo comprador e na data ou dentro do prazo estipulados

para o efeito. O risco transfere-se, ainda, independentemente

da entrega, nas situações referidas na previsão B5, que

correspondem a situações de mora do credor, por si, ou por

intermédio do seu auxiliar ou representante – o transportador.

ii. FOB: passemos, agora, à análise do termo FOB (Free On Board,

que significa Franco a Bordo). Lê-se na previsão A5 do termo

FOB o seguinte: «o vendedor deve, sem prejuízo do disposto

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em B5, suportar todo o risco de perdas ou avarias da

mercadoria até ao momento em que esta tiver transposto a

amurada do navio do porto de embarque designado». O

ponto crítico da transferência do risco em FOB é, portanto, o

designado ship’s rail. Este critério tem sido objeto de algumas

críticas. Contra a sua invocada artificialidade, proferiu Patrick

Arthur Devlin as seguintes palavras: «the ship’s rail has lost

much of it’s nineteeth centure significance. Oly the most

enthusiastic lawyer could watch with satisfaction the spectacle

of liabilities shifting uneasily as the cargo sways at the end of

a derrick across a notional perpendicular projecting from the

ship’s rail». Contra a sua alegada inadequação refere Lima

Pinheiro que «pareceria mais adequado que a passagem do

risco na venda FOB se desse no momento em que a

mercadoria é depositada em seguranca a bordo do navio, uma

vez que incumbe ao vendedor realizar a operação de

carregamento da mercadoria». A crítica aos INCOTERMS não

terá, contudo, tanta pertinência como tem uma crítica ao

Direito positivo. Esta é fundamental, na medida em que o

Direito positivo, sem prejuízo do funcionamento da

democracia, é, na prática, imposto pelo poder político aos

cidadãos, pelo que é importante que a doutrina aponte o torto

do Direito. Os INCOTERMS não. Eles sã uma mera sugestão

da CCI, à qual os sujeitos de comércio internacional podem

aderir ou não, pelo que a haver alfo a criticar seria a decisão

das partes que, livremente, para os INCOTERMS remeteram.

Contudo, não nos esqueçamos, que, no momento da

contratação – quando as partes escolhem um determinado

termo –, imaginam, normalmente, que tudo irá correr bem.

Não refletirão, porventura, na bondade ou não da precisão

artificial (o ship’s rail) estatuída nas previsões A5 e B5 de FOB.

Não lhes ocorrerá, quando porventura escolham o termo FOB,

que a mercadoria, no momento em que está a ser içada, caia

precisamente entre o cais e o navio, destruindo-se em

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pedaços no convés e caindo em parte na água, não se

sabendo muito bem se já tinha passado a linha imaginária (no

seguimento da amurada do navio) ou não. O que queremos

dizer é que a cláusula FOB poderá, no seu rigoroso

funcionamento, vir a atraiçoar as expectativas que uma das

partes, máxime o comprador, depositava no seu

funcionamento. Para além disso, recordemos que a liberdade

contratual é, por vezes, mais formal, do que substancial,

designadamente quanto o recurso aos INCOTERMS constitua

a típica rigidez das cláusulas contratuais gerais. Quer dizer,

portanto, que o facto de os INCOTERMS não serem Direito

positivo, mas simples sugestões da CCI, não significa que os

mesmos fiquem imunes às críticas da doutrina, pois as partes

quando a eles recorrem – leigas, em princípio – esperam

soluções criteriosas e seguras. Será a solução da transferência

do risco no termo FOB tal? Tomemos, pois, posição

relativamente à bondade do critério do ship’s rail. Na verdade,

encontramos aspetos negativos e positivos no referido critério.

Vejamos os aspetos negativos. Em primeiro lugar, diga-se que

o significado das iniciais FOB, Free on Board, sugere a ideia

de que, efetivamente, o vendedor está livre quando a

mercadoria está, de facto, a bordo e não quando atravessa

uma linha imaginária. Em segundo lugar, baseando-se os

INCOTERMS no princípio segundo o qual o risco se transfere

com o cumprimento da obrigação de entrega, o termo FOB

(e, assim, também os CFR e CIF) acaba por destoar, na medida

em que a previsão A4 não determina como momento do

cumprimento da obrigação de entrega a passagem de uma

linha imaginária. Em terceiro lugar, o termo em análise pode

dar azo a soluções um pouco formalistas (artificiais). Imagine-

se uma situação em que a grua existente no porto de

embarque ice a mercadoria, fazendo-a transpor o ship’s rail,

mas que, por qualquer razão, antes de descer a mercadoria

para o convés, gira de volta para a terra, despenhando-se,

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entretanto, a mercadoria no cais. Neste caso, como a

mercadoria já tinha passado a amurada do navio, o comprador

tinha de pagar o preço, na mesma situação, a mercadoria já

estava içada e que a grua gira de volta para a terra exatamente

10 cm antes de a mercadoria passa a linha imaginária da

amurada do navio. Ora, nesse caso, é o vendedor que fica sem

o preço, pois o seu risco não tinha ainda passado para o

comprador. A decisão altera-se por causa de uma mera

deslocação – da mercadoria – em 10 cm. Parece, pois, que o

critério peca pela sua artificialidade. Vejamos agora um –

decisivo – aspeto positivo. É ele o equilíbrio dos interesses em

jogo. De facto, a solução milimétrica tem na sua base a

ponderação dos interesses contrapostos do comprador e do

vendedor. Na verdade, a regra segundo a qual risco se

transfere quando a mercadoria transpõe a amurada do navio

não deixa de ser uma solução que equilibra perfeitamente os

interesses contrapostos. E, na verdade, uma solução

salomónica a prevista pelo termo FOB, na media em que

procura distribuir as vantagens e desvantagens da situação de

forma exatamente igual pelas partes implicadas. No fundo,

quando se estabelece que o rico se transfere quando a

mercadoria transpõe a amurada do navio, está-se a dispor que

não se transfere logo quando está no porto, nem apenas

quando está no navio; ou seja, a transferência ocorre num

meio-termo criterioso e salomónico, tendo em conta a tensão

entre os interesses contrapostos. Acresce que se a

transferência ocorresse só quando a mercadoria já estivesse

no navio em segurança, estar-se-ia a onerar o vendedor com

um risco relativamente a operações que ele não controla,

quais sejam a estiva e arruação da mercadoria do navio, as

quais são da responsabilidade do capitão – segundo o Direito

interno, artigo 6.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 384/99, 23

setembro e segundo a CB 1924 no seu artigo 3.º, n.º2 –, o

qual, na venda FOB atuará como comissário do comprador,

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pois é a este que incumbe celebrar o contrato de transporte

(B3, a) ). Ainda assim, alguma doutrina defende que a

passagem do risco na cláusula FOB se dá apenas no final do

processo de carga de mercadoria, quando ela se encontra já

a bordo do navio, isto é, quando se considera cumprida a

obrigação de entrega, nos termos da previsão A4. Não

podemos, contudo, acompanhar esta doutrina. Como

demonstrámos, o momento da passagem do risco no termo

FOB é criticável. Mas isso não legitima uma interpretação

completamente alheia àquilo que consta do texto da previsão

A5. Concorde-se ou não com a sugestão da CCI, ela é

inequívoca. Para além disso, como já dissemos, ela não é

imposta às partes. Verifica-se, também, no termo FOB a

hipótese de o risco se transferir ainda que a mercadoria não

tenha passado a amurada do navio. Esta hipótese vem prevista

na 2.ª parte da previsão B5. Estão em causa, mais uma vez,

situações de mora do credor. As situações são idênticas

àquelas que vimos a propósito da cláusulas FAS, pelo que

para lá remetemos. Com enorme importância no âmbito da

análise da cláusula FOB, se afigura a sua variante FOB and

stowed. Essa importância reside, precisamente, no facto de

haver divergência doutrinária relativamente a uma eventual

diferença, face ao termo FOB simples, no que diz respeito ao

momento da transferência do risco. Doutrina há que entende

postular a mesma um diferente momento de transferência do

risco quando comparada com o termo FOB simples,

designadamente que essa transferência ocorreria após a estiva

da mercadoria; outra, por sua vez, entende que ela não traz

qualquer alteração, no que diz respeito ao momento da

passagem do risco, relativamente ao simples termo FOB.

Entendemos que, havendo dúvida, e sendo o momento da

transferência do risco um aspeto fundamental na venda

marítima, devemos, por razões de segurança jurídica, mesmo

na cláusula FOB and stowed, seguir a previsão A5. O risco

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transfere-se, portanto, logo que a mercadoria passe a

amurada do navio e não depois, após a estiva. Defendemos,

portanto, que a cláusula FOB and stowed acrescenta à simples

cláusula FOB apenas a obrigação de o vendedor pagar as

despesas inerentes à estiva, alterando, portanto, a repartição

dos custos constante da previsão A6. Contudo, não pomos de

parte a hipótese de, num determinado caso concreto, tal

cláusula assumir outro significado que o risco só se transfere

após a estiva, desde que isso se possa retirar de elementos

que demonstrem claramente ser essa vontade das partes.

c. Grupo C (CPT, CIP, CFR, CIF): vejamos, agora, os termos do grupo C.

A análise deste grupo reveste-se de alguma importância, na medida

em que, apesar de muito similar ao termo FOB, apresenta, na verdade,

uma especialidade, relativamente a este, no que diz respeito à

transferência do risco, especialidade essa que está relacionada, como

veremos, precisamente com o facto de nos termos CFR e CIF, ser o

vendedor – e não o comprador, como em FOB – o responsável pela

celebração do contrato de transporte das mercadorias por mar. O

grupo C diz respeito a cost ou carriage, ou seja, custo. Os termos

deste grupo caracterizam-se, pois, pelo facto de o custo do transporte

principal ser assumido pelo vendedor, que, no entanto, não assumirá

os riscos advenientes desse transporte. No grupo C, a obrigação de

entrega desdobra-se em duas fases. Na verdade, segundo o disposto

em A5, o vendedor deve entregar a mercadoria a bordo do navio (tal

como em FAS e em FOB). Porém, a possa da mercadoria só é

transmitida com a entrega do conhecimento de carga. O grupo C

contém quatro INCOTERMS, sendo que apenas dois deles, o CFR e o

CIF, são específicos do transporte marítimo e fluvial. CFR significa

Cost and Freight (custo e frete). Nos termos desta cláusula, o

vendedor deve pagar os custos e o frete necessários ao

encaminhamento da mercadoria até ao porto de destino designado.

CIF significa Cost, Insurance and Freight, sendo que a única diferença,

relativamente ao termo CFR, é que neste o vendedor pagará, também,

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o seguro. Quanto à transferência do risco, A5 dispõe, tal como no

termo FOB, que o vendedor deve suportar todo o risco de perdas ou

avarias da mercadoria até ao momento em que esta tiver transporto

a amurada do navio, no porto de embarque. Quanto à regra geral,

não existe, portanto, qualquer diferença entre o termo FOB e os

termos CFR e CIF. Há, porém, um aspeto que distingue os termos do

grupo C do termo FOB, quanto à transferência do risco. Recordemos

aquilo que dissemos acima para os termos FOB e FAS: neles existe a

possibilidade de a transferência do risco se dar independentemente

do cumprimento, nos casos previsto na segunda parte de B5. Porém,

as três últimas situações previstas na 2.ª parte de B5 de FOB e FAS,

que dão origem à transferência do risco independentemente do

cumprimento estão, todas elas, relacionadas com o facto de o

transporte ser, aí, da responsabilidade do comprador. Não fazem,

porém, qualquer sentido nos casos em que a celebração do contrato

de transporte cabe ao vendedor. Assim, situações como o atraso do

navio ou a sua incapacidade para receber a mercadoria, não

prejudicam agora o comprador, pois o transporte já não é por sua

conta. Por esta razão, a 2.ª parte da previsão B5, tanto em CFR como

em CIF, tem uma diferente configuração, relativamente àquela que

apresenta nos termos FAS e FOB. Destarte, a transferência do risco,

em CFR e CIF, independentemente do cumprimento, dar-se-á apenas

numa situação, que passamos a expor. Em B7 dos termos CFR e CIF

refere-se que «o comprador deve, sempre que tenha o direito de

determinar a data do embarque da mercadoria e/ou o porto de

destino, notificar o vendedor dos mesmos com a antecedência

suficiente». Apesar de o transporte ser da responsabilidade do

vendedor, B7, prevê, ainda assim, a possibilidade de, nos termos do

contrato de compra e venda, se ter estipulado que seria o comprador

a informar o vendedor da data do embarque e, eventualmente, do

porto de destino. Ora, se o comprador não fizer esse aviso com a

antecedência suficiente entre em mora do credor. Por isso, B5, na sua

2.ª parte, vem referir que se faltar a notificação referida em B7, então,

os riscos transferem-se a partir da data acordada ou da data em que

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expire o prazo estipulado para o embarque, desde que, mais uma vez,

a mercadoria esteja devidamente afetada ao contrato, ou seja,

claramente separada ou identificada de qualquer outra forma como

sendo a mercadoria objeto do contrato. Assim, as outras três

situações que se verificavam na cláusula FOB e na cláusula FAS, quais

sejam as de o navio indicado não ter chegado a tempo, não ter tido

a possibilidade de receber a mercadoria e ter encerrado ao

carregamento mais cedo do que a data notificada, não são, no grupo

C, motivo de antecipação da transferência do risco, pela simples mas

decisiva razão de não ser comprador responsável pelo transporte,

pelo que não deve, também, ver o risco transferir-se antecipadamente

para si por causa de razões às quais é alheio, relacionadas com o

transporte. Os termos CFR e CIF são, por vezes, seguidos da palavra

afloat, que significa embarcado. Acontece, habitualmente, quando a

mercadoria vendida já está, no momento da venda, em trânsito.

Deveremos continuar, nestes casos, a assumir como o momento da

passagem do risco, aquele em que a mercadoria passa a amurada do

navio? É que se o fizermos, tal significa a aceitação de uma passagem

do risco retroativa relativamente ao momento da celebração do

contrato. Defendemos, já, acima que, em nome da segurança jurídica,

e, máxime, porque não se trata de Direito positivo, não se devem

fazer interpretações corretivas dos INCOTERMS. Para além de que,

quanto ao aspeto do risco são os mesmos bem claros. Assim, na falta

de elementos que permitam concluir por uma vontade diferente, nos

termos CFR e CIF, na variante afloat, a passagem do risco dar-se-á

retroativamente, ou seja, com o ship’s rail. Contudo, e naturalmente,

o risco não se transferirá se, no momento da conclusão do contrato

e compra e venda, o vendedor sabia ou devia saber que as

mercadorias se tinham perdido ou avariado, não tendo disso

informado o comprador.

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Capítulo IV – Interferência – ou mera influência? – do

contrato de transporte de mercadorias por mar na

transferência do risco na venda marítima. A responsabilidade

do transportador marítimo

8. Mera influência do contrato de transporte de mercadorias por mar

na transferência do risco da venda marítima: conforme referimos

várias vezes ao longo do nosso estudo, um dos seus desafios consiste

na averiguação da existência de alguma intromissão do contrato de

transporte de mercadoria por mar nas regras sobre a transferência do

risco na venda marítima, ou seja, o apuramento da eventual

interferência do contrato de transporte de transporte de mercadorias

por mar na lógica – oriunda do regime jurídico do contrato de compra

e venda – da transferência do risco na venda marítima; por outras

palavras, pretende-se perceber se a venda marítima, por causa de

implicar um transporte de mercadorias por mar para a sua execução,

sofre alguma modificação relativamente às regras gerais da

transferência do risco para a vulgar compra e venda. A resposta foi já,

em alguns lugares deste estudo, antecipadamente dada. Não parece,

de facto, haver uma interferência do contrato de transporte de

mercadorias por mar na transferência do risco na venda marítima,

diretamente, ao nível dos efeitos jurídicos; isto é, o regime jurídico do

transporte de mercadorias, em si mesmo, nada nos adianta quanto à

questão da transferência do risco, nem tão pouco interfere nela. Assim,

e conforme já foi dito, existe apenas uma influência – que não eficácia

jurídica – desse cruzamento, por exemplo, em soluções legislativas.

Veja-se o artigo 797.º - prova dessa influencia –, no qual o legislador

estabeleceu um regime de transferência do risco específico, por estar

em causa, precisamente, um transporte de mercadorias. Também esse

cruzamento influenciou decisivamente o conteúdo dos INCOTERMS,

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cujas regras sobre transferência do risco, apesar de terem brotado dos

usos e costumes do comércio internacional, são gizadas,

essencialmente, em função da ligação do contrato de transporte de

mercadorias por mar ao contrato de compra e venda. As regras – quer

resultantes da lei, quer resultantes de convenção das partes – da

compra e venda não são alheias, portanto, À existência de um contrato

de transporte. É, de facto, natural, que o cruzamento dos dois

contratos influencie, na criação das regras, tanto o legislador, como as

próprias partes, que, através de práticas que deram origem a usos e

costumes, acabaram por estar, também, na origem da compilação da

CCI que constitui os INCOTERMS. Mas como já referimos várias vezes,

contrato de transporte de mercadorias por mar, em si mesmo, não

produz efeitos no tocante à transferência do risco na venda marítima.

Podemos, portanto, concluir que o regime da transferência do risco

na venda marítima é estabelecido por regras atinentes aos contratos

alienatórios em geral, às obrigações genéricas, às várias modalidades

da compra e venda, mas nunca por regras atinentes ao contrato de

transporte de mercadorias por mar. Assim, podemos afirmar que, em

vez de uma interferência do transporte de mercadorias na

transferência do risco na venda marítima, existe, antes, uma influência,

meramente circunstancial, do transporte na determinação do regime

– quer legal, quer convencional – do risco.

9. Breve análise da influência do transporte marítimo na obrigação

de entrega por parte do vendedor: como referimos já, o transporte

marítimo de mercadorias exerce uma forte influência nos costumes

surgidos e, até, nalgumas regras de Direito, no âmbito do contrato e

venda. Um dos aspetos onde essa influência tem a sua maior força é,

precisamente, na obrigação de entrega da mercadoria, que, como

vimos, ao ser o momento chave para a transferência do risco, acaba

por ser decisiva. Os INCOTERMS são, precisamente, o fruto da

necessidade de criar regras específicas que considerem o cruzamento

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entre o transporte de mercadorias por mar e o contrato de compra e

venda. É, pois, por isso que os INCOTERMS não incidem, frise-se, em

todos os direitos e obrigações das partes do contrato de compra e

venda: focam, principalmente, aspetos que apresentam maior relevo

em função da existência de um transporte, nomeadamente a entrega

das mercadorias a transferência do risco e a distribuição dos custo do

transporte. A entrega das mercadorias é, sem dúvida, um aspeto do

contrato de compra e venda decisivamente influenciado pela

existência do transporte. Os INCOTERMS, que têm na sua fonte usos

e costumes do comércio internacional, comprovam-no. Em função do

lugar do cumprimento da obrigação, estipulado nos termos do

contrato de compra e venda, as vendas marítimas subdividem-se,

como já pudemos verificar, em dois grandes grupos: o das vendas

com expedição simples (vendas indiretas ou cláusulas de embarque)

e o das vendas com expedição qualificada (venda diretas ou cláusulas

de desembarque). Como já referimos, nas vendas com expedição

simples, que correspondem aos INCOTERMS FAS, FOB, CFR e CIF, o

vendedor fica obrigado a entregar as mercadorias num local diferente

do seu destino final, que pode ser ao longo ou a bordo do navio, no

cais de embarque. Podemos, pois, comprovar, através dos INCOTERMS,

como compilação de práticas ditadas pelos usos e costumes do

comércio internacional, a influência que o transporte de mercadorias

tem na determinação do momento do cumprimento da obrigação de

entrega, a qual, por sua vez, é decisiva para definir o momento de

transferência do risco.

10. Relações entre o comprador e o transportador marítimo: a

responsabilidade do transportador marítimo perante o comprador:

a. Generalidades: apesar da questão das relações entre o

comprador e o transportador marítimo não ter a já ver com o

risco, a verdade é que a respetiva análise tem interesse no

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âmbito do presente estudo, na medida em que – não perdendo

de vista a distinção que, no início, fizemos entre

responsabilidade civil e o risco – caso seja o transportador

responsável por eventuais deterioração ou perdas da

mercadoria, a transferência do risco será, de certa forma,

suavizada ou neutralidade pelo imputação do dano ao

transportador, nos termos da responsabilidade civil. Vejamos

algumas normas relevantes relativamente à responsabilidade do

transportador marítimo, sem, contudo, analisar a questão a

fundo, pois não constitui ela o cerne do presente estudo. A

Convenção de Bruxelas 1924 refere no seu artigo 2.º que o

transportador ficará sujeito ao respetiva regime quanto ao

carregamento, manutenção, estiva, transporte, guarda, cuidados

e descargas das mercadorias. Será, pois, quanto todas estes

aspetos, a Convenção a determinar a responsabilidade do

transportador, sendo que existem, nela, previsões de

exoneração e limitação da responsabilidade, as quais não serão

aqui analisadas. Devemos atentar, ainda, no artigo 3.º, n.º 8

CB1924, de acordo com o qual «será nula, de nenhum efeito e

como se nunca tivesse existido, toda a cláusula, convenção ou

acordo num contrato de transporte exonerado o armador ou o

navio da responsabilidade de perda ou dano concernente a

mercadorias proveniente de negligencia, culpa ou omissão dos

deveres ou obrigações preceituados neste artigo, ou atenuando

essa responsabilidade por modo diverso do determinado na

presente Convenção». Refira-se, também, que o artigo 7.º se

enuncia que as partes não estão impedidas, como afirma

Januário da Costa Gomes, de, «nos períodos a montante

(anteriores ao carregamento) ou a jusante (posteriores ao

carregamento), moldarem o conteúdo do contrato, inserindo

estipulações, condições, reservas ou isenções relativas às

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obrigações e responsabilidade do armador ou do navio».

Quanto ao Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, há que referir o

artigo 6.º que vem estender a responsabilidade do

transportador pela mercadoria no período que decorre entre a

receção e o embarque, estabelecendo que, durante esse hiato,

«são aplicáveis as disposições respeitantes ao contrato de

depósito regulado na lei civil». Existe, portanto, uma

preocupação do legislador nacional de estender a

responsabilidade do transportador nos períodos a montante e

a jusante do contrato de transporte. Também o artigo 7.º tem

relevância no que à responsabilidade do transportador

marítimo diz respeito, na medida em que consagra uma

responsabilidade do transportador marítimo diz respeito, na

medida em que consagra uma responsabilidade objetiva do

transportador pela intervenção do operador portuário ou de

outro agente em qualquer operação relativo à mercadoria, sem

prejuízo do direito de, posteriormente, o transportador agir

contra os referidos operador ou agente. Importa, ainda, referir

o artigo 31.º, que estabelece como limite legal da

responsabilidade do transportador marítimo o valor de 498,80€

por volume ou unidade, valor este que se aplica, quer estejamos

no âmbito de aplicação da CB 1924, quer estejamos no âmbito

de aplicação do Decreto-Lei n.º 352/86 (artigo 1.º, Decreto-Lei

n.º 37.348, 1 fevereiro 1950).

b. A responsabilidade do transportador marítimo nas vendas

com expedição simples (ou indiretas): nas vendas com

expedição simples (ou vendas indiretas) o risco do preço

transfere-se para comprador no momento em que a mercadoria

é entregue ao transportador – isto, naturalmente, pressupondo

a entrega como o momento determinante da transferência do

risco. Significa que, ainda que as mercadorias se percam ou

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deteriorem durante a viagem, o comprador tem de pagar o

respetivo preço ao vendedor. Porém, se as mercadorias se

perderem ou tiverem deteriorado durante a viagem, o

comprador, não obstante suportar o risco do preço, poderá,

eventualmente, responsabilizar o transportador. Esta, sim, é uma

verdadeira consequência jurídica do cruzamento entre o

contrato de transporte de mercadorias por mar e o contrato de

compra e venda. Perguntar-se-á: com que fundamento pode o

comprador, que não é parte num contrato de transporte – por

estarmos, por exemplo, no âmbito das vendas CIF ou CFR, nas

quais o vendedor a celebrar o contrato de transporte –

demandar ou responsabilizar o transportador? No nosso

entender, poderá ter dois fundamentos. O primeiro assenta na

lógica do conhecimento de carga. O segundo, na posição

jurídica do destinatário das mercadorias. O transportador,

depois de receber as mercadorias, tem o dever de entregar ao

carregador um conhecimento de carga representativo dessas

mesmas mercadorias, quer nos termos do artigo 3.º, n.º3 CB

1924 sobre conhecimento de carga, quer nos termos do artigo

8.º Decreto-Lei n.º 352/86. Conforme refere o artigo 11.º deste

diploma, o conhecimento de carga constitui título

representativo da mercadoria nele descrita e pode ser

nominativo, à ordem ou ao portador. Como documento

representativo da mercadoria, o conhecimento de carga tem

caráter real e caráter pessoal: caráter real, porquanto atribui ao

seu titular um direito real sobre a mercadoria, caráter pessoal

na medida em que confere ao seu possuidor, ou àquele à

ordem de quem é passado, o direito de crédito à entrega das

mercadorias. Desta forma, ter um conhecimento de carga

equivale a ter a própria mercadoria por ele representada. O

vendedor, depois de receber o conhecimento de carga do

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transportador, remete-o ao comprador, para que este possa, no

porto de destino, exigir a mercadoria. Assim sendo, sempre que

a mercadoria não esteja conforme com o conhecimento de

carga – por se ter deteriorado ou por se ter, eventualmente,

perdido parcial ou totalmente –, o comprador, fundamentado

no título, que é o conhecimento de carga, pode agir contra o

transportador e responsabilizá-lo pelas deteriorações ou perda

das mercadorias. Pode, porém, suceder que o transportador não

emita qualquer conhecimento de carga. Coloca-se, então, a

questão de saber se o comprador, que não é parte no contrato

de transporte de mercadorias por mar, pode demandar o

transportador, por causa da perda ou deterioração das

mercadorias. A resposta a esta questão depende da posição

que assumamos acerca da natureza jurídica do contrato de

transporte de mercadorias por mar. Na nossa opinião, e

seguimos a posição de Januário da Costa Gomes, o contrato de

transporte de mercadorias por mar é um contrato bilateral

sujeito à eventual adesão de terceiro, o qual pode aderir de

duas formas: ou através da aceitação do conhecimento de carga

ou, no caso de não existir conhecimento de carga, através da

celebração de um contrato de compra e venha com o

vendedor/carregador, que tenha como objeto mediato a

mercadoria a ser transportada. Assim, e porque entendemos

que o destinatário, que não seja carregador, adere ao contrato,

ele é titular não só do direito de crédito à entrega da

mercadoria, como também do direito de responsabilizar o

transportador se a mercadoria não estiver conforme foi

entregue pelo vendedor. Desta forma, mesmo que o

destinatário/comprador não seja titular de um conhecimento de

carga, ele pode, ainda assim, responsabilizar o transportador

pela perda ou deterioração da mercadoria. Porém, e porque o

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contrato de compra e venda deve ser cindido do contrato de

transporte de mercadorias por mar, nas vendas com expedição

simples, ainda que as mercadorias se tenham perdido ou

deteriorado, o destinatário não poderá deixar de pagar o preço,

pois a partir do momento em que a mercadoria é entregue ao

transportador, o vendedor cumpre a sua obrigação de entrega

da mercadoria e o risco transfere-se. Pode, contudo, suceder

que as avarias na mercadoria não resultem do transporte. Não

é por acaso que na Convenção de Bruxelas de 1924, no artigo

4.º, n.º2, alínea b), se refere que nem o armador nem o navio

serão responsáveis por perda ou dano resultante ou

proveniente de vícios ocultos que escapam a uma razoável

diligência. Deste modo, se os vícios não eram aparentes e o

transportador o demonstrar, ele não poderá ser

responsabilizado. Neste caso, restará ao comprador provar que

a mercadoria já tinha vícios antes de ter sido entregue ao

transportador. Se o conseguir, e porque na venda com

expedição simples – de cuja hipótese tratamos agora – o risco

se transfere, à partida, com a entrega ao transportador, o

comprador não terá de pagar o preço, pois os vícios na

mercadoria remontam a uma data anterior à entrega.

c. O arco temporal do transporte de mercadorias por mar: na

sequência do ponto anterior, parece-nos importante fazer uma

breve análise do arco temporal do transporte de mercadorias

por mar, isto é, dos momentos em que se inicia e termina o

transporte. Essa definição terá importância, porquanto nos

permite determinar o âmbito espacial da responsabilidade do

transportador por deteriorações ou perda da mercadoria.

Apesar de, repetimos, este problema não ser estritamente de

risco, a sua analise afigura-se importante, na medida em que a

responsabilidade do transportador por deteriorações ou pela

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perda da mercadoria terá o efeito de, na prática, atenuar o risco

detido pelo comprador.

i. O arco temporal na Convenção de Bruxelas de 25

agosto 1924, relativa à unificação de certas regras em

matéria de conhecimentos de carga: a CB 1924, sobre

os conhecimentos de carga, está pensada numa lógica

de transporte porto a porto, tendo isso repercussões ao

nível do arco temporal na mesma estatuído. Ora, nessa

lógica porto a porto, é o artigo 1.º, alínea e) CB 1924 que,

a propósito da definição de transporte de mercadorias,

acaba por dar as coordenadas sobre o arco temporal

desse mesmo transporte. Refere o preceito que um

transporte de mercadorias abrange o tempo decorrido

desde que as mercadorias são carregadas a bordo do

navio até ao momento em que são descarregadas. Falta,

porém, o critério determinante do exato momento

dessas carga e descarga. O Decreto-Lei n.º 352/86, 21

outubro, no seu artigo 23.º estabelece um critério. Estatui

que a mercadoria se considera carregada no momento

em que, no porto de carga, transpõe a borda do navio

de fora para dentro, e considera-se descarregada no

momento em que, no porto de descarga, transpõe a

borda do navio de dentro para fora. Mas, conforme

refere Januário da Costa Gomes, não será

metodologicamente correto usar o critério do Decreto-

Lei interno para preencher a imprecisão que temos na

CB 1924. Que critério então seguir? Simplesmente

deveremos seguir um critério assente na ideia de posse

das mercadorias por parte do transportador. Assim, o

transporte terá início quando as mercadorias entrarem

na posse do transportador, ou seja, a partir do momento

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em que lhe são entregues. E se forem entregues a um

operador portuário? O operador portuário é um agente

do transportador, pelo que ele pode receber as

mercadorias em representação do transportador. Veja-se

a Himalaya Clause, de acordo com a qual, refere Januário

da Costa Gomes, «a disciplina do conhecimento de carga

é estendida à atividade de qualquer sujeito de quem o

transportador se socorra para a concreta execução das

singulares operações que entram no âmbito do contrato

de transporte». O transportador atribui tacitamente

poderes representativos ao operador portuário. De facto,

da função que o operador portuário desempenha resulta

a atribuição tácita, por parte do transportador, de

poderes representativos para declarar a vontade de

aceitação, em nome do transportador, das mercadorias

entregues pelo carregador (artigo 217.º e 262.º CC). Para

além de que, se o transportador beneficia da atividade

do operador portuário que, em seu interesse, recebe as

mercadorias, que posteriormente irá transportar,

transporte este que consiste na sua atividade e lhe dá o

lucro, deve, então, aceitar que quando a mercadoria é

entregue ao operador portuário, é-o tanto para as

vantagens (atividade lucrativa do transportador), como

para as desvantagens (responsabilidade do

transportador): ubi commoda, ibi incommoda. De facto,

se o transportador retira benefícios da atividade do

operador portuário, com o qual tem, necessariamente,

uma relação jurídica, deve, também, ser responsabilizado

objetivamente pela perda ou deterioração de

mercadorias causadas por esse operador portuário. Se

este último está no porto, entre outras, com a função de

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237

receber as mercadorias que serão objeto de transporte,

o transportador deve aceitar que o expedidor considere

cumprida a sua obrigação de entrega da mercadoria a

ele, transportador, mesmo quando seja o operador

portuário a recebê-la. Qualquer expedidor que entregue

a mercadoria num porto, para ser embarcada, a um

operador portuário julgará, naturalmente, que a está a

entregar, também, e por intermédio deste, ao

transportador. Assim, entendemos que, não obstante a

redação da alínea e) do artigo 1.º CB 1924, o transporte

tem início quando a mercadoria é entregue ao

transportador, portanto, quando entra na sua posse, ou

por si, ou através de um seu representante, e não apenas

quando «é carregada a bordo do navio». Ainda que não

seja inequívoco ser esta a lógica do Direito constituído,

a mesma será desejável em termos de Direito a constituir.

ii. O arco temporal no Decreto-Lei n.º 352/86, 21

outubro: como refere Januário da Costa Gomes, o

Decreto-Lei n.º 352/86 beneficiou da doutrina e da

jurisprudência produzidas a propósito dos momentos

parametrizadores do âmbito de aplicação da CB 1924,

pelo que definiu claramente, no artigo 23.º, quando é

que se considera a mercadoria carregada e descarregada.

Para além disso, o artigo 6.º Decreto-Lei n.º 352/86

estende a responsabilidade do transportador pela

mercadoria no período que decorre entre a receção e o

embarque, referindo que, neste momento, são aplicáveis

as disposições respeitantes ao contrato de depósito

regulado na lei civil. Assim, antes do carregamento já há,

pelo menos, responsabilidade do transportador

enquanto depositário. Vem, depois, o artigo 7.º

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238

consagrar uma responsabilidade objetiva do

transportador pela intervenção do operador portuário ou

de outro agente em qualquer operação relativa à

mercadoria, sem prejuízo do direito de, posteriormente,

o transportador agir contra os referidos operador ou

agente. Concluindo, o Decreto-Lei nº. 352/86 acaba por

teria, relativamente ao arco temporal, a lógica que

defendemos, acima, para a interpretação da CB 1924. Fica,

assim, determinado o âmbito espacial da eventual

responsabilidade do transportador, segundo o Decreto-

Lei n.º 352/86. Insistamos, contudo, na necessidade de se

fazer a distinção entre responsabilidade civil e

transferência do risco. Quando se discute o momento em

que se considera que a mercadoria passa a estar sob a

alçada do transportador ou do operador portuário, não

é para afirmar que, a partir desse momento, o risco se

transferiu para esses mesmos transportador e operador

portuário: o risco nunca para eles se transfere, porquanto

eles nunca serão proprietários das mercadorias e nunca

serão devedores do preço, pela elementar razão de que

não são partes no contrato de compra e venda. Assim,

nem o risco do preço, nem o risco da coisa se transferem

para qualquer das entidades. Acontece, simplesmente

que a partir do momento em que o transportador ou o

operador portuário são considerados depositários da

mercadoria, qualquer deterioração ou perda desta lhes

poderá ser imputada para efeitos de responsabilidade.

Não é, portanto, correto falar em risco por conta do

transportador ou por conta do operador portuário, pois

o risco apenas se transfere entre vendedor e comprador.

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239

11. Conclusão: vimos a problemática da transferência do risco no Código

Civil, no âmbito do contrato de compra e venda, passando, ainda, pelo

Código Comercial, a propósito da venda mercantil. Apesar de, na

prática, poucas vezes serem aplicados os dispositivos de Direito

interno, a verdade é que a sua análise se revelou fundamental para a

compreensão de toda a problemática em jogo na transferência do

risco nos contratos de compra e venda, nomeadamente, quando esteja

em causa uma venda com expedição. A análise dos INCOTERMS

permitiu-nos apreender as regras sobre a transferência do risco que,

na maioria dos casos, serão aplicáveis aos litígios que envolvam o

comprador e o vendedor numa venda marítima. Na verdade, em regra,

a prática demonstra-o, nas vendas com expedição, as partes regulam

o momento de transferência do risco através de uma remissão para

um termo constante dos INCOTERMS. Façamos, portanto, uma breve

síntese dos momentos relevantes da transferência do risco na venda

marítima, no âmbito do Código Civil e dos INCOTERMS. Segundo as

regras do Código Civil, o risco transferir-se-ia, em princípio, no

momento da transferência da propriedade (artigo 796.º, n.º1),

independentemente da entrega da coisa. Acontece, porém, que, na

prática, acaba por ser o momento do cumprimento da obrigação de

entrega o decisivo para determinar a transferência do risco. Conforme

expusemos, sendo as vendas marítimas, em regra, vendas mercantis e,

outrossim, vendas de coisas genéricas, o momento da transferência

da propriedade será definido, no caso das vendas de coisas genéricas,

nos termos do artigo 540.º e seguintes, que, à exceção de uma

situação – a extinção de todo o género, a ponto de restar apenas uma

das coisas nele compreendidas –, determinam que a propriedade se

transfere com o cumprimento da obrigação de entrega. Ora, assim,

nesses casos, o risco transfere-se no momento da entrega. No caso

das vendas mercantis, atentámos que as vendas por conta, peso ou

medida, previstas no artigo 472.º CCom, seguem o mesmo regime que

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o das obrigações genéricas, pois são verdadeiras vendas de coisas

genéricas. Vimos, também, que na venda sobre amostra ou por

designação de padrão, a propriedade não se transfere no momento

do contrato, mas sim no momento em que se cumpre a obrigação de

entrega e a mercadoria é examinada, ou no termo de oito dias, se não

for reclamada a qualidade da mercadoria (artigo 469.º e artigo 471.º

CCom). Nestes casos, o risco acaba por se transferir, também, com o

cumprimento da obrigação e entrega, porque, neste momento, se

verificará a condição suspensiva que gerará a produção de efeitos do

contrato. Notámos, ainda, que o n.º2 do artigo 796.º CC acaba por

permitir uma interpretação segundo a qual, em muitas situações em

que o vendedor continue a manter as coisas na sua posse, o risco se

acaba por transferir apenas com a entrega da coisa ou com o termo;

tudo dependerá da interpretação da expressão «termo constituído a

seu favor». Também no caso de haver condição resolutiva, a situação

é a de que o risco só se transfere, mas uma vez, com o cumprimento

da obrigação de entrega (artigo 796.º, n.º3). Para além disso, e

conforme referimos, a aplicação do artigo 797.º apenas às vendas com

expedição simples daria origem a uma grave distorção valorativa, pelo

que, por maioria de razão, se impõe a aplicação da sua regra também

às vendas com expedição qualificada. Defendemos, portanto, a

aplicação extensiva do artigo 797.º. Concluimos, então, que da

aplicação do Código Civil à venda marítima resulta que a transferência

do risco se dará sempre com o cumprimento da obrigação de entrega,

inclusivamente nas vendas de coisa determinada, por força da

aplicação extensiva do artigo 797.º. Contudo, vimos que havia uma

exceção à regra, segundo a qual, o risco se transfere com o

cumprimento da obrigação de entrega. É ela a situação de mora do

credor. Se o credor, sem motivo justificado, não aceitar a prestação

que lhe é oferecida nos termos legais ou não praticar os atos

necessários ao cumprimento da obrigação (artigo 813.º CC), então, e

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não obstante o não cumprimento da obrigação de entrega, o risco

transfere-se para si, nos termos do artigo 815.º CC. Relativamente aos

INCOTERMS, também o momento em que se cumpre a obrigação de

entrega é o determinante para que se dê a transferência do risco,

sendo que temos, essencialmente, dois tipos de INCOTERMS: aqueles

que correspondem às vendas com expedição simples – também

apelidadas pela doutrina de vendas indiretas ou cláusulas de

embarque –, isto é, em que a obrigação de entrega se cumpre com a

entrega da mercadoria ao transportador, no porto de embarque; e

temos, depois, os INCOTERMS que correspondem às vendas com

expedição qualificada – vendas diretas ou cláusulas de desembarque

– em que obrigação de entrega se cumpre com a entrega da

mercadoria no porto de descarga. Assim, o vendedor suportará o risco

do preço até que a mercadoria seja depositada ao longo do navio, na

cláusula FAS, ou até que trespasse a amurada do navio de fora para

dentro, na cláusula FOB. Vimos que, nos INCOTERMS, é muito

importante ter em conta, quer a mora do devedor, quer a mora do

credor para efeitos de transferência do risco: se o devedor estiver em

mora com o cumprimento da sua obrigação de entrega, o risco não

se transfere; se for o credor a estar em mora, então o risco transferir-

se-á. Ainda que a mercadoria não tenha sido entregue, nos termos

em que já referimos acima. Concluímos, portanto que, quer no sistema

português, quer nos INCOTERMS, a transferência do risco na venda

marítima se dá, salvo raras exceções, no momento em que se cumpre

a obrigação de entrega da mercadoria. Vimos, por fim, ainda que já

fora do âmbito da problemática da distribuição do risco contratual,

como a responsabilidade do transportador perante o comprador,

apesar da existência de limites a essa responsabilidade, acaba por, de

certa forma, suavizar o risco detido por qualquer das partes na venda

marítima, dada a imputação do dano ao transportador, nos termos da

responsabilidade civil.

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243

Apontamentos sobre Conhecimentos de Carga

Limpos e Cartas de Garantia75

1. Introdução: constitui uma prática já antiga do comércio marítimo, os transportadores

aceitarem conhecimentos de carga limpos (clean bills of lading), ou seja, sem reservas,

contra a garantia, assumida pelos carregadores, de indemnizar aqueles pelos prejuízos

decorrentes da emissão dos conhecimentos nesses termos. A emissão de

conhecimentos limpos contra a emissão de letters of indemnity surge algo demonizada

como uma «malattia del commercio», uma vez que dessa prática – de permanente

mentira – resultariam prejuízos não só para o destinatário da mercadoria ou para o

portador legítimo do título, mas também para as seguradores e para as instituições de

crédito que concedam crédito, fiadas na limpeza do conhecimento. Naturalmente que,

na base desta reação, está a pressuposição de que, não fora o confronto dado pela

letter of indemnity, o transportador – o armador como refere a versão portuguesa da

CB 1924, relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimentos de caga –

emitiria um conhecimento de carga sujo, ou seja com reservas. Essas reservas seriam,

sem dúvida, desfavoráveis ao carregador, mas teriam a enorme vantagem de não

induzirem em erro os diversos operadores que entrassem em contacto com o título.

Através da exigência da carta de garantia, o transportador previne a hipótese – vista

como provável – de ser acionado pelo destinatário da mercadoria, a quem terá de

indemnizar pelo estado da mesma ou pela sua insuficiência em número ou em peso:

visa, assim, o transportador o efeito final de ficar indemne face a qualquer pretensão

de terceiro portador legítimo do conhecimento. Propomo-nos tecer algumas

considerações sobre a articulação entre a emissão de conhecimentos limpos e as cartas

de garantia, tendo fundamentalmente presente não só o regime constante dos artigo

25.º e 26.º do Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, mas também o regime da CB 1924 e

das Regras de Hamburgo de 1978 (RH 1978). Não nos propomos, assim, tratar

exaustivamente do tema que não é alheio, aliás, à doutrina nacional. Destacam-se, em

particular, os recentes contributos de Mário Raposo e de Vasconcelos Esteves, sendo

certo, porém, que não deixamos de encontrar referências nos clássicos, com destaque

para Palma Carlos, quem pertence o seguinte esclarecido trecho:

«Compreende-se facilmente a vantagem que têm os carregadores em

obter sempre conhecimentos sem reservas. Efetivamente, a enunciação de

duvidas no conhecimento acerca do estado das mercadorias, é por si só

suficiente para pôr os maiores obstáculos a qualquer transação que o

carregador queira efetuar sobre tal conhecimento. Nem o destinatário

aceitará mercadorias cujo estado de conservação haja inspirado dúvidas

ao capitão; nem os bancos efetuarão operações de crédito sobre

conhecimentos relativos a tais mercadorias; nem as seguradores estarão

dispostas a assumir por elas as responsabilidades emergentes do seguro».

75 O Ensino do Direito Marítimo; o soltar das amarras do direito da navegação marítima; por Manuel Januário da Costa Gomes, Almedina, novembro de 2004. (páginas 225 a 253)

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244

Ainda com cariz introdutório, convirá deixar claro o seguinte: a emissão de

conhecimentos limpos, em troca de cartas de garantia, surge, frequentemente, como

uma prática não fraudulenta e como tal sã. Assim acontece, desde logo, nos casos em

que o transportador aporia reservas no conhecimento, não por constatar insuficiência

ou avaria da mercadoria, mas por falta de tempo ou de conhecimento para o efeito.

Referia-se já Palma Carlos à frequência com que o capitão, por falta de conhecimentos

específicos, considerava defeituosas mercadorias que efetivamente estavam em bom

estado de conservação. Outra situação, também focada por Palma Carlos, em que há

vantagem e se justifica emprego de cartas de garantia, é aquela em que, por má fé, o

capitão «levanta embaraços ou dificuldades ao carregador», pretendendo, contra a

evidência, que a mercadoria é defeituosa, ou que as embalagens são deficientes, ou

que há divergência no peso ou no volume da carga, recusando-se, assim, a emitir um

conhecimento de carga limpo. Recentemente, Carbone chama também a atenção para

o facto de a omissão de aposição de reservas em contrapartida da emissão de cartas de

garantia, não corresponder necessariamente a um propósito fraudulento, dando como

exemplo o caso em que a mercadoria transportada e constituída por materiais em

segunda mão – caso em que a existência de anomalias mesmo aparentes é

absolutamente normal. A contentorização – a revolução da contentorização – ao

legitimar, por razões de operacionalidade e evidência, a prática da cláusula said to

contain, veio bulir com o estado de cosias existente em relação aos conhecimentos

limpos e às cargas de garantia, na medida em que impôs a aceitação desse tipo de

reservas. Contudo, a prática da emissão de carta de garantia como forma de limpar

conhecimentos que, de outro modo, seriam emitidos sujos, está longe de ter decrescido,

fenómeno que tem por si razões de diversa natureza, uma das quais será a não

uniformidade legislativa, mesmo a nível das Convenções Internacionais: entre o regime

da CB 1924 e o das RH 1978 existem diferenças relevantes. Por outro lado, no

transporte em contentores, haverá que distinguir, conforme adverte Mário Raposo,

entre os contentores FCL (full container load) – arrumados pelo carregador já fechados

ao transportador – e os contentores LCL (less than full container load) – em que a estiva

é feita pelo transportador. Finalmente, a doutrina questiona a dimensão da eficácia da

reserva said to contain. A letter of indemnity (letter of guarantee) de que aqui curamos

não se confunde da mercadoria, que ainda não seja detentor do conhecimento de carga,

a favor do transportador, como condição para a descarga e entrega da mesma

mercadoria. Institucionalizou-se, na verdade, a prática, decorrente do facto de, amiúde

– em virtude da morosidade provocada pela articulação entre os conhecimentos de

carga e o crédito documentário – as mercadorias e entrega-la ao destinatário contra a

entrega por este de uma carta de garantia que coloque o transportador em causa ao

abrigo de qualquer ação que lhe seja movida por um (eventual e imprevisto) portador

legítimo do título. Como é evidente, o transportador não estará, em princípio, obrigado

a aceitar tais cartas de garantia, já que pode não estar interessado em afrontar uma

ação de indemnização intentada pelo portador legítimo do conhecimento. Contudo, a

circunstância de, normalmente, tais cartas de garantia surgirem fortalecidas com uma

garantia bancária, aliada ao facto de, amiúde, o próprio transportador ter pressa na

descarga, confluem no sentido dessa prática. Aliás, conforme informa Carbone, é

frequente os contratos de venda e de charter-party conterem cláusulas que legitimam

que o destinatário possa exigir a entrega da mercadoria mesmo na falta dos originais

dos conhecimentos de carga, contra a apresentação de uma letter of indemnity de

conteúdo standard, garantida por um banco.

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245

2. Os documentos de transporte marítimo, em especial o conhecimento de carga: cingindo-

nos aos clássicos documentos de transporte marítimo de mercadorias, importa analisar

fundamentalmente os documentos previstos na CB 1924, convenção a que Portugal

está internacionalmente vinculado, e no Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, que

disciplina o contrato de transporte de mercadorias por mar, curando o artigo 2.º deste

diploma, de forma pouco feliz, da articulação entre os «tratados e convenções

internacionais vigentes em Portugal» e o próprio regime do Decreto-Lei n.º 352/86.

Fora de consideração direta está o Decreto-Lei n.º 37.748, 1 fevereiro 1950, não porque

constitua direito ultrapassado mas porque, ao ter inserido os artigos 1.º a 8.º da CB

1924 como Direito interno – que se mantêm em vigor na medida em que não conflituam

com o regime do diploma de 1986 – nada acrescenta neste particular. Conquanto não

ratificados por Portugal, não deixaremos de aludir aos documentos previstos nas RH

1978. Ao nos circunscrevermos aos documentos clássicos do transporte marítimo de

mercadorias, deixamos de fora, entre outros, quer os seaway bills, quer os

conhecimento de carga eletrónicos. O paradigma dos documentos de transporte

marítimo é o conhecimento de carga (bill of landing, connaissement). O conhecimento

de carga tem na CB 1924 um lugar central, conforme decorre do facto de a Convenção

ser precisamente relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimento de

carga. Contudo, diversamente do que acontece com o Decreto-Lei n.º 352/86 – que no

artigo 8.º, n.º1, fundamentaliza o conhecimento – o artigo 3.º, n.º1 CB estabelece o

dever de entrega do conhecimento ao carregador, a pedido (sur demande) deste: o

conhecimento deverá ser entregue pelo armador, capitão ou pelo agente do armador

após receber e carregar as mercadorias. É diversa a solução do artigo 8., n.º1 Decreto-

Lei n.º 352/86, que impõe a entrega pelo transportador ao carregador, após o início do

transporte marítimo, de um conhecimento de carga «de acordo com o que

determinarem os tratados e convenções internacionais referidos no artigo 2.º». Numa

solução curiosa – uma vez que o artigo 3.º CB 1924 já é, como se disse, Direito interno,

na parte não prejudicada pelo Decreto-Lei n.º 352/86, por força do Decreto-Lei n.º

37.748 – o artigo 8.º, n.º1 impõe que o conhecimento tenha as menções das alíneas a)

a c) do artigo 3.º CB.

a. As marcas principais necessárias à identificação das mercadorias tais quais

foram indicadas por escrito pelo carregador antes de começar o embarque

dessas mercadorias, contanto que essas marcas sejam impressas ou apostas

claramente, de qualquer outra maneira, sobre as mercadorias não embaladas

ou sobre as caixas ou embalagens que as contêm, de tal sorte que se

conservem legíveis até ao fim da viagem;

b. O número de volumes, ou de objetos, ou a quantidade, ou o peso, segundo

os casos, tais como foram indicados por escrito pelo carregador;

c. O estado e o acondicionamento aparentes das mercadorias.

O exagero do legislador nacional no que ao conhecimento de carga respeita, torna-se

de novo evidente quando constatamos que, diversamente da CB – que no artigo 1.º,

n.º1, alínea b), admite «qualquer documento similar servindo de título ao transporte de

mercadorias por mar» - opta pela infungibilidade do conhecimento: a única alternativa

ao conhecimento de carga do artigo 8.º, n.º1 é o conhecimento de carga do artigo 8.º,

n.º2, operado por conversão do conhecimento de embarque (recibo ou conhecimento

de carga para embarcar). A rigidez do legislador nacional é tanto maior quanto, a

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246

montante do conhecimento de carga, já surge como excessivo o caráter formal do

contrato de transporte de mercadorias (artigo 3.º). Aliás, independentemente dos

excessos assinalados, não há uma verdadeira coerência entre o estabelecimento de um

regime na base da existência de um conhecimento de carga e a necessidade de uma

forma específica para o contrato subjacente à emissão do mesmo conhecimento. A

montante do conhecimento de carga do artigo 8.º, n.º1, o Decreto-Lei n.º 352/86,

refere-se à declaração de carga (artigo 4.º) e ao recibo ou conhecimento de carga para

embarque (artigo 5.º). A declaração de carga, emitida pelo carregador e entregue ao

transportador, deve mencionar os elementos referidos no artigo 4.º, n.º1:

A natureza da mercadoria e os eventuais cuidados especiais de que a mesma careça

(alínea a) );

As marcas principais necessárias à identificação da mercadoria (alínea b) );

O número de volumes ou de objetos e a quantidade ou o peso (alínea c) );

O tipo de embalagem e o acondicionamento da mercadoria (alínea d) );

O porto de carga e o de descarga (alínea e) );

E a data (alínea f) ).

Esses elementos estão para além dos exigidos no artigo 3.º, n.º3 CB – que se refere às

marcas principais necessárias à identificação das mercadorias, indicadas por escrito

pelo carregador e mais especificamente (infere-se do artigo 3.º, n.º3, II) às marcas,

números, quantidade e peso – e mais ainda em relação às RH 1978, que, no seu artigo

15.º, n.º1, alínea a), não alude a qualquer documento escrito do carregador, devendo,

porém, os elementos aí referidos condizer com os fornecidos por aquele (all such

particular as furnished by the shipper). A importância da declaração de carga torna-se

patente em função do que dispõe o artigo 4.º, n.º2: o carregador responde perante o

transportador pelos danos resultantes das omissões ou incorreções de qualquer

elemento da declaração de carga. Recebida a mercadoria para embarque, cabe então

ao transportador entregar ao carregador um recibo ou um conhecimento de carga com

a menção expressa para embarque. A alternatividade (reafirmada no artigo 5.º, n.º2)

no que concerne à emissão de documento, sugere, a nosso ver, que os documentos em

causa não têm o mesmo valor e que há uma gradação qualitativa a favor do

conhecimento. Digamos que, usando a expressão do artigo 3.º, n.º7 CB 1924, enquanto

que o conhecimento para embarque dá já direito às mercadorias, que assim podem ser

negociadas, nos termos ao artigo 11.º, o mesmo não acontece com o recibo, cuja

eficácia está à partida limitada às estritas relações carregador – transportador,

inclusivamente no que respeita ao direito sobre as mercadorias. Substancialmente, o

mero recibo equivalerá a um conhecimento para embarque não transmissível, mas

ainda assim se diferencia deste pelo facto de não poder ser convertido em

conhecimento de carga, nos termos do artigo 8.º, n.º2. Esta diferenciação entre recibo

e conhecimento de carga para embarque, para que aponta o artigo 5.º Decreto-Lei

352/86, não é positiva, já que complica desnecessariamente o quadro dos documentos

de transporte, tanto mais que, de acordo com o artigo 5.º, n.º1, as menções que devem

constar dos documentos em causa são exatamente as mesmas. Para além dos

elementos referidos ou o conhecimento de carga para embarque deve conter indicação

do acondicionamento e do estado aparente da mercadoria (artigo 5.º, n.º1, alínea b) ),

do nome do navio transportador (alínea c) ), podendo ser indicados outros elementos

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tidos por relevantes (alínea d) ). Numa solução paralela com a do artigo 4.º, n.º2, o

artigo 5.º, n.º2 responsabiliza o transportador perante o carregador pelos danos

resultantes das omissões ou incorreções de qualquer dos elementos do recibo ou do

conhecimento de carga. O conhecimento de carga para embarque – o received for

shipment bull of lading – pode dar origem a um conhecimento de carga embarcada –

shipped bill of lading – bastando, para tal, que o carregador aponha no mesmo a

expressão carregado a bordo e a data de embarque. Esta conversão prevista no artigo

8.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86, é harmónica com o regime CB 1924, cujo artigo 3.º,

n.º7 prevê que se o carregador tiver anteriormente recebido qualquer documento

dando direito às mercadorias embarcadas, pode haver lugar a uma de duas soluções:

ou à restituição do documento ao transportador, contra a entrega de um conhecimento

com anota de embarcado, ou, em alternativa, à menção nesse mesmo documento

anterior, feita no porto de embarque, à menção nesse mesmo documento anterior,

feita no porto de embarque, do nome ou nomes dos navios em que as mercadorias

foram embarcadas bem como a data ou datas de embarque; se esse documento, assim

notado, contiver as menções do artigo 3.º, n.º3 CB, será então considerado como

conhecimento de carga com a nota de embarcado. Quer face à CB 1924, quer face ao

Decreto-Lei n.º 352/86, a primazia vai para um conhecimento de carga novo, contendo,

ab origine, as menções embarcado; assim decorre do artigo 3.º, n.º7 CB e do artigo 8.º,

n.º1 Decreto-Lei n.º 352/86. A transformação, por adição de menções, do received for

shipment bill of lading em shipped bill of lading, surge como uma solução de

equiparação, aliás plena. Também as RH 1978, depois de, no artigo 14.º, n.º1, imporem

ao transportador a emissão de um conhecimento, a pedido do carregador (on demand

of the shipper), e de preverem, no artigo 15.º, n.º2, a emissão de um shipped bill of

lading, de novo a pedido (if the shipper so demands), estabelecem que se o

transportador tiver previamente emitido um conhecimento ou outro título

representativo de qualquer mercadoria, poderá exigir a devolução de tal documento

em troca de um conhecimento – do shipped bill of lading; em alternativa, o mesmo

artigo 15.º, n.º2 prevê que se o carregador solicitar um conhecimento de embarque

shipped, o transportador poderá, para atender a essa solicitação, modificar qualquer

documento anteriormente emitido se, com tais modificações, o dito documento

contiver toda a informação que deve constar de um conhecimento de carga embarcado.

Fora de consideração direta, deixamos os casos de outros documentos relativos ao

transporte marítimo de mercadorias como o conhecimento direto (through bill of lading)

ou o pertence (delivery order). O conhecimento direto é um conhecimento de carga que

cobre a intervenção de vários transportadores marítimos, mantendo-se a unidade do

contrato de transporte. O pertence é um documento emitido por ordem do portador

legítimo do conhecimento de carga no sentido de entregar (delivery order) ao portador

legítimo do documento nessa sequência emitido (o pertence) a parte da mercadoria

titulada pelo conhecimento de carga. A emissão de pertences tem a grande vantagem

de facilitar a negociação fracionada da mercadoria titulada pelo conhecimento, tendo

conhecido um grande desenvolvimento a partir do século XIX nas compras e vendas

marítimas, em especial na venda CIF. Obedecendo à lógica e à natureza dos

conhecimento de carga, o transportador terá toda a vantagem em abater no

conhecimento de carga original as mercadorias destacadas representadas pelo novo

documento – pelo novo e cumulativo conhecimento, na modalidade de pertence. Se

não o fizer, poderá ser responsabilizado por um novo portador legítimo do

conhecimento (sem a menção do pertence emitido) para a entrega pelo portador

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legítimo do pertence. Diferente deste pertence emitido pelo transportador (o pertence

próprio), relativamente ao qual não deixam de se suscitar dificuldades de regime, o

pertence impróprio é emitido pelo próprio portador do conhecimento (normalmente o

carregador), constituindo – apesar do seu caráter unilateral, sob o ponto de vista

documental – a manifestação documentada de um acordo entre o portador legítimo do

conhecimento e um terceiro designado que, não tendo, por essa via, qualquer direito a

exigir a entrega da mercadoria ao transportador, a poderá exigir ao emitente. Contudo,

diversamente do que acontece com o portador legítimo do conhecimento de carga – e

logo, também, do pertence próprio – que tem, face ao transportador, um crédito à

entrega da mercadoria mas que também se pode arvorar titular de um direito real sobre

a mesma, o titular do conhecimento impróprio apenas tem um crédito face ao emitente,

não podendo arvorar-se titular das mercadorias em causa, já que o pertence não

representa as mercadorias. Identifica-se, finalmente, uma delivery order emitida pelo

consignatário da carga, documento esse que já não representará as mercadorias a

bordo, não podendo dar lugar a qualquer ação contra o transportador.

3. O concurso do conhecimento de carga com a carta-partida: a referência ao transporte

sob conhecimento de carga (bill of lading) postula a inconfundibilidade com a carta

partida (charter-party). No Direito interno, está firmada, desde os anos oitenta do

século passado a base legal para a demarcação entre o contrato de transporte de

mercadorias, regulado pelo Decreto-Lei n.º 352/86, e o contrato de fretamento,

regulado pelo Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril. A distinção, está, aliás, sedimentada na

doutrina e na jurisprudência portuguesas, que passaram a adotar a diferença assim

resumida no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 352/86:

«O elemento matricialmente determinante da distinção entre o transporte

de mercadorias e o fretamento é o de que aquele respeita a uma carga e

este a um navio».

A distinção é, aliás, patente nas noções dos contratos em causa; no contrato de

transporte de mercadorias o transportador obriga-se em relação à outra parte «a

transportar determinada mercadoria de um porto para porto diverso» (artigo 1.º

Decreto-Lei n.º 352/86); no contrato de fretamento, o fretador põe à disposição do

afretador «um navio ou parte dele para fins de navegação marítima» (artigo 1.º

Decreto-Lei n.º 191/87). As fronteiras surgem, porém, nebuladas no caso de fretamento

por viagem já que aí o afretador deverá (artigo 5.º Decreto-Lei n.º 191/87) utilizar o

navio «numa ou mais viagens, previamente fixadas, de transporte de mercadorias

determinadas». Ou seja: tanto no contrato de transporte de mercadorias quanto no

fretamento por viagem o objeto é a deslocação de mercadorias: só que tal objeto é

imediato no primeiro caso e mediato no segundo. Pode, portanto dizer-se que,

cotejando o sistema da CB 1924 e do Decreto-Lei n.º 352/86, por um lado e o do recurso

a charter-parties e ao regime do Decreto-Lei n.º 191/87, por outro, há fundamento para,

no âmbito de uma ampla referência a transporte de mercadorias, distinguir o

transporte sob conhecimento de carga do transporte com base em carta-partida. A

diferença fundamental que está na base do recurso às charter-parties ou aos bills of

lading para o transporte de mercadorias está, como diz Carbone, «nas diversas

características estruturais dos respetivos mercados, aos quais, não por acaso,

correspondem regras diversas em matéria de concorrência»: enquanto que os contratos

documentados por cartas-partidas são, na prática, negociados e estipulados em função

das exigências do contratante, o mesmo não acontece com os contratos sujeitos ao

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regime do conhecimento de carga, que se insere no transporte das linhas regulares, em

termos pré-anunciados e pré-determinados e com cláusulas padronizadas. Nesta lógica,

podemos assumir a comparação feita por Tetley: «A bill of lading is similar to public

transportation on an auto bus route; a voyage charter is similar to hiring a taxi to carry

you from one place to another of your choice». Ora esta diferença espelha o facto de,

enquanto que no fretamento por Viagem os contratantes estarão, em principio no

mesmo pé de igualdade e com similar poder negocial, o mesmo não ocorre nos casos

das linhas, nos quais o carregador é perspetivado como contraente débil, cuja posição

deve ser tutelada por normas imperativas «que impõem standard mínimos e

inderrogáveis de responsabilidade do transportador». Entre nós, Lima Pinheiro é

particularmente crítico em relação à conceção bipartida da lei portuguesa – na linha,

de resto, da francesa e italiana – considerando que a mesma «não encontra

correspondência ao nível do regime aplicável e é errónea de um ponto de vista de

construção jurídica». Para o autor, tanto o fretamento a tempo seriam subtipos do

transporte: «o que caracteriza o fretamento, enquanto subtipo do contrato de

transporte de mercadorias, é a afetação de navio ou navios determinados ou

determináveis à realização do transporte. No fretamento à viagem o navio é afeto à

realização de uma ou várias viagens pré-definidas. No fretamento a tempo o navio é

afeto durante determinado período de tempo». Em consonância, Lima Pinheiro

propunha, no seu projeto para Macau, a seguinte noção: «contrato de transporte de

mercadorias é aquele em que uma das partes se obriga a deslocar mercadorias ou a

fornecer um navio para deslocar mercadorias, por águas marítimas ou interiores,

mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete». Esta noção – que segundo o

autor, encontra correspondência nos sistemas do Common Law, no conceito de

contract of affreightment e, no Direito alemão, no conceito de Seefrachtvertrag – é

contrariada por Mário Raposo que sustenta a dualidade transporte-fretamento. A

polémica entre os dois maritimistas é saudável e só revela que o Direito Marítimo está

a mexer em Portugal. Os escritos que documentam a polémica e, em causa – a que

estão associados outros assuntos marítimos – constituirão, sem dúvida, importantes

elementos de reflexão numa futura reforma de fundo do Direito Marítimo, maxime,

aquando, se for o caso, da preparação de um Código da Navegação Marítima. Até lá, os

Decreto-Lei n.º 352/86 e 191/87 impõem, sem margem para dúvidas, a via dual que

tem a seu crédito, de resto, importante argumentos. Pese embora a diferença de

regimes entre a lógica do transporte sob conhecimento de carga e a carta-partida, bem

como dos diversos ambientes que presidem à adoção de uma ou outra via, o que é certo

é que se verificam, amiude, situações de concurso entre o bill of lading e a charter-party,

sendo, então, importante determinar o regime aplicável. A situação problemática é

aquela em que, apesar da celebração de um contrato de fretamento por viagem e, logo,

da existência de uma carta-partida, há lugar à emissão de um conhecimento de carga

pelo fretador a favor do afretador. Teremos, então, uma situação singular: aposta ou

sobreposta a uma relação jurídica em sentido estrito, entre fretador e afretador, temos

a emissão de um documento que, em virtude da sua especificidade, maxime no que à

sua circulabilidade concerne, potencia a externalização, se não da situação do seu todo,

pelo menos daquilo que o título em si comporta. A questão estará, então, em saber se

a emissão ou pelo menos a entrega do conhecimento revoga a carta-partida ou se

determina, antes, a necessidade de uma partilha de espaços de regulamentação. Como

parece evidente, o problema só se coloca se o título em causa for negociável, por ser à

ordem ou ao portador: se o conhecimento for simplesmente nominativo, não pode, à

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partida, circular, ficando (rectius, mantendo-se) assim vedada a intromissão de

terceiros na situação jurídica decorrente do fretamento. É que, numa situação deste

jaez, não existe verdadeiro concurso entre a carta-partida e o conhecimento de

embarque, já que este é importante para sair do círculo interno – imediato – daquela.

A única dúvida que se poderá então gerar – dúvida de, digamos concurso interno – é a

de saber de o conhecimento de carga desconforme com a carta-partida a prejudica e

substitui nessa parte, passando o estabelecido no conhecimento a vigorar como uma

alteração à mesma. Não vemos que seja possível resolver a questão simplesmente com

base na anterioridade da carta-partida e, logo, com base na maior atualidade do

conhecimento: não podemos esquecer o facto estrutural de a carta-partida ser bilateral

e o conhecimento ser unilateral. Assim, e à partida, só será de aceitar a precedência do

conhecimento quando os dizeres desconformes com a carta-partida constem também

da declaração de carga a que se refere o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 352/86, ou quando

o comportamento do afretador demonstre concordar com os termos do conhecimento.

Voltemos, porém, à situação que nos preocupa: àquela em que, num fretamento por

viagem, o fretador emite um conhecimento negociável que entrega ao afretador:

apaga-se, então, a valência da carta-partida em favor da lógica imperante do

conhecimento? A resposta não pode deixar de ser negativa, pelo menos numa primeira

fase, ou seja: a simples emissão e entrega do conhecimento negociável não pode, de

per si, revogar a carta-partida, tal como não revoga a emissão e entrega de um

conhecimento não negociável. Na verdade, o facto de o conhecimento ser negociável

não significa que venha a ser efetivamente negociado, podendo acontecer que, a final,

o título não saia das mãos do afretador; tudo se passará, então, na prática, como nos

casos atrás analisados, em que o conhecimento não era passível de circulação. Assim

sendo, a questão do concurso só se coloca quando o emitido conhecimento circula: é

nesse caso que intervirá, no terreno, um terceiro alheio às relações fretador-afretador,

que não se norteia, diversamente destas, pela lógica da charter-party mas, antes pela

lógica do conhecimento de carga. A questão que se levanta é, então, singelamente a

seguinte: é possível impor ao terceiro, portador legítimo do conhecimento o

regulamento da carta-partida ou este pode reivindicar, no que a si respeita, a aplicação

do regime do conhecimento de carga? A resposta é quase intuitiva e tem por si o regime

da B 1924, do Decreto-Lei n.º 352/86 e das RH 1978. A primazia do regime do bill of

lading, de acordo com a CB 1924, resulta da alínea b) do seu artigo 1.º, que equipara ao

contrato de transporte provado por um conhecimento ou documento similar servindo

de título o transporte de mercadorias por mar, o «conhecimento ou documento similar

emitido em virtude duma carta-partida, desde o momento em que esse título regule as

relação do armador e do portador do conhecimento». Por sua vez, o artigo 5.º, II CB

1924, depois de vincar que nenhuma das disposições desta se aplica às carta-partida,

exceciona a situação em apreço: «se no caso de um navio regido por uma carta-partida

forem emitidos conhecimentos, ficarão estes sujeitos aos termos da presente

Convenção». O regime que resulta da CB é, assim, claro: no âmbito das relações internas

entre as partes outorgantes da carta-partida, é esta aplicável; já no que concerne às

relações entre o emitente do conhecimento e o seu portador legítimo, vale o regime do

conhecimento de carga. Como explica a Cassazione (na sua sentença de 2/12/1984), a

origem da distinção está na ratio de impor aos transportadores de coisas determinadas

limites perentórios, em favor dos carregadores, à faculdade de derrogação das normas

sobre responsabilidade no transporte marítimo – exigência que não se faz sentir no

transporte de carga total ou parcial, já que os afretadores constituem uma categoria de

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carga total ou parcial, já que os afretadores constituem uma categoria particularmente

forte no tráfico marítimo que participa em condições de paridade com os

transportadores na determinação do conteúdo dos contratos. O sistema da CB é

explicado por Tetley:

«A bill of lading in the hands of a character who is also the shipper is only

a receipt and it is the charter-party of a character who is also the shipper is

only a receipt and it is the charter-party which is the contract of hire (and

of transportation) subject to the compulsory provisions of the Hague and

Hague/Visby Rules (or Hamburg Rules). On the other hand, if the bill of

lading is placed in the hands od a third party for value, then the bill of lading

is the contract of carriage between the bill of lading holder and the issuer

of the bill of lading and the vessel owner and probably the charter. In this

case, the mandatory provisions of the Hague or Hague/Visby or Harmburh

Rules apply».

O regime da CB tem inteira tradução no Decreto-Lei n.º 352/86, estabelecendo a alínea

b) do artigo 29.º que o diploma se aplica «nas relações entre o transportador e o terceiro

portador do conhecimento de carga, com prejuízo do que em contrário possa dispor a

carta-partida, quando esse conhecimento tenha sido emitido ao abrigo de uma carta-

partida». O regime do Decreto-Lei 352/86 é claro: o conhecimento de carga, uma vez

emitido e negociado, determinará a aplicação do regime do conhecimento, no que às

relações com o portador legítimo do título respeita; conforme se lê no doutrinário

preâmbulo do diploma (ponto 6) «o que se passará então é que, perante terceiros, o

fretador assume um estatuto análogo ao do transportador, com os corolários daí

dimanáveis». As situações que poderão suscitar dúvidas são aquelas em que o próprio

conhecimento remete para a carta-partida ou a anexa. A simples remissão deve ser

considerada ineficaz; já quanto à anexação, a solução que se lê no ponto 6 do

preâmbulo do Decreto-Lei n.º 352/86 – e «tudo se passará, então, no âmbito da

interpretação da vontade das partes e da aplicação da lei» - é pouco animadora já que

não dá a segurança que é essencial nas transações. A solução que, neste contexto, nos

surge como preferível, é dar aos casos de anexação o mesmo tratamento dos casos de

remissão. Contudo, em todas estas situações, será essencial colher a orientação que se

firme em sede jurisprudencial. Finalmente, o regime das RH 1978 não se afasta do

exposto relativamente à CB 1924 ou ao Decreto-Lei n.º 352/86. O artigo 2.º, n.º3, depois

de estabelecer que as disposições da Convenção não são aplicáveis a charter-parties,

faz a seguinte ressalva: «However, where a bill of lading is issued pursuant to a charter-

party, the provisions of the Convention apply to such a bill of lading if it governs the

relation between the carrier and the holder of the bill of lading, not being the charter».

Diversas das situações focadas, estão aquelas em que o conhecimento de carga é

emitido pelo afretador enquanto transportador. Nesses casos, estão claramente

delimitados o âmbito de aplicação da carta-partida, por um lado, que regula as relações

entre o fretador e o afretador e o do conhecimento de carga que vincula o

transportador-afretador face a terceiros. Nestas situações, em que não se concentram

na mesma pessoa a qualidades de fretador e transportador, será mais difícil o concurso

entre a carta-partida e o conhecimento de carga. Contudo, se ta acontecer, verbi gratia

pelo facto de o fretador, que detém as gestões náutica e comercial (artigo 8.º Decreto-

Lei n.º 191/87, 29 abril), emitir o conhecimento – então como agente do afretador

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(artigo 10.º Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro) – a solução será exposta para as

situações atrás analisadas.

4. As reservas no conhecimento de carga: a CB 1924 não alude diretamente a reservas

inseridas pelo transportador no conhecimento de carga, as o artigo 3.º, n.º3, depois de

enunciar os elementos que o conhecimento de carga – entregue pelo transportador (ou

capitão ou agente) ao carregador, a pedido deste – deve conter, dispõe no seu último

parágrafo o seguinte: «Porém, nenhum armador, capitão ou agente do armador será

obrigado a declarar ou mencionar no conhecimento, marcas, número, quantidade ou

peso que, por motivos sérios, suspeite não representarem exatamente as mercadorias

por ele recebidas, ou que por meios eficientes não pode verificar». É importante verificar

que a ressalva do último parágrafo do artigo 3.º, n.º3 não inclui os elementos referidos

na alínea c) imediatamente anterior, que menciona «o estado e o acondicionamento

aparentes das mercadorias». Ou seja: a admissão de reservas feita pela CB apenas s

refere a elementos objeto de prévia indicação pelo carregador, não abarcando os

referidos na citada alínea c), que são exclusivos do transportador. Não se pode concluir

daqui, sem mais, que à CB seja alheia a aposição de menções no conhecimento

relativamente ao estado e ao acondicionamento aparente da mercadora, desde logo

porque essas menções se apresentam, como se disse, desligadas da declaração do

carregador, curando a CB apenas da articulação entre os termos dessa declaração e a

do transportador, através do conhecimento de carga. O que se pode afirmar é que a CB

é omissa quanto a essas menções cuja caracterização como reservas é, aliás,

controversa. É importante destacar o facto de o artigo 3.º, n.º3 CB não admitir uma

qualquer aposição de reservas, exigindo que as mesmas encontrem uma justificação

objetiva nas condições da mercadoria e nos meios técnicos de carregamento. A

importância do conhecimento e dos respetivos dizeres – nos quais se incluem, se for

caso disso, as reservas admitidas no último parágrafo no artigo 3.º, n.º3 – torna-se

patente face ao estabelecido no artigo 3.º, n.º4 CB: «um tal conhecimento constituirá

presunção, salvo a prova em contrário, da receção pelo armador das mercadorias tais

como foram descritas conforme §3.º, alíneas a), b) e c)». A natureza da presunção

parece-nos clara: o transportador responderá pela mercadoria nos termos da sua

própria declaração, podendo, porém, fazer a prova de que, não obstante os dizeres (ou

os não dizeres) do conhecimento, a mercadoria foi efetivamente recebida em termos

diversos. Na prática, o artigo 3.º, n.º4 CB permite ao transportador exonerar-se de

responsabilidade face a um terceiro portador legítimo do conhecimento, na medida em

que consiga provar a receção em termos diversos dos mencionados no conhecimento.

O artigo 3.º, n.º4 CB 1924 viria a ser alterado pelo Protocolo de Visby, a que Portugal

não está vinculado, o qual veio tornar a presunção inilidível quando o conhecimento

tenha sido transferido para terceiro de boa fé. A alteração consumou-se através da

adição da seguinte expressão: «However, proof to the contrary shall not be admissible

when the bill of lading has been transferred to a third party acting in good faith». Face

ao Direito interno Português, um efeito similar é, de algum modo e até certo ponto,

conseguido através do regime do artigo 26.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86.

Diversamente da CB 1924, as RH 1978 tratam a questão das reservas de forma direta.

O artigo 16.º, n.º1 dispõe que o transportador (ou a pessoa que o emite em seu nome)

pode incluir no conhecimento uma reserva na qual especifique as inexatidões, os

motivos de suspeita u a falta de meios razoáveis para verificar os dados, quando sabe

ou tem motivos razoáveis para suspeitar que os dados constantes do conhecimento

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relativos à natureza geral, às marcas principais, ao número de volumes ou unidades, ao

peso ou à quantidade das mercadorias, não representam com exatidão as mercadorias

que tomou a seu cargo ou carregou ou não dispuser de meios razoáveis para verificar

tais dados. Quanto ao estado aparente das mercadorias, que constitui um dos

elementos que deverá constar do bill of lading (artigo 15.º, n.º1, alínea b) RH 1978) -

«the apparent condition of the goods», o artigo 16.º, n.º2 determina que se o

transportador (ou outra pessoa que emita o conhecimento em seu nome) não a

assinalar, tal equivalerá à menção de que a mercadoria estava em boa condição

aparente: «he is deemed to have noted on the bill of lading that the goods were in

apparent good condition». As RH retomam depois o sistema da presunção estabelecido

no artigo 3.º, n.º4 Regras de Haia/Visby dispondo (artigo 16.º, n.º3, alínea ) ) que, com

exceção dos casos em que tenham sido feitos nos termos e nos limites do artigo 16.º,

n.º1, o conhecimento constitui presunção, salvo prova em contrário (prima facie

evidence), de que o transportador tomou a mercadoria a seu cargo ou, no caso de se

tratar de shipped bill of lading a carregou, tal como surge descrito no conhecimento; na

esfera do aditamento das Regras de Visby ai artigo 3.º, n.º4 CB 1924, a alínea c) do

artigo 16.º, n.º3 das RH não admite, porém, prova em contrário por parte do

transportador quando o conhecimento tenha sido transferido para um terceiro de boa

fé: «if the bill os lading has been transferred toa third party, including a consignee, who

in good faith has acted in reliance on the description of the goods therein». Beneficiando

dos trabalhos que coduziram às RH 1978 e do próprio regime desta, o Decreto-Lei n.º

352/86, consagra o artigo 25, diretamente, às «reservas no conhecimento de carga»,

disposição que é complementada pelo artigo 26.º, relativo às cartas de garantia. A lei

portuguesa começa (artigo 25.º, n.º1) por estabelecer requisitos para as reservas: elas

devem ser claras, precisas e suscetíveis de motivação. Estas exigências cumulativas não

são complementadas com a estatuição da sorte das reservas que não revistam essas

características. Contudo, a consequência não pode deixar de ser a ineficácia dessas

reservas, funcionando o conhecimento como se as mesmas não tivessem sido apostas.

Estamos perante situações em que, por razões atinentes à segurança e lealdade das

transações há que irrelevar a letra – rectius, as especificas letras das reservas – do título,

numa justificada inflexão ao princípio da literalidade. As exigências do artigo 25.º, n.º1

Decreto-Lei n.º 352/86 são, assim, claramente contrárias à eficácia das reservas

genéricas que, a serem admitidas, subverteriam totalmente a economia e o regime do

conhecimento de carga, já que o transportador utilizaria sempre essa forma de se eximir

a qualquer responsabilidade. Atento, porém, a práticas como a da contentorização, o

artigo 25.º, n.º2 faz uma inflexão ao rigor draconiano do n.º1 do artigo, ao admitir que

o transportador possa não incluir no conhecimento os elementos a que se referem as

alíneas b) e c) do artigo 4.º, n.º1 – ou seja, as marcas principais necessárias à

identificação da mercadoria e o número de volumes ou de objetos e a quantidade ou o

peso – se, pela prática usual no tipo de transporte considerado e face às específicas

condições da mercadoria e aos meios técnicos das operações de carga, as declarações

prestadas pelo carregador não forem verificáveis em termos de razoabilidade. Abre,

assim o artigo 25.º, n.º2 claramente as portas À eficácia das conhecidas cláusulas «said

to be», «dice essere», «said to contain»; não obstante, independentemente das

situações específicas da diversidade de tipos de contentores, há que pôr em relevo o

facto de a cláusula said to contain não ser uma solução mágica para todas as menções

relativas à mercadoria contentorizada. Pense-se no peso da mercadoria que, a priori, é

verificável em termos de razoabilidade (artigo 25.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86);

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usando a terminologia do artigo 16.º, nº1 RH 1978, não haverá, em princípio, em

relação a ele, «absence of reasonable means of checking». Em suma, o artigo 25.º, n.º2

Decreto-Lei n.º 352/86, na linha do artigo 16.º RH 1978, abre as portas a reservas

genéricas mas não as escancara. Esta caracterização está de acordo com a apresentação

do regime do artigo 15.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86 feito no preâmbulo do diploma

(ponto 5):

«Realmente, sob pena de desorganizar por completo a sequência do

transporte, eliminando as vantagens que advêm da contentorização, não

será dado ao transportador, muitas vezes, verificar o conteúdo dos

contentores: terá de aceitar as indicações prestadas pelo carregador ou por

quem o substituía».

E ainda,

«A validade da reserva dependerá, no entanto, da verificabilidade de tais

indicações, em termos de razoabilidade».

É frequente a diferenciação entre reservas quantitativas e reservas qualitativas. As

primeiras – a que se reporta o artigo 25.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86 – respeitam,

grosso modo, à quantidade de mercadoria, enquanto que as segundas reportam-se à

qualidade da mesma. Mais rigorosamente, pode dizer-se que enquanto as quantitativas

respeitam grosso modo às menções das alíneas b) e c) do artigo 4.º, n.º1 Decreto-Lei

n.º 352/86 – as marcas principais necessárias à identificação de mercadorias e o número

de volumes ou de objetos e a quantidade ou o peso – as qualitativas reportam-se às

menções doo artigo 5.º, n.º1, alínea b) Decreto-Lei n.º 352/86: o acondicionamento e

o estado aparente das mercadorias. Em rigor, porém, só as primeiras são reservas, já

que só elas contrariam – colocam reservas – os termos da declaração do carregador. As

segundas inserem-se no desenvolvimento normal das menções do conhecimento de

carga, revestindo a particularidade de o transportador – diversamente do que esperaria

o carregador – dar nota negativa sobre o acondicionamento e o estado aparente da

mercadoria, não introduzindo, com tal menção, qualquer contraditório com a

declaração de carga do artigo 4.º, que não contém essa menção. As reservas

qualitativas – rectius, a não aposição de reservas quantitativas – surge focada no artigo

26.º, n.º2, segundo o qual a omissão de reservas em relação a defeitos da mercadoria

que o transportador conhecia ou devia conhecer no momento da assinatura do

conhecimento, determina que o mesmo transportador não possa prevalecer-se de tais

defeitos para exoneração ou limitação da sua responsabilidade. Aparentemente, em

função da sua inserção numa disposição relativa às cartas de garantia, o regime do

artigo 26.º, n.º2 só teria aplicação nos caos em que há emissão de tais cartas. Contudo,

pensamos que não é assim e que o regime estabelecido no artigo 26.º, n.º2 tem

igualmente aplicação nas situações em que o transportador omite reservas relativas à

qualidade da mercadoria sem ter exigido, como condição de omissão, a emissão de uma

letter of indemnity. Certo é que é difícil imaginar que um transportador emita um

conhecimento limpo quando constata – conhece, como diz o artigo 26.º, n.º2 – defeitos

da mercadoria, sem se garantir através de uma carta de garantia emitida pelo

carregador. Será assim, quiçá, uma das razões pelas quais a matéria surge estabelecida

no artigo 26.º, n.º2, em sede de cartas de garantia. Contudo, o legislador nacional

tomou a nuvem de Juno, já que não é seguramente inimaginável, se não já a emissão

de conhecimento limpo, sem exigência de uma carta de garantia, quando conhece os

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defeitos, pelo menos a emissão apressada de um conhecimento limpo quando não

conhece os defeitos, conquanto os devesse conhecer. Assim, o regime do artigo 26.º,

n.º2 não está, apesar das aparências contrárias, dependente da emissão de cartas de

garantia, surgindo antes, aparentemente, por inspiração, porventura não exclusiva, do

disposto no artigo 16.º, n.º2 RH 1978, de acordo com o qual se o transportador não

assinala no conhecimento de carga o estado aparente da mercadoria, considera-se que

ele apôs menção do bem estado aparente da mesma. Não encontramos, de facto, no

artigo 17.º RH, relativo às garantes by the shipper, qualquer alusão à matéria que surge

no artigo 26.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86. A preocupação central do artigo 26.º, n.º2

está – na linha do artigo 3.º, n.º4 das Regras de Haia/Visby e dos artigos 16.º, n.º2 e

16.º, n.º3, alínea h) RH – na proteção a terceiros de boa fé, perante os quais o

transportador poderia pretender exonerar-se de responsabilidade, ou limitá-la, fazendo

prova da receção da mercadoria em mau estado. Não é assim, correta, no nosso

entender, a interpretação segundo a qual o artigo 26.º, n.º2 impediria uma qualquer

ação do transportador contra o carregador, como punição pela emissão de uma

omissão de reservas qualitativas, desde logo, porque o artigo 26.º, n.º2 não cura das

relações entre transportador e carregador mas, antes, das relações entre o

transportador e o destinatário ou outro portador legítimo do título. Uma outra

observação se impõe ainda em relação ao regime do artigo 26.º, n.º2 Decreto-Lei n.º

253/86: uma vez que, diversamente do teor aparentemente pleno do artigo 16.º, n.º2

RH 1978, o artigo 26.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 352/86 apenas estatui em termos de

relações, digamos, externas, entre o transportador e o terceiro portador legítimo do

título, fica o campo aberto para, ilidindo a presunção expressa em letra de forma no

artigo 3.º, n.º4 CB 1924, o transportador fazer repercutir no carregador a indemnização

que tenha pago a terceiro.

5. As cartas de garantia: a CB 1924 não se refere às cartas de garantia do carregador

emitidas como condição de não aposição de reservas. Contudo, a CB reporta-se, como

vimos, a uma garantia dada pelo carregador ao transportador, só que a mesma é

inerente ao documento da declaração de carga que é entregue a este último. Na

realidade, o artigo 3.º, n.º5 CB estabelece que o carregador «será considerado como

tendo garantido ao armador, no momento do carregamento, a exatidão das marcas, do

número, da quantidade e do peso, tais como por ele foram indicadas»; a tradução

prática dessa garantia é seguidamente concretizada através da estatuição de que o

carregador indemnizará o armador de todas as perdas, danos e despesas provenientes

ou resultantes de inexatidões sobre estes pontos. Como é evidente – di-lo, aliás, o 2.º

período do artigo 3.º, n.º5 CB – o direito do transportador a obter uma indemnização

do carregador não limita de modo nenhum a sua responsabilidade e os seus

compromissos, derivados do contrato de transporte, para com qualquer pessoa diversa

do carregador. O regime de Direito interno é idêntico, neste particular: segundo o artigo

4.º, n.º2, que tem, de resto, natureza imperativa (artigo 27.º, n.º1) – o carregador

responde perante o transportador pelos danos resultantes das omissões ou incorreções

de qualquer elemento da declaração de carga. Contudo, face a terceiros, funciona a

lógica do conhecimento emitido pelo transportador que se não pode valer do facto de

ter sido eventualmente induzido em erro por uma informação do carregador. O teor do

conhecimento – a sua letra – é, neste particular, determinante. A contrapartida da

responsabilidade prevista no artigo 4.º, n.º2 está no artigo 5.º, n.º2: o transportador

responde, por sua vez, perante o carregador pelos danos resultantes de omissões ou

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incorreções de qualquer elemento do recibo ou conhecimento de carga. Cria-se, assim,

uma situação de, digamos, garantias recíprocas, que tem como consequência que o

transportador seja diligente na emissão do conhecimento, podendo mesmo responder

perante o carregador no caso de aposição de reservas injustificadas ou ineficazes.

Diversamente da CB, as RH estabelecem um regime específico para as cartas de garantia,

regime esse que influenciou o legislador nacional. O artigo 17.º, n.º2 considera

inoponíveis a terceiros («void and of no effect as against any third party»), incluindo

um consignatário, a quem o conhecimento tenha sido transferido, qualquer carta ou

acordo do garantia na qual o carregador assuma a responsabilidade por danos

resultantes da emissão do conhecimento de carga pelo transportador (ou seu

representante) sem reservas relativas aos elementos fornecidos pelo carregador para

inserção no conhecimento ou relativos ao estado aparente das mercadorias. Impõe-se,

desde logo, uma observação, sugerida pelo confronto com o estabelecido no artigo 3.º,

n.º3 CB 1924: as reservas referidas – como omitidas – no artigo 17.º, n.º2 RH não são

apenas reservas quantitativas mas também qualitativas, referentes «to the apparent

condition of the goods», o que demonstra, que as RH não diabolizam estas últimas.

Conforme já resultava, por interpretação, do artigo 17.º, n.º2, o artigo 17.º, n.º3

considera as cartas ou acordos de garantia eficazes em relação ao carregador. Contudo,

o mesmo artigo 17.º, n.º3 exceciona o caso em que o transportador (ou o seu

representante), ao omitir a inclusão de reservas, tenha tido a intenção de prejudicar um

terceiro, incluindo o consignatário, que aja em função da descrição das mercadorias

constante do conhecimento de carga. Neste caso, a carta (ou o acordo) de garantia não

é válida mesmo em relação ao carregador. Acresce que se as reservas omitidas se

reportarem a elementos facultados pelo carregador para inserção no conhecimento, o

transportador não tem direito a invocar a garantia dada pelo carregador imanente à

declaração de carga, garantia essa estabelecida no artigo 17.º, n.º1 RH e no artigo 4.º,

n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86. O regime do artigo 17.º, n.º4 RH expressa bem o propósito

de combater as cartas de garantia fraudulentas: no caos da fraude internacional por

parte do transportador (nos termos do artigo 17.º, n.º3), ele é responsável face a

terceiros, incluindo o consignatário, que tenha agido com base na descrição das

mercadorias constante do conhecimento de carga, sem poder invocar o benefício da

limitação de responsabilidade previsto na Convenção. O regime do artigo 26.º, n.º1

Decreto-Lei n.º 352/86 surge inspirado pelo artigo 17.º RH, estabelecendo, porém, um

regime aparentemente mais simples e mais suave: as cartas ou acordos de garantia em

que o carregador se compromete a indemnizar o transportador pelos danos resultantes

da emissão do conhecimento de carga sem reservas, não são oponíveis a terceiros,

designadamente ao destinatário e ao segurador. O regime do artigo 26.º, n.º1, não

difere, neste particular, do estabelecido no minucioso artigo 17.º, n.º2 RH, devendo

entender-se, que, tal qual neste acontece, as omitidas reservas pressupostas tanto

podem respeitar a elementos antes facultados pelo carregador na declaração de carga

(artigo 4.º) quanto ao estado aparente da mercadoria: ou seja, as omitidas reservas,

aqui referidas, tanto poderiam ser quantitativos como qualitativos. Estabelece, pois, o

artigo 26.º, n.º1 que os terceiros, não lhes podendo embora ser opostas as cartas ou

acordos de garantia, delas se podem prevalecer contra o carregador. Trata-se de uma

solução que não consta do artigo 17.º RH e que tem razão de ser, conquanto não seja

forte a probabilidade de ocorrência da situação aí prevista – ou seja, de o terceiro ter

acesso a uma carta ou acordo de garantia. Diversamente do artigo 17.º, n.º2 RH, o artigo

26.º, n.º1 aceita a validade e eficácia interna das cartas de garantia, no âmbito das

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relações entre o carregador e o transportador: na verdade, diversamente do regime das

RH, ainda que o transportador, ao omitir as reservas, tenha tido a intenção de prejudicar

um terceiro, ainda assim continua a ter a cobertura da responsabilidade do carregador,

eventualmente reforçada por garantias especiais. O legislador nacional terá,

aparentemente, ponderado que o verdadeiro beneficiário dessa fraude é o carregador,

pelo que não se justificaria uma solução que o favorecesse, a final, como ocorre com o

regime das RH, ao considerar nulos as cartas ou acordos. A solução das RH parece partir

do improvável pressuposto de que a fraude do transportador é unilateral e não

concertada com o carregador. Não é por acaso que Remond-Gouillaud, depois de aludir

ao facto de a carta fraudulenta ter como consequência a privação do transportador do

direito de a invocar mesmo contra o carregador, considera a medida excessiva: «dans

les rapports interpartes, en revanche, on conçoit moins biens porquoi lla lettre ne

pourrait être belle et bonne: la répartition dès risques de l’opération de transporte st

leur affaire dès lors qu’elle ne nuit pas aux tiers». Resulta do exposto que, no quadro

gral das soluções possíveis no que à validade e eficácia das cartas de garantia concerne,

a leiportuguesa dá plena eficácia ao contrato de garantia nas relações entre as partes,

não aplicado a lógica das fraus omnia corrumpit, que encontramos no artigo 17.º, n.º3

RH. Do artigo 26.º, m.º2, já focado supra, resulta que se as reservas omitidas se

referirem a defeitos da mercadoria que o transportador conhecia ou devia conhecer no

momento da assinatura do conhecimento de carga, o transportador não pode

exonerar-se de responsabilidade (ou limitá-la) com base em tais defeitos. Cremos ter

demonstrado que o regime estabelecido no artigo 26º., n.º2 não está forçosamente

associado à existência de cartas de garantia, conquanto seja essa a situação mais

previsível, pelo menos nos casos em que o transportador conhecia efetivamente os

defeitos.

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Capítulo I – Identificação do contrato de transporte de

mercadorias76

Secção I – O contrato de transporte em geral

Conceito e características: apesar das inúmeras variantes do contrato de transporte e da

correlativa diversidade de regimes jurídicos aplicáveis, pensamos ser aconselhável o seu

tratamento unitário inicial. Na verdade, importa destacar as características essenciais comuns às

várias modalidades, características essas que se nos afiguram bastantes para permitir analisar,

com a necessária adequação, o contrato de transporte. O contrato de transporte pode ser definido

como o contrato pelo qual uma das partes – o transportador – se obriga a deslocar determinadas

pessoas ou coisas de um local para outro, mediante retribuição. Nesta noção destaca-se a

obrigação de deslocar, pois reside aí o núcleo definidor do instituto, que autoriza a sua

abordagem como tipo contratual unitário. Não obstante a unanimidade existente a este propósito,

trata-se de um aspeto que merece ser sublinhado e precisado atendendo à sua importância. A

mera deslocação física de pessoas ou coisas não implica imediata e inelutavelmente a existência

de um contrato de transporte. Em múltiplas circunstâncias a deslocação surge como operação

material inerente ao fornecimento de uma outra prestação; não constituindo, nestes casos, a

finalidade primeira do contrato. Ora, a deslocação terá de ser o principal da prestação do

transportador. Quando tal não acontece, não se pode falar de contrato de transporte. A doutrina

e a jurisprudência francesas apresentam um rol de situações exemplificativas do que acabamos

de expor e que passamos a enumerar. Na sequência de um contrato de fretamento pode operar-

se a deslocação de mercadorias, todavia o cerne de tal contrato reside no colocar à disposição

do afretador um navio, ou parte dele, para fins de navegação marítima e não na deslocação.

Refiram-se ainda os casos do contrato de compra e venda com entrega no domicílio do

comprador; do contrato de manuseamento de carga (onde se inclui, entre outros, o contrato de

estiva)77. O controlo que o transportador exerce sobre a deslocação tem também influência na

qualificação do contrato de transporte. Exige-se eu seja ele a dirigir em exclusivo a deslocação,

uma vez que nenhum dos demais intervenientes no contrato interfere na sua atividade, ou, dito

de outro modo, o transportador tem a gestão comercial e técnica da execução material das

operações de deslocação. O que distingue o contrato de transporte de figuras próximas, como

sejam o aluguer de veículos de transporte ou o reboque é justamente o facto de a direção da

deslocação não pertencer, nestes contratos, ao transportador. Efetivamente, no aluguer de

veículos de transporte, o locador ainda que forneça o condutor ou a tripulação não pode ser

considerado transportador pois não tem a direção das operações de transporte, nem sequer

recebeu as mercadorias ou pessoas a transportar. A operação de reboque marítimo serve,

também, para exemplificar o problema em causa; a sua qualificação jurídica dependerá do

controlo exercido pelo rebocador sobre o rebocado. Estar-se-á perante um contrato de transporte

se o rebocador tiver a direção e o controlo da operação. Se, porventura, o rebocado participar

ativamente na operação então o que existe é um mero contrato de prestação de serviços. O que

se disse para o contrato de reboque marítimo vale também para o contrat de poussage e, bem

assim, para as demais modalidades de reboque. Apesar de ser possível a «variação da

consignação dos objetos em caminho» (artigo 380.º CCom) nem por isso o transportador deixa

76 Rocha, Francisco Costeira da; O Contrato de Transporte de Mercadorias, Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias; Livraria Almedina; Coimbra, julho 2010. 77 Também designado por contrato de manutenção (traduzindo do Francês contract du manutention).

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de ter a direção efetiva do transporte. A direção abrange apenas a organização da operação de

movimentação de mercadorias e não a definição do que se transporta, em que condições e para

quem. Exemplificando: uma coisa é acordar sobre o meio de transporte e utilizar, outra é

escolher o concreto veículo onde o transporte se efetuará. A direção pelo transportador da

operação de deslocação não exclui a cooperação dos demais intervenientes (v.g. carregador,

destinatário) na boa execução do contrato; tais deveres laterais de conduta são decorrência do

princípio da boa fé objetiva. Embora se diga que a deslocação há-de ser «de um local para

outro», em boa verdade apenas se quer vincar a necessidade de uma transferência física e

material no espaço, sendo essencial que as pessoas ou coisas sejam deslocadas para um sítio

diferente do ponto de partida. Todavia, não basta falar, apenas, em deslocação. O transportador

não se obriga a deslocar as mercadorias de qualquer maneira, mas a fazê-lo de tal modo que

umas e outros cheguem ao destino incólumes. Quer dizer, o transportador tem um dever de

custódia relativamente às mercadorias e um dever de vigilância (também designado por

obrigação de segurança) quanto às mercadorias. Por isso, há incumprimento do contrato de

transporte (lato sensu) não só em caso de perda total, mas igualmente em caso de perda parcial

ou de avaria (e também, obviamente, em caso de atraso na entrega). A obrigação nuclear e

caracterizadora do contrato de transporte situa-se no campo das obrigações de resultado: o

transportador obriga-se a proporcionar um concreto resultado que satisfaz o interesse creditório

final ou primário, a saber, a entrega da mercadoria transportada ao destinatário. Acresce que o

contrato de transporte não se esgota na deslocação de pessoas ou coisas, antes abrange todo o

período que decorre desde o momento em que o transportador recebe as coisas a transportar até

que são entregues no local convencionado. Como contrapartida da prestação do transportador

deverá ser pago o preço do transporte. A onerosidade constitui uma característica de que não

prescinde a generalidade da doutrina, de tal modo que se coloca a retribuição ao lado da

obrigação de deslocar como sendo os dois elementos essenciais do contrato. Um outro problema

– que desde há muito vem sendo debatido e ainda sem solução aceite generalizadamente – é o

de saber sobre quem recai a obrigação ou o ónus do pagamento do preço do transporte.

Atendendo aos dois referidos elementos, costuma qualificar-se o contrato de transporte como

um contrato sinalagmático, pois existem duas prestações ligadas por um nexo de reciprocidade:

por um lado, a obrigação de deslocar pessoas ou coisas e, por outro, a obrigação de pagamento

do preço. O contrato de transporte caracteriza-se por uma paradoxal consensualidade, pois

embora se afirme que o contrato de transporte em gral é um contrato consensual, que vale neste

âmbito o princípio da liberdade de forma (artigo 219.º CC), é também verdade que ao contrato

de transporte surge quase sempre ligado um documento de transporte. De todo o modo, continua

a defender a doutrina contemporânea que estemas perante um contrato consensual, e no duplo

sentido que a fórmula comporta. Em primeiro lugar, porque a lei não costuma exigir que as

declarações de vontade das partes se manifestem com determinada forma; vale, portanto, o

princípio da liberdade de forma. Esta solução resulta quer da inexistência de normas impondo o

formalismo, seja de várias disposições, onde se estabelece que da inexistência dos documentos

de transporte não resulta prejuízo para a validade do contrato de transporte (e no mesmo sentido,

a jurisprudência: acórdão RP 1983/10/06). Uma das exceções a esta normal consensualidade

emerge do artigo 3.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 352/86, onde se estabelece que «o contrato de

transporte de mercadorias por mar está sujeito a forma escrita». Refira-se que na vigência dos

artigos 538.º CCom – revogados pelo Decreto-Lei n.º 352/86 – a emissão do conhecimento de

carga já era exigida. Não se pense porém, que ao afastar o princípio da liberdade de forma o

nosso legislador tenha inovado ou imposto um custoso encargo às partes. Por um lado, os

documentos de transporte existem há séculos, nomeadamente o conhecimento de embarque, e

são hoje, como sempre foram, de utilização corrente. Por outro, neste âmbito, não se exige um

formalismo rígido, antes se concede uma ampla maleabilidade à forma escrita. Mas ainda

quando não se exige a forma escrita, da sua ausência resultam importantes consequências. Por

outro lado, o contrato de transporte é um contrato consensual no sentido de não real pois não se

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exige, além das declarações de vontade das partes, a prática anterior ou simultânea de um certo

ato material, isto é, a entrega da mercadoria. A perfeição do contrato dá-se com o simples acordo

das partes. A entrega da mercadoria são já o início da execução do contrato. Atualmente, o

contrato de transporte apresenta-se, na esmagadora maioria dos casos, como um contratual

standard (contrato de adesão), assentando sobre cláusulas contratuais gerais. Não surpreende

que seja assim porquanto o Direito dos Transportes não é, nem nunca foi, alheio à aceleração da

história, nem à interpenetração entre Direito e realidade social, nem à padronização negocial

imposta pelo dinamismo inerente à atividade económica em geral e dos transportes em especial.

Embora ainda subsistam contratos de transporte com cláusulas especificamente negociadas, o

mais frequente é o recurso a um clausulado tipo. De tal forma que, segundo alguma doutrina, a

principal divisão do contrato de transporte operar-se-ia entre contratos standard e contratos

negociados. Autores há que apenas aceitam a qualificação de um contrato como de transporte

se se verificarem outros pressupostos. Assim, e por exemplo, para além dos aspetos expostos há

a realçar a posição tradicional da doutrina francesa que entende como elemento necessário ao

contrato de transporte o caráter profissional do transportador.

Transporte marítimo: a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em

Matéria de Conhecimentos, assinada em Bruxelas em 25 agosto 1924 – mais conhecida por

Convenção de Bruxelas de 1924 –, constitui, ainda hoje, um marco essencial e o normativo mais

aplicado, relativamente ao contrato de transporte marítimo de mercadorias. Pelo Decreto n.º 19

857, de 18 maio 1931, foi autorizada a adesão de Portugal à CB. A subsequente Carta de Adesão

foi subscrita em 5 dezembro 1931 e depositada a 24 dezembro 1931. Seis meses após esta data,

isto é, a 25 junho 1926, a CB passou a produzir efeitos em relação a Portugal (artigos 12.º, alínea

2 e artigo 14.º CB). Continua a ser a única Convenção Internacional relativa ao contrato de

transporte marítimo a que Portugal aderiu. Aquela Convenção sofreu já duas alterações, uma

pelo Protocolo de 23 fevereiro 1968, outra pelo Protocolo 21 dezembro 1979, mas nenhum deles

mereceu a adesão de Portugal. O Decreto-Lei n.º 37.748, 1 fevereiro 1950, veio «introduzir em

Direito interno»? Os artigos 1.º a 8.º da Convenção. Perante as evidente limitações da CB 1924,

surgiu a necessidade de uma nova disciplina, necessidade colmatada com as Regras de

Hamburgo, entradas em vigor em 1992, e constantes da Convenção das Nações Unidas sobre o

Transporte de Mercadorias por Mar, de 31 março 1978, também conhecida por Convenção de

Hamburgo. Apesar de ainda não ratificada pelo nosso país, esta Convenção reveste grande

interesse para a matéria em análise; seja por conter as evoluções sofridas pelo regime aplicável

ao transporte marítimo de mercadorias desde a CB 1924, seja porque as Regras de Hamburgo

foram uma das principais fontes inspiradoras da reformulação do Direito Comercial Marítimo

português empreendida em 1986. Como referimos acima, o artigo 366.º, §4. CCom estabelece

que os transportes marítimos são regulados pelas disposições aplicáveis do Livro Terceiro do

mesmo Código, destacando-se neste Livro as normas contidas nos Capítulos V, Vi, VII do Título

I. Passado cerca de um século sobre sua publicação, sem qualquer alteração, fácil é imaginar o

desajustamento destes textos face à realidade a que se dirigiam. Daí a permanência da citada

reformulação. No que respeita ao contrato de transporte de mercadorias por mar, destaca-se a

publicação do Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, que, além de outros preceitos, revogou os

artigos 538.º a 540.º CCom, ou seja, todo o Capítulo V, referente ao conhecimento de carga.

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Secção II – O contrato de transporte de mercadorias

Subsecção I – Noção

Definição: tomando como referência a noção proposta para o contrato de transporte em geral

podemos definir o contrato de transporte de mercadorias como o contrato pelo qual uma das

partes – o carregador – encarrega outra – o transportador – que a tal se obriga, de deslocar

determinada mercadoria de um local para outro e de a entregar pontualmente ao destinatário,

mediante retribuição. Aqui, como em qualquer modalidade do contrato de transporte, a

deslocação assume especial relevo. Bem se compreende, por isso, o protagonismo que alguma

doutrina atribui ao transportador, uma vez que este é o responsável pela deslocação das

mercadorias. Porém, assiste-se, atualmente, a um afastamento do fulcro do contrato da

deslocação para a entrega. No início do século XIX o acento tónico era posto no momento da

carga, nas operações à partida da mercadoria e no acordo entre carregador e transportador tal

como emergia do documento de transporte. Já na maior parte do século XIX e do presente século

o contrato de transporte era o contrato dos transportadores, no sentido de que a sua posição era

a posição preponderante. Sublinhava-se, então, a obrigação de deslocar a mercadoria, mas de

acordo com as conveniências dos transportadores. Atualmente, o acento tónico é posto no

momento da entrega; vem-se entendendo que a deslocação embora constituindo a obrigação

principal do transportador não passa de um meio tendente a permitir a entrega da mercadoria ao

destinatário. Assim, este interveniente adquire uma insuspeitada relevância e o contencioso

relativo à entrega conheceu um incremento notável. Concomitantemente, faz-se agora constar a

entrega da noção do contrato de transporte de mercadorias.

O conceito de mercadoria: o regime jurídico do contrato de transporte assenta,

tradicionalmente, na summa divisio entre o contrato de transporte de pessoas e o contrato de

transporte de coisas. E também muitos autores apresentam as suas reflexões baseando-se nesta

dicotomia. No entanto, vários obstáculos desaconselham o estudo do contrato de transporte de

coisas, ainda que por contraposição ao contrato de transporte de pessoas: quer as dificuldades

emergentes do conceito de coisa, quer a multiplicidade e heterogeneidade de coisas existentes,

quer as especificidades inerentes ao transporte das diversas coisas, quer a correspondente

multiplicação de textos normativos sobre o contrato de transporte de certas coisas. Sendo assim,

fizemos incidir a nossa atenção, apenas, sobre o contrato de transporte de mercadorias. Importa,

pois, refletir sobre o conceito de mercadoria, com vista a tentar caracterizá-lo e circunscreve-lo.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa entende-se por mercadoria «tudo aquilo que

é suscetível de compra e venda; todo género que se destina ou se expõe à venda, que se compra

ou que se vende»; e por coisa «tudo o que existe ou pode existir». Daqui resulta, acertadamente,

que os termos mercadoria e coisa não são sinónimos, que o termo coisa é mais abrangente que

o vocábulo mercadoria. É um lugar-comum, dir-se-á; porém escasseiam elementos que auxiliem

na tarefa de determinar com rigor o que seja uma mercadoria. Quer dizer, constitui objeto do

presente estudo não o contrato de mercadorias, isto é o contrato de transporte de certas coisas.

Perante a evidente dificuldades em circunscrever o alcance do vocábulo mercadorias, os

diversos textos normativos, máxime as Convenções Internacionais relativas ao transporte de

mercadorias (repare-se que nenhuma destas Convenções se dirige ao transporte de coisas)

costumam incluir uma indicação. No entanto, são normalmente indicações insuficientes de onde

resultam dificuldades para o intérprete. Em matéria de transporte marítimo, segundo a CB, o

termo «mercadorias compreende os bens, objetos, mercadorias e artigos de qualquer natureza,

exceto animais vivos e a carga que, no contrato de transporte, é declarada como carregada no

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convés e, de facto, é assim transportada» (artigo 1.º, alínea c) CB 1924). O vocábulo

mercadorias tem, aqui, um alcance circunscrito, não abrangendo, também, as bagagens de

passageiros nem as plantas vivas. Nas RH, o alcance do vocábulo é ampliado passando a incluir

os animais vivos (artigo 1.º, n.º5 RH), os próprios contentores, palettes e embalagens similares

(artigo 1.º, n.º5 RH) e, por outro lado, são afastadas as tradicionais restrições quanto às

mercadorias transportadas no convés (artigo 9.º RH). O Decreto-Lei n.º 352/86 não define

mercadorias, nem se refere expressamente a qualquer mercadoria em especial, como por

exemplo aos animais vivos. Tal como a lei francesa de 1996, o Decreto-Lei n.º 352/86 aplica-

se a qualquer mercadoria, pois não exclui do seu âmbito nem os animais e plantas vivas, nem as

mercadorias transportadas no convés. No caso do transporte de mercadorias no convés, as

especialidades resultam não da mercadoria transportada mas do facto de o transporte ser feito

no convés. Do exposto resulta que o conceito de mercadorias se apresenta vage e o elenco de

ens aí contido variável. Não obstante, pode tomar-se (ao menos) como ponto de partida a

seguinte definição: mercadorias, no âmbito do contrato de transporte, são coisas que possam ser

objeto de operações comerciais ordinárias. Em relação a cada tipo de transporte há que atender

aos normativos aplicáveis.

Operações que necessariamente precedem ou se seguem à deslocação da

mercadoria: de acordo com a orientação hoje prevalecente, devem estar sujeitas ao regime do

contrato de transporte todas as operações que necessariamente precedem ou se seguem à

deslocação, sem prejuízo de estas operações poderem ser objeto de contratos específicos.

Referimo-nos às operações designadas de uma forma genérica por operações de manuseamento

de carga (manutention ou handling); no essencial, ao carregamento, estiva, descarga e

armazenamento das mercadorias. A CB aplica-se ao «carregamento, manutenção, estiva,

transporte, guarda, cuidados e descargas» (artigo 2.º), isto é, ao «tempo decorrido desde que

as mercadorias são carregadas a bordo do navio até ao momento em que são descarregadas»

(artigo 1.º, alínea e CB1924). Ficam, portanto, excluídos os períodos que medeiam entre a

receção e o carregamento e entre a descarga e a entrega; períodos em que também decorre a

execução do contrato de transporte. Segundo o artigo 7.º CB 1924, valerá o princípio da

liberdade contratual. Nos contratos de transporte marítimo de mercadorias nacionais, o regime

aplicável é o definido no Decreto-Lei .º 352/86. Relativamente ao período receção/carregamento,

o artigo 6.º Decreto-Lei n.º 352/86 estabelece a aplicação do regime do contrato de depósito

«regulado na lei civil» (isto é, artigos 1185.º e seguintes CC, o CCom dedica ao contrato de

depósito os artigos 403.º a 407.º). E ainda que ocorra a intervenção de terceiros em qualquer

operação relativa à mercadoria, nem por isso a responsabilidade do transportador é afastada,

embora este conserve o direito de agir (direito de regresso) contra esses terceiros (artigo 7.º

Decreto-Lei n.º 352/86). Também ao período posterior à descarga se aplica o regime do contrato

civil de depósito, porém, neste caso, o Decreto-Lei n.º 352/86 apenas prevê expressamente a

aplicabilidade de tal regime quando o transportador deve entregar a mercadoria, «no porto de

descarga, à entidade a que, de acordo com os regulamentos locais, caiba recebê-la» (artigo

18.º Decreto-Lei n.º 282-B/84, 20 agosto, sobre operadores portuários), sendo portanto aquela

entidade que fica sujeita ao citado regime. Se porventura o transportador não entregar as

mercadorias a tal entidade e continuar a detê-las – seja porque o destinatário se recusa a receber

a mercadoria (artigo 19.º Decreto-Lei n.º 352/86), seja porque várias pessoas pretendem a sua

entrega (artigo 20.º Decreto-Lei n.º 352/86), pode questionar-se qual será o regime aplicável.

Nas hipóteses previstas nos artigos 19.º e 20.º Decreto-Lei n.º 352/86, a mercadoria «fica à

guarda» da entidade referida (como se dispõe expressis verbis, mas apenas no artigo 20.º). Já

no caso do exercício do direito de retenção o transportador pode manter a mercadoria a bordo

(artigo 21.º, n.º 3 Decreto-Lei n.º 352/86) e neste caso a mercadoria continua embarcada,

aplicando-se, inquestionavelmente, a disciplina do contrato de transporte e sendo caso disso a

CB 1924. Mas pode também optar pela descarga da mercadoria, devendo então assegurar «com

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diligência a sua guarda e conservação» (artigo 21.º, n.º4 Decreto-Lei n.º 352/86). No artigo

23.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 352/86, o legislador veio dissipar as dificuldades em torno dos

conceitos de carga e descarga, ao estatuir: «para efeitos do disposto o presente diploma, a

mercadoria considera-se carregada no momento em que, no porto de carga, transpõe a borda

do navio de fora para dentro e descarregada no momento em que, no porto de descarga

transpõe a borda do navio de dentro para fora». Este critério gera uma situação peculiar: no

decurso da mesma operação aplicam-se regimes diferentes consoante a mercadoria esteja para

um ou para outro dos lados da borda do navio. A determinação exata do momento de embarque

e desembarque assume grande importância pois, entre o mais, por aí se apurará se é ou não

aplicável a CB 1924. Pires de Lima/Antunes de Varela afirmam claramente que a obrigação de

guardar uma coisa pode existir no contrato de transporte; no entanto advertem que, neste caso,

a obrigação de guardar é sempre secundária, acessória ou instrumental, enquanto no depósito

ela tem caráter final. O contrato de depósito tem natureza real, exigindo-se pra que exista a

entrega da coisa.

A receção da mercadoria a transportar: sendo o contrato de transporte um contrato

consensual, no sentido de não real, que fica celebrado com o encontro de vontades dos

contraentes, a receção da mercadoria, pelo transportador constitui o primeiro ato de execução

do contrato. O carregador tem aqui uma evidente obrigação de cooperação, pois deve entregar

a mercadoria para que esta possa ser transportada. Por sua vez, o transportador deve receber a

mercadoria se esta estiver de acordo com o estabelecido (a mercadoria pode ser recebida ainda

que não esteja conforme, mas devendo o transportador formular as respetivas reservas, sob pena

de vir a ser responsabilizado pelos defeitos apresentados pela mercadoria). A receção é o ato

pelo qual o transportador passa a deter materialmente a mercadoria e aceita transportá-la nas

condições em que se apresenta. A partir deste momento incide sobre o transportador o dever de

guarda da mercadoria a transportar. Como adiante melhor se verá, o transportador é um simples

detentor ou possuidor precário (artigo 1253.º, alínea a) CC), pois exerce um poder de facto sobre

a mercadoria a transportar sem intenção de agir como beneficiário de um direito real sobre a

mesma. Segundo Asquini, o transportador exerce a «detenzione del carico per conto del mittente

[expedidor] che resta possessore mediato». Não ocorrendo a entrega das mercadorias ao

transportador, o que inviabiliza, logicamente, a receção, torna-se impossível ao carregador tendo

este que suportar todas as consequências daí emergentes. Gonneli/Mirabelli entendem que não

é possível o transportador obter o cumprimento coativo da obrigação de entrega do carregador,

fundando-se no direito conferido pelo artigo 1685.º do CCIV 1942 ao carregador de, mesmo

após a receção, suspender o transporte e exigir a restituição da coisa ainda que com a obrigação

de pagar ao transportador as despesas e de reparar os danos por este sofridos. Além da

mercadoria o carregador deve entregar ao transportador todos os documentos que a devem

acompanhar e, bem assim uma declaração de carga. Se tiver sido convencionado que o preço de

transporte é pago à partida, o carregador deve, no momento da receção, pagar o preço do

transporte e das prestações acessórias. Incorrendo o carregador em mora, o transportador tem o

direito de suspender a execução do transporte (exceptio non adimpleti contractus), de exercer o

direito de retenção sobre a mercadoria (artigo 390.º CCom, artigo 755.º, n.º1, alínea a) e n.º CC;

artigo 2761.º CCIV 1942) e todas as demais prerrogativas que lhe assistem, na sequência da

mora.

A obrigação de entregar a mercadoria ao destinatário: entendemos que a noção do

contrato de transporte de mercadorias deve referir, de forma expressa, a entrega da mercadoria

ao destinatário; autonomizando-a, pela sua importância, da obrigação de deslocar a mercadoria,

onde costuma vir integrada. Não é supérfluo acentuar que a obrigação essencial do transportador

é de entregar a mercadoria ao destinatário. O transportador cumpre o que lhe impõe o contrato

de transporte com a entrega da mercadoria ao destinatário. O transportador cumpre o que lhe

impõe o contrato de transporte com a entrega da mercadoria ao destinatário. O cumprimento de

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contrato só pode ser aferido por referência a este momento; é no momento da entrega que o

destinatário verifica o estado das mercadorias. Por isso, hoje em dia, atribui-se mais importância

à entrega do que à própria deslocação da mercadoria. Finalmente, é a partir deste momento que

começam a contar-se os prazos de propositura das ações relativamente ao contrato. A obrigação

de entrega da mercadoria ao destinatário remete-nos para a estrutura triangular do contrato de

transporte, na medida em que chama ao contrato um personagem que não interveio na

estipulação entre carregador e transportador, mas a ela insitamente ligado. Importa sublinhar

que descarga e entrega são realidades distintas. A descarga é uma operação material, enquanto

a entrega é um ato jurídico, podendo decompor-se em dois momentos, a apresentação da

mercadoria ao destinatário e a sua aceitação. Segundo Rèmond-Goullioud no contrato de

transporte marítimo internacional de mercadorias a entrega coincide com a descarga. No entanto,

Palma Carlos manifesta opinião contrária.

Estrutura triangular: desde há mais de um século, no fundo desde que o contrato de

transporte surge com a sua fisionomia moderna, que se atribui ao destinatário um papel de

primeira importância, a ponto de atualmente se afirmar que o destinatário (ou talvez mais

corretamente, a entrega) é a razão de ser do contrato. Admitiu-se de forma pacífica que

carregador, transportador e destinatário são os três principais intervenientes no contrato. Já se

vê, então, porque falamos de estrutura triangular. Porém, esta constatação não evita a

persistência de dúvidas e discussões em torno da qualificação da posição jurídica do destinatário

e da natureza jurídica do contrato de transporte. Ainda hoje, no final do século XX, se continua

a discutir a natureza jurídica do contrato, mas sempre sem contestar a intervenção do carregador,

transportador e destinatário. Embora a doutrina maioritária continue a defender que o contrato

de transporte de mercadorias é um contrato bilateral e sinalagmático celebrado entre carregador

e transportador, sendo o destinatário um terceiro, logo se invoca a figura do contrato a favor de

terceiro. Quer dizer, mesmo de acordo com a perspetiva tradicional o destinatário não é afastado

do contrato, pelo contrário: o destinatário é uma figura essencial ao equilíbrio do instituto. Ainda

que a maioria o qualifique como terceiro, reconhece que é um terceiro próximo dos outros

intervenientes e particularmente interessado no resultado do negócio, pois o transporte tem em

vista a entrega da mercadoria ao destinatário. Segundo a orientação ainda hoje maioritária, o

contrato de transporte de mercadorias constitui um exemplo de contrato a favor de terceiro,

realizando-se por esta via a integração do destinatário no contrato. Carregador, transportador e

destinatário, todos diferentemente interessados no contrato, são como que vértices de um

triângulo. No lado carregador-destinatário temos a relação de cobertura ou de provisão. No lado

transportador-carregador verifica-se a relação de valuta. No lado destinatário-transportador

encontramos o direito do destinatário à prestação do transportador. Mas ainda que assim não se

entenda – i. e., ainda que se rejeita a qualificação do contrato de transporte ccomo contrato a

favor de terceiro – qualquer que seja a natureza jurídica que se pretenda atribuir ao contrato,

será sempre verdade que estamos perante uma estrutura triangular, existem três centros de

interesses, diferenciados mas complementares. Advirta-se, uma vez mais, que nos estamos a

referir à situação normal de contrato de transporte em que não há coincidência entre carregador

e destinatário. Coincidindo a pessoa do carregador no destinatário não existirá uma estrutura

triangular (fica postergada a trialidade), tudo funciona entre dois intervenientes principais: o

carregador e o transportador.

Subsecção II – Distinção de figuras próximas

Figuras próximas do contrato de transporte: breve enumeração: a caracterização do

contrato de transporte de mercadorias não ficaria completa sem o distinguirmos de figuras

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próximas com as quais se poderia confundir. A complexidade material que o envolve e que é

inerente ao mesmo potencia o surgimento de figuras contratuais gravitando na sua órbita, mas

dele distintas. Importa estudá-las e distingui-las, não só porque se afigura cientificamente

necessário traçar o respetivo perímetro substantivo porque a delimitação das diferentes figuras

é de suma importância prática, como bem demonstra a abundante jurisprudência produzida

sobre a matéria. Incluem-se neste grupo, nomeadamente, o contrato de expedição ou trânsito, o

contrato de reboque e o contrato de fretamento78.

O contrato de reboque:

1. Introdução: não se ignora que a discussão clássica a propósito do contrato de reboque

costuma confrontar o contrato de reboque marítimo com o instituto da salvação e

assistência; no entanto, a confundibilidade com o contrato de transporte, porque existe

realmente, não deve ser ignorada. De entre as várias modalidades que pode revestir o

contrato de reboque, sobressai pela sua importância prática o reboque marítimo. Mas,

como no já distante ano de 1873 constatava Éloy, o reboque marítimo só adquire a sua

relevância com o advento da navegação a vapor.

2. Noção e modalidades: de acordo com o Decreto-Lei n.º 431/86, 30 dezembro – que

estabelece o regime jurídico do contrato de reboque marítimo – «o contrato de reboque

é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a proporcionar a força

motriz de um navio, embarcação ou outro engenho análogo, designado rebocador, a

navio, embarcação flutuante diverso, designado rebocado, a fim de auxiliar a manobra

deste ou de o deslocar de um local para local diferente». De acordo com a definição

legal o elemento caracterizador do contrato de reboque, quer marítimo, quer de qualquer

outra natureza é o proporcionar força motriz. Este núcleo deverá ser entendido em

sentido amplo. Ou seja, proporcionar força motriz, não é apenas rebocar na aceção

corrente do termo de arrastar atrás de si, aceção que neste âmbito se revela demasiado

restritiva, mas também, por exemplo, travar ou acelerar o movimento do rebocado, ou

ainda empurra-lo. Repare-se que o elemento definidor é o proporcionar força motriz,

independentemente da finalidade que com ela se pretende atingir. O objeto do contrato

de reboque não é a deslocação, mas sim o proporcionar força motriz. Pode dizer-se que

a força motriz proporcionada é um meio tendente a um ceto fim. Só que esta finalidade

exorbita da obrigação nuclear do rebocador, este obriga-se, apenas, a fornecer força

motriz. A finalidade do reboque pode ser carreada para o âmbito contratual, mas será

algo que acresce ao núcleo definidor do contrato, e como tal não integra esse núcleo.

Importa sublinhar que à operação material comummente designada por reboque pode

não corresponder um contrato de reboque. Na verdade, a operação física pode ser a

materialização de diversas figuras jurídicas. Resulta assim que também aqui haverá de

atender à vontade das partes e às circunstâncias do caso para a determinação do instituto

em causa. O nomen iuris atribuído ao contrato celebrado pode ser irrelevante, por

exemplo, se se verificarem os pressupostos da assistência. Dito de outro modo, para

estarmos perante um contrato de reboque não basta a realização material de uma

operação de reboque, nem sequer que as partes a identifiquem como tal. Um outro

aspeto que importa abordar é a retribuição; será a retribuição um elemento essencial do

contrato de reboque? De iure constituto, estamos em crer que se trata de um elemento

só natural, embora seja um elemento presente na esmagadora maioria dos casos. A este

propósito, cotejando as disposições do Decreto-Lei n.º 352/86 com as do Decreto-Lei

431/86 resulta claro que o legislador adotou solução diferente nos dois casos. No

78 Saltámos, no resumo, as páginas 69 a 92 (atinentes à figura do transitário) face ao pouco relevo que se deu nas sucessivas aulas práticas e teóricas a esta figura: faz-se assim a remissão para as ditas

páginas para o seu estudo mais detalhado [大象城堡].

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primeiro, a onerosidade é apresentada como elemento essencial do contrato de

transporte marítimo. Diferentemente, «o contrato de reboque presume-se retribuído,

salvo acordo expresso em contrário», sem que da falta de retribuição resulte qualquer

diferença de regime. Finalmente, analisemos se para além de fornecer a força motriz, o

contratante rebocador não estará, também, obrigado a prestar um serviço de direção do

trem de reboque. Em nosso entender, do contrato de reboque tout court emerge apenas

a obrigação nuclear de proporcionar força motriz, sem mais. Mas é sabido que – até por

referência expressa do nosso legislador - «no cumprimento da obrigação, assim como

no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé». Não

repugna, por conseguinte, que o rebocador comunique ao rebocado indicações sobre a

direção deste. Deverá mesmo fazê-lo em certos casos, «dentro de um espírito de leal e

recíproca colaboração», por imposição de vertente positiva (obrigação de cooperação=

inerente ao princípio de boa fé. Mas daí não resulta que ele tenha uma obrigação de

direção do reboque, trata-se de um dever acessório de conduta, um dever lateral

emergente e reflexo da necessária e louvável eticização das relações jurídicas. Bernardin,

em análise de desencontrada jurisprudência, defende posição semelhante à exposta,

chamando a atenção para o facto de o fornecimento de força motriz levar inerente uma

obrigação de direção, embora se trate – no seu entender – de uma «obrigação

secundária e relativa». O Decreto-Lei n.º 431/86, 30 dezembro, dispõe no mesmo

sentido; indicando no respetivo artigo 8.º, n.º1 que, em princípio, «a direção do trem de

reboque pertence ao contratante-rebocado». Este problema da determinação da parte a

quem pertence a direção do trem de reboque é essencial, pois as obrigações que a lei faz

incidir sobre as partes dependerão desse elemento. Costumam distinguir-se várias

modalidades do contrato de reboque, atendendo ora ao meio físico onde se desenvolve

a operação material de reboque, ora à entrega do elemento rebocado, ora à direção do

trem de reboque, ora, ainda, atendendo a outros critérios. A tipologia que iremos

apresentar é meramente exemplificativa, constitui uma entre outras hipóteses de

sistematização. Reputamos necessárias as linhas que se seguem, para a compreensão do

conteúdo e alcance atribuído às múltiplas designações cunhadas pela doutrina,

legisladores e jurisprudência, bem como aos pontos de contacto existentes. No âmbit do

reboque marítimo, é usual distinguir dois tipos de reboque, consoante a operação

decorra nos portos ou em alto mar. No Direito Francês distingue-se estas duas

modalidades, diversamente do estatuído, por exemplo, pelo Decreto-Lei n.º 431/86, 30

dezembro. A esta distinção corresponde, tendencialmente, uma outra entre transporte e

reboque manobra. O contrato de reboque transporte, tal como é definido pelo Decreto-

Lei n.º 431/86, nada terá de transporte, a não ser a característica comum de em ambos

haver a entrega de uma mercadoria. Ora, se é esta a característica comum mais relevante,

então será de designar esta modalidade de reboque por reboque com entrega do

rebocado. E a remissão do decreto nacional para o regime do transporte também é

forçada, dever-se-ia, tão só remeter para as regras do contrato de depósito, a aplicar

cumulativamente com o regime do contrato de reboque. Entendemos que não há

reboque transporte, pois se uma das partes se obriga a rebocar uma coisa de um

determinado sítio para outro, então teremos um contrato de transporte e não um contrato

de reboque ou um reboque transporte. O critério que nos parece mais relevante prende-

se com a direção da manobra, ou, dito de outro modo, com a direção do trem de reboque,

uma vez que daí emergirá o funcionamento das regras de responsabilidade. É também

este o critério adotado pelo nosso legislador, solução anterior ao Decreto-Lei n.º 431/86.

3. Natureza jurídica: para a determinação da natureza jurídica do contrato de reboque

costuma a generalidade da doutrina e jurisprudência italianas distinguir entre reboque

com e sem entrega do elemento rebocado. Neste caso estaríamos perante uma espécie

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do contrato de transporte e naquele perante uma espécie do contrato de empreitada. Ora

esta tradicional visão dualista, caracterizada da doutrina e jurisprudência italiana, é

incorreta. Azevedo Matos, manifesta a este propósito uma opinião inconclusiva,

considerando que o contrato de reboque «é locação de serviços ou transporte e há nele,

expresso ou tácito e implícito, um contrato». Em nosso entender, o contrato de reboque

deve ser estudado e analisado com uma figura jurídica dotada de autonomia. Não

obstante as diversas modalidades que pode revestir e que devem ser tidas em conta, o

debate sobre o instituto deve incidir sobre o seu núcleo caracterizador e não centrar-se

nas categorias que a este núcleo acrescem, originando as várias modalidades. O contrato

de reboque é um contrato de prestação de serviços, tal como o contrato de transporte.

Por esta via já se vê que ambos entroncam em raiz comum, de onde resulta proximidade.

Mas distinguem-se: a obrigação definidora e característica do contrato de transporte é o

deslocar de um local para o outro, enquanto a do contrato de reboque e a de proporcionar

força motriz. E sê-lo-á qualquer que seja a modalidade que revista. O conceito unitário

do contrato de reboque encontra reflexo em disposições legais sobre a matéria. Assim,

o Decreto-Lei n.º 431/86 define a figura no seu artigo 1.º e no artigo 3.º ao fornecer a

noção de «reboque transporte» dá claramente a entender que esta modalidade entronca

no conceito de contrato de reboque.

4. A responsabilidade no contrato de reboque: um dos aspetos mais delicados que o

contrato de reboque suscita é o da responsabilidade perante terceiros. O sistema

preconizado pelo Decreto-Lei n.º 431/86, assenta na direção do trem de reboque. «A

parte a quem pertencer a direção do trem de reboque responde pelos danos ocorridos

durante a execução do contrato, salvo se provar que os mesmos não resultam de facto

que lhe seja imputável» (artigo 10.º Decreto-Lei n.º 431/86). Qualificado no n.º2 do

preâmbulo desse diploma como «o critério mais claro e natural», não nos parece que o

seja, pois suscita uma questão adicional e de problemática resposta, qual seja, a de

determinar a quem pertence a direção do reboque.

5. Distinção entre o contrato de reboque e o contrato de transporte: referimos já que

tanto o contrato de reboque como o contrato de transporte são contratos de prestação de

serviço, embora as respetivas obrigações nucleares sejam distintas. Por outro lado, no

primeiro está em causa, essencialmente, uma obrigação de meios e neste uma obrigação

de resultado. No contrato de reboque, o contratante-rebocador não se obriga à produção

de um resultado – deslocação dos elementos a rebocar para um determinado sítio –, mas

tão só a fornecer força motriz, dito de outro modo, vincula-se a diligenciar no sentido

de que aquele resultado se produza (não pode, portanto, ser reconduzido ao contrato de

transporte ou ao contrato de empreitada). Caso assim não suceda por facto que lhe não

é imputável, deve considerar-se desonerado. Trata-se de uma obrigação de meios, em

que o devedor pode cumprir a obrigação que sobre ele impende sem que o escopo visado

pelo credor se produza. Tenha-se sempre presente que o nomen iuris que as partes

atribuem ao contrato, embora possa constituir um indício num ou noutro sentido, não é

por si só decisivo. A distinção entre os dois tipos contratuais é difícil, podendo mesmo,

o reboque ficar sujeito ao regime do transporte marítimo. O próprio legislador admite

esta possibilidade no n.º1 do artigo 3.º Decreto-Lei n.º 431/86, invocando o regime do

contrato de transporte de mercadorias para regular cumulativamente o chamado reboque

transporte. Quer dizer, haverá casos em que não é possível estabelecer uma fronteira

definida entre os dois conceitos, em que a interpretação de elementos é tal que

inviabiliza a distinção. Bem se vê o alcance da aplicação do regime do contrato de

transporte ao contrato de reboque com entrega: não é lógico, nem correto aplicar o

regime de uma obrigação de resultado a uma obrigação de meios. O contrato de reboque

envolve apenas (hoc sensu) uma obrigação de meios, enquanto o contrato de transporte

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é uma obrigação de resultado. Em nosso entender, o contrato de reboque é um contrato

de prestação de serviço, em que a obrigação principal e caracterizadora é uma obrigação

de meios e não uma obrigação de resultado (hoc sensu). A noção de contrato de

prestação de serviço contida no artigo 1554.º CC fala em resultado. O vocábulo

resultado não deve aqui ser entendido no sentido de obra. O que vale por dizer, o

contrato de reboque não é um contrato de empreitada, mas tão só um contrato de

prestação de serviço. O contrato de reboque é uma figura contratual co autonomia.

Assim, não é, sem mais, que pelo facto de haver entrega que passaremos a estar perante

um contrato de transporte, nem pelo facto de serem prestados serviços suplementares

que estaremos perante uma situação de assistência, com a aplicação dos respetivos

regimes jurídicos. Veja-se a este propósito o artigo 4.º CB 1910. Uma remissão prudente

é admissível, mas não deve nunca perder-se de vista o cerne caracterizador do contrato

de reboque. Só analisando cada caso se poderá aferir se a figura contratual em presença

é um contrato de reboque ou um contrato de transporte. O legislador traça uma diferença

entre os dois institutos, mas que na prática tem um alcance reduzido, e prende-se com a

retribuição. A retriuiçãoé qualificada como elemento essencial no contrato de transporte

marítimo (artigo 1.º Decreto-Lei n.º 352/86), enquanto que o contrato de reboque apenas

se presume retribuído (artigo 5.º Decreto-Lei n.º 431/86). O alcance prático é reduzido,

uma vez que tanto um como outro são, normalmente, retribuídos. Compreende-se, pois,

que são distintos os dois contratos. No contrato de transporte a obrigação fundamental

e caracterizadora é a deslocação de determinada mercadoria e a consequente entrega ao

destinatário. Diferentemente, o rebocador obriga-se apenas a proporcionar força motriz,

zelosamente, é certo, mas independentemente do resultado que o rebocado pretende

atingir; obriga-se a desenvolver diligentemente certa atividade para a obtenção de um

determinado efeito, mas sem assegurar que esse mesmo efeito se venha a produzir.

6. Reboque e assistência: permeabilidade e autonomia: a discussão clássica no âmbito

do contrato de reboque estabelece-se entre o contrato de reboque marítimo e o instituto

da assistência marítima. Já em 1873 Eloy se referia explicitamente ao problema. Das

várias decisões jurisprudenciais sobre o assunto emerge a tendência constante de os

rebocadores/assistentes qualificarem como assistência situações de reboque, pois a

enumeração da assistência é superior à retribuição do contrato de reboque. Por esta

razão se diz «o reboque é o parente pobre da rica assistência». E esta diferença de

retribuição constitui o elemento motivador da distinção entre estas figuras. A linha entre

o contrato de reboque e o instituto da salvação e da assistência é particularmente ténue

nas situações em que o rebocador presta serviços excecionais. Este problema era

resolvido pelo artigo 4.º CB sobre assistência e salvação no sentido de que «só quando

houver prestado serviços excecionais, que não possam ser considerados como

cumprimento do contrato de reboque, terá o rebocador direito a remuneração pela

assistência ou salvação do navio rebocado ou da sua carga». Para Azevedo Martins o

elemento que permite distinguir o contrato de reboque da assistência é o perigo que o

assistido corre, neste caso. Assim, decidiu a Relação de Lisboa a 12/2/1958. Uma

disposição que se presta a interpretações equívocas é o artigo 682.º, §2.º CCom. De

acordo com esta norma, «deve-se salário de assistência quando o navio, achando-se no

mar com avaria, é socorrido e conduzido a bom porto com auxílio de terceiros». Quer

dizer, haveria assistência ainda que não se verificasse perigo. Entendemos, com

Azevedo Matos, não ser esta a interpretação correta. O instituto da assistência pressupõe

sempre excecionalidade, consubstanciada em perigo para o elemento assistido. Tem

sido também esta a orientação da jurisprudência.

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O contrato de fretamento:

1. Introdução: no âmbito do transporte marítimo, deve estabelecer-se a histórica

diferenciação entre o contrato de transporte e o contrato de fretamento Mas, se é certo

que existiu uma intensa discussão sobre o tema e que se trata de uma distinção

historicamente importante, é também verdade que a questão se encontra hoje

definitivamente esclarecida. Além de que a recente produção legislativa nacional veio

consagrar e institucionalizar a autonomização entre as duas figuras. Existem, pois, bases

sólidas que permitem ultrapassar o sincretismo antigo de forma segura. A distinção será

o único tema que merecerá a nossa atenção. Começaremos pela apresentação da noção

e das modalidades do fretamento marítimo. A seguir, passaremos ao confronto deste

instituto com o contrato de transporte e o contrato de locação. E concluiremos referindo-

nos à eventual existência do contrato de fretamento para além do âmbito da navegação

marítima e à locação de veículos de transporte, uma vez que nos momentos anteriores

nos reportaremos apenas ao âmbito marítimo.

2. Noção e modalidades: nos termos do artigo 1.º Decreto-Lei n.º191/87, o «contrato de

fretamento de navio é aquele em que uma das partes (fretador) se obriga em relação à

outra (afretador) a pôr à sua disposição um navio, ou parte dele, para fins de

navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete». Como

se vê o legislador acentua três aspetos: o colocar à disposição um navio ou parte dele, a

finalidade de navegação marítima e a retribuição. Estes elementos são necessários e

suficientes para a caracterização do instituto, o que a seguir se evidenciará aquando do

confronto com o contrato de transporte e com o contrato de locação. Não basta afirmar

que a essência do fretamento radica na obrigação de navegar, na utilização de um navio

para finalidades de navegação marítima. É também necessário referir a colocação à

disposição do afretador do navio ou de parte do mesmo (de espaço naval na expressão

da doutrina italiana: spazio navale). O contrato de fretamento pode revestir, segundo o

artigo 4.º Decreto-Lei n.º 191/87, três modalidades, a saber, fretamento por viagem

(artigos 5.º a 21.º), fretamento a tempo (artigos 22.º a 32.º) e fretamento em casco nu

(artigos 33.º a 42.º). Esta trilogia que o legislador crismou de clássica não coincide

inteiramente com as modalidades apontadas pela doutrina nacional, baseadas no elenco

do revogado artigo 542.º CCom, nem esgota o elenco das variantes possíveis. Não deve

confundir-se o fretamento em casco nu seja com o contrato de leasing de navios – erro

em que incorre o Decreto-Lei n.º 287/83, 22 junho – seja com a locação, embora o artigo

42.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril, preconize a aplicação subsidiária, ao fretamento

em casco nu, da «lei geral sobre a locação». Já do artigo 482.º CCom parece resultar

que o legislador concebeu o fretamento como modalidade especial do contrato de

aluguer mercantil. Mas são figuras destintas. Importa, também, destacar a noção do

contrato de fretamento por viagem acresce um importante elemento. Neste caso, o fim

a que o navio se destina é, por definição, apenas o transporte de mercadorias (artigo 5.º).

Outro tanto não sucede no fretamento a tempo nem no fretamento em casco nu (artigos

22.º e 33.º). Quer dizer, aquela afirmação de princípio segundo a qual o contrato de

fretamento pode ter por finalidade uma qualquer afetação marítima só será válida para

estas duas modalidades. A solução do artigo 5.º Decreto-Lei n.º 191/87, que vinca a

proximidade existente com o contrato de transporte de mercadorias, encontra apoio em

Rodière e merece o claro apoio de Mário Reposo. Por aqui facilmente se percebe que a

distinção entre o fretamento e o contrato de transporte assume destacada premência face

ao fretamento por viagem.

3. Distinção entre o contrato de fretamento e o contrato de transporte marítimo de

mercadorias. Do sincretismo à autonomização: a distinção entre o contrato de

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fretamento e o contrato de transporte marítimo de mercadorias só é estabelecida de

forma inequívoca enumerados do presente século (embora alguns a tenham pressentido

e defendido mais cedo). Até então, o contrato de fretamento absorvia todas as formas

de exploração do navio. O ponto de viragem deu-se em França, por impulso de Rodière

em 1966 onde, em duas reformas legislativas, se passam a definir e regular com clareza

as duas figuras. O nosso legislador seguiu o exemplo francês, embora com vinte anos

de atraso, regulando os dois contratos diplomas distintos: o Decreto-Lei n.º 352/86, 21

outubro, relativo ao contrato de transporte marítimo de mercadorias e o Decreto-Lei n.º

191/87, 29 abril, relativo ao contrato de fretamento. Após esta intervenção legislativa a

jurisprudência tomou a consciência da distinção. E a nossa escassa doutrina passou a

aceitar unanimemente a diferenciação, se excetuarmos o caso isolado de Palma Carlos.

A autonomização do contrato de transporte marítimo de mercadorias perante o contrato

de fretamento impõe-se até, por ser uma consequência lógica da realidade. Vejamos.

Nuclear no contrato de transporte é a deslocação das mercadorias. O que importa é a

deslocação das mercadorias nas condições acordadas e não o específico barco onde o

transporte é feito. Não está em causa o navio, a disponibilidade total ou parcial do

mesmo, mas sim a deslocação das mercadorias. O transportador assume a obrigação de

transportar. No fretamento, pelo contrário, está em causa a disponibilidade de um navio

(no todo ou em parte), «para fins de navegação marítima». O acento tónico é posto no

navio e não na deslocação das mercadorias. O fretador assume a obrigação de navegar,

hoc sensu. Ao contrário do que sucede no contrato de transporte, no contrato de

fretamento o fretador não fica responsável pelo exercício da atividade de transporte, não

se obriga a fazer chegar as mercadorias incólumes ao local de destino; limita-se a

colocar à disposição da outra parte (afretador) um veículo de transporte, podendo

eventualmente responder pelas suas deficiências. No fretamento as mercadorias não são

entregues ao fretador, pelo que sobre este não incide qualquer obrigação de custódia,

quer dizer: o fretador não é transportador. O risco do transporte corre por conta do

afretador. O afretador apenas é responsável pelo que respeita ao fornecimento do meios

e à atividade objeto do contrato de fretamento. Um traço auxiliar na demarcação

residiria, segundo o n.º1 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 191/87, na preponderância da

autonomia da vontade no contrato de fretamento, ao contrário do contrato de transporte

de mercadorias onde a «preocupação de proteger os carregadores deu a causa a uma

disciplina quase sempre imperativa». Sucede, porém, que este indício perdeu muita da

sua aptidão distintiva com a utilização generalizada de cartas-partida standard, facto que

o próprio legislador reconhece. A distinção é mais problemática quando se esteja

perante o fretamento por viagem. Mas, repare-se, embora o fim último seja o mesmo,

i.e., a deslocação de mercadorias; a tónica, objeto do contrato é, num caso o navio, no

outro a deslocação da mercadoria, tout court. Entre o fretamento por viagem e o contrato

de transporte de mercadorias existe proximidade bastante para atribuir ao fretador o

direito de retenção sobre as mercadorias transportadas (artigo 21.º Decreto-Lei n.º

191/897, e n.º4 do preâmbulo do mesmo diploma). A distinção – afirma Spasiano – é

simples, mas logo adverte que na prática podem surgir dificuldades. Na verdade,

operada a autonomização conceitual entre os dois institutos, a questão que ora subsiste

prende-se com o exato enquadramento no seu âmbito de situações concretas.