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2015/1016
Direito Marítimo Professor Doutor Januário da
Costa Gomes
大象城堡 | 普京法律的大学
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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O Mar e as disciplinas jurídicas1
Direito Marítimo e Direito do Mar: o mar impõe-se, de per si; cobrindo uma grande parte do
nosso planeta e provocando natural respeito ao homem, esse «bicho da terra tao pequeno», de
que fala Camões, subjugado perante «tanta tormenta e tanto dano». Interessa-nos, aqui,
constatar as abordagens jurídicas do mar e das atividades marítimas e tentar olhar essas
abordagens tendo presente a chamada enciclopédia jurídica. A nossa perspetiva é, porém,
neste particular, o mais aberta possível: não temos da enciclopédia jurídica uma visão estática
e definitiva. Esta postura resulta de duas considerações: a primeira é a constatação do pulsar
do direito e da sua permanente evolução; a segunda, aliada ontologicamente à primeira, é a
natural falsidade, la lógica popperiana, dos ramos de direito entendidos como divisões e
subdivisões ordenadas a partir da divisão bipolar entre Direito Público e Direito Privado, quer a
nível do Direito interno quer do Direito internacional. Têm sido, aliás, autonomizadas disciplinas
jurídicas sem grande preocupação pela respetiva pertença plena ao Direito Público ou ao Direito
Privado e, dentro de cada um deles, aos clássicos ramos aí pacificamente identificados. Essa
autonomização disciplinar tem sido feita sem dramas existenciais relativos ao código genético
dessas disciplinas e também sem reivindicações firmes relativamente à corporização dessas
mesmas disciplinas como verdadeiros ramos de Direito. Numa primeira abordagem, olhando
para as disciplinas que nas diversas Faculdades de Direito têm como objeto central “o mar e o
seu Direito” – quando as há – ora encontramos uma única disciplina, ora encontramos duas
disciplinas diferentes, sendo uma de Direito do Mar e outra de Direito Marítimo. A análise dos
programas as disciplinas Direito do Mar e Direito Marítimo permite identificar com razoável
segurança o berço de cada uma das disciplinas; enquanto que o moderno Direito do Mar se
apresenta não como um ramo pelo menos como um capítulo do Direito Internacional Público,
o Direito Marítimo surge ancorado no Direito Privado mais concretamente no Direito Comercial.
Sem prejuízo da identificação de um papel ativo do mar, já no Direito Romano e medieval na
criação do Direito Internacional, a respetiva elaboração científica só se iniciou no século XVI,
assumindo papel de relevo, já no início do século XVII, a querela sobre a liberdade dos mares,
protagonizada por Grócio e Selden, entre o mare liberum e o mare clausum – controvérsia em
que Portugal e respetivos interesses tiveram um lugar central2. É por isso que, para muitos, a
1 O Ensino do Direito Marítimo; o soltar das amarras do direito da navegação marítima; por Manuel Januário da Costa Gomes, Almedina, novembro de 2004. (páginas 29 a 68) 2 Na sequência do apresamento pela Companhia Holandesa das Índias Orientais de um navio português (Santa Catarina) no estreito de Malaca, em 1602, e dos protestos que tal apresamento provocou por parte de Espanha e Portugal (constituindo então uma união pessoal), o jovem Hugo Grócio escreveu, em defesa daquela companhia, o texto Mare Liberum, publicado anonimamente em 1608. O apresamento do navio português, justificado pelo facto de a Holanda estar em guerra com a Espanha, cujo soberano era comum a Portugal, constituiu assim a occasio para o aparecimento desta obra fundamental de Grócio, em jeito de carta, cuja aplicação se estendeu bem para além do caso do galeão, sendo os argumentos do Mare Liberum invocados pela Holanda, a partir daí, designadamente no conflito que a opunha à Inglaterra. É o confronto com os interesses ingleses que justifica o aparecimento, na liça, de John Selden, advogado e académico que escreveu, na primeira década de 1600, o Mare clausum, só publicado em 137. Em causa estava agora a liberdade de pesca nos mares próximos da Inglaterra, defendendo Selden o domínio, pelo rei britânico, dos mares circundantes da Grâ-Bretanha. No seu Mare Liberum Grócio defendia as seguintes 12 teses: Que pelo direitos das gentes é livre a todos a navegação para qualquer parte; Que os Portugueses não têm, por título de
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querela mare liberum/mare clausum marca o início do Direito Internacional Público do Mar. Nos
séculos subsequentes, apesar da deslocação das preocupações e das polémicas para outros
domínio, com relevo para o da delimitação das águas territoriais, podemos dizer que o que
continuou sempre a estar em causa, de forma direta ou indireta, foi o direito de utilização de
espaços marinhos pelos Estados. Como dizia O«Connel:
«The History of the law of the sea has been dominated by a central and persistent
theme: the competition between the exercise of governmental authority over the
sea and the idea of the freedom of the seas».
Falar em Direito do Mar – sobretudo a partir da I Conferência das Nações Unidas de 1958,
culminando na II Conferência (Montego Bay) – é centralmente falar de Direito relativo à
utilização de espaços marinhos. Não espanta, assim, que coerentemente com a identificada
tendência de territorialização do mar, a partir, sobretudo, de Montego Bay, o mar seja estudado
em Direito Internacional Público a propósito do território. Como vimos, a querela mare
liberum/mare clausum marca o início do Direito internacional Público do mar. Contudo, a
preocupação do Direito pelos assuntos do mar e as atividades marítimas era já então milenar,
como ilustram as sucessivas compilações de regras marítimas, desde a Lex Rhodia do século III
ou II a.C. até ao famoso Consulat del Mar. O Direito Marítimo pululava cheio de vida antes da
querela mare liberum/mare clausum, pontificando nos mares regras consuetudinárias
conhecidas e aplicadas nos diversos portos e nos tráficos. É pacífico que, devido à necessidade
da sua uniformidade internacional, o Direito Marítimo se desenvolveu de forma total ou
prevalentemente autónoma face ao Direito comum nacional. O Direito Marítimo nunca se
conteve nas fronteiras de um Estado, sendo da sua essência a vocação internacional. Ou seja: o
Direito Marítimo sempre foi naturalmente internacional. Contudo, o acrescento do
internacional, em termos designativos, tem sido utilizado, após a autonomização do que se
designa agora por Direito do Mar, e precisamente para referir esta específica área. É assim que,
sobretudo até à I Conferência das Nações Unidas de 1958, o atual Direito do Mar era designado
por Direito Internacional Marítimo ou por Direito Marítimo Internacional, sendo comum a
distinção entre aquele e o Direito Marítimo, que, entretanto, com as codificações do século XIX,
passou a ser, grosso modo, identificado com o Direito Comercial Marítimo, tal como regulado
nos códigos comerciais. Podemos dizer, com Berlingieri, que as codificações marcaram uma
inversão de tendência no sentido da uniformidade internacional do Direito Marítimo, já que,
apesar das matrizes comuns, as leis nacionais foram estabelecendo regimes específicos; por
outro lado, como também nota Berlingieri, as abolições de jurisdições especiais em matéria
marítima acentuaram a sobredita inversão de tendência. Contudo, o movimento uniformizador
descobrimento, nenhum direito de domínio sobre os Índios, para cujas praias os Holandeses navegam; Que os Portugueses não têm por título de doação pontifícia, o direito de domínio sobre os Índios; Que os Portugueses não têm, por título de guerra, o direito de domínio sobre os Índios; Que o mar que leva aos Índios, ou o direito de nele navegar; não é propriedade dos Portugueses por título de doação Pontifícia; Que o mar, ou o direito de navegar, não é propriedade dos Portugueses, por titulo de ocupação; Que o comércio com os Índios não é propriedade dos Portugueses por título de doação pontifícia; que o comércio com os Índios não é propriedade dos Portugueses pelo direito de prescrição ou costume; Que os Portugueses proibindo o comércio não se apoiam em base alguma de equidade; Que aos Holandeses cumpre manter o direito do comércio com a Índia, quer pela paz, quer pelas tréguas, quer pela guerra. Por sua vez, as teses de Selden centrava,-se em 2 teses: «That the sea by the law of nature is not Common to all men, but capable of private dominion or property as well as the land», e «That the king od Great Britain is lord of the sea flowing about, as an inseparable and perpetual appendant of the Brittish Empire».
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ganhou novo alento a partir do final do século XIX, quer na área do Direito Marítimo Público
que na do Direito Marítimo Privado, graças, sobretudo, ao Comité Marítimo Internacional.
O Consulado do Mar: o Direito Marítimo tem, assim, o conteúdo e a dimensão que resulta da
sua história, da sua rica evolução e do recente destaque do Direito Internacional Público do Mar.
Para uma primeira aproximação, tomemos como nebulosa referencia do que constitui o objeto
do Direito Marítimo, dois importantíssimos documentos anteriores às codificações: O Consulat
del Mar e a Ordennance de Colbert. Há, é certo, outros relevantíssimos documentos da história
e na evolução do Direito Marítimo, mas estes parecem-nos modelares: o primeiro, do século
XIV, reunindo as regras vigentes no Mediterrâneo e constituindo uma espécie de código para
este mar; o segundo, de 1681, herdeiro dos Rôles d’Oléron e do Guidon de la Mer e influenciador
do Code du Commerce. Vejamos, apesar do casuísmo que percorre todo o Livro – de
características compilatórias com finalidades práticas (chegando ao ponto de ter um capítulo
sobre os géneros deteriorados pelos ratos por não haver gato a bordo), o Livro do Consulado
do Mar contém, por vezes de uma forma exaustiva, o grosso das matérias que, mais tarde,
viriam a constar dos códigos comerciais, nos livros ou Partes dedicados ao Comércio Marítimo.
Algumas matérias depois codificadas não constam, porém, do Livro do Consulado do Mar, v.g.,
o seguro marítimo.
Da Ordennace de Colbert ao Code du Commerce: a Ordenança de Colbert de 1681, também
designada Ordenança da Marinha de Luis XIV, constituiu um marco importantíssimo na História
do Direito Marítimo, fazendo a ponte entre a herança das compilações anteriores, com relevo
para o Livro do Consulado do Mar, os Rolos de Oleron, as Leis de Wisby e o Guidon de la Mer –
e os códigos comerciais, com destaque para o primeiro Código Comercial de 1807, cujo livro II
reservado ao Comércio Marítimo, quase constitui uma reprodução dos Livros II e III da
Ordennace. A Ordenança de Colbert vigorava em Portugal como Direito subsidiário, através da
Lei da Boa Razão (1769), que no seu §9.º mandava atender «em matérias políticas, económicas,
mercantis e marítimas», na falta de leis pátrias, «às leis de nações civilizadas da Europa e não
às romanas». Silva Lisboa justificava a inserção da Ordenança na sua obra pelo facto de este
Regulamento ser «o mais conciso, sistemático e completo» da Europa, dizendo, noutro passo,
ser de «geral estimação». Como é sabido, a aplicação da Ordenança de Colbert, por força da Lei
da Boa Razão, não era direta. Esta remetia para as leis das «nações cristãs, iluminadas e polidas»,
dando lugar a dificuldades de vária natureza que, no entanto, no que respeita a dificuldades de
vária natureza que, no entanto, no que respeita a matéria marítima, não se terão feito sentir,
pelo menos no que tange à escolha da lei aplicável. A Ordenança estava dividida em 4 Livro,
cada um deles dividido em Títulos. O Code du Commerce de 1807 dedica o segundo dos deus
quatro livros ao comércio marítimo, aí “marcando” de forma decisiva e com grande influência
nos diversos códigos comerciais, a matéria marítima – rectius, comercial-marítima.
Das primeiras lei marítimas portuguesas até ao Código Comercial de 1833: a matéria
marítima tem naturalmente antecedentes a nível legislativo no Direito pátrio, antes do Código
Ferreira Borges. Destacamos os seguintes marcos:
a. Lei de D. Afonso II (1211) estabelecendo que os navios que, impelidos pela violência das
tempestades, viessem a dar às costas, não fossem entregues ao Fisco ou aos oficiais do
Rei mas permanecessem com os seus antigos Senhorios;
b. No reinado de D. Dinis foram tomadas medidas de proteção do comércio marítimo,
destacando-se a instituição da obrigação de pagamento de uma quantia em função da
tonelagem dos navios;
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c. No reinado de D. Afonso IV foi publicada uma lei sobre fretamento e carga dos navios;
d. Leis de D. Fernando, reconhecendo o proveito e utilidade da navegação ao cumular os
marítimos de privilégios, tendo sido tomadas as seguintes providências: promoção das
construções navais, com a concessão de isenção e privilégios aos proprietários de
navios de mais de cem toneladas; promoção da construção naval, com a permissão de
retirar gratuitamente das matas reais, mastros e madeiras; atribuição de isenções para
os materiais de construção e para as compras e vendas de navios e atribuição ao dono
do navio na primeira viagem dos direitos de alfândega da carga que exportasse e
metade do que importasse. A providência mais conhecida é a criação de uma bolsa
comum em Lisboa e no Porto, instituição relevantíssima em sede de seguros marítimos.
A criação pelo Cardeal D. Henrique do Regimento do Consulado ocupa lugar cativo nas parcas
referências lusitanas ao nosso Direito Comercial. É conhecido o louvor de Ferreira Borges a essa
instituição3, sugerindo que a mesma surge influenciada pelas várias magistraturas especiais
instituídas na Europa, destacando o Consulado do Mar: «Era impossível que não chegasse até
nós o impulso desta regularização Mercantil universal». Segundo informação disponibilizada
pelo próprio Ferreira Borges, a quem se deve, aliás, a primeira impressão do Regimento, o
Tribunal do Consulado foi criado – aliás – recriado – pelo Cardeal D. Henrique, em 1593, tendo
sido abolido em 1602, por Alvará de 13 fevereiro, publicado em 14 março, seguindo-se a
publicação, nas Ordenações Filipinas, em 1603. Não obstante essa revogação, o que é certo é
que o Consulado continuou a vigorar, embora em termos limitados, conforme refere Ferreira
Borges:
«É notável que tendo estas Ordenaçoens sido publicadas depois da abolição do
Consulado, e tendo-lhe até substituído marcadamente o Juízo d’Índia e Mina e
Ouvidoria d’Alfandega, falem no L.º 5.º Títu. 66 §9 do Prior e dos Consules como
existentes ainda e conhecedores dos objetos das québras».
Que a matéria marítima teve um peso especial na criação do Consulado, demonstra-o, desde
logo, o facto de, na Provisão, serem invocados, entre outros fundamentos (o não menos dos
quis era a «falta de ordem»), as muitas perdas que os mercadores «recebem no mar nos roubos
do Corsários». Mais elucidativa era a decisão das causas da competência do Consulado, onde o
relevo da matéria marítima era manifesto. Sendo embora o Código Comercial francês de 1807
a fonte mais direta do Código Comercial de 1833, Ferreira Borges seguiu uma solução mais
radical no que concerne ao comércio marítimo, colocando-o, dentro embora do Código
Comercial, quase que fora dele, numa Parte, a segunda, que lhe é exclusivamente dedicada,
sendo a primeira respeitante ao Comércio Terrestre. A explicação é dada pelo próprio Ferreira
Borges, quando se refere ao comércio marítimo como «ramo que póde fazer um systema á
parte sobre si e talvez elle mesmo um código independente, como por seculos passou entre
muitas nações». Considera Barbosa de Magalhães que «esta separação estava nas tradições do
Direito Mercantil», embora reconheça que nem todos os códigos fazem uma separação tão
acentuada e ainda «que haja quem constate o particularismo do Direito Marítimo, ao mesmo
tempo que em alguns países, como em Itália, há códigos especiais desse ramo de Direito». A
estrutura adotada por Ferreira Borges vem, de resto – embora fique aquém – na lógica da
autonomização do Direito Marítimo, tendo-se conhecimento de que, no ano de 1821, chegou
a mandar-se imprimir um projeto de código marítimo da autoria de Ferreira Borges. Ferreira
Borges afastou-se, efetivamente, quer da sistematização do Código Comercial Francês, quer
3 É um monumento de sabedoria que do cimo de II Séculos accusa a nossa ingorancia hodierna.
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ainda da sistematização do Código Comercial Espanhol de 1829, que dedicava ao comércio
marítimo um livro (ao lado de outros). Excluímos desta ponderação a matéria juridicária e
adjetiva que Ferreira Borges incluiu na Parte I, tendo, contudo, uma vocação mais ampla, em
termos de abranger a matéria do comércio marítimo. Podemos, efetivamente, dizer que todo
o Livro II da Parte I (apesar de relativa ao Comércio Terrestre) tinha também aplicação ao
comércio marítimo.
Do CCom 1833 ao CCom 1888: a aprovação de um Código Comercial fora sentida como uma
necessidade, pese embora a inexistência de um Código Civil que fixasse as traves mestras do
Direito Privado comum, a partir do qual derivaria, então, a matéria comercial. Desse espírito dá
nota o próprio Ferreira Borges, em 1833, na apresentação do Código a D. Pedro IV: «Entre as
muitas necessidades que padece o nosso Portugal, não vai mui longe na lista a mingoa d’um
sistema de legislação comercial. Todos o sentem, e primeiro que todos, o corpo mercantil». Não
muito tempo após a entrada em vigor do Código de 1833, era sentida a necessidade da sua
reforma, sendo disso consequência o Decreto de 13 julho 1859, que nomeou uma comissão
encarregada de «rever, reformar e organizar assim a legislação commercial como o processo
respetivo». Fora enorme o mérito de Ferreira Borges: o de preparar e estruturar um Código
Comercial, inexistindo um Código Civil que, aliás, só faria o seu aparecimento mais de trinta
anos depois. Esse tributo e homenagem foram-lhe prestados, mais tarde, por Veiga Beirão, que
considera o Código de 1833 «a eterna glória do seu autor». Recentemente, Menezes Cordeiro
apelida-o de «jurista de génio». Como não podia deixar de ser, face à inexistente compilação do
Direito Privado comum, o Código Comercial de 1833 revelava uma certa confusão entre Direito
geral e especial, inconveniente que se tornou depois particularmente evidente com a
publicação do Código Civil. Ao fracasso do CCom 1833 não foi, também, estranho, seguramente,
o fraco desenvolvimento da comercialística em Portugal. Dessa ausência, queixa-se, aliás,
Ferreira Borges: «porque me ocorria que a falta d’escriptos em nossa linguagem, a falta d’ensino
do direito mercantil em nossas escolas». Ferreira Borges sentia a enorme dificuldade de legislar
matéria especial antes da codificação da matéria geral ou comum, justificando, assim, a inserção,
no Código Comercial, de matéria civil: «como o direito comercial é direito d’exceição, tornava-
se necessário a regra, e dahi a exceição, para evitar o absurdo de legislar exceição a regra
imaginada ou incerta, ou enfim existente». Ferreira Borges tivera, assim, a preocupação de
deixar o compilador do Código Civil «o fio por onde o de commercio devia, necessariamente, em
harmonia com aquelle, atar-se, unir-se, e amalgamar-se n’um só e inteiro corpo de legislação».
Contudo, como saliente Veiga Beirão, tal fio «ficou prejudicado, como era natural, pelo decurso
do tempo, com o progresso da ciência e pela mudança de circunstâncias, ocorridas de 1833 para
cá, que fizeram variar o próprio sistema adotado no Código Comercial». Para além da
“amálgama” entre matéria civil e comercial constante do código de 1833, avia uma outra que
Veiga Beirão se propôs separar: a do direito substantivo e do direito adjetivo, deixando para a
lei do processo a organização do foro comercial e do processo mercantil. Tendo abandonado a
ideia e o método, revelado improdutivo, das comissões, que se iniciaram em 13 julho 1859 e
continuado em 17 julho 1870, com a nomeação de outra comissão, Veiga Beirão decidiu – em
boa hora, diga-se – recorrer a um outro método: o de «solicitar, particularmente, de pessoas
competentes, a sua cooperação, separada, para todas as partes da reforma, que eu próprio não
pudesse, diretamente, preparar». Ao solicitar a essas pessoas competentes colaboração
específica para partes do futuro código, não deixou Veiga Beirão de indiciar como diretriz e linha
de atuação o facto de ser sua ideia «preparar um novo código comercial, em que, embora
conservadas as disposições da nossa legislação mercantil que o merecessem ser, e introduzissem
todas aquelas reformas que a jurisprudência, o comércio e aprática, têm aconselhado». Para o
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efeito e nesse âmbito, Veiga Beirão recomendou que, sem prejuízo de dever ser tomado por
bom o código então vigente e as suas alterações parciais, «deviam ter-se em vista os códigos
commerciais ultimamente publicados no estrangeiro, e dentre estes, especialmente – não só por
serem os mais recentes, mas pela identidade de circunstâncias d’esses países – o de Itália, de 31
de outubro 1882, e o de Hespanha, de 22 de agosto de 1885, atendendo-se, sempre e
indiferentemente, ás prescrições geraes do nosso direito, ás tradições do commercio nacional e
aos usos das praças do reino». Conforme informação do próprio Veiga Beirão, a parte do código
relativa ao comércio marítimo foi preparada pelos Conselheiros José Pereira – que se ocupou
dos seguros, avarias, arribada, abalroação e assistência – e Eduardo de Serpa Pimentel – que se
ocupou da restante parte do comércio marítimo. A summa divisio entre terrestre e marítimo
não foram, que se saiba, o objeto de autorizados reparos de fundo. Contudo, o Código de Veiga
Beirão afastou-se claramente desta divisão bipolar, adotando o modelo, de inspiração francesa,
de reservar ao comércio marítimo um livro ao lado de outros. Não se encontra, porém, no
projeto de Veiga Beirão, qualquer crítica frontal e fundamentada à divisão bipolar de Ferreira
Borges, nem qualquer defesa sustentada da nova sistematização e abandono da anterior. A
única passagem onde, de forma indireta, a questão é abordada, é aquela em que o autor refere
que curou de seguir no projeto uma distribuição de matérias tanto quanto possível próxima da
ordem do código civil, «de modo que mais facilmente venha a encontrar-se ao par da disposição
geral, a prescrição especial». Neste sentido, que determina o abandono da sistematização de
1833, Veiga Beirão invocava (o que não deixa de ser irónico) o próprio Ferreira Borges, quando
este referia que punha o Direito Civil como regra. Mal justificado com as palavras de Ferreira
Borges, o certo é que o Código Comercial de 1888 segue outra via: a de instituir um livro de
disposições gerais para o comércio em geral, aplicável a toda a matéria comercial (Livro I – Do
comércio em geral), seguida de um Livro II relativo a «Dos contratos especiais de comércio», um
Livro III, relativo a «Do commercio Marítimo» e um Livro IV, relativo a «Das falências». Sob o
estrito ponto de vista formal e de sistematização e uma vez afastada a divisão bipolar de Ferreira
Borges, a opção de Veiga Beirão não terá sido a melhor, porquanto deixa de fora do Livro II os
contratos marítimos que são também especiais do comércio. O artigo 109.º acaba, no entanto,
por, de algum modo, salvar a situação, ao estabelecer que os contratos especiais de comércio
marítimo serão regulados nos termos prescritos no Livro III, justificando, dessa forma, a
incompletude do Livro II (tendo em conta a sua designação). Ou seja: embora a sistematização
adotada seja menos impressiva e reveladora da especialidade do Direito Comercial Marítimo
em relação ao Direito Comercial Geral, a matéria marítima é concentrada num único livro, tal
como o seria se tivesse sido adotado o modelo francês ou italiano de 1883. Como dissemos,
Veiga Beirão não explica o corte com a solução bipolar de 1833. E, mesmo nas referências que
faz à matéria marítima, ou seja, às soluções que adota no projeto, não revela as razões da opção,
partindo certamente do princípio de que o abandono da divisão bipolar não suscitaria dúvidas
ou críticas. Na justificação do projeto, Veiga Beirão alude à matéria comercial marítima em
quatro passagens. Na primeira, em jeito de apresentação geral da arquitetura do projeto, refere
que «o Livro III ocupa-se do commercio marítimo e, por isso, n’elle se trata do direito de
propriedade, não simplesmente mobiliaria, mais importante em commercio, dos navios (parte
III do codigo civil)». A segunda referência é ao facto de o projeto obedecer à «corrente
sympathica e generosa» dos trabalhos do congresso de 1885 sobre a uniformização da letra de
câmbio e do Direito marítimo. A terceira alusão tem um relativo desenvolvimento, atendendo
a que se trata de uma questão pontual específica: o regime da «hypotheca marítima»,
articulado com o contrato de risco marítimo. Face à disposição do artigo 889.º Código de Seabra,
de acordo com o qual a hipoteca só podia recair sobre bens imobiliários, Veiga Beirão entendeu
que seria preferível clarificar a matéria, não obstante o facto de, para alguns, continuar a ser
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possível a hipoteca marítima face ao Código Comercial então vigente: «No estado actual da
sciencia, e nas presentes circunstancias do nosso direito e do commercio nacional, pareceu de
toda a conveniência permitir, claramente, no novo código a hypotheca marítima, regular os
termos em que ella póde ser constituída e registada, e determinar-lhes os efeitos jurídicos». A
quarta alusão à matéria marítima constitui uma súmula enunciativa das soluções do projeto,
em função da diretriz de «tornar mais clara, methodica e adequada ao estado atual da
navegação, que já não é só de vela, mas também a vapor, a parte respeitante ao direito
marítimo». De acordo com Veiga Beirão, foram as seguintes as linhas mestras da clarificação do
Direito Marítimo:
Remissão para lei especial (ato de navegação) a fixação das condições em que o navio
se deve ter como nacional;
Aceitação, tanto quanto possível, da lei do pavilhão como reguladora dos direitos
adquiridos sobre o navio;
Definição dos direitos e obrigações de todos os que intervêm e concorrem para a
viagem do navio, «tratando-se mui cuidadosamente de assegurar e fazer valer os
direitos das tripulações, que, pelo serviços que prestam, pelos riscos a que se aventuram,
merecem especial proteção do Estado, de cuja marinhagem são aliás o viveiro»;
Preocupação em acautelar o estado de navegabilidade dos navios, a fim de evitar, tanto
quanto possível, os sinistros marítimos;
Fixação dos privilégios sobre o navio, carga e frete;
Formulação de regras especiais relativas ao seguro marítimo;
Simplificação da matéria de avarias, «dispensando-se a longa enumeração
exemplificativa dos casos de avaria grossa e dos de simples avaria»;
Adoção de regras precisas para a regulação da abalroação;
Regulação da assistência e salvação;
Prevenção dos termos em que o contrato a risco pode ser admitido e celebrado.
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Capítulo I – Acontecimentos e Relatório de Mar4
1. Introdução: acontecimento de mar será todo e qualquer evento que ocorra no mar e
que tenha reflexos na navegação marítima ou nas atividades que no mar se
desenvolvem. Contudo, a expressão é utilizada para designar eventos não ordinários ou
comuns, quando provocam ou são suscetíveis de provocar danos de qualquer natureza.
Encontramos uma noção no artigo 13.º, n.º1 do Decreto-Lei 384/99, 23 de setembro:
«Todo o facto extraordinário que ocorra no mar, ou em águas sob qualquer
jurisdição nacional, que tenha causado ou possa causar danos a navios,
engenhos flutuantes, pessoas ou coisas que neles se encontrem ou por eles
sejam transportadas.»
A noção do artigo 13.º, n.º1, do Decreto-Lei 384/99 coincide com aquela que tem sido
genericamente apresentada pela doutrina. Nem o Código Comercial de Ferreira Borges
nem o de Veiga Beirão definiam acontecimento de mar. Contudo, o mesmo era
pressuposto da elaboração e apresentação do relatório de mar. No domínio do Código
de Ferreira Borges impunha-se ao capitão o dever de, dentro de vinte e quatro horas
da sua chegada a um porto, apresentar o seu diário de navegação a exame e a fazer o
seu relatório ou testemunhável. O relatório deveria enunciar o lugar e o tempo da
partida, a derrota seguida, os acidentes que ocorreram, as desordens acontecidas e as
demais circunstâncias notáveis da viagem. Para as situações em que tivesse ocorrido
naufrágio, arribada forçada ou avarias, o capitão estava obrigado a formar a esse
respeito um relatório testemunhável conjuntamente com todos os oficiais e gentes da
equipagem que ficasse a bordo, relatório esse que deveria ser apresentado no primeiro
lugar a que aportasse. Todos os relatórios testemunháveis ou protestos, destinados a
comprovar perdas, desastres, avarias ou quaisquer reclamações, deveriam ser
rectificados com juramento, perante a autoridade competente, a qual poderia
interrogar sobre as circunstâncias dos factos expendidos, ficando reservada às partes
interessadas a prova em contrário. Dentre os livros de bordo que o Código Comercial
de 1888 considerava obrigatórios, contava-se o Diário de navegação, que, de acordo
com o então disposto deveria contar as seguintes menções:
A indicação do porto de saída;
As manobras feitas;
O caminho percorrido;
As observações geográficas, meteorológicas e astronómicas;
As ocorrências da viagem;
As avarias sofridas;
A designação dos objetos perdidos ou abandonados;
O assento dos nascimentos e óbitos a bordo;
As resoluções tomadas em conselho e quaisquer outros acontecimentos
ordinários e extraordinários da derrota e navegação;
Curava, depois, da apresentação do diário de navegação aquando da chegada ao porto
de destino, estabelecendo que, dentro de vinte e quatro horas da sua chegada, o
4 Direito Marítimo, IV, por M. Januário da Costa Gomes, Almedina, Coimbra, 2008
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capitão deveria apresentar o livro à autoridade encarregada de o legalizar, para ser
visado. Estabelecia 5 ainda que, no caso de arribada, naufrágio ou evento de que
proviesse demora da viagem ou avaria causada ao navio, carga ou passageiros, o capitão
deveria, em igual prazo, fazer o seu relatório de mar perante a dita autoridade, o qual
seria completado com a informação sumária, prestada pela tripulação e passageiros, se
houvesse ocasião de os interrogar. O relatório de mar surgia, assim, autonomizado do
diário de navegação e independentemente dele, devendo ser apresentado numa sessão
ou audiência, à qual poderiam assistir os interessados ou quem os representasse,
independentemente de procuração e como gestores de negócios. De qualquer modo,
o relatório de mar devia ser escrito pelo capitão ou então reduzido a escrito perante a
autoridade competente. O relatório de mar deveria declarar o porto e o dia de saída do
navio, a derrota percorrida, os perigos suportados, os danos acontecidos ao navio ou à
carga e, em geral, todas as circunstâncias importantes da viagem. A importância do
relatório de mar decorria, desde logo, do caráter anómalo ou extraordinário das
situações – dos acontecimentos – que justificavam a sua apresentação. O relatório de
mar, quando confirmado pela informação sumária, fazia fé em juízo, salvo prova em
contrário. Até que a confirmação tivesse lugar, o artigo procedente proibia o capitão,
salvo casos de urgência ou de força maior, de começar a descarga do navio; como
explicava Adriano Anthero,
«a razão deste artigo é para se poder conferir a tempo esse relatório com o
estado da carga e navio».
2. A caracterização de acontecimentos de mar pelo Decreto-Lei 384/99, 23 setembro:
tendo revogado os artigos correspondentes do Código Comercial, o Decreto-Lei 384/99,
23 setembro, veio enquadrar o relatório de mar no âmbito de um capítulo (o IV) relativo
aos Acontecimentos de mar, conceito que, como dissemos, define, no artigo 13.º, de
forma algo instrumental em relação ao regime dos artigos 14.º e 15.º, relativos ao
relatório de mar. Apesar dessa instrumentalidade, é importante atentarmos na noção
de acontecimentos de mar, tanto mais que estamos perante um conceito radicado na
legislação e na doutrina maritimista, como se constata, verbi gratia no Decreto-Lei
64/2005, 15 março, cujo artigo 1.º contém, em epígrafe, a frase «Acontecimento de mar
de que resulte afundamento ou encalhe». A título claramente exemplificativo, o artigo
13.º, n.º2 do Decreto-Lei 384/99 enuncia um extenso rol de acontecimentos de mar
específicos, terminando com a referência genérica a todos os acidentes ocorridos no
mar que tenham por objeto o navio, engenhos flutuantes, pessoas, cargas ou outras
coisas transportadas a bordo. A preocupação em elencar o maior número de
acontecimentos de mar possível levou o legislador a não ser muito criterioso na
enunciação, já que mistura acontecimentos em sentido próprio com caracterizações
jurídicas ou conceitos de direito. Na verdade, as avarias grosas não serão, em rigor, um
acontecimento mas, antes, a caracterização jurídica, para efeitos de regime (artigo
634.º e seguintes do Código Comercial), de um determinado acontecimento, como seja,
verbi gratia, o alijamento. A mesma observação poderá ser feita, verbi gratia, em
relação à barataria (§1.º artigo 604.º do Código Comercial) – que constitui um conceito
de Direito. Os acontecimentos de mar especificamente enunciados são os seguintes: a
tempestade, o naufrágio (artigo 604.º do Código Comercial), o encalhe, a varação, a
5 No seu artigo 506.º
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arribada, voluntária ou forçada, a abalroação, a simples colisão ou toque, o incêndio, a
explosão, o alijamento ou o simples aligeiramento, a pilhagem, a captura, o arresto, a
detenção, a angária, a pirataria, o roubo, o furto, a barataria, a rebelião, a queda de
carga, as avarias particulares do navio ou da carga, bem como as avarias grossas, a
salvação, a presa, o acto de guerra, a violência de toda a espécie, a mudança de rota,
de viagem ou de navio, e a quarentena. Uma expressão por vezes usada como sinónima
de acontecimentos de mar é fortunas de mar, expressão esta que encontramos, v.g.,
no artigo 604.º do Código Comercial, precisamente para caracterizar genericamente
alguns dos acontecimentos de mar elencados no artigo 13.º, n.º2 do Decreto-Lei
384/99, 23 setembro. Contudo, a fortuna de mar (no singular) tem, tipicamente, um
significado bem diferente, sendo utilizada, genericamente, em sede de limitação da
responsabilidade do proprietário ou armador do navio, traduzida, nos sistemas de
inspiração francesa, no abandono do navio. Mas mesmo no singular, a expressão
fortuna de mar é utilizada para designar um acidente marítimo. Ilustrativa da flutuação
da expressão é uma das caracterizações de que dá nota Ferreira Borges:
«Fortuna de mar é propriamente aquele acidente que acontece a um navio
nas suas viagens por um escolho ou borrasca; porém, em matéria de seguros,
entende-se por fortuna de mar todas as perdas e danos que acontecem no
mar por caso fortuito: da mesma sorte neste denominação se compreendem
os acidentes que ocorrem no curso da viagem pelo mau comportamento do
capitão ou marinheiros. Donde fortuna de mar compreende tudo aquilo por
que os seguradores respondem, salvo convenção em contrário».
Mais preciso é Victor Nunes:
«Portanto, aqui interessa a fora fortuna tuna de mar, quer dizer todo o
evento sucedido no mar e que resultou, apenas, do acaso, da sorte, de causa
estranha ao navio e sua tripulação. Em Direito Marítimo a expressão que
estamos analisando, possui, também, outro significado, que é o de abarcar
o conjunto dos bens do armador ou proprietário de navios, que forma a parte
do seu património ou soma dos capitais aplicados em coisas do mar, por
oposição ao que emprega em bens sitos em terra».
Para Cunha Gonçalves, a expressão fortuna do mar engloba
«qualquer sinistro ocorrido no mar ou por causa do mar, previsto ou
imprevisto, sólito ou insólito, vulgar ou extraordinário, devido a uma força
maior ou a um caso fortuito».
Já de afastar como sinónima de acontecimentos de mar é a expressão sinistros de mar,
expressão esta que está associada a desastres, tendo, de resto, um lugar de relevo no
campo dos seguros. Ainda a título exemplificativo, o artigo 2.º da Convenção
Internacional sobre a Prevenção, Actuação e Cooperação no combate à poluição por
hidrocarbonetos de 1990 (OPRC 90) estabelece uma relação entre acontecimento de
mar e incidente (que pode não ser ainda um sinistro), ao definir incidente de poluição
por hidrocarbonetos como
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«um acontecimento ou uma série de acontecimentos com a mesma origem
tendo como consequência uma descarga real ou presumível de
hidrocarbonetos e constituindo ou sendo suscetível de constituir uma
ameaça para o meio marinho, para o litoral ou para os interesses conexos de
um ou mais Estados, impondo-se uma ação urgente ou uma actuação
imediata».
3. Acontecimento de mar de que resulte afundamento ou encalhe de navio: o Decreto-Lei
63/2005, 15 março, veio estabelecer uma disciplina específica para situações em que,
na sequência de um acontecimento de mar, tenha ocorrido o afundamento ou encalhe
de um navio. Importa apenas dar nota do facto de o artigo 1.º do referido Decreto-Lei
prever que quando, na sequência de sinistro marítimo ou outro acontecimento de mar,
ocorra o afundamento ou encalhe de um navio, o respetivo proprietário, armador ou
representante legal deve, nas situações aí genericamente enunciadas, efetuar a
respetiva remoção, ainda que só existam destroços e assumir a totalidade das
respetivas despesas da operação. As situações em que esse dever de remoção e de
assunção é estabelecido são as seguintes:
a) O navio afundado ou encalhado cause prejuízo à navegação;
b) O navio afundado ou encalhado perturbe o regime ou a exploração de
porto;
c) O navio afundado ou encalhado cause danos ao ambiente, designadamente
para os recursos aquícolas ou piscícolas.
Conforme resulta do descrito, são de duas ordens as preocupações do legislador:
segurança da navegação e proteção do ambiente.
4. Elaboração e apresentação do relatório de mar: o artigo 14.º do Decreto-Lei 384/99, 23
setembro, refere-se à elaboração e apresentação do relatório de mar, em termos que
não coincidem com o s antes consagrados no Código Comercial já que o relatório é
necessário qualquer que tenha sido o acontecimento de mar ocorrido. Refira-se que se
mantém em vigor o artigo 151.º, n.º2 do Regulamento Geral das Capitanias, que impõe
ao capitão (ou quem desempenhe funções de comando) que entre em porto nacional
o dever de apresentar na repartição marítima, dentro do prazo de vinte e quatro horas,
entre outros, o diário da navegação, esclarecendo o artigo que tal apresentação é feita
«a fim de a autoridade marítima proceder nos termos do C. C.». Suscita-se a questão de
saber se se mantém a necessidade de visar o Diário de navegação conforme impunha
o revogado artigo 506.º do Código Comercial. A dúvida pode suscitar-se em virtude da
remissão feita pelo artigo 151.º, n.º2 do Regulamento Geral das Capitanias, remissão
essa que deveria ser lida como reportada, desde logo, ao disposto no artigo 506.º do
Código Comercial. Constituindo o artigo 151.º, n.º2 RGC uma norma remissiva, a dúvida
está em saber se a remissão é estática ou dinâmica6. Sempre sem prejuízo de estarmos,
em rigor, perante um problema de interpretação da norma remissiva, se seguirmos a
diretriz traçada pelo mesmo autor, de acordo com a qual a remissão genérica para um
6 Seguindo Dias Marques, a remissão é estática quando «envolve a aplicação da lei para que se remete nos precisos termos em que o seu conteúdo se encontrava concebido no momento da entrada em vigor da norma de remissão». Ao invés, a remissão é dinâmica quando «não visa incorporar rigidamente um certo conteúdo da norma para que se remete mas tanto o conteúdo da norma atual como o conteúdo de qualquer outra que a venha a substituir no futuro».
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diploma será quase sempre dinâmica, poderemos então apontar no sentido de o visto
do diário ter deixado de constituir uma imposição legal. Não prejudicado está, porém,
o dever que impende sobre o capitão (alínea l) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, 23
setembro), de
«exibir às autoridades competentes ou aos interessados na expedição os
documentos e registos do navio, emitindo as competentes certidões ou
cópias, quando requeridas».
De acordo com o disposto no artigo 14.º, n.º1 do Decreto-Lei 384/99, a elaboração do
relatório de mar pertence ao capitão ou a quem exerça as funções de comando,
devendo ser efetuado «após a ocorrência de acontecimento de mar». Quanto às
menções que devem constar do relatório de mar, as mesmas estão descritas e
enunciadas no artigo 14.º, n.º2: o relatório deve conter a descrição de todos os
elementos úteis que caracterizam o acontecimento de mar a que respeitam, sendo
enunciados, claramente de forma não exaustiva, os seguintes:
a) Identificação e qualidade do subscritor (será o capitão ou quem
desempenhe funções de comando);
b) Elementos indentificadores e características técnicas dos navios e outras
coisas relacionadas;
c) Identificação dos proprietários, armadores, afretadores, seguradores,
carregadores, lesados, credores e demais interessados conhecidos (trata-
se de identificar os sujeitos interessados, hoc sensu, em função do
acontecimento de mar específico);
d) Indicação do local ou área geográfica onde se verificou o acontecimento (a
importância dessa identificação é óbvia, podendo ser também decisiva, ou
pelo menos relevante, para a determinação, desde logo, da lei aplicável);
e) Descrição pormenorizada dos antecedentes, da sequência dos factos, das
consequências e das eventuais causas do acontecimento (trata-se de
elementos que podem ser decisivos para a posterior confirmação);
f) Identificação das testemunhas e indicação de outros meios de prova (a
importância destas menções torna-se evidente, se tivermos presente o
processo tendente à confirmação - artigo 15.º);
De acordo com o artigo 14.º, n.º3, o relatório de mar deverá, depois, ser apresentado
à autoridade marítima ou consular, com jurisdição no primeiro porto de escala onde
essa autoridade exista7, no prazo de quarenta e oito horas contado a partir do momento
em que o navio atracar ou fundear no mencionado porto. Prevenindo a hipótese de
perda total do navio, o artigo 14.º, n.º3 determina que, nesse caso, o prazo conta-se
desde a data da chegada do capitão ou de quem o substitua. Após o decurso do prazo
de quarenta e oito horas sem que o relatório de mar tenha sido apresentado, não fica
precludida a possibilidade de apresentação, mas deixa de ser possível a respetiva
confirmação, conforme decorre do disposto no artigo 14.º, n.º4. Mais concretamente,
a autoridade continua adstrita às investigações a que esteja obrigada mas está impedida
de confirmar o relatório, devendo referir expressamente essa impossibilidade nas
conclusões que lavre, a final. Compreendem-se as razões que estão na base de
7 De acordo com o disposto na alínea f) do artigo 13.º, n.º2 do Decreto-Lei 44/2002, 2 março – diploma que criou o sistema da autoridade marítima – compete ao capitão do porto, no exercício de funções de autoridade marítima, «receber os relatórios e protestos de mar apresentados pelos comandantes das embarcações nacionais, comunitárias e de países terceiros e proceder à respetiva instrução processual, de acordo com o estabelecido em legislação própria».
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indicação de um prazo peremptório: é importante, até para salvaguardar a genuinidade
dos dizeres, dos testemunhos e das provas, que a apresentação seja feita dentro de um
prazo curto e firme. Resulta deste regime que se a autoridade marítima ou consular
confirmar o relatório, apesar de o mesmo ter sido apresentado fora de prazo, tal
confirmação é nula enquanto tal, com as consequências que daí advêm. Admite-se,
porém, que, nesse caso, as conclusões possam valer como elemento a considerar, a par
de outros, em termos de prova. Tal como no regime anterior, o artigo 14.º, n.º5
estabelece que enquanto o procedimento de confirmação do relatório não estiver
concluído, não pode iniciar-se a descarga do navio, salvo havendo, cumulativamente,
urgência nessa mesma descarga e autorização concedida por escrito pela autoridade
competente para a confirmação. Importa ter presente que, para além do relatório de
mar previsto no Decreto-Lei 384/99, a lei pode prever a necessidade de feitura de
relatórios específicos que obedecem a regimes não coincidentes.
5. A confirmação do relatório de mar: o artigo 15.º do Decreto Lei 384/99 disciplina o
processo tendente à confirmação do relatório de mar e os efeitos da confirmação. O
artigo 15.º, n.º1 impõe à autoridade marítima ou consular que receba o relatório de
mar o dever de, com caráter de urgência, investigar a veracidade dos factos relatados,
inquirindo em separado as testemunhas arroladas e os tripulantes, passageiros ou
outras pessoas que considere necessário ouvir para esclarecimento da verdade. Impõe,
por sua vez, o artigo 15.º, n.º2 à autoridade competente para a confirmação do
relatório de mar o dever de recolher as informações e os demais meios de prova
relacionados com os factos relatados. Nesse âmbito, ninguém (ainda que não seja
tripulante ou passageiro) poderá recusar-se a prestar depoimento feito sob a forma de
auto de declarações, salvo impedimento legal, devendo a recusa de colaboração
constar das conclusões do procedimento (artigo 15.º, n.º3)8. Tal como no regime do
Código Comercial, os interessados na expedição marítima, ou os seus representantes
ou gestores de negócios podem assistir ao depoimento das testemunhas e demais
produção de prova (Artigo 15.º, n.º4), podendo também solicitar a quem os detenha os
elementos a que se refere a alínea l) do artigo 6.º. O processo terminará com a
confirmação ou com a não confirmação do relatório, conforme decorre do artigo 15.º,
n.º5: no final da investigação, a autoridade marítima ou consular encerra o
procedimento, lavrando conclusões, nas quais confirma ou não, fundamentadamente,
os factos constantes do relatório de mar. Essa mesma autoridade deverá, depois, logo
que possível, enviar à autoridade marítima do porto de registo do navio em causa cópia
autenticada do procedimento e suas conclusões respeitantes ao relatório de mar
(artigo 15.º, n.º6). Vimos acima que o §2.º do artigo 506.º do Código Comercial
estabelecia que os relatório confirmados «fazem fé em juízo, salvo prova em contrário».
Face ao disposto no artigo 15.º, n.º7, o regime é substancialmente o mesmo, embora
seja adotada uma redação mais rigorosa e também mais abrangente, já que não é
específica do campo jurisdicional: resulta, agora, da lei que os factos constantes de
relatório de mar confirmado pela autoridade marítima ou consular competente, no
pressuposto de que a confirmação foi regular, «presumem-se verdadeiros, salvo prova
em contrário». O pressuposto da regularidade da confirmação e do processo à mesma
8 De acordo com a alínea d) do artigo 4.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 45/2002, 2 de março, constitui uma contra ordenação punível com coima «não colaborar com o capitão do porto em processo de averiguação ao relatório de mar apresentado não permitindo, designadamente, a deslocação ou presença de tripulantes para recolha de declarações».
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conducente resulta da exigência, constante do artigo 15.º, n.º7, de que a confirmação
deverá ser feita «com observância do disposto nos números anteriores?. Parece-nos,
porém, claro que não basta a regularidade do disposto do artigo 15.º: é necessário,
como vimos, o cumprimento do disposto no artigo 14.º. Assim, não há regularidade da
confirmação – que não é, então, assistida da força presuntiva estabelecida no artigo
15.º, n.º7 – quando não tenha sido respeitado o prazo de apresentação estabelecido
no artigo 14.º, nº.3 (conforme artigo 14.º, n.º4). Estamos claramente perante uma
presunção relativa, iuris tantum, admitindo-se que aquele a quem não interessar o teor
do relatório confirmado, possa fazer prova do contrário, nos termos gerais de direito
(Artigo 350.º, n.º2 CC). A importância da presunção é manifesta: suponhamos que
consta do relatório de mar, entretanto regularmente confirmado, que um determinado
contentor carregado de mercadorias foi projetado bora fora, em consequência de uma
grande tempestade com ondas alterosas que deslocaram o contentor, apesar de o
mesmo estar devidamente arrumado no convés. A presunção resultante do artigo 15.º,
n.º7 será, no que à eventual questão de responsabilidade respeita, favorável ao
armador e ao capitão mas já será adversa aos interesses do segurador da mercadoria
que, tendo de satisfazer a indemnização, não logrará, em sub-rogação, recuperar aquilo
que pagou ao carregador ou ao destinatário da mercadoria. Pode, assim, o segurador
propor-se demonstrar em juízo – ilidindo a presunção do artigo 15.º, n.º7 – que não
houve tempestade, ou que a tempestade não foi tão forte quanto o descrito e que a
projeção do contentor resultou ao invés, de má estiva, exigindo, assim, como sub-
rogado (artigo 441.º do Código Comercial), indemnização correspondente ao valor d
indemnização que teve de pagar.
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Capítulo II – Avarias
1. Introdução; noção de avarias; avarias danos e avarias despesas: o Título V do Livro
Terceiro (Do Comércio Marítimo) do Código Comercial é dedicado às Avarias. Estamos
perante um termo que, independentemente da sua nebulosa origem e do seu
significado na linguagem comum, tem um relevo especial. É importante salientar que,
na língua Inglesa – língua que, no domínio do shipping e dos transportes internacionais,
tem o maior relevo – o termo corresponde a avaria (average) é praticamente reservado
ao conceito de avaria grossa, quando associado ao qualificativo “geral” – general
average – não sendo sinónimo de dano: para este, o termo utilizado é damage. O
conceito de avarias que se encontra plasmado no artigo 634.º do Código Comercial é
um conceito amplo, que abarca as chamadas avarias grossas ou comuns e as avarias
particulares ou simples. Do artigo 634.º do Código Comercial resultam serem reputadas
avarias, para efeitos do regime deste código, dois tipos de situações:
a. Todas as despesas extraordinárias feitas com o navio ou com a sua carga,
conjunta ou separadamente;
b. Todos os danos que acontecem ao navio, desde que começam os riscos de mar
até que acabam.
A noção de avarias que encontramos no artigo 634.º do Código Comercial é a natural
continuação da noção que constava do artigo 1 do Titulo VII do Livro III das Ordenanças
da Marinha de Luiz XIV, de 1681, que vigorou no Direito Português por força da Lei da
Boa Razão:
«Toda a despeza extraordinária, que se fizer com os Navios ou mercadorias,
conjuncta, ou separadamente, e de todo o damno, que lhes acontecer desde
a sua carga e partida, até o seu retorno e decarga, serão reputadas Avarias».
Essa definição influenciaria a noção de code de commerce e, a nível interno português
no artigo 1813 do Código de Ferreira Borges. Era a seguinte a redação deste úlitmo:
«Todas as despesas extraordinárias, feitas para com o navio ou mercadorias
conjuncta ou separadamente: todos os damnos, que acontecem aos navios
e fazendas desde o momento, em que os riscos de mar começam e acabam
segundo as disposições d’este código, são reputadas avarias».
A noção do artigo 634.º do Código Comercial deixa, assim, evidenciada a primeira grande
classificação, neste domínio, entre:
a. Avarias despesas; e
b. Avarias danos.
Quanto às avarias despesas, o §1.º do artigo 634.º estabelece um recorte negativo: não
são reputadas avarias mas simples despesas a cargo do navio as que ordinariamente se
fazem com a sua saída e entrada, assim como o pagamento de direitos e outras taxas de
navegação, e ainda com as despesas tendentes a aligeirá-lo para passar os baixos ou
bancos de areia conhecidos à saída do lugar da partida. Já no que respeita às avarias
danos, não surge qualquer delimitação complementar no artigo 634.º: a maior dúvida
suscitável estará em saber se os danos ocorreram efetivamente no arco temporal – que
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nem sempre será de fácil determinação – que vai do começo dos riscos de mar até ao fim
dos mesmos ou se ocorreram a montante ou a jusante desse arco. Voltando ao conceito
de avarias despesas, só relevam, de acordo com a lei, as extraordinárias: não cabem aí,
portanto, as despesas usuais ou ordinárias, algumas das quais se encontram, de resto, no
recorte negativo do §1.º do mesmo artigo 634.º; quanto a estas, a respetivas inserção no
dito recorte apresenta-se repetida, uma vez que já estariam, à cabeça, excluídas – a
contratio – da própria noção de avarias.
2. Natureza supletiva do regime das avarias; as Regras Iorque-Antuérpia: decorre do §2.º
do artigo 634.º do Código Comercial que o regime constante dos artigos 634.º e 653.º
é supletivo: as avarias regulam-se por convenção das partes, valendo, na sua falta ou
insuficiência, as disposições do Código. O caráter supletivo do regime do Código
Comercial é independente do tipo de avarias. Contudo, tal previsão tem sobretudo
interesse para as avarias danos ou avarias despesas que constituam avaria grossa ou
comum, sendo conhecida a cláusula “franco de avaria” ou “franco de avaria recíproca”,
através da qual os carregadores e armadores renunciam a fazer valer as pretensões que
resultariam da aplicação do regime de tais avarias. O maior destaque, neste domínio,
vai, porém, para as Regras de Iorque-Antuérpia. Importa, no entanto, deixar aqui
expressa uma precisão a supletividade aberta pelo §2.º do artigo 634.º circunscreve-se
às matérias diretamente tratadas no citados artigos 634.º a 653.º, não podendo os
interessados na expedição conformar a atuação do capitão na «boa condução da
expedição marítima» (artigo 5.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro). As
Regras de Iorque-Antuérpia (Regras I-A) nasceram da necessidade de uniformização do
regime das avaria grossa ou comum. O impulso para tais Regras nasce de um Congresso
realizado em Glasgow, em 1860, seguindo-se um outro realizado em Iorque, em 1864,
no qual foram aprovadas as Regras de Iorque (11 regras). Mais tarde, em 1877, realiza-
se uma nova conferência em Antuérpia, na qual, para além de algumas modificações
das Regras de Iorque, foi acrescentada uma nova: a XII. Nascem, assim, as Regras de
Iorque-Antuérpia. A aplicação destas está dependente de convenção, só sendo
aplicáveis se forem incorporadas, v.g., no conhecimentos de carga, nas cartas-partidas
ou nas apólices de seguro. Não obstante sua não obrigatoriedade, diversamente do
que aconteceria, quanto aos países ratificantes, se tivessem sido objeto de aprovação
por uma Convenção Internacional, a verdade é que as Regras I-A têm uma enorme
importância e aplicação, não sendo alheio a esse sucesso o facto, já assinalado, de
terem sido objeto de sucessivas atualizações, feitas por especialistas, o que assegura o
seu caráter up-dated relativamente às realidades do shipping. A circunstância de a
aplicação das Regras I-A depender de uma incorporação convencional não exclui que
as mesmas possam ser tidas como usos do comércio internacional, com as
consequências que daí derivam. No que concerne à respetiva estrutura e organização,
as Regras I-A estão, tal como acontece com as Regras de Lisboa 1987, organizadas em
função duma divisão entre Regras Alfabetadas (Regras A a G) e Regras Numeradas
(Regras I A XXIII). Fora dessa classificação e colocadas à cabeça das Regras I-A, está uma
Regra de Interpretação (Rule of Interpretation) e uma Regra Principal ou Predominante
(Rule Paramount). O primeiro parágrafo da Regra de Interpretação, para além de
estabelecer como objeto das Regras a regulação das avarias grossas, afirma a respetiva
procedência relativamente a qualquer lei ou prática contrária. O segundo parágrafo da
mesma Regra atribui prevalência à Regra Paramount e Às Regras Numeradas sobre as
Alfabetadas: não sendo uma situação qualificada como avaria grossa pelas Regras
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Numeradas, pode-o ser pelas alfabetadas. A Regra Paramount é uma regra de
razoabilidade, a qual de compreende facilmente, tendo, no entanto, a desvantagem de
introduzir uma maior discricionariedade na qualificação de uma avaria como grossa ou
comum. De acordo com essa regra,
«in no caso shall there be any allowance for sacrífice or expenditure unless reasonably
made or incurred».
3. Avarias grossas e avarias particulares:
a. Introdução: o nosso Código Comercial começa por dar, no artigo 634.º, uma
noção de avarias, a partir da qual se desdobram as avarias despesas e as avarias
danos. O Código introduz, depois, no artigo 635.º, uma outra classificação,
dispondo que as avarias são de duas espécies: avarias grossas ou comuns e
avarias simples ou particulares. Esta summa divisio foi consagrada pela primeira
vez no nosso Direito Interno no Regulamento das Avarias de 1829, pondo-se,
assim, alguma ordem nas diversas classificações até então existentes. O Código
de 1833 continuou essa classificação, no seu artigo 1815. Torna-se claro que
esta nova classificação não se coloca ao mesmo nível da anterior, já que quer
as avarias despesas quer as avarias danos tanto podem ser grossas como
simples. Estamos perante classificações ou modalidades que tomam como
ponto de partida critérios diferentes: ao distinguirmos avarias despesas de
avarias danos, estamos a classificar as avarias em função do tipo de
desvantagem económica acontecida; ao distinguirmos avarias comuns ou
grossas de avarias particulares ou simples, estamos já a fazer uma distinção
estrutural ou intrínseca com relevantíssimas repercussões em matéria de
regime. E a verdade é que os artigos 636.º e 637.º do Código Comercial deixam
bem evidenciada a diferença de regimes entre as avarias grossas e as avarias
simples. Não obstante é de questionarmos se o próprio regime do artigo 637.º
não estará mais gizado em função de preocupações de delimitação da avaria
grossa e respetivo regime do que em função duma genuína preocupação com
o regime das avarias particulares, já que, em rigor, estas avarias estão sujeitas,
como acima se disse, ao regime comum dos danos, que não ao regime especial
– marítimo – das avarias grossas ou comuns. A especialidade está, portanto,
nas avarias grossas que, conforme decorre de um simples e primeiro confronto
entre as redações dos artigos 636.º e 637.º, não estão sujeitas ao regime
(comum) da suportação ou da responsabilidade mas, antes, a um regime de
repartição e contribuição, que tem como pressuposto uma comunidade de
interesses numa aventura marítima comum. Pode também haver repartição
em situações de avaria particular, mas em termos claramente diferentes, tendo
por pressuposto uma situação jurídica comum de propriedade ou de outra
forma de comunhão. Umas são suportadas por alguém: em princípio por quem
as sofre; outras são repartidas. Ora, nesta diferença entre suportação e
repartição está a explicação para o facto de a qualificação das avarias ser, com
frequência, um campo de batalha judicial, já que, em princípio, aquele que está,
à partida, indicado para suportar ou responder, quererá repartir e aquele que
está indicado para repartir pretenderá que seja outrem a suportar. Resulta,
assim, desde já, evidenciando que o importante, neste sede, é delimitar a avaria
grossa: identificadas as situações de avaria grossa, dentro do universo das
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avarias, determinadas, por exclusão, ficarão as avarias particulares ou simples.
A priori, a identificação das avarias grossas pode ser feita por uma de três vias:
pela enunciação de um critério geral, pela enumeração das situações de avaria
grossa e, finalmente, por uma via mista de enumeração exemplificativa,
seguida ou precedida da enunciação de um critério. Se atentarmos nos nossos
códigos comerciais, constatamos que o código vigente segue a primeira via
identificada. Na verdade, de acordo com o §1.º do artigo 635.º atual, são
avarias grossas ou comuns:
«Todas as despesas extraordinárias e os sacrifícios feitos
voluntariamente com o fim de evitar um perigo pelo capitão ou por
sua ordem, para a segurança comum do navio e da carga, desde o
seu carregamento e partida até ao seu retorno e descarga».
As mesmas vias são grosso modo seguidas quanto à caracterização da avaria
particular ou simples: enquanto que o §2.º do artigo 635 do atual Código
considera que as mesmas são
«despesas causadas e o dano sofrido só pelo navio ou só pelas
fazendas».
b. O pressuposto e os requisitos da avaria grossa ou comum:
i. Introdução: vejamos, então, os requisitos ou os ingredientes da avaria
grossa ou comum. Só estes nos interessam efetivamente, já que a
caracterização das avarias como particulares ou simples surge por
exclusão, dentro do universo das avarias. O que aqui está em causa é,
assim, determinar quais são os requisitos de cuja reunião depende a
conclusão de que uma determinada despesa extraordinária ou um
determinado sacrifício ou dano deve ser qualificado como avaria grossa.
Há um ponto que é pacífico: a diferenciação entre a avaria grossa ou
simples não está associada à dimensão dos danos: numa determinada
expedição, as avarias simples podem assumir um valor
extraordinariamente elevado quando confrontado com o das comuns,
havendo-as. É importante frisar que a conclusão de que um
determinado acontecimento é avaria grossa ou comum é uma
conclusão de direito, não podendo, em rigor, dizer-se – pese embora a
redação do artigo 13.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro,
que inclui as avarias grossas e as avarias particulares no seu elenco
exemplificativo – que as avarias grossas (ou as particulares) são, elas
próprias e qua tale, acontecimentos de mar. Acontecimento de mar é
o evento ou o facto que, depois, pode ser qualificado como avaria
grossa (ou particular). O §1.º do artigo 635.º do Código Comercial
enuncia, literalmente, três requisitos:
1. Caráter voluntário: a despesa ou o sacrifício deverão ter sido
feitos voluntariamente pelo capitão ou por sua ordem;
2. As despesas ou os sacrifícios deverão ter por fim evitar um
perigo;
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3. O objetivo último deverá ser a segurança comum do navio e da
carga.
A enunciação destes requisitos é feita apresentando-se, assim, como
uma primeira enunciação. Tal enunciação não se afasta, de modo
relevante, de enunciações feitas por alguns autores, sendo que, na
prática, o principal ponto de discordância ou de polémica consiste em
saber se, para além dos requisitos grosso modo relevante, de
enunciações feitas por alguns autores, sendo que, na prática, o
principal ponto de discordância ou de polémica consiste em saber se,
para além dos requisitos grosso modo enunciados, será ainda de
acrescentar o resultado útil, conforme tem sido sustentado entre nós.
Considerando outras classificações, designadamente à luz das Regras I-
A, é também de questionar se não deverá ser acrescentado ainda um
outro requisito: o de que a despesa ou o sacrifício relevantes sejam
razoavelmente feitos – reasonable made or incurred, como se lê na
Regra Paramount das Regras I-A. Importa, porém, preliminarmente,
salientar que, no nosso entender, os três requisitos atrás anunciados
têm natureza diversa, já que um deles assume um relevo especial,
sendo, digamos, o ponto de partida – o pressuposto – para os demais.
Distinguimos, assim, entre um pressuposto e dois requisitos. O
pressuposto é a existência de um perigo comum para o navio e para a
carga: se este pressuposto não estiver verificado, a equacionação da
avaria grossa não faz sentido, devendo, então, a atuação do capitão,
que se traduza na prática de atos de sacrifício, merecer outro
enquadramento jurídico. Seguem-se dois requisitos:
1. Uma despesa ou um sacrifício intencional;
2. A despesa ou o sacrifício deverão ter por objetivo a salvação
comum do navio e da carga.
Importa, ainda, clarificar um ponto: o da parametrização temporal das
avarias grossas: no dizer do §1.º do artigo 635.º do Código Comercial,
elas deverão acontecer, para serem qua tale relevantes, «desde o seu
[do navio] carregamento e partida até ao seu retorno e descarga».
Podemos questionar se esse arco temporal coincide ou não com o arco,
também temporal, estabelecido no artigo 634.º: «desde que começam
os riscos de mar até que acabam». A priori, não há razão para introduzir,
em sede de avarias grossas, uma parametrização temporal das avarias
diferente daquela que é feita, em geral, no artigo 634.º. Contudo, mais
do que discutir se os arcos temporais do artigo 634.º e do §1.º do artigo
635.º coincidem rigorosamente, o que importa é saber se os riscos de
mar formulados no artigo 634.º entram na composição do arco
temporal do §1.º do artigo 635.º. A prova dos nove estará nas situações
em que os danos têm lugar quando o navio já está carregado mas ainda
está atracado no cais; se deflagra um incêndio num armazém do porto,
que se comunica, por virtude do vento ao navio, ameaçando a sua
segurança e a da carga, os danos provocados pelo combate ao incêndio
decidido pelo capitão entrarão em avaria grossa ou devemos
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considerar que falta o pressuposto da exposição do navio e carga aos
riscos de mar? Neste sentido, podemos dizer que militaria a letra do
próprio §1.º do artigo 635.º, que não se refere apenas ao carregamento
mas ao carregamento e partida. A questão suscita-nos algumas dúvidas;
contudo, autores como Cunha Gonçalves ou Azevedo Matos parecem
torna a interpretação que flui da letra do §1.º do artigo 635.º como
pacífica, bastando o carregamento, qua tale e tout court, para que as
situações de avaria grossa possam ter lugar. Temos, no entanto,
dúvidas relativamente a esse entendimento, uma vez que nos parece
questionável que o mesmo considere devidamente a necessidade, que
faz parte o coração do instituto, de haver riscos de mar, o que apontaria
para a circunscrição da aplicação da avaria grossa à fase de navegação.
Outro exemplo, agora na oposta fase em que o navio aportou e atracou,
não tendo a mercadoria sido ainda descarregada quando deflagra o
incêndio no armazém do porto, o qual se comunica ao navio, fazendo
perigar a sua segurança e a da sua carga; os danos provocados pelo
combate ao incêndio, ordenado pelo capitão, constituem (ainda) avaria
grossa? Ou dependerá essa qualificação de a origem do incêndio ser
interna ao navio? Não convencidos, embora, admitimos que o
legislador, neste âmbito, por direta influência do artigo 400.º do code
du commerce, possa ter querido evitar as polémicas que seriam,
necessariamente, provocadas por uma ausência de definição clara,
tendo optado por um critério pragmático, bem visível na seguinte
passagem de Ripert:
«A partir do momento em que estão a bordo, as
mercadorias estão unidas ao navio, mesmo antes da
partida, sendo que a estadia no porto comporta certos
riscos».
ii. A existência de um perigo comum para o navio e carga como
pressuposto da avaria grossa: o pressuposto atrás enunciado é,
conforme dissemos, a existência de um perigo para a aventura
marítima comum. É discutida a natureza do perigo, designadamente se
tem de ser atual ou se pode ser futuro, sendo também objeto de
polémica a questão de saber se tem de ser iminente ou real. A doutrina
dá, em geral, nota da caracterização do perigo relevante, mas é
também evidente a dificuldade em definir critérios firmes. Lê-se, assim,
em Rodiére, que
«Não basta que o acidente seja imaginário, é necessário que surja, se
não como provável, ao menos como ceto a curto prazo, em termos de
a ausência de toda e qualquer intervenção correr o risco de agravar as
perdas ou mesmo de não as lograr evitar, mas também na condição de
que a medida tomada apresente o caráter extraordinário exigido pelos
textos e não seja apenas a medida de prudência exigida a todo o
marítimo cioso das suas responsabilidades».
Neste particular, relevará, em especial o juízo do capitão, como
marítimo especialmente qualificado, de quem é exigível uma avaliação
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ciente e prudente da situação identificada como potencialmente
perigosa e da sua evolução previsível, à luz da experiência do mar,
podendo também dizer-se, designadamente à luz das Regras I-A (Regra
A), que a avaliação da existência do perigo e respetiva dimensão devem
ser feitas com razoabilidade. Podemos falar, aqui, com Torrente, num
juízo de probabilidade feito razoavelmente pelo capitão. Neste quadro,
mantêm-se atuais as letras de Cunha Gonçalves:
«A realidade do perigo não pode ser estabelecida por
carateres objetivos; é uma apreciação subjetiva reservada
ao capitão, atendendo todas as circunstâncias do
momento: estado moral e físico da tripulação, resistência
do navio, natureza da carga, etc. E, como essa apreciação
pessoal tem de ser fiscalizada pelos tribunais, se estes
decidirem que o capitão podia razoavelmente supor a
existência dum perigo real, deverão os danos entrar em
avaria comum. Pelo contrário, se o perigo foi fantasiado ou
exagerado pelo espírito excessivamente timorato do
capitão, que se apavorou e fez uma despesa ou causou um
dano, que um capitão prudente, corajoso e sereno evitaria,
falta ao perigo a realidade ou probabilidade».
O exposto evidencia a importância do juízo experiente de prognose do
capitão relativamente a uma situação de perigo potencial para a
expedição. Essa tónica não nos permite, porém, prescindir da
enunciação do perigo real, como pressuposto da avaria grossa, sendo,
assim, possível sindicar a decisão do capitão, mas agora em prognose
póstuma, devendo ser tidas em conta todas as circunstâncias
presentes aquando da mesma decisão: o capitão podia estar
convencidíssimo d bondade da sua decisão, mas esta pode, numa
apreciação objetiva, feita ex post, ser tida como precipitada ou
temerosa, em virtude duma errada identificação de um perigo. É certo
que a sindicante apreciação objetiva do perigo real é feita, digamos, a
frio, após os acontecimentos; contudo, o julgador deve, nesse juízo de
prognose póstuma, considerar qual é que seria a correta decisão de um
bom capitão, colocado exatamente naquele navio, em idênticas
circunstâncias. O perigo só é relevante para efeito de avaria grossa se
for comum ao navio e à carga. Naturalmente que a avaliação do caráter
comum do perigo repousa, também ela, no juízo razoável do capitão,
nos termos atrás referidos. A avaliação feita pelo capitão pode, em
concreto, conduzir a que um perigo que, diretamente e no imediato,
apenas incide sobre o navio, deva ser avaliado como perigo comum par
o navio e carga, considerando a previsível evolução dos
acontecimentos, à luz das circunstâncias e da experiência do mar. Para
o efeito da caracterização do perigo relevante será indiferente que o
mesmo decorra de caso fortuito ou de força maior, de facto de terceiro
ou mesmo de culpa do proprietário do navio ou do capitão. Esta
conclusão pode parecer estranha no caso de na origem do perigo estar
a inavegabilidade do navio ou uma falha de um membro da tripulação.
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Na doutrina portuguesa, encontramos manifestações de dificuldade
deste tema, destacando-se as diferenças entre as posições de Silva
Lisboa e de Cunha Gonçalves. Para o primeiro, norteado pelo regime
da Ordenança de Colbert, as situações de inavegabilidade do navio
deviam determinar a aplicação do regime da avaria particular; esta
solução seria expressamente consagrada no Código Ferreira Borges.
Para Cunha Gonçalves contudo, para a caracterização de uma avaria
comum é indiferente a respetiva causa: causa proxima, non remota,
spectatur; segundo o autor, a caracterização das situações em apreço
como avaria particular era inaceitável, já que
«porque aos lesados é indiferente que o perigo haja resultado de culpa
doutrem ou de caso fortuito ou de força maior; e, desde que há
interessados que aproveitaram com o sacrifício feito, forçoso será que
contribuam à indemnização do lesado, ficando-lhe apenas salvo o
direito de exigirem ao culpado a contribuição que pagaram».
A solução do Direito Marítimo é de total pragmatismo: funciona a
avaria grossa e, depois, são, eventualmente, refeitas as contas. É a
solução mais solidarista, que tem a vantagem de dividir entre todos a
eventual insolvência do responsável remoto pela situação, tendo a seu
favor a Regra D de I-A:
«Right to contribution in general average shall not be
affected, though the event which gave rise to the sacrifice
or expenditure may have been due to the fault of one of
the parties of the adventure; but this shall not prejudice
any remedies or defences which may be open against or to
that party in respect of such fault».
Como diz Baughen
«The loss does not lose its general average character and
the other interest retain their rights of contribution against
each other».
Assim, numa situação em que a decisão de sacrifício de parte da carga,
para salvação comum do navio e da carga, tenha na sua base, como
causa remota, a inavegabilidade do navio, o proprietário do navio não
poderá exigir contribuição mas nem por isso deixam os proprietários
dos bens sacrificados de poder exigir, em avaria grosa, contribuição do
demais carregadores – e do proprietário do navio, naturalmente – os
quais poderão, então, exigir do proprietário do navio o reembolso do
valores pagos e indemnização pelos prejuízos sofridos. Digamos que é
uma espécie de solve et repete, em que o devedor da repetição é… um
terceiro. A questão que se pode colocar é se esta solução pragmática,
incluída, como vimos, nas Regras I-A, é compatível com o regime das
avarias do Código Comercial, quando o mesmo não tenha sido afastado
a favor daquelas Regras ou de outro regime: a priori, parece que a
lógica da avaria grossa, com o seu regime de repartição e contribuição,
deveria ceder perante a identificação de uma imputação e de uma
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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consequente verificação dos requisitos da responsabilidade civil, como
no caso em que fique provado que a causa próxima consubstanciada
na decisão voluntária do capitão teve como causa remota o estado de
inavegabilidade do navio ou no caso em que seja provado que a decisão
voluntária do capitão no sentido de combater um incêndio teve na sua
origem um comportamento negligente de um tripulante ou de um
carregador. Parece-nos, porém, que a solução de Direito interno não
pode deixar de acompanhar aquela que se identifica com a lógica da
avaria grossa e com a sua natureza, tal qual reconhecida
internacionalmente: a internacionalidade do Direito Marítimo, por um
lado, e a especificidade do instituto da avaria grossa, por outro,
impedem aqui a aplicação de uma lógica estritamente civilista com
base nas regras da responsabilidade civil. De resto, esta solução
apresenta-se também como a solução mais lógica, já que as relações
inerentes à contribuição desenrolam-se num plano diferente daquele
que respeita às relações derivadas das situações de responsabilidade
civil. Acresce, ainda, que o Código Comercial de 1888 alijou, neste
particular, os artigos do Código Ferreira Borges que excluíam da avaria
grossa as situações em que a causa remota do ato fosse a
inavegabilidade do navio ou um ato do capitão ou de algum membro
da tripulação. Sendo, embora, indiferente a causa remota do ato de
avaria grossa, já não faria sentido que o causador pretenda beneficiar
do regime desta. Podemos também chegar a estas conclusões fazendo
intervir os princípios gerais, de modo a paralisar pretensões que se
mostrem, em concreto, contrárias ao princípio da boa fé. Assim, deve
ser paralisada a pretensão de repartição com base no regime da avaria
grossa feita pelo proprietário do navio na situação acima exemplificada,
em que a causa remota da decisão de despesas extraordinárias ou do
sacrifício feita pelo capitão tenha sido o estado de inavegabilidade do
navio; o mesmo relativamente a similar iniciativa promovida pelo
carregador cujo comportamento negligente tenha estado na causa do
incêndio: tais paralisações são explicadas à luz da proibição de venire
contra factum proprium.
iii. Os requisitos da avaria grossa:
1. O caráter voluntário e intencional do sacrifício: vejamos o
primeiro requisito: o do caráter voluntário do sacrifício ou da
despesa: o sacrifício ou a despesa extraordinária deverão ser
objeto de uma decisão do capitão ou de alguém que exerça as
correspondentes funções (artigo 4.º DL 384/99, 23 setembro).
Conforme resulta, depois, da comum consideração dos demais
requisitos, essa decisão voluntária terá de ser intencional.
Diversamente da tradição do Consulat del Mar, em sede de
avarias, o artigo 635.º do Código vigente não exige que haja
uma “deliberação motivada”. Não obstante, de acordo com o
disposto na alínea h) do artigo 6.º do DL 384/99, 23 setembro,
o capitão é obrigado
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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«a convocar a conselho oficiais, armadores,
carregadores e sobrecargas, sempre que for
previsível a ocorrência de perigo para a
expedição suscetível de causar danos ao navio,
tripulantes, passageiros ou mercadorias».
Evidentemente que convocar tal conselho estará, à partida,
prejudicado nas situações em que a urgência não se
compadeça com a delonga que o mesmo implica. Por não
verificação deste requisito, não constituirá uma situação de
avaria grossa aquela em que determinada carga no convés é
arrastada para o mar pela força das ondas. Estamos aqui
perante uma situação de avaria particular, com as
correspondentes consequências a nível de responsabilização
ou de suportação de danos: nesta situação ou haverá
fundamento para responsabilizar o transportador por má
colocação ou arrumação da mercadoria ou haverá dano por
caso de força maior. Refira-se, porém, que, atualmente,
designadamente ao abrigo das Regras I-A, o caráter voluntário
do ato como requisito da avaria grossa não pode ser
absolutizado, conhecendo exceções que, no entanto, não
põem em causa a exigência do caráter voluntário ou
intencional, enquanto regra, mas cuja existência já não nos
permite dizer, como dizia Cunha Gonçalves, que a
voluntariedade era um requisito essencialíssimo da avaria
grossa. A situação que corporiza estas exceções é a das
despesas com a salvação do próprio navio (e carga). Ora,
conforme é sabido, uma vez que a salvação tanto pode ser
espontânea como contratada, não haverá dúvidas de que o
salário de salvação contratada (artigo 6.º DL 203/98 e artigo
8.º da Convenção de Bruxelas de 1910) resulta de um ato
voluntário: da própria celebração do contrato de salvação. As
dúvidas acontecem se a salvação for espontânea. Suponhamos
que o navio está à deriva e o capitão e restante tripulação
tiveram que o abandonar ou não estão em condições de tomar
decisões; poderá, ainda assim, a salvação ser tida como um ato
voluntário? Tal conclusão não parece ictu oculi possível mas
não fará, por no salário de salvação não entrem em regra de
avaria grossa. É assim que se explica que a Regra VI das Regras
I-A estabeleça que a «salvage remuneration» é considerada
ainda que não tenha havido contrato («wether under contract
or otherwise»). É assim também que se explica o facto de, a
nível do nosso Direito interno, o artigo 7.º do DL 203/98
estabelecer que o pagamento do salário de salvação marítima
é feito pelos salvados de harmonia com as regras aplicáveis À
regulação da avaria grossa ou comum. Outra importante
questão que neste domínio se suscita é a de saber se, tendo as
despesas ou sacrifícios sido voluntariamente feitas ou sofridos,
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deverão continuar a ser tidos como de avaria grossa se se
concluir, com segurança, que o mesmo efeito ocorreria ainda
que a tal decisão não tivesse sido tomada. Se tomarmos em
linha de conta o momento em que mercadoria á alijada, haverá
avaria grossa, mas se considerarmos o arco temporal da
aventura marítima, poderíamos equacionar uma avaria
particular, atribuindo relevo a uma causa virtual para excluir a
avaria grossa. Parece-nos que a solução correta está em
atribuir à causa virtual um relevo negativo para exclusão da
avaria grossa, adotando-se, em função da razão de ser do
instituto, um regime correspondente ao da ressalva constante
da parte final do artigo 469 do codice della navigazione: ainda
que estejam verificados os requisitos da avaria grossa no
momento do ato de avaria, não se aplica o regime da avaria
grossa quando o dano voluntariamente produzido seja aquele
que se verificaria necessariamente, de acordo com o curso
normal os eventos. Nas Regras I-A encontramos, em sede de
encalhe voluntário (Regra V) uma solução que se afasta,
quanto a este acontecimento de mar, da posição que
acabamos de expor: o encalhe é admitido como avaria grossa
ainda que o navio pudesse ter encalhado posteriormente;
contudo, na redação de 1950 da mesma Regra, a solução era
inversa, conquanto já fossem admitidas como avaria grossa
(atualmente Regra VII) as perdas e danos sofridos para pôr o
navio a flutuar de novo.
2. O sacrifício deve ser feito para segurança comum do navio e da
carga: o segundo requisito cuja verificação é necessária para
que a avaria seja tida como grossa ou comum traduz-se na
necessidade de a despesa ou o sacrifício serem feitos para a
segurança comum do navio e da carga. Na base deste requisito
está a consideração da comunidade de interesses entre o
navio e carga, a aventura marítima comum, para usarmos uma
expressão clássica, que consta também da Regra A das Regras
I-A. Assim, se deflagra um incêndio em certa mercadoria que,
pela sua natureza e colocação na área do navio, não põe em
causa a segurança das demais mercadorias e do próprio navio,
os danos provocados no combate ao incêndio não entram em
avaria grossa, não havendo, consequentemente, lugar a
repartição com base nesse regime. Atento este requisito,
também não contribuirão as mercadorias que já tenham sido
desembarcadas quando deflagra um incêndio a bordo que
ponha em causa a segurança do navio e da carga ainda
carregada: os danos provocados pela decisão de combater o
incêndio e respetiva execução não serão repartidos pela carga
que já está fora da comunhão de interesses. Pela mesma razão,
por faltar a união material, estabelece o artigo 644.º do Código
Comercial que não contribuem nas perdas acontecidas a bordo,
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para cuja carga eram destinadas, as fazendas que estiverem
em terra: podemos dizer, relativamente às mesmas, que ainda
não começou a aventura marítima comum, não havendo ainda
comunhão de interesses. A despesa ou o sacrifício devem ser
feitos com razoabilidade, como se lê na Regra Paramount de I-
A. Não corresponde a esta exigência a atitude do capitão que
sacrifica mercadoria em quantidade excedente à medida que
seria razoavelmente necessária para o efeito pretendido. A
consequência que daqui decorre é não serem considerados
como avaria grossa os sacrifícios que excedam aquela medida.
Pese embora a importância de acentuação da necessidade de
uma atuação razoável do capitão na medida e dimensão das
despesas ou dos danos, não partilhamos da ideia, sustentada
por vários autores, de que a razoabilidade deva ser erigida em
requisito autónomo da avaria grossa ou comum. No nosso
entender, a exigência de razoabilidade é inerente ao dever de
um capitão diligente (artigo 5.º, n.º3 DL 384/99). Uma questão
controversa é a de saber se o que releva, no âmbito deste
requisito, é a segurança comum (Common safety) ou o
proveito comum (Common benefit). Esta questão, que tem
estado bem presente nas revisões das Regras I-A, tem
sobretudo interesse quanto às despesas: podem entrar como
avaria grossa as despesas feitas em proveito comum do navio
e da carga, conquanto o não sejam, summo rigore, para
segurança comum? Estamos perante conceções diferentes da
avaria grossa e do respetivo âmbito de aplicação. Cunha
Gonçalves, considerando, embora, defensável, em teoria, essa
possibilidade, entendia que a mesma esbarra na letra do §1.º
do artigo 635.º do Código Comercial, que se refere à
«segurança comum» do navio e da carga. Segundo Rose, esta
dicotomia entre Common safety e Common benefit espelha
uma diferença entre o Direito Inglês, procupado com a
primeira – ou seja com a preservation of the property – e os
Direitos europeus continentais, orientados em função da self
prosecution of the adventure, ou seja, em função do Common
benefit. A verdade é que, face ao regime do Código Comercial,
é dificilmente sustentável a filosofia do beneficio comum,
enquanto contraposto à segurança comum. Porém, sendo
aplicáveis as Regras I-A, encontramos nas mesmas aspetos de
regime que demonstram uma clara influência da filosofia do
common bennefit, como decorre nas Regras X e XI de I-A.
Estamos, agora, em posição de voltar um pouco atrás, ao
ponto em que dissemos que as avarias particulares são
determinadas por exclusão das partes, sendo particulares as
avarias que não são grossas. Importa, no entanto deixar
vincado que a caracterização feita no §2.º do artigo 635.º do
Código Comercial é enganadora, já que sugere, erradamente,
que a avaria particular só pode incidir, alternadamente, sobre
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o navio ou sobre a carga. Não é, porém, assim, já que o dano
provocado por caso fortuito ou de força maior, ou mesmo por
decisão voluntária que não corporize uma avaria grossa, pode
atingir, a um tempo, o navio e a carga: se a tempestade
provoca danos no navio e nas mercadorias carregadas a bordo,
estamos seguramente perante uma situação de avarias
particulares ou simples.
iv. Outros requisitos da avaria grossa? É discutido se, para além dos
requisitos atrás mencionados é ainda necessário um outro: um
resultado útil. Esta exigência – a da utilidade – era feita por Silva Lisboa:
«porque o damno, ou despeza feita para o bem, e salvação
comum do Navio, e carga não aproveitou effectivamente,
como casos ditos de alijação, e arribada, antes ao
contrário sem embargo desse expediente, o Navio se
perdeo, salvando-se porém parte da carga, o prejuízo he
avaria simples, e recebe unicamente sobre a propriedade
perdida, sem que o dono tenha direito de exigir
indemnidade por contribuição dos que tiveram as suas
mercadorias salvas».
Já face ao atual Código Comercia, exigem o resultado útil como
requisito da avaria grossa autores como Cunha Gonçalves e Sant’Ana
Silva. A necessidade de um resultado útil parece ter apoio literal no
artigo 639.º do Código Comercial – que estabelece haver repartição de
avaria grossa por contribuição «sempre que o navio e a carga forem
salvos no todo ou em parte» - e ainda no controverso artigo 642.º - de
acordo com o qual
«se, não obstante o alijamento ou o corte de aparelhos, o navio se não
salva, não há lugar a contribuição alguma e os objetos salvos não
respondem por pagamento algum em contribuição de avaria dos
objetos alijados ou cortados».
Apesar destes apoios literais, não parece que o resultado útil seja um
requisito ou um elemento constitutivo da avaria grossa. Certo é, como
diz Rodière, que é necessário chegar a um resultado útil; contudo, tal
resultado será um requisito para a liquidação e para a liquidação e para
a contribuição da avaria grossa, que não para a própria identificação da
avaria grossa. Se, não obstante o sacrifício voluntário de bens perante
um perigo para a salvação comum do navio e da carga, os bens em
causa não se salvarem, nada haverá a repartir. Contudo, se a salvação
de bens ocorrer subsequentemente, apesar do malogro do próprio ato
que constitui avaria grossa, haverá contribuição e repartição, isto
apesar de a decisão do capitão não ter tido, ela própria, um resultado
útil. Deve haver uma específica relação – um nexo de causalidade –
entre o ato do capitão e as despesas ou os danos. O critério consagrado
na Regra C de I-A é o de que os danos e despesas devem ser
consequência direta do ato para que possam ser considerados no
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regime da avaria grossa. Contudo, no 2.º parágrafo da mesma Regra
são excluídos da avaria grossa as perdas, danos ou despesas incorridos
em consequência da libertação de substâncias poluentes da
propriedade envolvida na expedição marítima comum. Excluídos estão
igualmente, segundo a mesma Regra (3.º parágrafo), os danos
decorrentes de atraso ou de qualquer perda indireta de qualquer
natureza. A necessidade de, face à citada Regra C, os danos ou
despesas serem consequência direta do ato, conduz a que, na situação
em que o capitão tenha de vender bens que se encontrem a bordo,
para acudir a uma despesa extraordinária feita para salvação comum
do navio e da carga, apenas esta despesa é considerada em avaria
grossa, sendo as consequências da venda, máxime no que respeita à
tutela da posição do proprietário dos bens alienados, tratada em
conformidade com o regime dos artigos 10.º 3 11.º do DL 384/99.
4. Consequências da caracterização jurídica da avaria como grossa ou como particular:
a. Repartição e contribuição versus princípio casum sensit dominus ou imputação:
concluindo-se que a avaria é grossa ou comum, tem, então, aplicação um
regime de repartição e contribuição. O artigo 636.º do Código Comercial – que
tem natureza supletiva, por força do §2.º do artigo 634.º - aponta para uma
repartição proporcional entre a carga e a metade do valor do navio e do frete.
Trata-se de um critério que tem profundas raízes no tempo, tendo sido
consagrado na Ordenança de Colbert e, depois, no code du commerce. Não é
esse, porém, o critério das Regras I-A, que apontam (Regras G e XVII) para os
valores (integrais) dos bens contribuintes. A repartição das avarias grossas ou
comuns pressupõe, na sua construção e desenvolvimento, a criação de uma
massa credora e de uma massa devedora. A massa devedora é composta pelos
bens e valores que contribuem, sendo a massa credora constituída pelas
despesas extraordinárias ou danos ocorridos durante a aventura marítima.
Pode acontecer que determinados valores devam entrar tanto na massa
credora como na devedora; assim, se o alijamento da mercadoria for
qualificado como avaria grossa, o respetivo valor entrará, naturalmente, na
massa credora. Contudo, ele deve fazer parte também da massa devedora, de
forma que o proprietário da mercadoria sacrificada não fique, a final,
beneficiando relativamente aos demais interessados na aventura marítima e
contribuintes. De outro modo, o proprietário dessas mercadorias receberia o
valor da mercadoria por inteiro, à custa dos demais. Uma vez apuradas a massa
credora e a massa devedora, é calculado o coeficiente de avaria, que se obtém
dividindo a primeira pela segunda; se, ao invés, dividimos a massa devedora
pela massa credora obtemos a percentagem ou taxa, sendo que, em termos
finais (de contas), os resultados idênticos. Pode acontecer que, depois de feita
a repartição, tenha de ser devolvida a contribuição recebida, em virtude de
uma circunstância superveniente. O artigo 646 do Código Comercial impõe o
dever de reposição da contribuição recebida, que impende sobre os donos de
objetos que tenham sido alijados e que, entretanto, tenham sido recuperados:
a contribuição recebida deverá ser restituída aos interessados contribuidores,
em termos proporcionais, podendo, porém, ser deduzido o dano causado pelo
alijamento e as despesas de recuperação. No caso, porém, de o dono dos bens
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alijados os recuperar sem ter reclamado qualquer quantia, esses objetos não
contribuirão nas avarias sobrevindas ao restante da carga depois do alijamento
(§único do artigo 646.º). Sendo a avaria particular, não há, como se disse,
repartição. Estabelece o artigo 637.º do Código Comercial que
«As avarias simples são suportadas e pagas ou só pelo navio ou só
pela coisa que sofreu o dano ou ocasionou a despesa».
O regime a aplicar será, então… aquele que for. O ponto de partida é a aplicação
do princípio casum sensit dominus; o dano será suportado por aquele que o
sofre, que será, em princípio o proprietário (res suo perit dominus); pode,
porém, haver imputação em termos de responsabilidade civil, tudo isto
independentemente de poder ter havido transferência dos riscos através de
um seguro. Assim, se a mercadoria foi danificada por um raio ou pela água do
mar sem que houvesse culpa do transportador marítimo na estiva da
mercadoria, não há imputação a terceiro: o dano é sofrido pelo carregador ou
pelo destinatário, tudo dependendo do contrato subjacente à operação de
transporte. Mas se a mercadoria é contratada para ser transportada no porão
mas é-o no convés, sujeita às ondas do mar e às chuvas, haverá, então, base
para se passar de uma situação de suportação dos danos para uma outra de
imputação e responsabilidade.
b. Avaria comum ou particular versus avaria grossa ou simples: a ilustração
sumárias destas consequências permite destacar o porquê de designação das
avarias como comuns ou grossas, por um lado ou como particulares ou simples,
por outro. Na verdade, sendo, embora, indiferente, para efeitos de regime,
falarmos em avaria grossa ou em avaria comum, a verdade é que, ao referirmos
a avaria grossa, estamos a colocar a tónica no facto de a avaria ser paga ou
suportada por grosso, ou seja, pelo navio e pela carga: socorremo-nos, neste
caso, de um critério que coloca a tónica no objeto. Mas se, ao invés, falamos
em avaria comum, estamos, embora, a aludir à mesma realidade jurídica,
estamos a acentuar os sujeitos: não é apenas o sacrificado que suporta o dano
mas todos os interessados na expedição marítima. Ao usarmos esta designação,
estamos, assim, a utilizar um critério subjetivo. Também nas designações avaria
simples ou particular há, respetivamente, um critério objetivo e subjetivo: na
primeira expressão, acentuamos o facto de a avaria recair apenas sobre o bem
que a sofreu: o navio ou a mercadoria. Na segunda (avaria particular),
acentuamos o prisma do sujeito: a avaria não é suportada por todos, pela
comunidade de interesses, mas só por aquele que a sofreu ou que lhe deu
causa. Podemos, assim, dizer que, se utilizarmos o critério do objeto, as avarias
ou serão grossas ou serão simples; se, ao invés, utilizarmos um critério
subjetivo, as mesas ou serão comuns ou serão particulares.
5. A origem da avaria grossa e a questão da sua atualidade: falar em avaria grossa oou
comum é falar de um instituto que se perde na noite dos tempos. É frequente a
indicação da Lex Rhodia de jactu como estando no dealbar do instituto, dela dizendo
Luzzatti que constitui a sua primeira fonte segura. Contudo, tem sido apontado o facto
de a contribuição em avaria grossa ser um uso marítimo anterior àquela lei. O Digesto
(D. XIV) dedica um capítulo à Lex Rhodia, sendo destacada uma definição de PAULUS.
Com o tempo, estendeu-se o âmbito de aplicação do instituto, inicialmente
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praticamente centrado no alijamento. Por outro lado, durante a Idade Média, o seu
fundamento ético e equitativo evolui, mas sem perder completamente essa matriz,
para explicações e enquadramentos de cariz associativo ou para-societário, sendo
identificadas diversas formas de comunhão e divisão de risco, com destaque para a
comenda e para o germinamentum, figura típica do Consulado do Mar. Seria, de resto,
essa lógica associativa que, segundo alguma doutrina, explicaria o relevo do “conselho
de bordo” ou a necessidade de o sacrifício ser deliberado. A avaria grossa surge, assim,
em vários tetos medievais, para além do citado Consulado do Mar; assim, v.g., nas Leis
de Wisby, nos Rolos de Oléron, no Guidon de la Mer ou no Ius Hanseaticum Maritimus.
A Ordenança da Marinha de 1681 marca uma nova época, estabelecendo claramente a
diferença entre avaria grossa e avaria particular, em termos que seriam continuados no
code de commere e, por influência deste, em múltiplos códigos europeus. É discutida
atualmente a necessidade do instituto da avaria grossa, cujo papel já estaria esgotado,
sendo o seu declínio, se não mesmo inutilidade, consequência da enorme importância
e divulgação do seguro marítimo. É conhecida a tirada de que avaria grossa deve a sua
sobrevivência ao faco de constituir a vaca sagrada dos maritimistas ou estoutra de que
a avaria grossa seria uma velha dama com uma má saúde de ferro. Na nossa opinião, a
avaria grossa está longe do estertor que alguns lhe prognosticam: estamos perante um
instituto que, seguindo as palavras de Yves Tassel, continua a estar no coração do
Direito Marítimo, sendo uma manifestação, por excelência, de um princípio solidarista,
sendo que continua a garantir uma equilibrada e justa repartição dos riscos. Ora, sendo
embora certo que o seguro marítimo ganhou uma enorme pujança, o mesmo não
remove nem substitui a lógica da avaria grossa, convivendo com a mesma naturalmente
em moldes diferentes relativamente àqueles que aconteciam quando o seguro tinha
uma divulgação incipiente. Não se vê, de resto, como é que o seguro substituiria a avaria
grossa, v.g., na situação em que o capitão provoca deliberadamente o encalhe do navio,
para salvação comum do mesmo e da respetiva carga, sofrendo com isso danos
vultuosíssimos. Pois bem, a aplicação da lógica do seguro i30mplicaria, no fundo, que
esse prejuízo seria transferido para a seguradora e em exclusivo suportado por esta,
sem nada poder recuperar, por estar, ab ovo, impedida de repercutir nos demais
interessados na expedição um tal dano. Ora, como é evidente, uma solução deste tipo
poderá ter importantes consequências a nível do quantum dos prémios de seguros, que,
assim, podem atingir valores vultuosos. De resto, a persistência do instituto é também
justificada por razões programáticas, senão mesmo estratégicas, chamando Lima
Pinheiro a atenção para o facto de, na sua falta, o capitão, confrontado com um perigo
para a segurança comum do navio e da carga, ser tentado a escolher a solução menos
onerosa para o armador, ainda que essa solução represente um maior sacrifício para o
conjunto dos interesses em jogo. Em suma, sem prejuízo da necessidade de adaptação
do instituto às novas realidades; longa vida à avaria grossa.
6. Sobre a tormentosa questão da natureza jurídica da avaria grossa: a questão da natureza
jurídica da avaria grossa ou comum tem constituído um interessante mas algo
desconhecido campo de debate entre teorias que a procuram explicar à luz de figuras
ou institutos clássicos de Direito Civil, desde a locatio operis ao enriquecimento sem
causa, passando pela equidade, pela comunhão, pela associação, pela sociedade, pelo
seguro-mútuo, sem esquecer o estado de necessidade e a gestão de negócios. É
frequente a vaga e, por vezes, simultânea invocação da equidade, da justiça e da
solidariedade, sendo ilustrativa a seguinte passagem de Silva Lisboa:
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«Este princípio consiste, em que de deve indemnizar, por contribuição geral
dos beneficiados, o damno que foi utilmente feito para o bem, e salvação
de todos: pois não se póde considerar causa mais conforme a equidade,
que sentirem comum detrimento os que, interessando na perda acontecida,
conseguirão pelo sacríficio dos outros o salvarem as pessoas, conseguirão
pelo sacrifício dos outros o salvarem as pessoas, e propriedades; he de
razão, que as pessoas que receberão beneficio pelo damno do outro,
contribuirão proporcionalmente ao seu interesse, a fim de indemnizarem o
prejuízo sofrido para a ventagem geral».
Lê-se, por sua vez, em Cunha Gonçalves:
«O conceito de avaria comum baseia-se num altíssimo princípio de
equidade, conhecido como não locupletamento à custa alheia; pois sendo
sacrificados os bens de um interessado para a salvação dos bens dos outros,
é justíssimo que todos estes suportem, proporcionalmente, essa perde e
contribuam para a indemnização do lesado».
Ora, estas justificações parecem-nos demasiado vagos para constituírem explicações
plenas do instituto. Dentre as teorias enunciadas, destacam-se as que pretendem
reconduzir a avaria grossa à gestão de negócios e ao enriquecimento sem causa. A
recondução da figura à gestão de negócios falha, desde logo, pelo facto de o gestor agir
não apenas no interesse dos carregadores mas também no do navio, ou seja, no
interesse dos carregadores mas também no do navio, ou seja, no interesse do seu
comitente, o armador do navio. Ora, como é sabido, o gestor de negócios age no
interesse e por conta de terceiro, com quem não tem, à partida, qualquer relação,
diversamente do que acontece na avaria grossa, atenta a relação de comissão entre o
capitão e o armador ou o proprietário do navio (artigo 4.º do DL 202/98, 10 de junho).
Acresce que o capitão tem, por força da lei (artigo 5.º, n.º2 do DL 384/99, 23 de
setembro), o dever de atuar profissionalmente com vista a uma boa condução da
expedição marítima, o que envolve com vista a uma boa condução da expedição
marítima, o que envolve, naturalmente, não apenas o navio mas também os demais
interesses envolvidos, máxime a carga. Resulta ainda da lei (artigo 5.º, n.º3 do DL
384/99) que o capitão deve atuar com o cuidado de um capitão diligente. Ora, nada
disto é compatível com a gestão de negócios, própria ou imprópria, já que o presumido
ato gestório não o é, summo rigore, à luz da figura em causa, uma vez que o capitão
está, à partida, obrigado a agir no sentido de uma boa decisão que seja favorável aos
interessados da expedição. Afastamos, assim, a hipótese de explicação da avaria grossa
através do instituto da gestão de negócios. Outra tese que temos igualmente por
insatisfatória é aquela que pretende explicar o instituto da avaria grossa através do
enriquecimento sem causa: para além de a natureza subsidiária do enriquecimento sem
causa (artigo 474.º do Código Civil) impedir que lhe seja reconduzida a avaria grossa,
atento o regime legal plasmado no Código Comercial, parece claro que a explicação
com base em tal instituto nunca poderia constituir uma explicação global, já que,
quando muito, teria uma vocação apriorística para explicar o dever de contribuição dos
diversos interessados, não logrando explicar o próprio ato do capitão, que está a
montante desse dever de contribuição. Acresce que é dificilmente sustentável a ideia
de que os proprietários da carga não sacrificada enriquecem com a manutenção de algo
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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que já é seu. Tem sido também invocado o estado de necessidade, lendo-se em Cunha
Gonçalves que
«a avaria comum é determinada por um estado de necessidade é um mal
menor, voluntariamente causado a uns, para evitar um mal maior – o de
todos».
A plena explicação da avaria grossa com base no estado de necessidade esbarra, porém,
com grandes dificuldades, quando confrontamos o âmbito e o regime das figuras, a
começar pelo facto de o ato do capitão suscetível de consubstanciar avaria grossa não
se esgotar na destruição ou danificação de coisa alheia (artigo 339.º, n.º1 Código Civil).
Não obstante, a similitude com o estado de necessidade tem algo de fortemente
sugestivo e de pedagógico, tendo a vantagem de salientar o facto de, tal como no
estado de necessidade, haver, na avaria grossa, uma situação de ofensa lícita a direitos
de outrem. Contudo, essa similitude – efetiva – não chega para explicar plenamente a
avaria grossa. Na nossa opinião, as tentativas de explicação plena da avaria grossa com
recurso às figuras do Direito Civil falham rotundamente, na medida em que
desconsideram a especificidade ou, se quisermos usar uma expressão consagrada, o
particularismo, da avaria grossa, como instituto de Direito Marítimo: a avaria grossa é
um instituto a se, que não se deixa captar pelos institutos comuns. Isso não significa
que não encontremos similitudes com este ou aquele instituto e não significa também
que não procuremos saber o fundamento – a ratio. Na nossa opinião, esta encontra-se
na comunhão de riscos no perigo ou seja na aventura marítima comum, com o que tal
expressão em si carrega. Ao acentuarmos essa comunhão, poderíamos colocar em
destaque, igualmente, a solidariedade, mas esta não constitui, ela própria, uma
explicação completa, para além de não ser também muito definida: solidariedade
daqueles cujas mercadorias são sacrificadas para com os demais interessados ou
solidariedade daqueles cujos interesses são salvos para com os primeiros? Ora, a
acentuação da solidariedade só poderia ser colocada na fase da contribuição, após,
portanto, o próprio ato do capitão, mostrando-se, assim, incapaz de explicar esse
próprio ato. Importa, naturalmente, reconhecer que a lógica da comunhão de riscos só
é válida dentro do universo da avaria grossa, de que estamos a tratar: ela não funciona
nos casos em que os danos de avaria particular, sendo, assim, inoperante nas situações,
que constituem o ponto de partida quando há danos, em que vigora o princípio casum
sensit dominus. Alguma doutrina aponta como fundamento da avaria grossa a lei ou o
contrato, consoante seja aplicado o regime supletivo legal ou um regime convencional.
Contudo, este entendimento assenta num equívoco, já que, quando muito, tal
fundamento em alternativa formulado, só poderia valer para as obrigações de
contribuição, que não para o próprio instituto: mesmo quando é afastado o regime
supletivo legal e é aplicado, por exemplo, o regime das Regras I-A, não se pode radicar
o instituto exclusivamente na autonomia privada; ainda que os interessados acordem
na inserção da cláusula “franco de avaria”, continua por explicar o ato do capitão. Na
verdade, a renúncia negocial à contribuição não bule com o dever legal imperativo que
tem o capitão de zelar pelo bom sucesso da expedição marítima: no âmbito dos
poderes-deveres que lhe cabem, está incluído o de sacrificar os bens necessários para
que o objetivo seja conseguido, sendo para o efeito indiferente que, na previsão de tal
situação, as partes tenham acordado não haver contribuições. Aqui chegados, cremos
ter-se tornado evidente que aplicada à avaria grossa no seu todo, não podemos deixar
de diferenciar o ato do capitão – o ato de avaria grossa – da contribuição de avaria
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grossa. O ato de avaria grossa é juridicamente explicado à luz do estatuto do capitão,
como sujeito que tem o dever de zelar pelo bom sucesso da expedição marítima,
conduzindo-a nesse sentido (artigo 5.º, n.º2 do Decreto-Lei 384/99, 23 setembro). O
capitão diligente (artigo 5.º, n.º3 do Decreto Lei 384/99, 23 setembro), é aquele que,
perante a situação de perigo comum para o navio e para a carga, atua em conformidade
com o objetivo do bom sucesso da expedição marítima, sacrificando bens, se necessário,
para que a expedição seja bem sucedida. O sacrifício de bens (do terceiro) que, noutro
quadro, constituiria um ato ilícito, é, no contexto da verificação dos cima apontados
pressuposto e requisitos de avaria grossa, um ato ilícito, fazendo aqui pleno sentido o
paralelismo com o estado de necessidade, como causa de exclusão da ilicitude. Já
quanto à repartição e contribuição, a sua natureza legal supletiva, prevista no Código
Comercial, é a de um mecanismo de indemnidade, em benefício daquele cujos bens
foram sacrificados – tornar indemne , sem dano – à margem da lógica da imputação
delitual da responsabilidade civil e consequente ressarcimento, porque moldada na
lógica de comunhão de riscos no perigo acima apontada. Claro que essa indemnidade
não é total, mas é a máxima possível no quadro da comunhão e dentro da possibilidade
da massa devedora. Uma questão que neste âmbito se suscita – fruto do facto de os
interessados na expedição marítima poderem, à partida, modelar os termos da
contribuição, é a de saber o que é que acontece em sede de composição das massas,
quando o s regimes de contribuição dos diversos interessados sejam diferentes. A
questão é delicada, havendo quem, como Brunetti, considere que cada regime em
relação a cada carregador deve ser adotado no pressuposto da sua adoção cumulativa
relativamente a outros carregadores, de modo a que todos os interessados na
expedição estejam sujeitos uniformemente ao mesmo regime, numa lógica de
comunhão nos riscos; não sendo esse o caso, seria, então, aplicável o regime supletivo
legal. O problema é que esta solução parece brigar com o caráter supletivo do regime
da avaria grossa e com a licitude da cláusula franco de avaria. Uma solução possível,
seria aplicar, em relação a cada interessado, o regime clausulado no respetivo
conhecimento de carga (se for este o caso), deixado, porém, ao carregador prejudicado
pelo facto de os demais não estarem vinculados nos mesmos termos, o direito de agir
contra o transportador, por culpa in contrahendo, por não ter acordado em relação a
todos o mesmo regime de avaria grossa. Não é este, porém, no nosso entender, o
caminho certo. No nosso entender, se no contrato entre o transportador e o carregador
X fica acordada a aplicação das Regras I-A, isso tem um significado que vai claramente
para além das estritas relações entre as partes, já que essas Regras pressupõem que,
numa situação de avaria grossa, todos contribuem, não havendo privilégios traduzidos
no facto de alguém, cujos bens foram salvos à custa do sacrifício de outros, poder
paralisar uma pretensão de contribuição, quando, na situação oposta, beneficiaria da
contribuição dos demais interessados. Parecendo-nos artificioso invocar, nas relações
entre cada carregador e o transportador, o contrato a favor de terceiro, desde logo,
mas não só, porque os efeitos para o terceiro que não seriam apenas os favoráveis,
inclinamo-nos no sentido de que a existência de uma expedição marítima comum, à
qual estão tipicamente associados perigos – riscos – cumulada com o facto de haver
um regime imperativo das funções do capitão, adstrito a zelar pelo bom sucesso da
expedição, custe o que custar, tudo isso nos conduz à ideia da existência alemã designa,
conquanto noutra sede, como relação obrigacional de ordem superior. Neste quadro,
será uma questão de interpretação, determinar qual é o regime aplicável essa relação:
se o do Código Comercial, o das Regras I-A ou outro, dúvida que poderá ser resolvida
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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atentando no panorama global dos diversos contratos existentes. Assim, valerá, em
princípio, o regime acordado para a maioria dos contrato, ficando, porém, o carregador
que, em concreto, se considere prejudicado pelo facto de não ter sido seguido o regime
especificamente acordado com o transportador, com direito de ação contra este. A
solução mais cristalina será, conforme sugere Righetti, aplicar as Regras I-A; contudo,
essa solução parece forçada nas situações em que tais Regras não tenham sido
consideradas em qualquer dos conhecimentos de carga. Não sendo aceite esta
construção, que passa pela identificação de uma relação obrigacional de ordem
superior, teríamos que considerar nulas por ofensivas dos bons costumes (artigo 280.º,
n.º2 CC) – bons costumes marítimos, como é claro – as cláusulas que, face a situações
de perigo comum, criem, sem o acordo de todos os interessados, privilégios de alguns
(Que recebem e não pagam) em prejuízo de outros (que pagam e não recebem).
7. A determinação das massas credora e devedora na avaria grossa:
a. O capital contribuinte: de acordo com o estabelecido no artigo 639.º do Código
Comercial, haverá repartição de avaria grossa por contribuição
«sempre que o navio e a carga forem salvos no todo ou em parte».
Já tivemos, contudo, oportunidade de identificar situações de avaria grossa,
ainda que não se salve o navio ou não se salve a carga. À composição do capital
contribuinte, refere-se o §1.º do artigo. O capital compõe-se dos seguintes
elementos:
Valor líquido integral que as coisas sacrificadas teriam ao tempo no lugar
da descarga;
Valor líquido integral que tiverem no mesmo lugar e tempo as coisas salvas
e também da importância do prejuízo que sofreram para a salvação comum;
Frete a vencer, deduzidas as despesas que teriam deixado de se fazer se o
navio e a carga se perdessem na ocasião em que se deu a avaria.
Realce-se que, de acordo com o §2.º do mesmo artigo 639.º,
«Os objetos de uso e o fato, as soldadas dos marinheiros, as
bagagens dos passageiros e as munições de guerra e de boca na
quantidade necessária para a viagem, posto que pagas por
contribuição, não fazem parte do capital contribuinte».
b. Situações especiais: a determinação das massas credora e devedora suscita
dificuldades especiais, apresentando, por vezes, grande complexidade. O artigo
640.º do Código Comercial regula a questão de saber o que é que acontece
relativamente à carga clandestina, tomando a expressão num sentido amplo,
ou, mais concretamente, relativamente à carga
«de que não houver conhecimento ou declaração do capitão ou
que se não achar na lista ou no manifesto».
Uma tal carga está sujeita a um duplo regime desfavorável: o respetivo
proprietário não recebe mas paga. Tal carga contribui na avaria grossa,
salvando-se, o que bem se compreende, já que beneficia da despesa
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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extraordinária ou do sacrifício. Contudo, se tal carga for sacrificada – se for
“alijada”, diz o artigo 640.º, conquanto isso não nos pareça limitativo – tal carga
não fará parte da massa credora, tudo se passando, relativamente a essa carga,
como se a avaria fosse particular. Este regime é consoante com a Regra XIX das
Regras I-A:
«(a) Damage or loss cause to goods loaded without the knowledge
of the Shipowner or his agent or to goods wilfully misdescribed at
time of shipment shall not be allowed as general average, but such
goods shall remain liable to contribute, if saved».
A explicação de tal regime é óbvia: o combate à fraude e ao transporte
clandestino, o que justifica a sanção – ou o castigo – da não inclusão na massa
credora, fazendo, porém, todo o sentido a inclusão na massa devedora. A
explicação dada por Cunha Gonçalves continua perfeitamente atual:
«porque o capitão, conluiando com um dos carregadores, podia
apresentar como alijadas cousas que não estavam a bordo, ou
poderia um carregador embarcar clandestinamente certas
mercadorias, ou perigosas, com o fim de lesar o armador na taxa
do frete».
Quanto às mercadorias no convés, as mesmas têm um regime especial,
constante do artigo 641.º do Código Comercial, regime especial esse que não é
aplicável à composição da massa devedora, já que, se as mesmas se salvarem
contribuem. No que respeita às Regras I-A, tem relevo a Regra I:
«No jettison of cargo shall be allowed as general average, unless
such cargo is carried in accordance with the recognised custom of
the trade».
Não se salvando essas mercadorias, o Código consagra um regime especial,
regime esse que tem como pano de fundo o facto de as mercadorias carregadas
no convés estarem sujeitas a um maior risco ou probabilidade de alijamento no
caso de tal ser necessário para o bom sucesso da expedição marítima comum.
Assim, se os bens em causa tiverem sido carregados na coberta sem o
consentimento do dono, sendo os mesmos alijados ou danificados pelo
alijamento, o proprietário tem direito a ação de indemnização (§único do artigo
641.º Código Comercial)
«contra o capitão, navio e frete»;
Atento o regime consagrado nos artigos 4.º e 5.º Decreto-Lei 202/98, essa ação
de indemnização poderá ser intentada contra o proprietário ou armador, como
comitente, e contra o capitão como comissário, respondendo solidariamente.
Se, porém, tiver havido consentimento do dono para que os bens sejam
carregados na coberta, há lugar a uma contribuição especial que não prejudica
a contribuição geral para as avarias comuns de todo o carregamento; nessa
contribuição especial, só entram o navio, o frete e as mercadorias em causa e
as demais mercadorias carregadas nas mesmas circunstâncias. Importa ainda
referir, de novo, o regime do artigo 644.º: não contribuem nas perdas
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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acontecidas a navio, para cuja carga eram destinadas, as fazendas que
estiverem em terra. A razão de ser é lógica: essas mercadorias ainda não
integram a expedição marítima comum – a comunhão de interesses a esta
inerente.
c. Estimação da carga: revela-se igualmente muito importante a estimação da
carga na composição das massas credora e devedora. O artigo 648.º do Código
Comercial trata da estimação das fazendas e mais objetos, estabelecendo que
as fazendas e os mais objetos que devem contribuir, assim como os objetos que
devem contribuir, assim como os objetos alijados ou sacrificados, serão
estimados segundo o seu valor, deduzidos o frete, direitos de entrada e outros
encargos de descarga, tendo-se em consideração os conhecimentos, as faturas
e, na sua falta, outros quaisquer meios de prova. Pode acontecer que nos
conhecimentos ou outros documentos estejam designados uma qualidade e
um valor das mercadorias que não corresponda ao seu valor real. Nessa
situação, há que distinguir consoante as mercadorias valham mais ou menos:
se valerem mais (§1.º do artigo 648.º), contribuirão pelo seu valor real, mas em
caso de alijamento ou avaria, conta o valor dado nos conhecimentos; se
valerem menos (§2.º do artigo 648.º), as mercadorias contribuem segundo o
valor indicado se forem salvas, mas antender-se-á ao valor real se forem
alijadas ou estiverem avariadas. Revela-se também importante a estimação da
avaria na carga, dispondo o §único do artigo 638.º que nessa estimação é
determinado qual teria sido o valor da carga, se tivesse chegado sem avaria, o
qual deve ser confrontado com o seu valor atual, tudo isso independentemente
da estimação do lucro esperado, sem que, em caso algum, possa ser ordenada
a venda de carga para se lhe fixar o valor, salvo a requerimento do respetivo
dono. Finalmente, o artigo 649.º contém um regime especial para a estimação
das mercadorias carregadas: ela e feita, segundo o seu valor, no lugar da
descarga, deduzidos o frete, os direitos de entrada e outros de descarga. O §1.º
a 3.º do mesmo artigo 649.º contemplam situações especiais. O §1.º reporta-
se às situações em que a repartição for feita em lugar do país donde o navio
partiu ou tivesse de partir; o §2.º trata da estimação dos objetos avariados e o
§3.º cura da estimação nas situações em que
«a viagem se rompeu ou as fazendas se venderam fora do reino e
a avaria não pôde lá regular-se»
A estimação dos valores das cargas quer das sacrificadas quer das salvas consta
das Regras XII, XVI e XVII das Regras de I-A. Enunciemos os princípios gerais. De
acoro com o parágrafo (a) da Regra XVI (1.º período), a quantia permitida como
avaria grossa por danos ou perda da carga sacrificada será o prejuízo sofrido
por tal motivo, baseado no valor no momento da descarga, calculado com base
na fatura enviada ao destinatário ou, não havendo tal fatura, com base no valor
embarcado. Segundo parágrafo (a) (i) da Regra XVII, a contribuição para a avaria
grossa basear-se-á nos valores líquidos reais dos bens no fim da aventura, a não
ser que o valor da carga seja o valor no momento da descarga, calculado a partir
da fatura enviada ao destinatário, ou, se não existir essa fatura, a partir do valor
embarcado. De acordo com o primeiro período do parágrafo (1) da Regra G, a
regulação das avarias grossas deve ser baseada nos valores, no momento e no
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local em que a aventura termina, quer para a avaliação das perdas, quer para a
contribuição.
d. Estimação do valor do navio: no que respeita ao navio, o artigo 647.º do Código
Comercial dispõe que o mesmo contribui pelo seu valor no lugar da descarga,
ou pelo preço da sua venda, deduzida a importância das avarias particulares,
ainda que sejam posteriores à avaria comum. Nas Regras de I-A assumem
particular relevo as Regras XIII, XIV e XVIII. Destaquemos alguns aspetos das
Regras XVII e XVIII. De acordo com o parágrafo (a) (iii) da Regra XVII – que tem
como pressuposto o facto de, segundo o parágrafo (a) (i) da mesma Regra, a
contribuição se basear nos valores líquidos reais dos bens – o valor do navio é
calculado sem ter em consideração os benefícios ou prejuízos de qualquer
cessão ou contrato de fretamento temporário. A Regra XVIII trata das avarias
no navio, prevendo que a quantia a considerar em avaria grossa pelas perdas e
danos do navio, nas suas máquinas e ou no seu aparelho, decorrentes de um
ato de avaria grossa, será calculada, em função de ter ou não havido
substituições ou reparações. No primeiro caso, será considerado o custo atual
e razoável das substituições e reparações, com as deduções previstas na Regra
XIII; no segundo caso, deverá ser considerada uma depreciação razoável
resultante dessas perdas ou danos, mas que não exceda o estimado custo das
reparações.
8. Algumas situações específicas: nestas breves análises não incluímos os casos da arribada
forçada e da salvação marítima, que serão vistos quando estudarmos estas figuras.
Limitamos a nossa atenção ao alijamento, ao incêndio, à varação e à perda total do
navio. O alijamento é o acontecimento de mar que, desde tempos remotos, mais bem
ilustra as situações de avaria grossa, admitindo, claro está, que estão em concreto,
verificados os respetivos pressupostos e requisitos. Tanto é assim que, nalgumas
disposições do nosso Código Comercial, a referência ao alijamento serve de paradigma
para as situações de avaria grossa: assim acontece, por exemplo, no artigo 640.º, cujo
regime não vale apenas para a carga alijada, mas, em geral, para a carga sacrificada.
Tomado como boa a noção constante do Glossário Marítimo-Comercial, alijamento é
«o ato de lançar ao mar mercadorias, mantimentos ou partes do próprio
navio com o objetivo de aumentar o seu poder de flutuação, reduzindo o
calado para suportar melhor o mau tempo, contrabalançar os efeitos de
um rombo, facilitar um desencalhe ou impedir a propagação de um
incêndio».
Temos já salientado aspetos de regime relacionados com o alijamento, destacando-se
o estabelecido nos artigos 640.º, 641.º, 642.º e 646.º do Código Comercial. A nível das
Regras I-A, referem-se especificamente ao alijamento as Regras I e II. De acordo com a
Regra I nenhum alijamento de carga será permitido como avaria grossa, a não ser que
tal carga seja transportada de acordo com os reconhecidos usos do comércio. Por sua
vez, de acordo com a Regra II, serão permitidos como avaria grossa as perdas ou danos
à propriedade envolvida na aventura marítima comum, por um sacrifício feito para a
segurança comum, ou resultantes deste, e os feitos pela água entrada nos porões
através das escotilhas abertas ou por qualquer outra abertura praticada com o fim de
se efetuar um alijamento para a salvação comum. Um dos acontecimentos que maiores
dificuldades suscitam, no que concerne à determinação do regime de avarias a aplicar,
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e o incêndio a bordo. Apesar de incluído na enumeração do artigo 13.º, n.º2 do Decreto-
Lei 384(99, 23 de setembro, o incêndio não será, propriamente, um típico
acontecimento de mar. As causas dos incêndios a bordo estão normalmente associadas
a caso fortuito ou a situações de negligência a bordo. Face a uma situação de incêndio,
os danos diretamente provocados por este constituem avaria particular. Já quanto aos
danos resultantes do combate ao incêndio, decidido pelo capitão para salvação comum
do navio e da carga, os mesmos constituem avaria grossa. A Regra III de I-A estabelece
que são permitidos como avaria grossa os danos causados ao navio ou à carga, pela
água ou doutro modo, com o fim de extinguir um incêndio a bordo, incluindo os
causados por imersão ou rombos feitos para o mesmo fim; contudo, essa permissão
não abrange os danos causados pelo fumo ou pelo calor do fogo. Falamos de varação
como sinónimo de encalhe do navio feito voluntariamente. Naturalmente que, em sede
de avaria grossa, só interessa a varação que seja feita intencionalmente para salvação
comum do navio e da carga. A questão que se poderia discutir é a de saber se os danos
decorrentes da varação também entram em avaria grossa nas situações em que se
conclua que, não fora o ato voluntário do capitão, o navio teria encalhado. Atualmente,
a Regra V de I-A dispõe que quando, por manobra voluntária, um navio der à costa para
salvação comum, quer esse navio pudesse ou não ter dado à costa, as consequentes
perdas ou danos sofridos pela propriedade envolvida na aventura marítima comum são
permitidos em avaria grossa. As Regras VII e VIII de I-A curam da inclusão em avaria
grossa de danos e despesas eventuais subsequentes à varação. Uma situação que
suscita algumas dúvidas é aquela em que, pese embora a prática de atos tendentes à
salvação comum do navio e da carga, ocorre a perda total do navio. O regime, algo
confuso, que encontramos no artigo 642.º do Código Comercial, tem as suas raízes
modernos nos artigos 15.º e 16.º do Título VIII do Livro III da Ordenança de 1681. A
perda do navio e a sua relação com a avaria grossa seria tratada, sucessivamente, pelo
Regulamento das Avarias de 1820 e no Código Comercial de 1833. Estabelece o corpo
do artigo 642.º do atual Código que se, não obstante o alijamento ou o corte de
aparelhos, o navio se não salva, não há lugar a contribuição alguma e os objetos salvos
não respondem por pagamento algum em contribuição das avarias dos objetos alijados,
avariados ou cortados. A ideia subjacente a este regime é a de que se, apesar do corte
de aparelhos ou do alijamento de mercadorias o navio não se salvar, é porque esse
resultado era inevitável, não fazendo, então, sentido que os objetos salvos respondam
pelo navio. O §1.º do mesmo artigo 642.º reporta-se a uma situação diferente, com
origem no citado artigo 16.º da Ordenança:
«se pelo alijamento ou corte de aparelhos o navio se salva, e continuando
a viagem perece, os objetos salvos contribuem só por si no alijamento no
pé do seu valor, no estado em que se acharem, deduzidas as despesas de
salvação».
Conforme justifica Adriano Anthero:
«Se o corte dos aparelhos e alijamento contribuíram para salvar o navio e os
demais objetos, embora o navio pereça depois, é justo que esse objetos
contribuam também para a avaria que resultou d’esse corte d’apparelhos e
alijamento».
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Naturalmente que entre os bens que entram na contribuição por avaria grossa, não se
conta o navio, por se ter perdido, não figurando em nenhuma das massas. Na linha da
solução do corpo do artigo 642.º, o seu §3.º estabelece que
«a carga não contribui para o pagamento do navio perdido ou declarado
inavegável»;
Isso é justificado por Adriano Anthero, como sendo corolário do princípio de que
«perdendo-se o navio, não há contribuição».
Importa, no entanto, deixar claro que, pese embora a redação do artigo 642.º, situações
há, em que, pela aplicação dos princípios da avaria grossa, a perda total do navio não
impede a contribuição. Assim, se o navio foi, ele próprio, sacrificado, vindo a perder-se
totalmente contra as rochas da costa para onde foi atirado pelo capitão, não há lugar
à aplicação do regime do artigo 642.º, já que, como refere Cunha Gonçalves, uma coisa
é navio perdido, outra é navio sacrificado. Naturalmente que estamos a pressupor que
essa manobra foi feita, à partida, para segurança comum do navio e da carga.
9. Outros aspetos de regime: sobre a lei aplicável na regulação e repartição das avarias,
dispõe o artigo 650.º do Código Comercial, que é aplicável a lei onde a carga for
entregue. No entanto, conforme resulta do que temos visto, a carga pode não ser
entregue, por ter sido sacrificada. Por esta razão é mais lógica a redação do artigo 74.º
do Código de Processo Civil, quando considera competente para a regulação e
repartição da avaria o tribunal do porto «onde for ou devesse ser entregue a carga». O
problema destas e similares previsões legislativas resulta do facto de, normalmente,
não haver apenas um contrato de transporte mas várias, com vários locais previstos
para a entrega das cargas. Por esta razão, a tendência dominante é regular os conflitos
de leis pela lei do port de reste – ou seja, o porto onde se refugiou o navio após a decisão
de avaria grossa e onde se inicia o processo de regulação de avarias. Quanto à
promoção da regulação e repartição das avarias, há que considerar o disposto no artigo
652.º do Código Comercial: a regulação e repartição das avarias grossas – cujo processo
consta do artigo 1063.º e seguintes do Código de Processo Civil – fazem-se a diligência
do capitão e, deixando ele de a promover, a diligência dos proprietários do navio ou da
carga, sem prejuízo da responsabilidade daquele. Este dever de promoção é,
naturalmente, independente dos deveres que impendem sobre o capitão e que
resultam das alíneas j) e l) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, 23 setembro, de
«informar o armador, os carregadores e os sobrecargas, sempre que
possível e, em particular, depois de qualquer arribada, sobre os
acontecimentos extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as
despesas extraordinárias efetuadas ou a efetuar em benefício do navio e
sobre os fundos para o efeito constituídos»
E de
«exibir às autoridades competentes ou aos interessados na expedição os
documentos e registos do navio, emitindo as competentes certidões ou
cópias, quando requeridas».
Conforme parece óbvio, o capitão só tem o dever de promover a regulação e repartição
da avaria grossa se entender que a mesma teve lugar durante a expedição marítima.
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Neste quadro, assume particular relevo o relatório de mar e os respetivos dizeres, bem
como o ter sido ou não confirmado. A quem cabe o ónus da prova da existência de
avaria grossa? Naturalmente que será àquele a quem interessa uma determinada
qualificação, a não ser que tenha já seu favor a presunção que resulta da confirmação
do relatório de mar (artigo 15.º, n.º7 Decreto-Lei 384/99). Assim, o interessado na
mercadoria que desapareceu no mar (o respetivo proprietário ou então a companhia
de seguros sub-rogada), resultando do relatório de mar que a mercadoria foi arrastada
pela força de ondas gigantes, terá interesse em provar, se tiver elementos para tal, que,
diversamente do que consta no relatório, as mercadorias foram alijadas por decisão
intencional do capitão, tendo em vista fugir à tempestade e salvar o navio e restante
carga. Se o interessado lograr fazer essa prova, o regime a aplicar será o da avaria grossa.
Mas podemos imaginar uma situação inversa, em que os factos constantes do relatório
de mar apontam no sentido de uma avaria grossa ou comum: os interessados na
expedição a quem não interesse contribuir, têm o ónus de fazer a prova de factos que
demonstrem que a avaria era simples e não grossa, sendo, então, aplicável a lógica da
suportação ou da responsabilidade, que não já a da contribuição em avaria. De acordo
com a Regra E (primeiro parágrafo) das Regras I-A, o ónus da prova de que determinada
despesa ou dano é realmente admitida em avaria grossa recai sobre aquele (a parte)
que reclama tal avaria. Os créditos fixados na repartição das avarias grossas são
assistidos de privilégio creditório sobre a carga e o frete, respetivamente de acordo com
o n.º 6 do artigo 580.º e o n.º3 do artigo 582.º do Código Comercial. Pode, porém,
acontecer, por força do desencontro entre os regimes dos artigos 581.º e 583.º do
Código Comercial, por um lado, e o do artigo 1068.º do Código de Processo Civil, por
outro, que os privilégios se extingam antes de a ação de avaria ser intentada.
Destacamos, a propósito, o regime da Regra XXII de I-A: sendo efetuados depósitos em
dinheiro relativos à contribuição da carga para a avaria grossa, tais quantias devem ser
depositadas, sem demora, numa conta especial conjuntamente em nome de um
representante do proprietário do navio e de um representante dos depositantes do
proprietário do navio e de um representantes dos depositantes, num banco escolhido
por ambos. As quantias depositadas e correspetivos juros, se os houver, serão
consideradas como garantia de pagamento a quem de direito, de créditos constituídos
no âmbito da avaria grossa, pagáveis pela carga. Finalmente no que respeita à
prescrição, constata-se que o Código Comercial nada dispõe. Contudo, o artigo 1068.º
do Código de Processo Civil estabelece um prazo para a ação de avaria grossa: ela só
pode ser intentada dentre de um ano, a contar da descarga, ou, no caso de alijamento
total da carga, da chegada do navio ao porto de destino. No âmbito das Regras I-A,
assume agora relevância a Regra XXII, cuja aplicação é preterida se houver algum
regime legal imperativo aplicável. De acordo com o parágrafo (a) (i) dessa Regra,
quaisquer direitos a contribuição por avaria grossa extinguem-se se não for intentada
ação exigindo tal contribuição no prazo de um ano após a data em que tiver sido
publicada a repartição da avaria; contudo, em caso algum pode ser intentada tal ação
após seis anos a contar do fim da aventura marítima comum; estes prazos (ii) podem,
contudo, ser alargados se as partes assim o acordarem após o fim da citada aventura;
contudo, segundo o parágrafo (b) da mesma Regra, estas limitações não são aplicáveis
entre as partes na avaria grossa e as respetivas seguradoras.
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Capítulo III – Arribadas Forçadas
1. Introdução: as arribadas forçadas constituem um acontecimento de mar, regulado
nos artigos 654.º a 663.º do Código Comercial. O Código Comercial não apresenta
qualquer noção de arribada forçada, iniciando o artigo 654.º a abordagem da
matéria, através da enunciação de «justas causas de arribada forçada». Era diversa
a opção do Código Ferreira Borges, que fazia anteceder a enunciação das justas
causas de arribada forçada de uma definição:
«Diz-se arribada forçada a entrada necessária em porto ou lugar
distinto dos determinados na viagem do navio».
No seu Diccionario, Ferreira Borges apresentava a seguinte definição:
«O ato de entrar num porto, durante a viagem, que não é a do destino
ou de escala estipulada no fretamento».
O Capítulo CI do célebre Consulat del Mar respeitava a matéria de arribada, sendo
aí decisiva a posilão dos mercadores, num quadro de grande insegurança da
navegação, designadamente por causa da pirataria. Nas Ordenações Filipinas
encontramos indicações claras impostas aos capitães dos navios no sentido de, na
torna-viagem, só tocarem outros portos ou locais em caso de extrema necessidade
(Livro V, Título CVII, §13.º); a arribada em porto ou local não previsto só seria lícita
em situações excecionais em que o capitão se visse forçado a tal, «para sua
segurança e navegação». Pese embora o facto de as disposições do Código
Comercial estarem gizadas no pressuposto de o lugar da arribada ser um porto
(artigos 660.º - descarga no porto de arribada – e 663.º - injustificada demora no
porto de arribada), não tem de ser necessariamente assim: o local de arribada pode
ser, por exemplo, uma baía ou uma enseada onde o navio se abriga, v.g., para e
furtar a uma perseguição de piratas). Por identidade de razão, julgamos que deverá
ser aplicado o regime da arribada forçada às situações em que o navio retarda a
saída de um porto de escala, v.g., em virtude do temor fundado de inimigos: não
faria sentido que, para aplicar o regime da arribada, fosse necessário forçar o navio
a sair a barra, com série perigo para a expedição, para de imediato regressar ao
porto. Trata-se de uma situação diferente daquela que surge diretamente regulada
no artigo 663.º do Código Comercial, já que esta última pressupõe que o porto em
causa seja um porto de arribada e não um porto de escala. À arribada forçada
contrapõe-se a arribada voluntária. A diferenciação entre arribada forçada e
arribada voluntária é, prima facie, enganadora, já que mesmo as chamadas
arribadas forçadas são voluntárias, no sentido estrito e natural do termo, uma vez
que são efetuadas por decisão voluntária do capitão. A diferença está de, nas
chamadas arribadas forçadas, o capitão se ver forçado, em virtude de um
determinado evento ou de uma situação, a procurar um porto ou lugar não previsto
na rota, o qual pode consistir no porto de embarque ou no porto de anterior escala
– ou mesmo no porto de destino, na medida em que o capitão tenha de sacrificar
algum porto de escala para arribar. O capitão toma a decisão de arribar –
independentemente, mas também sem prejuízo, dos requisitos da lei para o efeito
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– porque a tanto o obriga o sucesso da expedição marítima ou a segurança comum
do navio, das pessoas ou dos bens. Refere, a propósito, Cunha Gonçalves:
«A arribada é voluntária quando motivada por mero capricho do
capitão ou deste e dos tripulantes. É forçada ou necessária quando
determinada por um caso fortuito ou de força maior».
Para o efeito da determinação do caráter voluntário ou forçado da arribada, não
importa apurar se há responsabilidade de alguém e, no caso afirmativo, a quem
podem ser imputados os prejuízos causados pela arribada. Claro que esse
apuramento será importantíssimo mas numa fase posterior, a jusante da conclusão
pelo caráter voluntário ou forçado da arribada. Para o efeito da determinação do
caráter forçado da arribada, é mister que, na base da mesma, exista uma justa
causa. Na consideração da justa causa da arribada, deverá ser ponderada a situação
concreta, desde logo no que respeita à escolha do porto ou lugar de arribada: se
um navio navega diretamente de Lisboa para os Açores e o capitão constata a
insuficiência de combustível quando está a poucas milhas da Madeira, a priori, a
arriada forçada adequada à situação passará pela escolha de um porto madeirense
sendo inadequada aquela que se traduza num regresso ao porto de origem: se for
este o caso, ainda que se traduza num regresso ao porto de origem: se for este o
caso, ainda que a arribada pareça legítima à luz do previsto no n.º1 do artigo 658.º
do Código Comercial, ela deve ser tratada parcialmente como ilegítima, no que
respeita ao percurso e ao tempo despendidos em excesso, comparativamente com
aqueles que seriam o percurso e o tempo se o porto de arribada tivesse sido bem
escolhido. O caráter legítimo da arribada não sofrerá, já, contestação se o regresso
ao porto de embarque for, por exemplo, ditado pelo mau tempo no mar daquela
ilha.
2. O relevo de uma justa causa de arribada:
a. As justas causas de arribada forçada: o artigo 654.º do Código Comercial
enuncia três justas causas de arribada forçada, as quais correspondem,
grosso modo, às justas causas. A primeira dúvida que se pode gerar é sobre
o caráter taxativo ou simplesmente exemplificativo do elenco do artigo
654.º. Aparentemente, a lista é fechada, posição esta que parece reforçada
a cumprir, remete-se para
«qualquer dos casos previstos no artigo precedente».
Ainda que interpretadas atualisticamente, as causas enunciadas no artigo
654.º não cobrem o universo de situações justificadoras da arribada. Deve,
assim, considerar-se como justa causa de arribada toda a situação em que
esta se apresente como justa causa de arribada toda a situação em que
esta se apresente como necessária ao bom êxito da expedição marítima,
não podendo, portanto, considerar-se a enumeração constante do artigo
654.º como um numerus clausus de justas causas de arribada forçada.
Assim, pode ser considerada também justa causa de arribada a entrada
num porto não previsto na rota, para abrigar-se de uma súbita e forte
tempestade que force o capitão a tal decisão ou a situação – que, no
entanto, numa determinada interpretação, admitimos que possa caber no
número 3 do artigo 654.º - em que sobrevenha uma avaria no sistema de
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comunicação. Em rigor, uma tal avaria não inabilitará o navio de continuar
a navegação, mas pode, considerando o mar onde navega e o seu estado,
impedi-lo de fazer uma navegação minimamente segura. Azevedo Martins
considera, ainda, a doença contagiosa a bordo e a quarentena como justas
causas de arribada. A primeira justa causa enunciada no artigo 654.º é a
falta de víveres, aguada ou combustível. A situação fala por si, não havendo
dúvidas de que essa é uma situação justificativa da arribada: qualquer que
tenha sido a causa da falta assinalada – aspeto que, no entanto, interessará,
conforme veremos, para a determinação do caráter legítimo ou ilegítimo
da arribada – o bom sucesso da expedição marítima supõe que a deficiência
seja suprida. Naturalmente que a falta verificada terá de ser, in casu, de
relevo: ela tem de ser suficientemente grave para pôr em causa o bom
sucesso da expedição marítima. A segunda causa enunciada no artigo 654.º
é o temor fundado de inimigos. Ao enunciar como justa causa o temor
fundado e não apenas o temor, podemos dizer que esse qualificativo deve
ser concretizado nos termos do n.º2 do artigo 658.º. Ora, sendo assim,
podemos concluir que, diversamente do que acontece nas demais
situações de arribada forçada se a mesma for legítima: se não houver
temor fundado de inimigos, concretizado à luz do n.º2 do artigo 658.º, a
arribada pode ser, sequer, considerada como forçada mas como voluntária.
Que inimigos relevam para o efeito? Julgamos que todos, sendo de afastar
uma qualquer restrição aos inimigos declarados em situação de guerra.
Inimigos serão, assim, todos aqueles que tenham uma atitude hostil em
relação ao sucesso da expedição marítima e que a possam perigar. A
terceiro causa enunciada radica na relação entre a navegação e um
acontecimento que constitua um acidente: qualquer acidente que inabilite
o navio de continuar a navegação. Não se exige, agora, que se trate de
acidente acontecido ao navio. Podemos, assim, dizer que o acidente
relevante não tem de ser interno ao navio: pode ser exterior a ele, desde
que o mesmo impossibilite ou condicione seriamente a navegação. Usando
a linguagem que encontramos, v.g., no artigo 16.º do Decreto-Lei n.º
180/2004, 27 julho, tanto de poe tratar de acidente quanto de incidente,
desde que relevantes.
b. Formalidades da arribada forçada: o artigo 655.º do Código Comercial
disciplina as formalidades a cumprir pelo capitão antes de proceder à
arribada, curando o respetivo §1.º da posição dos interessados na carga
face à «deliberação tomada de proceder à arribada» e o §2.º da feitura do
relatório de mar perante a autoridade competente. Contradizendo a
previsão constante do artigo 506.º do Código Comercial, o o§2.º indica um
prazo mais amplo para a apresentação do relatório: quarente e oito horas
e não apenas vinte e quatro. Apesar de não ter sido objeto de revogação
expressa, parece-nos que o artigo 655.º do Código Comercial deve
considerar-se prejudicado – e, logo, tacitamente revogado – pelo Decreto-
Lei n.º 384/99, mais concretamente pelo estabelecido nas alíneas h) e j) do
artigo 6.º. Na verdade, de acordo com a citada alínea h), o capitão é
obrigado a convocar a conselho oficiais, armadores, carregadores e
sobrecargas, sempre que foi previsível a ocorrência de perigo para a
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expedição suscetível de causar danos ao navio, tripulantes, passageiros ou
mercadorias. Cremos que a perspetiva da necessidade de arribada, em
função, v.g., do termos de inimigos, cabe, desde logo, na previsão da alínea
h), sendo de afastar a interpretação – que se escudaria num simples
confronto literal com a redação da alínea j) – segundo a qual nas situações
de arribada, ao capitão bastaria uma informação ex post. Há uma aparente
diferença de regime entre o regime do Código Comercial e o que resulta,
agora, das alínea h) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99: enquanto que, no
domínio do §1.º do artigo 655.º daquele Código, os interessados na carga
não pareciam poder participar do processo tendente à decisão de arribada,
só podendo intervir depois, manifestando o seu protesto, face à citada
alínea h), os interessados participam no processo, manifestando a sua
posição, que pode ser de oposição. Contudo, essa diferença de regime não
é segura, sendo sustentado por alguns, no domínio do Código Comercial,
que o capitão devia também ouvir os interessados na carga: não deixando
de reconhecer que os interessados na carga não eram «principais da
tripulação» (artigo 655.º), Cunha Gonçalves dava relevo ao disposto no n.º
6 do artigo 508.º, também do Código, que impunha ao capitão
«chamar a conselhos os oficiais, armadores, caixas e
carregadores que estiverem a bordo, ou seus representantes,
em qualquer evento importante de onde puder vir prejuízo à
embarcação ou à sua carga».
Posição oposta a esta era sustentada por Adriano Anthero, para quem se
justificava a exclusão dos interessados na carga:
«Os interessados na carga que estiverem a bordo não são
ouvidos; porque não são técnicos, e, por outro lado, o interesse
de não interromper a viagem ou qualquer terror pânico podia
cegá-los».
Pensamos que, no domínio do Código Comercial, a razão estava com
Adriano Anthero, já que o argumento do relevo do número 6.º do artigo
508.º (Cunha Gonçalves) era anulado pelo facto de o mesmo artigo 508.º
realçar no n.º9 a especificidade do regime das arribadas forçadas. Apesar
de, formalmente, se poder dizer que a alínea h) do artigo 6.º Decreto-Lei
384/99 seria herdeira do n.º6 do artigo 508.º Código Comercial e que a
alínea j) do artigo 6.º Decreto-Lei 384/99 seria a continuadora do n.º9 do
artigo 508.º do mesmo Código, embora com um âmbito bem mais amplo,
a verdade é que – com as cumulativas revogações dos artigos 508 (de
forma expressa) e 655 (de modo tácito) – passou a haver uma certa
sobreposição entre as situações previstas nas duas alíneas, o que é
justificável, desde logo, pelo facto de nem sempre ser possível convocar os
carregadores a conselho e ainda porque, ainda que ouvidos previamente,
os carregadores têm o direito de ser informados sobre os mesmos,
vicissitudes e consequências do ocorrido. Qual é o efeito de uma oposição
à arribada? Conforme já realçava Cunha Gonçalves, conquanto no quadro
do §1.º do artigo 655.º do Código Comercial, a oposição ou protesto pode
ter lugar mas não paralisa a decisão do capitão, como magister navis que
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é. Contudo, a oposição à arribada, designadamente – mas não só – quando
manifestada pelos oficiais, não impedindo, embora, a arribada, pode ser de
grande relevância para futuro, designadamente no que tange à
caracterização da arribada como legítima ou ilegítima. Face ao disposto na
alínea j) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, o capitão está obrigado a
informar o armador, os carregadores e os cobrecargas sempre que possível
e, em particular, depois de qualquer arribada, sobre os acontecimentos
extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as despesas
extraordinárias efetuadas ou a efetuar em benefício do navio e sobre os
fundos para o efeito ou a efetuar em benefício do navio e sobre os fundos
para o efeito constituídos. Este dever de informação impõe-se, ainda que
os tais interessados tenham sido ouvidos, nos termos da alínea h), já que
se tratará, então, de informar sobre o modo como foi efetivada ou
concretizada a arribada. Perguntar-se-á, agora, se o incumprimento, pelo
capitão, do dever estabelecido na alínea h) ou mesmo na alínea j) do artigo
6.º do Decreto-Lei 384/99, inquina, de algum modo, o processo ou se
condiciona o regime da arribada. Pensamos que não, sem prejuízo de
considerarmos que o estabelecimento de tais deveres de informação faz
pleno sentido. O que não parece sustentável é que o cumprimento dos
mesmos continua um requisito ou uma condição da arribada, podendo,
não obstante, a pessoa que se sinta lesada por ausência ou deficiência de
informação exigir indemnização nos termos gerais da responsabilidade
aquiliana (Artigo 483.º e seguintes CC). Importa, finalmente, vincar que a
revogação tácita do §2.º do artigo 655 do Código Comercial não decorre
das citadas alíneas h) e j) do artigo 6.º do Decreto-Lei 384/99, mas, antes,
do artigo 14.º do mesmo diploma – relatório de mar.
3. A arribada legítima e a arribada ilegítima: a arribada forçada pode ser legítima ou
ilegítima, resultando da caracterização que possamos fazer, neste particular,
importantíssimas consequências de regime, conforme decorre do artigo 659.º
CCom. O artigo 657.º define a arribada legítima e o artigo 658.º define a ilegítima.
A técnica utilizada não é, tanto quanto nos parece, a melhor, uma vez que as
caracterizações da arribada como legítima ou ilegítima surgem em termos
relativamente estanques quando, na realidade, tem de existir uma relação
estreitíssima entre ambas. Ensaiando uma orientação, parece-nos que a
caracterização constante do artigo 657.º está dependente da caracterização da
arribada ilegítima do artigo 658.º, no sentido de que só está determinada a
funcionar após a caracterização da arribada forçada como ilegítima, precisamente
nos termos do artigo 658.º. Ou seja: à luz, estreitamente, das disposições do Código
Comercial, uma vez feita uma primeira caracterização da arribada como ilegítima,
nos termos do artigo 658.º, a mesma poderia se corrigida, para legítima, através da
invocação e prova de que não houve culpa na situação por parte do armador, do
capitão ou da tripulação. Em termos jurídicos, e no que respeita Às justas causas do
n.º1 e 3.º do artigo 654.º - a que correspondem, depois, na sequência, os n.º1 e 3.º
do artigo 658.º - uma vez verificados os requisitos da arribada forçada, aquele a
quem interessasse a caracterização da arribada forçada como ilegítima, teria de
fazer a respetiva prova, tendo, depois, o dono, capitão ou a tripulação de provar a
ausência de culpa. Esta forma de interpretar a articulação entre os artigos 654.º,
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657.º e 658.º CCom deve ser, porém, atualizada, face ao que dispõe o artigo 5.º,
n.º1 do Decreto-Lei 384/99: o capitão, como encarregado do governo e da
expedição do navio, responde como comissário do armador pelos danos causados,
salvo se provar que não houve culpa da sua parte, podendo também invocar a
relevância negativa da causa virtual, fazendo prova de que a situação ocorreria, de
igual modo, ainda que não houvesse culpa sua. Assim, ocorrendo uma arribada,
impende sobre o capitão uma presunção de culpa, nos termos do citado artigo 5.º,
n.º1, a qual pode ser ilidida nos termos gerais, já que se trata de uma presunção
iuris tantum, podendo, assim, o capitão do navio demonstrar a ausência de culpa
na situação concreta. Na prática, o capitão tem a seu cargo uma dupla e sucessiva
prova: a de que a arribada era forçada e ainda a de que a mesma era legítima. Se
não conseguir fazer essas provas, a única via desresponsabilizatória que lhe assiste
é a da relevância negativa da causa virtual. A situação do termos fundado de
inimigos (n.º2 artigo 654.º e n.º2 artigo 658.º CCom) é, neste aspeto, peculiar: uma
vez que a arribada, para ser forçada, tem de ser legítima, terá de ser feita prova do
justo temor de inimigos, prova essa necessariamente objetivada por factos
positivos: se ela existir, a arribada é forçada e é legítima; se não existir, é voluntária
e, logo, ilegítima. O n.º1 do artigo 658.º CCom considera ilegítima a arribada em
três situações:
Caso de falta de víveres, aguada ou combustível proceder de se não ter feito
o necessário fornecimento, ou de se haver perdido por má arrumação ou
descuido (n.º1). À luz desta ideia de que há uma presunção de culpa do
capitão, este terá de fazer prova de que a arribada foi forçada, tendo,
depois, o n.º1 do artigo 658.º um sentido apenas indicativo das situações
que podem ter estado na base da falta de víveres, aguada ou combustível,
cabendo ao capitão a prova de que foi feito o necessário fornecimento ou
que a perda não se deveu a má arrumação ou a descuido, etc. Nessa prova,
não terá relevância o facto de terceiro que o arrumador ou o capitão
devesse ou tivesse o ónus de controlar. Como é óbvio, o capitão não pode
pretender que a arribada foi legítima; a sua culpa está no facto de ter
partido sem ter abastecido convenientemente o navio;
Caso de temor de inimigos não justificado por factos positivos (n.º2):
estamos perante uma situação em que o capitão pode ilidir a presunção de
culpa do artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei 384/99, demonstrando que a arribada
foi forçada em virtude do temor fundado de inimigos, só relevando para o
efeito a prova (a justificação, como diz o n.º2 do artigo 658.º) através de
factos positivos.
O acidente que inabilitou o navio de continuar a navegação provém de falta
de bom conserto, apercebimento, esquipação e má arrumação ou constitua
o resultado de disposição desacertada ou de falta de cautela do capitão. À
luz da posição acima defendida, centrada na lógica de uma presunção de
culpa do capitão, este terá de demonstrar, sucessivamente, que a arribada
era forçada (n.º3 do artigo 654.º), e que a mesma não decorreu de culpa
sua, designadamente de qualquer das situações mencionadas no n.º3 do
artigo 658.º.
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4. A caracterização da arribada e respetivas consequências:
a. As despesas ocasionadas pela arribada: de acordo com o artigo 656.º CCom,
são por conta do armador ou fretador as despesas ocasionadas pela
arribada forçada. O comando legislativo é independente do caráter
legítimo ou ilegítimo da arribada. Aliás, as dúvidas que se poderiam gerar
seriam só no caso de arribada legítima, já que, sendo a mesma ilegítima, as
despesas entrariam no cômputo dos danos a suportar pelo armador ou
proprietário. O disposto no artigo 656.º deve, porém, ser entendido em
função do regime das avarias: se a arribada forçada dever ser caracterizada
como avaria grossa ou comum (artigos 634.º e 635.º CCom), as despesas
entram, naturalmente, nesse regime. A delimitação entre o regime das
despesas e dos prejuízos em sede de arribada forçada é, de resto, coerente
com a diferenciação, feita no artigo 634.º CCom, entre avarias-danos e
avarias-despesas. É de recordar, a propósito, o pertinente reparo de Cunha
Gonçalves:
«Convém salientar, porém, que o legislador, tanto neste código
como no de 1833, donde esta matéria foi copiada, regulou em
especial a arribada forçada somente como avaria particular,
isto é, supôs que a arribada não foi determinada pela salvação
comum do navio ou da carga; pois, de contrário, haveria uma
grave antinomia entre os Títulos V e VI. Assim, quando a falta
de víveres ou de combustível resultar de um alijamento; quando
o terror dos inimigos for fundado, não em simples notícias, ou
receios, mas sim na efetiva perseguição de um navio de guerra
inimigo, à qual só se pode escapar entrando num porto neutro
ou num porto nacional armado; quando o navio se inabilitar a
continuar a viagem, não por acidente ou caso fortuito, mas sim
por um ato voluntário inspirado pela salvação comum; em
todos estes casos, a arribada forçada, além de ser legítima,
constituirá uma avaria comum».
b. Quais as consequências da caracterização da arribada forçada como legítima
ou ilegítima? De acordo com o §único do artigo 659.º CCom, se a arribada
for ilegítima, o capitão e o dono serão conjuntamente responsáveis até à
concorrência do valor do navio e do frete. Realce-se que o §único do artigo
659.º deu lugar a dúvidas, sendo de destacar o reparo feito por Cunha
Gonçalves, à palavra “conjuntamente”:
«Convém notar, além disso, que a palavra conjuntamente foi
aqui empregada sem rigor; pois, nem o capitão pode limitar a
sua responsabilidade ao valor do navio, e do frete, que não lhe
pertencem, nem a responsabilidade do armador é conjunta,
mas sim solidária, como se infere do artigo 492.º e está
expresso no Código Civil, aplicável a todos os casos de
responsabilidade dos comitentes pelos atos dos seus
empregados».
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Atualmente, face ao disposto, no artigo 5.º Decreto-Lei 384/99, 23
setembro, não há dúvida de que a responsabilidade se processa nos termos
da comissão (artigo 500.º CC), respondendo o armador ou proprietário
como comitente e o capitão (ou membro da tripulação) como comissário:
enquanto que aquele responde objetivamente, este último responde
subjetivamente, sendo, aliás, presumida a sua culpa no artigo 5.º, n.º1
Decreto-Lei 384/99. Assim sendo, é patente que a responsabilidade que
está aqui em causa é uma responsabilidade solidária e não conjunta ou
parciária. Interpretado o §único à luz do regime da comissão, conforme, de
resto, já sugeria Cunha Gonçalves, é de questionar se se mantém em vigor
a limitação da indemnização, constante da parte final, ao valor do navio e
do frete. Pensamos que sim, divergindo de Cunha Gonçalves: estamos
perante uma das tais situações de limitação de responsabilidade do
proprietário – da qual beneficia também o capitão – às forças dos bens que
tem na concreta expedição marítima: o navio e o frete. Sendo a arribada
forçada legítima, resulta do artigo 659.º CCom que nem o dono nem o
capitão respondem pelos prejuízos que da mesma possam resultar aos
carregadores ou proprietários da carga: cada um suporta os seus próprios
prejuízos, na lógica casum sensit dominus. Como parece evidente, o regime
consagrado no artigo 659.º terá de ser articulado com o regime da avaria
grossa ou comum: se a arribada for caracterizada como tal (artigos 634.º e
635.º CCom) é aplicável o regime da repartição associado a essas avarias.
Assume, agora, particular relevo determinar o momento em que termina e
o momento em que cessa o acontecimento arribada. O início da arribada
inicia-se com o desvio de rota: a partir daqui, a determinação das despesas
e prejuízos estão dependentes do estabelecimento de um nexo de
causalidade entre os membros e a arribada, valendo, neste particular, o
regime estabelecido no artigo 562.º e seguintes CC. Tratando-se de
arribada forçada, ela só o é enquanto persistirem as razões que a
determinaram, podendo converter-se em voluntária, com as
consequências que daí possam avir em termos de regime. E quando a
arribada deva ser caracterizada como voluntária? A dúvida que se levanta
é a de saber se a mesma deve ter um tratamento idêntico ao da arribada
ilegítima ou se tem um tratamento autónomo. As situações de arribada
voluntária e arribada ilegítima surgem amiúde confundidas. Em termos de
regime, o capitão e, enquanto comitente, o proprietário ou armador serão
responsáveis por todos os prejuízos sofridos pelos demais interessados na
expedição, designadamente os carregadores. Neste particular, não surgem
diferenças em relação ao regime da arribada forçada ilegítima. O único
aspeto em que podemos questionar uma diferença de regime será na
questão da limitação da responsabilidade, já que não se aplicaria à arribada
voluntária o limite estabelecido no §único do artigo 659.º. Contudo, a
circunstância de o artigo 12.º Decreto-Lei 202/98 manter, nos termos no
mesmo previsto, o regime do abandono liberatório, permite-nos concluir
pela inexistência, na prática, de diferenças relevantes entre o regime da
arribada forçada ilegítima e o da arribada voluntária.
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5. A arribada forçada e a avaria grossa: a arribada forçada é regulada no Código
Comercial de costas voltadas para o regime das avarias, ou seja, à margem da
respetiva caracterização como avaria grossa ou como avaria particular. Contudo,
na medida em que se verifiquem o pressuposto e os requisitos traçados no §1.º do
artigo 635º CCom – haver um perigo comum para o navio e carga e ser a arribada
fruto de uma decisão voluntária do capitão para a segurança comum do navio e da
carga – estamos perante uma situação de avaria grossa, aplicando-se,
consequentemente, o respetivo regime. Sendo supletivo o regime do Código
Comercial em matéria de avarias (§2.º do artigo 634.º), importa ver, em termos
necessariamente sumários, como é que as Regras de Iorque-Antuérpia tratam a
arribada forçada, acontecimento que é aí abrangido pela sugestiva designação de
porto ou lugar de refúgio – designação esta que, no entanto, tem vindo a ser
utilizada, estando mesmo legislativamente consagrada, para designar uma situação
que envolve preocupações de defesa do ambiente e de prevenção de acidentes e
de poluição causada por navios no mar. De acordo com a Regra X (a) (i) das Regras
I-A, poderão ser permitidas como avaria grossa as despesas de entrada do navio
num porto ou lugar de refúgio quando essa entrada seja consequência de um
acidente, sacrifício ou outras circunstâncias extraordinárias que tornem essa
entrada necessária para a segurança comum – o mesmo acontecendo, verificados
os mesmos pressupostos, com as despesas de regresso ao porto ou lugar de
carregamento. Ainda de acordo com a mesma Regra X (a) (i), também serão
admitidas como avaria grossa as despesas decorrentes da saída do navio a partir
desse porto ou lugar após tal entrada ou retorno, com toda ou parte da carga inicial.
Face a esta Regra, e de acordo com Lowndes/Rudolf, não constituirá avaria grossa
a situação em que um navio não avariado procura porto ou lugar de abrigo apenas
para evitar uma muito provável tempestade ou vento muito forte; contudo, se
tivesse ocorrido algo de tal forma que o navio e a sua carga estejam em perigo, já
estaremos perante matéria de avaria grossa. Tudo dependerá, porém, no nosso
entender, do relevo que se dê às outras características extraordinárias, parecendo-
nos que o núncio fundado de uma tempestade se revele, a priori, perigosa para a
segurança comum do navio e da carga, se poderá enquadrar nesse âmbito. O
segundo parágrafo (ii) da Regra X (a) refere-se à situação em que um navio esteja
num porto ou lugar de refúgio e tenha, necessariamente, de ser removido para
outro porto ou lugar de refúgio pelo facto de as reparações não poderem ser feitas
no primeiro porto ou lugar; prevê-se que a Regra X possa ser aplicada ao segundo
porto ou lugar de refúgio como se o navio estivesse no primeiro, sendo permitidas
como avaria grossa as reparações provisórias e o reboque, sendo também
aplicáveis as disposições da Regra XI ao prolongamento da viagem determinado por
essa remoção. Conforme acontece com todas as Regras, têm surgido dúvidas de
interpretação, compreendendo-se que possam, em concreto, surgir polémicas
relativamente à natureza ou à dimensão das reparações ou então em relação à
escolha do novo porto ou lugar de refúgio para reparação. A Regra X (b) refere-se,
o seu primeiro parágrafo (i), ao custo de manutenção a bordo ou de desembarque
da carga, ao combustível e provisões num porto ou lugar de refúgio; os mesmos
poderão ser permitidos como avaria grossa quando a manutenção ou
desembarque tiverem sido necessários para a segurança comum ou para permitir
a reparação de danos sofridos pelo navio, em consequência de sacrifício ou
acidente, na medida em que a reparação seja necessária para a prossecução da
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viagem em segurança. São, porém, excecionados os casos em que dano sofrido pelo
navio seja descoberto num porto ou lugar de carregamento ou de escala, sem que
tenha havido qualquer acidente ou outras circunstâncias extraordinárias associadas
a tal dano que tenham tido lugar durante a viagem. O segundo parágrafo (ii) da
Regra X (b) afasta, porém, a consideração como avaria grossa das despesas
referidas no parágrafo (i) quando as mesmas tenham tido lugar exclusivamente
com o propósito de nova estiva, em consequência das deslocações ocorridas
durante a viagem, a não ser que essa nova estiva seja para a segurança comum. Em
termos sequenciais, a Regra X (c) estabelece que, sendo o custo da manutenção ou
desembarque da carga, combustível ou provisões permitidos como avaria grossa,
os custos de armazenamento, incluindo seguro, feito em termos razoáveis, novo
carregamento e estiva de tal carga, combustível ou provisões, poderão ser
igualmente permitidos como avaria grossa. A mesma Regra manda aplicar a Regra
XI ao período extra, ocasionado por tal novo carregamento ou nova estiva. A
mesma Regra X (c) exceciona o caso em que o navio esteja condenado ou não
continue a viagem inicial: nesses casos, as despesas de armazenamento só são
permitidas como avaria grossa até à data da condenação do navio – ou seja até à
data em que é estabelecido que o navio é comercialmente irreparável – ou do
abandono da viagem ou até à data em que se completou a descarga, quando a
condenação ou abandono tenham tido lugar anteriormente. De acordo com a
Regra XI (a), os salários e a manutenção do capitão, oficiais e da tripulação, quando
em termos razoáveis, e o combustível e provisões consumidos durante o
prolongamento da viagem ocasionada por um navio que entre num porto ou lugar
de refúgio ou regresse ao seu porto ou local de carregamento, será tido como
avaria grossa quando as despesas de entrada nesse porto ou lugar sejam permitidas
como avaria grossa, de acordo com a Regra X (a). As alíneas (b) e (c) da mesma
Regra, complementam a alínea (a), em termos que não podemos aqui aprofundar.
6. Situações no porto de arribada:
a. Descarga no porto de arribada: o artigo 660.º CCom faz depender a
regularidade da descarga no porto e arribada do facto de a mesma ser
indispensável para conserto do navio ou reparo de avaria na carga. A
autorização deverá ser dada, segundo o mesmo artigo 660.º, pelo juiz
competente; se for no estrangeiro, a autorização deverá ser dada pelo
agente consular ou, na sua falta, pela autoridade competente. Pode
questionar-se se o regime agora estabelecido nos artigo 10.º e 11.º
Decreto-Lei 384/99 não permitirá dispensar a autorização exigida pelo
artigo 1506 Código Processo Civil, uma vez que essas disposições
consideram lícita a utilização de coisas a bordo do navio, ouvidos os
principais da tripulação. A mesma dúvida se coloca, de resto, como
veremos, em relação à matéria do artigo 662.º CCom. Embora a dúvida seja
legítima, pensamos que continua a ser necessária a autorização referida no
artigo 660.º CCom: trata-se de disposição especial em sede de arribada,
enquanto que o artigo 10.º, Decreto-Lei 384/99 tem um âmbito de
aplicação e uma ratio bem definidos: «durante a expedição marítima e no
seu interesse». De resto, o artigo 10.º Decreto-Lei 384/99, disposições que
conviviam perfeitamente com o artigo 660.º. De acordo com o artigo 661.º
CCom, o capitão responde pela guarda e conservação da carga
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descarregada, salvos os acidentes de força maior. Atualmente, face ao
regime do artigo 4.º Decreto-Lei 202/98, 10 julho e do artigo 5.º Decreto-
Lei 384/99, 23 setembro, responderão solidariamente o proprietário (ou
armador) como comitente e o capitão como comissário. Os deveres que
impendem sobre o capitão são os deveres típicos do fiel depositário (artigo
1185.º CC): ele tem o dever de guarda ou custódia, dever esse que
coenvolve o dever de conservação material da carga descarregada.
b. Reparação ou venda da carga avariada: independentemente de a
mercadoria ter sido, o artigo 662.º CCom permite que a carga avariada seja
reparada ou venida, segundo as circunstâncias, precedendo (artigo 660.º
CCom) autorização do juiz competente (se no estrangeiro, havendo agente
consular, havendo-o, ou, na sua falta, da autoridade local). Nessa situação,
o capitão deverá comprovar ao carregador ou consignatário a legitimidade
do seu procedimento, sob pena de responder pelo preço que a mercadoria
teria como boa no lugar de destino. O artigo 662.º suscita a questão, já
abordada a propósito do artigo 660.º, saber se, face ao regime dos artigo
10.º e 11.º do Decreto-Lei 384/99, se mantém em vigor a exigência de
autorização. Pensamos que essa exigência se mantém,
independentemente da questão da sua bondade, à luz do direito a
constituir. Realce-se, aliás, o facto, já assinalado a propósito do artigo 660.º,
de o regime dos artigo 10.º e 11.º do Decreto-Lei 384/99 corresponder,
grosso modo, ao regime dos revogados artigos 510.º e 512.º CCom,
disposições essas que conviviam perfeitamente com o artigo 662.º. Claro
que a exigência de autorização só faz sentido no caso de o capitão ou o
armador não conseguirem contatar o interessado na carga, sendo certo,
face ao disposto no artigo 5.º, n.º2 e na alínea j) do artigo 6.º Decreto-Lei
384/99, que o capitão deve tentar obter previamente indicações
específicas sobre o destino da carga. Na atualidade serão certamente raras
as situações em que o capitão ou o armador não conseguem esse contacto.
A articulação do artigo 662.º CCom com o disposto no artigo 10.º Decreto-
Lei 384/99 permite destacar a eventualidade de situações em que, por
ocasião da arribada, seja necessário proceder à alienação de coisas que se
encontrem a bordo, no interesse da expedição. Se for esse o caso, a
mercadoria pode ser vendida nos termos do citado artigo 10.º, sem
necessidade de autorização mencionada no artigo 662.º. A diferença de
regime é ditada pelo facto de, nesses casos, estarem em jogo ou em causa
os interesses da expedição – cujo julgador é o capitão – e não apenas o
interesse de um ou mais carregadores.
c. Injustificada demora no porto de arribada: de acordo com o disposto no
artigo 663.º CCom,
«o capitão responderá pelos prejuízos resultantes de toda a
demora injustificada no porto de arrabada; mas, tendo esta
procedido de temor de inimigo, a saída será deliberada em
conselho dos principais da equipagem e interessados na carga
que estiverem a bordo, nos mesmos termos legislados para
determinar a arribada».
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Como é evidente e resulta do que atrás dissemos, a responsabilidade pelos
prejuízos resultantes de demora injustificada não serão suportados
singularmente pelo capitão, já que continua a funcionar a lógica da
comissão, nos termos do artigo 4.º Decreto-Lei 202/98, 10 julho, e do
artigo 5.º Decreto-Lei 384/99, 23 setembro. Os prejuízos deverão ser,
naturalmente, provados pelo lesado. Assim, supondo que a arribada
forçada foi legítima, só contarão, para efeitos de responsabilização do
proprietário (ou armador) e do capitão os prejuízos que sejam
consequência da demora injustificada: ou seja aqueles prejuízos que, sem
tal demora injustificada: ou seja aqueles prejuízos que, sem tal demora,
provavelmente não teriam ocorrido (artigo 563.º CC). A saída do porto é
decidida pelo capitão, salvo quando a arribada tenha tido por causa o
temor justificado de inimigos – situação em que a saída é deliberada em
conselho, o qual englobará também os interessados na carga. Esta
diferença de regime face ao artigo 665.º, é explicada por Adriano Anthero
pelo facto de, no caso de saída,
«já se não dão as mesmas circunstâncias nem há tanta razão
que motive um temor pânico».
A articulação com o regime do Decreto-Lei 384/99 não suscita dificuldades:
o artigo 663.º apresenta-se como uma disposição especial em sede de
arribada, contendo um regime aplicável a uma situação que não se
encontra contemplada em qualquer das alíneas do artigo 6.º do diploma.
7. A problemática dos locais de refúgio: a expressão local de refúgio, utilizada nas
Regras I-A, tende a designar uma realidade associada à segurança da navegação e
à proteção do ambiente 9 . Têm sido invocadas referências a bases normativas
associadas a lugares de refúgio. Deixando de parte a Convenção de Bruxelas de
1989, sobre intervenção em alto mar em caso de acidente causado ou podendo vir
a causar poluição por hidrocarbonetos, pertencente às convenções da primeira
geração, há que destacar, desde logo, a Convenção de Montego Bay de 10
dezembro 1982, sobre o Direito do Mar, a Convenção de Londres de 1989 sobre
salvação marítima, a Convenção de Londres de 1990 sobre a prevenção, atuação e
cooperação no combate à poluição por hidrocarbonetos, e a nível comunitário, a
Diretiva 2002/59/CE, relativa à instituição de um sistema comunitário de
acompanhamento e de informação de tráfego de navios, entretanto transposta
para o direito interno português. A transposição da Diretiva 2002/59/CE para o
Direito Português foi feita pelo Decreto-Lei 180/2002, 27 julho. Através dele, e
conforme reza o artigo 1.º, n.º2, são estabelecidas regras relativas à instituição, no
território nacional, de um sistema de acompanhamento e de informação do tráfego
9 O caso do Castor é elucidativo: no final do ano 2000, o navio, navegando no Mediterrâneo, pediu, sucessivamente, para entrar nas águas de cinco Estados mediterrâneos, em ordem a realizar um transbordo da carga de gasolina; face às recusas recebidas, o navio foi rebocado para o alto mar para efetivação de tal transbordo. Mais presente está o caso do Prestige, cuja catástrofe poderia ter sido evitada se o navio tivesse sido recebido num porto ou lugar de refúgio onde pudesse ser retirada a carga perigosa. O tema dos lugares de refúgio é tão atual e premente quão difícil: a dificuldade decorre do facto de os mesmos constituírem um difícil compromisso entre a segurança da navegação, a tutela do ambiente e os interesses dos Estados costeiros.
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de navios com vista a aumentar a segurança e a eficácia do tráfego marítimo,
melhorar a resposta das autoridades a incidentes, acidentes ou a situações
potencialmente perigosas no mar, incluindo operações de busca e de salvamento,
e contribuir para uma melhor prevenção e deteção das poluição causada pelos
navios. Dentre as definições constantes do artigo 3.º, destaca-se, na alínea o), local
de refúgio:
«um porto ou parte de porto ou outro espaço para manobrar ou
fundeadouro de proteção, ou qualquer outra área de refúgio
identificada em plano de recolhimento de navios em dificuldade».
O artigo 18.º refere-se às medidas e caso de incidente ou acidente marítimo,
remetendo o n.º2 para uma lista (Anexo IV), não exaustiva, das medidas que podem
ser tomadas pelas autoridades, destacando-se entre as mesmas (alínea d)) o
«intimar comandante a seguir para um local de refúgio em caso de
perigo iminente, ou impor a pilotagem ou o reboque do navio».
O artigo 19.º respeita especificamente aos locais de refúgio mas fica aquém das
expectativas, remetendo para uma posterior elaboração os planos de acolhimento
de navios em dificuldade. Essa elaboração – em como a manutenção em termos
atualizados – é cometida ao IPTM, ar articulação com a DGAM, o Comando Naval,
o Instituto da Conservação da Natureza e o Instituto de Tecnologia Nuclear. As
diretrizes constantes do decreto-Lei 180/204 são mínimas elas cingem-se à
indicação, constante do artigo 19.º, n.º2, de que os planos a elaborar – e que serão
objeto de aprovação em Resolução de Conselho de Ministros (artigo 19.º, n.º3) –
deverão definir a entidade dou entidades responsáveis pela decisão de acolher ou
não um navio num local, bem como as disposições e os procedimentos necessários,
tendo em cota as restrições de ordem operacional, de segurança e ambiental. A
problemática dos portos de refúgio ultrapassa largamente os problemas clássicos
da arriada forçada do Código Comercial no quem nem é ponderada a hipótese de
uma convenção internacional sobre portos de refúgio, sendo que permanece de pé
um conjunto de problemas por resolver neste âmbito, pese embora os vários
trabalhos desenvolvidos internacionalmente, designadamente a nível do Comité
Marítimo Internacional (CMI)e da Organização Marítima Internacional (IMO).
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Capítulo IV – Abalroação de Navios
1. Introdução: a aventura marítima tem inerente o perigo. Acontecimentos de vária
natureza podem determinar perdas para o navio, para a carga e para as pessoas. Dentre
os perigos que a aventura marítima está sujeita – riscos ou fortunas de mar – assuma
particular relevo o caso da abalroação. A abalroação é um perigo constante dos navios
desde sempre. Contudo, ela é um perigo cada vez maior, por virtude da maior
velocidade e tonelagem dos navios, do grande aumento do tráfego marítimo e da
utilização das mesmas rotas. Certo é que as modernas técnicas vieram auxiliar a
prevenir as abalroações; no entanto, tomando como exemplo o radar, o mesmo
introduziu, no dizer expressivo de Rodière,
«une illusion de sécurité qui augmente l’audace des manoeuvres».
Por outro lado, o material de que são feitos os navios determina o aumento das avarias
– dos danos – em caso de abalroação. As abalroações objeto do nosso estudo não são
apenas as que ocorrem no alto mar mas também as que têm lugar nos portos,
designadamente aquando das manobras de atracagem ou de largada. A abalroação é
um acontecimento de mar, enquadrando-se na previsão do artigo 13.º do Decreto-Lei
n.º 384/99, 23 setembro.
2. O que é abalroação para o Código Comercial e para a Convenção de Bruxelas de 1910:
do artigo 664.º e seguintes do Código Comercial não resulta uma noção de abalroação;
parece depreender-se, porém, dos mesmos que, para o Código, a abalroação será um
choque ou colisão de navios. Assim parece resultar do artigo 664.º, do artigo 665.º, do
artigo 666.º, do artigo 667.º, do artigo 668.º, do artigo 674.º, n.º2, e do artigo 674.º,
n.º3. Há que reconhecer, porém, que as expressões utilizadas apenas fazem presumir
a necessidade de colisão mas não são inequívocas nesse sentido, num prisma jurídico,
eixando, assim, campo aberto para o relevo, mesmo face ao Código Comercial, da
abalroação sem colisão. Na verdade, a única exigência segura que podemos associar à
abalroação, face às disposições do Código Comercial, é que a mesma envolva dois ou
mais navios. Envolvendo necessariamente dois ou mais navios, não será abalroação
para o Código Comercial o choque ou embate de um navio contra um cais ou outro
corpo fixo ou flutuante, caso esse que, na falta de outra regulamentação, específica,
seguirá as regras gerais da responsabilidade civil. Lê-se, assim, em Veiga Beirão:
«Não há abalroação no sentido technico da palavra no embate de um navio
contra um corpo fixo, tal como um escolho, uma barragem, etc., ou corpo
flutuante, não susceptivel de navegar, tal como um tronco, um pontão, um
navio submergido».
Os casos mais polémicos serão os de colisão contra navios encalhados e abandonados,
contra navios afundados ou contra destroços de navios, havendo que estabelecer
diferenças entre diversas situações sendo um critérios norteador possível o da
existência ou inexistência de navegabilidade. Também aos navios imobilizados, que
tenham perdido a primitiva destinatio ad navigandum, não será aplicável o regime da
abalroação. Ilustrando, não seria aplicável o regime da abalroação do Código Comercial
ou da Convenção de Bruxelas de 1910, mas o Código Civil, a uma colisão que
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acontecesse entre um navio desgovernado no porto do Funchal e o célebre Vagrant,
antes pertença dos Beatles, que jaz na baía dessa cidade como atrativo e
estabelecimento de restauração. A abalroação é independente de os navios em causa
estarem em movimento: pode um estar fundeado e o outro em movimento. Utilizamos
indistintivamente as expressões abalroação (Código Comercial ou Decreto-Lei 384/99)
ou abalroamento (Convenção sobre o Regulamento Internacional para evitar
Abalroamentos no Mar – COLREG). Veiga Beirão sinonimizava abalroação,
abalroamento e abordagem, mas, por exemplo, Cunha Gonçalves evitava a utilização
do termo abordagem. Entendem alguns que a abalroação supõe o contacto direto,
lendo-se, por exemplo, em Adriano Anthero que a abalroação é o encontro de um navio
contra outro; em consequência, não considera haver abalroação no caso
«em que a submersão ou damno do navio fosse causado pela brusca
agitação das ondas, produzidas por outro navio que passasse muito veloz
junto d’elle».
Lê-se, por sua vez, e no mesmo sentido, em Cunha Gonçalves:
«Não haverá abalroação também quando um navio, pela velocidade da sua
deslocação, agitar as águas de modo a fazer desequilibrar e naufragar um
barco junto do qual passou».
Refira-se, porém, que esta conceção restritiva não coincide com a constante da
Convenção de Bruxelas de 23 de setembro de 1910 para a unificação de certas regras
em matéria de abalroação (CB 1910). Refira-se também que as Regras de Lisboa de
1987 (CMI) definem, para os respetivos efeitos, collision em termos que abrangem
situações de abalroação sem colisão:
«means any accident involving two or more vessels which causes loss or
damage even if no actual contact has taken place».
Não acompanhamos a conceção restritiva identificada: para além de, como se disse, ela
não ter por si, de forma decisiva, a letra dos artigo 664.º e seguintes do Código
Comercial, a mesma desconsidera as realidades da navegação e a real existência de
situações em que há danos claramente provocados por outro navio, ainda que não
tenha havido contacto físico. No sentido da necessidade de uma colisão, poderia
eventualmente invocar-se o disposto na alínea d) do artigo 166.º do Regulamento Geral
das Capitanias (RGC) que consagra um dever de assistência após uma colisão,
relativamente «à embarcação com que tenha colidido». Não nos parece, porém, que
esta referência – que não surge em sede de regime de abalroação mas de assistência –
possa servir de suporte a uma tomada de posição sobre o próprio conceito de
abalroação. Aliás, temos as mais sérias reservas a uma interpretação literal da citada
alínea d), a qual deve ser interpretada no sentido de abarcar também a abalroação sem
colisão. Não nos parece, por outro lado, possível extrair qualquer conclusão, neste
particular, do regime do Decreto-Lei 384/99, 23 setembro, quando enuncia como
acontecimento de mar, a par da abalroação, a simples colisão ou toque (artigo 13.º,
n.º2): quer a simples colisão quer o toque constituem, juridicamente, casos de
abalroação, face ao regime do Código Comercial e da CB 1910. Face ao entendimento
exposto, prejudicada está a questão de saber se a colisão tem de ser violenta. De
qualquer modo, sempre diremos que, a ser adotada a visão restritiva acima criticada,
de acordo com a qual seria necessário um choque ou colisão, não veríamos razão para
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excluir o simples toque (artigo 13.º, n.º2 Decreto-Lei 384/99) do conceito e do regime
da abalroação: uma tal exclusão não teria razão de ser, face ao regime do Código
Comercial quer face ao da CB 1910. O regime da abalroação constante do Código
Comercial está norteado em função da situação de abalroação típica ou usual: aquela
que provoca danos: isso é claro logo no artigo 664.º, continuando nas disposições
seguintes. Não obstante, a ocorrência de danos não é um elemento caracterizador ou
constitutivo da abalroação. Se do contacto físico (se tiver sido esse o caso) entre navios
não resultou qualquer dano, nem por isso deixamos de estar perante uma abalroação:
o que acontece é que não há um pressuposto essencial para o funcionamento da
responsabilidade civil, o que não significa, obviamente, que o acontecimento não tenha
relevância noutros campos, designadamente no disciplinar. Há um ponto que deixamos
aqui alertado: o conceito de navio. O artigo 664.º do Código Comercial refere-se, de
facto, a abalroação de navios. O conceito de navio é-os dado, no Direito Interno, pelo
Decreto-Lei 201/98, 10 julho, que o define, para efeitos d diploma (Estatuto Legal do
Navio), como
«o engenho flutuante destinado à navegação por água».
Idêntica noção é-nos dada pela alínea a) do artigo 1.º do Decreto-Lei 202/98, 10 julho.
O Regulamento Geral das Capitanias não trata especificamente dos navios mas das
embarcações, que inclui as de comercio, as de pesca, de recreio, rebocadores, de
investigação, auxiliares e outras do Estado. Para efeitos deste Regulamento,
embarcação é (artigo 19.º, n.º3)
«todo o engenho ou aparelho de qualquer natureza, exceto um hidroavião
amarado, utilizado ou suscetível de ser utilizado como meio de transporte
sobre água».
Para efeitos de abalroação e respetivo regime, releva não só a ocorrência (máxime
colisão) com a própria estrutura do navio (casco) mas também com quaisquer
elementos que façam parte integrante do mesmo (artigo 1.º, n.º2 do Estatuto Legal do
Navio): assim, está também sujeito ao regime da abalroação o embate contra a âncora
e respetiva corrente presa ao navio. O princípio é o de que o regime do Código
Comercial, conquanto pensado em função da realidade dos navios mercantes, será
aplicável a todas as demais embarcações, incluindo as de pesca e as de recreio. Ficamos,
ainda assim, longe da noção de navio (vessel) das Regras de Lisboa do CMI, que envolve
as plataformas fixas («means any ship, craft, machine, rig or platform wether capable
of navigation or not, which is involved in a collision»), noção que vale para os específicos
efeitos das Regras. Quanto a um hidroavião amarado, já vimos que o mesmo não é
considerado embarcação para efeitos do RGC; contudo, ele é considerado navio para
efeitos do COLREG, conceito este que é definido (regra 3, parágrafo a)) como
«todo o veículo aquático de qualquer natureza, incluindo os veículos sem
imersão, os veículos WIG e os hidroaviões, utilizado ou suscetível de ser
utilizado como meio de transporte sobre a água».
Não haveria qualquer ilogicidade na identificação de uma incoincidência entre o
conceito de navio, para efeitos do regime da abalroação do Código Comercial e o
conceito de navio para o COLREG; não obstante, somos favoráveis a uma interpretação
ampla, que considere complexivamente todos os normativos aplicáveis, numa lógica de
sistema, propendendo-se, assim, para a aplicação do regime da abalroação também ao
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hidroavião amarado. A CB 1910 abrange a abalroação entre navios de mar ou entre
navios de mar e embarcações de navegação interior, no que Vialard vê uma
manifestação, entre outras, do «imperialismo do Direito Marítimo sobre domínios que
nada têm de marinho». A questão é, naturalmente, importante para efeitos de regime:
quando não se verifiquem os pressupostos de aplicação do Código Comercial ou da CB
1910, o regime aplicável, na falta de outro regime específico, será o regime geral da
responsabilidade civil. A jurisprudência portuguesa não tem colocado reservas à
aplicação do regime da abalroação do C.Com a situações que envolvam barcos de pesca.
Também as gruas flutuantes têm sido consideradas navios para efeitos do regime da
abalroação.
3. Âmbito de aplicação do Código Comercial e da Convenção de Bruxelas de 1910. A CLC
1992: a regulamentação da abalroação consta do Código Comercial (Artigos 664.º a
675.º), mas há que tomar em consideração a já focada Convenção de Bruxelas de 23
setembro de 1910. Há que considerar também as Convenções de Bruxelas de 10 de
maio de 1952 relativas à unificação de certas regras relativas à competência civil (uma)
e penal (outra) em matéria de abalroação. Na disciplina aplicável à abalroação, há que
considerar ainda o Regulamento Internacional para evitar Abalroamento no Mar
(COLREG). Quais os campos de aplicação dos artigos 664.º e seguintes do Código
Comercial face à Convenção de Bruxelas de 1910? Conforme vimos, a CB 1910 tem
aplicação no caso de abalroação entre navios de mar ou entre navios e embarcações
de navegação interior – independentemente das águas em que se tenha dado a
abalroação (artigo 1.º). De acordo com 12.º da CB, as suas disposições são aplicáveis a
respeito de todos os interessados, quando todos os navios de que se tratar
pertencerem aos Estados das Partes Contratantes e ainda nos demais casos previstos
nas leis nacionais. O mesmo artigo 12.º deixa entendido, no seu parágrafo 1.º, que a
respeito dos interessados pertencentes a um Estado não contratante, poderá um dos
Estados contratantes subordinar à condição de reciprocidade a aplicação das
disposições da Convenção. Ainda o artigo 12.º deixa claro (parágrafo 2.º) que quando
todos os interessados, bem como o tribunal que houver de julgar o feito, pertencerem
a um mesmo Estado, será aplicável a lei nacional e não a Convenção. Face ao Código
Comercial, há que tomar em devida conta o artigo 674.º, que distingue três situações:
a. Abalroação nos portos e águas territoriais (Ainda que os navios os sejam de
nacionalidades diferentes); a lei local (lex loci) e não a lex fori;
b. Abalroação no mar alto entre navios da mesma nacionalidade; lei da bandeira;
c. Abalroação no mar alto entre navios de nacionalidades diferentes: cada um é
obrigado nos termos d alei do seu pavilhão, não podendo receber mais do que
esta lhe conceder.
O artigo 11.º CB 1910 afasta a sua aplicação os navios de guerra e aos navios
pertencentes ao Estado e exclusivamente empregados em serviço público. Neste
domínio, importará ter em linha de conta a Convenção Internacional para a unificação de
certas regras respeitantes as imunidades dos navios do Estado (1926), cujo artigo 3.º (I),
estabelecendo, embora, a imunidade de navios do Estado (navios de guerra, yatchs do
Estado, navios de fiscalização, navios-hospital, navios auxiliares, navios de
reabastecimento e outras embarcações pertencentes a um Estado ou por ele explorados
e afetados exclusivamente, no momento da constituição do crédito, a um serviço
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governamental e não comercial) – os quais não podem ser objeto de arresto, penhora ou
apreensão judicial, nem de qualquer processo judicial in rem – prevê expressamente que
os interessados têm o direito de apresentar as suas reclamações perante os tribunais
competentes do Estado proprietário do navio ou que o explora sem que este Estado
possa prevalecer-se da sua imunidade, designadamente (1.º) nas ações relativas a
abalroação ou outros incidentes de navegação. Não podemos deixar de chamar a atenção
para a mesma, está o regime da CLC 1992, cujo artigo IV estabelece que quando ocorrer
um evento no qual estejam envolvidos dois ou mais navios e do qual resultem prejuízos
devidos à poluição, os proprietários dos navios envolvidos devem ser, sob reserva do
disposto no artigo III, solidariamente responsáveis pela totalidade do prejuízo que não
for razoavelmente divisível.
4. O regime aplicável à abalroação10:
a. Abalroação fortuita; a presunção de fortuitidade: diz o artigo 664 CCom que
«ocorrendo a abalroação de navios por acidente puramente fortuito ou devido
a força maior, não haverá direito de indemnização». Para este efeito, o caso
fortuito e o de força maior têm o mesmo valor. É claramente a lógica do
princípio casum sensit dominus, de acordo com o qual os danos serão
suportados pelo lesado – regra da suportação pela própria esfera onde
ocorram – o que, em geral, acontece quando não é identificado o lesante ou,
sendo-o, a conduta deste não é a molde a permitir a imputação. Conforme
explica Brandão Proença, tal princípio, «o primeiro na ordem natural das coisas,
não deixa deslocar da esfera do lesado os chamados danos fortuitos
relacionados com acontecimentos exteriores de tipo natural (tempestades, seca,
aluimento de terras, ciclone, etc.) ou, mais genericamente, deixa com o lesado
os danos sem um responsável». O artigo 664.º CCom é completado pelo artigo
669.º CCom: a abalroação presume-se fortuita, salvo quando tiverem sido
observados os regulamentos gerais de navegação e os especiais do porto. Ou
seja: quando não tenha havido inobservância dos regulamentos aplicáveis, o
ponto de partida é o caráter fortuito da abalroação: àquele a quem interessar,
deverá fazer a prova da culpa ocorrida. Nos casos em que tenha havido violação
de um regulamento – caso em que, repete-se, não funciona a presunção de
caso fortuito – caberá, então, àquele a quem a invocação do caso fortuito
aprouver, a respetiva invocação. O número de abalroações tidas como de caso
10 Brevíssima nota histórica: no Direito Romano, encontramos referências à figura da abalroação. Assim, nos fragmentos de Ulpiano, é clara a aplicação da responsabilidade aquiliana quando a abalroação fosse culposa. Quando a abalroação resultasse de tempestade ou de outra força maior, o navio abalroado não tinha já a actio legis Aquiliae contra o proprietário do navio abalroador. Cumpre destacar, entre outras fontes, o Consulat del Mar, apesar de só regular a abalroação no interior dos portos. Considera Bissaldo que, com o Consulat del Mar, é dado um passo significativo no sentido do conceito mais moderno da repartição do dano, não se ficando pelo judicium rusticorum de origem nórdica da repartição em partes iguais: a tarefa da divisão é cometida a peritos, de forma a que sejam tomadas em devia conta as circunstâncias do caso. A matéria da abordagem era regulada na Ordennance de Colbert de 1681, que estabelecia
«No caso de abordagem de Navios o damno será pago igualmente pelos Navios, que a tiverem feito, e soffrido, seja em viagem, seja em bahia ou porto».
Acrescentava, ainda: «Se todavia a abordagem tiver sido feita por falta de hum dos Mestres, o damno será reparado por quele que o tiver causado».
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fortuito é diminuto, graças ao facto de os navios possuírem características
técnicas especiais e de poderem contar com ajudas à navegação. O regime do
artigo 2.º CB 1910 coincide, no que à abalroação fortuita respeita, com o
regime do artigo 664.º CCom: se a abalroação tiver sido fortuita ou devido a
algum caso de força maior, os danos serão suportados pelos navios que os
houverem sofrido. Aparentemente, a coincidência não é total, já que o artigo
2.º CB 1910 só se preocupa, literalmente, com os danos nos navios.
Diversamente, a redação do artigo 664.º CCom é mais abrangente, uma vez
que estende o princípio casum sensit dominus a seca expressão «não haverá
direito a indemnização« não deixa dúvidas de que a previsão cobre, para além
dos navios, também as cargas e as pessoas. Parece-nos, porém, que estas
diferenças de redação não correspondem a diferenças de regime. O §2.º do
artigo 2.º CB 1910 pode suscitar, porém, alguma perplexidade, ao estabelecer
que «esta disposição é aplicável ao caso de estarem fundeados os navios ou só
um deles, na ocasião do sinistro». A dúvida que se poderia suscitar, face à
versão em língua portuguesa, é sobre se o regime estabelecido no §1.º só tem
aplicação nos casos em que um ou ambos os navios estejam fundeados; a ser
assim, nos casos em que a colisão ocorra no alto mar, sendo a mesma acidental
ou provocada por força maior, não haveria regime específico na Convenção. A
dúvida não tem, porém, fundamento, conforme se pode ver, claramente,
consultando a versão em língua inglesa ou em língua francesa: o que é
estabelecido no §2.º é que o regime consagrado no §1.º é aplicável ainda que
(nowithsanding the fact; Cette disposition reste applicable dans le cas) os navios
– ou só um deles – estejam fundeados. Não poderia, alías, ser de outro modo.
b. Abalroação culposa
i. Culpa de um dos navios:
1. Regime do Código Comercial e da Convenção de Bruxelas de
1910: de acordo com o artigo 665.º CCom, se a abalroação for
causada por culpa de um dos navios, os prejuízos sofridos
serão suportados pelo navio abalroador. O regime do artigo
665.º CCom, consagrado também no artigo 3.º CB 1910, não
causa nenhuma perplexidade, sendo claramente explicável à
luz da responsabilidade aquiliana, cujos requisitos constam do
artigo 483.º CC – regime que se aplica na integralidade, tendo
de considerar-se, depois, o disposto no artigo 562.º e
seguintes CC, em relação à obrigação de indemnização. Refere
a doutrina que a culpa tanto pode resultar de ação como de
omissão. Melhor será dizer que a apreciação da culpa deverá
ser feita independentemente de o facto se ter traduzido numa
ação ou numa omissão. Aliás, a referência quer à ação quer à
omissão surge feita na doutrina em sede do requisito facto
voluntário do agente e não a propósito da culpa que é,
analiticamente, um posterius. A culpa que pode estar em causa
tanto se pode traduzir em dolo quanto em negligência,
admitindo-se – no caso de negligência consciente – a aplicação
do regime do artigo 494.º CC: a indemnização, pautada que é
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pela teoria da diferença, pode ser fixada em quantidade
inferior aos danos, limitação essa que aproveita também ao
proprietário ou armador, objetivamente responsável. A
referência a abalroações por culpa dos navios é usual e tem
mesmo expressa previsão na letra dos artigos 665.º e 666.º
CCom, bem como nos artigos 3.º e 4.º CB 1910. Não sendo o
navio pessoa jurídica, a expressão não pode deixar de ser
entendida em sentido metafórico. A culpa que está em causa
tanto pode ser do capitão ou de outro membro da tripulação,
como , v.g., do piloto ou mesmo de alguém (como o
proprietário ou o armador) que não esteja, no momento do
sinistro, em condições efetivas – operacionais – de determinar
a navegação e rumo do navio ou as suas manobras. Sendo
plúrimas as situações possíveis de imputação subjetiva,
dobradas ou não por imputação objetiva, como a do artigo 4.º
DL 202/98, 10 julho, a expressão culpa do navio acaba por ser
fortemente sugestiva e, nessa medida, positiva. A
consideração da culpa do navio passa por um juízo de cotejo
ou confronto com aquele que é exigido a um capitão, a um
piloto ou a um profissional marítimo competente. A Regra 2.ª
do COLREG faz precisamente apelo à experiência normal do
marinheiro e às circunstâncias especiais de cada caso:
nenhuma disposição das Regras servirá para ilibar qualquer
navio ou seu proprietário, comandante ou tripulação das
consequências de qualquer negligência quanto à aplicação das
Regras ou quanto a qualquer precaução que a experiência
normal de marinheiro ou as circunstâncias especiais do caso
aconselhem a tomar.
2. Presunção de culpa? O artigo 6.º - II CB 1910 é expresso no
sentido da inexistência de uma presunção de culpa quanto à
responsabilidade por abalroação11. A questão que se coloca é
a de saber se, no Direito interno, face ao regime específico do
Código Comercial e ao geral do Código Civil, é possível
identificar presunções de culpa, como ocorre, por exemplo, no
artigo 493.º, n.º2 CC. No que respeita ao Código Comercial, a
questão centrar-se-á no já referido artigo 669.º que, como
vimos, estabelece uma presunção de fortuitidade, aplicável
apenas nos casos em que não tenha havido violação dos
regulamento. Pode extrair-se do mesmo artigo 669.º uma
presunção de culpa aplicável apenas nos casos em que não
11 A origem da regra é situada na prática jurídica inglesa anterior à CB 1910 que se pretendia afastar: estabelecia que quando um navio infringia uma regra de navegação imediatamente antes da abalroação presumia-se culpado, podendo, porém, provar que as circunstâncias do caso exigiam que infringisse a regra. Referem Gabaldón Garcia / Ruiz Soroa, que o que era verdadeiramente presumido era a relação de causalidade entre a infração e o resultado danoso; mais entendem que esta presunção é a que é tida em vista no artigo 6.º CB 1910, sendo necessário demonstrar que a infração cometida teve relevância causal na abalroação, já que entre a infração e o sinistro pode ter havido infração do outro navio que interrompa o nexo de causalidade ou pode tratar-se de culpa sine efectu.
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tenha havido violação dos regulamentos. Pode extrair-se do
mesmo artigo 669.º uma presunção de culpa aplicável aos
casos em que tenha havido violação de um regulamento da
navegação ou de um porto? Não vemos tal conclusão como
possível: o estabelecimento de uma presunção de culpa
suporia, pela sua excecionalidade face ao regime geral, uma
específica e inequívoca previsão legal, o que, no nosso
entender, não acontece no artigo 669.º CCom. A dúvida está
em saber se a navegação marítima constitui uma atividade
perigosa para efeitos do disposto no artigo 493.º, n.º2 CC,
disposição na qual tem sido identificado um nível mais objetivo
de responsabilização face ao que acontece nas presunções
paralelas (v.g. do artigo 493.º, n.º1 CC). Na doutrina, Antunes
Varela não tem dúvidas em considerar a navegação marítima
– tal qual, aliás, a aérea – como atividade perigosa. Na
apreciação, pela jurisprudência, do problema, o STJ, no
Acórdão 29/11/1977, onde uma grua grua flutuante estava
amarrada num dos cais de Lisboa quando, devido ao vento que
soprava, partiu as amarras e subiu o Tejo, abalroando,
sucessivamente, vários navios, entendeu carecer de
fundamento a pretensão de que o artigo 669.º CCom teria sido
revogado pelo artigo 493.º, n.º2 CC, uma vez que a lei geral
não revoga a lei especial, não estando revelada intenção
inequívoca do legislador no sentido da revogação, conforme
impõe o artigo 7.º, n.º3 CC. Para o STJ, «no que respeita à
presunção da natureza fortuita do abalroamento, prevista
especialmente no citado artigo 669.º, nada revela que o
legislador tivesse pretendido substituí-la pela presunção
oposta da culpa do causador do dano, estabelecida no n.º2 do
citado artigo 493.º». No Acórdão 30/11/2004, a situação que
originou a formulação do pedido de indemnização foi uma
colisão entre duas motos de água, que integram o conceito de
embarcações de recreio, par efeitos do Regulamento da
Náutica de Recreio. O STJ equacionou a aplicação, ao caso, da
CB 1910 ou das disposições do CCom em sede de abalroação,
tendo afastado a aplicação daquela, por força do seu artigo
12.º - II, §2.º, que manda aplicar a lei nacional quando todos
os interessados, bem como o tribunal que houver de julgar o
feito, pertencerem ao mesmo Estado. Pese embora considerar
pacífica tal aplicação, o STJ afastou-se claramente da doutrina
que desenvolvera no acórdão anteriormente mencionado, ao
considerar aplicável à navegação com motos de água a
presunção de culpa do artigo 493.º, n.º2 CC: «atendendo às
características das motos de água, de modo particular à sua
potência e rapidez, ao tipo de contracto com a água quando
em circulação e à grande mobilidade, trata-se de meio em que
os perigos que genericamente a navegação comporta se
encontram em grau fortemente elevado; reflexo disso ou não,
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o certo é ainda o Regulamento da Náutica de Recreio ter
disposto a seu respeito de limitações que para as outras
Embarcações de Recreio condicionou menos (artigos 49.º e
50.º) deve considerar-se, como bem qualifica a sentença, como
atividade perigosa, pela sua própria natureza, a prática
desportiva consistente na sua circulação, o que torna aplicável
o disposto no artigo 493.º, n.º2 CC». Uma vez que, no caso, a
colisão se dera entre duas motos de água, o STJ entendeu
aplicável a presunção de culpa a cada um dos intervenientes,
considerando as culpas equivalentes, já que nenhum dos
intervenientes lograra ilidir a respetiva presunção de culpa. A
importância deste aresto do STE decorre, por um lado, do
aparente reconhecimento da navegação como atividade
perigosa («os perigos que genericamente a navegação
comporta») e, por outro, da total desconsideração da anterior
argumentação do mesmo STJ, no acórdão 29/11/1997,
argumentação essa centrada na especialidade do regime do
artigo 664.º CCom face ao regime da responsabilidade do CC,
designadamente o seu artigo 493.º, n.º2. Considerando,
embora, aplicável ao caso o regime da abalroação do Código
Comercial, o STJ não logrou explicar – nem o tentou, aliás – a
desconsideração a que votou o regime constante do artigo
664.º e seguintes, designadamente o artigo 669.º que alberga
uma presunção de fortuitidade. No nosso entender, como
ponto de partida e independentemente das situações de
abalroação, se questionarmos se a atividade de navegação
marítima constitui uma atividade perigosa, não podemos
deixar de deixar expressa a nossa inclinação nesse sentido:
quer em função da sua natureza quer em função dos meios
utilizados, a atividade de navegação marítima é uma atividade
que envolve um especial perigo de produção de danos,
cabendo àquele que a exerce demonstrar que empregou todas
as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os
prevenir. Somos, assim, favoráveis ao enquadramento da
atividade de navegação marítima no âmbito da previsão do
artigo 493.º, n.º2 CC. Simplesmente, no que à abalroação
concerne, existe um regime especial estabelecido a nível
internacional na CB 1910 e, a nível interno, no artigo 664.º e
seguintes do Código Comercial, regime esse que afasta o
regime do Código Civil. Diversamente do regime geral de
presunção de culpa, que flui do artigo 493.º, n.º2, no campo
da abalroação o regime regra é, antes, o da presunção de caso
fortuito, do artigo 669.º CCom, conquanto a mesma só seja
aplicável aos casos em que tenham sido observados os
regulamentos gerais da navegação e os especiais do porto.
Assim, há uma clara contraposição de regime entre uma
presunção de culpa e um presunção de fortuitidade. Assim
sendo, consideramos aplicável o regime geral da presunção de
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culpa do artigo 493.º, n.º2 CC nos casos que não devam ser
considerados como abalroação para o Código Comercial. Uma
objeção se poderia, nesta sede, suscita: a de saber e não será
aplicável à abalroação o disposto no artigo 5.º, n.º1 DL 384/99,
23 setembro, que onera o capitão, comissário do armador,
com uma presunção de culpa – presunção essa que ele pode
ilidir, podendo também fazer atuar a relevância negativa da
causa virtual ou hipotética. Julgamos, porém, que essa
presunção – que oneraria, de reto, os capitães dos navios
envolvidos – não atua no campo específico da abalroação,
atenta a já referida existência de um regime especial. Face ao
exposto diríamos que na colisão de uma moto de água contra
um banhista funcionará a presunção de culpa do artigo 493.º,
n.º2 CC, mas já não a abalroação entre duas embarcações,
caso em que o regime geral do Código Civil é prejudicado pelo
regime especial do Código Comercial. Resta, porém, como
campo de indagação, o da existência de presunções de culpa
derivadas das regras da experiência.
3. Presunção com base no id quod plerumque accidit: a doutrina
tem aludido, quer face ao Código Comercial quer face à CB
1910, a ressunções de facto, baseadas na experiência, lendo-
se em Azevedo Matos: «o vício próprio do navio abalroador, a
falta de luzes, a amarragem em local proibido, a ausência de
sinais indicando o rumo, a omissão de sinais fónicos, a
velocidade excessiva em nevoeiro, a falta de assistência em
seguida ao choque, etc., são presunções de culpa». Lê-se, por
sua vez, em Joaquim Crisóstomo: «o capitão que for menos
zeloso e proceder com negligência, deixando de observar os
regulamentos marítimos, torna-se responsável por todos os
prejuízos que causar, em virtude de qualquer falta,
irregularidade, ou imprevidência que cometer». Como é sabido,
as presunções naturais, simples ou hominis, a que o artigo
351.º CC chama judiciais, são provas de primeira aparência
(prima facie), baseadas nas regras da experiência, que
correspondem à res ipsa loquitur do Common law. O
funcionamento da presunção é assim explicado por Menezes
Cordeiro: «O juiz, na base do id quod plerumque accidit (o que
normalmente sucede) ou prima facie (na primeira aparência)
infere conexões normais ou sequências típicas de factos». Lê-
se, por sua vez, em Calvão da Silva: «O juiz, no seu prudente
arbítrio, deduz de facto provado (…) a culpa (…) porque o quod
plerumque accidit ou experiência comum (Common knowledge)
lhe ensina que aquele é habitualmente indício desta, que
normalmente entre aquele e esta há conexão ou ligação, que
geralmente aquele não ocorre(ria) na ausência desta». Adverte,
finalmente, Carneiro da Frada que a base da experiência usual
«não se reduz meramente à (subjetiva) do julgador, antes
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abrange aquela que é comum a uma comunidade». Quanto à
neutralização da prova prima facie, considera Calvão da Silva
que a mesma se basta com «simples prova contrária, que torne
incerta a sua existência». Há um conjunto de regras práticas
que funcionam como presunções de facto. Trata-se, como
dizem, Gabaldón Garcia / Ruiz Soroa, de apresentação de
factos que, ligados a certas regras da experiência, permitem
suspeitar que a culpa é a de um dos navios. Quanto à regra
designada por last oportunity rule – de acordo com a qual a
culpa recairá sobre o navio que teve a última oportunidade
para evitar o choque e que, por infringir uma regra de
navegação, não a conseguiu – consideram Gabaldón Garcia /
Ruiz soroa que se trata de uma regra «muy practicona e
grosera, que tinde a ser abandonada modernamente, a favor
de un análisis no cronológico sino causativo de las infracciones
cometidas por cada buque». No acórdão 13/11/1970, o STJ
concluiu pela existência de culpa, «baseada em regra de
experiência e não em norma de direito». No Acórdão
29/11/1970 (caso da grua flutuante), o STJ teve de se
pronunciar sobre se a inobservância de regulamentos gerais da
navegação ou dos especiais do porto teriam o efeito de o
abalroador se dever supor culpado numa lógica de presunção
de facto. O STJ admitiu que tal conclusão pudesse ser possível
mas afastou-a, no caso, por entender que a mesma envolvia
matéria de facto, subtraída aos poderes cognitivos do tribunal
de revista: «esta solução funda-se na jurisprudência pacífica de
que envolve matéria de facto apurar a violação das regras
gerais de prudência em que se funde a obrigação de
indemnizar». O escrupuloso cumprimento dos regulamentos
pode não afastar a culpa do navio; adverte-o, de resto, a Regra
2.b do COLREG, de acordo com a qual, na interpretação e
aplicação das regras devem ser tidos em conta todos os
perigos da navegação e os riscos de abalroamento, bem como
as circunstâncias particulares, nomeadamente as limitações de
utilização dos navios em causa, que podem tornar necessário
o não cumprimento exato das Regras para evitar um perigo
imediato. As Regras nem sempre são suficientemente precisas
de modo a permitirem conclusões seguras em sede de culpa.
Observa e bem Azevedo Matos que o respeito escrupuloso
pelos regulamentos internacionais e locais não afasta
automaticamente a responsabilidade do navio: «O
abalroamento pode ser culposo se o capitão, observando todos
os regulamentos, não precedeu, contudo, a manobra,
conforme a experiência marítima o aconselhar e conforme as
circunstâncias, para evitar a colisão ou atenuá-la, se o podia
fazer». Há, por outro lado, casos em que tem sido entendido
que a realização de uma manobra por um navio em termos
contrário a um regulamento não envolverá a culpa da sua
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parte; assim acontece nos casos de manobras in extremis ou,
digamos, “em estado de necessidade – in agony of collision.
Como diz Azevedo Matos, a manobra in agony of collision é a
feita em presença de perigo iminente de abalroamento: «é
princípio admitido, em geral, que quando um barco comete
erro de manobra, no instante preciso em que a colisão está
iminente, por causa de ato culposo de outro, a
responsabilidade dessa falsa manobra recai sobre este último».
Ainda segundo este autor, «a manobra de última hora não é só
aquela que é feita quando a abalroação é inevitável, mas
também a praticada quando é razoável supor que o
abalroamento é por tal forma iminente que o perigo é palpável
e ela se impõe».
4. Culpa e mau estado de navegabilidade do navio: o caráter
culposo da abalroação pode decorrer do mau estado de
navegabilidade do navio. Ou seja, ainda que não haja culpa do
capitão, se o navio estiver em mau estado de navegabilidade,
tal situação pode conduzir, em concreto, a um juízo de culpa.
Lê-se em Azevedo Matos que «pode haver abalroação culposa,
mesmo sem culpa do capitão, quando o navio estiver em mau
estado de navegabilidade, não obedecer rapidamente aos
comandos, tornar morosa e difícil a manobra, quer pelo mau
estado das máquinas, dos aparelhos de governo, quer por
outro vício próprio, cabendo então a responsabilidade ao
armador».
ii. Concurso de culpas dos navios envolvidos: o artigo 66.º CCom prevê que,
havendo culpa de ambos os navios, se forma um capital dos prejuízos
sofridos, o qual será indemnizado pelos respetivos navios, em
proporção à gravidade da culpa de cada um. O artigo 666.º reporta-se
literalmente ao caso de culpa de ambos os navios mas o mesmo regime
é, obviamente, de aplicar no caso de envolvimento culposo de mais do
que dois. As faltas de cada um dos artigos não precisam de ser do
mesmo tipo (cada um violou uma específica e diversa norma
regulamentar) nem precisam ser simultâneas, sem prejuízo de poder
relevar o tempo decorrido, em sede de graduação da culpa. A
determinação da proporção da gravidade da culpa de cada navio é uma
questão delicada que pertence ao tribunal fixar, numa operação de
algum modo semelhante Àquela que ocorre em sede de colisão de
veículos (artigo 506.º CC). E se não for possível atribuir a proporção da
culpa de cada um? Entre nós, Azevedo Matos considera que os danos
se repartem por metade, invocando o próprio artigo 666.º. Parece-nos
avisada a posição de Azevedo Matos, que é aqual que corresponde aos
princípios gerais e que está também consagrada no artigo 4.º CB.
Estamos, naturalmente, a pressupor que há culpa de ambos os navios;
se assim não for, então teremos o caminho aberto para eventual
aplicação do regime do artigo 668.º. Quanto aos prejuízos causados a
terceiros, máxime carregadores, eles estão indicados na previsão do
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artigo 666.º CCom: cada navio responderá na proporção da gravidade
da culpa respetiva, constituindo o regime do artigo 666.º CCom um
regime especial em relação ao regime geral do artigo 497.º CC, do que
resultaria a responsabilidade solidária das «várias pessoas responsáveis
pelos danos». Posição diferente era sustentada por Cunha Gonçalves
para quem, relativamente às cargas e às pessoas que estavam a bordo,
os navios respondem solidariamente pela totalidade dos prejuízos
«como no caso de ser duvidosa a culpa, aplicando-se por analogia a 2.ª
parte do artigo 668.º». A posição defendida por Cunha Gonçalves não
nos parece sustentável: o artigo 666.º CCom tem um âmbito de
aplicação próprio, diferente do traçado no artigo 668.º para a
abalroação duvidosa, estabelecendo um regime próprio, onde não é
possível identificar uma lacuna cuja integração permita suscitar a
aplicação do regime do artigo 668.º - regime que, de resto, pressupõe
a inexistência ou, pelo menos, o não apuramento de culpa, que é um
pressuposto da aplicação do artigo 666.º. Aliás, é bem evidente a
diferença de redação entre os artigos 666.º e 668.º CCom, com o
segundo a consagrar um regime de solidariedade, mas num quadro
claramente diferente do do âmbito de aplicação do primeiro. O artigo
666.º CCom consagra, assim, um regime de parciariedade em sede de
responsabilidade, face, v.g., aos carregadores 12 . Vejamos agora o
regime do artigo 4.º CB 1910. De acordo com o §1.º, sendo a culpa
comum, a responsabilidade de cada um dos navios é proporcional à
gravidade das culpas respetivas. Contudo, se em face do caso, não for
possível estabelecer-se a proporção, a responsabilidade é partilhada
em partes iguais; idêntico regime é aplicável se as culpas se mostrarem
12 Para tentar obter ressarcimento integral pelos danos causados à mercadoria transportada no navio A, culpado em 70%, os carregadores respetivos terão de demandar também o navio B, culpado em 30%, já que, de outro modo, apenas lograrão obter 70% da indemnização devida. O problema deste regime é que o transportador A pode, em função do regime aplicável, ter uma causa de exoneração de responsabilidade, v.g., por a abalroação estar abrangida no elenco dos excepted perils do artigo 4.º, n.º2 CB 1924, relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimentos de carga, circunstância que determina, pelo menos prima facie, que o carregador apenas poderá exigir indemnização ao navio B, indemnização essa que, pautando-se pelo regime da parciariedade e não da solidariedade, será determinada pela medida da culpa, o que significa que, no exemplo referido, estará limitada a 30% dos danos apurados. Ou seja, estamos perante um claro concurso da responsabilidade extra obrigacional com as regras da responsabilidade obrigacional – problema cadente em sede geral de responsabilidade civil – problema que, in casu, parece dever ser resolvido, no que concerne às relações entre o carregador e o seu navio, pela prevalência do regime do transporte, em detrimento do funcionamento da responsabilidade extra obrigacional: não faria, de facto, sentido que o navio A tivesse que satisfizer 70% do valor da indemnização para, depois – e só depois, numa lógica de solve et repete, fazer atuar a exclusão de responsabilidade por falta náutica, face ao regime da CB 1924. Ora, precisamente para evitar que um navio que, à partida, poderia excecionar a exclusão da sua responsabilidade, seja, depois, responsável, é que quer nas cartas-partidas quer nos conhecimentos de embarque é amiúde a cláusula both to blame colision, que permite ao navio transportador exigir, em regresso (sucessivamente, será um segundo regresso, só que o sujeito ativo do segundo é o sujeito passivo do primeiro) ao carregador a indemnização que tenha tido de satisfazer ao outro navio interveniente na abalroação. Como explica Carbone, o escopo da cláusula é evitar para o armador um ónus económico não devido com base no contrato de transporte, no caso em que a lei reguladora da ação extracontratual contra o outro navio preveja a responsabilidade solidária do dois armadores em relação aos proprietários das mercadorias.
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equivalentes. De acordo com o §2.º, os danos causados (aos navios,
aos seus carregamentos, aos efeitos ou outros bens das tripulações,
dos passageiros ou demais pessoas que se encontrem a bordo) são
suportados pelos navios culpados na proporção referida no §1.º, sem
solidariedade relativamente a terceiros. Podemos dizer, assim, que até
ao seu §2.º inclusive, o regime do artigo 4.º CB 1910 consagra, tal como
no artigo 66.º CCom, um regime de parciariedade. Esta parciariedade
é, porem, excecionada no §3.º, no sentido da solidariedade, quando
haja danos pessoais (morte ou ferimentos), sem prejuízo do direito de
regresso daquele que haja pago uma quantia superior àquela que
deveria suportar, de acordo com o critério do §1.º do mesmo artigo (a
propósito, também o artigo 7.º, §2.º, no que concerne à prescrição).
Note-se, porém, que haverá que considerar o regime da Convenção de
Bruxelas de 10 de outubro de 1957, sobre responsabilidade de
proprietários de navios de alto mar. O §4.º, finalmente, comete às
legislações nacionais a determinação, no que concerne ao regresso, do
alcance e efeitos das disposições contratuais ou legais que limitem a
responsabilidade dos proprietários dos navios para com as pessoas que
se encontram a bordo. Ressalta, portanto, do regime do artigo 4.º CB
1910 a constatação de que, com exceção das situações de danos e
ferimentos a terceiros – nas quais existe uma responsabilidade
solidária dos navios envolvidos na abalroação – o regime da CB é
harmónico com o do artigo 66.º CCom. Também neste campo se
suscitam as questões relativas ao concurso de responsabilidade extra
obrigacional com a obrigacional, sendo que, no âmbito de aplicação da
Convenção, o artigo 10.º dá força à posição acima adotada no âmbito
interno:
«Sob reserva de ulteriores convenções, as presentes
disposições não alteraram as regras sobre limitação de
responsabilidade dos proprietários de navios, tais quais se
acham estabelecidas em cada país, nem tão pouco as
obrigações resultantes do contrato de transporte ou de
quaisquer outros contratos».
c. Abalroação duvidosa: o artigo 668.º CCom permite autonomizar, ao lado dos
tipos de abalroação já referidos, ainda a abalroação duvidosa, a qual acontece,
de acordo com a letra do artigo, «havendo dúvida sobre qual dos navios deu
causa à abalroação». Se for esse o caso, determina do artigo 668.º que cada
navio suporta os prejuízos que sofreu, acrescentando, porém, que todos
respondem solidariamente pelos prejuízos causados às cargas e às pessoas.
Importa, em primeiro lugar, frisar que a própria delimitação do conceito de
abalroação duvidosa é, digamos, duvidosa, sustentando Joaquim Crisóstomo
que a mesma acontece quando há «impossibilidade de se determinar qual dos
dois navios foi o culpado», enquanto que Azevedo de Matos entende que é
aquela «cuja causa é inescrutável». A autonomização da abalroação duvidosa
ao lado da abalroação fortuita e da abalroação culposa não é comum nas
legislações, não sendo por acaso que o artigo 2.º CB 1910 dá aos casos em que
«houver dúvidas sobre as causas da abalroação» exatamente o mesmo
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tratamento que dá aos casos de abalroação fortuita, ou seja: os danos são
suportados pelos navios que os houverem sofrido. A doutrina portuguesa é algo
nebulosa e até contraditória sobre a interpretação a dar ao artigo 668.º: este
não tem aplicação, parece-nos, no caso de haver culpa de ambos os navios e
não se saber ou poder determinar a proporção das culpas em causa. Nesse caso,
a lógica que parece resultar do artigo 666.º é que a proporção é tida por igual
(é essa também, como vimos, a lógica do artigo 4.º CB). A primeira dúvida que
se pode suscitar é a de saber se, a nível de regime, há alguma diferença entre
a abalroação duvidosa e abalroação fortuita, na qual, como vimos, cada navio
suporta os seus próprios danos. A diferença de regimes parece-nos clara:
enquanto que na abalroação fortuita não há lugar a qualquer indemnização
quer aos navios quer às cargas quer ainda às pessoas, na abalroação duvidosa
é feita uma cisão a nível de regime: quanto aos navios funciona a lógica casum
sensit dominus mas quanto às cargas e às pessoas é estabelecido um regime de
responsabilidade solidaria. Ora, é precisamente a circunstância da
responsabilidade solidária consagrada no artigo 668.º que impõe a
autonomização, no direito interno, da abalroação duvidosa, não podendo,
porém, deixar de se reconhecer que a mesma tem um difícil campo de
delimitação face à abalroação fortuita. O critério para determinar o caráter
duvidoso da abalroação não pode, no nosso entender, deixar de ser o seguinte:
a abalroação duvidosa é aquela em que não foi possível apurar o caráter
fortuito ou culposo. O regime da abalroação duvidosa acaba, assim, por ser
subsidiário em relação ao da abalroação fortuita e ao da balroação culposa.
Afastamo-nos, deste modo, da posição de Cunha Gonçalves, para quem «a
espécie jurídica de que se trata agora é a de haver certeza de que a abalroação
foi culposa, ou não foi acidental, mas não se ter conseguido apurar se a culpa
foi comum ou a qual dos navios é imputável». O artigo 668.º prevê, nos casos
em que tenha aplicação indemnização pelos prejuízos causados às cargas e às
pessoas, funcionando em termos de solidariedade. Independentemente das
reservas que possam ser colocadas à solução legal, a mesma é incontornável,
não podendo, contudo, deixar de se assimilar o facto de se verificarem, nesta
sede, dificuldades similares àquelas que vimos supra, em sede de abalroação
culposa, no que respeita às responsabilidades de cada navio interveniente em
relação às cargas que transporta.
5. O regime aplicável às pessoas transportadas em virtude de contrato de transporte de
passageiros por mar: limitando-nos ao Direito material português, importa, em primeiro
lugar, atentar ao regime base da responsabilidade por danos pessoais, constante do
artigo 14.º DL 349/86, 17 outubro, diploma que regula o contrato de transporte de
passageiros por mar. Diversamente do que a isolada redação do n.º1 do artigo poderia
fazer supor, o artigo 14.º DL 349/86 consagra, a final, um regime típico de
responsabilidade extra obrigacional, quando o que seria ictu oculi lógico seria o da
presunção de culpa, consagrado, genericamente, no artigo 799.º, n.º1 CC, em sede de
responsabilidade obrigacional. De acordo com o artigo 14.º, n.º1, o transportador
«responde pelos danos que o passageiro sofra no navio, durante a viagem, e ainda pelos
que ocorram desde o início das operações de embarque até ao fim das operações de
desembarque, quer nos portos de origem, quer nos portos de escala». À primeira vista,
o artigo 14.º, n.º1 albergaria uma situação de presunção de culpa – plenamente
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consentânea com o facto de nos situarmos no âmbito de uma situação de origem
contratual – se não mesmo perante uma responsabilização objetiva. Contudo, o n.º2
do artigo refreia qualquer dessas interpretações, cometendo ao lesado – como nos
termos gerais da responsabilidade aquiliana (artigo 487.º, n.º1 CC9 – o ónus de provar
a culpa do transportador ou dos seus auxiliares. Há, no regime do artigo 14.º, uma
cadência interessante: admite-se a responsabilidade do transportador, se o lesado
demonstrar que o navio não estava em estado de navegabilidade convenientemente
armado, equipado e aprovisionado para a viagem; a partir daqui, inverte-se o ónus da
prova: o transportador exonera-se de responsabilidade – no fundo, ilide a presunção
de culpa associada à situação do navio – se fizer a prova de que procedeu de modo
adequado e diligente à observância das condições de segurança impostas pelos usos,
regulamentos e convenções internacionais. O artigo 15.º do mesmo DL 349/86 introduz
aquilo que podemos considerar um regime especial quando os danos no passageiro
sejam consequência de um dos seguintes acontecimentos de mar: naufrágio,
abalroação, explosão ou incêndio do navio. Nestes casos, o artigo 15.º, n.º1 consagra a
responsabilidade do transportador, em termos similares aos da redação do artigo 14.º,
n.º1, para os danos pessoais em geral. Contudo, numa solução diversa da constante do
artigo 14.º, n.º2, o artigo 15.º, n.º2, ao estabelecer que incumbe ao transportador
provar que os acontecimentos de mar não resultaram de culpa sua ou dos seus
auxiliares, deixa claro que estamos perante uma presunção legal de culpa, consentânea
com a estabelecida no artigo 799.º, n.º1 CC. A presunção de culpa consagrada no artigo
15.º, é, no que tange concretamente à matéria da abalroação – sendo que a conclusão
valerá também para os demais acontecimentos de mar referidos no artigo 15.º, n.º1 –
uma presunção interna, circunscrita às relações entre o transportador e o passageiro13.
6. Outras questões em sede de responsabilidade civil:
a. Verificação dos requisitos gerais da responsabilidade aquiliana: conforme
resulta do que vimos dizendo, a ocorrência de abalroação não determina,
necessariamente, o funcionamento do instituto da responsabilidade civil: para
que tal aconteça, é necessário que ocorra a cumulativa verificação dos diversos
requisitos ou pressupostos que a doutrina tem vindo a identificar em sede de
responsabilidade aquiliana. No que respeita ao cálculo dos danos e, logo, da
indemnização, há que considerar o regime do artigo 562.º e seguintes CC, no
que tange à obrigação de indemnização. Em decorrência da aplicação dessas
regras, tanto relevam os danos emergentes quanto os lucros cessantes, quer
em relação ao navio quer em relação à carga – tudo sem prejuízo da limitação
de indemnização que seja aplicável. Sendo possível a reparação, haverá que
considerar «o curso da reparação, despesas de assistência, reboque e salvação,
descarga, armazenagem, entrada e estadia em doca, peritagens,
reclassificação, salários e sustento da tripulação». Quanto aos lucros cessantes,
há que considerar o frete e a imobilização do navio. No caso de navios de pesca
o valor da indemnização será fixado em função das campanhas. Em aplicação
das regras gerais, haverá que considerar o regime da compensatio lucri cum
damno. O artigo 670.º CCom contém uma presunção (iuris tantum) quanto à
13 Não faria sentido, mais especificamente, sentido que o navio B, que não transporta passageiros, seja brindado com uma presunção de culpa do navio A, no que respeita á abalroação ocorrida entre ambos, pelo simples facto de este último transportar passageiros.
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dimensão do dano: se um navio avariado por abalroação de perde quando
busca porto de arribada para se consertar, presume-se ter sido a perda
resultante da abalroação. No fundo, o que o artigo 670.º estabelece é uma
presunção de nexo de causalidade – relevante para efeitos de responsabilidade
civil – entre o facto ou evento da abalroação e o dano subsequente ou sucessivo
da perda do navio. Àquele a quem a presunção não interessar, caberá o ónus
de a ilidir, demonstrando a ocorrência de uma situação ou evento idóneo ao
efeito de quebrar o nexo de causalidade. Uma situação objeto de alerta é a do
naufrágio provocado, tendo em vista a obtenção de uma indemnização
superior. Quanto à carga, ao seu valor, à partida seria aplicável o critério do
artigo 566.º, n.º2 CC – teoria da diferença – critério esse que, aparentemente,
se sobreporia, anulando-a, à polémica de que dá nota, por exemplo,
Vasconcelos Esteves: enquanto que para este autor, que invoca o ensinamento
de Rodière, o cálculo da indemnização deverá ser feito em função do preço das
mercadorias à data do julgamento – admitindo, porém, que, no caso de a vítima
ter substituído ou reparado as mercadorias perdidas ou avariadas, seja
considerado o preço pago nessa altura – já para Azevedo Matos a indemnização
deveria ser calculada com base no valor das coisas no porto de destino, no dia
da chegada ou daquele em que deveriam chegar. A consideração do valor das
mercadorias à data do julgamento conforme propõe Vasconcelos Esteves,
parece dar relevo ao disposto no artigo 566.º, n.º2 CC, ou seja «à data mais
recente que puder ser atendida pelo tribunal», imposta pela teoria da diferença.
Contudo, essa aparência não corresponde à realidade, já que a consideração
de tal data é em relação à «situação patrimonial do lesado», que não em
relação ao valor dos bens atingidos14. Ora, tratando-se de avarias na carga, a
dúvida está em saber se releva o valor da mesma no momento da abalroação
ou o valor que teria no porto de destino, conforme propõe Azevedo Matos.
Pensamos que alógica da expedição marítima impõe esta última solução, não
sendo por acaso que a mesma é expressamente consagrada nos lugares
paralelos constituídos pelo artigo 662.º CCom, em matéria de arribadas
forçadas e pelo artigo 11 DL 384/99, 23 setembro, no que concerne à
responsabilidade pelas coisas utilizadas a bordo. Advirta-se, porém, que não há,
neste particular, nenhuma afronta à teoria da diferença consagrada no artigo
566.º, n.º2 CC, teoria essa que é estabelecida em função, como vimos, do
apuramento do dano patrimonial e não do dano real. Assim, se o navio
abalroador, responsável pela abalroação, não indemnizar, em devido tempo, o
dono das mercadorias transportadas no navio abalroado, a medida da
indemnização é calculada de acordo com a teoria da diferença. Importa ainda
chamar a atenção para um ponto de particular importância: o facto de poder
haver regimes concretos de responsabilidade aquiliana numa mesma
abalroação em relação a sujeitos colocados, à partida, em situações idênticas15.
14 Dizendo de outra forma, o artigo 566.º, n.º2 estabelece uma diferença entre a situação patrimonial do lesado em dois momentos: um real – a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal – e um putativo – a que teria nessa data se não existissem danos. 15 Exemplificando com a carga, o carregador do navio A, poderá exigir ao navio B, único culpado na abalroação, indemnização pela totalidade dos prejuízos sofridos, mas o mesmo pode não acontecer,
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b. O terceiro navio: de acordo com o artigo 667.º CCom, sendo a abalroação
«motivada por falta de um terceiro navio e não pode prevenir-se, é este que
responde»; o artigo refere-se a uma situação (de abalroamento indireto) em
que intervêm pelo menos três navios, sendo a abalroação provocada por um
deles: está em causa saber quem suporta os danos ocorridos entre os outros
dois. Exemplo: o navio A abalroa o navio B que, em virtude do choque, abalroa
o navio C. O navio A suportará os danos sofridos pelos navios B e C. O artigo
667.º ressalva «e não pôde prevenir-se». A expressão tem em vista, segundo
Cunha Gonçalves, a posição de B, no exemplo, servindo para confirmar a
doutrina de que «o navio abalroador não se presume culpado» e de que
«haverá culpa comum se o abalroado ou não preveniu ou não evitou a colisão».
Uma questão já discutida na jurisprudência portuguesa é a da abalroação entre
um navio rebocador ou um navio rebocado e um terceiro navio. Assim, no caso
apreciado pelo STJ no Acórdão de 20/10/1964, foi considerado que a culpa da
abalroação pertencera ao rebocador e ao rebocado, sendo, por isso, ambos
condenados a reparar os danos sofridos no navio abalroado. O problema foi
analisado, entre nós, nomeadamente, por Cunha Gonçalves, que,
relativamente à situação em que a abalroação de um terceiro navio ocorre
enquanto os outros dois iam em reboque, depois de considerar necessário
distinguir as relações entre o rebocador e o rebocado e entre estes e o terceiro,
dá nota de diversas soluções adiantadas pela doutrina para determinar quem
irá suportar os danos sofridos pelo terceiro navio que não tenha tido culpa na
abalroação. Mais do que uma presunção de culpa, o artigo 10.º, n.º1 DL 431/86
parece consagrar uma presunção de imputação, a qual tem, seguramente, uma
coloração mais objetiva ou, se quisermos, menos subjetiva do que a primeira.
Na verdade, não bastará ao contraente que tenha a direção do trem de
reboque provar que não teve culpa: ele tem o ónus de provar que o facto
danoso não lhe é imputável, ou seja não lhe é atribuível ou devido –
independentemente de culpa. As soluções adiantadas são três:
i. A primeira vai no sentido da responsabilidade do rebocador e do
rebocado como um conjunto culposo;
ii. A segunda responsabiliza apenas o rebocador porque lhe cumpre
«efetuar em boas condições o reboque»;
iii. Na terceira deve responder o navio rebocado porque «é ele quem
dirige a manobra do rebocador». Assim, se o rebocador fez as
manobras conforme as ordens do capitão do navio rebocado, é este o
responsável. Se, pelo contrário, a manobra é dirigida somente pelo
capitão do rebocador, deverá este indemnizar o abalroado, sendo o
armador do navio abalroador responsável somente pelas faltas do
capitão e da tripulação do seu navio como é expresso no art. 492.º/3.
Se a manobra for da responsabilidade do piloto, aplicam-se as regras
concernentes à intervenção desta entidade. III. Actualmente, face ao
disposto no art. 10.º DL 431/86, a solução passa pela determinação da
parte do contrato de reboque que tem a direcção do trem de reboque.
na mesma situação, com o carregador no navio B, relativamente ao qual vale o regime resultante do contrato de fretamento ou de transporte.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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O princípio (art. 8.º/1) é o de que a direcção do trem de reboque
pertence ao contratante-rebocado, sendo exercida pelo capitão,
mestre ou arrais do rebocado. O art. 10.º/1 responsabiliza a parte a
quem pertencer a direcção do trem de reboque, pelos danos ocorridos
durante a execução do contrato, admitindo, porém, a prova de que os
danos ‘não resultam de facto que lhe seja imputável’. O art. 10.º/2 vem
coadjuvar a presunção do n.º1, ao presumir ordenada pela parte a
quem pertence a direcção do trem de reboque a manobra efectuada
pelo rebocador e pelo rebocado. Do disposto no art. 10.º/1 DL 431/86
resulta claro que, entre rebocador e rebocado, a responsabilidade
pelos danos que algum dos navios sofra é determinada em função da
direcção do trem de reboque (p.e.: quando um dos navios em operação
de reboque pare subitamente, sendo abalroado por outro). Contudo,
o art. 10.º/1 tem virtualidades aplicativas para além das estritas
relações entre rebocador e rebocado, como no caso em que é
abalroado um terceiro navio por um dos navios que integram o trem
de reboque, sendo, porém, essencial delimitar claramente as situações
em que o art. 10.º/1 tem aplicação. Assim, não faria sentido aplicar,
sem mais, a presunção do citado art. 10.º/1 no caso em que o navio A,
tendo a direcção do trem de reboque e que reboca o navio B, colida
frontalmente com o navio C: não há razão para beneficiar C com uma
presunção de que não beneficiaria se a colisão fosse contra o mesmo
navio A mas fora de uma operação de reboque. Mas já passará pela
consideração da presunção estabelecida no art. 10.º/1 a resolução de
situações de abalroação do navio rebocador pelo rebocado ou vice-
versa. O critério na delimitação do campo de aplicação do art. 10.º/1 e
da presunção aí estabelecida passa por uma determinada conexão de
causalidade com a operação de reboque: se o facto do reboque, in casu,
inadequado no processo tendente à abalroação, não funcionará a
presunção estabelecida no art. 10.º/1: a abalroação terá tido lugar por
ocasião do reboque mas não no âmbito ou no exercício do mesmo.
Mais do que uma presunção de culpa, o artigo 10.º/1 DL 431/86 parece
consagrar uma presunção de imputação, a qual tem, seguramente,
uma coloração mais objetiva ou, se quisermos, menos subjetiva do que
a primeira. Na verdade, não bastará ao contraente que tenha a direção
do trem de reboque provar que não teve culpa: ele tem o ónus de
provar que o facto danoso não lhe é imputável, ou seja não lhe é
atribuível ou devido – independentemente de culpa.
c. Abalroação entre sister ships: pode acontecer que a abalroação aconteça entre
dois navios pertencentes ao mesmo proprietário. Nesse caso, não haverá,
naturalmente, lugar a indemnização por parte do proprietário do navio A ao
proprietário do navio B, já que o lesante se confunde com o lesado. Subsiste,
no entanto, um extenso campo de aplicação das regras da responsabilidade
civil, desde logo no que respeita à ação de indemnização do proprietário contra
a pessoa responsável (membro da tripulação ou piloto). Assim, se foi o capitão
de um dos navios que, com a sua atuação culposa, deu causa à abalroação, esse
capitão responderá perante o proprietário dos navios pela totalidade dos danos
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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ocorridos. Por outro lado, no que respeita aos passageiros e à carga, subsiste o
regime de responsabilidade aplicável, como se os proprietários dos navios
fossem diferente. Assim, admitindo que a abalroação constitui um caso de falta
de náutica, para efeitos do regime da CB 1924 sobre conhecimentos de carga,
o carregador do navio A, sendo este culpado em 40%, só poderá exigir ao
proprietário do seu navio, não nessa qualidade mas na qualidade de
proprietário do navio B, uma indemnização correspondente a 60% dos danos,
na medida em que navio B seja culpado em 60% na abalroação. Finalmente, a
abalroação entre sister ships não prejudica o normal funcionamento do regime
dos seguros, situação que se torna particularmente evidente quando os navios
estão segurados em companhias diferentes.
d. Ação de indemnização: o artigo 673.º CCom estabelece que a abalroação por
perdas e danos resultante da abalroação de navios deve ser apresentada no
prazo de três dias à autoridade do lugar em que sucedeu ou do primeiro a que
aportar o navio abalroado, sob pena de não ser permitida. Lê-se no §único do
artigo que «a falta de reclamação, quando aos danos causados ás pessoas e
mercadorias não prejudica os interessados que não estavam a bordo e que se
achavam impedidos de manifestar a sua vontade». Porém, o artigo 6.º CB 1910
refere que a ação de perdas e danos sofridos por efeito do abalroamento não
depende nem de protesto nem de qualquer outra formalidade especial.
Parece-nos que o regime do artigo 673.º CCom, nos termos no mesmo
expressos, está ultrapassado – estando mesmo tacitamente revogado –
primeiro face à Lei 35/86, 2 setembro, e, depois, face ao regime dos artigo 13.º
e 14.º DL 384/99, 23 setembro. A Lei 35/86, que institui os tribunais marítimos,
revogou a alínea oo) do artigo 10.º do Regulamento Geral das Capitanias, que
cometias aos capitães dos portos resolver, entre outros, os litígios referentes a
(n.º2) «avarias marítimas e indemnizações devidas por danos produzidos ou
sofridos por embarcações ou outros corpos flutuantes». Também o Capitulo XI,
para onde remetia a citada alínea oo), respeitante a regras processuais, foi
quase integralmente revogado pela citada Lei 35/86. Não há, assim,
formalidades prévias impeditivas, se não realilzadas, de uma ação de perdas e
danos, cujo prazo de prescrição será o fixado no artigo 498.º CC, para a
responsabilidade aquiliana: três anos a contar d data em que o lesado teve
conhecimento do direito que lhe compete. Quando, porém, o regime aplicável
seja o da CB 1910, o prazo de prescrição das ações de indemnização que
tenham a abalroação como causa de pedir é de dois anos a contar do evento.
De acordo com o §2.º, é, porém, de um ano o prazo para intentar as ações de
regresso a que se refere o §3.º do artigo 4.º da mesma Convenção. Recorde-se,
finalmente, que, nos termos do artigo 13.º DL 384/98, 23/9, a abalroação é um
acontecimento de mar que deve dar lugar a um relatório de mar (Artigo 14.º),
a apresentar, em princípio, no prazo de 48 horas, calculado nos termos do
artigo 14.º, n.º3. A importância do relatório de mar, quando confirmado,
decorre, como vimos supra, do artigo 15.º, n.º7: os factos presumem-se
verdadeiros, salvo prova em contrário. O artigo 675.º CCom refere-se ao
tribunal competente para a ação, mas o mesmo encontra-se prejudicado pelo
artigo 79.º CPC, que o revoga tacitamente, sendo que o regime é muito
semelhante: «A ação de perdas e danos por abalroação de navios pode ser
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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proposta no tribunal do lugar do acidente, no do domicílio do dono do navio
abalroador, no do lugar a que pertencer ou em que for encontrado esse navio e
no do lugar do primeiro porto em que entrar o navio abandonado». Há, porém,
que considerar a procedência, quando a haja, das regras constantes da
Convenção Internacional para a unificação de certas regras relativas à
competência civil em matéria de abalroação, assina da em Bruxelas em 10 maio
1952 e aprovada para ratificação pelo DL 41.007, 16 fevereiro 1957. Da mesma
data e aprovada para ratificação pelo mesmo diploma interno, há ainda a
Convenção Internacional para a unificação de certas regras relativas à
competência penal em matéria de abalroação e outros acidentes de navegação,
também assinada em Bruxelas em 10 maio 1952.
e. A garantia do crédito de indemnização por abalroação: constituído o crédito de
indemnização por abalroação de um navio, estará esse crédito assistido de
privilégio creditório? É essa a conclusão a que chegamos por força e nos termos
do n.º4 do artigo 2.º CB 1926 – Convenção Internacional para a unificação de
certas regras relativas aos privilégios e hipotecas marítimos, assinada em
Bruxelas em 10 abril 1926 – que considera privilegiados «sobre o navio, sobre
o frete d viagem dura o crédito privilegiado e sobre os acessórios do navio e do
frete adquirido desde o início da viagem (…) as indemnizações por abalroação
ou outros acidentes de navegação, assim como por danos causados as obras de
arte dos portos, docas e vias navegáveis; as indemnizações por lesões corporais
aos passageiros e às tripulações; as indemnizações por perdas ou avarias da
carga ou de bagagens». O privilégio – que, de acordo com o disposto no artigo
6.º - I, não está limitado à última viagem do navio – extingue-se «pela expiração
do prazo de um ano» (artigo 9.º - I), correndo, no caso das indemnizações
decorrentes de abalroação e outros acidentes e das lesões corporais (artigo 9.º
- I) «desde o dia em que o dano foi causado». Importa, ainda, referir que, face
à CB 1952 – Convenção Internacional para Unificação de certas regras sobre o
arresto de navios de mar, assinada em Bruxelas em 10 maio 1952 – entre o
número de créditos marítimos constante da closed list do artigo 1.º,
encontram-se os «danos causados por um navio, quer por abalroação, quer por
outro modo».
7. Exclusão e limitação da responsabilidade do proprietário do navio: no domínio de
vigência do artigo 492 CCom, o seu n.º1 estabelecia a responsabilidade civil do
proprietário do navio «pelos atos e omissões do capitão e da tripulação», mas o §1.º do
mesmo artigo não incluía essas situações dentre daquelas que podiam originar o
abandono liberatório do navio e do frete ganho ou a vencer. Na verdade, o citado §1.º
só permitia o abandono liberatório (exceto no caso de obrigações contraídas para
pagamento de soldadas à tripulação) nas situações de responsabilidade do proprietário
(artigo 492.º, n.º2) «pelas obrigações contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua
expedição». Este regime era considerado ilógico por alguns autores, lendo-se em Viegas
Calçada: «Para as obrigações contraídas pelo capitão na sua atividade administrativa,
isto é, para aquelas obrigações que o próprio armador pode contrair, a lei concede a
este limite de responsabilidades por meio do abandono do navio e do frete; para os atos
técnicos de transporte e navegação, atos que o armador não pode ou não sabe praticar,
a lei não concede limitação de responsabilidade». Ainda para o mesmo autor, tal
situação «encerra algo de contrassenso e não se nos afigura nem lógica, nem justa, e
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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para mais contraria a proteção que todas as legislações dispensam aos
empreendimentos de tráfego marítimo». É neste ambiente crítico que Viegas Calçada
procura uma base legal para defender a limitação da responsabilidade do proprietário
no caso de abalroação, acabando por fundamentá-la nos artigo 665.º a 68.º CCom, na
acentuação que fazem da responsabilidade e culpa do navio, que não do seu
proprietário; lê-se, a certo passo: «parece assim que o legislador com a forma de dizer
que empregou, teve ideia e até propósito de tornar o dono somente responsável até ao
valor do navio, pois em outros passos do código, como nas arribadas e salvação – artigo
659.º e 689.º - faz referência expressa à responsabilidade do dono e do capitão». A
posição defendida por Viegas Calçada parece-nos dificilmente sustentável. Refira-se,
em primeiro lugar, que os artigo 659.º e 689.º CCom limitam expressamente a
responsabilidade do sujeito, o mesmo não acontecendo, no artigo 654.º s seguintes;
ora, isso pode querer significar exatamente o contrário do sustentado por Viegas
Calçada. Em segundo lugar, não é razoável supor que um aspeto de regime tão
importante quanto o é a limitação da responsabilidade possa ser apenas inferido de
expressões personificadoras do navio, expressões essas que, de resto, são usuais em
Direito Marítimo. O exposto não significa que não haja vias de limitação da
responsabilidade do proprietário do navio: o que pretendemos significar é que as
mesmas não se fundam no regime dos artigo 664.º a 675.º CCom: no Direito interno
português, há que considerar, agora, o regime do abandono liberatório consagrado no
artigo 12.º DL 202/98, 10 julho; a nível internacional, há que atentar, designadamente,
nas Convenções de Bruxelas de 1924 e 1957 sobre limitação da responsabilidade de
navios, na Convenção de Bruxelas de 1924.º relativa à unificação de certas regras em
matéria de conhecimento de carga ou na CLC 1992. De acordo com o estabelecido no
artigo 1.º CB 1924 para a unificação de certas regras relativas à limitação da
responsabilidade de navios do mar, o proprietário de um navio do mar só é responsável
até à concorrência do valor do navio, do frete e dos acessórios do navio pelas
indemnizações aí enumeradas, destacando-se, com interesse para a temática da
abalroação, os n.º1 e 2: pelas indemnizações devidas a terceiros por prejuízos causados,
em terra ou no mar, por factos ou faltas do capitão, da tripulação, do piloto, ou de
qualquer outra pessoa ao serviço do navio (n.º1); pelas indemnizações devidas por
prejuízos causados tanto à carga entregue ao capitão para ser transportada, como a
todos os bens e objetos que se achem a bordo (n.º2). Essa limitação de
responsabilidade não é aplicável, de acordo com o artigo 2.º, entre outras, «às
obrigações resultantes de factos ou faltas do proprietário do navio»; contudo (artigo 2.º
- II), se o proprietário ou comproprietário do navio for ao mesmo tempo o capitão, não
poderá invocar a limitação da sua responsabilidade em relação às faltas que cometer e
que não sejam de caráter náutico e às faltas das pessoas ao serviço do navio. Saliente-
se, ainda, o facto de, de acordo com o artigo 3.º, o ónus da prova do valor do navio, do
frete e dos acessórios do navio pertence ao proprietário que invocar a limitação da
responsabilidade. A data ou época a considerar na determinação do valor é indicada no
mesmo preceito. Substituindo e revogando a Convenção de Bruxelas de 1924, no que
respeita às relações entre os Estados que ratificaram ou aderiram à nova Convenção, a
Convenção de Bruxelas de 1957 – Convenção Internacional sobre limite de
responsabilidade dos proprietários de navios de alto mar – permite, no seu artigo 1.º,
n.º1, que o proprietário de um navio de alto mar limite a sua responsabilidade ao
montante determinado no artigo 3.º da mesma Convenção, em relação aos pedidos de
indemnização resultantes de qualquer das causas enumeradas nas suas diversas alíneas,
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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a menos que o motivo que deu origem ao referido pedido tenha resultado de culpa
pessoal do proprietário. Entre as causas que maior conexão poderão ter com a matéria
da abalroação contam-se a (alínea a) ) morte ou lesões corporais de qualquer pessoa
encontrando-se a bordo do navio para ser transportada, perdas ou danos de quaisquer
bens a bordo do navio e (alínea b) ) morte ou lesões corporais de qualquer outra pessoa,
quer em terra, quer no mar, perdas ou danos de quaisquer outros bens ou infrações a
quaisquer direitos causados pela ação, negligência ou dolo de qualquer pessoa a bordo
do navio, por quem o proprietário seja responsável, ou de qualquer outra pessoa que,
não se encontrando a bordo do navio e por quem o proprietário é responsável, desde
que, neste último caso, a ação, negligência ou dolo se refiram à navegação ou à
administração do navio ou ao carregamento, transporte ou descarregamento da sua
carga, ou ao embarque, transporte ou desembarque dos passageiros. De acordo com o
artigo 2.º, n.º1, a limitação da responsabilidade – cuja invocação não implica o
reconhecimento de responsabilidade (artigo 1.º, n.º7) – é aplicável ao conjunto dos
pedidos de indemnização, quer corporais, quer materiais, que tenham derivado do
mesmo evento, sem se referir aos pedido de indemnização resultantes ou que venham
a resultar de um outro evento. Esclarece, depois, o artigo 2.º, n.º2 que se o conjunto
dos pedidos de indemnização que derivam do mesmo evento exceder os limites de
responsabilidade, tais como são determinados pelo artigo 3.º, o montante global
corresponde a esses limites poderá constituir-se num fundo de limitação único; o fundo
assim constituído será, então, conforme dita o artigo 2.º, n.º3, exclusivamente
consignado ao pagamento dos pedidos de indemnização em relação as quais a limitação
de responsabilidade pode ser invocada. Ressalvando o disposto no artigo 3.º, n.º2, o
artigo 4.º da Convenção dispõe que as normas relativas à constituição e repartição do
fundo de limitação, se as houver, e todas as normas de processo devem ser
determinadas pela lei nacional do Estado em que o fundo for constituído. A nível
interno, impõe-se a consideração do regime constante do DL 49.028, 26/5/1969, e do
Decreto 49.029, da mesma data. Este diplomas têm também aplicação, conquanto com
as alterações constantes dos artigos 13.º a 18.º DL 202/98, 10 julho, quando o
proprietário possa, nos termos do artigo 12.º deste último diploma, abandonar o navio
e o valor do frete em risco aos credores, com vista à constituição de um fundo de
limitação de responsabilidade: como é sabido, o artigo 12.º tem uma aplicação
subsidiária, quando não estejam em causa pedidos de indemnização abrangidos nos
tratados e convenções internacionais que admitem limitações de responsabilidade.
Importa, finalmente, fazer uma breve referência à Convenção de Bruxelas de 1924
relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimento de carga. Conforme
é sabido, a difícil détente entre os interesses dos carregadores e dos transportadores,
presente na CB 1924, passa por uma diferenciação, para efeitos de regime, entre faltas
náuticas e faltas comerciais. Ora, é relativamente ao pacífico que, dentre os excepted
perils elencados no artigo 4.º CB 1934, se pode incluir o caso da abalroação – admitindo
que não foi dolosa ou indesculpável. Lê-se, por exemplo, em Azevedo Matos que «o
abalroamento constitui a falta náutica por excelência». Já tivemos oportunidade,
conquanto de forma suméria, de nos referirmos supra ás dificuldades de concurso das
regras da responsabilidade contratual com a extracontratual, designadamente quando
um dos navios culpados se pode exonerar de responsabilidade face aos seus
carregadores mas não o pode fazer em relação ao s carregadores do outro navio
envolvido, que agirão contra o primeiro com base nas regras da responsabilidade extra
obrigacional.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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8. O recurso a piloto obrigatório16: de acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º1 DL 384/99,
23 setembro, que provou o regime jurídico relativo ao capitão e à tripulação do navio,
«o piloto, em quaisquer circunstâncias, é um assessor do capitão, o que não afeta a
responsabilidade deste, do armador ou do proprietário do navio perante terceiros»;
dispõe, depois, o artigo 7.º, n.º2 que «o piloto responde, perante o armador ou
proprietário do navio, nos termos gerais de direito». Saliente-se que, nos termos do
artigo 6.º, alínea e) do mesmo diploma, o capitão é obrigado «a tomar piloto ou prático
em todas as barras de portos ou outras paragens, sempre que alei, o costume ou a
normal diligência o determinem». Importa ainda realçar que, de acordo com o disposto
no artigo 3.º DC 48/2002, 2 março – diploma que regula o exercício da atividade de
pilotagem – o serviço de pilotagem é exercido por profissionais de pilotagem dos portos
e barras, devidamente habilitados e certificados, com experiência na condução e
manobra de navios em áreas restritas e conhecedores das características físicas locais
e das disposições legais e regulamentares aplicáveis. Por sua vez, o artigo 8.º
Regulamento Geral do Serviço de Pilotagem, aprovado pelo mesmo diploma,
estabelece serem obrigações do piloto perante o comandante da embarcação pilotada,
informar e assessorar sobre a navegação, movimentos e manobras a efetuar (alínea a) ),
informar sobre quaisquer condicionamentos que possam afetar a segurança (alínea b) )
e ainda informar sobre as condições em que fica a embarcação, sugerindo as
precauções adequadas, bem como sobre as obrigações impostas pela regulamentação
em vigor (alínea c) ). Quid Iuris quando a abalroação se deva ao ato ou omissão do piloto?
Face ao disposto no artigo 4.º, n.º1 DC 202/98, 10 julho, não há dúvidas de que o
armador proprietário do navio responde objetivamente, perante terceiros, por tais atos
ou omissões – responsabilidade essa que, conforme decorre expressamente do artigo
4.º, n.º2 – funciona de acordo com as regras da comissão do artigo 500.º CC: assim, o
armador responde como comitente, sendo comissário o piloto. O mesmo regime vale
quanto ao armador não proprietário e quanto ao simples proprietário, por força,
respetivamente, dos artigos 5.º e 6.º do DL 202/98. Face ao disposto na alínea b) artigo
4.º, n.º1, deixaram de fazer sentido as dúvidas, determinadas pela difícil conjugação do
disposto nos artigos 672.º e 492.º (§3.º) CCom, de que dá nota, entre outros, Cunha
Gonçalves, sobre se a responsabilidade objetiva do armador se mantinha quando o
piloto não tivesse sido tomado voluntariamente pelo capitão: a lei é clara no sentido de
que a responsabilidade nos termos da comissão funciona, mesmo quando «o recurso
ao piloto ou prático seja imposto por lei, regulamento ou uso». Este regime está, de
resto, de acordo com o estabelecido no artigo 5.º CB 1910, de acordo com o qual a
responsabilidade prevista nos artigos anteriores «subsiste no caso de abalroação ser
causada por culpa de um piloto, ainda quando seja obrigatória a intervenção deste». É
de destacar a importância do artigo adicional à CB 1910. De acordo com o mesmo, o
artigo 5.º da Convenção que fixa a responsabilidade no caso de a abalroação ser
causada por culpa de um piloto obrigatório não entraria de pleno direito em vigor senão
quando as Altas Partes Contratantes se houvessem concertado sobre a limitação da
responsabilidade dos proprietários dos navios. Assim, o artigo 5.º CB 1910 só passou a
ter aplicação após a Convenção de Bruxelas de 1924 – Convenção Internacional para a
unificação de regras relativas à limitação da responsabilidade dos proprietários de navio
de mar – cujo artigo adicional veio reconhecer aos Estados ligados pela CB 1924. Pode
questionar-se agora se o artigo 672.º CCom se mantém em vigor, atento o regime
16 Ler de forma conjugada com a página 126 da presente sebenta para a atualização da questão
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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estabelecido no DL 202/98. Pese embora a patente desatualização do artigo 672.º face
ao regime do DL 202/99 e do DL 384/99, na parte que se refere à responsabilidade do
capitão, parece-nos que há uma margem de sobrevivência no artigo 672.º quando e na
parte em que admite que o direito de regresso seja exercido em primeira linha,
alternativamente em relação à corporação que nomeia o piloto e em relação ao próprio
piloto, tido como comissário pelo artigo 4.º, n.º1 DL 202/98. A situação de liquidação
no domínio das relações internas revela-se, assim, mais rica do que numa situação de
solidariedade normal, já que, na prática, é como se o armador comitente tivesse dois
comissário solidários. Claro que, numa situação em que o direito de regresso seja
exercido contra a corporação, esta poderá fazer repercutir no piloto a indemnização
paga, uma vez que a sua intervenção (salvo a existência de culpa in elegendo vel
intruendo vel vigilando) é – à semelhança do que acontece com o comitente – de
garante da indemnização a cargo do piloto. Voltando ao campo das relações externas,
pode questionar-se se o lesado pode, em termos de libera electio ou de subsidiariedade,
agir diretamente contra a corporação dos pilotos. O artigo 672.º CCom não resolve essa
dúvida, cuja solução passará pela caracterização da responsabilidade perante terceiros
nos mesmos termos em que o piloto responde. Ora, uma vez que, de acordo com as
regras da comissão (artigo 500.º CC) e da solidariedade passiva, o credor (o lesado, no
caso) tem libera electio, é de concluir que o terceiro pode optar, à partida, por
demandar a corporação. Pode também questionar-se se o artigo 671.º CCom se
mantém em vigor. Diríamos que não, face ao regime da comissão consagrado nos artigo
4.º, 5.º e 6.º DL 202/98, e ao artigo 5.º, n.º1 DL 384/99, dos quais resulta a
responsabilidade solidária entre os comissários – os autores da culpa (artigo 671.º
CCom) – e o comitente, havendo lugar a direito de regresso (artigo 503.º CC) no caso
de ser o comitente a indemnizar o lesado. De qualquer modo, sempre se dirá que o
regime constante do artigo 671.º CCom – a disposição platónica de que fala Azevedo
Matos – se mantém aggiornato face ao regime da comissão do artigo 500.º CC, sendo,
consequentemente improdutiva qualquer polémica sobre a sua vigência. Na realidade,
o artigo 671.º CCom contempla a eventual responsabilização direta do autor da culpa
(v.g. o capitão) face ao terceiro – o que cabe perfeitamente na disciplina da
solidariedade passiva entre o comitente e o comissário, assim como contempla, in fine,
um direito de regresso do comitente em relação ao comissário. Naturalmente que a
responsabilidade do comitente que estamos a prefigurar pressupõe (artigo 500.º, n.º2
CC) que o ato tenha sido praticado pelo comissário «no exercício da função que lhe foi
confiada».
9. Dever de prestar assistência: o dever de prestar assistência ou socorro constitui
concretização de um princípio e valor fundamental em Direito Marítimo – o da
solidariedade no mar. O dever de prestar assistência encontra-se, desde logo,,
consagrado no artigo 98.º da Convenção de Montego Bay, em sede de disposições
sobre o alto mar (artigo 86.º e seguintes), em termos que abrangem também as
situações de abalroação. Decorre da alínea c) do artigo 98.º, n.º1 que todo o Estado
deve exigir do capitão de um navio que arvore a sua bandeira, desde que o possa fazer
sem acarretar perigo grave para o navio, para a tripulação ou para os passageiros, que
o mesmo «preste, em caso de abalroamento, assistência ao outro navio, à sua
tripulação e aos passageiros e, quando possível, comunique ao outro navio o nome do
seu próprio navio, o porto de registo e o porto mais próximo em que fará escala». A nível
mais específico, o artigo 8.º CB 1910 consagra, a cargo do capitão, um dever de prestar
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socorro após a abalroação, deixando claro (§3.º) que a omissão do capitão não
responsabiliza o proprietário do navio. O dever de prestar socorro impende (§1.º) sobre
o capitão de cada um dos navios envolvidos na abalroação e tem por objeto a outra
embarcação, os seus tripulantes e passageiros. O dever essa quando a respetiva
prestação envolva grave perigo para o navio, respetiva tripulação e passageiros. Por
outro lado, a intensidade do socorro está naturalmente limitada à medida do possível.
O §2.º do artigo 8.º CB impõe ainda ao capitão o dever de, na medida do possível, «dar
a conhecer ao outro navio o nome e o porto de registo da sua própria embarcação,
assim as localidades de onde vem e para onde vai». A nível interno, há que realçar o
artigo 166.º Regulamento Geral das Capitanias que diz ser «obrigação dos comandantes,
mestres, arrais ou patrões de embarcações nacionais, desde que o possam fazer sem
perigo sério para a sua embarcação, tripulação ou passageiros» - alínea d) - «após uma
colisão, prestar à embarcação com que tenha colidido, à sua tripulação e aos seus
passageiros a assistência compatível com as circunstâncias e, na medida do possível,
indicar-lhes o nome da sua própria embarcação, o seu porto de registo e o porto mais
próximo que tocará». Por sua vez, o artigo 3.º, n.º1 DL 202/98 – que regula a salvação
marítima – estabelece genericamente um dever de prestar socorro «a pessoas em
perigo no mar, desde que isso não acarrete risco grave para a sua embarcação ou para
as pessoas embarcadas, devendo a sua ação ser conformada com o menor prejuízo
ambiental». Pode o armador ser responsabilizado pelo incumprimento, por parte do
capitão, de um dever de prestar assistência? Pensamos que, neste campo, não funciona
a responsabilidade objetiva, como comitente, dos artigos 4.º, 5.º e 6.º DL 202/98, uma
vez que o dever em causa deve ser configurado como um dever pessoal de quem está
no salso palco – o capitão – dever esse que é alheio às preocupações e razões que estão
na base do regime da comissão. Mesmo quando não sejam diretamente aplicáveis,
militam neste sentido, como manifestações de um regime geral, o já referido §3.º do
artigo 8.º CB 1910 – que desresponsabiliza o proprietário do navio pela violação do
dever de assistência por parte do capitão – e ainda o artigo 3.º , n.º3 DL 203/98 que –
conquanto para o domínio de aplicação traçado no artigo 3.º, n.º1 (prestação de
socorro a pessoas) – só admite a responsabilização do proprietário e do armador da
embarcação quando haja culpa dos próprios. Fora do quadro da responsabilidade
objetiva, é de admitir a responsabilização subjetiva do armador quando haja culpa
própria na não prestação de assistência, maxime em caso de culpa na escolha do
capitão (Culpa in elegendo).
10. O Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (COLREG): a
necessidade de um Regulamento Internacional para evitar abalroamentos no mar surge
como evidente face à densidade e internacionalidade do tráfico e aos valores que se
pretende preservar. As regras atualmente em vigor foram aprovadas, entre nós, para
ratificação, pelo Decreto n.º 55/78, 27 junho, diploma que aprovou a Convenção
Internacional sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento no Mar,
feita em Londres em outubro de 1972. Essa Convenção visou rever e atualizar as Regras
Internacionais do mesmo teor de 1960, constituindo, então, o Anexo B à Convenção
para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (DL 493/70, 23 outubro). Posteriormente,
a Convenção seria objeto de emendas. Em termos de conteúdo, o Regulamento está
dividido em 5 Partes numerada, contendo, cada uma delas, Regras alfabetadas.
Seguem-se 4 Anexos. A primeira Parte (Parte A) é de “Generalidades”. Destaca-se, na
Regra 1 (Campo de Aplicação), a alínea a): «As presentes Regras aplicam-se a todos os
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navios no alto mar e em todas as águas que com ele tenham comunicação e sejam
praticáveis pela navegação marítima». A Regra 2 da Parte A respeita a
“Responsabilidade”, dispondo a alínea a) que «Nenhuma disposição das presentes
Regras servirá para ilibar qualquer navio ou o seu proprietário, comandante ou
tripulação das consequências de qualquer negligência quanto à aplicação das presentes
Regras, ou quanto negligência quanto à aplicação das presentes Regras, ou quanto a
qualquer precaução que a experiência normal de marinheiro ou as circunstâncias
especiais do caso aconselham a tomar». E a alínea b): «Ao interpretar e aplicar as
presentes Regras, devem ter-se em devida conta os perigos da navegação e os riscos de
abalroamento, bem como todas as circunstâncias particulares, nomeadamente as
limitações de utilização dos navios em causa, que podem tornar necessário o não
cumprimento exato das presentes Regras, para evitar um perigo imediato». Dentre as
definições constantes da Regra 3, destaca-se a de navio: «A palavra “navio” designa
todo o veículo aquático de qualquer natureza, incluindo os veículos sem imersão, os
veículos WIG e os hidroaviões, utilizado ou suscetível de ser utilizado de transporte sobre
a água». A Parte B contém «Regras de manobra e de navegação» (Regras 4 a 19),
destacando-se o §1.º da Regra 6: «Todo o navio deve manter uma velocidade de
segurança tal que lhe permita tomar as medidas apropriadas e eficazes para evitar um
abalroamento e para parar numa distância adequada às circunstâncias e condições
existentes». A Parte C respeita a “faróis e balões» (Regras 20 a 21), a Parte D a «sinais
sonoros e luminosos» (Regras 32 a 37) e a Parte E contém uma Regra (n.º 38)
respeitante a «Isenções». Finalmente, os Anexos respeitam, sucessivamente, às
seguintes matérias: Localização e características técnicas dos faróis e balões (Anexo I),
Sinais adicionais para navios de pesca pescando na proximidade uns dos outros (Anexo
II), Características técnicas para material de sinalização sonora (Anexo III) e Sinais de
perigo (Anexo IV).
11. As Regras de Lisboa do CMI: As Lisbon Rules 1987 estão estruturadas, tal qual, v.g., as
Regras de Iorque-Antuérpia, numa divisão entre regras alfabetadas e regras numeradas.
A Regra A delimita as situações em que é possível a aplicação das Regras – os casos em
que haja pedidos de indemnização na sequência de uma abalroação («cases where
damages are claimed following a collision») – ao mesmo tempo que deixa claro que as
mesmas dependem da livre adoção pelos interessados («are available for adoption») e
que a respetiva adoção não tem o efeito de admissão de responsabilidade («Their
adoption does not imply any admission of liability»). A Regra B delimita o âmbito de
aplicação das Regras: elas aplicam-se apenas à determinação dos danos («assessment
of the damages»), não sendo extensível à determinaçpão da responsabilidade e não
afetando os direitos de limitação de responsabilidade. A Regra C estabelece o critério
de nexo de causalidade: com sujeição ao disposto nas regras numeradas, o lesado (o
claimant) só pode exigir indemnização pelos danos que possam ser razoavelmente
considerados como consequências direta e imediata da colisão («as many reasonably
be considerered to be the direct and immediate conequence of the collision»). Esta Regra
é dobrada pela Regra D que, ressalvando a aplicação da Regra C e das regras numeradas,
estabelece que a indemnização deverá colocar o lesado na mesma posição financeira
que teria se a colisão não tivesse ocorrido. Finalmente, a Regra E reporta-se ao ónus da
prova, que pertence ao claimant; contudo, numa solução que no Código Civil encontra
algum paralelo no regime do artigo 570.º, a indemnização será reduzid («Damages shall
not be recovered to the extent») se o lesado lograr provar que o lesante poderia ter
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evitado ou minorado os prejuízos se tivesse agido de uma forma razoavelmente
diligente («by the exercise of reasonable diligence»).
12. As Convenções de Bruxelas de 1952: a preocupação com a unificação de regras relativas
à matéria da abalroação fez-se sentir no campo processual: em 10 maio 1952 foram
assinadas em Bruxelas duas convenções internacionais: a Convenção Internacional para
a unificação de certas regras relativas à competência civil em matéria de abalroação e
a Convenção Internacional para unificação de certas regras relativas à competência
penal em matéria de abalroação e outros acidentes de navegação. Ambas as
Convenções foram aprovadas para ratificação por Portugal através do DL 41.007,
16/2/1957. O âmbito de aplicação da Convenção sobre competência civil resulta, a um
tempo, do estabelecido nos artigos 4.º a 8.º. Os artigos 4.º e 8.º, I, estabelecem
delimitações positivas. Assim:
a. A Convenção aplica-se a todas as ações que visem a reparação de prejuízos
causados por um navio a outro navio ou às coisas ou às pessoas que nele se
encontrem, em virtude de execução ou omissão de manobra ou de
inobservância de regulamentos, ainda que não haja abalroação (artigo 4.º);
b. A Convenção é aplicável em relação a todos os interessados, quando todos os
navios pertencerem a Estados Altas Partes Contratantes (artigo 8.º I); ressalva-
se (artigo 8.º, II, §2.º) a situação em que todos os interessados bem como o
tribunal perante o qual corre a ação, pertencerem a um mesmo Estado, caos
em que será aplicável a lei nacional.
As delimitações negativas resultam dos artigos 5.º a 7.º. Assim:
a. Não prejudicialidade das regras de Direito em vigor nos Estados contratantes,
relativamente às abalroações que afetem navios de guerra ou navios
pertencentes ao Estado ou que estejam ao serviço do Estado (artigo 5.º);
b. Inaplicação da Convenção às ações provenientes de contratos de transporte ou
de quaisquer outros (artigo 6.º);
c. Inaplicação da Convenção aos casos abrangidos pelas disposições da
Convenção revista sobre a Navegação do Reno, de 17 outubro 1868 (artigo 7.º).
No que conserne ao âmago da Convenção, o artigo 1.º, n.º1 fixa os tribunais onde a ação
proveniente de abalroação, ocorrida entre navios de mar e barcos de navegação interior,
poderá ser proposta, cabendo a sua escolha ao autor (artigo.º1, n.º2):
a. Tribunal da residência habitual do réu ou no tribunal de uma das sedes da sua
exploração (alínea a) );
b. Tribunal do lugar onde o navio acusado ou qualquer outro navio pertencente
ao mesmo réu, se encontre arrestado (alínea b) );
c. Tribunal do lugar onde o arresto poderia ter sido realizado e onde o réu tenha
prestado caução (alínea b), in fine);
d. Tribunal do lugar da abalroação, quando esta tenha ocorrido em portos ou
ancoradouros ou em águas interiores (alínea c) ).
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O artigo 1.º, n.º3 estabelece que o autor não poderá intentar contra o mesmo réu nova
ação pelos mesmos fundamentos, perante qualquer outra jurisdição, sem desistir da ação
já proposta. Conforme destaca Rodière, esta regra visa evitar os inconvenientes
provocados pelo fórum shopping autorizado no artigo 1.º, n.º1, considerando, ademais,
que a CB 1952 consegue, assim, realizar uma relevante cooperação judiciária
internacional, já que – diversamente do que acontece no direito comum, no qual uma
sentença estrangeira só tem autoridade de caso julgado se tiver revestida de exequator
– aqui é possível invocar a exceção de caso julgado, desde que tenha sido proferida
sentença por uma das jurisdições competentes nos termos do artigo 1.º. O artigo 3.º
contém uma miscelânea de previsões: o artigo 3.º, n.º1 reporta-se aos pedidos
reconvencionais resultantes da mesma abalroação contra a mesma parte. Finalmente, o
artigo 3.º, n,.º3 refere-se às situações de abalroação que envolvam vários navios,
deixando claro que nada na mesma Convenção se opõe a que o tribunal onde a ação
tenha sido proposta em obediência às regras do artigo 1.º, se declare competente, de
acordo com as regras da competência da sua lei nacional, para julgar todas as ações
intentadas em razão do mesmo evento. A Convenção Internacional para a unificação de
certas regras relativas à competência penal tem a sua origem no célebre caso Lotus17. O
âmbito de aplicação desta segunda Convenção surge delimitado pela positiva no artigo
1.º, e pela negativa no artigo 4.º. De acordo com a 1.ª parte do artigo 1.º, a Convenção
tem aplicação em caso de abalroação ou outro qualquer acidente de navegação relativo
ao navio de mar, que possa envolver responsabilidade penal ou disciplinar para o capitão
ou disciplinar para o capitão ou outra pessoa ao serviço do navio. O artigo 4.º, I, exclui da
aplicação da Convenção as abalroações ou outros acidentes de navegação ocorridos em
portos, ancoradouros e águas interiores. Numa clara sequela do caso Lotus, a 2.ª parte
do artigo 1.º estabelece que o procedimento por qualquer dos acidentes referidos na sua
1.º parte só poderá ser intentado perante autoridades judiciais ou administrativas do
Estado cujo pavilhão o navio arvorar no momento da abalroação ou do acidente de
navegação. Nesses casos, estabelece o artigo 2.º, a apreensão ou retenção do navio,
ainda que para efeitos de instrução, só pode ser ordenada pelas autoridades do Estado a
que respeitar o pavilhão arvorado por esse navio. É também importante a ressalva
constante do artigo 3.º: Nenhuma disposição da Convenção impede que qualquer Estado,
em caso de abalroação ou outro acidente de navegação, atribua às suas próprias
autoridades o direito de tomar todas as medidas respeitates a certificados de
competência e licenças por eles concedidas, ou de proceder contra os seus nacionais por
infrações cometidas a bordo dum navio que arvore o pavilhão doutro Estado. Importa,
finalmente, referir que o regime da Convenção de Bruxelas 1952 em análise não é
17 Na noite de 2 para 3 de agosto de 1926, o navio francês Lotus abalroou no alto mar o navio turco Bozkourt do que resultaram vítimas mortais neste último. Aquando de uma escala do Lotus em Istambul, as autoridades turcas prenderam oficial do Lotus que estava de quarto aquando da abalroação, tendo o mesmo sido julgado e condenado a uma pena de prisão. A questão foi colocada pela França no Tribunal de Haia: a tese francesa era no sentido de que um Estado não podia perseguir um estrangeiro por um delito cometido no estrangeiro. Vingou, porém, a tese turca, em sentido oposto, uma vez que o código penal turco acolhia a ideia de uma competência penal universal, quando houvesse vítimas turcas. A decisão do Tribunal de Haia, prefira em 1927, teve como consequência a promoção de trabalhos, por parte do CMI, em ordem a uma futura convenção internacional sobre competência penal em matéria de abalroação, surgindo os trabalhos para uma convenção sobre competência civil a reboque dos primeiros. Os trabalhos da CMI culminaram na CB 1952 para a unificação de certas Regras relativas à Competência Penal, convenção essa onde triunfa a tese que fora rejeitada, anos antes, pelo Tribunal de Haia.
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aplicável apenas aos casos de abalroação, abrangendo também «outros acidentes de
navegação», cujo exemplo mais eloquente será o naufrágio – ainda que não precedido
de colisão.
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As Traves Mestras da CL 1989 e o Regime Português
da Salvação Marítima18
1. Introdução Condições Gerais: publicado no dia em que, em homenagem aos oceanos, o
diário oficial português saiu azul, Portugal tem desde 1998 – mais concretamente desde
a Lei da Salvação Marítima (LSM) aprovada pelo DL 23/98, de 10 julho – um novo regime
da Salvação Marítima. O diploma revogou o disposto nos artigos 676.º a 691.º do cada
vez mais desintegrado Código Comercial – que estavam inseridos num título designado
«Da salvação Marítima e assistência». Quebrando a tradição que vinha do Código de
Ferreira Borges e que se manteve no Código de Veiga Beirão, a LSM optou por fundir as
clássicas figuras da salvação e da assistência numa única figura que, na linha do salvage
anglo saxónico, designou não simplesmente por salvação mas por salvação marítima. A
separação conceitual entre salvação e assistência tinha uma clara tradução nos códigos
comerciais, tendo-se os maritimistas e a jurisprudência, ao longo de muitos anos,
afadigado em traçar com algum rigor as ténues fronteiras entre os dois institutos,
fronteiras essas que as disposições legais não tinham o condão de marcar com nitidez.
Podemos citar, a título exemplificativo, os traços delimitadores feitos ou apontados
pelos clássicos Ferreira Borges, Veiga Beirão, Adriano Anthero, Cunha Gonçalves ou
Azevedo Matos. Causa, assim, alguma estupefação que, no preâmbulo da LSM, se leia
que em Portugal «nunca se defendeu com perseverança a distinção entre os dois
conceitos, tendo prevalecido o entendimento de que assistência e salvação não são atos
diversos, visto que ambos significavam o socorre restado, conjunta ou separadamente,
a um navio, à sua carga e às pessoas que se encontram a bordo». É certo que, noutro
universo de aplicação, encontrava-se – e encontra-se – a Convenção de Bruxelas de 23
setembro 1910, para a unificação de certas regras em matéria de assistência e salvação
marítima que, pese embora a dupla designação (assistência e salvação), consagra
apenas um instituto, sendo a mesma dupla designação explicada por um compromisso
terminológico entre a designação anglo saxónica – salvage – e a francesa – assistance.
Essa circunstância, que provoco ou certo equívoco em autores como Serra Brandão ou
mesmo Mota Pinto, não deveria ser de molde a obscurecer o facto de, no Direito
Interno Português, haver uma clara diferença de conceitos e de regime entre a salvação
marítima e a assistência, com consequências bem evidentes a nível dos salários,
respetivamente de salvação (artigo 681.º CCom) e de assistência (artigo 682.º CCom).
Assim, não podemos deixar de acompanhar Mário Raposo, quando imputa a afirmação
de preâmbulo a descuido do legislador. O que é certo é que o legislador português,
rendendo-se, finalmente, à unicidade em termos conceituais e designativos, optou por
designar o instituto como salvação, na linha da Convenção de Londres de 1989 (CL
1989). No preâmbulo da LSM, o legislador Nacional revela-se rendido às diretrizes da Cl
1989, mostrando-se, aparentemente, alheado do facto de a nova Convenção não ter
sido – então como agora – ratificada por Portugal. A circunstância da assinatura da
Convenção foi tida como razão de peso para modernizar o regime da salvação, de
acordo com a filosofia daquela Convenção. O resultado não deixa de ser singular.
18 O Ensino do Direito Marítimo; o soltar das amarras do direito da navegação marítima; por Manuel Januário da Costa Gomes, Almedina, novembro de 2004. (páginas 177 a 124).
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Portual está internacionalmente vinculado à vetusta CB 1910, abstendo-se de ratificar
a moderna CL 1989; contudo, a nível interno, adota as linhas orientadoras desta última.
Não há, aqui, parece-nos, uma incompatibilidade estrutural, mas o conjunto apresenta-
se desarmónico e, com tal, potenciador de perturbações. A salvage da Cl 1989 não é só
marítima: a alínea a) do artigo 1.º não se refere especificamente ao mar mas,
amplamente, a «navigable waters or in any other water whatsoever». É certo que o
artigo 1.º CB 1910 não limita a sua aplicação às salsas águas; contudo, cinge o instituto
às «embarcações marítimas sem que haja de atender-se às águas» em que os serviços
são prestados. Ora, esta última limitação – a das «embarcações marítimas» - não a
conhece a CL 1989 que, para além de considerar como objeto passível da salvação «a
vessel or any other property», define navio (vessel) em termos que não apontam para a
circunscrição ao meio marítimo: «any ship or craft, or any structure capable of
navigation». Apesar de tudo isto, o legislador nacional parece, numa primeira análise
do diploma, circunscrever o regime da salvação à salvação marítima. Para além de o
preâmbulo começar com a afirmação de que «o presente diploma ocupa-se da salvação
marítima», a alínea a) do artigo 1.º, n.º1 define salvação marítima como «todo o ato ou
atividade que vise prestar socorro a navios, embarcações ou outros bens, incluindo o
frete em risco, quando em perigo no mar». Contudo, logo o artigo 1.º, n.º2 revela que,
afinal, o regime da salvação marítima não está circunscrito ao mar, já que considera
salvação marítima «a prestação de socorro em quaisquer outas águas sob jurisdição
nacional, desde que desenvolvida por embarcações». A salvação marítima é, afinal, tal
como na CL 1989, salvação aquática. Competirá, agora, à doutrina e à jurisprudência
afinar critérios, neste particular, evitando-se conclusões absurdas, aparentemente
facultadas pela letra da lei, mas muito longe do seu espirito e do berço do instituto que
é o mar e o perigo que lhe é inerente. Neste particular, podemos dizer, com Bonassies,
que «le nouveau texte va à l’extrême».
2. Delimitação da salvação marítima na CL 1989 e na LSM:
1. Os bens em perigo no mar: a LSM mantém o perigo no mar como requisito
essencial da salvação marítima. Não podia, aliás, deixar de ser assim: o perigo
dos bens, maxime do navio, constitui, desde sempre e universalmente, a nota
característica do instituto que lhe confere justificação e autonomia. A existência
de perigo no mar servirá para marcar a especificada da salvação, ao mesmo
tempo que a delimita de figuras que, de algum modo, lhe são próximas, como
o reboque. O perigo que correm os bens objeto da salvação é também pacífico
nas Convenções Internacionais sobre a matéria: quer a CB 1910 («embarcações
marítimas em perigo») quer a CL 1989 («a vessel or any other property in
danger») o acentuam. Não há, assim, nenhuma inovação da LSM relativamente
ao Direito anterior ou ao quadro normativo internacional, quando erege o
perigo no mar como requisito essencial da salvação. A extensão do artigo 1.º,
n.º2 da mesma LSM forçará, porém, à conclusão de que, verdadeiramente, a
salvação tem como requisito essencial o perigo na água. O que importa agora
focar é o universo de bens que podem ser objeto de salvação: ou seja dos bens
que, estando em perigo no mar, podem ser socorridos, em termos de a tal
socorro ser aplicável o regime da salvação. Sem preocupações de distinção
entre o campo de aplicação da salvação e o da assistência, o CCom era claro no
sentido da relevância, não só do navio, mas também das fazendas ou da carga.
Isso é incompatível pela leitura do artigo 681.º, nos seus vários números, e do
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artigo 682.º. Havia também alusão ao salvamento de pessoas, no §2.º do artigo
687.º, alusão que, no entanto, surgia algo lateralmente, a propósito da
repartição do salário. Deixando de lado o caso, demonstrativo, entre outros, da
«noblesse du droit maritime», da salvação de pessoas – que tem um regime
próprio, dito, por isso, de salvação obrigatória, quer face à LSM, quer face, entre
outros, à CB 1910 ou à CL 1989 – centremo-nos nos bens que podem constituir
objeto da salvação voluntária, à luz da CL 1989 e da LSM – independentemente
de ser espontânea ou contratual. A CB 1910 considera, no seu artigo 1.º, como
objeto possível de salvação, as embarcações marítimas, as coisa que se
encontrem a bordo, o frete e o preço da passagem, relevando também os
serviços de igual natureza, mutuamente prestados por embarcações marítimas
e de navegação interior. A CL adota uma fórmula mais larga, referindo-se a
qualquer ato ou atividade para socorrer um navio ou qualquer outro bem em
perigo («to assist a vessel or any other property in danger»). O objeto passível
da salvação seria, face à alínea a) do artigo 1.º, n.º1 CL 1989, qualquer bem em
perigo na água. Contudo, o artigo 3.º da mesma Convenção exclui do seu
âmbito de aplicação as plataformas fixas e as unidades de perfuração
(«platforms and drilling units»). A exclusão terá resultado, por um lado, da
pressão norte americana, em função do caráter altamente especializado dessas
estruturas de funcionamento e, por outro, do facto de estar, então, em
preparação um projeto de Convenção – que acabou por não ter sequência –
sobre as plataformas. O legislador nacional seguiu a solução universal da CL
1989, ao referir-se ao socorro a «navios, embarcações ou outros bens, incluindo
o frete em risco» (artigo 1.º, n.º1, alínea a) ), mas não excecionou as
plataformas e as unidades de perfuração. Ou seja, o legislador bem poderia ter-
se limitado a referir o «socorro a bens em perigo no mar» ou, em respeito pela
figura do navio, o «socorro a navios ou outros bens em perigo no mar», que a
solução não seria diversa daquela que resulta da letra da citada alínea a) do
artigo 1.º, n.º1 LSM. A nova fórmula tem consequências de relevo,
designadamente, conforme adverte Bonassies, a nível dos achados, havendo
que reequacionar o regime das épaves, distinguindo em função da existência
ou não de perigo no mar.
2. A atividade relevante: a CL 1989 caracteriza a operação de salvação como
«qualquer ato ou atividade desenvolvida para socorrer um navio» («any act or
activity undertaken to assist a vessel»). A CL 1989 afasta-se, assim, claramente,
do modo como, embora com relevantes vozes discordantes, vinha sendo
interpretada a CB 1910, que apontava no sentido de a salvação constituir uma
relação entre navios. Podemos invocar, neste sentido restritivo – do “navio a
navio” – da CB, expressões retiradas de algumas das suas disposições, como o
artigo 1.º («serviços de igual natureza mutuamente prestados por embarcações
marítimas e de navegação interior»), 5.º («se haja dado entre navios»), 6.º, III
(«ao serviço de cada um dos navios salvadores»), 8.º, alínea a) («o perigo que
tiverem corrido o navio socorrido, os seus tripulantes e passageiros, a sua carga,
os salvadores e o navio salvador»), 11.º, I («sem grave perigo para o seu navio»),
15.º, I («quer o navio assistente ou salvador, quer o navio assistido ou salvado»),
ou 15.º , II, §2.º («não será obrigatório senão entre navios»). Face à CL 1989, o
quadro altera-se significativamente: ao admitir como relevante para efeitos de
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qualificação com salvação any act or activity undertaken to assist, a CL
escancarou as portas à salvação a partir de terra ou do ar. Ora, a LSM enveredou
por esse caminho, considerando todo o ato ou atividade que vise prestar
socorro a bens em perigo no mar. Competirá à doutrina e, particularmente, à
jurisprudência, acertar critérios, deixando para o Direito Civil (v.g. regime da
gestão de negócios) o tratamento dos atos ou atividades sem relevância
salvadora. A citada opção da CL 1989 e, por inspiração da mesma, da LSM, de
considerar relevante «todo o ato ou atividade», põe termo a uma outra
polémica: a de saber se a opção de socorro teria de ser material ou se,
diversamente, poderia ser intelectual. Rodière entendia que a não
consideração do socorro intelectual como assistência, resultava do facto de
esta dever ser feita por um navio a outro navio. Face à redação utilizada, quer
na CL 1989 quer na LSM, o socorro prestado a navio em perigo via rádio, via
internet ou por outra qualquer via não material, constituirá também salvação.
3. Embarcações do Estado: o artigo 14.º CB 1910 delimita o âmbito de aplicação
da Convenção estabelecendo a sua não aplicação aos navios de guerra e aos
navios pertencentes ao Estado e exclusivamente empregados em serviço
público. Contudo, a nível interno, o Decreto 16.060, 14/10/1928, diploma que
aprovou o Regulamento para o Serviço de Salvação e Assistência no Mar,
prestados por navios de guerra, veio prever a remuneração por esses serviços,
previsão que não foi estendida aos outros navios do Estado, quando
exclusivamente empregados em serviço público. Entretanto, a nível
internacional, foi reconhecido que a solução do artigo 4.º CB 1910 não seria a
mais adequada, razão pela qual foi elaborado o Protocolo de 1967, prevendo a
aplicação da Convenção também aos navios de guerra e aos outros navios do
Estado ou pelo mesmo explorados ou afretados. Contudo, esse Protocolo não
foi ratificado por Portugal, tendo tido, aliás, uma fraca adesão. Numa solução
que, de algum modo, continua a do artigo 14.º CB 1910, o artigo 4.º, n.º1 CL
1989 afasta a aplicação da Convenção aos navios de guerra ou a outros navios
não comerciais pertencentes a um Estado ou por ele explorados que, aquando
das operações de salvação, tenham direito a imunidade, de acordo com os
princípios geralmente reconhecidos do Direito Internacional, a não ser que esse
Estado decida de outro modo. O artigo 16.º LSM surge com uma redação
inspirada no Protocolo de 1967 à CB 1910 e, de certo modo, na abertura do
artigo 4.º, n.º1 Cl 1989. Contudo, essa inspiração é apenas parcial, limitando-se
ao lado ativo: é aplicável o regime da salvação marítima quando o socorro é
desenvolvido por navios ou embarcações de guerra ou outras embarcações não
comerciais propriedade do Estado ou por ele exploradas, mas já não o é quando
tais embarcações sejam objeto de operações de salvamento. A um nível mais
amplo, importa salientar o disposto no artigo 9.º CL 1989 que deixa claro que a
mesma Convenção não prejudica o direito de cada Estado costeiro de tomar as
medidas conformes aos princípios geralmente reconhecidos no Direito
Internacional, a fim de proteger o seu litoral ou interesses conexos, face a
situações de poluição ou ameaça de poluição resultantes de um acidente de
mar ou de atos relacionados com um acidente desse tipo, dos quais se possam
razoavelmente prever as consequências mais graves; nessas medidas, o artigo
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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9.º inclui também o estabelecimento de instruções ou diretivas no que tange
às operações de salvação.
3. Os contratos de Salvação Marítima:
1. Introdução: nem o CCom 1833 nem o CM 1888 continham uma regulamentação
dos contratos de salvação marítima, que só surge com a LSM. Contudo, nenhum
desses códigos estava alheado da realidade desses contratos, estabelecendo o
artigo 1608.º do Código Ferreira Borges que «toda a convenção, transação ou
promessa sobre salários de assistência ou salvados será nula, sendo feita no mar
alto ou ao tempo da varação com o capitão ou outro oficial, quer a respeito do
navio, quer das fazendas que se acharem em perigo». O mesmo artigo previa,
na sua 2.ª parte, a validade de «transações e ajustes amigáveis» após terminado
o perigo, sendo que os mesmos só vinculariam os donos, consignatários ou
seguradores, havendo acordo destes. Este regime correspondia já, grosso
modo, ao que vinha do Consulado do Mar. A Ordenança de Colbert declarava
nulas todas as promessas feitas aos pilotos feitos aos pilotos da barra e outros
marinheiros «no perigo do naufrágio». Por sua vez, o artigo 684.º do Código
Veiga Beirão estabelecia que todos os contratos feitos na constância do perigo
podiam ser «reclamados por exageração e reduzidos pelo juízo competente».
Também o artigo 685.º aludiu à existência de contratos, a estabelecer que os
critérios para fixação do salário de salvação ou assistência aí apontados tinham
lugar «na falta de convenção». A CB 1910 dedica uma maior atenção aos
contratos de salvação: para além de estabelecer (artigo 6.º) que o montante da
remuneração e a proporção da repartição entre os salvadores é fixado por
convenção das partes e, na sua falta, pelo juíz, dedica o artigo 7.º, nos seus dois
§, aos remédios relativamente às situações de vícios no consentimento e de
falta de equidade na remuneração estipulada. A CL 1989 dá aos contratos de
salvação um tratamento central, podendo dizer-se, com Bonassies, que ela
«ouvre une large place ao contrat». É, por outro lado, reconhecido que a
própria CL 1989 tem larga inspiração da prática da contratação, sendo muitas
das suas inovações inspiradas na versão de 1980 do Lloyd’s Open Form for
Salvage Agreement (LOF 1980).
2. Os contratos de salvação na CL 1989: o artigo 6.º, n.º1 CL 1989 consagra,
claramente, o caráter supletivo da Convenção relativamente aos contratos de
salvação. Os únicos limites à subsidiariedade resultam do artigo 6.º, n.º3 que,
assim, considera imperativo o regime do artigo 7.º, respeitante à anulação ou
modificação dos contratos de salvação, e ainda a obrigação do salvador de
evitar ou minorar danos ambientais. Os direitos e os deveres das partes – do
salvador e do salvado – resultam do artigo 8.º, dispondo que, no entanto, não
tem aplicação circunscrita à salvação contratual, aplicando-se igualmente à
salvação espontânea e mesmo à salvação obrigatória. Os contratos de salvação,
digamos, clássicos, aceitam a lógica do no cure no pay, não deixando, porém,
os contratos que consagrem uma remuneração segura, mesmo na ausência de
resultado útil, de ser verdadeiros contratos de salvação. Isso mesmo resulta,
aliás, claramente, do artigo 12.º, n.º2 CL: «except as otherwise provided, no
payment is due under this convention if the salvage operations have had no
useful result». A mesma conclusão resultaria, já, do facto de o artigo 6.º, n.º3
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da mesma Convenção não considerer imperativa a dependência do salário de
salvaçã em relação ao resultado útil – ou seja, não considerer imperative o no
cure no pay. Quanto à legitimidade e aos poderes para celebrar contratos de
salvação – matéria não regulada pela CB 1910 – o artigo 6.º, n.º2 CL 1989
consagra duas situações de representação legal; primeira: o capitão tem
poderes para celebrar contratos de salvação em nome do proprietário do navio;
segunda: o capitão ou o proprietário do navio têm poderes para celebrar tais
contratos em nome do proprietário dos bens que se encontrem a bordo. O
capitão, na medida em que representa, a um tempo, o proprietário do navio e
os proprietários dos bens, tem, assim, «ostensible authority» para aceitar
celebrar contratos de salvação, sujos efeitos se repercutem nesses interessados
na expedição. Na linha do artigo 7.º CB 1910, o artigo 7.º CL 1989 prevê que o
contrato de salvação ou qualquer das suas cláusulas possa ser anulado ou
modificado em duas situações. A primeira é se o contrato tiver sido celebrado
sob coação ou sob influência de um perigo, não sendo as respetivas cláusulas
equitativas. A segunda respeita à remuneração convencionada, quando a
mesma seja excessivamente elevada ou diminuta, atentos os serviços
efetivamente prestados.
3. O contrato LOF e a cláusula SCOPIC: o modelo standard de contrato de salvação
mais conhecido é, sem dúvida, o LOF, cuja última versão é do ano 2000.
Conforme é sabido, existiu, aliás, uma interação entre a prática contratual da
Lloyd’s e a preparação da CL 1989, em termos de esta Convenção acolher as
mais importantes inovações dos formulários LOF. Por outro lado, através da
cláusula J (Governing law), a CL 1989 acabou por ser incorporada no LOF 2000,
tudo isto sem prejuízo da especificidade das situações em que é acordada a
cláusula SCOPIC. Do modelo LOF 2000, destacamos, para além da sua cláusula
SCOPIC, a obrigação principal dos salvadores (contractor’s basic obligation) da
Cláusula A: os salvadores devem envidar os melhores esforços para salvar os
bens («hereby agree to use their best endeavours to salve the property»).
Podemos dizer que a origem próxima da cláusula SCOPIC (Special Compensation
Protection & Indemnity Club Clause) está no caso do navio The Nagasaki Spirit.
O navio em causa fora objeto de operações de salvação muito difíceis, na
sequência de um incêndio. A polémica, que acabou por ser decidida na Câmara
dos Lordes, centrou-se na questão de saber se a compensação especial prevista
no artigo 14.º CL 1989 permite considerar incluído nas despesas suportadas
pelo salvador (artigo 14.º, n.º2) um elemento de lucro. A Câmara dos Lordes
entendeu que a expressão fair rate do artigo 14.º, n.º2 CL 1989 não permitia
incluir esse elemento de lucro. Como dizem Hodges/Hill, «salvors have shown
themselves to be unhappy with the final decision in The Nagasaki Spirit». A
SCOPIC Clause nasce, a partir daqui, como forma de, por via contractual,
ultrapassar as limitações do artigo 14.º CL, fixando a fortait uma compensação,
ainda que não haja resultado útil e mesmo que não estejam em causa danos
ambientais suscetíveis de serem causados pelo navio ou pela sua carga. A
SCOPIC Clause surge referida na Cláusula C do LOF 2000, como opção,
constituindo uma Adenda ao contrato LOF (Main Agreement) e contendo várias
subcláusulas. Segundo Rebora, podemos apontar as seguintes características
principais da SCOPIC Clause:
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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a. Destina-se a remediar os efeitos da decisão
The Nagasaki Spirit e ainda algumas incertezas
ligadas à interpretação da CL 1989;
b. Não questiona o princípio do resultado útil,
pretendendo apenas substituir a aplicação do
artigo 14.º CL 1989;
c. Só é aplicável se o salvador o quiser;
d. A iniciativa de pôr fim às operações cobertas
pela cláusula SCOPIC pertence ao salvado e ao
salvador;
e. É aplicável mesmo na ausência de ameaça real
ao ambiente;
f. É aplicável independentemente da situação
geográfica do bem objeto de salvação;
g. Não cobre o conjunto das prestações levadas
a cabo pelo salvador;
h. Irá provocar, progressivamente, uma
standardização das operações de salvação.
c. Os contratos de salvação na LSM:
i. A conformação do conteúdo do contrato de salvação: a LSM dedica o artigo 2.º
especificamente aos contratos de salvação marítima, começando (no n.º1) por
definir o espaço de atuação do princípio daliberdade contratual: toda a matéria
da salvação pode ser regulada livremente pelas partes, exceto no que concerne
ao preceituado nos artigos 3.º, 4.º, 9.º e 16.º. Consagra, assim, o artigo 2.º, n.º1,
o caráter supletivo do regime da LSM, com as apontadas exceções. Conforme é
sabido, as operações de salvação são objeto de uma intensa atividade,
obedecendo, normalmente, os contratos de salvação a modelos pré
preparados, o mais conhecido dos quais é seguramente o LOF (agora LOF 2000),
sendo também bastante conhecidos o SALVHIRE e o SALVCOM, publicados pela
BIMCO. O leque de matérias subtraídas à modelação do contrato é,
aparentemente, maior do que na CL 1989 (artigo 6.º, n.º3) onde, recorde-se, é
apenas ressalvado o disposto no artigo 7.º e os deveres de prevenir ou minorar
danos ambientais. O artigo 2.º, n.º1 LSM vai, como dizíamos, mais além, mas
abstém-se de considerar como imperativo o regime do n.º3 do artigo, que
contém matéria equivalente à do artigo 7.º CL. Não obstante a não inclusão
expressa da anulação ou modificação do contrato, temos por seguro estarmos
perante matéria subtraída ao acordo das partes, sendo, consequentemente
nulas as cláusulas que visem excluir oi limitar os direitos de anulação e de
modificação, designadamente através da inserção de cláusulas de renúncia.
Milita neste sentido, desde logo, o facto de a previsão da anulação ou da
modificação ter sido inserida após a consagração (não absoluta) do caráter
supletivo do diploma, sugerindo que o mesmo tem aplicação ao contrato de
salvação formado – ao contrato enquanto regulamento – independentemente
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de as respetivas cláusulas terem sido (na medida em que o possam ser)
construídas pelas partes ou resultem da aplicação do regime legal supletivo.
Em segundo lugar, a matéria do artigo 2.º, n.º3 LSM coloca-se, em rigor, fora
da construção do conteúdo do contrato, estando acima dessa operação.
Acresce que a redação do artigo 2.º, n.º3 aponta claramente no sentido da sua
imperatividade. Finalmente, last but not least, as situações de invalidade
podem, nos termos gerais, ser objeto de convalidação, em qualquer das suas
formas, mas não de renúncia antecipada; a confirmação, que é tida,
pacificamente, como a principal forma de convalidação dos negócios anuláveis,
só pode ter ligar após o desaparecimento do vício que constitui motivo da
anulabilidade, conforme resulta, aliás, do artigo 288.º, n.º2 CC. Daqui decorre
que uma renúncia ao direito de anular nunca poderia ter lugar; é esse o
momento em que, como diz Carvalho Fernandes, a ordem jurídica torna o
sujeito titular do direito potestativo de anulação ou confirmação «árbitro dos
seus próprios interesses». A primeira ressalva feita no artigo 2.º, n.º1 LSM é em
relação ao preceituado no artigo 3.º do mesmo diploma, que se refere ao dever
de prestar socorro a pessoas em perigo no mar. Já tivemos oportunidade de
chamar a atenção para a especificidade destas situações de salvação
obrigatória, que não suscitam dificuldades no que à respetiva imperatividade
concerne, de acordo, quer com múltiplos instrumentos internacionais,
designadamente a CL 1989 no seus artigos 10.º e 16.º, quer com outros
normativos internos, nos vários países. Também não suscita dúvidas o facto de
o dever de prestar socorro não ser um dever absoluto: ele tem lugar, como diz
o artigo 10.º, n.º1 CL 1989, referindo-se ao capitão, «so far as he can do so
without serious danger to his vessel and persons thereon» ou , como estabelece
o artigo 3.º, n.º1 LSM, «desde que isso não acarrete risco grave para a sua
embarcação ou para as pessoas embarcadas». A questão que se pode suscitar
– tanto mais que, como vimos o artigo 6.º, n.º1 CL 1989 não ressalva o disposto
no artigo 10.º da mesma Convenção – é a da necessidade ou da utilidade da
ressalva feita no artigo 2.º, n.º1 LSM, no que se refere ao artigo 3.º. Pensamos
que essa ressalva era, em rigor, desnecessária, já que é evidente o caráter
imperativo do disposto no artigo 3.º, cuja violação já dá lugar a sanções,
inclusive do foro penal, com base noutros normativos. Num prisma civilístico,
qualquer cláusula contratual que impusesse uma atuação desconforme com o
estabelecido no artigo 3.º, n.º1 seria já, de per si, nula por contrariedade à
ordem pública (artigo 280.º, n.º1), entendendo-se por esta «um complexo
valorativo que deve ser em qualquer caso mantido dentro da comunidade». Fora
a polémica, em rigor também desnecessária, por resultar já do próprio artigo
486.º CC, é a remissão para este último dispositivo feita pelo artigo 3.º, n.º2.
Outro regime, que o artigo 2.º, n.º1 LSM considera necessariamente integrado
no conteúdo do contrato de salvação, é o que resulta do artigo 4.º a mesma Lei.
Todo o elenco de obrigações do salvador aí enunciado – e não apenas o da
alínea b), relativo ao evitar ou minorar danos ambientais, conforme seria se o
legislador nacional se cingise aos termos do artigo 6.º, n.º3 CL 1989 – faz assim
parte do regulamento contratual. Nada há, do nossos ponto de vista, a objetar
a esta opção, independentemente das dificuldades que o cumprimento de
algum dos deveres aí enunciados acarrete, sob o ponto de vista jurídico. O
legislador nacional considera, também, imperativo o regime da compensação
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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especial do artigo 9.º. Também aqui vai mais longe do que o estabelecido no
artigo 6.º, n.º3 CL 1989, que se limita a considerar imperativos os deveres de
prevenir ou minorar danos ambientais. A solução da SLM é positiva: ela pecaria
por defeito se considerasse imperativo o dever de evitar ou minorar danos
ambientais (inserido na alínea b) do artigo 4.º) e não atenuasse a rigidez da
regra no cure no pay, nos termos do que resultam, grosso modo, do artigo 14.º
CL 1989 e do artigo 9.º LSM. Finalmente, faz parte do conteúdo necessário do
contrato de salvação o regime que resulta do artigo 16.º. Estamos perante uma
originalidade do legislador nacional que não tem antecedente na CL 1989 ou na
CB 1910. Admitindo – fiados, iuris et de iure, no facto de não ter avido
retificação do diploma, neste ponto – que o legislador quis, de facto, remeter
para o artigo 16.º, supomos ter tido sobretudo em vista a posição dos navios
do Estado enquanto salvadores e, nessa medida, eventuais credores, nos
termos do artigo 5.º, 9.º, ou 11.º. Por sua vez, ao considerar imperativa a não
aplicação do regime da LSM quando as embarcações do estado sejam objeto
de operações de salvamento, o legislador nacional terá querido,
aparentemente, evitar que o Estado tenha de suportar as remunerações em
causa. Contudo, esta situação é geradora de perplexidades: o artigo 16.º, que
o artigo 2.º, n.º1 considera imperativo, veda a aplicação da LSM e não a própria
celebração de contratos de salvação marítima, v.g. o LOF 2000; ou seja: não
impede o regresso da lógica da CL 1989, pela via do LOF, antes impossibilitado
pela via do artigo 16.º LSM. Todo este quadro terá de ser, por sua vez, articulado
com o disposto no artigo 14.º CB 1910, a que Portugal está vinculado.
ii. As representações na celebração do contrato de salvação: o artigo 2.º,
n.º4 LSM ocupa-se dos poderes para celebrar contratos de salvação no
que ao salvado concerne, investindo o capitão do navio objeto de
salvação – o quem nele desempenhe funções de comando – na
qualidade de representante de todos os interessados na expedição
marítima. A solução está na linha da adotada no artigo 6.º, n.º2 CL 1989,
tendo a vantagem, em relação a esta, de ser mais simples, uma vez que
não erege o proprietário do navio em representante, a par do capitão,
dos proprietários dos bens que se encontrem bordo do navio. À
margem do regime da salvação, o capitão é já um representante do
proprietário ou do armador do navio em tudo o que se relacione com
a expedição marítima: assim resulta do artigo 8.º DL 384/99, 23
setembro – que, compreensivelmente, retira essa qualidade ao capitão
no local da sede do proprietário ou do armador. Aliás, conforme resulta
do artigo 5.º, n.º1 do mesmo DL, o capitão, enquanto encarregado do
governo e da expedição do navio, responde como comissário do
armador, qualidade esta que o DL 202/98, 10 julho, lhe reconhecia
(artigos 4.º a 6.º), na linha, de resto, do regime do artigo 492.º CCom.
O mesmo DL 202/98, no seu artigo 8.º, n.º1, já consagrava o regime
constante, também, do citado artigo 8.º DL 384/99, exatamente nos
mesmos termos, estabelecendo o artigo 8.º, n.º2, curiosa e
significativamente, que essa representação «não é afetada pela
presença do proprietário, do armador ou de outros seus
representantes». A especificidade do regime do artigo 2.º, n.º4 está,
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assim, no facto de o capitão surgir como um representante – legal,
naturalmente – não só do proprietário ou armador do navio, mas de
todos os interessados na expedição marítima. A fórmula é feliz, sendo
aquela que se apresenta mais consonante com o facto de, em princípio,
a celebração de contratos de salvação, por parte do navio salvdo,
constituir avaria grossa, na qual, como é sabido (artigo 685.º, §1.º),
está em causa uma atuação do capitão ou por sua ordem «para a
segurança comum do navio e da carga». Estando em causa – e na
medida em que esteja em causa – mais do que o navio, o capitão
vincula todos os interessados na expedição, ainda que celebre o
contrato de salvação contra ordem expressa do proprietário ou do
armador. A circunstância de ter poderes de representação não
dispensa, como é óbvio, o capitão do cumprimento dos deveres
elencados designadamente nas alíneas h) e j) do artigo 6.º DL 384/99 –
deveres esses que já resultariam, aliás naturalmente, da sua qualidade
de representante. Mais concretamente, o capitão deve (alínea h) ),
«convocar a conselho oficiais, armadores, carregadores e sobrecargas,
sempre que for previsível a ocorrência de perigo para a expedição
suscetível de causar danos ao navio, tripulantes, passageiros ou
mercadorias» e, ainda (alínea j) ), «informar o armador, os
carregadores e os sobrecargas, sempre que possível (…) sobre os
acontecimentos extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as
despesas extraordinários ocorridos durante a viagem, sobre as
despesas extraordinárias efetuadas ou a efetuar em benefício do navio
e sobre os fundos para o efeito constituídos».
iii. Características e natureza do contrato de salvação: o contrato de
salvação marítima está sujeito a forma escrita, conforme impõe o
artigo 2.º, n.º2 LSM. A solução é algo rígida, não constando da CB 1910
nem d CL 1989, conquanto surja, depois, atenuada pela admissão, no
âmbito da forma escrita, de, designadamente, cartas, telegramas, telex,
telecópia e outros meios equivalentes, criados pelas novas tecnologias,
incluindo-se neste âmbito as potencialidades da contratação eletrónica.
O contrato de salvação marítima surge, depois, claramente, como um
contrato obrigacional, sem notas de realidade, quer quoad effectum
quer quoad constitutionem. Independentemente – e sem prejuízo –
das polémicas sobre a natureza jurídica da salvação espontânea, têm-
se suscitado dúvidas sobre a natureza da salvação contratual. Sendo
seguramente um contrato típico e nominado, não parece ser possível
negar-lhe a pertença à grande família dos contratos de prestação de
serviços, conquanto o «certo resultado», a que se refere o artigo 1154.º
CC, deva ser entendido, não como o resultado útil associado ao
princípio no cure no pay, mas como o efeito dos melhores esforços,
tendo em vista a salvação. Finalmente, no que respeita à dicotomia
gratuitidade/onerosidade, a dúvida surge, fundamentalmente, quando
o contrato de salvação se apresente sujeito à regra – supletiva – no
cure no pay do artigo 5.º, n.º1 da LS, não estabelecendo as partes uma
remuneração fixa ou mínima. Essa dicotomia, tal qual aceite pela
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doutrina, não capta a especificidade destes contratos, que nos
parecem melhor situados nessa categoria, algo nebulosa, dos
contratos de risco.
iv. As situações de anulabilidade ou de modificabilidade dos contratos de
salvação: vimos já supra, com referência ao Consulado do Mar e ao
CCom 1833, ser antiga e justificada a suspeição em relação aos
contratos celebrado a bordo no mar, na medida em que a situação de
dependência da vida e dos bens de uma das partes ponha em causa o
equilíbrio contratual. Viu-se também que o CCom 1888 previa, no seu
artigo 684.º, a possibilidade de reclamação por exagero bem como de
redução pelo juízo competente, em relação aos contratos feitos
durante o perigo. Adriano Anthero explicava o regime do artigo 684.º
em unção da sua harmonia com o disposto no artigo 666.º Código de
Seabra, que considerava nulo o contrato, «sendo o consentimento
extorquido por coação», independentemente de o mesmo provir de
algum dos contraentes ou de terceiros. De forma mais eloquente e
certeira, Cunha Gonçalves, depois de referir que «o capitão do navio,
que está em iminente risco, encontra-se manifestamente num estado
de coação», assinala diferenças entre a solução do artigo 684.º CCom
e ado artigo 666.º CC, em função da inadequação da solução da
invalidade: «Admitir a possibilidade de se anular o contrato era o
mesmo que sistematizar na lei a ingratidão, tão natural, depois de ter
recebido o favor, na maioria dos homens, que são destituídos de
memória moral. Estas razões militavam, segundo o autor, a favor do
justíssimo princípio do artigo 684.º, de acordo, de resto, com os
Congressos de Antuérpia de 1885 e de Bruxelas de 1888. Na linha do
estabelecido no artigo 7.º CB 1910 e do artigo 7.º CL 1989, a LSM vem,
no seu artigo 2.º, n.º3, prever a possibilidade de anulação ou
modificação das «disposições dos contratos de salvação marítima»,
numa dupla base: nos termos gerais de direito e ainda nos casos
enunciados nas alíneas a) e b) do artigo 2.º, n.º3. A referência do
legislador nacional a «disposições dos contratos» é obviamente infeliz,
devendo ler-se no sentido lógico e natural de «os contratos ou
qualquer das sauas cláusulas» - correspondente, de resto, às seguintes
expressões das versões francesas e inglesa do artigo 7.º CL 1989: «un
contrat ou l’une quelconue de ses clauses» e «a contract or any terms
thereof». A remissão para a anulação nos termos gerais de Direito fala
por si, não cabendo aqui a inventariação das situações sobre as quais
pode impender a sanção da anulabilidade. É, porém, evidente que as
figuras que, com mais probabilidade e frequência, terão aqui aplicação
são a coação moral, o estado de necessidade enquanto vício da
vontade e o negócio usurário. Conforme é destacado pela doutrina, a
ameaça ilícita a que se refere o artigo 255.º, n.º1 CC – que diz quando
é que a declaração negocial é feita sob coação moral – pode dirigir-se
contra qualquer bem jurídico, sendo essencial que o sujeito se tenha
determinado precisamente por força do medo e um mal. O estado de
necessidade exlui o ilícito por ser uma causa de justificação (artigo
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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339.º), mas pode ser visto como vício na formação da vontade, caso
em que se imporá a respetiva delimitação face à coação moral. Na
caracterização de Manuel de Andrade, «estado de necessidade é uma
situação de forte temor ou receio ocasionada por um perigo grave de
origem natural ou proveniente de um facto humano». Elucidativo do
relevo do estado de necessidade com vício da vontade nas situações
de perigo no mar é o facto de Manuel de Andrade19, tratando do valor
dos negócios jurídicos realizados em estado de necessidade, tomar
como referência da solução que considerava mais justa – a
redutibilidade dos negócios – o disposto no artigo 684.º CCom. Para
aquele autor, a solução do citado artigo do Código Comercial,
conquanto tivesse em vista apenas o perigo no mar, devia ser
generalizada, por analogia, aos contratos feitos em estado de
necessidade proveniente de um perigo de outra ordem. De qualquer
modo, face ao Código Civil atual, as situações de estado de necessidade
já não são tratadas como vício da vontade, mas no âmbito da figura do
negócio usurário: o artigo 282.º, n.º1 CC trata, precisamente, como
usurária, a exploração da situação de necessidade de outrem. O
negócio é usurário quando alguém explora a situação de especial
vulnerabilidade de outrem, obtendo para si ou para terceiro a
promessa ou a concessão e benefícios excessivos ou injustificados. A
exploração dessa situação de vulnerabilidade – que, de acordo com o
artigo 282.º, n.º1 CC, pode resultar de uma situação de necessidade,
inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de
caráter de outrem – determina a anulabilidade do negócio, mas, numa
técnica diferente da adotada quanto a vícios de vontade, permite
também a reductio ad aequitatem, nos termos do artigo 282.º CC. De
resto, conforme refere Menezes Cordeiro, os negócios usurários
correspondem a um instituto autónomo, direcionado para as situações
em que há um desequilíbrio não justificado das prestações, não sendo,
portanto, recondutível nem aos bons costumes nem aos vícios na
formação da vontade. No caso da salvação marítima, a exploração
típica será a data da situação de necessidade do salvado, cujos bens
estão em perigo no mar. Importa finalmente referir, com Menezes
Cordeiro, remetendo-se quanto ao mais para o regime geral da usura,
que as proposições do artigo 282.º CC devem ser interpretadas na
lógica dum sistema móvel: «quando a lesão seja muito grande, a
exploração e a fraqueza do prejudicado poderão estar menos
caracterizadas. E quando a dependência do prejudicado seja
escandalosa – por exemplo – não será de exigir um tao grande
desequilíbrio. Quanto à modificabilidade nos termos gerais de direito,
ela pode resultar, como vimos, do próprio regime da usura. Como
refere Pais de Vasconcelos, o regime da modificação «tem como
finalidade a reposição do equilíbrio económico do contrato, através da
correção e da eliminação do desequilíbrio que o inquina». O artigo
283.º, n.º1 CC permite, efetivamente, ao lesado, requerer a
19 Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, pp. 281-282
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modificação do negócio segundo juízos de equidade. Por sua vez,
requerida a anulação, a parte contrária tem a faculdade de opor-se ao
pedido, declarando aceitar a modificação do negócio (Arrigo 282.º,
n.º2). A preocupação com o aproveitamento do negócio é clara no
artigo 282.º: contudo, essa conservação terá de ser feita numa lógica
de eliminação do desequilíbrio viciador da justiça interna do contrato.
Também nos termos gerais, o contrato de salvação pode ser objeto de
modificação nos termos do artigo 437.º, n.º1 CC: alterando-se
anormalmente as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão
de contratar, a parte lesada tem direito à modificação do contrato
segundo juízos de equidade, ou à resolução, desde que a exigência das
obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé
e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. Têm aqui
aplicação, em sede de contrato de salvação, os contributos que a
doutrina nacional tem trazido para a consideração das alterações
relevantes – para a alteração anormal – para a grave afetação do
princípio da boa fé, para a tónica na exigência das obrigações para a
determinação dos riscos próprios do contrato, ou para a modificação
baseada em juízos de equidade. Não cabendo, aqui e agora, a análise
desses pontos, não podemos deixar de focar, contudo, o problema da
determinação do risco próprio do contrato de salvação. Essa
determinação não respeita a um risco abstrato do tipo do negócio mas
ao risco ou à álea do contrato que esteja em causa: assim, se o contrato
de salvação é celebrado relativamente a um navio que corre um
determinado e identificado perigo e, antes das operações de salvação,
em virtude da imprevista e imprevisível alteração das condições do mar
e do estado do navio, esse perigo se agrava consideravelmente em
termos de tornar substancialmente mais onerosas e perigosas as
mesmas operações, é de facultar ao salvador a solução de,
conservando o contrato, modificar as respetivas cláusulas, máxime, no
caso concreto, o salário que tenha sido fixado. O artigo 2.º, n.º3 LSM
permite a anulação ou a modificação do contrato de salvação nos casos
previstos nas suas alíneas a) e b). Aparentemente, atenta a anterior
previsão da anulação ou modificação «nos termos gerais de direito», as
alíneas em causa conteriam matéria nova, não abrangida por aquela
previsão. O primeiro caso específico de anulação ou modificação
previsto no artigo 2.º, n.º3 é (alínea a) ) o de «o contrato ter sido
celebrado sob coação ou influencia de perigo, não se apresentando
equitativas cláusulas». Abstraindo da má redação em língua
portuguesa da frase inicial – que segue de perto as expressões inglesas
e francesas da alínea a) do artigo 7.º CL 1989 – constatamos de
imediato a referência à celebração do contrato de salvação sob coação.
Não é crível que o legislador se tenha querido referir à coação física,
restando a coação moral, já abrangida, como vimos, pela remissão para
a anulação nos termos gerais. Haveria, porém, ainda numa primeira
leitura, uma originalidade nesta referência específica à coação:
enquanto que, nos termos gerais, a coação moral “apenas” determina
a anulabilidade do negócio (artigo 256.º CC), nos termos da alínea a)
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do artigo 2.º, n.º3 LSM, ela permitira, não só a anulação mas também,
à semelhança do que ocorre no negócio usurário, a modificação do
contrato. Parece-nos, porém, que a coação referida na citada alínea a)
não é a coação moral do artigo 255.º CC mas, antes, a coação no
sentido comum do termo, equivalente à «pression abusive» da versão
ou à «undue influence» da versão inglesa. Assim sendo, tal situação de
pressão abusiva, destinada a obter vantagens desconformes com a
equidade – ou seja, vantagens desproporcionadas, que ferem o
equilíbrio contratual – corresponderá à situação caracterizada na nossa
lei como negócio usurário no artigo 282.º CC. E o mesmo se dirá da
outra situação prevista na alínea a) do artigo 2.º, n.º3: a influência do
perigo. Na verdade, se o contrato é celebrado sob influência do perigo
e as cláusulas se apresentam, em consequência dessa influência,
atentatórias do equilíbrio contratual, isso significará, na linguagem do
artigo 282.º CC, que terá havido exploração da situação de necessidade
associada ao perigo, o que nos conduz, de novo, para os braços do
negócio usurário. Ou seja e em resumo, as situações da alínea a) do
artigo 2.º, n.º3 LSM estão contidas na remissão para a anulação ou
modificação nos termos gerais de direito, já que lhes devem ser
aplicados os requisitos exigidos para a caracterização de um negócio
como usurário. O segundo caso específico de anulação ou modificação
previsto no artigo 2.º, n.º3 LSM (alínea b) ) é o de «o salário de salvação
marítima ser manifestamente excessivo ou diminuto em relação aos
serviços prestados». O legislador toma por referência uma situação
objetiva – a situação em que existe um desequilíbrio manifesto entre
as prestações de cada uma das partes – e, independentemente de
quaisquer ponderações subjetivas, como um vício da vontade
identificável na coação ou na exploração da situação de outrem, como
ocorre na usura, determina a suscetibilidade da modificação da
cláusula relativa ao salário de salvação. Aparentemente, o legislador
permitiria, também, a anulação na situação da alínea b). Contudo, não
nos parece que assim seja. Na verdade, estamos perante uma situação
de manifesto desequilíbrio entre as posições das partes, que pressupõe
a ocorrida prestação dos serviços de salvação. Ou seja, a desproporção
manifesta de posições acontece, não numa fase genética do contrato,
mas numa fase posterior, fase essa em que, prestados os serviços, a
única reação que faz sentido económico e jurídico é a da modificação.
Contudo, essa modificação não é equivalente à do artigo 437.º, n.º1 CC,
já que não se funda numa alteração das circunstâncias: ela basta-se,
para ter lugar, com a identificação do desequilíbrio manifesto.
Podemos concluir, assim, que a previsão da alínea b) do artigo 2.º, n.º3
da LSM é autónoma, por não estar já, integrada na remissão para os
«termos gerais de direito». Propendemos, ainda, no sentido de à
previsão da alínea b) só poder, por interpretação restritiva, ser aplicada
a solução da modificação e não também a da anulação.
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Limitação de Responsabilidade por Créditos
Marítimos20
1. O abandono in natura nos códigos comerciais de 1833 e de 1888:
1. As situações de responsabilidade do proprietário do navio e as de abandono
possível: quer o Código Comercial de 1833, quer o de 1888 consagravam
expressamente a faculdade de abandono do navio e do frete por parte do
proprietário do navio, abandono este que era tido como sendo um abandono
in natura. A consagração do abandono in natura nos Códigos Comerciais
portugueses, fortemente influenciados pelo sistema francês, não suscita
qualquer perplexidade, tanto mias que o sistema de abandono estava já em
vigor em Portugal, por força da Ordonnance da Marinha de Colbert21, aplicável
por força da Lei da Boa Razão. Reproduzindo praticamente a versão inicial do
Code du Commerce, o Código de 1833 começava por estabelecer que «todo o
proprietário de navios» era civilmente responsável «pelos factos do capitão ou
mestre, em quanto relativos ao navio e a sua expedição». Seguia-se a previsão
do abandono: «cessa em todo o caso a responsabilidade do dono pelo abandono
do navio, e do frete, ganho ou a vencer». Na doutrina, Ferreira Borges dava nota
da polémica da doutrina francesa relativamente ao âmbito do abandono
possível, face à redação inicial do Code du Commerce, considerando como
«doutrina verdadeira que pelo abandono do navio e frete os danos do navio se
livrão de toda a responsabilidade provenientes quer de facto quer de delictos do
mestre». O Código Veiga Beirão veio também consagrar a responsabilidade do
proprietário do navio, o que é feito no artigo 492.º, em termos que suscitam
alguma perplexidade, quando confrontamos as situações de responsabilidade
com aquelas em que é facultado o abandono. Mais concretamente, o artigo
492.º - que só viria a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 202/98, 10 julho –
consagrava a responsabilidade civil do proprietário do navio (artigo 1.º) pelos
atos ou omissões do capitão e da tripulação (artigo 2.º) pelas obrigações
contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição (artigo 3.º) pelos
prejuízos ocorridos durante o tempo e por ocasião de qualquer reboque e
(artigo 4.º) pelas faltas de pilotos ou práticos tomados a bordo. Já no que
respeita à faculdade de abandono do navio e do frete, o §1.º do mesmo artigo
limitava-a às situações de responsabilidade previstas no n.º2, afastando, assim,
do seu âmbito de aplicação, o conjunto das situações paradigmáticas ou
históricas do instituto – desde a Ordonnance, passando pelo Code du Commerce
e pelo Código Ferreira Borges – ou seja o conjunto dos factos do capitão e da
20 Limitação de Responsabilidade por Créditos Marítimos, Capítulo III – Responsabilidade pela Expedição Marítima e a sua Limitação, Januário da Costa Gomes, Almedina; páginas 114 a 219. 21 Segundo Viegas Calçada, a doutrina do abandono era seguida, em Portugal, antes mesmo da Ordonnance, «pelo consentimento e aplicação dos preceitos do Consulado do Mar»; contudo, o autor não indica nenhuma fonte que possa servir de suporte a esta afirmação. De resto, há quem, como Pardessus, coloque o Portugal da Idade Média sob a influência atlântica dos Rolos de Oléron – que não previam a limitação da responsabilidade do armador – que não sob a influência mediterrânea do Consulat del Mar.
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tripulação relativos ao navio e à expedição22, não foi explicada, tanto mais que
nos textos inspiradores do Código de 1888, desde o Code du Commerce até ao
Código Comercial Italiano de 1882 ou ao Código Comercial Espanhol de 1885,
diplomas apontados como tendo influenciado o legislador de 1888, não
encontramos apoio para uma tal opção que, ao fim e ao cabo, excluía das
situações de abandono possível os casos de responsabilidade civil extra-
obrigacional. Não espanta, assim, que uma das perplexidades manifestadas
pela doutrina – de algum modo tolhida pela aparente clareza da letra da lei –
tenha incidido, precisamente, sobre a questão da dimensão da faculdade de
abandono. Dentro da fieira de delicados problemas suscitados pelo abandono
do navio e do frete – uma vez assumida, conquanto não necessariamente
compreendida, a especificidade do regime no §1.º do artigo 492.º Código
Comercial – a principal tarefa do intérprete centrava-se na, tanto quanto
possível rigorosa, delimitação das situações em que o abandono liberatório era
possível, situações essas albergadas sob a designação de «obrigações
contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição». Previamente a uma
concretização, pela positiva, da previsão do n.º2 artigo 492, da qual derivará,
per relationem, o âmbito de incidência do abandono liberatório no Código
Comercial de 1888, importa vincar a exclusão do abandono – mantendo-se,
obviamente, a responsabilidade do proprietário do navio – relativamente às
obrigações contraídas para pagamento de soldadas à tripulação, por força do
artigo §1.º artigo 492.º. A exclusão da eficácia liberatória do abandono
relativamente aos créditos de soldadas era explicada quer com base no caráter
não imprevisto de tais despesas quer com razões de humanidade, lendo-se,
assim, em Adriano Anthero: «já porque a equipagem foi formada de harmonia
com o proprietário e, portanto, este obriga-se pessoalmente e diretamente a
pagar-lhe; já, porque o débito dos salários não é um débito imprevisto e, pelo
contrário, é tal que, até ao fim da expedição, deve julgar-se inevitável; já porque
os salários dos tripulantes são, como vulgarmente se diz, sagrados, por serem a
paga do suor dos pobres; e ainda porque a lei os considera tão favorecidos, que
até lhes dá o privilégio sobre o navio e frete, nos termos dos artigos 578.º, n.º6,
e 572.º, nº.2». A responsabilidade do proprietário do navio pelas obrigações
contraídas pelo capitão apresentava-se como lógica, atento o facto de este ser
um representante daquele. A falta dessa representação seria a explicação para
o facto de o n.º2 artigo 492.º não se referir também – diversamente do que
acontece no n.º1 – às obrigações contraídas pelos membros da tripulação. Esta
mesma lógica da representação era erigida por Adriano Anthero como
explicação da circunscrição do abandono do navio relativamente às situações
previstas no n.º2 artigo 492.º: «Ora, todo aquele que contratar com o capitão
deve conhecer que ele é apenas um representante do proprietário quanto ao
navio, e que não tem, portanto, poderes, além do objeto mandato, que vem a
ser o valor do mesmo navio». E conclui «Por isso, também o contraente não
pode contar com mais nada para o seu pagamento, além do mesmo navio; e,
por consequência, não se pode queixar se o proprietário lho abandonar em
pagamento da dívida». Delimitação, pelo recorte negativo, plasmado no §1.º
22 Situações essas nas quais tanto se compreendiam os casos de responsabilidade extra-obrigacional como de responsabilidade obrigacional.
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do artigo 492.º, o âmbito do abandono do navio e do frete ganho ou a vencer,
determinada estava a correspondência entre a previsão do n.º2 e do §1.º do
artigo 492.º: o abandono liberatório era possível relativamente a todas as
obrigações contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição, salvo as
que espeitassem às soldadas da tripulação. Substancialmente, mas com a citada
exce3ção, o abandono podia ser feito relativamente às obrigações contraídas
pelo capitão no exercício das suas funções. Assim é que se admitia o abandono
do navio e do frete relativamente a todas as obrigações contraídas pelo capitão,
ainda que fora do navio, relativas ao navio e expedição, quer essas obrigações
decorressem da atividade normal do capitão, quer de incumprimento ou
cumprimento defeituoso de obrigações assumidas.
2. Responsabilidade do proprietário ou do proprietário-armador? Tal qual
acontecia no domínio de vigência do artigo 1339.º Código Ferreira Borges, o
artigo 492.º Código Comercial consagrava, literalmente, os termos da
responsabilidade do proprietário do navio, estando, também literalmente, a
faculdade de abandono gizada com referência a esse responsável. Era essa, de
resto, a solução literal do Código Comercial Francês e também do Italiano.
Contudo, os atos e factos relativamente aos quais era estabelecida a
responsabilidade do proprietário do navio eram, na sua maioria e na sua
esmagadora expressão, atos ou atividades resultantes da exploração do mesmo,
suscitando-se, em consequência, a lógica dúvida sobre se a responsabilidade e
o abandono estavam, summo rigore, previstos para o proprietário do navio, qua
tale, ou se, diversamente, deveria entender-se a referência a «proprietário»
como se reportando a «armador» ou então, pelo menos, a «proprietário-
armador». Dúvidas similares tinham sido também levantadas e profusamente
discutidas em França e em Itália, face, respetivamente, ao teor do artigo 216.º
Code e ao do artigo 491.º do códice di commercio. Na doutrina portuguesa,
encontramos, desde cedo, autores consagrados, como Adriano Anthero, para
quem, ainda que o armador fosse pessoa diversa do proprietário, este
respondia pelas faltas do capitão, «já porque o código não distingue, e já porque
o navio é que vem a ser a garantia do capitão e da tripulação». A
responsabilidade do proprietário do navio resultava, para o autor, do facto de
o capitão ser seu mandatário e ainda do facto de, regra geral, o capitão «não
tem meios por onde responda ou não se sabe onde os tem». A reação contra
esta ideia surge, sobretudo, com Cunha Gonçalves, para quem a
responsabilidade consagrada no artigo 492.º do Código era do armador-
proprietário e não do simples proprietário, considerando mesmo
«completamente inaceitável» a posição contrária. No entanto, já depois de
Cunha Gonçalves, autores como Frederico Martins sustentaram a
responsabilidade do proprietário do navio, nos termos do artigo 492.º,
independentemente de o mesmo cumular a qualidade de armador: «não
parece natural que ao legislador escapasse uma hipótese tão vulgar, como é a
de ser o armador pessoa distinta da do proprietário, e antes significa que no
espírito da lei está o propósito de manter o proprietário do navio responsável
pelos atos do comandante e tripulação, qualquer que seja o armador», e ainda:
«os interesses do comércio exigem que haja uma entidade certa responsável por
tudo o que se passa no navio, e o proprietário é a única entidade conhecida de
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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terceiros, porque tem o seu nome inscrito nos respetivos registos». Também
Palma Carlos se mostra, aparentemente, insensível a uma interpretação do
artigo 492.º CCom que concentre na figura do proprietário as qualidades de
proprietário-armador. Segundo Cunha Gonçalves, a responsabilidade dos
proprietário dos navios pelos atos do capitão e da tripulação e pelas obrigações
contraídas pelo capitão relativas ao navio e sua expedição não era fundada «no
simples facto da propriedade do navio, mas sim no princípio geral em que
assenta a responsabilidade dos comitentes, consignado no artigo 2380 CC, e,
portanto, no uso do navio ou no exercício da indústria de transportes
marítimos». A partir daqui, explicado o regime especial do artigo 492.º CCom
pelos termos do regime geral do artigo 2380 Código Seabra, o autor justifica o
porquê da própria necessidade do artigo 492.º, com o seguinte argumento:
«embora a matéria da responsabilidade do comitente esteja regulada no Código
Civil, nada se perdeu determinando-se no Código Comercial os casos de
responsabilidade do proprietário-armador, antes isto era indispensável para se
estabelecer a limitação de responsabilidade em cada caso, limitação que se não
encontra na lei geral». O exposto argumento de Cunha Gonçalves, admitindo o
pressuposto do autor de que a responsabilidade do armador – o armador-
locatário ou armador-fretador, que não o armador-gerente – pelos atos do
capitão resultava do princípio geral do artigo 2380.º CC, poderá, a priori,
apresentar-se como pouco convincente, podendo questionar-se se o legislador
precisava repetir no artigo 492.º o regime geral do Código Civil, para efeitos de
estabelecer um mecanismo específico de limitação da responsabilidade
circunscrito a apenas algumas das situações de responsabilidade, mais
concretamente às no n.º2 artigo 492.º. Aparentemente em resposta ao
argumento de que o navio e o frete seriam uma garantia dos terceiros credores,
que julgam contratar com o navio, ripostava Cunha Gonçalves: «porque o
abandono, longe de ser uma garantia, um benefício e um direito real instituído
a favor dos credores, só importa um a diminuição das suas garantias, pois a
responsabilidade dos armadores fica assim limitada ao navio e ao frete». A
poucos anos da revogação do artigo 492.º CCom pelo Decreto-Lei n.º 202/98,
Menezes Cordeiro veio sustentar que a referência ao proprietário,
designadamente no artigo 492.º CCom, deveria ser objeto de cuidada
interpretação, em ordem ao apuramento sobre se o legislador se referia,
efetivamente, ao proprietário ou, antes, ao armador ou mesmo ao proprietário-
armador. Para o autor, a imputação prevista nos termos do artigo 492.º CCom
operava a título de risco, no regime da comissão, sendo aí consagrada «uma
especial versão da responsabilidade do comitente»; nesta lógica, o mesmo autor
sustentava que essa responsabilidade como comitente recaía sobre o armador,
independentemente de ser proprietário: «pode proclamar-se que apenas o
armador ou o proprietário-armador responde, como comitente,
independentemente da culpa, pelos danos causados pelo navio ou a seu
propósito; o proprietário não-armador não responde senão pelo ilícito próprio».
A posição de Menezes Cordeiro surge, depois, contrariada por Mário Raposo,
para quem, «perante terceiros, o responsável é o navio, seja ele prefigurado pelo
proprietário ou pelo armador», considerando, ademais, que a solução
sustentada por Menezes Cordeiro, que enquadra num «evidente tentame
doutrinal e jurisprudencial para uma atualização do sistema do artigo 492.º», é
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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«uma solução que arruma na gaveta problemas complexos». Na jurisprudência,
importa destacar o Acórdão do STJ 1 fevereiro 1983, que segue de perto a
posição de Cunha Gonçalves, entendendo que «só existe responsabilidade do
proprietário do navio pelas obrigações contraídas pelo capitão desde que a
navegação seja por ele exercida, quer diretamente quer por meio de um
gerente». Conforme resulta do exposto, quer a teoria que sediava no artigo
492.º CCom uma responsabilidade do proprietário-armador, quer aquela que
admitia a responsabilidade do simples proprietário, tinham a seu favor
argumentos de peso. Digamos que, sob o ponto de vista dos princípios gerais
da responsabilidade civil, a tese que, a priori, nos surge como mais atrativa é
aquela que foi sucessivamente defendida, entre outros, por Cunha Gonçalves e
Menezes Cordeiro, identificando o proprietário do citado artigo 492.º com o
proprietário-armador. Por um lado, não parecia fazer sentido responsabilizar o
mero proprietário pela expedição, cujo dominus é o armador; por outro, o
direito de abandono do navio e do frete só se apresentava como lógico
relativamente a quem, sendo proprietário do navio, fosse também responsável
pela expedição. Não obstante, a argumentação destes autores, parece não
considerar devidamente as especificidades maritimistas (e não civilistas como
marcadamente apontam), deixando na obscuridade a, digamos, “erro
colbertiano” de se centrar no proprietário do navio, desconhecendo a realidade
do armamento e a figura do armador como distinta do proprietário. Tal crítica
não pode ser aceite em absoluto, já que o Código Comercial continha várias
disposições das quais resultava, de modo claro, a inconfundibilidade entre a
figura do armador e a do proprietário do navio; assim:
a. O §2.º do artigo 494.º considerava armadores os proprietários
ou afretador que fizessem equipar o navio;
b. O §1.º do artigo 495.º indicava, supletivamente, o capitão
como caixa da parceria, quando esta fosse feita entre os
armadores e a tripulação;
c. O §2.º do artigo 495.º apontava critérios supletivos para a
distribuição dos lucros e perdas na parceria marítima, em
função do interesse de cada armador, distinguindo, para o
efeito, consoante o armador fosse proprietário do navio ou
afretador;
d. O artigo 498.º dispunha no sentido da necessidade de o capitão
ouvir «os armadores ou proprietários do navio», quando
presentes, para formar e ajustar a tripulação;
e. O n.º11 do artigo 508.º impunha ao capitão deveres de
informação aos «armadores ou caixas ou aos seus
representantes»;
f. O artigo 509.º atribuía ao capitão poderes para representar em
juízo «os proprietários ou armadores do navio», considerando-
o também seu mandatário «em tudo o que diz respeito à
gerência e expedição do navio»;
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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g. O §único artigo 509.º cerceava alguns poderes do capitão
«estando presente algum dos proprietários ou armadores do
navio»;
h. O artigo 511.º impunha ao capitão o dever de avisar
imediatamente os «armadores, afretadores e destinatários»,
quando, no decurso da viagem, tenha necessidade de dinheiro
para situações de «urgência do navio»;
i. O §3.º artigo 511.º impunha ao capitão, em determinados
termos, antes de partir do porto onde teve de fazer despesas
extraordinárias, o dever de enviar aos «proprietários ou
armadores do navio» uma conta-corrente das mesmas;
j. O artigo 522.º, que previa a indemnização a aplicar se a viagem
deixasse de se verificar «por facto de proprietário, capitão, ou
afretadores»;
k. O §2.º do artigo 534.º identificava situações em que o capitão
não podia exigir dos «proprietários ou armadores» o reembolso
de indemnizações pagas a membro das tripulação.
Estas disposições mostram claramente – diríamos mesmo que demonstram –
que, para o legislador de 1888, tal qual, de resto, já acontecia no domínio do
Código de 1833, a figura do proprietário do navio não se confundia com a do
armador, podendo, assim, admitir-se, como primeira presunção, que a
referência ao proprietário do navio feita no artigo 492.º CCom era querida e
assumida, ficando, então, a partir daqui, campo para apreciações críticas, como
seja aquela que considera tal regime distorcido ou desfocado por se basear na
propriedade, que não na exploração do navio. É certo que podia não ser assim:
o legislador português podia ter feito uma opção diferente centrando-se na
responsabilidade do proprietário-armador. Contudo, não parece ter sido esse
o caso, conforme ilustram as disposições citadas. Contra a posição exposta,
poderá, com Menezes Cordeiro, suscitar-se o facto de o simples proprietário
nada ter a ver com a exploração do navio, não fazendo, assim, sentido que
responda perante terreiros por atos ou atividades que dessa exploração
resultem. Assim é, efetivamente, no Direito Civil, mas cremos que não, nos
mesmos termos, em Direito Marítimo, cuja especificidade neste domínio
ressalta de uma análise global ou de conjunto. Na verdade, o regime do artigo
492.º CCom não podia ser isolado do facto de o artigo 578.º do mesmo Código
consagrar então – e continuar a consagrar – privilégios creditórios sobre o navio,
ainda que os créditos que de tais privilégios são assistidos tenham origem na
exploração do navio feita por armador não proprietário: trata-se de situações
em que o proprietário do navio não pode pretender a inaplicação ou
inexistência de tais privilégios pela circunstância de não ser o explorador do
navio – de não ser o armador, admitindo que este é não apenas o que arma e
equipa o navio mas que o explora também. É mister explicar, assim, como é
que, numa situação em que o proprietário do navio não tem a respetiva
exploração – que é desenvolvida por outrem, por sua conta e risco – o navio
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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fica, de acordo com o artigo 578.º CCom, onerado com privilégios creditórios
para garantia de créditos decorrentes de:
i. Despesas de pilotagem e reboque da entrada do porto (n.º4);
ii. Direitos de tonelagem, faróis, ancoradouro, saúde pública e
quaisquer outros de porto (n.º5);
iii. Despesas com a guarda do navio e com a armazenagem dos
seus pertences (n.º6);
iv. Despesas de soldados do capitão e tripulantes (n.º7);
v. Embolso do preço das fazendas do carregamento, que o
capitão precisou vender (n.º9);
vi. Prémios de seguros (n.º 10 e 14.º);
vii. A indemnização devida aos carregadores por falta de entrega
das fazendas ou por avaria que estas sofressem (n.º15), para
nos referirmos apenas àquele que estão claramente associados
à exploração do navio, que não à sua propriedade.
Não será, certamente, por acaso que a Convenção de Bruxelas de 1926 para a
unificação de certas regras relativas aos privilégios e hipotecas marítimos,
consagra privilégios (designadamente) sobre o navio que resultam da respetiva
exploração, ainda que o navio não seja pertença de quem o explora. Assim,
claramente, os casos de créditos resultantes de
i. Direitos de tonelagem, farolagem, do porto e as demais taxas e
impostos público das mesma natureza (artigo 2.º, n.º1);
ii. Despesas de pilotagem, guarda e conservação desde a entrada
do navio no último porto (artigo 2.º, n.º1, in fine);
iii. Créditos resultantes do contrato de arrolamento do capitão, da
tripulação e de outras pessoas contratadas a bordo (artigo 2.º,
n.º2);
iv. Indemnizações por lesões corporais aos passageiros e às
tripulações (artigo 2.º, n.º4);
v. Indemnizações por perdas ou avarias da carga ou de bagagens
(Artigo 2.º, n.º4, in fine);
vi. Créditos contraídos nos termos previstos no artigo 2.º, n.º5,
«para as necessidades reais da conservação do navio ou da
continuação da viagem».
Não é ainda por acaso que a Convenção de Bruxelas de 1952 sobre arresto de
navios de mar permite, no artigo 3.º, n.º4, o arresto de navio por créditos
decorrentes da respetiva exploração feita por sujeito diverso do proprietário do
navio. O que é que tudo isto demonstra? Que a responsabilidade decorrente da
exploração do navio não está desligada do próprio navio, não está desligada da
“responsabilidade do navio”, cuja atuação nos sistemas continentais, maxime
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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de inspiração francesa, passa pela intervenção do respetivo proprietário e pela
consagração de um regime de responsabilidade pessoal. Ou seja: pretende-se
responsabilizar o navio, mas como o sistema geral de responsabilidade é avesso
à responsabilidade real, responsabiliza-se aquele que tem o ius disponendi do
navio, ou seja o respetivo proprietário, salvando-se, assim a lógica da
responsabilidade pessoal. Essa ideia surge, ainda que nem sempre de forma
clara, entre nós, nos autores “maritimistas”, enquanto que os “civilistas” não
consideram a responsabilidade do proprietário do navio e m termos globais –
em termos, digamos, de “sistema marítimo”. Na verdade, os autores
maritimistas defendiam, na sua maioria, que o artigo 492.º responsabilizava o
proprietário do navio, ainda que não armador. É, porém, de reconhecer que
não encontramos nessa mesma doutrina uma explicação global ou de sistema.
A interpretação exposta – que tem, depois, continuação no regime do Decreto-
Lei n.º202/98 – evidencia um sistema de responsabilidade pensado para o navio
mas redigido para o seu proprietário: um sistema de responsabilidade querido
como real, mas não assumido, já que é normativizado em termos de
responsabilidade pessoal. Contra esta interpretação, não nos parece decisivo o
facto de o abandono liberatório estar consagrado, a um tempo, para o
abandono do navio e do frete, já que só o proprietário-armador poderia
abandonar esses dois bens. Trata-se de um argumento que tem sido objeto de
atenção ao longo do tempo, mas que, no nosso entender, não é
suficientemente forte para permitir contrariar o sentido da posição exposta.
Tudo estará na determinação do que seja o frete relevante numa tal situação.
Foi também suscitada a questão de saber se o proprietário do navio podia
abandonar o produtor da venda do mesmo ou a importância da indemnização
que houvesse recebido em consequência da perda do navio, em caso de sinistro.
Alguma doutrina francesa admitia mesmo que o proprietário do navio pudesse
socorrer-se do abandono em situações em que o navio já tivesse sido vendido
judicialmente, tendo o produto da venda sido distribuído aos credores. Era
mesmo invocado o seguinte argumento a fortiori: se o proprietário do navio
podia abandonar aos credores um navio desaparecido para sempre no fundo
do oceano, porque não podia abandonar o preço do navio vendido? Entre nós,
Frederico Martins, confessando nortear-se mais «pelos princípios mais
maleáveis da equidade» do que pela letra da lei, e pese embora o
reconhecimento que o §1.º artigo 492.º CCom devia, enquanto normal
excecional, ser interpretado em sentido estrito, considerava ser «de pouca
equidade negar ao proprietário que foi forçado, por motivos alheios à sua
vontade, a alienar o seu navio ou que o perdeu, em consequência de sinistro, a
faculdade de limitar a sua responsabilidade aos valores representativos do navio
alienado ou destruído, porque, embora a letra da lei o não permita
expressamente, as razões são as mesmas». Independentemente da posição a
tomar neste problema, o que importará aqui realçar é o facto de dúvidas como
esta porem a nu as debilidades do regime do abandono in natura e a sua
incapacidade para lidar com situações não rigorosamente enquadráveis na
situação paradigma: aquela em que, no fim da viagem, o proprietário do navio,
avalia e confronta o ativo do navio com o passivo da expedição.
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c. Abandono pelo armador não-proprietário? Outra dúvida suscitada pela redação
do artigo 492.º Ccom respeitava à delimitação das situações em que o
abandono era possível, uma vez aceite, de iure constituto e atenta a clareza da
letra da lei, a circunscrição das situações de abandono aos casos do n.º2 do
artigo 492.º. Naturalmente que a questão das fronteiras do abandono
dependia também da resposta à questão acima suscitada, ou seja à questão de
saber se a responsabilidade consagrada no artigo 492.º pressuponha a
qualidade de armador por parte do proprietário ou se bastava a singela
qualidade de proprietário. Admitindo a responsabilidade do armador não
proprietário, com fundamento no regime civil da comissão ou com base no
regime do artigo 492.º CCom, suscitava-se a dúvida sobre se a faculdade de
abandono do navio e do frete estava reservada ao proprietário do navio –
simples proprietário ou proprietário-armador – ou se o mesmo benefício
poderia ser invocado pelo armador não proprietário relativamente às dívidas
da expedição marítima. Com relação a idêntica dúvida no quadro do Code du
Commerce, a maioria da doutrina fazia depender o exercício do abandono da
qualidade de proprietário do navio, tudo isto pressupondo, naturalmente, a sua
responsabilidade Na verdade, par aqueles que sustentavam que a
responsabilidade consagrada nesses dispositivos pressupunha a cumulativa
qualidade de armador, a questão do abandono não se colocava, à partida, nos
casos em que o proprietário não tivesse também essa qualidade, uma vez que
não fazia sentido equacionar a limitação da responsabilidade relativamente a
um sujeito não responsável. Já para aqueles que dispensam a qualidade de
armador para a responsabilização do proprietário do navio, não havia dúvidas
de que o proprietário responsável podia abandonar o navio e o frete. Quanto
ao armador não-proprietário, dizíamos que, em geral, a doutrina não admitia o
abandono do navio, pela razão de que o mesmo não podia abandonar uma
coisa alheia; esta posição era, no geral, comungada não só por aqueles para
quem a responsabilidade consagrada nos citados dispositivos se bastava com a
simples qualidade de proprietário do navio como para aqueles para quem tal
responsabilidade pressuponha a adjunção da qualidade de armador. Saliente-
se, contudo, que estas posições não eram totalmente pacíficas23. No Direito
Português, perante idêntica dúvida suscitada face ao artigo 492.º CCom,
23 Em Danjon, por exemplo, a sustentação de que o armador-fretador podia abandonar o navio, não obstante não ser seu proprietário, era feita com base num mandato tácito do proprietário para a efetivação do abandono; para Ripert, o armador-fretador, responsável como comitente pelos atos do capitão, podia, não obstante não ter a sua situação diretamente contemplada na previsão de abandono do artigo 216.º Code du Commerce, limitar a sua responsabilidade, mais considerando que, numa legislação que permitisse o abandono de valor, o armador deveria ser autorizado a liberar-se, pagando o valor do navio e o frete (essa limitação seria conseguida pelo conjugado abandono do frete por parte do armador e do navio por parte do respetivo proprietário); Grosso modo, no mesmo sentido, era a posição sustentada por Bonnecase, autor que, considerando, embora, que o proprietário mencionado no artigo 216.º era o proprietário-armador e não o simples proprietário, entendia que o armador-fretador não podia abandonar o navio por ser proprietário do mesmo (contudo, tanto o armador-fretador quanto o armador-usufrutuário beneficiavam do abandono, mas duma maneira apropriada às respetivas situações): neste quadro, uma aplicação do princípio ou da lógica do património de mar impunha uma adaptação do abandono às circunstâncias; os credores poderiam exigir o navio ao proprietário, o frete ao armador e, eventualmente, o gozo do navio ao armador-usufrutuário.
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Frederico Martins entendia que o abandono estava reservado ao proprietário
do navio, o mesmo acontecendo com Viegas Calçada e com Azevedo Matos,
mas Cunha Gonçalves, reconhecendo, embora, que, pelo princípio nemo plus
ius transfere potest quam ipse habet, o armador não proprietário não podia
dispor da propriedade do navio através de abandono, admitia («poderá
sustentar-se»), à semelhança de posições doutrinais sustentadas em Espanha
que o armador não proprietário se pudesse libertar entregando aos credores
«não o navio, mas uma soma que represente o navio e o frete ganho durante a
viagem». Para Menezes Cordeiro, o benefício do abandono estava limitado ao
proprietário-armador, respondendo o armador não-proprietário com todo o
seu património. Na nossa opinião, o abandono do navio previsto no §1.º do
artigo 492.º CCom só podia ser feito pelo proprietário, único titular do ius
disponendi sobre o navio. Na verdade, resultando, a final, do abandono
liberatório uma perda da propriedade do navio, seria necessário demonstrar
que o armador-afretador tinha legitimidade para alienar coisa alheia. Contudo,
pese embora o facto de os privilégios poderem recair sobre o navio à revelia do
seu proprietário, não encontramos um suporte suficientemente forte para
sustentar uma tal legitimidade alienatória. Pelo contrário, o artigo 513.º CCom,
ao fazer depender a validade da venda do navio pelo capitão- com exceção do
“caso único de navegabilidade” – de autorização especial do proprietário do
navio, fornecia um argumento adicional no sentido da ineficácia de um
abandono do navio por parte do armador não-proprietário. A partir daqui, é
manifesta a distorção do sistema de limitação de responsabilidade consagrado
no Código Comercial, porque centrado no abandono do navio quando o
armador não proprietário também podia ser responsável, não fazendo sentido,
quanto a este, nem a não previsão de qualquer forma de limitação da
responsabilidade nem a ausência de responsabilidade. A distorção está no facto
de o legislador ter laborado no pressuposto da concentração numa só pessoa
das figuras do proprietário e do armador, não tendo curado da limitação da
responsabilidade do armador não proprietário. Contudo, o facto de o sistema
de responsabilidade estar, substancialmente, assente no navio, conquanto
normativizado numa lógica de responsabilidade pessoal, permite sustentar que
o limite de responsabilidade era prefigurado pelo navio e pelo frete. No entanto,
não podendo o armador abandonar o navio, liberava-se abandonado o frete e
o valor do navio, único sub-rogado lógico deste. Era esta, de resto, a posição
defendida po Cunha Gonçalves – para quem «posto que o nosso legislador só
se refira ao abandono do navio, entendo que o armador pode também
abandonar o valor do navio, poupando aos credores o trabalho e as despesas
duma liquidação do mesmo navio» - e por Frederico Martins, autor que
invocava a equidade para permitir como objeto de abandono o valor
representativo do navio. Em qualquer aso, a admissão do abandono do valor
do navio por parte do armador pressuponha, necessariamente, a fixação
objetiva do respetivo valor, não podendo, obviamente, o armador abandonar
liberatoriamente o valor que ele próprio determinasse.
2. O convívio do abandono in natura do Código Comercial com os regimes das Convenções
de Bruxelas sobre limitação de responsabilidade:
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1. O convívio entre o regime de responsabilidade e do abandono do Código
Comercial e o regime da Convenção de Bruxelas de 1924: a vinculação de
Portugal à Convenção de Bruxelas de 1924 (CB1924) para a unificação de certas
regras relativas á limitação da responsabilidade dos proprietários dos navios de
mar suscita a questão da convivência entre o sistema da responsabilidade e do
abandono constantes do Código Comercial e o regime daquela Convenção.
Aparentemente, a dúvida pode surgir como estranha, atento o facto de
estarmos a questionar a articulação entre o Direito Interno – com o seu próprio
espaço de aplicação – e uma Convenção Internacional, cuja aplicação se
desenvolva precisamente no campo das relações internacionais. Acontece,
porém, que a citada Convenção é de aplicação direta nos Estados que a
ratificaram: nos termos do seu artigo 12.º, as disposições da Convenção
«serão aplicáveis a cada Estado contratante, desde que o navio em
relação ao qual foi invocado o limite da responsabilidade seja
nacional de um Estado contratante, assim como nos outros casos
previstos nas leis nacionais».
A dúvida que se levanta é a de articulação da CB1924 com o Direito interno, até
ao Decreto-Lei n.º 202/98, 10 julho, mais concretamente com o regime do
Código Comercial em matéria de responsabilidade dos proprietários de navios
e respetiva limitação. O problema foi suscitado em França, por exemplo, por
Ripert, para quem a aplicação da Convenção exigiria, então, a modificação do
artigo 216.º Code du Commerce, já que, considerava, seria impossível
«d’appliquer à la fois les dispositions de la convention et celles d’une lou
nationelle différent». Contudo, esta posição não se apresentava como segura;
entre nós, Viegas Calçada colocava a questão nos seguintes termos: uma vez
que a Convenção não revogava, direta ou indiretamente, as normas do Código
Comercial, o armador passaria a ter ao seu dispor – tendo liberdade de escolha
– o abandono liberatório do Código Comercial ou o sistema de limitação da
Convenção de Bruxelas de 1924. Escreve, a certo passo, o autor:
«Quando os princípios do abandono estiverem em oposição com os
da limitação, o armador escolherá aquele que mais lhe convier para
atenuar a sua responsabilidade».
A posição que, na doutrina nacional, tinha como representante Viegas Calçada
afigura-se-nos dificilmente sustentável. Na verdade, das duas uma: ou a CB
1924 passou a ser Direito interno e, nessa caso, não fazia sentido atribuir ao
proprietário do navio a faculdade de poder escolher entre o regime do Código
Comercial e o da Convenção, ou a esta deveria ser mantida num (estrito)
quadro das relações convencionais internacionais – caso em que a sua aplicação
estaria dependente da identificação dos fatores de internacionalidade
relevantes. Na primeira hipótese, ou seja, na consideração das normas da CB
1924 como Direito interno português, a relação entre o regime do abandono
do Código Comercial e o regime da Convenção tinha, dogmaticamente, que ser
colocada em termos de aplicação da lei no tempo, revogando o Direito
posterior o Direito anterior. A partir daqui, havia que suscitar a questão do
caráter total ou parcial da revogação ou a existência de uma revogação de
sistema, parecendo-nos que a solução correta era a de procurar as zonas de
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sobrevivência do regime do Código Comercial face ao da Convenção de
Bruxelas. A questão era relevantíssima, bastando salientar o facto de a
Convenção só se aplicar ao proprietário de navio de mar, na medida em que ao
mesmo pudesse ser aplicado o regime do artigo 492.º. Por outro lado, haveria
que testar a coincidência entre o âmbito de aplicação das situações do artigo
1.º CB 1924 e o das situações de responsabilidade e de abandono do artigo
492.º CCom. Finalmente, haveria que considerar o facto de Portugal ter feito
reservas à Convenção24. Admitida a receção da CB 1924, em virtude da cláusula
geral de receção então vigente, a CB 1924 passou a vigorar internamente, mas
em termos que, no nosso entender, não prejudicavam a manutenção em vigor
do regime do artigo 492.º CCom. Refira-se que aparte do artigo 492.º CCom
que está aqui em equação não é a da imputação da responsabilidade ao
proprietário do navio, já que a CB 1924 não é uma Convenção de imputação
mas, antes, de limitação de responsabilidade. Ora, estabelecendo o artigo 12.º
CB1924 que a mesma é aplicável em cada Estado contratante, desde que o
navio em relação ao qual é invocado o limite de responsabilidade seja nacional
de um estado contratante25, o regime da Convenção passou a ser também
aplicável às situações internas, desde que, claro está, o navio relativamente ao
qual fosse invocada a limitação fosse português ou de outro Estado contratante.
Ficou, assim, institucionalizado um dualismo de regimes, mantendo-se o de
fonte interna do abandono, designadamente para os casos em que o navio em
relação ao qual fosse invocado o limite de responsabilidade não fosse
português ou nacional de qualquer outro Estado contratante. Não obstante, ou
em virtude do pouco sucesso da Convenção ou em resultado das dúvidas
geradas pela sua aplicação, a verdade é que os países que não alteraram as
respetivas legislações internas continuaram, no geral, a aplicar os regimes de
fonte interna aos casos internos. Saliente-se que a entrada em vigor da
Convenção no Direito interno provocou, na realidade, uma alteração de relevo
nas situações em que o navio relativamente ao qual era invocada a limitação de
responsabilidade fosse português ou de outro Estado contratante: o
proprietário do navio passou a poder limitar a sua responsabilidade – nos
termos das disposições da Convenção, naturalmente – mesmo em situações
que, no regime do Código Comercial, eram insuscetíveis de limitação, por
estrem enquadradas no n.º1, que não no n.º2, do artigo 492.º CCom.
2. O convívio da responsabilidade e do abandono do Código Comercial com as
normas das Convenções de Bruxelas de 1924 e 1957: a retificação por Portugal
da Convenção de Bruxelas de 1957 (CB 1957) suscitou novas e importantes
dúvidas sobre, por um lado, a sobrevivência dos regimes da responsabilidade
24 (Viegas Calçada): as reservas referiam-se expressamente à não admissão da limitação da responsabilidade ao valor do navio, dos acessórios e do frete relativamente aos prejuízos causados às obras de arte dos portos, doas e vias navegáveis e às despesas de remoção dum casco afundado; ficou, no entanto, entendido que o limite de responsabilidade por motivo desses prejuízos não podia ultrapassar oito libras estrelinas por tonelada de arqueação de navio, exceto quanto às despesas de remoção dum casco afundado. 25 Refere-se, ainda, o artigo 12.º/I, in fine, aos «outros casos previstos pelas leis nacionais». Por sua vez, de acordo com o artigo 12/II, o princípio formulado no artigo 12/I não prejudica o direito dos Estados contratantes de não aplicar as disposições da presente Convenção a favor dos nacionais dum Estado não contratante.
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do proprietário do navio e do abandono constantes do Código Comercial face à
nova Convenção e, por outro, admitindo essas sobrevivências, sobre os termos
das mesmas. Neste particular, teremos de considerar a Convenção de Bruxelas
1957 qua tale, enquanto Convenção Internacional, mas também o facto de o
Decreto-Lei n.º 49.028, 26 maio 1969, ter, declaradamente, firmado a vigência
da Convenção no Direito interno. No que respeita ao primeiro plano, parece
poder afirmar-se com segurança que, não tendo Portugal denunciado a
Convenção de 1924, diversamente do que fizeram outros países, continuou à
mesma vinculado, passando, assim, a estar obrigado nos termos das duas
Convenções, sendo aplicável uma ou outra em função dos Estados envolvidos;
assim resulta do facto de o artigo 16.º CV 1957 determinar, no seu §1.º, a
substituição e revogação da Convenção de Bruxelas 1924, no que respeita às
relações entre os Estados que ratificaram ou aderiram à Convenção. De acordo
com o artigo 7.º, n.º1 CB 1957, a mesma é aplicável sempre que o proprietário
de um navio ou qualquer outra pessoa com os mesmos direitos em virtude do
artigo 6.º, limite ou procure limitar a sua responsabilidade perante os tribunais
de um dos Estados Contratantes, ou procure libertar o navio ou qualquer outro
bem arrestado ou uma caução ou qualquer outra garantia prestada dentro do
território de um desses Estados. Parece, assim, claro que, a não ser que os
Estados contratantes optem por excluir a aplicação da Convenção a qualquer
Estado não contratante, conforme permite o artigo 7.º, n.º1 CB 1957 26 , a
Convenção de 1957 não consagra, diversamente do que acontece com a de
1924, um regime dualista, sendo a Convenção aplicável, à partida, ainda que o
navio, em relação ao qual é pedida a limitação de responsabilidade seja
pertença de um nacional de um Estado não Contratante ou arvore bandeira de
um Estado não Contratante, sendo, antes, determinante o facto de a limitação
ser pedida em tribunal de um Estado contratante. Assim, podemos dizer, com
Taborda Ferreira, que a Convenção deve aplicar-se, em princípio, como lex fori.
Assim, considerando o disposto no artigo 7.º/I, é defensável que a Convenção
de Bruxelas de 1957 passou a ter aplicação direta nos diversos Estados
contratantes. Contudo, alguns países, ao abrigo da reserva da alínea c) do n.º2
do Protocolo de Assinatura, optaram por inserir as normas da Convenção no
Direito Interno ou por lhe dar força de lei, considerando que a aplicação da
Convenção às situações internas estava dependente de uma dessas medidas.
Ora, no caso português, o Decreto-Lei n.º 49.028 pretendeu dar expressão e
sequência às reservas das alíneas a) e c) do n.º2 Protocolo de Assinatura,
manifestando o propósito de dar à Convenção «força de lei» (do Preâmbulo) e
estabelecendo o artigo 1.º que a mesma passou a vigorar «por força do presente
preceito, como Direito interno português». Não tendo atualmente interesse
direto discutir se a Convenção só passou a ter aplicação após o Decreto-Lei n.º
49.028 ou se já a tinha anteriormente, o que importa é apurar as repercussões
26 O artigo 7.º n.º1 permite que cada Estado Contratante exclua, no todo ou em parte, do benefício da Convenção qualquer Estado não Contratante ou qualquer pessoa que não tenha, no momento em que toma as medidas para limitar a sua responsabilidade ou para obter, de harmonia com o artigo 5.º, a libertação de um navio ou de qualquer outro bem apreendido ou da caução ou outra garantia, a sua residência habitual ou sede principal de exploração dos negócios num dos Estados contratante, ou cujo navio em relação ao qual procura limitar a sua responsabilidade ou obter a libertação não arvore, no momento referido, o pavilhão de um dos Estados contratantes.
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da introdução no Direito interna do regime da Convenção de Bruxelas de 1957,
no que concerne, por um lado, ao regime do artigo 492.º CCom e, por outro, ao
regime da Convenção de Bruxelas de 1924. Não está de novo em causa a
imputação de responsabilidade, já´ que, conforme veremos, a Convenção de
Bruxelas não é, tal qual não é também a de 1924, uma convenção de
responsabilidade – de imputação – mas de limitação de responsabilidade. Ora,
tanto quanto nos parece, a aplicação do regime de limitação do artigo 492.º
CCom – regime do abandono – passou a estar recortada pelo âmbito de
aplicação traçado pelo diploma de 1969. Na prática, uma vez que, à partida,
tanto o regime do artigo 492.º CCom quanto o regime da Convenção de 957
eram aplicáveis a navios de mar, podemos dizer que o âmbito de aplicação do
abandono in natura ficou reduzido às situações não cobertas pelo regime
resultante das normas a Convenção de Bruxelas 957 e do Decreto-Lei n.º 49.028.
Já no que respeita aos efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 49.028 a nível das
normas da Convenção de 1924, internamente aplicáveis, parece-nos que estas
passaram a ficar prejudicadas pelo regime das normas da Convenção de 1957.
A Convenção de 1924 continua, no entanto, a ser aplicável no caso em que o
navio relativamente ao qual seja invocado a limitação de responsabilidade seja
nacional de um Estado contratante desta Convenção, desde que este Estado
não seja também contratante da Convenção de 1957. Esse convívio do regime
do abandono do Código Comercial com o regime resultante das normas da
Convenção de Bruxelas 1927 e do Decreto-Lei n.º 49.028, manter-se-ia nos
mesmos termos após o Protocolo de 1979 àquela Convenção, Protocolo esse
que, como vimos, substituiu o sistema do franco Poincaré pelo das unidades de
conta, atualizando, simultaneamente, os limites máximos de indemnização a
cargo dos proprietários de navios legitimados para limitar a respetiva
responsabilidade. Pode-se questionar se o regime resultante do Protocolo vale
também nas situações internas, já que o Decreto-Lei n.º 6/82, 21 janeiro, não
internalizou o Protocolo de 1979, conforme fizera o Decreto-Lei n.º 49.028,
relativamente à Convenção de 1957, tendo-se limitado a aprová-lo para
ratificação; nesta lógica, seria sustentável que, a nível do regime interno da
limitação de responsabilidade dos proprietários de navios de mar, o regime
aplicável teria continuado a ser o do Decreto-Lei n.º 49.028, articulado com o
regime do Código Comercial. A ser assim, teríamos necessariamente que
concluir pela existência de um pernicioso descompasso entre o regime
internacional da Convenção e respetivo Protocolo de 1979 e o regime interno,
continuando este pautado pelo sistema de limitação com referência ao franco.
Pensamos, porém, que tal conclusão não é de sufragar, pese embora a
diferença de técnica usada pelo legislador nacional em 1969 e em 1982. Na
verdade, parece agora claro, face ao regime expressamente plasmado no artigo
8.º, n.º2 CRP, que o Protocolo de 1979 foi recebido no ordenamento interno,
automática e plenamente, pelo que o regime de limitação aplicável nas
situações internas passou a ser também estruturado em função do sistema das
unidades de conta.
3. O regime interno de responsabilidade do proprietário do navio e do armador, após o
Decreto-Lei nº 202/98, 10 julho:
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1. Introdução: ao revogar o secular regime do artigo 492.º CCom, o Decreto-Lei
n.º 202/98, 1 julho, institui, a partir do seu artigo 4.º, um novo regime de
responsabilidade civil, no qual são, consideradas, de modo expresso, as
situações de não coincidência entre as qualidades de proprietário e armador do
navio. O mesmo diploma reporta-se, depois, no artigo 12.º, aos «limites da
responsabilidade do proprietário», em termos que, pelo menos à partida,
suscitam alguma perplexidade, já que, contra os ventos e marés do Direito
Comparado e das Convenções Internacionais, o legislador nacional recupera o
abandono in natura por parte do proprietário do navio, abandono esse cujo
âmbito de aplicação ficará fortemente abalado pelas normas da Convenção de
Bruxelas de 1957 e do Decreto-Lei n.º 49.028. Não despiciendo é também o
regime do artigo 11.º do mesmo Decreto-Lei que, em situações específicas, nele
mencionadas, permite a responsabilidade do navio, não só por dívidas do
proprietário mas também do armador. Ao dar, em termos de sequência de
regime, a primazia à determinação da responsabilidade do proprietário-
armador (artigo 4.º), deixando para segundo plano a do armador não
proprietário (artigo 5.º) e a do simples proprietário (artigo 6.º), o legislador do
Decreto-Lei n.º 202/98, conhecedor das dúvidas que o artigo 492.º CCom
propiciava, terá pretendido deixar claro o quadro de imputações possíveis.
Apesar de, literalmente, o artigo 4.º consagrar o regime de responsabilidade do
proprietário-armador, podemos dizer que, substancialmente, o regime aí
consta é o da responsabilidade do armador, sendo, de resto, sintomático que o
artigo 5.º remeta para o artigo 4.º, quanto ao regime da responsabilidade do
armador não proprietário. Ao adotar a sequência que se encontra nos artigos
4.º a 6.º, o legislador optou por uma postura, digamos, pedagógica, partindo
das situações de coincidência entre as qualidades de proprietário e de armador
até à de simples proprietário, passando pela de armador não proprietário. O
efeito seria o mesmo se o legislador tivesse optado por não autonomizar a
matéria do artigo 5.º e tivesse concentrado no artigo 4.º o regime da
responsabilidade do armador, deixando expresso que o mesmo seria
independente de o armador ser também proprietário.
2. A responsabilidade do armador:
a. O armador do navio: o armador do navio é definido na alínea c) do artigo
1.º Decreto-Lei n.º 202/98 como aquele que «no seu próprio interesse,
procede ao armamento do navio», sendo depois o armamento
caracterizado (alínea d) do artigo 1.º) como o «conjunto de atos jurídicos e
materiais necessários para que o navio fique em condições de empreender
viagem». Se noção de armamento, noção esta que o Decreto-Lei n.º
202/98 formula em termos estáticos, sem expressão da dinâmica da
exploração do navio – do exercício da atividade comercial da exploração
do navio. Só esse exercício justifica, aliás, a responsabilidade do armador,
como comitente, consagrada nos artigos 4.º e 5.º do citado diploma. De
resto, nada obsta a que um sujeito – que não será, então armador, pelo
menos para efeitos do regime de responsabilidade pautada pela comissão
– arme o navio, não para o explorar diretamente, mas para o ceder em
exploração, através de um fretamento; nesse caso, não fará qualquer
sentido que tal afretador possa exonerar-se da responsabilidade associada
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à exploração do navio, como comitente, com o argumento, estritamente
literal, de que não foi ele a proceder ao armamento. Mais rigorosa, neste
particular ponto, se apresenta a noção de armador do Decreto-Lei n.º
196/98, 10 julho, que o define como «aquele que, no exercício de uma
atividade de transporte marítimo, explora navios de comércio próprios ou
de terceiros, como afretador a tempo ou em casco nu, com ou sem opção
de compra, ou como locatário». Sem prejuízo das críticas que possam ser
feitas ao apuro técnico desta noção, estamos face a uma disposição que,
valendo, embora, para os estritos efeitos de licenciamento administrativo
da atividade dos transportes marítimos, que não – pelo menos
diretamente – para efeitos do estabelecimento do regime de
responsabilidade do armador, tem a vantagem de acentuar o aspeto
dinâmico que fenece na noção do Decreto-Lei n.º 202/98. Essa mesma
associação dinâmica à exploração do navio surge, agora, em termos de
projeto, no artigo 32.º PLNCM, ao definir o armador de comércio como
«aquele que exerce a atividade de transporte marítimo», noção esta que
terá também a vantagem de evitar o desencontro entre uma noção
material de armador e uma outra válida para efeitos de licenciamento de
exercício de atividade. O artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98 consagra
presunções da qualidade de armador. Trata-se, ictu oculi, de presunções
relativas, conforme resulta da expressão «salvo prova em contrário», no
pressuposto de que tal prova se destina a contrariar a presumida qualidade
de armador27. A primeira presunção (alínea a) artigo 2.º, n.º1) recai sobre
o proprietário do navio: ele é presuntivo armador do navio, tendo o ónus
de provar que o não é, máxime na situação em que seja seccionado como
proprietário-armador para responder nos termos do artigo 4.º. A prova da
não qualidade do armador permitir-lhe-á, se acompanhada da invocação
do regime do artigo 6.º, subsidiarizar a sua responsabilidade. Cremos que,
aqui, o legislador podia ter ido mais além: a presunção poderia ter recaído
sobre quem figura no registo como proprietário e não sobre o proprietário
tout court; assim, aque3le que queira invocar a presunção da alínea a) do
artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98 tem o ónus de provar que o sujeito
a quem pretende imputar responsabilidade como armador é proprietário
do navio. É-lhe, para o efeito, dado valer-se da presunção resultante do
registo, nos termos geris. Também é presumido armador (alínea b) do
artigo 2.º, n.º1) o «titular do segundo registo, havendo duplo registo».
Assim, estando um navio registado no Registo Internacional de Navios da
Madeira (MAR), como segundo registo, o respetivo titular é presumido
armador. A terceira presunção (alínea c) do artigo 2.º, n.º1) recai sobre «o
afretador, no caso de fretamento em casco nu», caso este em que,
segundo a noção do artigo 33.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril, o fretador
27 Não consideramos, assim, na sua expressão, o teor literal do citado artigo 2.º, n.º1 («salvo prova em contrário, presume-se armador do navio»), que indiciaria estarmos face a uma espécie de presunção (iuris tantum) de presunção (cuja caracterização como relativa ou absoluta teria que se discutida); ou seja, presumir-se-ia haver presunção da qualidade de armador. Ao não nos nortearmos exclusivamente pela letra da lei, lemos o artigo 2.º n.º1 como se a respetiva redação fosse a seguinte: «salvo prova em contrário, considera-se armador do navio», ou, então, simplesmente: «Presume-se armador do navio».
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se obriga a pôr à disposição do afretador, na época, local e condições
convencionados, um navio, não armado nem equipado, para que este o
utilize durante um certo período de tempo. Uma situação em que
poderemos ver uma não coincidência entre as qualidades de afretador em
casco nu e de armador será aquela em que, após o fretamento, o afretador
tenha subfretado a tarefa de armar e equipar o navio. A ser aplicável, em
termos plenos, o regime geral do artigo 342.º CC, aquele sobre quem recai
a presunção de armador poderia fazer a prova do contrário por qualquer
meio, obtendo, dessa forma, a exclusão da responsabilidade ou, então, a
sua subsidiarização, nos temos do artigo 6.º. Contudo, o artigo 2.º, n.º2
Decreto-Lei n.º 202/98 dificulta, neste domínio, substancialmente, a
posição do presumido armador: este logrará elidir a presunção se
conseguir provar que aquele que invoca a presunção sabe quem é,
efetivamente, o armador. Estamos aqui situados num verdadeiro jogo de
cabra cega jurídico, já que, de acordo com o citado artigo 2.º, n.º2, ao
presuntivo armador não aproveita provar (apenas) que não é armador ou
quem é o efetivo armador: ele tem de provar que aquele que invoca a
presunção sabe que é o armador: com essa prova – que, em concreto,
pode consubstanciar uma verdadeira diabolica probatio – o presuntivo
armador logrará afastar, definitiva ou temporariamente, a
responsabilidade que sobre si impenda. Face a esta limitação dos meios de
prova, não andaremos longe da realidade, sob o prima jurídico, se, em vez
de qualificarmos as presunções do artigo 2.º, n.º1 como presunções
relativas, as caracterizarmos antes como presunções próximas das
presunções iuris et de iure, admitindo-se, porém, a respetiva paralisação
através da citada prova. Substancialmente, o regime resultante do artigo
2.º, n.º2equivale à necessidade da prova de má fé do terceiro que,
conhecendo a pessoa do armador responsável, pretende imputar a
responsabilidade a quem não tem, efetivamente, essa qualidade – a qual
resultaria, apenas, da presunção do artigo 2.º, n.º1.
b. Os termos da responsabilidade do armador:
1. O armador como comitente: de acordo com o disposto no artigo 4.º,
n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98 28 , o armador responde,
independentemente de culpa, pelos danos derivados de atos e
omissões das pessoas que identifica nas suas três alíneas, remetendo,
depois, o artigo 4.º, n.º2, no que concerne a tal responsabilidade, para
as disposições da lei civil que regulam a responsabilidade do comitente
pelos atos do comissário29. Manifestamente, o legislador enquadra a
relação entre o armador e qualquer das pessoas identificadas nas
alíneas a) a c) do artigo 4.º, n.º1 como uma relação de comissão,
remetendo para o regime do artigo 500.º CC, cuja redação, de resto,
acompanha de perto. Para já, quer para facilidade de expressão quer
por ser essa, desde sempre, a relação paradigmática, vemo-nos centrar
28 Naturalmente que o artigo 4.º, n.º1 se refere ao proprietário-armador, que não no “simples” armador, mas, conforme vimos, essa aplicação valerá por força do artigo 5.º do mesmo Decreto-Lei. 29 Embora com alterações de redação, o artigo 385.º PLNCM mantém, grosso modo, o mesmo regime.
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em situações que envolvem o capitão, distinguindo três relações
jurídicas identificáveis: a relação entre o armador e o capitão, a relação
entre o armador e os lesados e a relação entre o capitão e os lesados.
A análise da situação jurídica de responsabilidade civil do armador pode
ser feita tomando, alternadamente, como ponto de partida a relação
de comissão ou, alternadamente, como ponto de partida a relação de
comissão ou, antes, a verificação dos requisitos da responsabilidade
civil relativamente ao capitão. Esta última abordagem parece-nos, hic
et nunc, preferível: partimos da constatação dos danos e seguimos o
percurso da imputação, pressupondo, pelo menos para já, que a
imputação ao capitão é feita em termos de responsabilidade subjetiva
e aquiliana. Assim, perante um ato ilícito e culposo, praticado pelo
capitão, no exercício das suas funções, do qual resultem danos, os
lesados poderão, à partida, responsabilizar o capitão do navio. Essa
estrita imputação não permite aos lesados ir além dessa
responsabilização. Para que uma outra imputação tenha lugar, é
necessário trazer à colação a relação de comissão existente entre o
armador e o capitão. Falta um terceiro passo, já que não basta uma
apriorística e estatutária relação de comissão: é ainda necessário que o
ato de comissário tenha sido praticado no âmbito das funções de
capitão. Só então será viável a imputação ao comitente; só então terão
os lesados o direito de responsabilizar diretamente o armador,
solidariamente com o capitão-comissário30; só então é que os lesados
terão a garantia de um património adicional de proprietário-armador,
é que os credores lesados terão a garantia de poderem satisfazer os
respetivos créditos com o bem a priori mais visível e emblemático da
fortuna do mesmo: o navio. Para que o armador responda como
comitente, é mister que os «atos ou omissões» praticados pelo capitão,
o tenham sido no exercício das suas funções, ou seja no âmbito do
necessário para a boa condução da expedição marítima, para usarmos
uma expressão retirada do artigo 5.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 384/99, 23
setembro, e que tem antecedentes sólidos na legislação marítima,
como por exemplo no n.º2 do revogado artigo 492.º CCom ou no artigo
496.º CCom («governação e expedição do navio»). Neste particular, a
remissão feita pelo artigo 4.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98 para as
«disposições da lei civil que regulam a responsabilidade do comitente
30 A caracterização da relação da responsabilidade do comissário face aos lesados, por um lado, com a do comitente face aos mesmos lesados-credores é considerada responsabilidade solidária, conforme resulta diretamente do artigo 497.º, n.º1 CC e se encontra, de algum modo, indiretamente admitido no artigo 500.º, n.º3 CC. A dúvida estará em saber se estamos perante um verdadeira ou genuína solidariedade, para usarmos uma expressão, de resto não pacífica, que acompanha preocupações de grande parte da doutrina. Conquanto na prática, por razões que se prendem com as capacidades económicas do proprietário e do capitão, a responsabilidade (rectius, a responsabilização) direta perante os lesados recaia, normalmente, sobre o primeiro, não há, no Direito Civil, no campo das relações externas – ou seja, no das relações com os lesados – qualquer canalização (liberatória do comissário, entenda-se) da responsabilidade para o comitente, ou seja, in casu, para o proprietário-armador. Já no campo das relações internas, o artigo 500.º, n.º3 prevê o regresso do comitente; contudo, como já observa Victor Nunes, normalmente, em função da fraca capacidade económica do capitão, resta ao armador recorrer ao despedimento.
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pelos atos do comissário» não pode ser interpretada rigidamente,
tendo que ser harmonizada com a especificidade das funções de
capitão. Mais concretamente, a responsabilidade do armador como
comitente tem lugar, como princípio, relativamente à responsabilidade
civil decorrente de qualquer ato ou omissão praticado pelo capitão
enquanto tal, não podendo aquele furtar-se nas situações em que não
tenha confiado – para usarmos uma expressão retirada do artigo 500.º,
n.º2 CC – uma específica tarefa ao capitão. Em suma, a
responsabilidade do armador como comitente decorre, em geral do
exercício da função do capitão, ainda que se trate da execução de
atribuições não especificamente cometidas pelo armador mas
decorrentes da lei (artigo 5.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 384/99). Há, no
entanto, que excecionar aquelas situações em que, por força da lei, as
consequências de um ato ou omissão do capitão são circunscritas à sua
própria esfera jurídica, sendo as consequências de tais atos, como
princípio, insuscetíveis de dar lugar a uma (nova) imputação, desta vez
ao armador. Exemplo eloquente é o caso da não prestação de socorro
a pessoas em perigo no mar: de acordo com o que decorre do disposto
no artigo 3.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 203/98, o princípio é o de que o
capitão suporta sozinho as consequências da sua omissão, só podendo
haver imputação ao proprietário ou ao armador e termos de
responsabilidade subjetiva 31 – estes só respondem se tiverem tido
culpa. Haverá também que excecionar, parece-nos, aquelas situações
em que as funções desempenhadas pelo capitão se revelam, na sua
natureza, alheias à exploração comercial do navio, respeitando, antes,
ao exercício de funções típicas de oficiais públicos. Last but not least,
há que precisar que, relativamente aos atos praticados pelo capitão em
representação do armador – representação com poderes,
naturalmente – a vinculação do armador-representado decorre do
funcionamento da representação, que não de um título de imputação
em sede de responsabilidade civil, como é a comissão. O confronto do
regime do artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98 com o do regime de
imputação imediatamente anterior, constante do artigo 492.º CCom,
permite verificar alterações de muito relevo. A primeira consubstancia-
se na colocação do armador – que não do proprietário – em centro
subjetivo de imputação secundária. Trata-se de uma medida positiva
que vinha sendo reclamada pela lição do Direito Comparado e também
pela doutrina nacional mais recente. A expressa colocação do armador
como sujeito passivo de imputação impunha-se, na verdade, em
virtude de ser ele o sujeito que toma a seu cargo a expedição marítima
e quem suporta os respetivos custos e riscos. A segunda grande
alteração de relevo, ainda num confronto geral entre os dois regimes,
respeita ao facto de o artigo 4.º ter uma redação mais abrangente,
deixando claro que o armador responde objetivamente pelosa tos ou
31 A nível de Convenções Internacionais, é esse o regime consagrado, designadamente no artigo 11.º Convenção de Bruxelas de 1910 para unificação de certas regras em matéria de assistência e de salvação marítima.
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omissões praticados por qualquer pessoa ao serviço da expedição
marítima e no respetivo âmbito.
2. O âmbito das imputações ao capitão e ao armador:
a. A imputação primária ao capitão: ao remeter para o regime civil da
responsabilidade do comitente, o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98
deixa em aberto uma questão discutida a propósito dos requisitos
da comissão estabelecidos no artigo 500.º, n.º1 CC: a de que sobre
o comissário «recaia também a obrigação de indemnizar». Mais
concretamente, discute-se se a responsabilidade do comitente
pressupõe a verificação, em relação ao comissário, dos requisitos
da responsabilidade subjetiva ou e, ao invés, a comissão também
funciona, em termos de responsabilidade, nas situações em que a
imputação de responsabilidade ao comissário seja objetiva ou por
facto lícito. Na doutrina mais recente, podemos ver, como
representativos da posição que podemos considerar clássica na
doutrina portuguesa, Menezes Leitão, que considera duvidosa a
possibilidade de no artigo 500.º, n.º1 serem abrangidas as
situações de responsabilidade pelo risco ou por sacrifício praticado
pelo comissário. No traçar de argumentos, o facto o de o artigo
500.º, n.º3 prever que o comitente tem o direito de, no âmbito das
relações internas, exigir ao comissário o reembolso de tudo
quanto haja pago, é apontado como argumento no sentido de a
imputação ao comitente pressupor – ou, pelo menos, parecer
pressupor – uma imputação subjetiva primária ao comissário. Não
faltam, porém, bons argumentos, esgrimidos por autores como
Menezes Cordeiro, contra esta posição, encontrando-se em Graça
Trigo a mais recente defesa da posição da desnecessidade de culpa
do culpa do comissário. Para esta autora – que ilustra a defesa do
orientação mais ampla com a indicação de situações em que faz
sentido a imputação objetiva ao comitente, havendo imputação
objetiva ou pelo sacrifício ao comissário – a correta interpretação
do problema em análise impõe que nos soltemos da letra do artigo
500.º, n.º3, considerando que o mesmo não regula nem pretende
regular todas as situações de relações interna entre o comitente e
o comissário. Esta via de interpretação parece-nos convincente,
em função da ratio da responsabilidade objetiva do comitente,
consagrada no artigo 500.º, n.º1: garantir aos lesados a efetivação
do direito à indemnização, num quando em que o ato foi praticado
pelo comissário no exercício das suas funções, o que significa que
o foi por conta do comitente. O argumento retirado da letra do
artigo 500.º, n.º3 CC, ou seja o facto de o comitente (que não
tenha tido “também” culpa) ter direito do regresso contra o
comissário pela totalidade de tudo quanto tenha pago aos lesados,
não impressiona, já que – independentemente de se poder refutar
a valia do argumento literal – o inciso determinante, neste
particular, é o n.º1 do artigo 500.º, que não o seu n.º3. De facto,
só no caso em que tenha havido culpa do comissário é que fará
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sentido o direito de regresso do comitente, sendo, assim,
sustentável que aquilo que pressupõe a culpa do comissário é o
direito de regresso do comitente, que não a imputação objetiva a
este. Sem prejuízo do exposto, há que tomar em devida conta o
facto de o artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99 consagrar uma
presunção de culpa do capitão. Nos termos dessa disposição, o
capitão responde, como comissário do armador, pelos danos
causados, podendo, porém, fazer a prova, como forma de se
exonerar de responsabilidade, que não houve culpa da sua parte
ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não
houvesse culpa sua – situação de relevância negativa da causa
virtual ou hipotética. Esta presunção constitui, seguramente, uma
grande vantagem para os lesados que, assim, não terão de fazer a
(primeira) prova de culpa do capitão-comissário (vantagem esta
que o artigo 386.º LNCM se propõe manter). Não obstante essa
acentuação da culpa, não nos parece que o regime plasmado no
artigo 5.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99 possa ser aqui trazido à
colação, para efeitos de fixar o entendimento de que a
responsabilidade do armador como comitente pressuporia
sempre a responsabilidade subjetiva do comissário; ou seja: a
questão mantém-se exatamente no mesmo pé, podendo, no
nosso entender, haver situações em que o armador deve
responder como comitente mas sem que haja culpa – e
responsabilidade subjetiva – do capitão. Assi, se durante a
expedição marítima e no seu interesse, for necessário utilizar
mantimentos que seguem como carga no navio, sem que haja
responsabilidade do capitão pela falta de mantimentos a bordo,
destinados à tripulação e passageiros, estamos perante uma
situação de responsabilidade por facto ilícito (artigos 10.º, n.º1 e
11.º Decreto-Lei n.º 384/99), não podendo, a nosso ver, o armador
furtar-se à responsabilidade perante os interessados na carga,
com o argumento da falta de culpa do capitão. Neste exemplo,
estamos, naturalmente, a pressupor a inexistência de culpa por
parte do armador, já que, sendo a mesma identificada, não se
suscitarão dúvidas sobre a responsabilidade subjetiva do armador-
transportador face aos lesados.
b. A imputação secundária ao armador como comitente: o primeiro
problema que, em sede de imputação secundária ao armador,
importará analisar, é o de saber se tal imputação é
necessariamente uma imputação objetiva ou se, ao invés, pode ser
subjetiva, mas em termos de se considerar incólume a relação de
comissão. Trata-se, substancialmente, de saber se a
responsabilidade do comitente é, por natureza, uma
responsabilidade objetiva ou se, ao invés, estamos perante uma
responsabilidade para cuja afirmação é irrelevante a culpa do
comitente, conforme, de resto, sugere o segmento do artigo 500.º,
n.º1 CC «independentemente de culpa». Pergunta-se, assim, se as
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clássicas situações de culpa in elegendo, in instruendo ou in
vigilando, quando identificadas na pessoa do comitente, colocam
a situação jurídica fora do âmbito da comissão ou se, ao invés,
continuamos no seu seio. Aplicando às situações em análise,
poderá dizer-se que o armador que faz uma (má) escolha de um
mau capitão é responsável em termos objetivos face aos lesados
por ser comitente e que a identificação da culpa in elegendo só
opera no âmbito das relações internas, para efeitos de regresso
(artigo 500.º, n.º3)? No nosso entender, sendo identificada culpa
in elegendo do comitente, este responde em termos subjetivos,
ainda que sobre o comissário não recaia qualquer obrigação de
indemnizar, como será, seguramente, o caso extremo em que, no
momento do ato, o comissário esteja em situação de
inimputabilidade. É que, conforme observa Almeida Costa, a
exigência de que sobre o comissário recaia obrigação de
indemnizar constitui simples pressuposto da responsabilidade
objetiva do comitente, sendo o mesmo dispensável quando se
identifica uma atuação culposa deste. Assim, no referido caso
extremo, sendo o ato danoso praticado no exercício da comissão,
o comitente responde em termos subjetivos, não apenas com base
no artigo 483.º CC mas nos termos conjugados dessa disposição
com o artigo 500.º: é a relação de comissão que permite
estabelecer a ligação entre o agente e o comitente – que permite
a canalização para este da responsabilidade, mas em termos de
imputação subjetiva, uma vez que a culpa seja identificada na sua
esfera. Daqui decorre que, em rigor, diversamente do que sugere
a inserção sistemática do artigo 500.º CC, numa secção intitulada
«Responsabilidade pelo risco», a responsabilidade do comitente
tanto pode ser subjetiva como objetiva, sendo que quando é
subjetiva não funciona estritamente com base no artigo 483.º CC,
sendo, para tal, essencial o suporte da relação de comissão. Isto
significa que, havendo má escolha ou deficientes instruções do
comissários, a responsabilidade do comitente deriva
complexivamente dessa má escolha e da prática do facto danoso
pelo comissário. O segundo problema é o de saber se a
responsabilidade do armador apenas funciona nas situações de
responsabilidade extra-obrigacional, conforme sugere a letra do
artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98, ou se, ao invés, ela também
acontece grosso modo em relação às situações anteriormente
previstas no n.º2 do artigo 492.º CCom: «pelas obrigações
contraídas pelo capitão relativas ao navios e sua expedição». A
referência a «atos ou omissões» sugere claramente – não só pelo
paralelismo que pode ser estabelecido com a situação do n.º1 do
artigo 492.º CCom – mas também pela especificidade da
terminologia utilizada no quadro dos pressupostos da
responsabilidade civil extra-obrigacional – que a responsabilidade
do comissário que faz funcionar a imputação ao comitente é uma
responsabilidade extra-obrigacional. Assim, as situações antes
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previstas no n.º2 do artigo 492.º - «obrigações contraídas pelo
capitão relativas ao navio e sua expedição» - estão fora do regime
da comissão, o que, de resto, se ajusta à tradicional circunscrição
das situações de comissão à responsabilidade extra-obrigacional e
à também tradicional arrumação das situações de
responsabilidade obrigacional no quadro do artigo 800 CC –
dispositivo este que pressupõe que o comportamento dos
auxiliares constitua ou represente a violação de um vínculo
obrigacional existente. No nosso entender, a responsabilidade do
proprietário armador consagrada no artigo 4.º Decreto-Lei n.º
202/98 e pressuposta no artigo 5.º Decreto-Lei n.º 384/99 é
dirigida às situações de responsabilidade extra-obrigacional.
Quanto às demais situações que envolvam o capitão do navio, não
se colocará, em princípio, em questão de responsabilidade este, já
que, atuando ele como representante do proprietário ou do
armador (artigo 8.º Decreto-Lei n.º 202/98 e artigo 8.º Decreto-Lei
n.º 384/99), os efeitos jurídicos dos atos que pratica repercutem-
se na esfera do representado, sendo este último – que não o
capitão, que é um mero agente – a parte nos contratos celebrados
com terceiro e sendo ele o sujeito sobre quem impenderá a
eventual responsabilidade obrigacional (artigo 800.º, n.º1 CC),
ainda que a atuação culposa tenha sido identificada na esfera do
auxiliar e projetada na esfera do devedor.
3. Os demais sujeitos por cujos atos ou omissões o armador responde:
a. Membros da tripulação: temos vindo a tomar como referência a
figura do capitão enquanto comissário do armador. Contudo, a
responsabilidade do armador como comitente estende-s-e aos
atos ou omissões dos demais membros da tripulação, conforme
prevê a alínea a) do artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98, na
tradição da previsão constante do n.º1 do artigo 492.º CCom. Tal
como em relação ao capitão, a responsabilidade do armador por
atos ou omissões de membros da tripulação pressupõe que os
mesmos estejam no exercício das respetivas funções, conforme
impõe o artigo 500.º, n.º2 CC, aplicável por força do artigo 4.º, n.º2
Decreto-Lei n.º 202/98; após um primeiro juízo de inserção
espacial-temporal, excluem-se, num segundo juízo aferidor-
corretor – juízo se conformidade, numa abordagem objetivo-
vivencial – aqueles atos ou omissões que tenham com o exercício
de funções de membro da tripulação uma relação causal ou
acidental, aquilo que podemos designar como uma não-relação.
Desse juízo poderá resultar a imputação de responsabilidade ao
armador, enquanto comitente, ainda que o ato praticado não
tenha com o exercício da função uma relação essencial ou
necessária – ainda que não exista a íntima conexão de que falava
Cunha Gonçalves.
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b. Piloto ou prático tomado a bordo: particularmente polémico tem
sido o caso do piloto ou prático tomado a bordo. O caráter
polémico não resulta tanto, atualmente, da estrita previsão da
responsabilidade do armador, enquanto comitente, pelos atos ou
omissões do piloto, mas do facto de, ao longo do tempo, se ter
questionado se essa responsabilidade se mantinha nos casos em
que o piloto (ou prático da costa) fosse imposto por lei,
regulamento ou uso32. A solução do artigo 492.º CCom era clara: o
proprietário do navio respondia, em princípio, «pelas faltas de
pilotos ou práticos tomados a bordo» (n.º4), mas (§3.º) excluía
essa responsabilidade «quando a admissão do piloto ou prático for
ordenada pela respetiva lei local». De qualquer maneira, segundo
Adriano Anthero, a exclusão de responsabilidade contida no §3.º
do artigo 492.º não estava sintonizada com os regulamentos dos
serviços de pilotagem, atento o facto de «o piloto ser um simples
guia cujas indicações podem ser ou não seguidas». Cunha
Gonçalves referia (com alusão a sucessivos Regulamentos de
Pilotagem, com destaque para o de 1914) quer o dever de tomar
piloto, quer o dever, também a cargo do capitão, de seguir as suas
indicações, assumindo completa e inteira responsabilidade pelas
consequências do não acatamento daquelas. O regime atual
parece cristalino: o piloto é, em quaisquer circunstâncias, um
assessor do capitão, conforme estabelece o artigo 7.º, n.º2
Decreto-Lei n.º 384/99, o que não afeta a responsabilidade do
capitão, do armador ou do proprietário do navio perante terceiros.
É, por sua vez, claro, face à letra da alínea b) do artigo 4.º, n.º1
Decreto-Lei n.º 202/98, que, ainda que o piloto seja imposto por
lei33, regulamento ou uso, o armador responde pelos seus atos ou
omissões. A caracterização do piloto como assessor revela-se
coerente com o estatuto dos pilotos, tal como resulta do
Regulamento Geral dos Serviços de Pilotagem (aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 48/2002, 2 março), de acordo com o qual as
funções de piloto se caracterizam, essencialmente, por ações de
informação e assessoria34, não lhe cabendo a execução de tarefas
32 Refira-se, a propósito, o facto de a Convenção Bruxelas 1910 para a unificação de certas regras em matéria de abalroação, tendo, embora, clarificado, no seu artigo 5.º, que a responsabilidade consagrada nos artigos precedentes não era prejudicada pelo facto de a abalroação ser causada «por culpa de um piloto, ainda quando seja obrigatória a intervenção deste», ter estabelecido uma espécie de moratória, no Artigo Adicional, no sentido de que o citado artigo 5.º não entraria em vigor «senão quando as Altas Partes Contratantes se houverem concertado sobre a limitação da responsabilidade dos proprietários de navios». Efetivamente, o Artigo Adicional da Convenção Bruxelas 1924, relativa à limitação da responsabilidade dos proprietários de navios de mar a, de modo expresso, levantar a suspensão de vigência do referido artigo 5.º. 33 Neste sentido, também a expressão «em quaisquer circunstâncias», que encontramos no artigo 7.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99. 34 Sobre a natureza jurídica do contrato de pilotagem: Arroyo, inclina-se no sentido da caracterização do “contrato de practicaje” como um contrato sui generis, com fortes conexões com o contrato de empreitada, mas acentuando o facto de o piloto apresentar o interesse público da segurança da navegação; Gabaldón Garcia e Ruiz Soroa preferem acentuar o facto de a obrigação a cargo do piloto
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que se prendem com a condução e manobra do navio 35 . Isso
corresponde à ideia do piloto como «carte marine parlante»
(conforme Brunetti). A dúvida que, neste particular, se pode
suscitar é a de saber se a previsão do armador como comitente e
do piloto como comissário é coerente com a caracterização deste
como um assessor. Pode, na verdade, questionar-se se o assessor
pode ser responsabilizado nas relações externas com os lesados
ou se, ao invés, no que tange a tais relações, tal responsabilidade
é exclusiva do armador, que poderia exercer posteriormente o
regresso, no domínio das relações internas. No nosso entender, no
que respeita à pilotagem abrangida pelo Regulamento Geral dos
Serviços de Pilotagem, e apenas a ele nos cingimos, a circunstancia
de a própria lei impor deveres de informação e assessoria ao piloto
determina, nos termos gerais, considerando o regime dos artigo
483.º e 485.º, n.º2 CC – mas com a ressalva que em seguida se fará
– que o piloto possa responder no âmbito das relações externas,
já que, no que ao requisito da ilicitude respeita, parece-nos que o
«círculo de interesses privados que a lei visa tutelar» não é
consubstanciado apenas pela segurança da navegação marítima
qua tale, em abstrato, mas também pela tutela dos bens
(patrimoniais e não patrimoniais) dos sujeitos que possam ser
lesados com erros de navegação ou de manobras36. Esta conclusão
é reforçada pelo facto de o artigo 4.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98
mandar aplicar à responsabilidade do armador pelos atos ou
omissões, entre outros, do piloto o regime da comissão do artigo
500.º CC, regime esse no qual, conforme já frisámos, a
responsabilidade objetiva do comitente pressupõe que recaia
sobre o comissário a obrigação de indemnizar a cargo do
comissário desenvolve-se no âmbito das relações externas, face
ser uma obrigação de meios, que não de resultado. Entre nós, Mário Raposo, reconduz também o contrato de pilotagem a um contrato sui generis, que integra nos “contratos de conselho” de que fala Sinde Monteiro. 35 Destaque-se o disposto no artigo 8.º Regulamento, que estabelece como obrigações do piloto, «perante o comandante da embarcação pilotada», informar e assessorar sobre a navegação, movimentos e manobras a efetuar (alínea a) ), informar sobre quaisquer condicionamentos que possam afetar a segurança (alínea b) ) e informar sobre as condições em que fica a embarcação, sugerindo as precauções adequadas, bem como sobre as obrigações impostas pela regulamentação em vigor (alínea c) ). Por usa vez (alínea d) do artigo 9.º, n.º1 do mesmo Regulamento), o comandante da embarcação pilotada tem o dever de «providenciar pela correta execução das tarefas que se prendem com a condução e manobra da embarcação dentro da área de pilotagem obrigatória, tendo em conta as informações prestadas pelo piloto». 36 Destaque-se, a propósito, o facto de a alínea e) do artigo 6.º Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro, impor ao capitão o dever de «tomar piloto ou prático em todas as barras ou portos ou outras paragens, sempre que a lei, o costume ou a normal diligência o determinem». A questão é, no entanto, mais controversa no âmbito da pilotagem facultativa, na qual a informação e assessoria do piloto ao capitão e, indiretamente, ao armador parece, prima facie, circunscrever-se ao estrito âmbito das relações internas. Contudo, e face à influência e ao regime do Codice della Navigatione, Mário Raposo considera que «a função de serviço público cumprido pelos pilotos não interfere no seu estatuto de responsabilidade, conforme sejam pilotos obrigatórios ou facultativos». Fora deste quadro, parecem estar os casos de pilotagem ou praticagem facultativa não integrados no serviço público de pilotagem.
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aos lesados, que não no das internas face do comitente. Fizemos
acima uma ressalva: trata-se de uma restrição das situações em
que o piloto pode ser responsabilizado por terceiros lesados. No
nosso entender, tal responsabilização não é possível nos casos de
culpa leve, para usarmos a expressão e o conceito
(desresponsabilizadores) constante do artigo 7.º, n.º1 RRCEE.
Independentemente da questão da responsabilização da entidade
pública que nomeia o piloto, este não poderá ser responsabilizado
quando, tendo havido, embora, culpa sua, a mesma não deva, em
concreto, ser qualificada como dolo ou culpa grave (artigo 8.º
RRCEE). Há, no entanto, que reconhecer, no que respeita à
responsabilidade do piloto e às demais responsabilidades em volta,
a existência de uma aparente sintonia entre o regime do artigo 4.º
Decreto-Lei n.º 202/98 – que aponta para uma possível
responsabilidade externa do piloto, no quadro da
responsabilidade solidária decorrente da identificação e
funcionamento da comissão – e o regime do artigo 7.º Decreto-Lei
n.º 384/99, dispositivo este que parece apontar no sentido de a
responsabilidade do piloto ser apenas interna, não respondendo
perante terceiros. Na verdade, conforme vimos, o artigo 7.º, n.º1
estabelece que a circunstância de o piloto ser um assessor não
afeta a responsabilidade do capitão, do armador ou do
proprietário do navio perante terceiros, o que parece indiciar que
o legislador pretender resguardar o piloto perante terceiros. Esta
ideia parece ser, de resto, confirmada pelo próprio preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 384/99, onde se lê que «perante terceiros,
respondem agora os interessados no navio ou este». Ainda a
corroborar a ideia de que o legislador de 1999 pode ter pretendido
imunizar o piloto no âmbito das relações externas, o artigo 7.º,
n.º2 do mesmo diploma, colocando, aparentemente, o seu âmbito
de aplicação normativa no momento subsequente ao da satisfação
dos lesados, vem prever a responsabilidade do piloto perante o
armador ou proprietário numa aparente circunscrição, repete-se,
às relações internas. Quer dizer desta aparente tensão entre o
artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98 e o artigo 7.º Decreto-Lei n.º
384/99? Em primeiro lugar, não nos parece que possamos aqui
aplicar, sem mais, a lógica da prevalência da lei mais recente, pela
razão elementar de que os dispositivos em causa têm âmbitos de
aplicação diversos. Na verdade, o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98
trata da responsabilidade do armador (rectius, do proprietário-
armador), enquanto que o artigo7.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 384/99
cura da relevância que a caracterização do piloto como assessor
tem a nível da responsabilidade do capitão, do armador e do
proprietário. Uma vez estabelecida a relevância negativa da
qualidade de assessor, para efeitos de desresponsabilização dos
«interessados no navio» (expressão usada no preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 384/99), o artigo 7.º, n.º2 do mesmo diploma
contempla a previsão, não dispensando o piloto de
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responsabilidade nas relações internas, quando alguns dos
interessados respondam nas externas. Assim sendo, o artigo 7.º
Decreto-Lei n.º 384/99 não visará desresponsabilizar o piloto no
âmbito das relações externas, mas, antes, deixar claro que os
interessados não podem, a nível dessas relações, exonerar-se com
o argumento de terem sido seguidas as indicações feitas pelo
piloto, no âmbito da sua assessoria. Nesta lógica, o regime do
citado artigo 7.º não impede que, sobre o piloto, recaia obrigação
de indemnizar, face aos lesados, na medida em que se verifiquem,
em relação a ele, os requisitos da responsabilidade civil, mas sem
prejuízo da ressalva acima exposta. Aliás, a não ser assim, o regime
positivo vigente albergaria uma contradição, já que, por um lado,
absolveria o piloto no âmbito das relações externas mas, por outro,
admitiria a responsabilidade do armador no âmbito dessas
mesmas relações quando esta última responsabilidade tem, como
vimos, por pressuposto, nos termos do artigo 500.º, n.º1 CC, que
sobre o comissário «recaia também a obrigação de indenizar». É
certo que sempre seria possível sustentar que este requisito,
centrado no piloto, serviria (apenas) para fundar a imputação ao
comitente, havendo, depois, uma imunização externa do mesmo
piloto, em virtude de uma canalização jurídica para o comitente,
por força do artigo 7.º Decreto-Lei n.º 384/99; contudo, não nos
parece que uma tal construção tenha suficiente suporte no
conjunto constituído pelo artigo 4.º Decreto-Lei n.º 202/98 e
artigo 7.º Decreto-Lei n.º 384/99. Outra dúvida suscitável, com
referência aos casos em que a má assessoria do piloto conduza,
por exemplo, a uma situação de abalroação, é a de saber se,
conforme resulta do vetusto artigo 672.º CCom, os lesados podem
responsabilizar diretamente a “corporação” que nomeia o piloto,
bem como – mas agora no âmbito das relações internas – se o
armador que tenha satisfeito a indemnização pode, em regresso
exigir à “corporação” a indemnização que tenha satisfeito. Na
nossa opinião 37 , a corporação que nomeou o piloto pode ser
responsabilizada como comitente, nos termos do artigo 500.º CC,
verificados os requisitos da comissão. Isto significa que à partida,
o proprietário de um navio abalroado em consequência de uma
má assessoria do piloto obrigatório do navio abalroador, pode agir
em três frentes: contra o armador – enquanto comitente do piloto
contra o piloto – como pessoa relativamente À qual se verificam
os requisitos da responsabilidade civil aquiliana; e contra o
organismo que nomeou o piloto38 – enquanto comitente deste.
37 Ver nota 16, página 77, para a atualização do pensamento do Professor na matéria do recurso obrigatório a piloto (8.) 38 Para o efeito, não será necessário que tenha sido identificada culpa desse organismo, máxime na escolha do piloto: por força do artigo 8.º, n.º2 RRCEE, basta que as ações ou omissões tenham sido cometidas no exercício das funções e por causa das mesmas para que a pessoa coletiva de Direito Público seja responsável em solidariedade com o agente. Enquadrando, ainda no domínio do Decreto-
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Em função das perspetivas de abordagem, tanto podemos dizer
que tudo se passa como se o armador-comitente tivesse dois
comissários – o piloto e o organismo – como podemos, antes,
identificar, centradas na pessoa do piloto, a dupla condição de
comissário do armador e do organismoo que o nomeou. Mas há
que, em rigor, identificar, pelo menos nalguns casos, uma terceira
condição de comissário, desta vez relativamente ao capitão,
respondendo este perante terceiros por atos ilícitos praticados por
si, sob indicação ou assessoria do piloto. Teremos, então, uma
espécie de sub-comissão, em que a comissão principal é a que
acontece entre o armador e o capitão e a sub-comissão é a que
tem lugar entre este e o piloto. Trata-se de uma construção que
não suscitaria reservas no Direito anterior, quando o capitão tenha
um papel mais central na expedição marítima; a sua dificuldade no
Direito atual resulta, desde logo, do facto de o artigo 7.º, n.º2
Decreto-Lei .º 384/99 não dar nota de situações de
responsabilidade do capitão por atos do piloto, uma vez que tal
dispositivo só alude à responsabilidade (interna) do piloto, nos
ermos gerais, perante o armador ou proprietário do navio. Não
obstante, parece-nos que não se trata de um argumento
irremovível: face à remissão para os termos gerais, feita pelo artigo
7.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 384/99, importa saber se a
responsabilização resulta do facto de o piloto, como comissário do
armador (alínea b) do artigo 4.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98),
poder responder solidariamente com o capitão. Assim, se é o
capitão a responder perante terceiros por uma situação que tem,
na sua origem, um erro do piloto, o direito de regresso contra este
fará todo o sentido.
c. Outras pessoas ao serviço do navio: o armador responde ainda,
agora por força do que dispõe a alínea c) do artigo 4.º, n.º1
Decreto-Lei n.º 202/98, pelos atos e omissões de qualquer outra
pessoa ao serviço do navio, para além das que estão identificadas
nas alíneas a) e b), não constituindo impedimento o facto de essas
pessoas integrarem o conceito de “indivíduos não marítimos”, tal
como referidos no artigo 64.º Decreto-Lei n.º 280/2001, 3 outubro:
ponto é que estejam ao serviço do navio. Pretende, assim, o
legislador ultrapassar as dúvidas que se suscitavam relativamente
a algumas pessoas que, não fazendo parte da tripulação,
estivessem ao serviço do navio e da expedição. Essas pessoas são
tidas como comissários (artigo 4.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98),
para efeitos de responsabilidade civil, ainda que não exista o
vínculo de subordinação jurídica que caracteriza as relações ius-
laborais.
Lei n.º 48.051, a responsabilidade solidária da Administração, à luz do artigo 22.º CRP (conforme Rangel de Mesquita).
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d. O gestor de navios: um outro sujeito por cujos atos – quando
relativos ao armamento do navio (artigo 7.º Decreto-Lei n.º
202/98) – o armador igualmente responde é o gestor de navios,
caracterizado pela alínea e) do artigo 1.º Decreto-Lei n.º 202/98
como sendo aquele que, contratualmente, foi encarregado pelo
armador da prática de atos de armamento do navio. As situações
típicas que determinam a responsabilidade do armador são
relativas a atos materiais de armamento do navio, a atos jurídicos
em que o gestor tenha atuado em seu próprio nome ou, então, em
que tenha atuado em nome do armador mas sem poderes de
representação para o efeito. Já quanto às situações em que o
gestor tenha praticado atos jurídicos, munido de poderes de
representação, a responsabilidade do armador decorre da lógica
do instituto da representação. No que respeita à responsabilidade
pelos atos do gestor, não estaremos longe do quadro da comissão
e respetivos requisitos: o armador responde pelos atos praticados
pelo gestor no exercício das funções que lhe foram confiadas,
tendo em vista o armamento do navio. Há, porém, duas
especificidades importantes: a primeira é a de que a
responsabilidade pelos atos do gestor não se reporta apenas,
conforme é típico da comissão, a situações de responsabilidade
extra obrigacional. A segunda é a de que a vinculação do armador
não é apenas posterior à verificação dos requisitos da
responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar, não estando
tal vinculação dependente da violação do contrato celebrado pelo
gestor e da evolução do dever de prestar para dever de indemnizar:
o armador está, desde logo, vinculado, à prestação não tornada
ainda prestação indemnizatória. Trata-se, no fundo, de um efeito
que o apelo à figura do mandato comercial – na qual o mandatário
atua por conta do mandate – permite cabalmente explicar.
4. A responsabilidade do simples proprietário:
a. O simples proprietário do navio: despois de regular,
sucessivamente, os termos da responsabilidade do proprietário-
amador e do armador não proprietário, o Decreto-Lei n.º 202/98
prevê a responsabilidade do proprietário não armador,
designando-o por simples proprietário. A noção de proprietário do
navio consta da alínea b) do artigo 1.º: entende-se por proprietário
do navio «aquele que, nos termos da lei, goza, de modo pleno e
exclusivo, dos direitos de uso, fruição e disposição do navio». Trata-
se de uma definição de sabor realista, diretamente importada do
artigo 1305.º CC. Definição essa que o artigo 31.º PLNCM se
propõe igualmente adotar. Não obstante, independentemente do
apuro dogmático da noção, a mesma deve ser cautelosamente
interpretada e aplicada, já que, em concreto, num determinado
momento, o direito de uso, bem como o de fruição do navio, pode
não pertencer ao respetivo proprietário, que o pode ter alugado
ou fretado. Nem da alínea b) do artigo 1.º Decreto-Lei n.º 202/98,
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nem do artigo 2.º Decreto-Lei n.º 201/98, 10 julho (ENL), que
sujeita a registo «os navios e os factos a eles respeitantes», se
retira a consequência de que a propriedade do navio dependa do
respetivo registo, ou seja, que este seja constitutivo do direito de
propriedade: tal consequência não resulta também doo artigo 72.º
Regulamento Geral das Capitanias ou do Decreto-Lei n.º 42.644,
14 novembro 1959. Sem prejuízo do exposto – ou seja, no
pressuposto de que o registo do navio não é constitutivo da sua
propriedade – poderá questionar-se se, para efeitos do concreto
regime do artigo 4.º decreto-Lei n.º 202/98, e, mais amplamente,
de todo o diploma, o proprietário relevante não deveria ser a
pessoa, em cujo nome o navio se encontra, como tal, registado.
Parece-nos que, por razões de segurança jurídica e de tutela dos
terceiros, assim deveria ser; contudo, não vemos tal conclusão
como possível face ao Decreto-Lei n.º 202/98, diploma que adota
uma noção de proprietário de navio alheada da lógica registal, ao
mesmo tempo que se mostra atento a algumas situações registais,
conforme ilustra a presunção constante da alínea b) do artigo 21.º.
Esta conclusão não é, naturalmente, prejudicada pela aplicação da
presunção derivada do registo, quanto aos navios mercantes39,
não sendo, igualmente, contrariada pela constatação de, por vezes,
a lei associar determinados aspetos de regime ao registo de
propriedade do navio, como acontece na CLC/92 (artigo 1.º, n.º3).
Tal como a noção de proprietário do artigo 1305.º CC, a de
proprietário do navio, da alínea b) do artigo 1.º Decreto-Lei n.º
202/98, deve ser reportada ao facto de, como diz Oliveira
Ascensão, a propriedade conceder «a universalidade dos poderes
que se podem referir à coisa»: assim, o exercício, por exemplo, dos
poderes de uso e fruição do navio não afeta o casco ou raiz do
direito de propriedade, sendo tais poderes retomados ou
retomáveis pelo proprietário, de acordo com a elasticidade
própria do direito em causa.
b. A responsabilidade subsidiária do simples proprietário: conforme
dissemos, o artigo 6.º Decreto-Lei n.º 202/98 prevê a
responsabilidade do simples proprietário, estabelecendo que o
mesmo «responde subsidiariamente perante terceiros, nos
mesmos termos do proprietário armador». Conforme é patente, a
redação do artigo 6.º contém uma contradição intrínseca, já que
se o simples proprietário respondesse nos mesmos termos do
proprietário-armador não responderia subsidiariamente; mutatis
39 O regime aplicável ao registo de navios mercantes continua a constar do Decreto-Lei n.º 42.644, 14 novembro 1959 e do decreto n.º 42.646, da mesma data (artigo 5.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 403/86, 3 dezembro, que aprovou o Código do Registo Comercial). A presunção – de que existe a situação jurídica nos termos precisos em que é definida – é associada ao registo definitivo e resulta do artigo 7.º Código Registo Predial, tendo paralela consagração no artigo 11.º Código Registo Comercial. A questão dos efeitos presuntivos do registo é, no entanto, discutida sobretudo em registo predial, cuja dogmática aproveita também ao registo comercial.
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mutandis, se responde subsidiariamente não responde nos
mesmos termos do proprietário-armador. Assim, a remissão para
os termos da responsabilidade do proprietário-armador só pode
ter o sentido de colocar – colocação que acontece ex vi legis – o
simples proprietário na posição de comitente responsável pelos
atos ou omissões das pessoas referidas nas alíneas do artigo 4.º,
n.º1, como se fosse também armador. Há, então, a relevante
diferença de o simples proprietário só responder subsidiariamente
perante o terceiro lesado, o que significa que, em primeiro lugar,
responderá o armador, nos termos conjugados dos artigos 4.º e
5.º; temos, assim, a situação singular de os mesmos comissários
terem dois comitentes, colocados em graus ou planos diferentes:
um comitente principal e natural (o armador) e um comitente
subsidiário (o simples proprietário), cuja responsabilidade
funciona num segundo plano, como mecanismo de reserva ou
garantia. O regime plasmado no artigo 6.º suscita as seguintes
dúvidas:
(i) A da modalidade de subsidiariedade aí consagrada: o facto
de a lei não utilizar a terminologia que emprega
normalmente para as situações de subsidiarização de
responsabilidade – como faculdade ou benefício – leva-
nos a pensar que estamos perante uma situação de
responsabilidade em sentido próprio, ou seja, perante
uma situação de subsidiariedade forte. Daqui decorre que
os credores só podem responsabilizar o simples
proprietário após a execução do património do primeiro
responsável ou de um conjunto de responsáveis. Estamos
perante uma responsabilidade patrimonial de atuação
sucessiva, na qual a prévia execução do património do
devedor primário funciona como autêntico pressuposto
da efetivação da responsabilização do devedor subsidiário.
Isto significa que, diversamente do que acontece nas
situações em que o devedor goza de um simples
benefitium, como na fiança subsidiária, os terceiros têm, à
partida, libera electio entre a responsabilização do
proprietário-armador e do simples proprietário. Assim, o
simples proprietário não tem um mero poder ou faculdade
de subsidiarizar a sua responsabilidade, já que, à partida,
a subsidiariedade em causa não é meramente vital ou
potencial, mas faz parte da natureza da sua
responsabilidade, conforme é típico da subsidiariedade
forte: os credores só podem responsabilizar o devedor
subsidiário após o esgotamento (excussão) do património
do devedor primário.
(ii) A questão de saber se a subsidiariedade é apenas em
relação ao armador ou se é também em relação ao
comissário: cabe-nos saber se o devedor primário,
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relativamente ao qual se afirma a responsabilidade
subsidiária do simples proprietário do navio, é apenas o
armador ou também o capitão ou outra das pessoas
integradas nas alíneas do artigo 4.º, n.º1 Decreto-Lei n.º
202/98. As consequências de uma ou outra conclusão são
patentes: se o simples proprietário puder invocar a
subsidiariedade não apenas em relação ao armador mas
também em relação ao comissário, conseguirá, por essa
via, um reterdamento da sua efetiva responsabilização –
se não mesmo uma prejudicabilidade, se, entretanto, os
lesados forem satisfeitos com recurso ao património do
comissário. Parece-nos, porém, que não é esta a solução
do artigo 6.º: o simples proprietário entra como
responsável em substituição direta do armador cujo
património tenha sido precedentemente excutido. Daqui
resulta que os lesados continuarão a ter como devedores
(se for o caso) o comissário e, agora, o simples proprietário
do navio enquanto devedor subsidiário já primarizado pela
ocorrida excussão do património do armador, ou seja, pela
verificação do pressuposto da sua responsabilidade. Neste
quadro, é patente que a previsão de sub-rogação total ou
parcial do simples proprietário nos direitos do terceiro
contra o armador pode constituir uma disposição
platónica, na medida em que se aceite que a sub-rogação
do simples proprietário na posição do terceiro satisfeito e
na medida da satisfação dos respetivos créditos, ocorre
não apenas em relação ao armador mas também em
relação ao comissário, que, de outro modo, ficaria
injustificadamente liberado.
Como justificar a responsabilidade do simples proprietário,
quando a dívida resulta da exploração do navio? Cremos que,
substancialmente, a explicação está no navio, cuja exploração, não
sendo, embora, feita pelo simples proprietário, é pelo mesmo
permitida ou disponibilizada. Ora, tratando-se de créditos
associados à exploração do navio, os credores contam, no limite,
com as forças deste para a satisfação dos respetivos créditos.
Contudo, uma vez que o sistema de responsabilidade civil está, no
ordenamento português, tal como, em geral nos ordenamentos da
família romano-germânica, estruturados em função da pessoa,
que não da coisa – responsabilidade pessoal (actio in personam)
que não real – a lei responsabiliza o proprietário do navio, quando
conhecido, equiparando-o, para o efeito, ao armador-comitente.
É certo que se poderá trazer para aqui à colação a função de
garantia de indemnização associada à responsabilidade objetiva
do comitente: trata-se, porém, de uma explicação que, não
deixando de ser correta, não vai, no nosso entender, ao âmago da
questão e à especificidade marítima da situação.
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c. Situações de responsabilidade solidária do proprietário e do
armador: conforme vimos, o Decreto-Lei n.º 202/98 alberga uma
situação de responsabilidade subsidiária do simples proprietário
do navio, assumindo o armador o papel de devedor primário, em
solidariedade, nas relações externas, com o capitão ou outro
comissário. Nestas situações de subsidiariedade própria –
independentemente da polémica sobre se a mesma se alberga no
amplo perímetro da solidariedade passiva, tal qual traçado no
artigo 512.º CC – não se suscitam, à partida, dúvidas de que os
lesados não têm libera electio entre a responsabilização do
armador-comitente e a do simples proprietário. Há, no entanto, a
nível de regimes especiais, situações em que o proprietário
responde a par do armador, tendo, então, os lesados libera electio,
nos termos da solidariedade passiva e tendo o cumprimento por
um deles um efeito extintivo recíproco. O artigo 1.º Decreto-Lei n.º
64/2005, 15 maio, impõe ao «proprietário, armador ou legal
representante» de navio afundado ou encalhado o dever de
efetuar a «necessária remoção», ainda que só existam destroços,
e de assumir a totalidade das despesas da operação40: a ocasio em
que este dever é estabelecido é aquela em que, na sequência de
um «sinistro marítimo ou outro acontecimento de mar», ocorra o
afundamento ou encalhe de um navio que:
(i) Cause prejuízo à navegação ou ao regime e à exploração
do porto; ou que
(ii) Cause danos ao ambiente, designadamente a nível dos
recursos aquícolas ou piscícolas41.
Verifica-se, porém, que o regime plasmado no Decreto-Lei n.º
64/2005 vai para além das questões centradas na remoção do
navio afundado ou encalhado e respetivos destroços, já que o
artigo 9.º, n.º2 responsabiliza o proprietário e o armador, em
termos solidários, por todos os prejuízos causados pelo
afundamento, encalhe ou abandono do navio, responsabilização
essa a que é aditada a responsabilidade pela não remoção do navio,
bem como pelos danos originados quando a remoção deste seja
efetuada de forma defeituosa ou não atempada. Parece, assim, de
concluir, que, conquanto não assumido como tal, o Decreto-Lei n.º
64/2005 institui um regime de responsabilidade próprio para
situações de afundamento ou encalhe do navio,
independentemente da remoção dos destroços e das eventuais
40 Conforme parece óbvio, não se trata, em rigor, diversamente do que sugere a letra do artigo 1.º, de um dever de assumir a totalidade das respetivas despesas da operação, dever esse cujo incumprimento possa gerar uma obrigação de indemnização: trata-se, antes, de uma verdadeira imputação legal de responsabilidade pelas despesas da operação. 41 O artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 63/2005 impõe aos mesmos sujeitos procedimentos específicos, não só no caso de ocorrência (efetiva, entenda-se) de poluição marítima mas também no de “perigo de ocorrência”.
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patologias associadas a tal remoção. Nesses casos, é instituída a
responsabilidade solidária do proprietário e do armador do navio,
responsabilidade essa que não cessa pelo facto do abandono do
navio, conforme estabelece expressamente o artigo 8.º, n.º6 do
mesmo diploma 42 – que, assim, afasta claramente um efeito
liberatório do abandono do navio, no sentido plasmado nos n.º1 e
2 do artigo 8.º. Idêntica responsabilidade solidária do proprietário
e do armador do navio é estabelecida no artigo 9.º, n.º1, relativo
ao «pagamento de todas as despesas resultantes das operações de
remoção» efetuadas ao abrigo do diploma, quando as mesmas
sejam suportadas por entidade administrativa. Causa perplexidade
que o artigo 9.º pareça isentar o representante legal do armador
quando, nas disposições anteriores, tinha abarcado, como sujeito
de deveres e responsável, aquele representante, a par do
proprietário e do armador representado, conforme resulta
claramente, designadamente do já citado artigo 8.º, n.º6, segundo
o qual o abandono do navio em resultado de acontecimento de
mas não afasta a responsabilidade do proprietário, armador ou
representante legal pelos prejuízos ou danos causados. O Decreto-
Lei n.º 67/2005 adota uma técnica maximalista, assente, a um
tempo, no estabelecimento ex lege de situações de solidariedade
passiva, na criação de mecanismos de garantia e na estatuição de
contraordenações, numa clara estratégia de disparar em todas as
direções – estratégia pouco serena essa, de que se ressente o
diploma, na sua clareza e apuro técnico.
4. Responsabilidade do navio: uma vez feita, nos termos dos artigo 4.º a 6.º Decreto-Lei
n.º 202/98, a imputação secundária, em termos de responsabilidade objetiva,
sucessivamente, ao armador e ao (simples) proprietário do navio, o artigo 11.º do
mesmo diploma estende, in extremis, a responsabilidade ao próprio navio,
responsabilidade essa cuja imputação pressupõe um requisito fundamental: a
impossibilidade efetiva de imputação ao armador ou ao proprietário do navio. Já
acima fizemos referência – justificando, desse modo, a imputação ao simples
proprietário – ao facto de o regime de responsabilidade civil, nos sistemas romano-
germânicos, em que se insere o português, ser ad personam, que não ad rem. Ora,
essa característica, para além de explicar a natureza subsidiária da responsabilidade
do simples proprietário, explica também porque é que a responsabilização do próprio
navio, como se pessoa jurídica fora, só acontece em última instância – em desespero
de causa, digamos – quando as imputações secundárias dos artigos 4.º a 6.º Decreto-
Lei n.º 202/98 já não são possíveis. Nesse caso, responderá o navio, não enquanto
bem pertencente ao simples proprietário – desde logo porque essa relação entre
titular e elemento do património fenece, por se desconhecer quem é o dono – mas
42 O artigo 8.º, n.º6 refere-se ao «abandono do navio em resultado de acontecimento de mar», deixando claro que o mesmo não afasta a responsabilidade do «proprietário, armador ou representante legal pelos prejuízos ou danos causados». Pese embora a circunscrição da referência feita no artigo 8.º, n.º6 ao «abandono em resultado de acontecimento de mar», não há qualquer fundamento para concluir – conclusão que seria baseada num juízo a contrario – que o abandono que não seja feito em resultado de acontecimento de mar já seria liberatório.
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enquanto, digamos, personagem principal da expedição marítima. Ou seja, trata-se
de situações nas quais, por impossibilidade de assegurar a efetivação da
responsabilidade, nos termos da responsabilidade pessoal, o ordenamento recorre a
uma solução típica da lógica da responsabilidade real – funciona em termos
subsidiários relativamente à responsabilidade pessoal – coisa bem diversa de
responder subsidiária e sucessivamente em relação ao armador e ao simples
proprietário do navio. Conforme parece lógico, se for o proprietário do navio a
responder efetivamente, assegurada está, por essa via da responsabilidade pessoal, a
possibilidade de ser penhorado o navio, como bem integrante do património desse
devedor. As situações em que, de acordo com o artigo 11.º, n.º1 Decreto-Lei n.º
202/98, é possível a responsabilização direta do navio são aquelas em que «o
proprietário ou o armador não forem identificáveis»43; nesse caso, resulta ainda do
citado artigo 11.º, n.º1 que o navio responde, perante os credores interessados, nos
mesmos termos em que o proprietário ou o armador responderiam. Para o efeito, o
artigo 11.º, n.º2 do mesmo diploma atribui ao navio, personalidade judiciária e investe
o agente de navegação que tenha requerido o despacho na qualidade de
representante em juízo; trata-se de uma atribuição lógica, como forma de o navio –
por não ser pessoa jurídica pelo menos em termos plenos – poder responder, sendo
parte em juízo. Vejamos, mais detalhadamente, os termos em que o navio responde,
perante os credores interessados, distinguindo, sucessivamente, as situações em que
(i) Não é identificado o proprietário do navio nem o armador: não sendo
identificado nenhum dos sujeitos relativamente aos quais o diploma efetiva
imputações secundárias, o navio responde diretamente, nos termos e por
força do artigo 11.º, n.º1;
(ii) Não é identificado o armador: nesta situação, sendo o proprietário
conhecido44, a responsabilidade direta do navio não terá lugar, respondendo
o simples proprietário com todo o seu património, incluindo, naturalmente, o
navio; ou
(iii) Não é identificado o simples proprietário: onde, sendo o armador conhecido,
ocorrerá a responsabilização direta do navio nos mesmos termos em que este
último responderia, ou seja, subsidiariamente em relação à responsabilidade
do armador.
Uma situação específica em que alei marítima interna prevê a responsabilidade direta
do navio ocorre no domínio do transporte de mercadorias por mar, estabelecendo o
artigo 28.º Decreto-Lei n.º 352/86 a responsabilidade direta do navio que efetue o
transporte, perante os interessados na carga, nos mesmos termos em que
responderia o transportador, em duas situações distintas:
(i) Se ocorrer a nulidade prevista no artigo 10.º, n.º1 do diploma; ou
43 O artigo 11.º, n.º1 refere-se à situação em que o proprietário ou o armador não forem identificáveis «com base no despacho de entrada da capitania». Parece-nos, porém, que esta referência é exemplificativa, não tendo, assim, caráter limitativo. Neste particular, o artigo 392.º, n.º1 PLNCM vai no bom sentido, ao retirar a expressão aqui em destaque 44 Trata-se, no entanto, de uma situação de difícil verificação, já que, em função da presunção da alínea a) artigo 2.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 202/98, o proprietário é presumido armador, não havendo, então, cisão entre as duas figuras.
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(ii) Se o transportador marítimo não for identificável com base nas menções
constantes do conhecimento de carga.
Para o efeito dessa responsabilização, o artigo 28.º, n.º1 atribui ao navio
personalidade judiciária, cabendo a sua representação em juízo ao proprietário, ao
capitão ou ao seu substituto, ou ao agente de navegação que requereu o despacho
do navio. Uma das várias dúvidas suscitadas pelo artigo 28.º prende-se com a
ressalva prevista no seu n.º3, de acordo com a qual a responsabilidade estabelecida
no n.º1 não prejudica a efetivação da responsabilidade estabelecida no artigo 10.º,
n.º2 do mesmo diploma, nos termos gerais de direito. Parece-nos não haver aqui
identificação dos termos da responsabilidade do navio com os termos da
responsabilidade das pessoas identificadas no artigo 10.º, n.º2: estas respondem
nos termos gerais de Direito: aquele responde nos mesmos termos do transportador.
Por outro lado, não há nenhuma relação de subsidiariedade entre as duas
responsabilidades, admitindo-se, porém, que o navio que responda possa exercer
direito de regresso contra tais pessoas, em termos equivalentes aos que vigoram na
solidariedade passiva.
5. O abandono liberatório do navio face ao Decreto-Lei n.º 202/98:
a. Introdução: a revogação do artigo 492.º CCom pelo artigo 20.º
Decreto-Lei n. 202/98 fazia supor que o legislador nacional teria
optado, em sede de regime de limitação de responsabilidade do
proprietário do navio, por abandonar o regime do abandono do
navio. Não foi isso, porém, eu aconteceu: o artigo 12.º do citado
diploma, que tem por objeto, precisamente, a figura da limitação
de responsabilidade do proprietário do navio, mantém a figura do
abandono, conferindo-lhe, no entanto, aparentemente, um
âmbito de aplicação mais limitado. Mais concretamente, o artigo
12.º admite que o proprietário do navio restrinja a sua
responsabilidade ao navio e ao valor do frete a risco,
abandonando-os aos credores com vista à constituição de um
fundo de limitação de responsabilidade, mas essa faculdade só é
possível quando não estejam em causa pedidos de indemnização
abrangidos pelos regimes de limitação de responsabilidade
admitidos nos tratados e convenções internacionais vigentes em
Portugal. A admissão do abandono apresenta-se, assim,
claramente, como subsidiária relativamente à aplicação das
limitações de responsabilidade resultantes dos tratados e
convenções citados: trata-se, mais rigorosamente de um regime
supletivo, cuja aplicação pressupõe a não aplicação aos pedidos de
indemnização que estejam em causa do regime de limitação de
algum tratado ou convenção internacional em vigor em Portugal.
Nesta lógica, o advérbio além, com que o legislador inicia o artigo
12.º, é, prima facie, enganador, já que pode sugerir – sugestão que
é, depois, desdita- uma aplicação cumulativa ou alternativa de
regimes. Não deixa, neste particular, de ser curiosa a simbiose de
regimes e mesmo de sistemas de limitação adotados pelo
legislador português no artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98: por um
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lado, mantém o abandono in natura, de coloração continental; po
outro, associa o abandono à figura anglo-saxónica do fundo de
limitação. Assinale-se, porém, que o fundo de limitação é definido
como uma quantia, um montante – mais concretamente, como
(alínea h) do artigo 1.º) «o montante global a que o proprietário de
um navio pode limitar a sua responsabilidade por danos causados
a terceiros» - quando, na Convenção de Bruxelas de 1957, o fundo
de limitação é, pelo menos ictu oculi, algo bem mais complexo. Ou
seja, adotando, embora, a técnica e a linguagem do fundo de
limitação, o legislador transforma-o, em termos de definição, num
simples montante, num quantum. Contudo, a nível de regime
(artigo 13.º e seguintes) o Decreto-Lei desdiz a ideia simplista de
que o fundo seja um mero montante. A que tratados e convenções
de reporta o legislador? Prima facie, seria de afastar a hipótese de
os tratados ou convenções relevantes serem os que vinculam
Portugal a nível internacional, já que, quanto aos mesmos, não
faria sentido vir o legislador ordinário recordar que, no âmbito de
aplicação da lei internacional, o Direito interno tem uma aplicação
subsidiária, em função da primazia da lei internacional. Contudo,
atentos os termos da receção do Direito internacional no Direito
interno e tendo em conta as considerações, feitas supra,
sucessivamente, em relação às Convenções de Bruxelas 1924 e
1957, parece-nos que, no que se refere aos regimes uniformes
gerais, o legislador terá em mente os regimes resultantes daqueles
Convenções, em particular da de 1957, tendo também em conta o
regime plasmado no Decreto-Lei n.º 49.928, complementado pelo
Decreto 49.029. Nesta lógica, acaba, a final, por ganhar algum
sentido o advérbio além, atrás refutado, o qual evidencia que os
instrumentos normativos visados pelo legislador corporizam
Direito interno, tal qual o regime do abandono previsto na parte
final do mesmo artigo. Também nesta lógica, a única que permite
salvar a coerência das soluções legislativas nesta matéria, o
legislador terá pretendido deixar claro que entre o regime
resultante do Decreto n.º 49.029 (com a Convenção de Bruxelas
1957 internalizada) e o do abandono, recuperado na parte final do
artigo 12.º, o primeiro tem primazia aplicativa sobre o segundo,
apesar de este constituir lei posterior. É certo que, em princípio,
não haveria conflito de aplicação possível, atento o facto de o
legislador ter deixado claro que o regime do abandono é supletivo,
só tendo aplicação quando os pedidos de indemnização não
respeitem a matérias abrangidas pelas convenções vigentes em
Portugal; contudo, parece-nos positivo que o legislador tenha tido
o cuidado pedagógico de deixar vincado que o abandono só tem
aplicação nos espaços deixados pelos normativos de fonte
internacional. O pressuposto de que não estejam em causa
pedidos de indemnização abrangidos pelos tratados e convenções
internacionais, vigentes em Portugal, deverá ser entendido em
termos estritos, isto é: é a circunstância de os pedidos de
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indemnização estarem cobertos ou abrangidos por tais tratados
que impedem a aplicação supletiva do regime do abandono, ainda
que o proprietário do navio não logre limitar, efetivamente, a sua
responsabilidade ao abrigo dos mesmos. Discutia-se, no sistema
de abandono do Code du Commerce e do artigo 492.º CCom, se o
abandono só podia ser efetuado pelo proprietário do navio ou se
o podia ser também pelo armador não proprietário.
Independentemente da posição mais correta a tomar face àquela
legislação revogada, parece-nos seguro que tal polémica não tem
espaço no regime do Decreto-Lei n.º 202/98. Na verdade,
distinguindo este diploma, com toda a clareza, entre as figuras do
armador e do proprietário, estabelecendo, também com clareza,
um sistema de responsabilidade desses sujeitos (artigos 4.º a 6.º)
e tratando o artigo 12.º dos limites de responsabilidade do
proprietário, não vemos como seja possível, no quadro desse
mesmo diploma, estender a faculdade de abandono ao armador
não proprietário; de resto, a lei circunscreve, expressis verbis, o
abandono ao proprietário do navio. Aliás, o facto de o diploma ter
optado por uma lógica de abandono em espécie ou in natura –
abandono da res – que passa pela venda judicial do navio, que não
por um abandono do valor do navio, inviabiliza a extensão de tal
modo de limitação de responsabilidade ao armador não
proprietário. Daqui resulta uma desarmonia entre o regime de
limitação ao abrigo da Convenção de Bruxelas de 1957 – que
permite ao armador não proprietário limitar a sua
responsabilidade (artigo 6.º, n.º2) – e o regime de limitação
concretizado através do abandono com vista à constituição de um
fundo de limitação de responsabilidade, reservado ao proprietário
do navio. Daqui decorre, portanto, que, quanto aos créditos não
abrangidos pelo artigo 1.º, n.º1 CB 1957 e salvo algum regime
especial aplicável, a lei interna portuguesa não faculta ao armador
não proprietário do navio nem a qualquer das demais pessoas
mencionadas no artigo 6.º, n.º2 CB 1957 um regime de limitação
de responsabilidade, solução esta que, na lógica da admissão de
um regime de limitação de responsabilidade relativamente a
créditos marítimos, é de duvidosa coerência. Estando o abandono
circunscrito ao proprietário do navio, é de exigir que o proprietário
em causa seja também armador? Neste sentido militaria o facto
de, entre os elementos abandonados, estar o frete a risco, frete
esse que, tipicamente, é auferido pelo armador no âmbito da
exploração do navio. Contudo, não nos parece que, no quadro do
regime do Decreto-Lei n.º 202/98, o argumento do frete seja
impeditivo do abandono liberatório pelo simples proprietário:
para além do facto de o artigo 12.º não limitar o abandono ao
proprietário-armador – figura esta a que dá um relevo central no
seu artigo 4.º - o simples proprietário que disponibiliza o navio a
um armador, fretando-o, aufere também um frete (artigo 1.º
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Decreto-Lei n.º 291/87), elemento este que poderá ser integrado
no quid a abandonar.
b. Créditos abrangidos pela limitação através do abandono: o sistema
de abandono in natura consagrado na Ordunnance du Colbert e
sucessivamente adotado nos códigos comerciais mais diretamente
influenciados pelo Code du Commerce, tinha como espaço natural
e lógico de aplicação o universo dos créditos da expedição
marítima: da viagem. De resto, o n.º2 do artig 492.º CCom – com
referência ao qual ou às situações nele previstas, o §1.º do mesmo
artigo consagrava o abandono do navio e do frete ganho ou a
vencer – referia-se às «obrigações contraídas pelo capitão,
relativas ao navio e sua expedição». Entendia-se, porém, que os
créditos relativamente aos quais era possível o abandono do navio
não eram apenas os créditos da última expedição ou viagem,
podendo abranger créditos de expedições ou viagens anteriores,
mas aí com a desvantagem para os correspondentes credores,
menos lestos no exercício dos seus créditos, por força da restrição
resultante do §único do artigo 578.º CCom. É de questionar agora
se, quanto ao abandono com vista à constituição de um fundo de
limitação, vale a citada interpretação defendida na vigência do
Código Comercial ou se, ao invés, é de aplicar alguma limitação.
Nessa última opção, o legislador de 1998 tinha, grosso modo,
como critérios de consideração possíveis, o da viagem – critério
utilizado, conquanto não em termos plenos, na Convenção de
Bruxelas de 1924 (artigo 3.º, n.º3) ou no Codice della Navigazione
– ou o do evento – critério este utilizado quer na Convenção de
Bruxelas de 1957 (artigo 2.º, n.º1) quer na Convenção de Londres
1976 (artigos 6.º, n.º1 e 7.º, n.1º). Apesar de o artigo 12.º Decreto-
Lei n.º 202/98 não nos fornecer indicações claras no sentido de um
critério delimitador específico, parece-nos que a alínea a) do artigo
14.º, n.º1 – ao exigir a identificação do «facto de que resultaram
os prejuízos» - permite, ainda assim, sustentar a relevância do
evento (occasion), tal como ocorre na CB 1957, no Decreto-Lei n.º
49.028 e no Decreto n.º 49.02945. Não fora esta circunscrição –
que, logicamente, impõe que o fundo só possa ser constituído
após o evento – o abandono do navio e do frete a risco com vista
à constituição de um fundo de limitação de responsabilidade,
poderia ser feito, genericamente, relativamente a quaisquer
créditos sobre o proprietário do navio, na medida em que os
mesmos tivessem conexão com o navio objeto do abandono.
c. O quid objeto do abandono:
1. Introdução: a restrição da responsabilidade do proprietário
do navio prevista na 2.ª parte do artigo 12.º Decreto-Lei n.º
202/98 processa-se através do abandono do navio e do valor
45 Em sentido diverso temos Sofia Enriquez para quem «os elementos componentes da fortuna de mar devem ser determinados no fim de cada viagem que ocasionou dívidas marítimas».
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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do frete a risco. Conquanto a letra do artigo 12.º não dê
alento à hipótese, tão discutida no domínio de vigência do
artigo 492.º CCom, de o abandono se processar, também
liberatoriamente, através de abandono do valor do navio,
importa analisar este ponto. O esclarecimento desta questão
revela-se de particular importância na perspetiva do
proprietário do navio e ainda na do armador não proprietário,
conquanto exista, neste último caso, a acrescida dificuldade
de o artigo 12.º limitar expressamente o abandono ao
proprietário do navio. À partida, admitido que seja o
abandono e a respetiva eficácia liberatória, não veríamos
impedimento a que o mesmo se pudesse processar não
apenas in natura mas também em valor, em função da opção
do abandonante. Com esta admissão poderiam, a um tempo,
ser satisfeitos os interesses do proprietário do navio e os dos
credores: o primeiro por, eventualmente, pretender
continuar a exploração daquele navio, oferecendo aos
credores uma quantia correspondente ao respetivo valor; os
segundos porque, em princípio, terão mais interesse numa
indemnização pecuniária do que no navio, para cuja
exploração não estarão vocacionados. Aliás, no sistema
previsto no Decreto-Lei n.º 202/98, o credores não recebem,
a final, o próprio navio mas, antes, o produto da respetiva
venda, razão pela qual a admissão do abandono do valor seria
uma forma de, antecipando procedimentos e com ganho de
tempo, serem satisfeitos igualmente os interesses dos
credores, sempre dentro do quadro do sistema de limitação.
Naturalmente que a determinação do valor liberatório não
pode depender da apreciação ou juízo unilateral do
proprietário do navio, devendo, antes, resultar de uma
avaliação objetiva do mesmo, num processo que contasse
com a participação dos credores interessados. Acontece,
porém, que o abandono do navio, com vista à constituição de
um fundo de limitação, passa, nos termos dos artigos 14.º,
n.º4 e 15.º Decreto-Lei n.º 202/98, pela venda judicial do
navio, só ficando, de resto, o fundo constituído quando se
mostre realizado o depósito do produto da venda. Neste
quadro, não havendo, processualmente, mecanismos que
permitam ao proprietário do navio substituir o navio pelo
respetivo valor, não vemos como possível a eficácia
liberatória do abandono do respetivo valor ou, se quisermos,
a eficácia liberatória da oferta (real) de tal valor como
alternativa, ex voluntate debitoris, ao abandono liberatório.
Não obstante, nos termos gerais, sempre será possível essa
eficácia, não no âmbito unilateral do abandono, mas no de
um acordo de regularização de dívida celebrado entre o
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proprietário do navio e os credores46. É certo que, através
desse contrato, os credores liberarão o devedor, aceitando
uma indemnização inferior àquela que corresponderia ao
montante dos danos; contudo, esse acordo pode ser
manifestação de uma atitude realista de quem sabe que, pela
via do abandono, provavelmente não receberá mais, para
além de receber mais tarde.
2. Navios abandonados: tal como no domínio de vigência do
artigo 492.º CCom, importa questionar que tipo de navios
pode ser objeto do abandono previsto no artigo 12.º Decreto-
Lei n.º 202/98. Era então sustentado, naturalmente com
referência aos navios de mar, únicos enquadráveis no Livro
Terceiro do Código, aplicável ao «Comércio Marítimo?, que
na previsão do artigo 492.º podiam caber também os navios
de pesca47, não havendo, porém, unanimidade de posições
no que respeitava às embarcações de recreio: enquanto que
Frederico Martins defendia a inaplicação, quanto às mesmas,
da «vantagem do abandono», Viegas Calçada opinava, ao
invés, que as razões da admissão do abandono para os navios
de comércio aplicavam-se, igualmente, aos navios de recreio,
opinião esta que encontramos também em Azevedo Matos.
Face ao regime do artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98, pese
embora o facto de a noção de navio, constante da alínea a)
do artigo 1.º, ser suficientemente ampla para englobar
quaisquer embarcações, independentemente do fim e até,
independentemente das águas de navegação, o abandono
não pode ser admitido com tanta amplitude. Em primeiro
lugar, conforme resulta da história e da especificidade do
instituto, não fará sentido equacionar a respetiva aplicação
fora do domínio marítimo. De resto, a própria articulação,
estabelecida no artigo 12.º, com convenções internacionais,
postula a circunscrição aplicativa de todo o regime do artigos
a navios de mar, já que a principal convenção sobre a matéria
vigente em Portugal – a Convenção de Bruxelas de 1957 – tem
o seu âmbito de aplicação delimitado em função dessa
característica dos navios. Pressupondo esta delimitação,
cremos que as razões que presidem à admissão do regime de
46 São, naturalmente, possíveis vários cenários contratuais. Um desses cenários poderá ser o de um negócio de fixação ou de acertamento, seguido de cumprimento, designadamente quando não haja certeza sobre o montante de indemnização devida ou sobre a verificação dos pressupostos para a limitação de responsabilidade. 47 Conforme nos diz Viegas Calçada, com o argumento de que os navios de pesca «são para todos os efeitos navios de comércio e não é lícito cercear aos seus donos a faculdade de abandono»; Azevedo Matos, com a especificidade de diferenciar consoante o local de pesca, diz-nos: a faculdade de abandono só teria aplicação aos navios empregados no exercício da pesca do alto mar, quando as operações relativas ao navio e à sua expedição fossem contraídas pelo capitão fora do porto da matrícula. A doutrina portuguesa refletia, de resto, uma polémica que existia noutros ordenamentos jurídicos.
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limitação de responsabilidade do proprietário do navio,
através de abandono, valem também para os barcos de pesca,
já que os mesmos são, do mesmo modo que os navios
mercantes, aplicados em operações de transporte, palco e
protagonistas de atividades económicas, cujo exercício
postula o risco de afrontar os perigos do mar, justificando,
assim o benefício ou a vantagem do abandono. Não vemos,
porém, que tais razões sejam ou possam ser aplicáveis aos
navios de recreio, sendo mesmo chocante admitir que o
proprietário de um iate possa ver a sua responsabilidade
limitada por danos pessoais e materiais, decorrentes, por
exemplo, de uma abalroação a um navio de pesca. Não vemos,
de facto, justificação para uma benesse desse jaez, não sendo
a simples circunstância de se tratar de um navio de mar e de,
como tal, enfrentar os resp4tivos riscos, justificação bastante.
De resto, se bem olharmos para o regime do abandono,
consagrado no Decreto-Lei n.º 202/98, o facto de um dos
elementos a abandonar ser, necessariamente, o valor do
frete a risco, constitui, de per si, uma indicação relativamente
ao âmbito de aplicação do instituto do abandono, já que esse
elemento é dificilmente perscrutável nas embarcações de
recreio. Refira-se, finalmente, que, nesta sede, o regime a
adotar não tem de se pautar pela solução que, para similar
problema, se coloca na Convenção de Bruxelas de 1957, cuja
interpretação se pauta pela lógica próprio do Direito
uniforme, lógica essa que não tem de ser transposta para a
interpretação das normas de fonte interna.
3. O navio perdido: no sistema de abandono in natura era
sustentado, como vimos, que a eficácia liberatória o
abandono não dependia, algo paradoxalmente, da existência
de navio: ainda que este se perdesse totalmente, ainda assim
era possível a limitação de responsabilidade. Era esta a
posição sustentada, entre nós, por exemplo, por Adriano
Anthero, que defendia a eficácia liberatória não só do
abandono de navio destroçado mas também de navio
totalmente perdido, «pois o proprietário abandona o navio
como o tem». O mesmo entendimento era sufragado por
Azevedo Matos, parra quem o abandono devia «ser feito no
estado em que o navio for encontrado no momento em que
ele se realiza, mesmo depois de naufrágio, sendo neste caso
que desempenha a sua função». Contra este argumento,
insurgiu-se Cunha Gonçalves, para quem «não se pode,
evidentemente, abandonar o que não existe», mais
ponderando que a recusa ao devedor do direito de
abandonar um navio perdido não constituiria uma negação
da limitação da responsabilidade «pois não se pode
abandonar o nada». Frederico Martins não aludia
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diretamente ao problema, inferindo-se, no entanto, que
acompanhava a posição de Cunha Gonçalves, em função da
circunstância de discutir se, no caso de navio perdido, o
proprietário pode limitar a sua responsabilidade através do
abandono do respetivo valor ou da indemnização recebida. O
problema ganha novos contornos face ao regime do Decreto-
Lei n.º 202/98, no qual a eficácia liberatória do abandono do
navio e do valor do frete a risco passa pela constituição de um
fundo de limitação de responsabilidade, para cuja efetivação
é necessário (artigos 14.º, n.º2 e 15.º) o depósito do produto
da venda do navio. Assim sendo, parece poer concluir-se com
segurança que, para o Decreto-Lei n.º 202/98, a eficácia
liberatória do abandono passa, cumulativamente, pelo
depósito do valor do frete a risco (artigo 15.º, n.º3) e do
produto da venda do navio, não se afigurando defensável a
posição que e traduza na defesa da ideia de que a limitação
por abandono liberatório pode ter lugar com o depósito
possível, ou seja, na hipótese que estamos a equacionar,
apenas com o depósito do valor do frete. De resto, ainda que
não se acompanhem os exatos termos da indignação, por
exemplo, de Ferrara, relativamente à admissão do abandono,
com efeito liberatório, de um navio caído nos abismos
marinhos não nos parece que, na atualidade, seja possível
sustentar uma tal draconiana posição, cuja sustentação
brigaria, de resto, seguramente, com os princípios
constitucionais vigentes. Um problema a colocar será, então,
o de saber se o depósito efetuado o foi do produto da venda
de um navio ou de meros destroços (épaves): se tiver sido
este último o caso, a limitação através de abandono
liberatório não é possível, por faltar um dos elementos cujo
cumulativo abandono faculta a liberação. Sem pretender
fazer jogos de palavras, parece evidente que o proprietário
do navio não pode abandonar um navio já abandonado.
Referimo-nos, concretamente, às situações em que o navio
seja considerado abandonado nos termos do artigo 17.º
Decreto-Lei n.º 202/98 e do artigo 8.º Decreto-Lei n.º
64/2005, situações estas não subsumíveis ao abandono
liberatório nem confundíveis com o mesmo. De resto, o artigo
18.º Decreto-Lei n.º 202/98 consagra um regime específico
de tutela dos titulares de créditos «sobre o navio
abandonado» ou de que seja devedor o seu anterior
proprietário, parecendo-nos seguro que, não sendo tal
abandono liberatório, os credores não estão impedidos de
recorrer à restante fortuna do devedor.
4. O frete a risco: um dos elementos abandonados pelo
proprietário do navio, tendo em vista conseguir o efeito
liberatório, à luz do §1.º do artigo 492.º CCom, era, para além
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
141
do navio, «o frete ganho ou a vencer». Uma das dúvidas que,
então, se suscitava era a de saber se o frete a abandonar seria
o frete bruto ou o frete líquido, dúvida essa comum, de resto,
às doutrinas dos diversos ordenamentos inspirados pelo
modelo do Code du Commerce. Quer para Adriano Anthero,
quer para Cunha Gonçalves, quer ainda para Frederico
Martins, o frete relevante era o frete bruto ou integral, o que
era justificado, por este último, nos seguintes termos: «a
faculdade de abandono representa, para o proprietário do
navio uma vantagem bastante grande e até bastante
exorbitante dos princípios do direito comum, para que não
seja fácil justificar-se qualquer limitação no objeto do
abandono». Já Viegas Calçada não se mostrava convencido
relativamente à bondade dos argumentos que sustentavam
ser relevante o frete bruto, optando, no entanto, a final, por
uma solução de compromisso, mas não muito clara, tudo
fazendo depender das condições em que o frete fora
contratado. Nos casos em que o proprietário do navio não
recebesse frete por a carga lhe pertencer, entendia a
doutrina que esse proprietário teria de pagar uma soma
correspondente à carga transportada. Outro ponto
controverso, no domínio de aplicação do artigo 492.º CCom,
era o de saber se o frete a abandonar era o frete da viagem
na qual se constituíam as obrigações do proprietário o navio
ou o da viagem em que o abandono foi feito. Cunha
Gonçalves optava por esta segunda solução «porque, se assim
não fosse, de um lado, a soma a abandonar teria de variar
conforme os créditos fossem da última ou das anteriores
viagens; e doutro lado, o proprietário teria de abandonar
somas que já entraram na sua fortuna de terra». Confrontado
com o regime do artigo 492.º CCom, o frete a abandonar, nos
termos do artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98, é o «frete a
risco», ou seja, o frete a vencer: o legislador terá, porventura,
considerado que o frete já vencido e pago já está integrado
na «fortuna de terra», não se justificando, assim, a sua
inclusão no abandono. Independentemente da bondade da
solução, a verdade é que se quebra, neste particular, um
regime que já vinha, pelo menos, no que ao Direito aplicável
em Portugal concerne, desde a Ordunnace du Colbert, através
da Lei da Boa Razão. Já quanto aos fretes posteriores aos da
viagem em que se deu o abandono ou ao da viagem que teria
lugar imediatamente após o abandono, questão bastante
controversa no domínio do artigo 492.º CCom, parece-nos
que, a existirem, integral o quid a abandonar, já que se
enquadram no «frete a risco». Importa, neste ponto, realçar
que o depósito do valor do frete a risco a que se refere o
artigo 14.º, n.º3 Decreto-Lei n.º 202/98 não está dependente
do efetivo pagamento do mesmo: o proprietário do navio tem
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
142
o ónus de efetuar esse depósito no âmbito do processo,
mantendo a qualidade de credor do frete, mas fora do
processo de limitação.
d. Exclusão do direito de limitação através do abandono: no domínio
de vigência do artigo 492.º CCom, a questão da identificação de
situações de exclusão do direito de limitação da responsabilidade
através de abandono não foi objeto de particulares atenções.
Prova do escasso relevo que este problema suscitava é o facto de
Viegas Calçada, que ao tema da limitação de responsabilidade
dedicou uma monografia, não ter feita alusão ao assunto. Nem
artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98 nem qualquer das
subsequentes disposições identificam situações ou
comportamentos cuja verificação impeça a limitação de
responsabilidade do proprietário do navio, parecendo, assim,
prima facie, que a faculdade de abandono é independente de
culpa e do respetivo grau. Trata-se, porém, de uma conclusão que
se apresenta como juridicamente inaceitável, havendo, no nosso
entender, bons argumentos no sentido de ser aplicável à limitação
de responsabilidade através de abandono, grosso modo, os
mesmos limites aplicáveis ao direito de limitação de acordo com
as normas da Convenção de Bruxelas 1957, limites esses que têm
aplicação no Direito interno por força do Decreto-Lei n.º 49.028:
de acordo com o artigo 1.º, n.º1 CB 1957, havendo «culpa pessoal»
do proprietário do navio fica excluída a faculdade de limitação.
Grosso modo no mesmo sentido, podemos invocar a Convenção
de Bruxelas 1924 para a unificação de certas regras relativas à
limitação de responsabilidade dos proprietário de navios de mar,
cujo artigo 2.º, n.º1 veda a invocação da limitação de
responsabilidade ao proprietário do navio, relativamente às
obrigações resultantes de «factos ou faltas» do mesmo. Um lugar
paralelo invocável nesta sede é constituído pelo regime de
limitação da responsabilidade do transportador marítimo de
mercadorias, à luz da Convenção de Bruxelas 1924 e do Decreto-
Lei n.º 37.748, 1 fevereiro 1950 48 . Apesar de a Convenção de
Bruxelas 1924 sobre conhecimentos de carga – Convenção que
consagra um regime de limitação da responsabilidade do
transportador – não prever, na versão anterior ao Protocolo de
Visby, a exclusão do direito de limitação, a doutrina tem acentuado
– agora com apoio expresso na alínea e) artigo 4.º, n.º5,
introduzida em Visby – o facto de a «faute inexcusable» do
transportador permitir ao contrainteressado paralisar a pretensão
de limitação. Sem prejuízo do relevo da normativização de
«conducts barring limitation», a nível do Direito dos Transportes,
parece-nos que os regimes especificamente marítimos apontados
são suficientes para firmarmos o princípio, vigente também no
48 Através do Decreto-Lei n.º 37.748, a Convenção de Bruxelas 1924 passou, de acordo com este controverso diploma, a ser Direito interno português.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
143
ordenamento jurídico português, de que o beneficiado com o
direito de limitação perde esse direito quando a sua conduta o
torne imerecedor do benefício que tal direito encerra. A partir
daqui, a questão está e identificar qual é o comportamento ou
atitude do proprietário do navio que o impede de limitar a sua
responsabilidade através do abandono do navio, tarefa esta que
se não mostra fácil em virtude de, à partida, serem diferentes os
regimes de «conduct barring limitation» nas Convenções de
Bruxelas de 1924 e de 1957 sobre limitação de responsabilidade e
na Convenção de Bruxelas de 1924 sobre conhecimentos de carga.
No nosso entender, o regime a aplicar terá de ser equivalente ao
estabelecido na Convenção de Bruxelas 1957. NA verdade, tendo
este regime sido transposto para o Direito interno e disciplinado
pelo Decreto-Lei n.º 49.028 situações não especificamente
reguladas pela Convenção, podemos considerar que o regime
uniforme que conhece no Direito português maior intensidade
aplicativa é o daquela Convenção. Assim, por razões de coerência
e unidade do sistema, defendemos a aplicação analógica do
regime de preclusão do direito de limitação vigente da Convenção
1957 às situações de abandono do navio e do frete, ao abrigo do
artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98.
e. Processo de limitação de responsabilidade: como vimos, o artigo
12.º Decreto-Lei n.º 202/98 admite que o proprietário do navio
abandone aos credores, nas condições aí expressas, o navio e o
valor o frete a risco, com vista à constituição de um fundo de
limitação de responsabilidade. Tendo provavelmente presentes
nas intermináveis polémicas centradas na natureza jurídica do
abandono do navio – cuja causa radicava, em grande parte, no
facto de o legislador comercial ter omitido a regulamentação dos
termo do abandono – o Decreto-Lei n.º 202/98 consagra os seus
artigos 13.º a 16.º ao processo de responsabilidade, através do
abandono do navio e do frete a risco, remetendo, no seu artigo
13.º, mas sem o nomear, para o Decreto n.º 49.029, 26 maio 1969,
diploma que, na sequência da indicação constante do artigo 4.º
Decreto-Lei n.º 29.028, da mesma data, contém a regulamentação
de caráter processual relativa à Convenção Internacional sobre o
limite de responsabilidade dos proprietário de navio de mar de
1957. Naturalmente que a remissão para o Decreto n.º 49.029 é
feita «com as necessárias adaptações», conforme se impõe,
considerando, desde logo, o facto de, no caso do Decreto-Lei n.º
202/98, constituição do fundo de limitação ter lugar através do
abandono do navio e do frete a risco, enquanto que o Decreto n.º
49.029 admite, em geral, a constituição do fundo de limitação com
recurso a qualquer das modalidades de prestação de caução. O
processo de constituição do fundo de limitação através do
abandono do navio e do valor do frete a risco inicia-se com um
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
144
requerimento do proprietário do navio (Artigo 14.º Decreto-Lei n.º
202/98), que deve mencionar:
(i) O facto de que resultaram os prejuízos; bem como
(ii) O montante do frete a risco;
Tal requerimento deve (Artigo 14.º, n.º2) ser acompanhado da
relação dos credores conhecidos com direito a participar na
repartição do fundo, indicando os respetivos domicílios e o
montante dos seus créditos. Trata-se de uma indicação similar à
exigida na alínea a) artigo 2.º, n.º2 Decreto n.º 49.029, que surge
como necessária tendo, designadamente, em vista a posterior fase
de citação de credores reclamação de créditos. Pese embora o
laconismo do legislador de 1998, parece que o requerimento de
constituição do fundo deverá ser o primeiro passo de um processo
específico, tendo em vista a limitação de responsabilidade através
dos abandonos. É certo que o artigo 16.º Decreto-Lei n.º 202/98
parece sugerir a ideia de que a constituição do fundo é feita – ou,
pelo menos, pode ser feita – por uma via de exceção, devendo o
requerimento ser apresentado até ao termo do prazo para a
contestação da ação fundada em crédito a que seja oponível a
limitação de responsabilidade. Pensamos, porém, que o artigo 16.º
se limita a estabelecer o prazo dentro do qual o proprietário do
navio demandado em ação se dívida para pagamento de um
crédito ao qual sea oponível a limitação, pode paralisar a
pretensão indemnizatória, nos termos em que é formulada,
através da apresentação de prova de que requerer a constituição
do fundo. Parece-nos assim, possível concluir que o requerimento
de constituição do fundo de limitação tanto pode ter lugar em ação
como em exceção, à semelhança do que ocorre com o
requerimento de constituição do fundo para efeitos de limitação
de responsabilidade, ao abrigo da Convenção de Bruxelas 1957. Se
não houver lugar a indeferimento liminar, o juiz ordem que o
requerente deposite o valor do frete a risco e nomeia depositário
para o navio (artigo 14.º Decreto-Lei n.º 202/98). Compreende-se
perfeitamente a imposição do depósito do valor do frete a risco,
uma vez que faz parte dos bens abandonados. Já quanto à
nomeação de depositário para o navio, verifica-se que o legislador
não enquadrou tal nomeação, definindo a situação jurídica do
navio. Mais concretamente, essa nomeação como depositário não
tem na sua base um qualquer novo regime aplicável ao navio,
sendo lógico que o legislador tivesse mandado aplicar aqui, quer
em termos adjetivos quer em termos substantivos, o regime da
penhora, sem prejuízo das necessárias adaptações. Nada disso é
feito, porém, limitando-se a lei a prever a nomeação de um
depositário, sem definir, ao certo, o respetivo estatuto e funções.
Dir-se-ia que a remissão feita no artigo 8.º, n.º2 Decreto n.º 49.029
para o processo executivo determina a aplicação do referido
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
145
regime da penhora e do depositante; contudo, uma tal conclusão
está longe de ser cristalina, uma vez que o citado artigo 8.º, n.º1
só remete para o regime dos artigo 789.º e seguintes CPC, em fase
de reclamação de créditos reclamados, fase essa bem a jusante da
penhora. A única conclusão segura que julgamos poder formular,
neste particular, de modo a dar um sentido útil à nomeação de um
depositário, é a de que – tal como nas situações de penhora
(artigos 757.º, n.º1 e 772.º CPC) – a posse efetiva do navio passa
para o depositário, não nos parecendo possível ir mais além, em
termos de se sustentar a aplicação do regime de inoponibilidade
plasmado no artigo 819.º CC. Daqui decorre que, sendo vendido o
navio, pelo respetivo proprietário, após a nomeação de
depositário, tal ato deve ser interpretado como uma renúncia ao
direito à limitação de responsabilidade através do abandono,
ainda que o mesmo proprietário venha a demonstrar, mais tarde,
que o produto obtido com a alienação corresponde ao valor
comercial do navio e ainda que se proponha depositar á ordem do
tribunal a quantia correspondente. A perplexidade mantém-se
face ao facto de o artigo 14.º, n.º4 do mesmo Decreto-Lei n.º
202/98 estabelecer que, uma vez efetuado o depósito do valor do
frete, «é ordenada a venda judicial imediata do navio», não tendo,
também aqui, o legislador tido o cuidado de remeter para o
processo executivo, já que, mais uma vez, o Decreto n.º 49.029
não contém um regime específico aplicável, pelo menos
diretamente, uma vez que está gizado numa lógica de constituição
do fundo através da prestação de caução. O encadeamento de
situações estabelecido no artigo 14.º Decreto-Lei n.º 202/98
sugere que o legislador se terá convencido – cremos que com
alguma ingenuidade – que a ordem de venda judicial imediata do
navio (artigo 14.º, n.º4) tem o condão de permitir que o mesmo
seja efetivamente vendido de imediato – o que não corresponde
minimamente à realidade, a não ser que, por absurdo, se
interpretasse a previsão legislativa no sentido de legitimar
qualquer venda a qualquer preço, que não pelo seu valor
comercial. Uma vez realizado o depósito do produto da venda do
navio 49 , o juiz declara constituído o fundo de limitação da
responsabilidade (artigo 15.º Decreto-Lei n.º 202/98). Mas o juiz
deve ir mais além e designar um prazo entre 30 a 60 dias para a
reclamação de créditos (artigo 3.º, n.º3 Decreto n.º 49.029),
seguindo-se, com as necessárias adaptações, o regime
estabelecido no artigo 5.º e seguintes Decreto n.º 49.029. Entre as
especificidades a assinalar – especificamente esta que se retira da
lógica do abandono e que não pode ser contrariada pela simples
remissão para o regime da reclamação de créditos do processo
executivo, feita, «com as necessárias adaptações», pelo artigo 8.º
49 Não é a venda do artigo 18.º Decreto-Lei n.º 202/98, mas a do CPC. Na verdade o navio abandonado referido no artigo 18.º não é o do artigo 12.º mas o do artigo 17.º do mesmo diploma.
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Decreto-Lei n.º 49.02950 – está o facto de a reclamação de créditos
não estar dependente da titularidade de uma garantia real: podem
reclamar créditos todos os titulares de créditos marítimos relativos
ao navio abandonado, ainda que sejam credores comuns, não
titulares de causas legítimas de preferência. Tratando-se de
titulares de créditos não marítimos, os respetivos credores só
poderão reclamar os créditos que beneficiem de uma garantia real
sobre o navio: tais credores não poderão ser despojados das
garantias de que beneficiem, despojamento esse que, de resto, a
estar previsto, teria de ser acompanhado da previsão de uma
contrapartida, sob pena de inconstitucionalidade, já que
equivaleria a um confisco. No que respeita à repartição do fundo,
o Decreto-Lei n.º 202/98 e, mais uma vez, omisso. Ora, sendo
seguro que tal repartição não pode ser feita nos termos da
Convenção de Bruxelas 1957 – cujo artigo 3.º, n.º2 impõe a
aplicação do princípio par condictio creditorum – a mesma deverá
considerar as posições dos credores com títulos legítimos de
preferência, conforme acontece nos processos de execução,
designadamente singular. Fora de hipótese está, no nosso
entender, a aplicação do regime do artigo 3.º, n.º2 daquela
convenção pela via da remissão do artigo 13.º Decreto-Lei n.º
202/98 pra as «normas de processo», uma vez que,
manifestamente, o citado artigo 3.º, n.º2 não se enquadra nesse
qualificativo.
f. O efeito da constituição do fundo de limitação: uma vez constituído
o fundo de limitação que, como vimos, pressupõe que se mostre
realizado o depósito do produto da venda do navio (Artigo 15.º
Decreto-Lei n.º 202/98), importa ver os efeitos que a tal
constituição estão associados. Mais concretamente, importa
apurar, em primeiro lugar, a posição dos credores cujos créditos
estão sujeitos a limitação através do abandono, relativamente ao
restante património do proprietário do navio; importa, depois,
igualmente, indagar sobre a posição dos demais credores – dos,
digamos, credores de terra – relativamente ao fundo de limitação
de responsabilidade que integra os bens abandonados. Quanto ao
primeiro aspeto, ou seja, quanto aos credores cujos créditos estão
sujeitos a limitação, entendemos ser de aplicar integralmente o
efeitos estabelecidos no artigo 4.º Decreto n.º 49.029, 26 maio
1959, por força do artigo 13.º Decreto-Lei n.º 202/98. Assim,
(i) Os créditos sujeitos a limitação deixam de vencer juros; e
(ii) Deixam esses credores de poder instaurar ou prosseguir
ação ou execução por créditos aos quais a limitação seja
50 Sendo este, por sua vez, aplicável «com as necessárias adaptações» (!), por força do artigo 13.º Decreto-Lei n.º 202/98.
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oponível, sendo as ações ou execuções pendentes
apensadas ao processo de constituição do fundo.
Substancialmente, a partir da constituição do fundo de limitação,
o proprietário do navio pode paralisar, material e processualmente,
qualquer ação ou execução que contra o mesmo seja intentada
por créditos abrangidos pela limitação, só podendo os credores
satisfazer os respetivos créditos com base nas quantias que
constituem e integram o fundo de limitação51. A quem pertencem
as eventuais sobras do fundo de limitação? No nosso entender, se
o volume de créditos reconhecidos ficar aquém da soma das
quantias resultantes do depósito do valor do frete a risco e do
produto da venda do navio, o saldo pertence ao proprietário do
navio, estabelecendo-se, também aqui, um paralelismo com o
processo executivo. Diversa seria a solução se o abandono fosse
gizado pelo Decreto-Lei n.º 202/98 como uma alienação do navio
aos credores, caso em que pertenceria a estes o produto da venda
de um bem de sua propriedade. Pergunta-se agora qual o efeito
da constituição do fundo relativamente ao demais credores do
proprietário do navio, ou seja, relativamente àqueles cujos
créditos não estão sujeitos à limitação através do abandono – do
abandono concreto. Pensamos ser necessário distinguir duas fases:
a primeira, a montante da constituição do fundo e após a
nomeação de depositário para o navio (artigo 14.º, n.º4 Decreto-
Lei n.º 202/98); a segunda, após a própria constituição do fundo.
O problema com que nos deparamos, nesta sede, no que concerne
à primeira fase, é que nem o Decreto-Lei n.º 202/98 nem o Decreto
n.º 49.029, para onde este remete, contêm uma disposição como
a do artigo 2.º, n.º3 CB 1957, que imunize o fundo – in casu, o frete
a risco depositado e o navio com depositário nomeado –
relativamente às ações dos demais credores do proprietário do
navio, sejam ou não beneficiários de garantias reais sobre esses
bens. O legislador de 1998 não atentou neste aspeto, como que
desconhecendo, ingenuamente, que o proprietário do navio pode
ter outros credores, que considerem, em função da situação
patrimonial daquele, que o abandono do navio e do frete pode
fazer perigar a probabilidade de satisfação dos respetivos créditos.
De resto, o legislador já tinha demonstrado o seu alheamento do
processo e das suas vicissitudes, ao não fazer associar claramente
a nomeação de depositário para o navio ao efeito da penhora.
Substancialmente, isto significa que o abandono, tal qual previsto
no Decreto-Lei n.º 202/98 assemelha-se a uma medida naïf do
51 Ainda que sejam credores desconhecidos. Tal como os credores conhecidos (artigo 14.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 202/98), os credores desconhecidos (artigo 5.º, n.º2 Decreto n.º 49.029) podem reclamar os respetivos créditos, não sendo aplicável ao fundo de limitação constituído nos termos do Decreto-Lei n.º 202/98 o estranho regime do artigo 9.º Decreto n.º 49.029, desde logo pela circunstância de o mesmo pressupor uma «quantia reservada», prevista na Convenção de Bruxelas de 1957 (artigo 3.º, n.º4), mas já não no Decreto-Lei n.º 202/98.
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legislador nacional, já que o navio não está, até à venda, imune de
diligências de penhora feitas por «credores de terra» ou por outros
«credores de mar», que não os abandonatários. Se o legislador
tivesse pretendido que, através do abandono, se constituísse um
património autónomo, teria tomado medidas normativas de modo
a assegurar esse efeito, tanto mais que tinha presente um modelo
de autonomia resultante da CB 1957, convenção essa presente na
1.ª parte artigo 12.º Decreto-Lei n.º 202/98. Assim sendo, diríamos
que, até à constituição do fundo de limitação, o regime atual do
abandono se aproxima mais da caracterização que, relativamente
aos credores não abandonatários, era feita por Viegas Calçada,
também no domínio de vigência do artigo 492.º CCom. Segundo
este autor, «o abandono é estabelecido para fazer cessas as
responsabilidades do dono do navio, sem limitar a não dos credores
a quem o abandono não é ou não deve ser feito». Uma vez vendido
o navio e constituído o fundo de limitação (artigo 15.º Decreto-Lei
n.º 202/98), não só deixa de ser, logicamente, possível a penhora
do navio, como deixa também de ser possível a penhora do sub-
rogado do navio vendido, ou seja do produto (depositado) da
venda do navio: a partir daí, apenas poderá ser penhorado o
eventual saldo de restituição a favor do ex-proprietário. Na
verdade, pese embora o silêncio do Decreto-Lei n.º 202/98,
também neste particular, parece-nos que é essa a solução que
permite estabilizar ou cristalizar o processo de limitação, de modo
a assegurar a subsequente fase de reclamação e de graduação e
créditos. Neste sentido milita, de resto, a definição de efeitos feita
no artigo 4.º Decreto n.º 49.029, aplicável por força do artigo 13.º
Decreto-lei n.º 202/98.
g. O abandono do navio e do frete e o princípio par condictio
creditorum: do exposto resulta que a distribuição das quantias
depositadas (valor do frete a risco e produto da venda do navio)
não é feita de acordo com o princípio par condictio creditorum.
Quer os credores abandonatários que sejam, eventualmente,
titulares de garantias reais, quer os não abandonatários que, por
serem titulares de garantias desse jaez, tenham reclamado
créditos, têm direito, nos termos gerais, a ver os respetivos
créditos reconhecido e graduados em conformidade com a
preferência de que gozem. Estão aqui em causa,
fundamentalmente, os créditos garantidos por hipotecas ou por
privilégios creditórios, mas também os garantidos por penhora do
navio, quer esta seja anterior quer seja posterior ao requerimento
de constituição do fundo de limitação. O problema não se colocará,
porém, em princípio, relativamente ao frete, já que o quid
abandonado não é o crédito de frete – que até pode,
eventualmente, estar empenhado – mas (artigo 14.º, n.º3
Decreto-Lei n.º 202/98) a quantia correspondente ao valor do
frete. Ora, como é patente, do funcionamento deste processo
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149
pode resultar, afinal, algo que se adivinha como evidente: os
credores abandonatários podem nada receber, ou receber uma
quantia irrisória, o que significará, então, que o proprietário do
navio terá conseguido, não a mera limitação da sua
responsabilidade mas a própria exclusão. Parece-nos, porém, que
– independentemente de outras vias de reação de que os credores
abandonatórios se pudessem valer numa situação deste tipo – o
Decreto-Lei n.º 202/98 permite sustentar que, numa tal situação
e, mesmo noutras de menor gravidade, a sentença prevista no
artigo 8.º, n.º5 Decreto n.º 49.029 deve considerar a liberação sem
efeito, enquanto o proprietário do navio não efetuar um depósito
adicional que permita suprir a destinação das quantias em
concreto necessárias para satisfazer os credores com garantia real
alheia ao «facto de que resultaram os prejuízos», para usarmos a
expressão que consta da alínea a) do artigo 14.º, n.º1 Decreto-Lei
n.º 202/98. Recorde-se, a propósito, que a alínea h) artigo 1.º
Decreto-Lei n.º 202/98 define fundo de limitação da
responsabilidade como «o montante global a que o proprietário do
navio pode limitar a sua responsabilidade por danos causados a
terceiros». Recorde-se também que a alínea a) do artigo 14.º, n.º2
do mesmo diploma se reporta ao «facto de que resultaram os
prejuízos». Estas referências legislativas permitem sustentar –
ainda que, reconheçamos, com algum labor – que os montantes
depositados que permitem a declaração de constituição do fundo
de limitação (artigo 15.º) definem também o quantum da
responsabilidade do proprietário do navio perante os credores
abandonatários, em termos de permitir a sua liberação. Assim, se
o navio está onerado com privilégios a favor de terceiros um vez
que, como vimos, não á forma de o juiz deixar de considerar os
créditos beneficiados com esses privilégios, o proprietário do
navio deverá ser convidado para refazer o montante global
prejudicado com a situação dos credores não abandonatários com
causa legítima de preferência, sob a cominação de não poder
funcionar a liberação (plena) associada ao abandono liberatório.
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Arresto de Navios52
Regime Internacional:
1. Caracterização do arresto: diz o artigo 1.º, n.º2 CB 1952 que o arresto de
navios «significa a imobilização de um navio, mediante autorização de
autoridade judiciária competente, em garantia de um crédito marítimo, mas
não compreende a apreensão de um navio baseada em título exequível». A
frase final do preceito pretende excluir do conceito o que se poderá chamar
de arresto executivo, ou seja, o que tenha a finalidade imediata de
concretizar uma execução. Refere-se usualmente que o arresto de navios é
um meio de pressão sobre o devedor de um crédito marítimo. Realmente, a
mera imobilização tem custos elevados: manutenção, encargos com a
tripulação, suspensão dos lucros de exploração, etc53. Cabe às autoridades
portuárias (em sentido amplo)54 o dever de recusar a saída do navio. Isto
embora possam promover a deslocação do navio arrestado dentro do porto,
a fim de facilitar que, neste, a movimentação de outros navios se processe
com maior facilidade. Tratar-se-á de uma detenção física, de «una suerte de
restricción material o immovilización material, incompatible, por tanto, com
una simples anotación registal» 55 . Exatamente por seu uma medida
extremamente gravosa para o requerido, é de entender que o requerente do
arresto possa ser obrigado a prestar caução. Não alude a CB 1952
explicitamente a esse tipo de caução. É, no entanto, de assentar em que,
estando prevista na lei portuguesa56, é admissível, por via do disposto do
artigo 6.º CB 1952. Deverá a caução assegurar o pagamento da
indemnização em que o requerente poderá vir a ser condenado em caso de
wrongful arrest. São, pois, as leis nacionais (artigo 6.º CB 1952), a regular
52 Mário Raposo 53 O arresto não implica que a manutenção do navio, lato sensu, passe a estar a cargo do credor requerente do arresto. 54 Conforme a Lei n.º 35/86, 4 setembro, referente aos Tribunais Marítimos e a extensa Exposição de Motivos n.º 17/IV, que lhe deu origem; também o Decreto-Lei n.º 370/2007, 6 novembro. 55 Ignacio Arroyo. 56 Artigo 620.º CC («o requerente do arresto é obrigado a prestar caução, se essa lhe for exigida pelo tribunal»). A prestação de caução não é, pois, ex lege, obrigatória, dependendo do critério do juiz. Assim também o artigo 374.º, n.º2 e artigo 376.º, n.º2, ambos CPC.
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«todas as questões relativas à responsabilidade do autor». Dispõe o artigo
621.º CC que o requerente do arresto é responsável se não tiver agido «com
a prudência normal». Não se exige, pois, dolo ou culpa grave, mas a mera
negligência. O critério legal português estará, pois, na linha do assumido em
Espanha e na Alemanha. Quanto ao polo oposto, para que o requerido possa
pôr termo ao arresto terá, ele próprio, que prestar caução (artigo 5.º CB
1952). Na falta de acordo das partes «sobre a importância da caução ou
garantia» celebrará ao tribunal «fixar a sua natureza e montante». No
entanto, se o arresto tiver sido decretado com base nos crédito marítimos
previstos nas alíneas o) e p) do artigo 1.º, n.º1 CB 1952 (relacionados com a
propriedade, compropriedade ou posse contestadas do navio e da sua
exploração) o levantamento do arresto não poderá ser autorizado. O regime
aplicável será então o do artigo 7.º, n.º2 Cb 1952. Realmente, se o forum
arresti não for o competente para julgar do fundo da causa – o que em alguns
casos acontecerá – o tribunal que decretou o arresto deve fiar o prazo dentro
do qual a ação deverá ser proposta no tribunal competente (artigo 7.º, n.º2
CB). E o mesmo poderá acontecer na hipótese do artigo 7.º, n.º3 CB 1952.
Se a ação não for proposta no prazo fixado pelo juiz do arresto o arrestado
pode pedir o levantamento do arresto ou da caução prestada (artigo 7.º, n.º4
CB 1952)57. Contas feitas, poderá concluir-se, face às regras do artigo 7.º CB
1952, que o arresto não pode ser caracterizado como um meio de pressão
mas como uma fase (a de garantia) de um iter processual que culminará
numa sentença de mérito e na sua possível concretização? É evidente que
o arresto que o arresto tem as duas valências sendo um falso problema
ignorar qualquer delas. Que funciona como garantia de um crédito marítimo
é dito pela própria Convenção (artigo 1.º, n.º2). Que constitui um
eficacíssimo meio de pressão mostra-o a mais captável realidade e
lembram-no todos os autores. Como sintetiza Marta Zabaleta Díaz:
«A maior desgraça que pode acontecer a um armador ou
afretador é a de o navio que explora comercialmente ser
arrestado e, por conseguinte, imobilizado. A falta de mobilidade
57 Diz o artigo 7.º, n.º3: «Se as convenções das partes contêm cláusula atributiva de competência a outra jurisdição ou cláusula arbitral, o tribunal poderá fixar o prazo de propositura da ação principal». Ao invés do que se passa no n.º2 desse artigo 7.º o Juiz não estará adstrito a fixar um prazo para a propositura da ação. Apenas o poderá fazer.
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do navio impede aquele que o explora de obter lucros. Não
obstante, porém, continua a suportar os mesmos encargos e
despesas que suportaria se ele estivesse a navegar. Dizia já um
velho aforismo popular que “barco parado não ganha frete”».
Entretanto, e como é óbvio, qualquer procedimento cautelar tem uma função
instrumental. Assim, o arresto (qualquer tipo de arresto) «constitui um
importante meio de defesa de direitos de natureza creditícia, atentas as
possibilidades que revela no tocante à conservação da garantia patrimonial
do credor»58. É uma instrumentalidade bifronte: de um lado como meio de
pressão, de outro como garantia do crédito que a determina, e da sua tutela
jurisdicional59. Dispõe, entretanto, o artigo 5.º CB 1952 que na hipótese de
não poder ser levantado (definitivamente) o arresto mediante prestação de
caução (v.g. se os créditos marítimos em que ele se fundou forem os
previstos no artigo 1.º, n.º1, alíneas o) e p) CB 1952) poderá o Juiz «autorizar
a exploração do navio pelo possuidor, desde que este preste garantias
bastantes, ou regular a gestão do navio durante a pendência do arresto».
Tratar-se-á então, em termos de realidade, de autorizar o possuidor do navio
a efetuar uma ou mais viagens determinadas, durante prazos pré-fixados.
2. … E a sua aplicação: nos termos do artigo 8.º, n.º1 CB 1952 as disposições
desta são aplicáveis em qualquer dos Estados contratantes «a todo o navio
que arvore a bandeira de um Estado contratante». Entendeu o Supremo
Tribunal da Irlanda que deste preceito advém implicitamente a não
aplicabilidade da Convenção a um navio que arvore a bandeira de um Estado
não contratante. Esta regra apenas comportaria uma exceção: a
possibilidade de arrestar um navio com bandeira de um Estado não
contratante, nos termos do artigo 8.º, n.º2 CB 1952. E, segundo o Supremo
Tribunal Irlandês, aproveitar-se-ia apenas da Convenção a listagem contida
no artigo 1.º, n.º1. Discorda Francesco Berlimgieri deste critério, por
considerar que todas as disposições da CB 1952, são aplicáveis a navios
com bandeira de Estados não contratantes. E comenta que limitar a
aplicabilidade a esses navios do artigo 1.º, n.º1, por ser o único preceito
58 Abrantes Geraldes. 59 A funcionalidade do arresto como meio de pressão concretizar-se-á na medida em que, para obviar à imobilização do navio, paralisante da sua atividade, o requerido tenderá a promover o seu levantamento.
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referido no artigo 8.º2. O que este artigo 8.º, n.º2 diz é que um navio com
bandeira de Estado não contratante pode ser arrestado com base num
crédito marítimo constante do artigo 1.º, n.º1, ou com base num crédito que
autorize o arreste segundo a lei deste Estado. Pierre Bonassies apoia
decididamente a aplicabilidade da Convenção aos navios de bandeira de
Estado não contratante, apenas com a dualidade constante do artigo 8.º,
n.º3. Esta posição foi, aliás, a adotada pela Cour de Cassation. Bonassies
afasta, assim, a leitura que limita a aplicação da CB 1952 aos créditos
marítimos que poderão dar causa a um arresto (artigo 1.º, n.º1), dicando
todo o processamento deste regulado pelas leis do Estado da bandeira. É
evidente que a recusa prevista no artigo 8.º, n.º3 não pode ser feita caso a
caso. Terá que o ser com caráter genérico pelo órgão competente do cada
Estado 60 . Diz o artigo 8.º, n.º4 que «nenhuma disposição da presente
Convenção modificará ou afetará a lei interna dos Estados contratantes no
respeitante ao arresto de um navio na jurisdição do Estado cuja bandeira
ele arvora, por pessoa com residência habitual ou principal estabelecimento
nesse Estado». Significa isto que o regime da Convenção não se aplica ao
arresto em Portugal de um navio português por um residente português num
tribunal português. Ou seja, a Convenção apenas se aplicará quando um de
três elementos – local do arresto, bandeira do navio a arrestar e requerente
do arresto – for estranho ao Estado onde tiver lugar o arresto.
3. Arresto duplo: consagra o artigo 3.º, n.º3 CB 1952 o princípio da proibição
de um segundo arresto no mesmo navio, ou de outro pertencente ao mesmo
proprietário pelo mesmo crédito. Explicita, portanto:
«nenhum navio poderá ser arrestado e nenhuma caução ou
garantia poderá ser prestada, mais de uma vez, na jurisdição de
um ou vários Estados contratantes, pelo mesmo crédito e a
pedido do mesmo autor; e se um navio for arrestado numa das
ditas jurisdições, e prestada caução ou garantia, quer para fazer
levantar o arresto, quer para o evitar, qualquer aresto ulterior,
desse navio ou de outro pertencente ao mesmo proprietário,
60 Dispõe este artigo 8.º, n.º3, que qualquer Estado contratante pode recusar todas ou parte das vantagens da Convenção a qualquer Estado não contrate ou a qualquer pessoa que à data do arresto não tenha a sua residência habitual ou o seu principal estabelecimento neste Estado. Portugal não declarou atempadamente a recusa.
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efetuado a solicitação do autor e pelo mesmo crédito marítimo,
será levantado ou liberado o navio pelo tribunal ou jurisdição
competente do referido Estado, a não ser que o mesmo prove,
em termos considerados bastantes pelo tribunal ou autoridade
judiciária competente, que a garantia ou caução foi
definitivamente extinta antes da realização do arresto
subsequente ou que não existe qualquer razão válida para a
manter».
A ideia essencial a reter de tão alastrada e só arduamente entendível norma
é a de, como regra, não ser admitido o re-arresto61. É de concluir, pois, que
um segundo arresto, ou re-arresto, será apenas de decretar quando o
requerente prove que, por qualquer razão, o primeiro arresto já não é
bastante como garantia eficaz do crédito reclamado. Em concreto, o
fundamento invocado será a insuficiência da caução. Entretanto, o re-
arresto terá sempre um caráter excecional. A Convenção de Genebra de
199962, que se propõe, até agora com quase completo inêxito, substituir a
Convenção de Bruxelas de 1952 revela maior abertura em relação à
possibilidade de obter um segundo arresto, quer sobre o mesmo navio, quer
sobre outro que seja arrestável. Embora mais inteligível e praticável, o artigo
5.º da Convenção ainda é objeto de reparos da doutrina, até porque não
prevê que o arresto recaia desde logo, simultaneamente, sobre dois navios.
Define. Entretanto, claramente, as causas do re-arresto:
(i) Inadequação da garantia;
(ii) Superveniente incapacidade do garante em assegurar o
cumprimento desta;
(iii) Cancelamento da garantia.
4. Créditos marítimos: passa como moeda corrente que, nos termos da CB
1952, bastará alegar a existência de um do créditos constantes da lista
61 Relatando Francesco Berlingieri, invocando, como frequentemente acontece, os trabalhos preparatórios da Convenção; metodologia que, não obstante a muito especial autoridade do Mestre italiano participante qualificado que foi da formação de muitas Convenções Internacionais pode não se ajustar por inteiro à do artigo 9.º CC. De qualquer modo, os trabalhos preparatórios ajudam a reconstruir a vontade do legislador, embora não esgotando os demais critérios de interpretação. 62 Não ratificada por Portugal.
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exaustiva (e de aplicação restritiva) do artigo 1.º, n,º.1 para que um navio de
mar possa ser arrestado. Não há que justificar o receio de perda da garantia
patrimonial. O simplismo deste pressuposto, que não encontrou até agora
dissonância consistente, mostra «à quel point la saisie conservatoire peut
s’avérer être um formidable moyen de pression de la part des créanciers»,
refere Cécile Navarre-Laroche. E, por isso mesmo, lembrava já Rodière que
«un pareil système ne peut être viable que par la menace de Lourdes
indémnités un cas d’abus du droit da saisir». Não é necessário alegar (e
muito menos provar) o requisito do periculum in mora, como desnecessária
é a verificação de «une créance certaine, liquide et exigible». Nunca surgiu
controvérsia minimamente consistente sobre o que constitui o primum
movens da CB 1952: basta a alegação do crédito marítimo(!). Entretanto,
como quase sempre acontece, há opiniões dissonantes. Designadamente, o
Acórdão do STJ de 21/5/1996, embora revogando o Acórdão da Relação de
Lisboa que decidira ser necessária a prova do receio de perda da garantia
patrimonial, considerou que para obter o arresto bastava fazer a prova do
crédito marítimo. Ora, como aliás se mostra da CB 1952, não é necessário
provar a existência do crédito sendo suficiente a simples alegação. Como
sintetizou Antonio Vialard, a alegação de um crédito marítimo consiste no
simples facto de se emitir uma pretensão nele fundada. Ou seja, de o invocar
como fundamento do arresto. É, entretanto, evidente que o crédito marítimo
terá que ser um dos que consta a listagem do artigo 1.º, n.º1 CB 1952, o que
é tarefa exegética nem sempre fácil. Será essa, até certo ponto, a ideia de
Léo Delwaide, quando conclui que a alegação não deve referir-se a um
crédito inverosímil. O mesmo que é dizer de um crédito que não cabe,
mesmo com esforço interpretativo, no elenco do artigo 1.º, n.º1 CB 1952. A
questão não é debatida na doutrina em Portugal, como não o é nos restantes
países. Apenas na jurisprudência surgem dissonâncias, e mesmo essas
raras. Na doutrina não serão encontráveis autores de relevo que, face à CB
1952, sustentem que não bastará a alegação de um crédito marítimo para
fundamentar o pedido de arresto. Isto pelo menos recentemente. Como é
evidente, o que se acaba de esboçar tem apenas a ver com casos em que
não há distinção entre o responsável do crédito marítimo e o proprietário do
offending ship. Uma das mais recorrentes críticas que se fazem à CB 1952
tem a ver com o elenco de créditos marítimos contidos no artigo 1.º, n.º1 ou
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com a deficiente redação de algumas das suas alíneas. E foi essa uma das
mais fortes motivações da nova Convenção de Genebra de 1999. Era,
designadamente, motivo de reparo não estarem os prémios de seguros
incluídos na referida previsão. O mesmo acontecia com os créditos
decorrentes de um contrato de agência marítima. Na Convenção de Genebra
de 1999, concluiu-se, a final, que seria de manter o sistema na CB 1952
consagrado, embora com as correções e aditamentos que a realidade tinha
vindo a demonstrar. Assim, entre outras inovações, foi incluído um novo
crédito marítimo, decorrente da recuperação dos danos causados (ou
suscetíveis de causar) no meio ambiente e interesses conexos e do custo
das medidas tomadas para os evitar (alínea d) ). Foram, finalmente,
incluídos (alínea q) ) os prémios de seguros. Isto como mera amostragem,
Entretanto, e de qualquer modo, é de evidenciar a gravidade da não inclusão
na atual listagem de créditos, dos prémios de seguro e da reparação e da
prevenção dos danos ambientais. É de referir que a jurisprudência, com a
concordância da melhor doutrina, tem entendido que o arresto de navio é
viável mesmo que somente parte do crédito invocado seja um crédito
marítimo. Assim, decidiu o Tribunal de Comércio de Marselha em 4/6/2003.
5. Arresto de navios. Mas de que Navios? Não dá a CB 1952 um conceito de
navio. Tem-se entendido, no entanto, que para esse efeito não releva a sua
afetação ao comércio, à pesca, a recreio ou à investigação científica. Mas
serão de considerar como navios quaisquer engenhos flutuantes? É de
admitir que a CB 1952 incluirá na sua previsão «sailing ships or craft not
self-propelled». Existe uma irrecusável anfibiologia no concreto. O critério
da auto-propulsão tem na jurisprudência italiana uma grande
preponderância. O problema já se pôs em Portugal, a doutrina. E os hóteis
flutuantes? E as dragas? Para o Supremo Tribunal da Irlanda, em 22/1/1998
a draga é um navio, não só quando navegar, mas quando estiver fixa, no
local da sua atividade, não sendo necessária a autopropulsão ou mesmo a
existência de leme ou de outro mecanismo direcional. E no mesmo sentido
veio a julgar o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América em
22/2/2006. Mas o Tribunal de Marselha em 19/7/206 foi de opinião diversa.
Poderá um navio cm graves avarias ou mesmo quase afundado ser
considerado como tal para efeitos de arresto? Berlingieri entende que sim:
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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«The physical condictions os the ship do not affect the
application of the Convention. Therefore the Convention applies
to ships which are not capable of sailing because they are
stranded, sunken or damage beyond repair».
De parecer substancialmente diverso foi a Corte di Cassazione em 5/4/2005.
Para ela um navio com graves avarias não corresponde já aos requisitos que
permitem o transporte. Para nós parece evidente que, para efeitos de
arresto, o que releva é que o navio tenha possibilidade de recuperação,
sendo restituível à sua condição de elemento válido e operante do
património respondente. É mais uma questão de grau, não sendo um
postulado a encarar acriticamente, como tese geral.
6. O arresto dos navios aparentados e as single-ship companies: comoo
regra pode ser arrestado o navio ao qual o crédito se refere («offending ship»)
ou qualquer outro navio que na data da constituição do crédito marítimo do
proprietário daquele navio. É o que dispõe o artigo 3.º, n.º1 CB 1952.
Completando este quadro normativo dispõe o n.º2 do artigo 3.º que «reputar-
se-á terem o mesmo proprietário os navios cujas quotas-partes pertençam
em propriedade à mesma ou mesmas pessoas». Pensou-se inicialmente que,
desde que o capital de duas sociedades single-ship pertencesse
inteiramente à mesma pessoa ou entidade, ficaria preenchida a previsão
daquele n.º2 do artigo 3.º. Entretanto, logo em 1994 Jean-Serge Rohart deu
como certo que o preceito «vise les parts de propriété du navire e non les
parts des sociétés propriétaires de navires». Só que a realidade é por vezes
mais complexa do que a norma. Tem-se desenvolvido uma estratégia de
dispersão dos grandes patrimónios de mar, repartindo-os por «single-ship
companies» (Sociedades de um único navio). Por esta via cada single-ship,
tendo património diverso da empresa-mãe, com ela não se poderia confundir.
E sobre ela recairia a responsabilidade pelos danos pelos quais, sem essa
figuração, responderia a empresa-mãe. Preocupou-se a jurisprudência,
sobretudo em França, em desmontar os conglomerados de single-ships
companies, interligados por uma gestão comum (a nível superior), pelas
mesmas instalações ou por sistemas de organização globais. A existência
de uma comunidade de interesses deu causa ao que foi chamado de teoria
da aparência. Exemplo clássico desta foi o arresto do navio Brave Mother
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pertencente a uma sociedade formalmente diversa de uma outra, à qual
pertencia o navio Brave Thémis. A Cour d’Appel de Rennes, em 21/6/1989
considerou que aos dois navios era aplicável o regime do artigo 3.º CB 1952.
No caso, a aparência de uma comunhão de interesses advinha:
«da semelhança do nome dos navios: Brave Mother e Brave
Thémis; da circunstância de as sociedades de as sociedades
terem administradores comuns, a maior parte deles pertencendo
à família de Andreas Petrakis, ele mesmo presidente das duas
sociedades;
«de ambas as sociedades terem a mesma sede e um mesmo
código telefónico».
Será, pois, de apontar – refere Tassinari – para uma interpretação literal do
artigo 3.º, n.º4. E não é exato – como pretende Fancesco Berlingieri – que do
artigo 9.º CB 1952 implicitamente resulte que o crédito reclamado deva ser
um crédito privilegiado. O pressuposto de que parte Berlingieri é o de que
«la Convenzione é stata prediposta di sequestro di navi». Foi também
sempre essa a ideia de Pierre Bonassies: a Convenção deverá ser lida em
termos de «mieux proteger la liberte de la navigation maritime» - o que
aponta para a redução dos interesses dos credores marítimos. Ou seja, só
os que tiverem créditos privilegiados poderão aceder ao direito de requerer
o arresto dos navios fretados (artigo 3.º, n.º4 CB 1952). Mas não é assim. E,
pelo contrário, capta-se no teor geral da Convenção um bem marcado favor
arresti. Ou, como diz Ignacio Arroyo:
«Entiendo que el Convenio deve perseguir la protección del
comercio marítimo. Y el comercio se potencia dando protección
al crédito. Y el embargo del buque es la mejor garantía – y en
ocasiones la única viable – de esa protección. Por isso el Covenio
instaura una instituición marítima, el llamado embargo del buque,
que opera (…), de forma sencilla y con gran efectividad».
Aliás, o regime geral da CB 1952 atribui já aos créditos marítimos constantes
da lista fechada do artigo 1.º, n.º1, um regime de exceção relativamente a
outros créditos que poderiam ser tidos como de natureza marítima. Realmente
– revele-se a insistência – bastará, quanto a tais créditos marítimos, a sua
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alegação, ao invés do que acontece com todos os demais créditos. Mas a
evidente fragilidade da teoria da aparência e da verificação da comunidade
de interesses que lhe era subjacente levou a Cour de Cassation a alterar o
critério sobre o entendimento até então dado ao artigo 3.º, n.º2 CB 1952. A
razão decisiva considerada desde então foi a de a sociedade criada com o
propósito de subtrair a empresa-mãe a responsabilidade que de outro modo
lhe seria exigível ser considerada uma sociedade fictícia, «une une société de
façade».
7. O arresto de navio fretado: se o devedor do crédito marítimo for o
proprietário do navio que se pretende arrestar poderão surgir questões de
conceção da CB 1952 mas poucos e não dificilmente enfrentáveis serão os
problemas de exegese. Mais complexo será o entendimento a dar à CB 1952
quando o navio que se pretende seja objeto de arresto não pertencer ao
devedor do crédito marítimo. Estará aí o punctum dolens do sistema da CB
1952. Pensa Berlingieri que o arresto fica desprovido de eficácia se o crédito
não puder ser feito valer sobre o navio, mediante a sua venda judicial.
Acontece, no entanto, que a CB 1952 «não se ocupa minimamente dos
problemas ligados à execução forçada do navio» e, bem ao contrário, toma
«in specifica considerazione il tema del rilascio di garazie per la sua
liberazione». As duas áreas de indagação situam-se em planos
completamente diversos. O arresto previsto na CB 1952 implica uma mera
imobilização do navio, «del tutto svincolata della fase executiva». Está em
causa, na perspetiva de Sergio La China, um conceito totalmente novo de
tutela cautelar, autossuficiente e com tendência a bastar-se a si mesmo.
Certo é que a redação da CB 1952 nem sempre se mostra clara e facilmente
apreensível. Com efeito, e por exemplo, dispõe no artigo 3.º, n.º4, §1.º que
«no caso de fretamento de navio, com transferência de gestão
náutica, quando só o afretador responder por um crédito
marítimo relativo a esse navio, o autor poderá arrestar o mesmo
navio ou outro pertencente ao afretador, com observância das
disposições da presente Convenção, mas nenhum outro navio
pertencente ao proprietário poderá ser arrestado por tal crédito
marítimo».
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No preceito está previsto um fretamento em casco nu. Corresponde este à
charter by demise e ao bareboat charter dos anglo-saxónicos. Por regra, no
1.º caso o capitão e parte da tripulação são fornecidos pelo armador-
proprietário; no 2.º caso o navio é entregue sem qualquer tripulação.
Ocorrem, como é óbvio, inúmeras variantes, dentro da liberdade contratual
que as partes têm. Entretanto, e de qualquer modo, esta formulação cria
um distinguo relativamente à do §2.º desse artigo 3.º, n.º4. Neste, alarga-
se a previsão legal a «todos os casos em que pessoa diversa do proprietário
é devedora de um crédito marítimo». O entendimento largamente dominante
é o de que a hipótese que cabe neste §2.º é a do fretamento a tempo ou,
talvez, a do fretamento por viagem. Obviamente que, a ser assim neste §2.º,
também caberia a hipótese formalizada no §1.º.
8. O artigo 9.º CB 1952 e os statutory rights: disse Patrick Simon ao refletir
sobre a vantagem que haveria em encontrar entendimentos próximos dos
grandes textos internacionais de Direito Marítimo, que «je pense en
particulier au fameux article 3 de la Convention de 1952 sur la saisie des
navires: ce texte donne lieu d’un pays à un autre de très nombreaux et
divergente interprétations». Ora, precisamente quanto ao artigo 3.º, n.º2 CB
1952, não é exato que do artigo 9.º se possam extrair as inferências que para
Berlingieri dele despontam – e que implicam a necessidade de um crédito
privilegiado. Desde logo, o artigo 3.º, n.º4 não cria, por si só, um direito de
ação («right of action») que, «fora das suas estipulações, não existiria». Ao
arresto só excecionalmente se segue no tempo uma execução. Dele apenas
advêm a imobilização do navio e o reforço da garantia que ele já
representava. Não se cria uma nova garantia: consolida-se a existente. O
arresto é, sobretudo, um meio de pressão. E porque paralisa «une
exploitation três conteuse, la manque à gangner qui en resulte est efficace».
Entre o arresto e a execução intercalar-se-á a apreciação jurisdicional do
mérito da causa, da qual decorrerá um título exequível. E dá-se o mesmo o
caso de o arresto caducar se o seu requerente não propuser a ação principal
dentro do prazo estabelecido pelo Juiz que o decretou (artigo 7.º, n.º2, 3 e 4
CB 1952). E o tribunal competente para a causa principal nem será
necessariamente o do arresto. Certo é que sobre o navio arrestado pode, no
desenvolver do iter processual, ser ulteriormente requerida uma execução.
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Mas esta só cinematicamente tem a ver com o arresto, com ele não tendo
qualquer relação causal. A execução pode recair sobre quaisquer bens do
dono do navio, esteja (ou tenha sido) ou não arrestado. O título em que
fundará a execução não será o arresto, mas qualquer dos que a lei geral
estabelece. A venda judicial, que eventualmente possa ocorrer na fase
própria da execução, nada tem a ver com o arresto, tal como está
configurado na CB 1952. É de insistir na síntese de Belén Mora Capitán:
«Uma das particularidades da CB 1952 que, precisamente, dota
o arresto («embargo preventivo») de uma grande eficácia prática
é a sua desvinculação face a uma eventual e futura execução. É
por isso que a Convenção não exige que o devedor seja
simultaneamente proprietário do navio ou que o crédito seja
privilegiado para poder arrestar o navio que deu origem ao
crédito que se reclama. Isto permite arrestar um navio quando o
devedor é o afretador do navio e o crédito não é privilegiado».
9. Ainda os statutory rights of action: no Direito Inglês (e, mais
genericamente, em common law) é o arresto tido como uma actio in rem.
Mas como a uma actio in rem estará associado um maritime lien,,
multiplicaram-se com isto os créditos privilegiados – o que para além de
desvirtuar o conceito de maritime lien, implicaria a ampliação desmesurada
de cargas ocultas sobre el buque. Daí o surgimento dos statutory rights in
rem, que viabilizarão um arresto (tido como uma actio in rem) sem que o
credor disponha de um crédito privilegiado. Enquanto que o maritime lien
tem caráter substantivo, sendo anterior à actio in rem, o statutory right
constitui uma medida meramente processual, que apenas surge quando se
requer o arresto – e por este ser uma actio in rem. Aconteceu precisamente
que os statutory rights in rem surgiram no Direito Inglês a propósito do
arresto de navio, entendido este como uma actio in rem.
«English Law, in giving to the 1952 Arrest Convention as enacted,
created other liens called statutory liens».
Aos true maritime liens sucederam no referente ao arresto os lesser rights
in rem,
«apply to all other categories of claim in connection with a ship».
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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Não integram o estatuto do crédito como os true liens: conferem direitos de
mera garantia processual, sem natureza substantiva. É de concluir que a
invocabilidade da natureza, meramente processual, dos statutory rights não
afronta, e antes se ajusta, ao §2.º do artigo 9.º CB 1952. É de concluir, assim,
que todos os maritime claims, ou seja os créditos marítimos exaustivamente
elencados no artigo 1.º, n.º1 CB 1952 são statutory rights na britânica aceção.
Gozam, com efeito, de um estatuto de privilégio em relação a todos os
demais créditos a que o navio pode dar causa. E dá-se mesmo a
circunstância de alguns créditos privilegiado nos termos gerais da lei interna,
como os prémios de seguros, não fazerem parte dessa lista do artigo 1.º,
n.º1 CB 1952, não sendo, pois, na perspetiva desta, maritime claims.
10. O mistério do artigo 9.º, n.º2 CB 1952: e se o offending ship – i.e., o navio
ao qual se refere o crédito marítimo – for transmitido a um terceiro,
designadamente por um contrato de compra e venda? O afretador já não
será nesse caso assimilado ao proprietário e o crédito reclamado já não
resultará da exploração do navio atual. O “direito” ao arresto não se fundará
então (diretamente) na CB 1952 mas na lei interna sobre privilégios
marítimos ou na Convenção Internacional que os regula (a de 1926, já que
Portugal não ratificou a de 1993). Será então de invocar com total
pertinência a hipótese prevista no artigo 9.º, n.º2 CB 1952. O direito de
sequela que será exercido é o que a Convenção de 1926 consagra e para o
qual aponta o aludido artigo 9.º, n.º2 CB 1952. Dispõe, realmente, o artigo
8.º Convenção de 1926 «que os créditos privilegiados acompanham o navio,
seja qual for o seu possuidor». E acrescenta o artigo 13.º que «as disposições
precedentes são aplicáveis aos navios explorados por um armador não
proprietário ou por um fretador (afretador?) principal».
11. Mareva Injunction: o alter ego do arresto de navios… O sistema britânico
só com dificuldade se acomodou à CB 1952. Daí ter surgido em 1975 um
novo instituto em parte dele substantivo, invented by Lord Denning, na
Câmara dos Lordes. Trata-se de uma medida cautelar in personam, dirigida
à imobilização do navio, através de uma ordem dada pelo Juiz proibindo a
sua deslocação para outro local. E, pois, um mandado de imobilização, cuja
inobservância será tida como contempt of Court. Distingue-se, entretanto,
do arresto da CB 1952, porque quem a requerer terá que demonstrar que
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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possui um good arguable case e que existe periculum in mora. Mas também
não é uma actio in rem. A Mareva injunction não visa apreender o navio
(quando ele é o bem de que se trata). Destina-se a evitar que seja
desrespeitada a imposta imobilização. Por isso mesmo é uma medida in
personam destinada a imobilizar uma coisa e não a apreendê-la… que tem
provado bem. Dizia já Christopher Hill diz anos depois da invenção da
Mareva Injunction:
«Now that the 1985 stance is effective in the United Kingdom
Lord Denning seems to have been proved correct (not for the first
time!)».
Passou a fazer parte da rotina dos tribunais marítimos
12. Lei interna: quando e como se aplica: no Direito Português dizem respeito
ao arresto de navios de mar disposições contida no Código Civil, no Código
de Processo Civil, na Lei dos Tribunais Marítimos63 e no Decreto-Lei n.º
201/98, 10 julho, relativo ao Estatuto Legal do Navio. Acontece ainda que no
Decreto-Lei n.º 384/99, 23 setembro, respeitante à tripulação do navio e
acontecimentos de mar, o arresto surge incluído entre os acontecimentos
de mar (artigo 13.º, n.º2). Por aplicação do artigo 491.º CCom (1888) o navio
despachado para viagem não poderia ser arrestado ou penhorado, a não ser
por dívida contraída para o aprovisionamento dessa mesma viagem ou para
caução de responsabilidade por abalroação. A assimilação do arresto do
navio ao arresto da carga é, como se viu, uma tradição do nosso Direito.
Adriano Anthero ainda tentou separar as águas, assinalando que o §único
do artigo 491.º CCom se regeria «não ao arresto ou penhora por dívidas do
navio e sobre ele, mas sim ao arresto por dívidas de qualquer carregador
feito sobre os géneros que carregou. Só que a prudência de tão distantes
anos foi cedendo o passo a alguma contemporânea ligeireza. E é assim que
agora nos deparamos com o n.º2 do artigo 9.º Decreto-Lei n.º 201/98 e com
o mais avisado n.º1 do artigo 746.º, n.º1 CPC, aplicável ex vi do artigo 394.º,
conjugado com o artigo 391.º, n.º2, também do CPC. Curiosa e
significativamente no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 201/98 qualificam-se as
63 E, por decorrência, na Lei de Organização do Sistema Judiciário.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
164
normas do Código Comercial de 1888 de antiquadas. E comenta-se, com
pleno à vontade:
«Consagra-se o princípio de que o arresto e a penhora do navio
e mercadorias podem ser efetuados mesmo que o navio já se
encontre despachado para viagem, perfilhando-se assim a
solução da Convenção [de 1952]»
Ora, como é notório, a Convenção de 1952 nem de longe nem de perto fala
do arresto da carga. A menção feita naquele preâmbulo é, pois,
completamente errada. Foi, no entanto, o referencial que pautou a feitura
do Decreto-Lei .º 291/98. Obviamente que será possível arrestar (ou
penhorar) mercadorias carregadas num navio se o proprietário delas for
devedor do requerente do arresto. Só que ao arresto de mercadorias
carregadas num navio não se aplica, quer na lei internacional, quer nas
modernas leis internas (estrangeiras), o regime do arresto de navios. Não
existe qualquer unidade pertinencial ou de regime entre o navio e a carga
nele transportada com base num contrato de transporte celebrado com o
armador. Obviamente, terá que haver uma fórmula processual que evite a
imobilização do navio no qual é transportada a carga que, pelos meios
comuns, seja arrestada. Nos termos da lei francesa, o capitão do navio
poderá então fazer descarregar e consignar a mercadoria. Nesse plano é de
figurar uma solução próxima da constante no artigo 746.º CPC, que sob a
epígrafe «penhora de mercadorias carregadas em navio» contém já um
princípio de solução para a descarga em que ela se pode operar. Era já a
ideia, agora melhorada, contida no §único do artigo 491.º CCom. Por
completo inconfigurável será a modelação (e o espírito) do artigo 394.º CPC,
que integralmente parifica o arresto do navio e o arresto da carga. E o
mesmo será de dizer do artigo 9.º Decreto-Lei n.º 201/98, com a ampliada
agravante de o diploma ser intencionalizado a desfazer as dúvidas que sobre
o instituto existiriam. E, se não, repare-se no que nele se define e esclarece
(artigo 9.º):
«1. O navio pode ser arrestado ou penhorado mesmo que se
encontre despachado para viagem.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
165
«2. O disposto no número anterior é aplicável aos géneros ou
mercadorias carregadas em navio que se achar nas
circunstâncias previstas no número anterior».
…E é tudo. Esquece-se que, como regra com raras exceções, a mercadoria
transportada não é do transportador, que tem a obrigação de a entregar no
destinatário. A detenção da mercadoria pelo transportador é uma detenção
a título precário e em nome e interesse alheios. O arresto de um navio nada
tem a ver, no essencial, com o arresto a carga. A única conexão figurável
será meramente instrumental. Ou seja, estará em causa o modo de
compatibilizar a atividade do navio com o arresto da carga. Ao invés do que
aconteceria se o arresto fosse decretado com aplicação da CB 1952 dispõe
a lei portuguesa (CPC) que o credor terá que justificar o periculum in mora,
ou seja, o «justificado receio de perder a garanti patrimonial» (391.º, n.º1
CPC). E o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são
aplicáveis as disposições relativas à penhora (artigo 391.º, n.º2 CPC). Deve
o requerente do arresto aduzir factos que tornem provável a existência do
crédito e justifiquem o receio invocado (artigo 392.º, n.º1 CPC). Terá ainda
o requerente que demonstrar que a penhora é admissível (artigo 394.º, n.º1
CPC). A apreensão do navio não se realizará se o devedor oferecer desde
logo caução que o credor aceite ou que o Juiz (dentro de dois dias) julgar
idónea, ficando sustada a saída do navio até à prestação da caução (artigo
394.º, n.º2 CPC). Entretanto, com a remissão feita nesse artigo 394.º CPC
para o regime da penhora e, nesta, com o protagonismo atribuído ao agente
de execução potenciado pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, 20 de novembro, é
de supor que o regime da nossa lei interna se afastou marcadamente da
saisie-conservatoire regulada na CB 1942, aproximando-se da saisie-
exécution. Ora, por ser assim, parece difícil coordenar o sistema da
Convenção com as nossas regras processuais, como dispõe o seu artigo 6.º.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
166
A Transferência do Risco na Venda
Marítima64
Capítulo I – Noções e considerações fundamentais
Noções:
1. Venda marítima (noção e natureza jurídica): venda marítima é um
complexo de situações jurídicas que se caracteriza, essencialmente, pelo
cruzamento entre um contrato de compra e venda e um contrato de
transporte de mercadorias por mar, surgindo, normalmente, no seu seio,
também, um contrato de seguro das coisas vendidas e uma abertura de
crédito documentário65. Quando o objeto mediato de compra e venda – a
coisa vendida – é, também, objeto mediato de um contrato de transporte
de mercadorias por mar, havendo ligação funcional entre os dois contratos,
estamos perante uma venda marítima. Também no conceito de venda
marítima se deve incluir o complexo de situações jurídicas, no âmbito do
qual se cruze o contrato de compra e venda com o contrato de fretamento66,
pressupondo, claro está, a referida ligação entre os dois. A venda marítima
designa, portanto, não só a venda em que se recorra a um contrato de
transporte de coisas por mar para as levar à posse do comprador mas
64 Marques, André Sousa; A Transferência do Risco nas Vendas Marítimas – o risco nos contratos de alienação (páginas 171 a 198). 65 O crédito documentário é uma operação que tem como fim o pagamento do preço em contratos de compra e venda á distância, máxime, internacionais. No termos da cláusula de crédito documentário, ínsita no contrato de compra e venda, o comprador obriga-se a dar ordem de abertura de crédito num banco determinado pelas partes, o qual irá pagar o preço da venda, contra a entrega de determinados documentos por parte do vendedor. Assim, vendedor celebrará um contrato de abertura de crédito, com o banco designado, nos termos do qual este ficará obrigado, perante o comprador, a apagar preço do vendedor contra a entrega de determinados documentos por parte deste último. 66 Assim é porque o transporte de mercadorias em sentido amplo – que não exclusivamente relacionado com o contrato de transporte de mercadorias – tanto pode ser feito ao abrigo de conhecimento de carga (artigo 8.º Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, e artigo 1.º, alínea b) e 3.º, n.º3 CB 1924, relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimentos de carga), como ao abrigo de uma carta-partida (artigo 6.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril). O contrato de fretamento está definido no artigo 1.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril, diploma que o regula.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
167
também aquela em que se recorra a um contrato de fretamento para esse
mesmo efeito. Analisaremos, contudo, a venda marítima à luz do contrato
de transporte de mercadorias por mar, sem prejuízo de as conclusões a que
chegarmos poderem ser aplicadas, com eventuais adaptações, à venda
marítima consubstanciada por uma compra e venda e um contrato de
fretamento. Para que de venda marítima se possa falar, não basta que a
coisa vendida seja, também, objeto de um transporte marítimo. É, ainda,
necessário que exista uma relação funcional entre a compra e venda e o
transporte de mercadorias, ou seja, que os contratos se encontrem unidos
funcionalmente para um mesmo fim. Terá, na prática, de se verificar um
transporte de coisas por mar ao serviço de um contrato de compra e venda.
A denominação venda marítima surge na doutrina por causa da incidência –
talvez mais circunstancial do que jurídica, como tentaremos demonstrar –
que o transporte marítimo tem no contrato de compra e venda. Foi essa,
portanto, a razão que esteve na base da consubstanciação, por parte da
doutrina, do transporte marítimo e da compra e venda. De facto, a relação
funcional entre os dois contratos e a referida interferência jurídica de um no
outro aconselham um tratamento unitário, que possibilitará, em termos
juscientíficos, uma visão mais abrangente, mais consciente de toda a
problemática em jogo. Por outras palavras, a análise conjunta dos dois
contratos potencia resultados científicos que excedem a mera soma das
análises separadas. Não existe, contudo, um contrato legalmente típico –
nem sequer nominado – denominado de venda marítima. Apesar de em
termos doutrinários ela ser considerada, a verdade é que a lei não a consagra
como um contrato típico. Será, ainda assim, correto considerar a venda
marítima um contrato – ou socialmente típico, ou atípico legal e socialmente,
mas contrato? Não. A operação global venda marítima não é um só contrato.
De facto, quer a compra e venda, quer o contrato de transporte de coisas
por mar – quer ainda o fretamento, se for esse o caso – mantêm a sua
autonomia. Reza o n.º2 do artigo 405.º CC que as partes podem reunir no
mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente
regulados na lei. Quando isso acontece, estamos perante a figura doo
contrato misto. O contrato misto será, por definição, um contrato atípico –
pelo menos legalmente, podendo a reiterada prática desse contrato levar a
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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que se torne socialmente típico –, fazendo fronteira com a união de contratos.
Na união de contratos há uma interconexão entre dois ou mais tipos
contratuais, sem qualquer prejuízo da individualidade de cada um, enquanto
no contrato misto, as cláusulas dos vários contratos misturam-se para
originar um único contrato. Assim, o ponto decisivo que conduz à rejeição
ou aceitação da venda marítima como um só contrato reside, precisamente,
na intensidade da ligação entre os dois contratos, que nela se
consubstanciam: se essa ligação for tal, que se prejudique a individualidade
de cada um, será a venda marítima um contrato (misto); se, apesar da ligação,
os contratos mantiverem a sua autonomia, teremos, em princípio, uma mera
união de contratos. Mas qual a pedra de toque, que nos permita aferir da
existência de um contrato misto ou, ao invés, de uma união de contratos? A
questão não se apresenta fácil. De facto, como refere Pedro Pais de
Vasconcelos,
«saber onde se encontra a autonomia suficiente para que haja uma
união de contratos e não um contrato misto (…) é algo que a
doutrina tradicional mal consegue expor e dificilmente consegue
pôr em prática».
A existência de três sujeitos distintos, no âmbito da venda marítima, é um
argumento para a não consideração da mesma como um contrato misto,
mas apenas como uma união de contratos, pois, apesar de haver uma
interconexão entre a compra e venda e o contrato de transporte, existem,
estruturalmente, duas relações jurídicas bem distintas: uma entre o
comprador e o vendedor; outra entre o transportador, por um lado, e o
vendedor ou o comprador, por outro. A existência de três sujeitos distintos,
no âmbito da venda marítima, é um argumento para a não consideração da
mesma como um contrato misto, mas apenas como uma união de contratos,
pois, apesar de haver uma interconexão entre a compra e venda e o contrato
de transporte, existem, estruturalmente, duas relações jurídicas bem distintas:
uma entre o comprador e o vendedor; outra entre o transportador, por um
lado, e o vendedor ou o comprador, por outro. Consideramos, assim, que na
compra e venda marítima a ligação dos contratos não prejudica a sua
individualidade. Apesar de haver uma relação global, uma dependência entre
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
169
os contratos – que existe sempre na união interna de contratos –, a união
não é tal, ao ponto de os contratos unidos perderem a sua autonomia. Resta-
nos, então, confirmar se a venda marítima é uma união de contratos. Que
há interconexão entre eles, não há dúvidas. Mas será que é interconexão
bastante para que se fale de união de contratos? A doutrina costuma
exemplificar a união de contratos com situações em que os dois ou mais
contratos unidos são celebrados pelas mesmas partes. Mas, na venda
marítima, temos três sujeitos distintos. Isso seria, à partida, por si só, um
óbice à consideração da venda marítima como uma união de contratos.
Contudo, consideramos as vendas marítimas em que incumba ao vendedor
celebrar o contrato de transporte de mercadorias por mar, como uma união
de contratos com dependência interna, na medida em que resulta, ainda que
implicitamente, do contrato de compra e venda que o comprador só o
celebra se o vendedor, por sua vez, celebrar um contrato de transporte de
mercadorias por mar ou um contrato de fretamento. As coisas são diferentes
se o vendedor não estiver obrigado a celebrar o contrato de transporte, mas
apenas a entregar os bens vendidos ao transportador. Neste caso, não existe
sequer uma união de contratos, pelo menos com dependência, na medida
em que o comprador celebra a compra e venda sem subordinar esse
contrato à celebração, por parte do vendedor, do contrato de transporte de
mercadorias, pois é ele próprio, comprador, que o vai celebrar. Concluímos,
portanto, que só na venda marítima em que o vendedor se obrigue a
celebrar o contrato de transporte teremos uma verdadeira união de
contratos com dependência. Na venda marítima em que não haja essa
obrigação por parte do vendedor – mas apenas a de entregar a mercadoria
ao transportador marítimo – existe, sem dúvida, uma união funcional entre
os dois contratos, mas não no sentido técnico-jurídico de união interna de
contratos. Apesar de apenas se verificar uma verdadeira união interna de
contratos na venda marítima em que exista a obrigação por parte do
vendedor de celebrar o contrato de transporte das coisas por mar, isso não
significa, porém, que nos casos em que tal obrigação inexista não estejamos,
também, perante uma venda marítima. A nomenclatura continua a justificar-
se mesmo nesses casos, pois, neles, não deixa de existir uma união funcional
– que não necessariamente jurídica – entre os dois contratos. Sendo algumas
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
170
vendas marítimas uma união interna de contratos, resta saber se as mesmas
consubstanciam uma união interna com dependência unilateral ou bilateral.
A dependência é unilateral quando apenas um dos contratos depende do
outro, e bilateral quando cada um depende do outro. Ora, neste caso, a
união interna é bilateral: o comprador compra, desde que o vendedor
celebre um contrato de transporte; inversamente, o contrato de transporte
só é celebrado se a mercadoria for adquirida.
a. Risco:
i. O risco real (risco estático inerente à titularidade de um
direito real): em termos simples, podemos afirmar que o risco
consiste na suscetibilidade, a potencialidade de ocorrência de
danos numa esfera jurídica. Ora, assim, será importante
definirmos, primeiro, o conceito de dano, que está implícito
na noção de risco. Seguimos, quanto à noção de dano, a
definição de Menezes Cordeiro, para quem «em Direito, o
dano [se traduz] na supressão ou diminuição duma situação
favorável que estava protegida pelo ordenamento». De facto,
o dano pressupõe que haja algo para danificar: uma situação
favorável. A noção de situação favorável, apesar de não ter
rigorosamente significado técnico-jurídica, tem a vantagem de
abranger direitos, interesses legalmente protegidos e toda a
situação vantajosa, independentemente de qualquer discussão
doutrinária sobre a arrumação dogmática dessa situação
vantajosa. Porém, tem de ser uma situação favorável que
esteja protegida pelo Direito: é o Direito que contém em si a
previsão das possíveis situações favoráveis. Sendo essa
situação favorável que o Direito confere às pessoas suprimida
ou diminuída, verifica-se, então, o dano. Circunscrevemos o
conceito de dano apenas às pessoas, pois só a elas o Direito
atribui situações favoráveis, cuja supressão ou diminuição se
consubstancia num dano. Só as pessoas sofrem, portanto,
danos – no sentido jurídico – e não as coisas. Assim, por
questões de rigor terminológico, entendemos dever ser
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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reservada a expressão dano para as pessoas, rejeitando a
locução – comumente usada pela doutrina - «danos sofridos
pelas mercadorias. Usaremos, portanto, a expressão avaria ou
deterioração das mercadorias para nos referirmos a esses. Não
é sem outras consequências terminológicas que fazemos esta
precisão. É que, desta forma, incluímos a perda da mercadoria
no conceito de dano. Uma perda não deixa de ser um dano,
nos termos em que o definimos. Não será, portanto, correta a
usual expressão «perdas e danos», porque uma perda é um
dano. A perda de uma coisa é a supressão de uma vantagem,
de uma situação favorável detida pelo proprietário dessa coisa,
pelo usufrutuário, etc. Assim, em vez de perdas e danos,
parece-nos mais pertinente perdas e avarias, reservando o
conceito de dano para o ser humano. Deste modo, quer as
avarias quer as perdas das mercadorias consubstanciam danos
sofridos por uma ou mais pessoas. Definido o dano,
desenvolvamos agora o conceito de risco-estático. É uma
evidência que o titular de um direito real corre o risco de ver,
a todo o tempo, afetada a sua posição, por força da avaria ou
perda da coisa sobre a qual incide o seu direito. A este risco
chamaremos o risco inerente à titularidade de um direito real
ou risco-estático67. A titularidade deste risco-estático na esfera
do detentor do direito real é algo que resulta da própria
natureza das coisas – evidência expressa pelos romanos
através do brocardo res suo domino perit – e é refletido, por
exemplo, no artigo 796.º, n.º1 CC, que de modo salomónico –
embora eventualmente criticável – refere que
«nos contratos que importem a transferência do
domínio sobre certa coisa ou que constituam ou
transfiram um direito real sobre ela, o perecimento
67 Usaremos as expressões risco-estático, risco inerente à titularidade de um direito real ou risco da coisa como sinónimas.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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ou deterioração da coisa por causa não imputável
ao alienante corre por conta do adquirente»
Não é, contudo, o risco inerente à titularidade de um direito
real, aquele que constitui o objeto do nosso estudo. O risco
inerente à titularidade de um direito real, aquele que constitui
o objeto do nosso estudo. O risco, nesta aceção, acompanha
a titularidade do direito real e, consequentemente, o
momento em que ocorre a transferência desse direito. Ora,
nem sempre é a descoberta do momento em que se dá a
transferência desse risco-estático que nos permitirá responder
à questão essencial que coloca o nosso estudo, a saber:
destruídas ou perdidas ou perdidas as coisas objeto da venda
marítima, permanece ou extingue-se o direito de crédito ao
preço? É que pode já ter havido transferência da propriedade
e, consequentemente, do risco-estático, mas não se ter
transferido ainda para o comprador o chamado risco do preço,
isto é, o risco de pagar o preço, mau grado a impossibilidade,
não imputável ao vendedor, de cumprimento da obrigação de
entrega da coisa por parte do mesmo. A pedra de toque da
transferência do risco na venda marítima encontra-se,
portanto, no risco do preço e não no risco-estático. Este
encontra-se fora da órbita contratual, sendo que no presente
estudo o que nos interessa é o risco inserido na dinâmica
obrigacional. Pode, porém, acontecer que a transferência do
risco-estático seja concomitante com a transferência do risco
do preço. Pode até ser aquela a dar origem a esta; por esta
razão, o risco-estático assumirá também importância no
presente estudo. Contudo, é sempre o risco do preço que
imediatamente nos responde à questão acima colocada, ainda
que, mediatamente, o risco-estático nos possa, também, dar
essa resposta.
ii. O risco obrigacional:
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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1. O risco da prestação: definido o risco-estático,
passemos agora à definição do risco da prestação
(Leistungsgefahr). O risco, nesta aceção, diz respeito à
impossibilidade da prestação. Está em causa a seguinte
averiguação: a que sujeito da relação obrigacional o
ordenamento jurídico atribui a perda patrimonial
ocorrida em virtude da verificação do evento gerador
da impossibilidade da prestação? A resposta afigura-
se-nos simples. Tal como o titular de um direito real
corre, a todo o tempo, o risco de ver esse direito
perturbado, nos termos já expostos, outro tanto sucede
com o titular de um direito de crédito:
«O credor corre o risco de ver, a qualquer
tempo, impossibilita-se, total ou
parcialmente, o comportamento humano
que constitui o objeto do seu direito».
Na verdade, e como refere Nuno Aureliano,
«em face da exoneração do devedor
determinada pelo n.º1 do artigo 790.º, a
doutrina é unânime na atribuição do risco
da prestação ao credor, que suporta, assim,
o sacrifício patrimonial associado à sua
não realização».
Tendo o contrato por objeto uma coisa corpórea, o
brocardo, res perit domino dará lugar ao axioma
jurídico res perit creditor. Tal como vimos a propósito
do risco-estático, também não é no risco da prestação
que reside a pedra de toque da transferência do risco
na venda marítima. Na verdade, o risco da prestação,
mais uma vez de acordo com a natureza das coisas,
está sempre do lado do credor, e isto mesmo que o
devedor tenha provocado culposamente a
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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impossibilidade da sua prestação. O que acontece,
neste caso, é que o devedor incorrerá nos esquemas
próprios da responsabilidade civil e risco são coisas
distintas. Assim, na nossa opinião, não é também no
risco da prestação que se encontra a resposta à
questão de saber o que acontece ao peço depois de
perdidas ou deterioradas as coisas objeto de uma
venda marítima. E por isso que entendemos que ao
instituto da transferência do risco nas obrigações,
interessa exclusivamente o risco da contraprestação ou
do preço.
2. O risco da contraprestação (do preço): centremo-nos
agora no risco da contraprestação, aquele que
verdadeiramente interessa na temática da transferência
do risco obrigacional e, portanto, no presente estudo.
Falar em risco da contraprestação pressupõe, desde
logo, que a prestação se tornou impossível, por causa
não imputável ao devedor. Em causa está o destino da
contraprestação face à impossibilidade não culposa de
realização da prestação. Isto porque o devedor da
prestação impossibilitada – sem culpa sua – é, por sua
vez, credor de uma prestação ainda possível (a
contraprestação). Deter o risco da contraprestação
significa ter o dever de realizar a contraprestação – de
pagar o preço, por exemplo –, apesar de não ser
recebida a prestação ou de ser recebida
defeituosamente. O artigo 795.º é uma disposição
fundamental para o enquadramento do risco da
contraprestação no Direito português. O artigo 795.º é
uma disposição fundamental para o enquadramento do
risco da contraprestação no Direito Português. Dispõe
o seu n.º1 que a impossibilidade de uma das prestações
num contrato sinalagmático tem como consequência
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
175
que o credor fique desobrigado da sua prestação – ou
seja, da contraprestação –, e, ainda, que, se já a houver
realizado, tenha o direito de exigir a sua restituição nos
termos prescritos para o enriquecimento sem causa. O
artigo 795.º é, pois, uma regra de bom senso: um
reflexo do princípio da interdependência das
obrigações sinalagmáticas, visando evitar que o
devedor chegue de mãos vazias ao credor, exigindo-
lhe a prestação. O artigo 795.º acolhe, pois, a propósito
do risco da contraprestação, a máxima res perit debitori:
a perda patrimonial associada à contraprestação é
suportada, por regra, pelo devedor da prestação
(portanto, credor da contraprestação). Conforme já
referimos, é o risco nesta aceção que está em causa
quando se fala na transferência do risco nas obrigações.
Contudo, como também dissemos acima, a averiguação
do momento em que ele se transfere pode estar
dependente da transferência do risco-estático. Por isso,
também o risco-estático tem interesse no âmbito do
nosso estudo, mas apenas na exata medida da
influência decisiva que exerce sobre o momento da
transferência do risco da contraprestação.
3. O risco-evento e o risco-situação jurídica: por
transferência do risco, no âmbito do presente estudo,
entende-se, muito simplesmente, a passagem do risco-
situação-jurídica (do preço) de uma esfera para a outra.
O momento em que essa passagem ocorre é,
precisamente, o momento da transferência do risco. No
sentido de risco que aqui mais nos interessa – o risco
da contraprestação –, podemos definir, desde já, a sua
transferência para o comprador como o momento a
partir do qual se consolida na esfera jurídica do
vendedor o direito ao preço, independentemente de
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
176
qualquer perda ou avaria – que não lhe seja imputável
– da coisa vendida. Se o vendedor tiver culpa pela
perda ou avaria da coisa, isso não dará, porém, origem
à re-transferência do risco para si. Nesse caso, ele
incorrerá nos esquemas próprios da responsabilidade
civil pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso
da sua obrigação. O objeto do nosso estudo é,
precisamente, conforme acima foi referido, encontrar os
critérios que presidem à determinação do referido
momento em que se dá a transferência do risco da
contraprestação na venda marítima. Temos, contudo,
pelo menos aparentemente, um fator de perturbação
da estrita lógica da transferência do risco no contrato
de compra e venda, qual seja a existência de um
transporte marítimo, que visa a deslocação das coisas
vendidas até ao comprador.
2. O Risco e a responsabilidade civil: definidos que estão a venda marítima e
as várias modalidades do risco e, ainda, a noção de dano e a ideia básica de
transferência do risco, importa, agora, proceder a uma demarcação clara da
transferência do risco face ao instituto da responsabilidade civil. Conforme
já referimos, o titular do risco da contraprestação tem a sua esfera jurídica
apta para perder o direito de crédito ao preço, mau grado a impossibilidade
da sua prestação lhe não ser imputável – caso seja o vendedor esse titular –
ou para manter a obrigação de pagamento do preço, não obstante a perda
ou deterioração da coisa – se for o comprador esse titular. Pode, porém,
acontecer que a coisa se perca ou deteriore, mas que estas sejam devidas a
culpa de uma das partes ou até de terceiro, eventualmente o transportador.
Suponhamos que, não obstante o risco da contraprestação estar do lado do
comprador, as coisas vendidas se deterioraram por culpa do vendedor: neste
caso, como já dissemos, o vendedor será civilmente responsável. Nesta
situação, não há qualquer re-transferência (ou inversão) do risco da
contraprestação para o vendedor. O titular do risco continua a ser a mesma
pessoa que a lei ou a autonomia privada determinaram. Acontece, porém,
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
177
que o sacrifício patrimonial suportado pelo titular do risco – o comprador –,
com a materialização do mesmo (o risco-evento) é como que neutralizada
pelo instituto da responsabilidade civil. A responsabilidade civil constitui um
desvio à regra segundo a qual os danos são suportados pelas esferas onde
ocorram, na medida em que por causa da imputação do dano resultante da
responsabilidade civil, ele é atribuído a uma outra esfera que não aquela
onde ocorreu inicialmente. A transferência do risco, por sua vez, está a
montante da responsabilidade civil. Ela indica-nos quem irá suportar o dano
ou quantidade negativa patrimonial caso o risco se materialize, o qual poderá
ser, eventualmente, neutralizado, pela imputação do dano ao civilmente
responsável. Deste modo, na venda marítima, o sacrifício patrimonial
resultante da perda ou deterioração da coisa vendida, poderá ser suportador
pelo comprador, pelo vendedor ou até, em última análise, pelo transportador:
(i) Pelo comprador, se o risco da contraprestação já tiver
passado para si, pois terá de pagar o preço, mesmo ficando
sem os bens ou com eles deteriorados;
(ii) Pelo vendedor, se o risco ainda não tiver passado para o
comprador, pois perderá o direito à contraprestação, não
obstante não ter culpa na perda ou deterioração os bens;
(iii) Por fim, pelo transportador, se, em virtude do funcionamento
da responsabilidade civil, a perda ou deterioração dos bens
lhe for imputada, o que neutralizará o risco suportado pelas
partes na compra e venda.
Um aspeto ainda, apesar de elementar, deverá ser frisado: na venda marítimo,
o risco nunca se transfere para o transportador. A passagem do risco dá-se
sempre e apenas entre vendedor e comprador, pois são estas as partes,
respetivamente, ativa e passiva, da contraprestação, cuja transferência do
risco se indaga.
3. Identificação do problema: a questão do risco é fundamental na
configuração da venda marítima. É, no seu âmbito, a matéria que gera maior
índice de litigiosidade. Podemos formular o problema em análise no presente
estudo com a colocação da seguinte questão: se entre a celebração de um
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
178
contrato de compra e venda – com subsequente transporte marítimo – e o
momento da sua integral execução as mercadorias se perdem ou avariam,
por causa não imputável a qualquer das partes, quem suportará o sacrifício
patrimonial daí resultante? É o vendedor que fica, assim, sem as mercadorias
ou com elas deterioradas e sem o valor correspondente ou é, ao invés, o
comprador que tem de pagar o preço, mesmo não recebendo a mercadoria
ou recebendo-a deteriorada? Saber de que lado está o risco – e, portanto,
saber quando ocorre a sua transferência do vendedor para o comprador –
em determinado momento da execução da venda marítima é o pressuposto
para poder responder a estas questões. Na questão que ora analisamos,
repita-se, porque dogmaticamente importante, está em causa não o risco-
estático de lesão do direito de propriedade, por perda ou avaria da
mercadoria, mas sim o risco da contraprestação. A pedra de toque da
transferência do risco na venda marítima encontra-se, portanto, no risco do
preço. O risco-estático apenas relevará na medida em que determine,
também, o risco do preço. Aconteceria, por exemplo, numa venda marítima
à qual fosse aplicável o Código Civil e para a qual as partes não estipulassem
regras sobre a transferência do risco. Nesse caso, e sendo aplicável a regra
do artigo 796.º, n.º1, que determina que o risco passa com a transferência
da propriedade, a transferência do risco da contraprestação seria ditada,
portanto, pela transferência do risco-estático. Poder-se-ia pensar que o tema
em análise – a transferência do risco na venda marítima – diz respeito, apenas,
ao tratamento das relações entre o vendedor e o comprador, e não tanto
das relações destes com o transportador – até porque o presente assunto se
reporta à transferência do risco, e este, como já dissemos, nunca passa para
o transportador. Porém, não é bem assim. A venda marítima caracteriza-se,
essencialmente, como referimos já, pela incidência que o transporte marítimo
acaba por ter na relação de compra e venda. Interceta-se, por exemplo, o
transporte marítimo com o contrato de compra e venda na medida em que
o mesmo influencia as estipulações das partes do contrato de compra e
venda, designadamente do que diz respeito à obrigação de entrega da
mercadoria e ao momento da transferência do risco. Desta forma, apesar de
não haver efeitos jurídicos oriundos do contrato de transporte de
mercadorias por mar – ou do fretamento – no contrato de compra e venda,
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
179
a verdade é que ele influencia as próprias cláusulas do contrato de compra
e venda68. Um dos objetos do presente estudo é, portanto, a análise da
interferência do contrato de mercadorias por mar na situação das partes no
contrato de compra e venda face às coisas vendidas e às vicissitudes que
essas coisas possam sofrer por causa da intermediação do transporte, ou
seja, a análise da interferência do contrato de transporte na relação entre o
comprador e o vendedor. Tendo em conta que o Direito Privado português
se encontra dividido entre o civil e o comercial, cabe referir, ainda, que o
presente estudo, apesar de abarcar estes dois grandes ramos do Direito
Privado, releva, essencialmente, do Direito Comercial. A venda marítima é o
resultado da congregação de um transporte de coisas por mar e de um
contrato de compra e venda. Ora, o Direito dos Transportes – essencialmente
Direito dos contratos de transporte – é um capítulo do Direito Comercial. O,
ainda, Código Comercial, designadamente dos seus artigos 366.º e seguintes.
O transporte marítimo, por sua vez, encontrava-se, conjuntamente com
outras matérias, ao longo do Título I (dos navios) do Livro III (do comércio
marítimo) do Código Comercial (artigos 485.º a 573.º), título esse que foi
sendo, paulatinamente, revogado por legislação extravagante que se viria a
ocupar da matéria. Refira-se, ainda, sem entrar na problemática sobre as
doutrinas subjetivistas e objetivistas em torno da interpretação do artigo
230.º CCom, eu «haver-se-ão por comerciais as empresas singulares ou
coletivas, que se propuserem transportar, regular e permanentemente, por
água ou por terra, quaisquer pessoas, animais, alfaias ou mercadorias de
outrem» (artigo 230.º, n.º7). Assim, o Direito dos Transportes é Direito
Comercial, pois os transportes são comerciantes (praticando, portanto, em
regra, atos de comércio subjetivos) e, além disso, o contrato de transporte é,
em regra, objetivamente comercial (artigo 1.º, e 2.º CCom). O transporte por
mar, sendo um capítulo do Direito dos Transportes, é, outrossim, um capítulo
do Direito Marítimo, disciplina, também, especializada do Direito comercial.
O contrato de compra e venda poderá pertencer tanto ao Direito Civil, como
ao Direito comercial. A compra será comercial se se inserir num processo de
68 Exemplo, por excelência, dessa influência são, precisamente, os INCOTERMS FAS, FOB, CFR, CIF, DES e DEQ que, sendo termos apostos nos contratos de compra e venda, pressupõem a existência de um contrato de transporte marítimo das coisas vendidas.
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180
compra para futura revenda; a venda sê-lo-á se a coisa vendida havia sido
adquirida com o intuito de revender (artigo 463.º CCom). Só assim não será
se as compras ou vendas se enquadrarem num dos números do artigo 464.º
CCom. Ora, a esmagadora maioria das compras de coisas a serem
transportadas por mar são compras para futura revenda. Assim, a venda
marítima é uma realidade, essencialmente, mercantil. Ainda assim, tudo o
que dissermos relativamente á transferência do risco na venda marítima
aplicar-se-á, como veremos, a todo o Direito Privado, quer seja civil, quer
seja comercial. Refira-se, por último, que as vendas marítimas pertencem ao
grupo das vendas com expedição, sendo, de entre elas, o tipo paradigmático.
As conclusões a que, ao longo deste estudo, chegarmos a seu respeito serão,
portanto, igualmente aplicáveis, com as necessárias adaptações, às outras
vendas com expedição: ferroviária, fluvial, aérea ou rodoviária.
67.º - O Direito Geral dos Transportes69
Generalidades; aspetos institucionais e materiais: o ser humano tem a capacidade de se
deslocar levando, com ele, utensílios e outros bens. Os nossos antepassados surgidos, tanto
quanto se sabe, no Centro de África, vieram, em vagas sucessivas e dispondo apenas de meios
rudimentares, a ocupar toda a superfície do Planeta. Está ao alcance da Humanidade, com a
tecnologia disponível, iniciar a colonização do Sistema Solar: ponto é que o progresso do
Direito fosse capaz de acompanhar os das Ciências da Natureza e da Tecnologia, pondo termo
as conflitos e aos desperdícios. A movimentação de pessoas e de bens permite introduzir a
ideia de transporte. No transporte, em sentido técnico-jurídico, procede-se à deslocação
voluntária e promovida por terceiros, em termos organizados, de pessoas ou de bens, de um
local para o outro. O papel dos transportes nas sociedades industriais e pós-industriais mal
carece de referência. Desde o momento em que se proceda a uma divisão acentuada do
trabalho, tudo tem de ser transportado: as matérias-primas para os locais de processamento;
os materiais processados para as unidades de fabrico; as peças fabricadas para os locais de
montagem; os equipamentos para os locais de distribuição e de venda; os bens diversos, para
a residência de consumidores. A população tem, a nível global, uma mobilidade crescente:
cada vez é mais inverosímil que alguém nasça, viva e morra na mesma localidade.
Independentemente das migrações por razões económicas, sociais ou pessoas, as pessoas
viajam em negócios, em estudos, em lazer. Todo o dia-a-dia depende de uma rede de
transportes em perfeito e permanente funcionamento, assente em incontável miríade de atos
jurídicos especializados, a tanto destinados. Podemos admitir que a teia de transportes se
desenvolva de modo espontâneo, pelo menos nas sociedades abertas. Todavia, a partir de
certa dimensão, impõe-se uma especialização profissionalizante, com intervenção dos Estados
69 Cordeiro, António Menezes; Direito Comercial; 3.ª edição; Almedina Editores; 2012.
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181
e com uma colaboração planificada entre todos os agentes. Esse aspeto mais se acentua
quando os transportes passem, por sistema, a implicar o cruzamento das fronteiras dos
Estados, internacionalizando-se. O Direito dos Transportes assume, assim, uma dupla
dimensão. Por um lado, ele vai regular as organização nacionais e internacionais tendentes a
disciplinar ou a normalizar os transportes e os próprios transportadores, na medida em que,
pelos valores em jogo, não possam deixar de satisfazer determinados requisitos. Trata-se do
Direito institucional dos transportes. Por outro, o Direito dos Transportes regula os negócios
pelos quais o transportador se compromete, perante um interessado, a assegurar o transporte
de pessoas ou de bens de um local para outro. É o Direito material dos Transportes. O Direito
material dos transportes reporta-se, essencialmente, ao Direitos dos Contratos de Transporte.
Trata-se de um capítulo do Direito Comercial, Apesar da evidente especialidade, parece
excessivo proclamar a sua autonomização como disciplina. De modo significativo, a importante
reforma do Direito dos Transportes alemã, de 1998, foi formalmente inserida no HGB: aí
regressaram numerosas normas que, anteriormente, andavam dispersas em diplomas
extravagantes. E também entre nós, o essencial do regime relativo ao contrato de transporte
se mantém no Código Veiga Beirão.
O Código Comercial e o papel das cláusulas contratuais gerais: pela sua própria natureza, o
Direito dos Transportes tem significativos planos internacionais. Não obstante, como fonte
básica enformadora de conceitos e de valorações gerais, mantém-se o régie interno e comum
do contrato de transporte, ainda hoje constante dos artigos 366.º a 393.º CCom. Esses
preceitos só não têm uma aplicação direta e de princípio ao transporte marítimo – artigo 366.º
- nem ao transporte aéreo, inexistente em 1888. O contrato de transporte pode implicar
vertentes técnicas consideráveis, assim como particularidades especificas, condicionadas pelo
objeto a transportar ou pelo meio utilizado. Além disso, o transporte atual efetiva-se, quanto
possível, em massa, de modo a reduzir custos. Tudo isso obriga a uma normalização dos
contratos a celebrar e a uma aceleração de todo o processo. Esses vetores são prosseguidos
através de cláusulas contratuais gerais. Muitas vezes exaradas nos próprios títulos de
transporte ou nos conhecimentos, elas dão corpo às regras contratuais concretas. O esforço
de unificação levou, na Alemanha, à preparação de cláusulas contratuais gerais, à disposição
de todos os transportadores. Também entre nós, os diversos transportadores recorrem a essa
técnica de contratação, inevitável perante as realidades dos nossos dias. Impõe-se proceder à
sua sindicância, à luz da LCCG. Existe jurisprudência nesse domínio.
Quadro geral dos contratos de transporte: referenciadas às diversas fontes, podemos passar
a expor um quadro geral classificatório dos contratos de transporte. De acordo com a realidade
a transportar, o transporte diz-se de mercadorias ou de passageiros. Este último abrange,
ainda, a bagagem que acompanhe os passageiros em causa. A via distingue os transportes em
terrestres, aéreos e marítimos. Subdistinção nos terrestres é a que contrapõe os rodoviários
aos ferroviários. Os transportes fluviais seguem, no essencial, o regime dos terrestres, como
se infere do próprio artigo 366.º. Os contratos de transporte marítimo constituem uma
disciplina comercial especializada, dispondo o contrato de transporte rodoviário nacional de
mercadorias do regime adotado pelo Decreto-Lei n.º 239/2003, 4 outubro. O transporte
poderá ser interno ou internacional, consoante venha bulir com o Direito de um único Estado
ou com os de diversos Estados. Trata-se de uma distinção rica em consequências, como melhor
resultará da consideração do Direito Internacional dos transportes. A crescente interação dos
transportes leva, muitas vezes, a que qualquer operação de transporte implique a utilização
combinada de diversos meios de transporte. Fala-se, a tal propósito, em transporte
multimodais. As Nações Unidas aprontaram, em 24 maio 1980, uma Convenção sobre o
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
182
transporte Multimodal de mercadorias, a TMI: todavia, esta ainda não entrou em vigor.
Existem certas regras da CNUDCI/UNCITRAL relativas aos documentos de transporte
multimodal, de 1975, revistas em 1991.
Capítulo II – Fontes de Regulação da venda marítima70
4. Determinação do Direito aplicável à venda marítima:
a. Venda marítima nacional: vejamos agora qual o Direito aplicável à
venda marítima. Se for nacional serão aplicáveis, quanto ao contrato
de compra e venda, as regras do Código Civil e, quando mercantil,
também as do Código Comercial. Relativamente ao contrato de
transporte, a questão não é tão simples. Há que considerar a
Convenção de Bruxelas de 1924 e o Decreto-Lei n.º 352/86, sendo
que o artigo 2.º deste Decreto-Lei estabelece que o contrato de
transporte de mercadorias por mar é disciplinado pelos tratados e
Convenções Internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente,
pelas suas disposições. Dispõe, por seu turno, o artigo 10.º da referida
Convenção que as suas disposições se aplicam a todo o
conhecimento de carga criado num dos Estados contratantes.
Segundo uma interpretação literal desta norma, num transporte
marítimo puramente interno, a CB 1924 também seria aplicável, caso
fosse emitido um conhecimento de carga. Porém, somos da opinião
de que, no artigo 10.º, o legislador disse mais do que queria.
Entendemos, antes, que a Convenção se aplica a todo o
conhecimento de carga criado num dos Estados contratantes, mas no
pressuposto de que o transporte é internacional. Ou seja, a CB 1924
só se aplica a situações plurilocalizadas e não a transportes
puramente internos. Foi, aliás, o que o Protocolo de Visby veio
estabelecer ao dar nova redação ao artigo 10.º da Convenção.
70 Marques, André Sousa; A Transferência do Risco nas Vendas Marítimas – o risco nos contratos de alienação (páginas 198 a 200).
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
183
Destarte, ao transporte de mercadorias por mar puramente interno
aplicar-se-á o Decreto-Lei n.º 352/86.
b. Venda marítima Internacional: se a venda marítima for internacional,
por os elementos da situação jurídica estarem em conexão com mais
de um Estado, a determinação do regime do contrato de compra e
venda exige uma prévia aferição do Direito aplicável, com base nas
regras do Direito Internacional Privado. Deve ser feita, neste caso,
uma distinção, conforme haja ou não convenções de arbitragem.
Caso haja, o Direito Transnacional da Arbitragem e as normas internas
determinarão o Direito a aplicar (artigo 33.º da Lei da Arbitragem
Voluntária). Assim, nos termos do artigo 33.º da Lei da Arbitragem
Voluntária, o Direito a aplicar pelos árbitros é o escolhido pelas partes.
Podem, também, os árbitros julgar segundo a equidade, se tal tiver
sido convencionado. Esta asserção é valida tanto para a compra e
venda como para o contrato de transporte de mercadorias por mar.
Em ambos pode funcionar a determinação da lei aplicável. Não
existindo convenção de arbitragem devemos, quanto à compra e
venda, distinguir duas situações: uma, se a questão se verificar num
Estado que é parte contratante da CVVIM; outra, se se verificar num
Estado não contratante. Na primeira situação, aplicar-se-á a CVVIM,
se estiver preenchido o seu âmbito de aplicação. NA segunda
situação – como ocorre em Portugal, que não aderiu à CVVIM –, terá
de ser determinada a lei aplicável através do Direito Internacional
Privado. Podem, inda assim, os tribunais portugueses vir a aplicar a
CVVIM. Isso acontecerá em duas situações. Em primeiro lugar, nos
casos em que as nossas regras de Direito Internacional Privado
remetam para a alei de um Estado que tenha ratificado a Convenção
de Viena. Em segundo lugar, quando as partes, ao abrigo da sua
autonomia privada, tiverem escolhido como lei aplicável a CVVIM
(artigo 3.º Convenção de Roma de 1980). Pode, ainda, a CVVIM ser
utilizada por tribunais portugueses como «elemento de interpretação
de um contrato internacionais de compra e venda de mercadorias».
Quanto ao contrato de transporte (internacional), será aplicável a
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
184
Convenção de Bruxelas de 1924 se o conhecimento de carga for
emitido num dos Estados contratantes, nos termos do seu artigo 10.º.
5. A autonomia privada: INCOTERMS (Interncional Commercial Terms):
apesar da importância da determinação do Direito aplicável, a verdade é que,
salvo raríssimas exceções, não é o Direito positivo que vai solucionar – pelo
menos imediatamente – a questão da transferência do risco na venda
marítima. Assim é, porque as regras legais aplicáveis à transferência do risco,
designadamente o Código Civil e a CVVIM, são supletivas e a matéria da
transferência do risco na venda marítima é, comummente, regulada pelas
partes, através da remissão para os INCOTERMS. Apesar de os INCOTERMS
não constituírem Direito Positivo, entendemos pertinente incluí-los no
ressente capítulo, como fontes de regulação da venda marítima, pois é por
eles que a maioria das vendas marítimas é, na verdade, regulada. Faremos,
portanto, a propósito das fontes de regulação da venda marítima uma breve
caracterização dos INCOTERMS. A palavra INCOTERMS constitui uma
abreviatura da expressão International Commercial Terms. Os INCOTERMS
são regras uniformes, elaboradas pela Câmara do Comércio Internacional
(CCI), para a interpretação dos termos mais usuais nas vendas para a praça
– de que são exemplos FOB, FAS, DES e DEQ. O objeto dos INCOTERMS é o
contrato de compra e venda internacional (necessariamente, portanto, com
expedição das coisas vendidas) e a sua finalidade é regular direitos e
obrigações das partes na compra e venda. O regime dos INCOTERMS está
centrado, especialmente, na obrigação de entrega das mercadorias, na
transferência do risco, nas despesas com o transporte e, também, na
obrigação de celebração do contrato de seguro das mercadorias. Sendo
principalmente destinados à venda internacional, nada obsta a que os
INCOTERMS seja utilizados em vendas nacionais que impliquem transporte.
As regras de interpretação e integração dos INCONTERMS são publicadas
pela Câmara de Comércio Internacional desde 1936, data da primeira versão.
Seguiram-se, depois, as versões de 1953, 1980, 1990 e de 2000 e, agora, de
2010. Há uma querela relativamente à questão de saber se os INCOTERMS
constituem ou não usos do comércio internacional Lima Pinheiro considera
que pelo menos as principais regras de interpretação e integração dos
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185
termos específicos da venda marítima, que são as cláusulas FOB, FAS, CFR,
CIF, DES e DEQ, são verdadeiros usos da venda internacional. Arroyo
Martinez, por sua vez, entende que não, porque os usos consistem em
normas de geração espontânea, ao passo que os INCOTERMS foram
elaborados de acordo com um plano preconcebido e em atenção a
finalidades concretas. Da nossa parte, consideramos que a CCI se limita a
recolher e a dar forma a regras que tivera, uma geração espontânea, pelo
que, nessa medida, seriam usos. Porém, haverá, eventualmente, algumas
parcelas constantes dos INCOTERMS que não corroboram usos, porquanto
correspondem a atividade criativa da própria CCI. Assim, diríamos que os
INCOTERMS, conforme estão publicados pela CCI, são usos internacionais ou
não, conforme os corroborem ou não. Desta forma, a natureza dos
INCOTERMS é uma questão que terá de ser vista caso a caso e consoante o
espaço geográfico em causa. Uma outra questão discutida a propósito dos
INCOTERMS é a da sua articulação com as cláusulas contratuais gerais. Mais
concretamente, questiona-se se, quando um INCOTERMS é adotado num
contrato ao qual se aplique o Direito português, está ou não sujeito ao
regime das cláusulas contratuais gerais. Lima Pinheiro entende que não.
Segundo este autor, os INCOTERMS não constituem cláusulas pré-
elaboradas, que as partes se limitam a propor ou a aceitar (artigo 1.º, n.º1
Decreto-Lei n.º 446/85, 25 outubro – LCCG), constituindo, antes, termos
normalizados que se referem a cláusulas típicas do tráfico negocia. As partes
podem, pois, no entender do autor, escolher entre os diferentes termos e
modelar o conteúdo das cláusulas que designam, não sendo, portanto,
confrontadas com a alternativa entre adesão e desistência do negócio,
característica das cláusulas contratuais gerais. Menezes Cordeiro, por seu
turno (e como será exposto adiante), os INCOTERMS dão azo a verdadeiras
cláusulas contratuais gerais. Para o autor, os INCOTERMS visam contraentes
indeterminados e, quando adotados por proposta de uma das partes,
traduzem a típica rigidez, salvo quando se prove que não correspondem a
nenhuma proposta firme, antes tendo advindo de negociação. Além disso,
refere que os INCOTERMS surgem, em regra, inseridos em textos contratuais
mais vastos, que são, eles próprios, cláusulas contratuais gerais. Na nossa
opinião, os INCOTERMS dão azo, em princípio a verdadeiras cláusulas
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
186
contratuais gerais, por traduzirem a típica rigidez destas, podendo, porém,
em concreto, demonstrar-se que não o são. Assim, o INCONTERM usado
num determinado contrato de venda marítima deve ser comunicado e
explicado, pela parte que o apôs no contrato, à parque que dele não tenha
conhecimento, nos termos do artigo 5.º e 6.º LCCG. Isto porque, conforme
Menezes Cordeiro, «mostra a experiência que muitos pequenos e médios
operadores nacionais são levados a subscrever clausulados que contêm
INCOTERMS sem deles terem uma ideia precisa e completa». O utilizador
assume, portanto, o encargo de explicar os termos, ou, pelo menos, de
remeter o aderente para o site da Câmara do Comércio Internacional, onde
este poderá obter todos os esclarecimentos. A consequência da falta de
comunicação ou de informação poderá ser a exclusão do INCOTERM do
contrato de venda marítima, nos termos do artigo 8.º LCCG. Neste caso, as
regras sobre a transferência do risco serão substituídas pelas regras
supletivas aplicáveis, que analisaremos detalhadamente abaixo.
68.º - O Direito Internacional dos Transportes; os INCOTERMS
As Convenções Internacionais: a globalização dos transportes e as necessidades daí
decorrentes, cada vez menos limitadas às fronteiras de cada Estado nacional, levaram a uma
multiplicação de Convenções Internacionais. Os diversos contratos de transporte não podem
deixar de se confrontar com essas fontes. Vamos, por isso, proceder a uma breve enunciação.
A harmonização do Direito dos Transportes foi iniciada em 1890, com a Convenção de Berna
sobre os Transportes Ferroviários. Seguiu-se a Convenção de Bruxelas de 1924, relativa ao
Transporte Marítimo sob Conhecimento ou Guia e a Convenção de Varsóvia, de 1929, quanto
ao transporte aéreo. Culminando este esforço surge a Convenção de Genebra, de 19 de maio
1956, aprovada pelo Decreto-Lei .º 46.235, 18 março de 1965 e relativa ao contrato de
transporte internacional de mercadorias por estrada. Aderiram à Convenção de Genebra,
conhecida pela sigla CMR, todos os Estados do Ocidente Europeu, salvo a Islândia e a Albânia,
bem como os Estados da antiga União Soviética. O Direito português decidiu transpor, para a
ordem interna, o essencial dessa convenção: tal o papel do Decreto-Lei n.º 239/2003, 4 de
outubro, cujo preâmbulo é elucidativo. O transporte internacional rodoviário de passageiros e
bagagens, mercê dos cuidados da UNIDROIT, veio a conhecer uma Convenção, assinada em
Genebra a 1 março 1973, ou CVR. Ela não foi ratificada por Portugal tendo, todavia, entrado
em vigor no dia 12 abril 1994. No campo rodoviário há ainda que ter em conta um elevado
número de acordos bilaterais. No tocante aos transportes ferroviários surgiram, como foi dito,
os primeiros esforços para a harmonização internacional. A citada Convenção de Berna, de
1890, regulava transportes internacionais ferroviários de mercadorias. Aquando da revisão de
1924, foi adotada uma Convenção Internacional relativa ao Transporte de Passageiros e de
Mercadorias por Caminho de Ferro. Seguiram-se diversas revisões, até à de 1980. Esta,
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assinada em 9 maio 1980, veio a ser conhecida por Convenção Relativa aos Transportes
Internacionais Ferroviários ou COTIF, aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 50/85, 27
novembro. A COTIF institucionalizou a antiga União de Berna, que passou a Organização
Internacional para os Transportes Internacionais Ferroviários (COFIF), dotada de diversos
órgãos, entre os quais a assembleia geral (OTIF) e um secretariado: a Repartição Central dos
Transportes Internacionais Ferroviários (OCTI). Como Apêndice A surgem as denominadas
Regras Uniformes relativas ao Transportes Internacional Ferroviário de Passageiros e Bagagem
ou CIV e, como Apêndice B, as Regras Uniformes relativas ao Contrato de Transporte
Internacional Ferroviário de Mercadorias ou CIM. A COTIF foi alterada pelo Protocolo aprovado
a 20 dezembro de 1990 pela OTIF, aprovado para ratificação, pelo Decreto n.º 10/97, 19
fevereiro. No domínio dos transportes aéreos, devemos recordar, quanto às aeronaves, a
Convenção sobre Aviação Civil Internacional, de Chicago, assinada em 7 dezembro 1944,
aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 36:158, 17 fevereiro 1947 e a Convenção
Relativa ao Reconhecimento Internacional de Direitos sobre Aeronaves, concluída em Genebra,
em 19 junho 1948, aprovada para ratificação pelo Decreto n.º 33/85, 4 setembro. Os contratos
internacionais de transporte aéreo foram objeto da Convenção de Varsóvia de 12 outubro de
1929, modificada pelo Protocolo de Haia de 28 setembro de 1955 e pelo Protocolo de Montreal
de 15 setembro 1975, ratificado por Portugal em 1982. O transporte por mar conhece também
múltiplos instrumentos. Trata-se, contudo, de matéria autonomizada em Direito Marítimo,
disciplina especializada do Direito Comercial.
As diretrizes comunitárias: as exigências da integração europeia levaram ao aparecimento de
diretrizes com relevância no setor dos transportes. Especialmente em causa estão aspetos
institucionais de acesso à categoria de operadores. No campo dos transportes internacionais
rodoviários de mercadorias, vieram dispor as Diretrizes n.º 89/438/CEE e n.º 91/224/CEE,
ambas do Conselho. A matéria foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 279-A/92, 17 dezembro, que
estabeleceu o novo regime jurídico do transporte público internacional rodoviário de
mercadorias. Quanto ao transporte ferroviário, cumpre citar a Diretriz n.º 91/440, 29 julho
1991. A matéria dos transportes vem, assim, a suscitar uma diferenciação crescente. Os
princípios jurídicos que a conformam bem como numerosas das suas concretizações mantêm-
se, porém, fiéis à comercialística privada.
Os INCOTERMS: no Comércio Internacional, particularmente no setor dos transportes, foi-se
tornando habitual a utilização de cláusulas típicas, expressas pelas siglas respetivas em Inglês.
A lista de siglas em uso foi-se alongando, com inevitáveis flutuações. Para evitar os
inconvenientes daí resultantes, a Câmara de Comércio Internacional, de Paris, procurou
interpretar as cláusulas em uso, consolidando-as. Assim surgiram os INCOTERMS: de
Internacional Commercial Terms. Foram publicadas versões sucessivamente mais
aperfeiçoadas: a primeira data de 1936, seguindo-se versões de 1953, de 1980, de 1990, de
2000 e de 2010. Como se vê, a tendência é de uma revisão de dez em dez anos. Cumpre dar
uma ideia dos INCOTERMS em uso. Temos:
Grupo E: de ex, partidas: a obrigação mínima para o exportador: a mercadoria é
entregue no local da produção ou fábrica;
Grupo F: de free, livre: a mercadoria é entregue ao transportador, não sendo o
transporte principal da responsabilidade do exportador;
Grupo C: de cost ou carriage, custo: o custo do transporte principal é assumido
pelo exportador: mas não os riscos subsequentes ao embarque;
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Grupo D: de delivery: chegada ou entrega: a obrigação máxima para o exportador,
que assume todos os riscos e os custos até ao local de entrega.
Posto isto, os INCOTERMS são os seguintes:
Grupo E:
o EXW (ex works): a mercadoria é entregue na fábrica, sendo o transporte
alheio ao exportador;
Grupo F:
o FCA (free carrier): a mercadoria é entregue ao transportador, aí cessando
o papel do exportador;
o FAS (free alonside ship): idem, sendo a mercadoria entregue ao lado do
navio;
o FOB (free on board): idem, sendo a mercadoria entregue a bordo do navio.
Grupo C:
o CFR (cost and freight): o exportador assume o custo e o frete;
o CIF (cost, insurance and freight): idem, mas incluindo, também, o seguro;
o CPT (carriage paid to): idem, mas especificando-se o local até onde o porte
é pago;
o CIP (carriage and insurance paid to): idem, incluindo o seguro.
Grupo D:
o DAF (delivered and frontier): o vendedor assume os custos e os riscos até
à fronteira acordada;
o DES (delivery ex ship): o vendedor arca com os custos e os riscos do
embarque e do transporte; a transferência dos riscos e custos faz-se a
bordo do navio, no local de chegada;
o DEQ (delivered ex quay): idem, mas no cas do porto de chegada;
o DDU (delivered duty unpaid): a mercadoria é entregue com os impostos a
cargo do comprador;
o DDP (delivered duty paid): idem, mas com os impostos pagos.
A presente indicação visa, apenas, dar uma ideia dos INCOTERMS atuais: ela não dispensa a
análise cuidadosa, nas fontes, do efetivo alcance de cada um destes termos. Temos, de resto,
bons exemplos de análise na jurisprudência. Esta matéria deve ser manejada com cuidado. Em
primeiro lugar, quando se usem INCOTERMS da CCI, haverá que especificar, no contrato:
INCOTERMS 2010 ou INCOTERMS CCI 2010. Há INCOTERMS de sentido não coincidente,
usados nos Estados Unidos; há INCOTERMS arcaicos e há figuras atípicas, que podem não
corresponder ao sentido preciso de nenhum dos 13 INCOTERMS oficiais. Ainda a este propósito,
cumpre reter que a CCI não tem qualquer poder normativo não assumido, livremente, pelas
partes. Limita-se a propor os INCOTERMS, em geral aceites: mas não obrigatórios. Pergunta-se
se os INCOTERMS não assumem uma força vinculativa, na qualidade de usos do comércio. No
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domínio internacional, poder-se-á falar, efetivamente, numa prática reiterada. Todavia, a força
vinculativa dos INCOTERMS provém sempre da sua inclusão em contratos. Deriva, pois, da
autonomia privada. Não obstante, quando pactuados, há uma forte indicação no sentido de as
partes terem pretendido, precisamente, assumir o sentido fixado pela CCI. Pelo menos, assim
o entenderia o destinatário normal.
Segue; aplicação interna e natureza: os INCOTERMS podem ser usados no plano interno.
Quando isso suceda, operam as considerações acima expendidas sobre o seu alcance. A
positividade dos INCOTERMS advém sempre da autonomia privada, assumindo o alcance que
lhes daria o destinatário normal. Esse alcance será, em princípio, o da CCI, admitindo-se,
todavia, que outra possa ser a solução concreta. Quanto ao alcance material: logo se verifica
que, embora esta matéria surja no domínio dos transportes, ela assume um alcance que o
transcende, penetrando no campo da compra e venda, dos seguros e de diversas prestações
de serviço. O principal interesse reside na sua natureza sintética sempre de três iniciais – e na
normalização rápida que permitem. Pergunta-se se os INCOTERMS dão azo a cláusulas
contratuais gerais. Entre nós, já se respondeu negativamente (Lima Pinheiro). Todavia, cremos
que se trata, muito claramente, de cláusulas contratuais gerais: visam contratantes
indeterminados e, quando dotados por proposta de uma das partes, traduzem a típica rigidez,
salvo quando se prove que não corresponderam a nenhuma proposta firme, antes tendo
advindo de negociação. Além disso, os INCOTERMS surgem, em regra, inseridos em textos
contratuais mais vastos que são, eles próprios, cláusulas contratuais gerais. Isto dito, temos
algumas especificadas. Assim:
Os INCOTERMS correspondem a cláusulas experimentadas e equilibradas; só por
si, não incorrem nas proibições da LCCG, ainda que a sua articulação com outras
cláusulas não deva deixar de ser sindicada
A interpretação dos INCOTERMS, quando se determine que se trata dos
INCOTERMS 2000 da CCI, deve seguir o indicado por esta orientação: sempre sem
prejuízo da sua articulação global, que deverá atender à LCCG.
Muito importante pelo prisma do Direito Português é a necessidade de comunicação e a de
informação, previstas nos artigo 5.º e 6.º LCCG. Mostra a experiência que muitos pequenos e
médios operadores nacionais são levados a subscrever clausulados que contêm INCOTERMS
sem, deles, terem uma ideia precisa e completa. O utilizador assume o encargo de desdobrar,
traduzir e explicar os terms ou, pelo menos, de remeter o aderente para os sítios da CCI onde
podem ser obtidos os competentes esclarecimentos. No limite, as cláusulas atingidas não se
incluem nos contratos singulares (artigo 8.º LCCG), sendo substituídas por regras supletivas
aplicáveis. É certo que estas, muitas destas, acaba por revalidar os INCOTERMS. Tudo depende,
todavia, e em concreto, das articulações que possam surgir com outras cláusulas contratuais.
Finalmente, cabe referir que a nossa jurisprudência conhece e aplica os INCOTERMS, deles
retirando os competentes desenvolvimentos jurídico-normativos.
Trade terms: além dos INCOTERMS, cumpre ainda referir os trade terms. Trata-se de cláusulas
usualmente presentes em contratos internacionais, particularmente de compra e venda, mas
que têm uma especial presença nos contratos de transporte, mesmo internos. Uma primeira
versão normalizada foi publicada, em 1923, pela Câmara do Comércio Internacional, sendo a
última versão de 1953. Não têm a solidez do INCOTERMS 2000; além disso, verifica-se a
existência de diversas versões, algumas de proveniência norte-americana. Correspondem,
tecnicamente, a cláusulas contratuais gerais, que devem ser comunicadas e esclarecidas por
quem as proponha à adesão de outrem, nos termos gerais.
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Capítulo III – A transferência do risco na venda marítima71
6. A transferência do risco na venda marítima no Código Civil: sempre que
estivermos perante uma venda marítima puramente interna aplica-se, nos
termos vistos acima, o Código Civil, no que respeita à questão da
transferência do risco. Sendo a venda marítima internacional, o Código Civil
será aplicado se, por força das regras de Direito Internacional Privado, se
concluir ser aplicável o Dirieto Português. Mas note-se que o Código Civil
português apenas será aplicável à problemática da transferência do risco se
as partes não tiverem, elas próprias, regulado esta matéria, porquanto têm,
dentro dos limites da lei, liverdade para o fazer (artigo 405.º CC). Revela-se
portanto, importante a análise do Código Civil a este respeito, não só porque
pode ser aplicável ao caso concreto – ainda que seja raro, pois, em regra, as
partes regulam estas matérias por remissão para os INCOTERMS –, mas,
principalmente, porque o percurso pelo regime da transferência do risco na
compra e venda no Código Civil será fundamental para a boa compreensão
da problemática em jogo no presente estudo.
a. O regime geral da transferência do risco nos contratos alienatórios:
i. Generalidades: a regra base do Código Civil sobre a
transferência do risco nos contratos alienatórios encontra-se
vertida no seu artigo 796.º, dispõe o seu n.º1 que
«nos contratos que importem a transferência do
domínio sobre certa coisa ou que constituam ou
transfiram um direito real sobre ela, o perecimento
ou deterioração da coisa por causa não imputável
ao alienante corre por conta do adquirente».
Esta norma insere-se no âmbito das matérias relativas ao não
cumprimento de uma obrigação por impossibilidade, quando
71 Marques, André Sousa; A Transferência do Risco nas Vendas Marítimas – o risco nos contratos de alienação (páginas 204 a 289).
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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não imputável ao devedor. Ela regula o problema do risco na
contraprestação nos contratos com eficácia real. Regulando o
risco da contraprestação, o artigo 796.º, n.º1 reflete, outrossim,
um princípio de Direitos Reais segundo o qual, e de acordo
com a natureza das coisas, é o titular do direito real que corre
o risco de, a qualquer momento, ter esse seu direito lesado,
por causa da perda ou deterioração da coisa dele objeto – res
perit domino. A questão da transferência do risco da
contraprestação, à luz do artigo 796.º, n.º1, acaba, portanto,
por redundar numa outra, a saber: e, que momento ocorre a
transferência de direito? E é aí que repousa a resposta ao
problema do risco do preço, nos termos do artigo 796.º, n.º1
CC. Como podemos ver, sendo aplicável o artigo 796.º, n.º1,
os momentos da transferência do risco-estático – ou risco da
coisa – e do risco da contraprestação – o risco do preço –
coincidem. Quando passa o risco da coisa, também nos
termos dessa norma, o risco do preço passou. Podemos,
portanto, dizer que, nos termos da regra ínsita no n.º1 do
artigo 796.º CC, o risco da contraprestação se transfere
coevamente com a transferência do direito, coincidindo, assim,
com a transferência do risco da coisa. Enquanto o momento
da transferência do risco da coisa resulta da natureza das
coisas, já aquele em que se dá a transferência do risco do
preço resultará, antes, de uma mera opção do legislador ou
das partes. Tanto assim é, que o artigo 797.º CC vem
estabelecer a transferência do risco da contraprestação com o
cumprimento da obrigação de entrega; isto mesmo que a
propriedade – e, portanto, o risco da coisa – já se tivesse
transmitido antes, com a celebração do contrato (artigo 408.º
CC). Desta forma, repisamos, para se saber qual o momento
em que, em regra, à luz do Código Civil se transfere o risco
da contraprestação nos contratos alienatórios – como é o caso
da compra e venda –, tem de se descobrir, primeiro, o
momento em que se dá a transferência do direito (artigo 796.º,
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n.º1 CC). É o artigo 408.º CC que nos dá a resposta. Refere o
n.º1 deste artigo que «a constituição ou transferência de
direitos reais [se dá] por mero efeito do contrato». Consagra
esta norma o princípio da consensualidade: a transferência
do direito de propriedade depende apenas do consenso das
partes. Bastam, portanto, as declarações de vontade das partes
para produzir o efeito de transferência do direito. Não é, assim,
necessário qualquer ato posterior de entrega ou outro ato
formal. Porém, a transferência do direito só se dá por mero
efeito do contrato quando a coisa, sobre a qual ele incida seja
determinada. O n.º1 do artigo 408.º alude a coisa determinada.
Para além disso, o próprio n.º1 do artigo 408.º CC, ao referir,
na sua parte final, «salvas as exceções previstas na lei», abre a
possibilidade de haver exceções ao princípio da
consensualidade». Refere, então, o n.º2 do artigo 408.º,
excecionando a regra ínsita no n.º1, que se a transferência
respeitar a coisa futura ou indeterminada, o direito apenas se
transfere quando a coisa for adquirida pelo alienante ou
determinada com conhecimento de ambas as partes,
respetivamente, sem prejuízo do disposto em matéria de
obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém,
a transferência respeitar a frutos naturais ou partes
componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no
momento da colheita ou separação. Quando a lei alude a coisa
indeterminada (artigo 408.º, n.º1 CC), refere-se às obrigações
com prestações indeterminadas. Destas, as mais importantes
são as obrigações genéricas. Torna-se, assim, importante, no
âmbito do nosso estudo, proceder à análise do momento em
que ocorre a transferência do direito de propriedade quando
está em causa este tipo em causa este tipo do obrigações.
Desta forma, saberemos, então, em que momento se dará a
transferência do risco, nos termos do artigo 796.º, n.º1, nas
vendas marítimas de coisas genéricas.
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ii. Obrigações genéricas: na venda de coisas genéricas, a
transferência da propriedade verifica-se no momento da
concentração da obrigação. A concentração da obrigação
genérica dá-se, em regra, com o cumprimento da mesma.
Nesse momento, a obrigação passa de genérica a específica.
Esta asserção retira-se do artigo 540.º, que refere que
«enquanto a prestação for possível com coisas do género
estipulado, não fica o devedor exonerado pelo facto de
perecerem aquelas com que se dispunha a cumprir». Assim,
até ao cumprimento da obrigação, e enquanto ele for possível
com coisas do género estipulado, o perecimento de outras do
mesmo género com as quais o devedor pensava cumprir, não
obsta a que ele recorra a outras coisas, dentro do género, para
realizar a prestação. É por isso que a concentração da
obrigação, ou seja, a sua passagem de genérica a específica,
só se dá, em regra, no momento do cumprimento. Porém, o
artigo 541.º CC, que tem como epígrafe «concentração da
obrigação», enumera quatro situações nas quais, segundo o
disposto no mesmo, a obrigação se concentrará antes do
cumprimento. Vejamo-las: a primeira situação que o artigo
541.º consagra como exceção à concentração da obrigação no
momento do cumprimento é o acordo das partes. Nãos nos
parece, porém, que se trate de uma verdadeira exceção.
Tratar-se-á, sim, da mera convolação de uma obrigação
genérica em obrigação específica. Na segunda situação prevê-
se a concentração da obrigação antes do cumprimento
quando o género se extinguir a ponto de restar apenas uma
das coisas nele compreendidas. Nesta situação, a obrigação
genérica transforma-se em específica por facto da natureza: é
a própria natureza das coisas que determina que a obrigação
mais não possa ser genérica, pois, a partir do momento em
que só resta uma das coisas compreendidas no género, a
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obrigação torna-se, naturalmente, determinada. A terceira
situação que a lei prevê como exceção à concentração da
obrigação no momento do cumprimento da mesma é a mora
do credor. Contudo, não nos parece que seja verdadeiramente
uma situação de concentração da obrigação antes do
cumprimento. Se o devedor entretanto, e após a mora, optar
por cumprir a obrigação com outras coisas do mesmo género,
mas diferentes daquelas com que se dispôs inicialmente a
cumprir, pode fazê-lo, e o credor não tem o direito de negar
o cumprimento. Assim, ao referir a situação de mora como
exceção à concentração da obrigação no momento do
cumprimento, o que o artigo 541.º CC vem determinar é, na
verdade, a extensão do regime do artigo 815.º CC à situação
de mora por, sem motivo justificado, não aceitar a prestação
que lhe é oferecida nos termos legais ou não praticar os atos
necessários ao cumprimento dessa obrigação (artigo 813.º CC),
então, transfere-se para si o risco do preço. Ou seja, como não
houve concentração da obrigação por efeito da mora do
credor, a propriedade não se transferiu verdadeiramente, e,
por isso, não se transferiu o risco da coisa, tendo-se, contudo,
transferido o risco do preço. Destarte, se, após a mora do
credor, as coisas com que o devedor se dispôs a cumprir
sofrerem uma deterioração ou se perderem, por causa não
imputável a dolo do vendedor, o comprador terá, ainda assim,
de pagar o preço das mesmas. A última situação que a lei
menciona como geradora da concentração da obrigação antes
do cumprimento é a prevista no artigo 797.º CC, que será,
mais à frente, objeto de análise detalhada. Contudo, a previsão
deste artigo não encerra, também, uma exceção à
concentração da obrigação no momento do cumprimento,
pois nele prevêem-se situações em que o cumprimento da
obrigação se dá, precisamente, com a entrega ao
transportador ou expedidor da coisa ou à pessoa indicada
para a execução do envio. É esse o lugar do cumprimento
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195
referido na norma. Assim, neste caso, a concentração da
obrigação ocorre, precisamente, com o cumprimento.
Podemos, pois, para já, concluir que, na venda de coisas
genéricas, a transferência da propriedade se verifica com a
concentração da obrigação sendo que esta ocorre, regra geral,
com o cumprimento da obrigação; só assim não é, de acordo
com o que expusemos acima, nos casos de extinção do género
ao ponto de restar apenas o quantitativo com que o devedor
se obrigava a cumprir. Nesse momento, ainda que não tenha
havido cumprimento, a obrigação genérica concentra-se, pois
a coisa passa a ser determinada. Mas, a situação regra é a de
que a obrigação genérica se concentra com o cumprimento.
Sendo assim, o direito transfere-se, também, em regra, com o
cumprimento da obrigação. Logo, e aplicando o artigo 796.º,
n.º1 Cc, podemos referir que nas obrigações genéricas, o risco
– tanto o risco do preço como o risco da coisa – se transfere,
em regra, com o cumprimento da obrigação. Assim, podemos
concluir o seguinte: sendo as vendas marítimas,
maioritariamente, vendas de coisas genéricas, então – e caso
se aplique o Código Civil, por as partes não terem, elas
próprias, regulado a matéria do risco –, o risco transferir-se-á
do vendedor para o comprador, em regra, no momento em
que se dá o cumprimento da obrigação, pois só nesse
momento ocorre a sua concentração – exceto, como já
referimos, nos casos em que o género se extinga ao ponto de
restar apenas uma das coisas nele compreendidas, ou então
nos casos de mora do credor ou de acordo das partes (artigo
541.º CC), casos em que o risco de transfere antes do
cumprimento – e só aquando desta se dá a transferência do
direito, sendo que foi esse o momento designado pelo
legislador para determinar a transferência do risco (artigo
796.º, n.º1 CC). Nas obrigações indeterminadas que não sejam
genéricas a transferência de propriedade e, portanto, do risco,
ocorre, nos termos do artigo 408.º, n.º2 CC, quando a coisa
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indeterminada for determinada com conhecimento de ambas
as partes. Será o caso das obrigações alternativas, previstas no
artigo 543.º CC. Para as obrigações genéricas não será
necessário, como vimos, o conhecimento de ambas as partes.
Precisamente por isso, o artigo 408.º, n.º2 CC, exceciona do
regime da transferência da propriedade das coisas
indeterminadas a matéria das obrigações genéricas, referindo
«sem prejuízo do disposto em matéria de obrigações
genéricas».
iii. Compra e venda mercantil: como já referimos, as vendas
marítimas serão maioritariamente vendas comerciais. Importa,
portanto, proceder à verificação do regime da compra e venda
comercial, a fim de indagarmos a existência de alguma
especificidade em matéria de risco. A venda comercial vem
regulada nos artigos 463.º a 476.º CCom. É importante ter em
conta que, aquando da elaboração do Código Comercial, o
Código Civil em vigor era o de 1867. Assim, o regime da
compra e venda comercial foi gizado por referência ao regime
vigente para a compra e venda no Código Civil de Seabra.
Acontece, porém, que o Código Civil de 1966, nas normas
respeitantes ao contrato de compra e venda, veio estabelecer,
com generalidade, aquilo que já resultava de algumas normas,
relativas àquele contrato, no Código Comercial, retirando-lhes,
assim, importância. De qualquer forma, será importante
averiguar se das modalidades específicas que vêm
consagradas no Código Comercial podemos retirar
especificidades relativamente à transferência do risco. Para
tanto, temos de nos centrar num aspeto: saber se alguma das
modalidades da compra e venda comercial existe
especificidade relativamente ao regime da transferência da
propriedade, pois mesmo no campo do Direito Comercial é
aplicável o artigo 796.º, n.º1 CC (artigo 3.º CCom) e, portanto,
a transferência do risco verifica-se com a transferência da
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propriedade. É necessário averiguar, então, se nas várias
modalidades das vendas comerciais existem momentos de
transferência da propriedade diferentes daquele que se
estabelece no artigo 408.º, n.º1 CC. De facto, temos situações
de vendas comerciais em que a transferência da propriedade
ocorre depois da celebração do contrato. Refere o artigo 469.º
CCom que «as vendas feitas sobre amostra da fazenda, ou
determinando-se só uma qualidade conhecida ao comércio,
consideram-se sempre como feitas debaixo da condição de a
coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada».
A venda sobre amostra ou por designação de padrão acabou
por ser regulada pelo Código Civil, no artigo 925.º (venda
sujeita a prova). No nosso entender, a condição a que se refere
o artigo 469.º CCom é uma condição suspensiva, a menos que
as partes lhe dêem a natureza de resolutiva. Fazemos esta
interpretação com base na leitura do artigo 471.º CCom, que
dispõe que a condição referida no artigo 469.º CCom haver-
se-á por verificada e o contrato como perfeito se o comprador
examinar a coisa comprada no ato de entrega e não reclamar
contra a sua qualidade, ou, não a examinando, não reclamar
dentro de oito dias. Ora, se um contrato fica perfeito por
verificada uma condição é porque essa condição é suspensiva.
De resto, o artigo 925.º CC veio, também, estabelecer em
relação à venda sujeita a prova que, à partida, a condição é
suspensiva, a menos que as partes estabeleçam que é
resolutiva. Ora, o caráter suspensivo da condição tem efeitos
ao nível do regime da transferência da propriedade: quando
um negócio é sujeito a condição suspensiva, o mesmo só
produz os seus efeitos depois de verificada a referida condição
(artigo 270.º CC). Desta forma, a transferência da propriedade
– e isto partindo do princípio de que as coisas vendidas são
determinadas, pois se forem indeterminadas, como já
explicámos, a transferência da propriedade ocorre, de
qualquer modo, em momento posterior ao da celebração do
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contrato –, dar-se-á depois de verificada a condição, pois só
após a sua verificação é que o contrato de compra e venda
produz os seus efeitos. Assim sendo, nos casos de venda sobre
amostra ou por designação de padrão, o risco do preço
transfere-se, em regra, no momento em que se cumpre a
obrigação de entrega, tal como já tínhamos visto para as
obrigações genéricas. E isto porque é no momento do
cumprimento da obrigação de entrega que o comprador
procederá ao exame das coisas compradas e que, caso não
reclame contra a sua qualidade, a condição se considera
verificada e, consequentemente, a propriedade transferida.
Poderá, ainda assim, nas vendas sob amostra ou por
designação de padrão, a transferência do risco ocorrer em
momento posterior ao do cumprimento da obrigação de
entrega, se o comprador, apesar deste cumprimento, não
examinar as coisas. Neste caso só passados oito dias, se
verifica a condição e, assim, a transferência do risco (artigo
471.º CC). Vejamos agora as compras de coisas que não
estejam à vista nem possam designar-se por um padrão,
previstas no artigo 470.º CCom. Tais compras consideram-se
sempre como feitas debaixo da condição de o comprador
poder distratar o contrato, caso, examinando-as, não lhe
convenham. Este regime foi corroborado pelo Código Civil, no
artigo 924.º (segunda modalidade de venda a contento).
Entendemos que, neste caso, e face à redação do artigo 924.º,
não existe qualquer condição, quer suspensiva, quer resolutiva.
Temos, antes, um contrato eficaz logo que celebrado, mas nos
termos do qual o comprador fica com o direito, caso a coisa
não lhe agrade, de proceder à sua resolução. Fica, portanto,
ao livre arbítrio do comprador a resolução do negócio. Neste
caso, não há, pois, nenhuma especialidade relativamente à
transferência do risco: se a coisa, que não esteja à vista e que
não possa designar-se por um padrão, for indeterminada,
então segue o regime da transferência da propriedade para
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as coisas indeterminadas, já analisado acima, passando o risco
no momento dessa transferência; se for determinado, o risco
transfere-se, em regra, com a celebração do contrato, pois
nesse momento se transfere o dinheiro. O Código Comercial
consagra, ainda, uma outra modalidade de venda comercial:
são as vendas por conta, peso ou medida, previstas no artigo
472.º CCom. Porém, e como refere Menezes Cordeiro, este
tipo de vendas segue o regime das obrigações genéricas,
previsto nos artigos 539.º a 542.º CC, pelo que nada há a
acrescentar ao que acima foi dito. São estas as especificidades
que encontramos na compra e venda mercantil. No entanto,
as várias modalidades de compra e venda nada de novo
trazem relativamente ao regime geral da transferência do risco,
conforme estabelecido no Código Civil: com ele se terão, pois,
de articular. À primeira vista, o artigo 796.º, n.º1, ao determinar
a transferência do risco coevamente com a transferência da
propriedade, parece consagrar um regime pouco consentâneo
com a lógica das transações comerciais. Não parece, prima
facie, um regime equitativo, pois, pareceria mais adequado
que se transferisse o risco do preço apenas quando as coisas
vendidas estivessem na posse do comprador, uma vez que só
a partir desse momento este as pode controlar. Acontece,
porem, que, por causa de regras de transferência do direito
de propriedade que se afastam do princípio da
consensualidade refletido no artigo 408.º, n.º1 CC –
nomeadamente as relativas às obrigações indeterminadas e às
modalidades de compra e venda mercantil –, associando essa
transferência, maxime, ao cumprimento da obrigação de
entrega, a regra do artigo 796.º, n.º1 CC acaba por se adaptar
ao Direito comercial e à compra e venda mercantil, pois o risco
transferir-se-á, mormente, como vimos, com a entrega. Há que
ressalvar, contudo, desde já, que a regra geral – que
articulámos acima com o regime das obrigações genéricas e
da compra e venda mercantil – da transferência do risco do
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preço com a transferência do direito de propriedade, sofre,
porém, exceções, importantíssimas, nos n.º2 e 3 do artigo
796.º e no artigo 797.º CC. Para além disso, como veremos, e
pela forma como interpretamos o artigo 797.º CC, da qual
daremos conta mais à frente, em todas as vendas com
expedição – e não somente nas vendas com expedição simples,
como literalmente resultaria da norma – o risco se transferirá,
não com a transmissão do direito, mas com o cumprimento
da obrigação de entrega, pelo que grande parte de
argumentação que temos expendido para demonstrar que,
apesar da regra do artigo 796.º, n.º1, o risco se transfere, o
mais da s vezes, com o cumprimento da obrigação de entrega,
acaba por perder alguma importância para as vendas
marítimas – e para todas as vendas com expedição –, na
medida em que para estas – quer as diretas, quer as indiretas
– aplicaremos o artigo 797.º, que prevê como momento da
transferência do risco aquele em que se cumpre a obrigação
de entrega da coisa.
iv. Venda sobre documentos: esta modalidade de venda é
regulada nos artigos 937.º e 938.º CC. A venda marítima
poderá ser uma venda sobre documentos, na medida em que
do contrato de transporte de mercadorias por mar decorre
que o transportador deve emitir um conhecimento de carga,
documento representativo da mercadoria, sendo que, caso tal
resulte do contrato de compra e venda, a entrega deste
documento pode substituir a entrega da própria mercadoria
(artigo 937.º CC). Cabe, portanto, ver que especialidade o
artigo 937.º, ao estabelecer o cumprimento da obrigação de
entrega com a entrega do título representativo da mercadoria,
poderá ter relativamente à transferência do risco, tendo em
conta a regra geral ínsita no artigo 796.º, n.º1 CC. Se a coisa
for determinada, a transferência do risco na venda sobre
documentos dar-se-á com a celebração do próprio contrato,
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pelo que o problema se põe apenas nas situações – que vimos
anteriormente – em que a transferência do risco ocorre com
o cumprimento da obrigação de entrega, em virtude de só
nesse momento se transmitir verdadeiramente a propriedade.
Ora, aplicando o artigo 937.º CC a todas as situações nas quais
o risco ocorre com o cumprimento da obrigação de entrega,
concluímos que a entrega dos documentos operará tal
transferência.
v. Venda de coisa em viagem: na secção relativa à venda sobre
documentos vem prevista, no artigo 938.º CC, a venda de coisa
em viagem. Esta verifica-se quando, no momento em que é
celebrado o contrato de compra e venda, a coisa vendida está
em trânsito. O artigo 938.º prevê, no que à transferência do
risco na venda de coisa em viagem diz respeito, um regime
especial relativamente à regra geral prevista no artigo 796.º,
n.º1 CC. Se a coisa em viagem for objeto de um seguro contra
os riscos do transporte, então o risco transfere-se no
momento em que a coisa for entregue ao transportador, ou
seja, num momento prévio o da própria transferência da
propriedade (artigo 938.º, n.º1, alínea a) CC). A razão de ser
desta regra prende-se com o facto de o vendedor ter
celebrado um contrato de seguro contra os riscos de
transporte. Assim, e como referem Pires de Lima e Antunes
Varela, na verdade, o que se vende é aquilo que foi entregue
ao transportador, ou a respetiva indemnização do seguro, se
a coisa se perdeu ou deteriorou, e não aquilo que existe, e tal
como existe, no momento do contrato. Como o comprador
adquire uma coisa que é objeto de um contrato de seguro de
transportador de coisas, não considerou o legislador razoável
fazer depender a transferência do risco da transferência da
propriedade, pois já antes dessa propriedade ter sido
transferida o objeto estava segurado.
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vi. Vendas marítimas sujeitas a termo ou condição:
debrucemo-nos, agora, sobre as situações em que a coisa
vendida fica em poder do alienante, em consequência de
termo constituído a seu favor. Como referimos, a propósito
do n.º1 do artigo 796.º, a regra de distribuição ou de
transmissão do risco é criticável, na medida em que não
parece muito adequado fazer correr sobre alguém um risco
relativamente a uma coisa que ainda não está em seu poder.
De facto, a solução mais justa e adequada – que vigora por
exemplo, no Direito Alemão – seria a de fazer coincidir a
transferência do risco com o momento em que se cumpre a
obrigação de entrega, pois, nesse momento, o comprador
passa a ter a coisa em seu poder, sendo, a partir daí, natural
exigir que ele tenha de pagar o preço, não obstante a coisa
sofrer uma deterioração ou se perder. Todavia, a verdade é
que, como já dissemos, conjugando o artigo 796.º, n.º1 CC
com as regras da venda comercial e das obrigações genéricas,
facilmente nos apercebermos de que, afinal, a eventual
injustiça do preceito é quase esvaziada por aquelas regras,
que fazem coincidir o momento da transferência da
propriedade com o momento em que se considera cumprida
a obrigação de entrega. Mas, para além disso, a hipótese de
a transferência do risco não se dar coevamente com a
celebração do contrato verifica-se, também, nos casos previsto
no artigo 796.º, n.º2 CC. Refere-nos a norma que se «a coisa
tiver continuado em pode do alienante em consequência de
termo constituído a seu favor, o risco só se transfere com o
vencimento do termo ou a entrega da coisa». Consideramos,
contudo, que está em causa no referido preceito uma situação
de responsabilidade civil e não de inversão do risco. E isto
pela situação de responsabilidade civil e não de inversão do
risco. E isto pela simples razão de que o n.º2 do artigo 807.º
CC atribui ao devedor a possibilidade de provar que o credor
teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido
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cumprida em tempo. Esta possibilidade harmoniza-se mal com
a lógica do risco. Quem tem o risco não deixa de o ter por
provar que os danos teriam ocorrido mesmo sem um qualquer
seu comportamento. Quem suporta um risco, suporta-o
sempre, independentemente de provar seja o que for
relativamente à origem do danos. A responsabilidade é, porém,
objetiva pois ela ocorre mesmo que a perda ou deterioração
dos bens não seja imputável ao devedor (artigo 807.º, n.º1, in
fine CC). O artigo 807.º CC baseia-se na presunção de que a
impossibilidade do cumprimento da obrigação devida a facto
não imputável a qualquer das partes se verificou por causa da
mora e é, precisamente, por se tratar de uma presunção que
vem, depois, o n.º2 referir que «fica, porém, salva ao devedor
a possibilidade de provar que o credor teria sofrido
igualmente os danos se a obrigação tivesse sido cumprida em
tempo». A mora do credor, prevista no artigo 815.º, tem, sim,
o efeito de inverter o risco. Neste caso, não vislumbramos
qualquer indício que nos aproxime de uma situação de
responsabilidade civil, diversamente do que ocorre no caso da
mora do devedor. Note-se, contudo, como, mais uma vez, se
encontra patente na lei a confusão entre risco e
responsabilidade civil. Refere o n.º1 do artigo 815.º CC que a
mora faz recair sobre o credor o risco de impossibilidade
superveniente da prestação que resulte de facto não
imputável a dolo do devedor. Parece, então, que se o facto
que provocar a impossibilidade superveniente da prestação
resultar de dolo do devedor, então o risco corre por sua conta.
Acontece que, caso o devedor seja causador doloso da
impossibilidade superveniente da prestação, então ele
incorrerá nos esquemas da responsabilidade civil.
b. O regime especial da transferência do risco nas vendas com
expedição:
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i. Venda com expedição simples e venda com expedição
qualificada: passemos agora à análise do artigo 797.º CC.
Refere esta norma que «quando se trate de coisa que, por
força da convenção, o alienante deva enviar para local
diferente do lugar do cumprimento, a transferência do risco
opera-se com a entrega ao transportador ou expedidor da
coisa ou à pessoa indicada para a execução do envio». Antes
de mais, torna-se imperioso averiguar a que tipo de situações
e aplica o preceito. Nos seus próprios termos, ele aplica-se
quando, por força do estipulado pelas partes, o alienante deva
enviar a coisa para local diferente do lugar do cumprimento.
A uma primeira leitura, a norma parece contraditória, pois se
alguém tem o dever de enviar uma coisa para um
determinado local, é porque esse é o lugar do cumprimento;
ter o dever de enviar uma coisa para local diferente do lugar
do cumprimento parece, pois, uma contradição nos próprios
termos. Mas não. O que esta em causa são situações em que
o vendedor se obriga apenas a entregar a coisa ao
transportador (cumprindo, então, a sua obrigação de entrega),
sendo que este, naturalmente, a irá enviar para local diferente
do lugar do cumprimento. O local de cumprimento é, portanto,
o local de expedição. O legislador referiu-se, portanto, no
artigo 797.º, às chamadas vendas com expedição simples.
Podemos definir venda com expedição simples como o
contrato de compra e venda, que surge funcionalmente ligado
a um contrato de transporte de mercadorias, pelo qual se fará
chegar a coisa até ao comprador, mas em que, nos termos
daquele contrato, é estipulado que a prestação da coisa se
realiza com a entrega ao transportador. Não é exclusivamente
necessário, para que se fale de venda com expedição simples,
que tenha de ser o vendedor a celebrar o contrato de
transporte; é necessário, sim, que o vendedor tenha de enviar
a mercadoria para um local diferente do lugar do
cumprimento, a pedido do comprador. A característica
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essencial da venda com expedição simples é, portanto, a de
que o lugar do cumprimento é diferente do lugar para onde
a mercadoria irá ser levada. Para compreender melhor a noção
de venda com expedição simples será importante distingui-la
da venda com expedição qualificada. Esta ocorre quando é
celebrado um contrato de compra e venda, os termos do qual
o vendedor apenas cumpre a sua obrigação de entrega, não
já com a simples entrega ao transportador, mas sim com a
entrega ao próprio comprador. Trata-se de uma venda que
implica a celebração de um contrato de transporte, sendo que
o vendedor tem o dever de proceder à entrega da mercadoria
no local de destino do transporte e não apenas no local onde
se dá o seu início. Ora, o artigo 797.º, literalmente, prevê
apenas as vendas com expedição simples, porquanto refere
que, por força da convenção, o alienante deva enviar a coisa
para local diferente do lugar do cumprimento; não é o que se
passa nas vendas com expedição qualificada: nestas, o local
para onde o alienante deve enviar é, precisamente, o lugar do
cumprimento. Podemos, em conclusão, dizer que nas vendas
marítimas simples ou indiretas o vendedor marítimo assume
apenas a obrigação de entregar as mercadorias ao
transportador no porto de embarque, e a esse tipo de vendas
se refere literalmente o artigo 797.º CC. Nas vendas marítimas
qualificadas ou diretas, o vendedor, nos termos do contrato,
obriga-se a proceder à entrega das mercadorias no porto de
destino.
ii. Dissociação da transferência do risco face à transferência
da propriedade: o artigo 797.º CC consagra uma regra
especial de transferência do risco relativamente àquela que
vem prevista no n.º1 do artigo 796.º. Enquanto nos termos
deste preceito, o risco se transfere com a transmissão da
propriedade, na regra contida no artigo 797.º «a transferência
do risco opera-se com a entrega ao transportador ou
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expedidor da coisa ou à pessoa indicada para a execução do
envio». Nesta norma consagra-se, portanto, como momento
da transferência do risco o do cumprimento da obrigação de
entrega. Não se compreende porque razão, ou com que
critério, no artigo 797.º, o legislador se afasta da regra que
estatui no artigo 796.º, n.º1. De facto, como resultará claro
mais abaixo, o artigo 797.º parece destoar no nosso sistema72.
Uma tentativa de com ele harmonizar a norma, poderia passar
por defender a sua aplicação apenas à alienação de coisas
indeterminadas, em que a transmissão do direito real se dá
com o cumprimento da obrigação de entrega e, portanto, com
a concentração, de uma obrigação genérica ou alternativa73.
Porém, não estamos certos de que o artigo 797.º se aplique
apenas às obrigações indeterminadas. Na verdade, não
dizendo o legislador expressamente que a norma se aplica às
obrigações genéricas e estando ela, sistematicamente, inserida
numa subsecção dedicada à impossibilidade do cumprimento
e mora não imputáveis ao devedor, em sede geral, parece-nos
que se trata de uma norma aplicável a todos os contratos
alienatórios. Consagrando-se, no artigo 797.º, o momento da
transferência do risco, como aquele em que se cumpre a
obrigação de entrega, essa transferência tanto pode ser
72 Esta afirmação não significa que tenhamos uma visão unitária do fenómeno de distribuição do risco contratual assente no brocardo res perit dominus. 73 São vários os autores que defendem a aplicação do artigo 797.º apenas às obrigações genéricas: Menezes Cordeiro, Paulo Mota Pinto ou Ribeiro de Faria. De facto, se atendermos que esta norma se aplica apenas às obrigações genéricas, então a sua razão de ser está explicada: tem com objetivo anular quaisquer dúvidas relativamente expedição simples. É que como nestas vendas a obrigação genérica nas vendas com a entrega ao transportador, a obrigação concentra-se nesse momento, e é importante referi-lo, pois nas vendas com expedição qualificada, em que o vendedor se obriga a entregar a coisa no destino, a concentração da obrigação só se dá quando a coisa é aí entregue. Assim para que dúvidas não houvesse, o legislador teria consagrado esta norma; seria, portanto, essa a sua explicação. Evita-se, assim, a incoerência sistemática com o artigo 796.º, n.º1. Quanto às obrigações alternativas, diz-se no sentido de que o artigo 797.º se aplica apenas às obrigações alternativas veja-se Jorge Morais Carvalho que refere, acertadamente, ser o artigo 797.º inútil relativamente às obrigações genéricas, pois que, como vimos acima, nestas o risco transferir-se-ia, de qualquer forma, com a entrega, ao passo que no caso das obrigações alternativas seria, ainda, necessário o conhecimento de ambas as partes (artigo 408.º, n.º2, ex vi artigo 796.º, n.º1), pelo que a utilidade do artigo 707.º seria a antecipação do momento da transferência do risco, nas obrigações alternativas, para o momento da entrega ao expedidor.
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anterior como posterior à transferência da propriedade. Se
estivermos perante uma coisa determinada, então, o risco
transferir-se-á, em princípio, em momento posterior ao da
transferência da propriedade, isto porque na venda de coisa
determinada a propriedade transfere-se com o contrato
(artigo 408.º, n.º1), enquanto o risco se irá transferir, apenas,
quando a mercadoria for entregue ao transportador. Ora, isso
sucederá, em regra, em momento posterior ao da celebração
do contrato. Mas pode, também, acontecer que, com a
aplicação do artigo 797.º, a transferência do risco seja anterior
à transferência da propriedade. Nas prestações
indeterminadas, que não sejam genéricas, a propriedade
transfere-se quando a coisa for determinada com
conhecimento de ambas as partes (artigo 48.º, n.º2). Ora,
nestes casos, quando a coisa é entregue ao transportador e
este não tem poderes para representar o comprador, não se
considera que a coisa tenha ficado determinada, pois não
houve, ainda, o conhecimento do comprador, que ocorrerá
posteriormente. Assim, neste caso de coisas indeterminadas,
que não genéricas, apesar de o risco se transferir com a
entrega da mercadoria ao transportador, a propriedade só se
transferirá depois, ou seja, quando a coisa for determinada
com conhecimento do comprador. Pode acontecer, também,
que a regra do artigo 797.º acabe por determinar que a
transferência do risco ocorra em momento idêntico ao que
resultaria da aplicação do artigo 796.º, n.º1. Verifica-se esta
situação, por exemplo, nas obrigações genéricas. Nestas, dá-
se a concentração da obrigação, nos termos do artigo 797.º,
ex vi do artigo 541.º, precisamente no momento em que se
dá a transferência da propriedade (artigos 408.º, n.º2, 541.º e
797.º). Mas, nesses casos, também o risco se transfere, nos
termos do artigo 797.º, quando a coisa é entregue ao
transportador. Ora, então, para as obrigações genéricas, o
artigo 797.º não vem acrescentar nada relativamente ao que
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resultaria do artigo 796.º, n.º1. Todavia, mantém-se a
interrogação: porque é que esta norma em operar um regime
especial relativamente ao artigo 796.º, n.º1? Tentamos indagar
nas origens do artigo 797.º o seu eventual fundamento.
iii. Análise crítica do artigo 797.º: o artigo 797.º tem como fonte
inspiradora o §447.º n.º1 BGB, o qual trata, precisamente, da
transferência do risco nas vendas com expedição simples.
Contextualizemos este último preceito. Ele insere-se num
sistema em que a propriedade se transfere, conforme já
referimos, através de um negócio abstrato pelo qual se opera
a tradição da coisa – sistema do modo – e em que a passagem
do risco se dá, naturalmente – e em coerência com o referido
sistema –, com a entrega da coisa venda ao comprador, tal
como resulta do §446.º BGB. O §447.º BGB, que trata
especificamente da passagem do risco no caso de venda com
expedição, está sistematicamente inserido imediatamente
após a norma sobre a passagem do risco em geral ( o §446.º).
Mas, na verdade, parece que ele não acrescenta nada
relativamente ao que já resultava do §446.º. Vejamos.
Determina o §447.º que na venda com expedição simples, isto
é, na venda em que o vendedor, a pedido do comprador, deva
enviar a coisa vendida para um local diferente do lugar do
cumprimento, o risco passa com a entrega ao transportador.
Porém, isso resultava já do próprio §446.º. E resultava já deste
artigo, pela decisiva razão de que, segundo a sua estatuição,
o risco passa para o comprador com o cumprimento da
obrigação de entrega. Ora, o local da obrigação de entrega é,
de acordo com a previsão do §447.º - e porque as partes o
determinaram, pois estabelece a norma alemã «se o vendedor,
a pedido do comprador» –, precisamente, o local da expedição,
nomeadamente o porto de embarque. Ora, se o §447.º BGB
não vem acrescentar nada relativamente à regra geral
resultante do §446.º, qual é, então, a sua utilidade? Não muita.
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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Estamos, sem dúvida, perante uma redundância normativa,
que tem, a nosso ver, a intenção de tornar claro que, nas
vendas com expedição simples, apesar de a mercadoria ter de
ser transportada para determinado local, não é esse o local do
cumprimento e, naturalmente, não é aí que se dá a passagem
do risco. Assim, na nossa opinião, o legislador alemão apenas
consagrou o n.º1 do §447.º para que dúvidas Não houvessem
relativamente ao momento da passagem do risco nas vendas
com expedição simples. Podemos, portanto, concluir que o
§447.º BGB tem uma função essencialmente clarificadora do
momento da passagem do risco. Ele não vem operar qualquer
desvio à regra geral, que resulta do §446.º, mas antes tornar
claro que nas vendas com expedição simples o risco se
transfere quando as coisas são entregues ao transportador.
Deste modo, e aplicando o Direito alemão ara decidir da
transferência do risco nas vendas com expedição qualificada,
podemos concluir que essa transferência ocorre com a entrega
das coisas vendidas no porto de desembarque. Isto porque,
nestas vendas, como já explicámos, a obrigação de entrega se
cumpre no porto de desembarque (§446.º). Concluímos,
portanto, que apesar de pouco útil, o §47.º harmoniza-se
perfeitamente com o sistema de que faz parte, porque a regra,
nesse sistema, é a da transferência do risco com o
cumprimento da obrigação de entrega (£446), regra que o
referido preceito corrobora. Ora, o legislador português
importou, a nosso ver mal, esta solução do BGB. Se ela se
harmoniza – nos termos acima expostos – com o sistema a
que pertence, a verdade é que no sistema português, ela gera
diferenças de tratamento inadmissíveis. De facto, no nosso
sistema, esta solução está em desarmonia com a regra
constante do n.º1 do artigo 796.º, o que gera uma distorção
valorativa grave nas vendas de coisas determinadas, não
sujeitas aos n.º2 e 3 do artigo 796.º. Como bem refere Nuno
Aureliano,
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«não existe uma completa unidade valorativa
entre as soluções do n.º2 do artigo 796.º e do
artigo 797.º. De facto, se no n.º2 do artigo 796.º
o risco é suportado pelo alienante em virtude do
interesse na detenção da coisa posteriormente à
transmissão do direito real sobre ela, o suporte
pelo alienante do risco contratual até à entrega
ao transportador já pressupõe a preponderância
do interesse do adquirente, a satisfazer com a
entrega da coisa ao transportador, e não com a
produção do direito real pelo contrato».
Não há, de facto, nenhuma razão que justifique a diferença de
tratamento. Se numa situação o risco se transfere com o
cumprimento da obrigação de entrega, então, na outra, por
maioria de razão, o risco se deveria transferir, também, com a
prestação da coisa. Resulta, portanto, claro do exemplo dado
que a importação acrítica do §447.º BGB gerou uma distorção
sistemática. A norma constante do artigo 797.º CC, similar
àquela que consta do §447.º BGB, faria todo o sentido num
sistema que, como o alemão, determinasse como regra a
transferência do risco com o cumprimento da obrigação de
entrega. Porém, não é essa a regra do nosso sistema, pelo que
o artigo 797.º está em completa desarmonia com ele74.
iv. Aplicação extensiva do artigo 797.º à venda marítima com
expedição qualificada: vista a contradição valorativa a que o
regime consagrado no artigo 797.º dá origem, torna-se
necessário corrigi-lo por via de uma interpretação que o
coloque em harmonia com o sistema. Existem três vias
possíveis de o interpretar de molde a garantir a sua harmonia
74 E, repetimos, esta conclusão a que chegamos não radica numa visão unitária do fenómeno de distribuição do risco contratual assente no paradigma do res perit domino. Mesmo assumindo o fenómeno de distribuição do risco contratual como sujeito, não a um princípio básico regulador, mas a diferentes princípios, não se pode deixar de constatar a incompatibilidade, ainda que ela apenas se manifeste em casos contados, do artigo 796.º, n.º1, com o artigo 797.º
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com o sistema jurídico-civil. A primeira, que já foi referida,
consistiria em considerar que o artigo 797.º apenas se aplicaria
às obrigações indeterminadas. Interpretada assim, a norma
não traria quaisquer problemas de coerência sistemática, pois
na venda de coisa indeterminada o risco apenas se transfere,
como demonstrámos, após o cumprimento da obrigação de
entrega, pelo que o referido preceito estaria em harmonia com
essa regra. Rejeitamos, porém, essa tese, pelas razões já
apontadas. De facto, literalmente, nada na norma nos faz crer
que ela se aplique apenas às obrigações indeterminadas,
sendo que a sua inserção sistemática, numa subsecção
dedicada à impossibilidade do cumprimento – de toda e
qualquer obrigação, que não apenas das indeterminadas – e
mora não imputáveis ao devedor, depõe no sentido de a
mesma ser aplicável a todos os contratos alienatórios. Acresce
que, quanto às obrigações indeterminadas genéricas, a norma
é inútil, na medida em que vem corroborar aquilo que já
resulta da aplicação do artigo 796.º, n.º1, em conjunto com os
artigos 408.º, n.º2 e 541.º, todos do Código Civil. Uma
segunda via passaria por sustentar que o artigo 797.º apenas
se aplica às situações em que, de acordo com as disposições
primariamente competentes, a transferência do risco dependa
da entrega da coisa ao adquirente: o seu objetivo seria, então,
o de antecipar o momento da transferência do risco. Parece
ser esta a posição sustentada por Maria de Lurdes Pereira ao
defender que a aplicação do artigo 797.º apenas terá lugar no
caso de «dívidas de envio ou de remessa cujo regime do risco,
de acordo com a disposição primariamente competente,
dependeria da entrega da coisa ao adquirente», concluindo,
depois, pela aplicação da norma não só às obrigações
genéricas, como também aos casos que, a não existir o artigo
797.º, se subsumiria à previsão do artigo 796.º, n.º2. Assim, é
uma posição coerente e conciliadora do artigo 797.º com o
artigo 796.º, n.º1, evitando, por cortar o mal pela raiz,
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incoerências sistemáticas e axiológicas, como aquela que
demonstrámos acima. Ela presta-se, contudo, às mesmas
críticas que fizemos à primeira via de interpretação do artigo
797.º . Vejamos, então, a terceira via possível. Se na venda
marítima simples (venda com expedição simples), isto é,
naquela em que o vendedor se obriga a enviar a coisa ao
transportador, nos termos da letra do artigo 797.º, então, or
maioria de razão, na venda marítima qualificada (venda com
expedição qualificada), isto é, naquela em que o endedor se
obriga a entregar a coisa no local de destino, o risco não
deveria passar, nos termos do artigo 796.º, n.º1, com a
transferência da propriedade, mas antes com a entrega da
mercadoria ao comprador, nos mesmos termos em que passa
qnado a venda é de expedição simples. Parece-nos ser esta a
única solução adequada e sistematicamente coerente.
Propendemos, portanto, para a opinião de que as palavras do
artigo 797.º atraiçoaram o pensamento do legislador. Afigura-
se-nos que se quis incluir, no seu âmbito, todas as vendas que
postulassem transporte e, nomeadamente, as vendas
marítimas, quer simples, quer qualificadas. Para tal
entendimento recorremos, necessariamente, a uma
interpretação extensiva do artigo 797.º. Entendemos que a
restrição literal do artigo 797.º apenas a uma parcela das
vendas com expedição se deve, pura e simplesmente, ao facto
de a norma ter resultado, ao que parece, de uma tradução
literal do §447.º BGB. Sem prejuízo do exposto, recorde-se que,
na maior parte das vendas marítimas o risco se transfere com
o cumprimento da obrigação de entrega. É esse o regime das
obrigações genéricas, de algumas das modalidades que vimos
da venda mercantil e, ainda, dos casos subsumíveis aos n.º2 e
3 do artigo 796.º. Não será, por isso, necessária, em regra, a
interpretação extensiva do artigo 797.º para se obter uma
solução jurídica, nos termos da qual o risco na venda marítima
se transfira com o cumprimento da obrigação de entrega.
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Contudo, a interpretação que fazemos do artigo 797.º tem a
vantagem de diminuir a hipótese de soluções desastrosas.
7. A transferência do risco nos INCOTERMS: conforme já referimos, a análise
do regime da transferência do risco na venda marítima decorrente do Código
Civil, apesar de teoricamente interessante, principalmente para a boa
compreensão da problemática em jogo no presente estudo, assume pouca
relevância prática. Na grande maioria dos casos, a venda marítima é
acompanhada de cláusulas que preveem o regime da transferência do risco,
afastando, assim, as regras do Código Civil. Neste ponto, assumem particular
relevância os INCOTERMS. A venda marítima, como já tivemos oportunidade
de referir, tem subjacente um complexo articulado em que vários contratos
coexistem: reúne em si um contrato de transporte de mercadorias por mar,
um contrato de compra e venda, com frequência um contrato de seguro, e,
eventualmente, uma abertura de crédito documentário; sendo que todos os
regimes dos referidos contratos se relacionam e se interpretam. É, então,
precisamente para regular os diversos problemas, decorrentes da articulação
destas várias relações contratuais com o contrato de compra e venda, que
existem os INCOTERMS. Estes surgem, portanto, da necessidade de se
regulamentar de forma unitária estas operações – nomeadamente, a venda
marítima – que postulam a articulação de vários contratos, mas apenas
cingindo-se às relações entre comprador e vendedor. Como dissemos no
início do nosso estudo, um dos objetivos do mesmo é averiguar se, afinal, o
contrato de transporte de mercadorias por mar tem alguma influência no
regime da transferência do risco na venda marítima. Já tivemos oportunidade
– mesmo sem dar uma resposta conclusiva – de afirmar que essa influência
é meramente fática ou circunstancial e não jurídica. Ou seja, não existirá,
verdadeiramente, uma influencia do contrato de transporte, ao nível dos
efeitos jurídicos, no regime da transferência do risco na venda marítima. Por
outras palavras: não é das regras que brotam do contrato de transporte que
se vai decidir o momento da passagem do risco do vendedor para o
comprador. Porém, a verdade é que, a respeito da passagem do risco do
preço, quer as soluções consagradas pelo legislador, quer aquelas que estão
ínsitas nos INCOTERMS, quer, muitas vezes, as próprias cláusulas que as
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partes estipulam, são influenciadas pela existência fática de um contrato de
transporte. Quer dizer: o facto de haver um transporte, pelo qual se deslocará
a coisa vendida, do vendedor para o comprador, não é aleio a opções
legislativas como, por exemplo, a do artigo 797.º CC. Assim, a existência de
um transporte acaba, portanto, por influenciar mediatamente – através da
interferência nos comandos ius-positivos – as regras da transferência do risco
na compra e venda. Ora, os INCOTERMS são, precisamente, a maior evidência
de que o transporte de mercadorias exerceu e exerce a sua influência
circunstancial, nas regras que as próprias partes no contrato de compra e
venda, ao longo dos tempos, usaram e costumaram estipular: os INCOTERMS
são, essencialmente, uma compilação de usos e costumes comerciais. O
principal objetivo dos INCOTERMS é determinar dois aspetos fundamentais
das compras e vendas internacionais: por um lado, a parte que tem a
obrigação de providenciar pelo transporte das mercadorias vendidas; por
outro, o momento em que se dá a transferência do risco do preço do
vendedor para o comprador. Podemos, desde já, adiantar que o princípio
comum subjacente a todos os INCOTERMS, designadamente aos que se
referem especificamente à venda marítima, é o de que a passagem do risco
ocorre com o cumprimento da obrigação de entrega da mercadoria, tal
como se verifica no Direito alemão. O mesmo princípio, como afinal
acabámos por concluir, é refletido no Direito português, o que diz respeito
aos contratos de compra e venda com expedição – quer simples, quer
qualificada. A transferência do risco nos INCOTERMS é, pois, conforme
veremos, completamente alheia à transferência do direito de propriedade
sobre as coisas vendidas. Os INCOTERMS encontram-se estruturados por
ordem crescente das obrigações contratuais que impendem sobre o
vendedor. Quer dizer, desde o grupo E até ao D, as obrigações do vendedor
e o momento até ao qual ele suporta risco do preço agudizam-se. Iremos
analisar não só os termos FAS (Free Aloside Ship), FOB (Free On Board) –
refletores das vendas com expedição simples –, DES (Delivery Ex Ship) e DEQ
(Delivery Ex Quay) – refletores das vendas com expedição qualificada –,
exclusivamente marítimo, poderá ser aposto numa venda que, por implicar,
entre outros, o transporte marítimo, seja marítima. Analisaremos, também,
os termos CFR (Cost And Freight) e CIF (Cost Insurance Freight) que, apesar
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
215
de estruturalmente, no que à transferência do risco diz respeito, serem
próximos do termo FOB, assumem, na verdade, uma diferença relevante,
conforme veremos.
a. Grupo E (EXW): o grupo E é aquele que encerra uma menor
intensidade obrigacional para o vendedor. A inicial E é-o da palavra
ex, que significa partidas. Neste termo, o vendedor cumpre a sua
obrigação de entrega logo à partida, no local da produção ou fábrica,
sendo esse o momento em que o risco se transfere. É o termo que
contém a obrigação mínima para o vendedor. O grupo E tem apenas
um INCOTERM, o EXW, abreviatura da expressão ex works. Segundo
a previsão A4 deste INCOTERM, o vendedor cumpre a sua obrigação
de entrega quando, na data ou dentro do prazo acordados, colocar
a mercadoria à disposição do comprador, no local mencionado para
a entrega, sem carregamento em qualquer veículo transportador.
Grosso modo, a mercadoria será entregue na fábrica (nas instalações
doo vendedor), sendo o transporte alheio ao vendedor. É também
este, precisamente, o momento em que se dá a transferência do risco
do preço do vendedor para o comprador, pois como é referido em
B5, «o comprador suportará todos os riscos de perda ou avaria dos
bens», a partir do momento do cumprimento da obrigação de
entrega, nos termos de A4. Como podemos ver, o momento em que
ocorre a transferência do risco coincide, pois, com aquele em que se
considera cumprida a obrigação de entrega do vendedor. O termo
EXW prevê que o risco passa para o comprador no momento em que
os bens tenham sido colocados à disposição do comprador nas
instalações do vendedor. Acontece, porém, que há situações em que
se pode tornar difícil apurar qual o momento em que se considera
cumprida a obrigação de entrega, decisiva para definir o momento
da passagem do risco. Suponhamos uma hipótese em que o
comprador e o vendedor, numa venda marítima, tenham aposto o
termo EXW, acordando que a mercadoria seria colocada à disposição
do comprador no estabelecimento do vendedor durante um
determinado prazo, por exemplo, entre o dia 1 e o dia 5 de
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determinado mês. O vendedor, no dia 1, coloca a mercadoria no seu
estabelecimento à disposição do comprador, avisando-o desse facto.
Em que existência ou não do direito de o comprador determinar o
momento, dentro do período estipulado – do dia 1 ao dia 5 – para o
levantamento da mercadoria (previsão B7). Se esse direito existir,
então o risco só se transfere no dia 1 se o comprador tiver notificado
o vendedor de que esse seria o dia para a entrega. Se não o fez, o
risco não se transfere no referido dia, sendo que o comprador teria
até ao dia 5 para fazer a notificação do vendedor. Se não a fizer até
ao referido dia, entra em mora (do credor) e o risco transfere-se,
então, a partir desse momento, desde que, nesse caso, a mercadoria
esteja determinada (B5, 2.ª parte). Se o direito não existir, então o
risco transfere-se no momento em que, colocando o vendedor a
mercadoria à disposição do comprador, dentro do período estipulado,
o avisa desse facto, de acordo com A7. Contudo, se o vendedor não
avisar o comprador, de acordo com A7, que colocou a mercadoria à
sua disposição, o risco não se transfere, pois nesse caso não se pode
considerar que o devedor cumpriu integralmente a sua obrigação de
entrega: o aviso ao comprador, da colocação da mercadoria à sua
disposição, faz, naturalmente, parte da sua obrigação de entrega.
Assim podemos concluir que a existência do direito de determinar o
momento, dentro do período estipulado e/ou local exatos para o
levantamento da mercadoria, influencia decisivamente o momento da
transferência do risco. Segundo este termo, o carregamento e
transporte da mercadoria são, como já vimos, por conta e risco do
comprador. Podem, porém, as partes acrescentar-lhes a estipulação
«loaded upon departing vehicle», que significa, traduzido à letra,
carregado em veículo a sair. Neste caso, o carregamento do veículo
de recolha será feito por conta e risco do vendedor.
b. Grupo F (FCA, FAS, FOB): passemos agora à analise do grupo F, de
free. Neste grupo o vendedor terá a obrigação de entregar as
mercadorias ao transportador e não apenas, tal como no grupo E, de
as colocar à disposição do comprador nas suas instalações.
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i. FAS: comecemos, então, por analisar o termo FAS. Este termo
abrevia a expressão Free Alongside Ship ou livre ao longo do
navio. Estamos perante as chamadas vendas indiretas ou com
expedição simples ou ainda, contratos de embarque (shipment
contracts) ou de partida. Para começar, e em termos simples,
podemos dizer que, segundo a cláusula FAS, o vendedor
assumirá o risco do transporte até ao porto de embarque de
mercadorias, designadamente até à sua colocação ao lado do
navio. Refere a sua previsão A5 que «o vendedor deve, tendo
em conta o disposto em B5, suportar todo o risco de perdas
ou avarias da mercadoria até ao momento em que esta tiver
sido entregue, de acordo com o previsto em A5»,
mencionando esta última – que disciplina a obrigação de
entrega –, que «o vendedor deve colocar a mercadoria ao
longo do navio e no lugar de carga mencionado pelo
comprador, no porto de embarque designado, na data ou
dentro do prazo estipulados e de acordo com os usos desse
porto». Podemos, pois, concluir que, no termo FAS, o risco se
transfere para o comprador quando o vendedor entrega a
mercadoria ao longo do navio, na zona de carga do porto
mencionado pelo comprador e na data ou dentro do prazo
estipulados nos termos do contrato de compra e venda.
Temos, porém, para completar a análise, de atentar em B5,
previsão que estabelece a regra da transferência do risco,
afora, do prisma do comprador. Na sua primeira parte, em
sintonia com A5, refere que o risco se transfere para o
comprador quando a mercadoria for entregue de acordo com
o previsto em A4. Porém, a 2.ª parte da previsão B5 determina
a transferência do risco, independentemente do cumprimento
da obrigação de entrega, em quatro situações:
1. Quando na data acordada ou na data em que expire o
prazo estipulado para a entrega, a mercadoria não
tenha ainda sido entregue porque o comprador não
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notificou o vendedor com a antecedência suficiente do
nome do navio, do lugar de carga ou do prazo de
entrega exigido, conforme previsto em B7;
2. Na hipótese do navio ter chegado a tempo;
3. Na hipótese de o navio ter tido possibilidade de
receber a mercadoria;
4. Na hipótese de o navio ter encerrado ao carregamento
mais cedo do que a data notificada, em conformidade
com B7.
Contudo, para que o risco se transfira, nestas quatro hipóteses,
é necessário que, como refere a parte final de B5, «a
mercadoria esteja devidamente afetada ao contrato, ou seja,
claramente separada ou identificada de qualquer outra forma
como sendo a mercadoria objeto do contrato». Está em causa
a necessidade de determinação da mercadoria para que se
possa proceder à transferência do risco, pois se ela não está
determinada, significaria isso que se transferiria o risco do
preço sem se saber, afinal, com que mercadoria contar o
comprador, o que seria inadmissível. Consideremos, ainda,
uma situação peculiar. Pode acontecer que o porto, pelas suas
próprias condições e/ou por causa das dimensões do navio,
ou até por causa do tipo de mercadoria a ser transportada,
não permita que a mesma seja carregada diretamente do cais
para o navio, sendo necessário recorrer a pequenas
embarcações que assegurem o carregamento das mercadorias
entre o cais e o navio transportador. Refere Susana Maltez que,
nesses casos, «a obrigação de entrega só se considera
cumprida quando a mercadoria estiver efetivamente colocada
em embarcações, ao longo do navio», sendo que «o risco do
transporte por barcaças onera, deste modo, o vendedor, na
medida em que este transporte é anterior ao cumprimento da
obrigação de entregar». Lima Pinheiro parece defender a
mesma ideia ao referir que «quando o navio tem de carregar
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num fundeadouro, o vendedor tem de assegurar a colocação
da mercadoria no fundeadouro, em barcaças, a menos que as
partes estipulem que a entrega deve ser feita free on lighter,
caso em que o vendedor cumpre a obrigação de entrega com
a transposição da amurada da barcaça». Esta conclusão não
resulta, contudo, indubitavelmente do termo FAS. Somos da
opinião de que, se as partes apuserem este termo, e nada
mais acrescentarem, não é crucial defender que o risco se
transfere com a colocação da mercadoria nas embarcações
auxiliares. Isso atentaria contra a segurança jurídica. Na
verdade, o significado do termo FAS, no que à transferência
do risco diz respeito, na sua pureza, é bastante popular entre
os agentes do comércio internacional e não parece que as
partes lhe deem outro sentido que não o da transferência do
risco com a colocação da mercadoria no cais ao longo do
navio.. Defender que o risco, nestes casos, se transferiria com
a transposição da apurada das barcaças, seria introduzir o
critério do ship’s rail – do cais até às barcaças – tão
característico da venda FOB, numa venda FAS. Não podemos,
pois, concordar. Só assim não será, se as partes acordarem
claramente que o lugar de carga é efetivamente as barcaças,
operando-se, nesse caso, uma modelação no termo FAS.
Podemos, portanto, concluir que no termo Free Alongside
Ship o risco do preço se transfere com a colocação da
mercadoria ao longo do navio, no lugar de carga mencionado
pelo comprador e na data ou dentro do prazo estipulados
para o efeito. O risco transfere-se, ainda, independentemente
da entrega, nas situações referidas na previsão B5, que
correspondem a situações de mora do credor, por si, ou por
intermédio do seu auxiliar ou representante – o transportador.
ii. FOB: passemos, agora, à análise do termo FOB (Free On Board,
que significa Franco a Bordo). Lê-se na previsão A5 do termo
FOB o seguinte: «o vendedor deve, sem prejuízo do disposto
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em B5, suportar todo o risco de perdas ou avarias da
mercadoria até ao momento em que esta tiver transposto a
amurada do navio do porto de embarque designado». O
ponto crítico da transferência do risco em FOB é, portanto, o
designado ship’s rail. Este critério tem sido objeto de algumas
críticas. Contra a sua invocada artificialidade, proferiu Patrick
Arthur Devlin as seguintes palavras: «the ship’s rail has lost
much of it’s nineteeth centure significance. Oly the most
enthusiastic lawyer could watch with satisfaction the spectacle
of liabilities shifting uneasily as the cargo sways at the end of
a derrick across a notional perpendicular projecting from the
ship’s rail». Contra a sua alegada inadequação refere Lima
Pinheiro que «pareceria mais adequado que a passagem do
risco na venda FOB se desse no momento em que a
mercadoria é depositada em seguranca a bordo do navio, uma
vez que incumbe ao vendedor realizar a operação de
carregamento da mercadoria». A crítica aos INCOTERMS não
terá, contudo, tanta pertinência como tem uma crítica ao
Direito positivo. Esta é fundamental, na medida em que o
Direito positivo, sem prejuízo do funcionamento da
democracia, é, na prática, imposto pelo poder político aos
cidadãos, pelo que é importante que a doutrina aponte o torto
do Direito. Os INCOTERMS não. Eles sã uma mera sugestão
da CCI, à qual os sujeitos de comércio internacional podem
aderir ou não, pelo que a haver alfo a criticar seria a decisão
das partes que, livremente, para os INCOTERMS remeteram.
Contudo, não nos esqueçamos, que, no momento da
contratação – quando as partes escolhem um determinado
termo –, imaginam, normalmente, que tudo irá correr bem.
Não refletirão, porventura, na bondade ou não da precisão
artificial (o ship’s rail) estatuída nas previsões A5 e B5 de FOB.
Não lhes ocorrerá, quando porventura escolham o termo FOB,
que a mercadoria, no momento em que está a ser içada, caia
precisamente entre o cais e o navio, destruindo-se em
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pedaços no convés e caindo em parte na água, não se
sabendo muito bem se já tinha passado a linha imaginária (no
seguimento da amurada do navio) ou não. O que queremos
dizer é que a cláusula FOB poderá, no seu rigoroso
funcionamento, vir a atraiçoar as expectativas que uma das
partes, máxime o comprador, depositava no seu
funcionamento. Para além disso, recordemos que a liberdade
contratual é, por vezes, mais formal, do que substancial,
designadamente quanto o recurso aos INCOTERMS constitua
a típica rigidez das cláusulas contratuais gerais. Quer dizer,
portanto, que o facto de os INCOTERMS não serem Direito
positivo, mas simples sugestões da CCI, não significa que os
mesmos fiquem imunes às críticas da doutrina, pois as partes
quando a eles recorrem – leigas, em princípio – esperam
soluções criteriosas e seguras. Será a solução da transferência
do risco no termo FOB tal? Tomemos, pois, posição
relativamente à bondade do critério do ship’s rail. Na verdade,
encontramos aspetos negativos e positivos no referido critério.
Vejamos os aspetos negativos. Em primeiro lugar, diga-se que
o significado das iniciais FOB, Free on Board, sugere a ideia
de que, efetivamente, o vendedor está livre quando a
mercadoria está, de facto, a bordo e não quando atravessa
uma linha imaginária. Em segundo lugar, baseando-se os
INCOTERMS no princípio segundo o qual o risco se transfere
com o cumprimento da obrigação de entrega, o termo FOB
(e, assim, também os CFR e CIF) acaba por destoar, na medida
em que a previsão A4 não determina como momento do
cumprimento da obrigação de entrega a passagem de uma
linha imaginária. Em terceiro lugar, o termo em análise pode
dar azo a soluções um pouco formalistas (artificiais). Imagine-
se uma situação em que a grua existente no porto de
embarque ice a mercadoria, fazendo-a transpor o ship’s rail,
mas que, por qualquer razão, antes de descer a mercadoria
para o convés, gira de volta para a terra, despenhando-se,
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entretanto, a mercadoria no cais. Neste caso, como a
mercadoria já tinha passado a amurada do navio, o comprador
tinha de pagar o preço, na mesma situação, a mercadoria já
estava içada e que a grua gira de volta para a terra exatamente
10 cm antes de a mercadoria passa a linha imaginária da
amurada do navio. Ora, nesse caso, é o vendedor que fica sem
o preço, pois o seu risco não tinha ainda passado para o
comprador. A decisão altera-se por causa de uma mera
deslocação – da mercadoria – em 10 cm. Parece, pois, que o
critério peca pela sua artificialidade. Vejamos agora um –
decisivo – aspeto positivo. É ele o equilíbrio dos interesses em
jogo. De facto, a solução milimétrica tem na sua base a
ponderação dos interesses contrapostos do comprador e do
vendedor. Na verdade, a regra segundo a qual risco se
transfere quando a mercadoria transpõe a amurada do navio
não deixa de ser uma solução que equilibra perfeitamente os
interesses contrapostos. E, na verdade, uma solução
salomónica a prevista pelo termo FOB, na media em que
procura distribuir as vantagens e desvantagens da situação de
forma exatamente igual pelas partes implicadas. No fundo,
quando se estabelece que o rico se transfere quando a
mercadoria transpõe a amurada do navio, está-se a dispor que
não se transfere logo quando está no porto, nem apenas
quando está no navio; ou seja, a transferência ocorre num
meio-termo criterioso e salomónico, tendo em conta a tensão
entre os interesses contrapostos. Acresce que se a
transferência ocorresse só quando a mercadoria já estivesse
no navio em segurança, estar-se-ia a onerar o vendedor com
um risco relativamente a operações que ele não controla,
quais sejam a estiva e arruação da mercadoria do navio, as
quais são da responsabilidade do capitão – segundo o Direito
interno, artigo 6.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 384/99, 23
setembro e segundo a CB 1924 no seu artigo 3.º, n.º2 –, o
qual, na venda FOB atuará como comissário do comprador,
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pois é a este que incumbe celebrar o contrato de transporte
(B3, a) ). Ainda assim, alguma doutrina defende que a
passagem do risco na cláusula FOB se dá apenas no final do
processo de carga de mercadoria, quando ela se encontra já
a bordo do navio, isto é, quando se considera cumprida a
obrigação de entrega, nos termos da previsão A4. Não
podemos, contudo, acompanhar esta doutrina. Como
demonstrámos, o momento da passagem do risco no termo
FOB é criticável. Mas isso não legitima uma interpretação
completamente alheia àquilo que consta do texto da previsão
A5. Concorde-se ou não com a sugestão da CCI, ela é
inequívoca. Para além disso, como já dissemos, ela não é
imposta às partes. Verifica-se, também, no termo FOB a
hipótese de o risco se transferir ainda que a mercadoria não
tenha passado a amurada do navio. Esta hipótese vem prevista
na 2.ª parte da previsão B5. Estão em causa, mais uma vez,
situações de mora do credor. As situações são idênticas
àquelas que vimos a propósito da cláusulas FAS, pelo que
para lá remetemos. Com enorme importância no âmbito da
análise da cláusula FOB, se afigura a sua variante FOB and
stowed. Essa importância reside, precisamente, no facto de
haver divergência doutrinária relativamente a uma eventual
diferença, face ao termo FOB simples, no que diz respeito ao
momento da transferência do risco. Doutrina há que entende
postular a mesma um diferente momento de transferência do
risco quando comparada com o termo FOB simples,
designadamente que essa transferência ocorreria após a estiva
da mercadoria; outra, por sua vez, entende que ela não traz
qualquer alteração, no que diz respeito ao momento da
passagem do risco, relativamente ao simples termo FOB.
Entendemos que, havendo dúvida, e sendo o momento da
transferência do risco um aspeto fundamental na venda
marítima, devemos, por razões de segurança jurídica, mesmo
na cláusula FOB and stowed, seguir a previsão A5. O risco
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transfere-se, portanto, logo que a mercadoria passe a
amurada do navio e não depois, após a estiva. Defendemos,
portanto, que a cláusula FOB and stowed acrescenta à simples
cláusula FOB apenas a obrigação de o vendedor pagar as
despesas inerentes à estiva, alterando, portanto, a repartição
dos custos constante da previsão A6. Contudo, não pomos de
parte a hipótese de, num determinado caso concreto, tal
cláusula assumir outro significado que o risco só se transfere
após a estiva, desde que isso se possa retirar de elementos
que demonstrem claramente ser essa vontade das partes.
c. Grupo C (CPT, CIP, CFR, CIF): vejamos, agora, os termos do grupo C.
A análise deste grupo reveste-se de alguma importância, na medida
em que, apesar de muito similar ao termo FOB, apresenta, na verdade,
uma especialidade, relativamente a este, no que diz respeito à
transferência do risco, especialidade essa que está relacionada, como
veremos, precisamente com o facto de nos termos CFR e CIF, ser o
vendedor – e não o comprador, como em FOB – o responsável pela
celebração do contrato de transporte das mercadorias por mar. O
grupo C diz respeito a cost ou carriage, ou seja, custo. Os termos
deste grupo caracterizam-se, pois, pelo facto de o custo do transporte
principal ser assumido pelo vendedor, que, no entanto, não assumirá
os riscos advenientes desse transporte. No grupo C, a obrigação de
entrega desdobra-se em duas fases. Na verdade, segundo o disposto
em A5, o vendedor deve entregar a mercadoria a bordo do navio (tal
como em FAS e em FOB). Porém, a possa da mercadoria só é
transmitida com a entrega do conhecimento de carga. O grupo C
contém quatro INCOTERMS, sendo que apenas dois deles, o CFR e o
CIF, são específicos do transporte marítimo e fluvial. CFR significa
Cost and Freight (custo e frete). Nos termos desta cláusula, o
vendedor deve pagar os custos e o frete necessários ao
encaminhamento da mercadoria até ao porto de destino designado.
CIF significa Cost, Insurance and Freight, sendo que a única diferença,
relativamente ao termo CFR, é que neste o vendedor pagará, também,
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o seguro. Quanto à transferência do risco, A5 dispõe, tal como no
termo FOB, que o vendedor deve suportar todo o risco de perdas ou
avarias da mercadoria até ao momento em que esta tiver transporto
a amurada do navio, no porto de embarque. Quanto à regra geral,
não existe, portanto, qualquer diferença entre o termo FOB e os
termos CFR e CIF. Há, porém, um aspeto que distingue os termos do
grupo C do termo FOB, quanto à transferência do risco. Recordemos
aquilo que dissemos acima para os termos FOB e FAS: neles existe a
possibilidade de a transferência do risco se dar independentemente
do cumprimento, nos casos previsto na segunda parte de B5. Porém,
as três últimas situações previstas na 2.ª parte de B5 de FOB e FAS,
que dão origem à transferência do risco independentemente do
cumprimento estão, todas elas, relacionadas com o facto de o
transporte ser, aí, da responsabilidade do comprador. Não fazem,
porém, qualquer sentido nos casos em que a celebração do contrato
de transporte cabe ao vendedor. Assim, situações como o atraso do
navio ou a sua incapacidade para receber a mercadoria, não
prejudicam agora o comprador, pois o transporte já não é por sua
conta. Por esta razão, a 2.ª parte da previsão B5, tanto em CFR como
em CIF, tem uma diferente configuração, relativamente àquela que
apresenta nos termos FAS e FOB. Destarte, a transferência do risco,
em CFR e CIF, independentemente do cumprimento, dar-se-á apenas
numa situação, que passamos a expor. Em B7 dos termos CFR e CIF
refere-se que «o comprador deve, sempre que tenha o direito de
determinar a data do embarque da mercadoria e/ou o porto de
destino, notificar o vendedor dos mesmos com a antecedência
suficiente». Apesar de o transporte ser da responsabilidade do
vendedor, B7, prevê, ainda assim, a possibilidade de, nos termos do
contrato de compra e venda, se ter estipulado que seria o comprador
a informar o vendedor da data do embarque e, eventualmente, do
porto de destino. Ora, se o comprador não fizer esse aviso com a
antecedência suficiente entre em mora do credor. Por isso, B5, na sua
2.ª parte, vem referir que se faltar a notificação referida em B7, então,
os riscos transferem-se a partir da data acordada ou da data em que
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expire o prazo estipulado para o embarque, desde que, mais uma vez,
a mercadoria esteja devidamente afetada ao contrato, ou seja,
claramente separada ou identificada de qualquer outra forma como
sendo a mercadoria objeto do contrato. Assim, as outras três
situações que se verificavam na cláusula FOB e na cláusula FAS, quais
sejam as de o navio indicado não ter chegado a tempo, não ter tido
a possibilidade de receber a mercadoria e ter encerrado ao
carregamento mais cedo do que a data notificada, não são, no grupo
C, motivo de antecipação da transferência do risco, pela simples mas
decisiva razão de não ser comprador responsável pelo transporte,
pelo que não deve, também, ver o risco transferir-se antecipadamente
para si por causa de razões às quais é alheio, relacionadas com o
transporte. Os termos CFR e CIF são, por vezes, seguidos da palavra
afloat, que significa embarcado. Acontece, habitualmente, quando a
mercadoria vendida já está, no momento da venda, em trânsito.
Deveremos continuar, nestes casos, a assumir como o momento da
passagem do risco, aquele em que a mercadoria passa a amurada do
navio? É que se o fizermos, tal significa a aceitação de uma passagem
do risco retroativa relativamente ao momento da celebração do
contrato. Defendemos, já, acima que, em nome da segurança jurídica,
e, máxime, porque não se trata de Direito positivo, não se devem
fazer interpretações corretivas dos INCOTERMS. Para além de que,
quanto ao aspeto do risco são os mesmos bem claros. Assim, na falta
de elementos que permitam concluir por uma vontade diferente, nos
termos CFR e CIF, na variante afloat, a passagem do risco dar-se-á
retroativamente, ou seja, com o ship’s rail. Contudo, e naturalmente,
o risco não se transferirá se, no momento da conclusão do contrato
e compra e venda, o vendedor sabia ou devia saber que as
mercadorias se tinham perdido ou avariado, não tendo disso
informado o comprador.
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Capítulo IV – Interferência – ou mera influência? – do
contrato de transporte de mercadorias por mar na
transferência do risco na venda marítima. A responsabilidade
do transportador marítimo
8. Mera influência do contrato de transporte de mercadorias por mar
na transferência do risco da venda marítima: conforme referimos
várias vezes ao longo do nosso estudo, um dos seus desafios consiste
na averiguação da existência de alguma intromissão do contrato de
transporte de mercadoria por mar nas regras sobre a transferência do
risco na venda marítima, ou seja, o apuramento da eventual
interferência do contrato de transporte de transporte de mercadorias
por mar na lógica – oriunda do regime jurídico do contrato de compra
e venda – da transferência do risco na venda marítima; por outras
palavras, pretende-se perceber se a venda marítima, por causa de
implicar um transporte de mercadorias por mar para a sua execução,
sofre alguma modificação relativamente às regras gerais da
transferência do risco para a vulgar compra e venda. A resposta foi já,
em alguns lugares deste estudo, antecipadamente dada. Não parece,
de facto, haver uma interferência do contrato de transporte de
mercadorias por mar na transferência do risco na venda marítima,
diretamente, ao nível dos efeitos jurídicos; isto é, o regime jurídico do
transporte de mercadorias, em si mesmo, nada nos adianta quanto à
questão da transferência do risco, nem tão pouco interfere nela. Assim,
e conforme já foi dito, existe apenas uma influência – que não eficácia
jurídica – desse cruzamento, por exemplo, em soluções legislativas.
Veja-se o artigo 797.º - prova dessa influencia –, no qual o legislador
estabeleceu um regime de transferência do risco específico, por estar
em causa, precisamente, um transporte de mercadorias. Também esse
cruzamento influenciou decisivamente o conteúdo dos INCOTERMS,
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cujas regras sobre transferência do risco, apesar de terem brotado dos
usos e costumes do comércio internacional, são gizadas,
essencialmente, em função da ligação do contrato de transporte de
mercadorias por mar ao contrato de compra e venda. As regras – quer
resultantes da lei, quer resultantes de convenção das partes – da
compra e venda não são alheias, portanto, À existência de um contrato
de transporte. É, de facto, natural, que o cruzamento dos dois
contratos influencie, na criação das regras, tanto o legislador, como as
próprias partes, que, através de práticas que deram origem a usos e
costumes, acabaram por estar, também, na origem da compilação da
CCI que constitui os INCOTERMS. Mas como já referimos várias vezes,
contrato de transporte de mercadorias por mar, em si mesmo, não
produz efeitos no tocante à transferência do risco na venda marítima.
Podemos, portanto, concluir que o regime da transferência do risco
na venda marítima é estabelecido por regras atinentes aos contratos
alienatórios em geral, às obrigações genéricas, às várias modalidades
da compra e venda, mas nunca por regras atinentes ao contrato de
transporte de mercadorias por mar. Assim, podemos afirmar que, em
vez de uma interferência do transporte de mercadorias na
transferência do risco na venda marítima, existe, antes, uma influência,
meramente circunstancial, do transporte na determinação do regime
– quer legal, quer convencional – do risco.
9. Breve análise da influência do transporte marítimo na obrigação
de entrega por parte do vendedor: como referimos já, o transporte
marítimo de mercadorias exerce uma forte influência nos costumes
surgidos e, até, nalgumas regras de Direito, no âmbito do contrato e
venda. Um dos aspetos onde essa influência tem a sua maior força é,
precisamente, na obrigação de entrega da mercadoria, que, como
vimos, ao ser o momento chave para a transferência do risco, acaba
por ser decisiva. Os INCOTERMS são, precisamente, o fruto da
necessidade de criar regras específicas que considerem o cruzamento
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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entre o transporte de mercadorias por mar e o contrato de compra e
venda. É, pois, por isso que os INCOTERMS não incidem, frise-se, em
todos os direitos e obrigações das partes do contrato de compra e
venda: focam, principalmente, aspetos que apresentam maior relevo
em função da existência de um transporte, nomeadamente a entrega
das mercadorias a transferência do risco e a distribuição dos custo do
transporte. A entrega das mercadorias é, sem dúvida, um aspeto do
contrato de compra e venda decisivamente influenciado pela
existência do transporte. Os INCOTERMS, que têm na sua fonte usos
e costumes do comércio internacional, comprovam-no. Em função do
lugar do cumprimento da obrigação, estipulado nos termos do
contrato de compra e venda, as vendas marítimas subdividem-se,
como já pudemos verificar, em dois grandes grupos: o das vendas
com expedição simples (vendas indiretas ou cláusulas de embarque)
e o das vendas com expedição qualificada (venda diretas ou cláusulas
de desembarque). Como já referimos, nas vendas com expedição
simples, que correspondem aos INCOTERMS FAS, FOB, CFR e CIF, o
vendedor fica obrigado a entregar as mercadorias num local diferente
do seu destino final, que pode ser ao longo ou a bordo do navio, no
cais de embarque. Podemos, pois, comprovar, através dos INCOTERMS,
como compilação de práticas ditadas pelos usos e costumes do
comércio internacional, a influência que o transporte de mercadorias
tem na determinação do momento do cumprimento da obrigação de
entrega, a qual, por sua vez, é decisiva para definir o momento de
transferência do risco.
10. Relações entre o comprador e o transportador marítimo: a
responsabilidade do transportador marítimo perante o comprador:
a. Generalidades: apesar da questão das relações entre o
comprador e o transportador marítimo não ter a já ver com o
risco, a verdade é que a respetiva análise tem interesse no
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âmbito do presente estudo, na medida em que – não perdendo
de vista a distinção que, no início, fizemos entre
responsabilidade civil e o risco – caso seja o transportador
responsável por eventuais deterioração ou perdas da
mercadoria, a transferência do risco será, de certa forma,
suavizada ou neutralidade pelo imputação do dano ao
transportador, nos termos da responsabilidade civil. Vejamos
algumas normas relevantes relativamente à responsabilidade do
transportador marítimo, sem, contudo, analisar a questão a
fundo, pois não constitui ela o cerne do presente estudo. A
Convenção de Bruxelas 1924 refere no seu artigo 2.º que o
transportador ficará sujeito ao respetiva regime quanto ao
carregamento, manutenção, estiva, transporte, guarda, cuidados
e descargas das mercadorias. Será, pois, quanto todas estes
aspetos, a Convenção a determinar a responsabilidade do
transportador, sendo que existem, nela, previsões de
exoneração e limitação da responsabilidade, as quais não serão
aqui analisadas. Devemos atentar, ainda, no artigo 3.º, n.º 8
CB1924, de acordo com o qual «será nula, de nenhum efeito e
como se nunca tivesse existido, toda a cláusula, convenção ou
acordo num contrato de transporte exonerado o armador ou o
navio da responsabilidade de perda ou dano concernente a
mercadorias proveniente de negligencia, culpa ou omissão dos
deveres ou obrigações preceituados neste artigo, ou atenuando
essa responsabilidade por modo diverso do determinado na
presente Convenção». Refira-se, também, que o artigo 7.º se
enuncia que as partes não estão impedidas, como afirma
Januário da Costa Gomes, de, «nos períodos a montante
(anteriores ao carregamento) ou a jusante (posteriores ao
carregamento), moldarem o conteúdo do contrato, inserindo
estipulações, condições, reservas ou isenções relativas às
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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obrigações e responsabilidade do armador ou do navio».
Quanto ao Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, há que referir o
artigo 6.º que vem estender a responsabilidade do
transportador pela mercadoria no período que decorre entre a
receção e o embarque, estabelecendo que, durante esse hiato,
«são aplicáveis as disposições respeitantes ao contrato de
depósito regulado na lei civil». Existe, portanto, uma
preocupação do legislador nacional de estender a
responsabilidade do transportador nos períodos a montante e
a jusante do contrato de transporte. Também o artigo 7.º tem
relevância no que à responsabilidade do transportador
marítimo diz respeito, na medida em que consagra uma
responsabilidade do transportador marítimo diz respeito, na
medida em que consagra uma responsabilidade objetiva do
transportador pela intervenção do operador portuário ou de
outro agente em qualquer operação relativo à mercadoria, sem
prejuízo do direito de, posteriormente, o transportador agir
contra os referidos operador ou agente. Importa, ainda, referir
o artigo 31.º, que estabelece como limite legal da
responsabilidade do transportador marítimo o valor de 498,80€
por volume ou unidade, valor este que se aplica, quer estejamos
no âmbito de aplicação da CB 1924, quer estejamos no âmbito
de aplicação do Decreto-Lei n.º 352/86 (artigo 1.º, Decreto-Lei
n.º 37.348, 1 fevereiro 1950).
b. A responsabilidade do transportador marítimo nas vendas
com expedição simples (ou indiretas): nas vendas com
expedição simples (ou vendas indiretas) o risco do preço
transfere-se para comprador no momento em que a mercadoria
é entregue ao transportador – isto, naturalmente, pressupondo
a entrega como o momento determinante da transferência do
risco. Significa que, ainda que as mercadorias se percam ou
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deteriorem durante a viagem, o comprador tem de pagar o
respetivo preço ao vendedor. Porém, se as mercadorias se
perderem ou tiverem deteriorado durante a viagem, o
comprador, não obstante suportar o risco do preço, poderá,
eventualmente, responsabilizar o transportador. Esta, sim, é uma
verdadeira consequência jurídica do cruzamento entre o
contrato de transporte de mercadorias por mar e o contrato de
compra e venda. Perguntar-se-á: com que fundamento pode o
comprador, que não é parte num contrato de transporte – por
estarmos, por exemplo, no âmbito das vendas CIF ou CFR, nas
quais o vendedor a celebrar o contrato de transporte –
demandar ou responsabilizar o transportador? No nosso
entender, poderá ter dois fundamentos. O primeiro assenta na
lógica do conhecimento de carga. O segundo, na posição
jurídica do destinatário das mercadorias. O transportador,
depois de receber as mercadorias, tem o dever de entregar ao
carregador um conhecimento de carga representativo dessas
mesmas mercadorias, quer nos termos do artigo 3.º, n.º3 CB
1924 sobre conhecimento de carga, quer nos termos do artigo
8.º Decreto-Lei n.º 352/86. Conforme refere o artigo 11.º deste
diploma, o conhecimento de carga constitui título
representativo da mercadoria nele descrita e pode ser
nominativo, à ordem ou ao portador. Como documento
representativo da mercadoria, o conhecimento de carga tem
caráter real e caráter pessoal: caráter real, porquanto atribui ao
seu titular um direito real sobre a mercadoria, caráter pessoal
na medida em que confere ao seu possuidor, ou àquele à
ordem de quem é passado, o direito de crédito à entrega das
mercadorias. Desta forma, ter um conhecimento de carga
equivale a ter a própria mercadoria por ele representada. O
vendedor, depois de receber o conhecimento de carga do
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transportador, remete-o ao comprador, para que este possa, no
porto de destino, exigir a mercadoria. Assim sendo, sempre que
a mercadoria não esteja conforme com o conhecimento de
carga – por se ter deteriorado ou por se ter, eventualmente,
perdido parcial ou totalmente –, o comprador, fundamentado
no título, que é o conhecimento de carga, pode agir contra o
transportador e responsabilizá-lo pelas deteriorações ou perda
das mercadorias. Pode, porém, suceder que o transportador não
emita qualquer conhecimento de carga. Coloca-se, então, a
questão de saber se o comprador, que não é parte no contrato
de transporte de mercadorias por mar, pode demandar o
transportador, por causa da perda ou deterioração das
mercadorias. A resposta a esta questão depende da posição
que assumamos acerca da natureza jurídica do contrato de
transporte de mercadorias por mar. Na nossa opinião, e
seguimos a posição de Januário da Costa Gomes, o contrato de
transporte de mercadorias por mar é um contrato bilateral
sujeito à eventual adesão de terceiro, o qual pode aderir de
duas formas: ou através da aceitação do conhecimento de carga
ou, no caso de não existir conhecimento de carga, através da
celebração de um contrato de compra e venha com o
vendedor/carregador, que tenha como objeto mediato a
mercadoria a ser transportada. Assim, e porque entendemos
que o destinatário, que não seja carregador, adere ao contrato,
ele é titular não só do direito de crédito à entrega da
mercadoria, como também do direito de responsabilizar o
transportador se a mercadoria não estiver conforme foi
entregue pelo vendedor. Desta forma, mesmo que o
destinatário/comprador não seja titular de um conhecimento de
carga, ele pode, ainda assim, responsabilizar o transportador
pela perda ou deterioração da mercadoria. Porém, e porque o
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contrato de compra e venda deve ser cindido do contrato de
transporte de mercadorias por mar, nas vendas com expedição
simples, ainda que as mercadorias se tenham perdido ou
deteriorado, o destinatário não poderá deixar de pagar o preço,
pois a partir do momento em que a mercadoria é entregue ao
transportador, o vendedor cumpre a sua obrigação de entrega
da mercadoria e o risco transfere-se. Pode, contudo, suceder
que as avarias na mercadoria não resultem do transporte. Não
é por acaso que na Convenção de Bruxelas de 1924, no artigo
4.º, n.º2, alínea b), se refere que nem o armador nem o navio
serão responsáveis por perda ou dano resultante ou
proveniente de vícios ocultos que escapam a uma razoável
diligência. Deste modo, se os vícios não eram aparentes e o
transportador o demonstrar, ele não poderá ser
responsabilizado. Neste caso, restará ao comprador provar que
a mercadoria já tinha vícios antes de ter sido entregue ao
transportador. Se o conseguir, e porque na venda com
expedição simples – de cuja hipótese tratamos agora – o risco
se transfere, à partida, com a entrega ao transportador, o
comprador não terá de pagar o preço, pois os vícios na
mercadoria remontam a uma data anterior à entrega.
c. O arco temporal do transporte de mercadorias por mar: na
sequência do ponto anterior, parece-nos importante fazer uma
breve análise do arco temporal do transporte de mercadorias
por mar, isto é, dos momentos em que se inicia e termina o
transporte. Essa definição terá importância, porquanto nos
permite determinar o âmbito espacial da responsabilidade do
transportador por deteriorações ou perda da mercadoria.
Apesar de, repetimos, este problema não ser estritamente de
risco, a sua analise afigura-se importante, na medida em que a
responsabilidade do transportador por deteriorações ou pela
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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perda da mercadoria terá o efeito de, na prática, atenuar o risco
detido pelo comprador.
i. O arco temporal na Convenção de Bruxelas de 25
agosto 1924, relativa à unificação de certas regras em
matéria de conhecimentos de carga: a CB 1924, sobre
os conhecimentos de carga, está pensada numa lógica
de transporte porto a porto, tendo isso repercussões ao
nível do arco temporal na mesma estatuído. Ora, nessa
lógica porto a porto, é o artigo 1.º, alínea e) CB 1924 que,
a propósito da definição de transporte de mercadorias,
acaba por dar as coordenadas sobre o arco temporal
desse mesmo transporte. Refere o preceito que um
transporte de mercadorias abrange o tempo decorrido
desde que as mercadorias são carregadas a bordo do
navio até ao momento em que são descarregadas. Falta,
porém, o critério determinante do exato momento
dessas carga e descarga. O Decreto-Lei n.º 352/86, 21
outubro, no seu artigo 23.º estabelece um critério. Estatui
que a mercadoria se considera carregada no momento
em que, no porto de carga, transpõe a borda do navio
de fora para dentro, e considera-se descarregada no
momento em que, no porto de descarga, transpõe a
borda do navio de dentro para fora. Mas, conforme
refere Januário da Costa Gomes, não será
metodologicamente correto usar o critério do Decreto-
Lei interno para preencher a imprecisão que temos na
CB 1924. Que critério então seguir? Simplesmente
deveremos seguir um critério assente na ideia de posse
das mercadorias por parte do transportador. Assim, o
transporte terá início quando as mercadorias entrarem
na posse do transportador, ou seja, a partir do momento
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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em que lhe são entregues. E se forem entregues a um
operador portuário? O operador portuário é um agente
do transportador, pelo que ele pode receber as
mercadorias em representação do transportador. Veja-se
a Himalaya Clause, de acordo com a qual, refere Januário
da Costa Gomes, «a disciplina do conhecimento de carga
é estendida à atividade de qualquer sujeito de quem o
transportador se socorra para a concreta execução das
singulares operações que entram no âmbito do contrato
de transporte». O transportador atribui tacitamente
poderes representativos ao operador portuário. De facto,
da função que o operador portuário desempenha resulta
a atribuição tácita, por parte do transportador, de
poderes representativos para declarar a vontade de
aceitação, em nome do transportador, das mercadorias
entregues pelo carregador (artigo 217.º e 262.º CC). Para
além de que, se o transportador beneficia da atividade
do operador portuário que, em seu interesse, recebe as
mercadorias, que posteriormente irá transportar,
transporte este que consiste na sua atividade e lhe dá o
lucro, deve, então, aceitar que quando a mercadoria é
entregue ao operador portuário, é-o tanto para as
vantagens (atividade lucrativa do transportador), como
para as desvantagens (responsabilidade do
transportador): ubi commoda, ibi incommoda. De facto,
se o transportador retira benefícios da atividade do
operador portuário, com o qual tem, necessariamente,
uma relação jurídica, deve, também, ser responsabilizado
objetivamente pela perda ou deterioração de
mercadorias causadas por esse operador portuário. Se
este último está no porto, entre outras, com a função de
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
237
receber as mercadorias que serão objeto de transporte,
o transportador deve aceitar que o expedidor considere
cumprida a sua obrigação de entrega da mercadoria a
ele, transportador, mesmo quando seja o operador
portuário a recebê-la. Qualquer expedidor que entregue
a mercadoria num porto, para ser embarcada, a um
operador portuário julgará, naturalmente, que a está a
entregar, também, e por intermédio deste, ao
transportador. Assim, entendemos que, não obstante a
redação da alínea e) do artigo 1.º CB 1924, o transporte
tem início quando a mercadoria é entregue ao
transportador, portanto, quando entra na sua posse, ou
por si, ou através de um seu representante, e não apenas
quando «é carregada a bordo do navio». Ainda que não
seja inequívoco ser esta a lógica do Direito constituído,
a mesma será desejável em termos de Direito a constituir.
ii. O arco temporal no Decreto-Lei n.º 352/86, 21
outubro: como refere Januário da Costa Gomes, o
Decreto-Lei n.º 352/86 beneficiou da doutrina e da
jurisprudência produzidas a propósito dos momentos
parametrizadores do âmbito de aplicação da CB 1924,
pelo que definiu claramente, no artigo 23.º, quando é
que se considera a mercadoria carregada e descarregada.
Para além disso, o artigo 6.º Decreto-Lei n.º 352/86
estende a responsabilidade do transportador pela
mercadoria no período que decorre entre a receção e o
embarque, referindo que, neste momento, são aplicáveis
as disposições respeitantes ao contrato de depósito
regulado na lei civil. Assim, antes do carregamento já há,
pelo menos, responsabilidade do transportador
enquanto depositário. Vem, depois, o artigo 7.º
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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consagrar uma responsabilidade objetiva do
transportador pela intervenção do operador portuário ou
de outro agente em qualquer operação relativa à
mercadoria, sem prejuízo do direito de, posteriormente,
o transportador agir contra os referidos operador ou
agente. Concluindo, o Decreto-Lei nº. 352/86 acaba por
teria, relativamente ao arco temporal, a lógica que
defendemos, acima, para a interpretação da CB 1924. Fica,
assim, determinado o âmbito espacial da eventual
responsabilidade do transportador, segundo o Decreto-
Lei n.º 352/86. Insistamos, contudo, na necessidade de se
fazer a distinção entre responsabilidade civil e
transferência do risco. Quando se discute o momento em
que se considera que a mercadoria passa a estar sob a
alçada do transportador ou do operador portuário, não
é para afirmar que, a partir desse momento, o risco se
transferiu para esses mesmos transportador e operador
portuário: o risco nunca para eles se transfere, porquanto
eles nunca serão proprietários das mercadorias e nunca
serão devedores do preço, pela elementar razão de que
não são partes no contrato de compra e venda. Assim,
nem o risco do preço, nem o risco da coisa se transferem
para qualquer das entidades. Acontece, simplesmente
que a partir do momento em que o transportador ou o
operador portuário são considerados depositários da
mercadoria, qualquer deterioração ou perda desta lhes
poderá ser imputada para efeitos de responsabilidade.
Não é, portanto, correto falar em risco por conta do
transportador ou por conta do operador portuário, pois
o risco apenas se transfere entre vendedor e comprador.
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11. Conclusão: vimos a problemática da transferência do risco no Código
Civil, no âmbito do contrato de compra e venda, passando, ainda, pelo
Código Comercial, a propósito da venda mercantil. Apesar de, na
prática, poucas vezes serem aplicados os dispositivos de Direito
interno, a verdade é que a sua análise se revelou fundamental para a
compreensão de toda a problemática em jogo na transferência do
risco nos contratos de compra e venda, nomeadamente, quando esteja
em causa uma venda com expedição. A análise dos INCOTERMS
permitiu-nos apreender as regras sobre a transferência do risco que,
na maioria dos casos, serão aplicáveis aos litígios que envolvam o
comprador e o vendedor numa venda marítima. Na verdade, em regra,
a prática demonstra-o, nas vendas com expedição, as partes regulam
o momento de transferência do risco através de uma remissão para
um termo constante dos INCOTERMS. Façamos, portanto, uma breve
síntese dos momentos relevantes da transferência do risco na venda
marítima, no âmbito do Código Civil e dos INCOTERMS. Segundo as
regras do Código Civil, o risco transferir-se-ia, em princípio, no
momento da transferência da propriedade (artigo 796.º, n.º1),
independentemente da entrega da coisa. Acontece, porém, que, na
prática, acaba por ser o momento do cumprimento da obrigação de
entrega o decisivo para determinar a transferência do risco. Conforme
expusemos, sendo as vendas marítimas, em regra, vendas mercantis e,
outrossim, vendas de coisas genéricas, o momento da transferência
da propriedade será definido, no caso das vendas de coisas genéricas,
nos termos do artigo 540.º e seguintes, que, à exceção de uma
situação – a extinção de todo o género, a ponto de restar apenas uma
das coisas nele compreendidas –, determinam que a propriedade se
transfere com o cumprimento da obrigação de entrega. Ora, assim,
nesses casos, o risco transfere-se no momento da entrega. No caso
das vendas mercantis, atentámos que as vendas por conta, peso ou
medida, previstas no artigo 472.º CCom, seguem o mesmo regime que
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o das obrigações genéricas, pois são verdadeiras vendas de coisas
genéricas. Vimos, também, que na venda sobre amostra ou por
designação de padrão, a propriedade não se transfere no momento
do contrato, mas sim no momento em que se cumpre a obrigação de
entrega e a mercadoria é examinada, ou no termo de oito dias, se não
for reclamada a qualidade da mercadoria (artigo 469.º e artigo 471.º
CCom). Nestes casos, o risco acaba por se transferir, também, com o
cumprimento da obrigação e entrega, porque, neste momento, se
verificará a condição suspensiva que gerará a produção de efeitos do
contrato. Notámos, ainda, que o n.º2 do artigo 796.º CC acaba por
permitir uma interpretação segundo a qual, em muitas situações em
que o vendedor continue a manter as coisas na sua posse, o risco se
acaba por transferir apenas com a entrega da coisa ou com o termo;
tudo dependerá da interpretação da expressão «termo constituído a
seu favor». Também no caso de haver condição resolutiva, a situação
é a de que o risco só se transfere, mas uma vez, com o cumprimento
da obrigação de entrega (artigo 796.º, n.º3). Para além disso, e
conforme referimos, a aplicação do artigo 797.º apenas às vendas com
expedição simples daria origem a uma grave distorção valorativa, pelo
que, por maioria de razão, se impõe a aplicação da sua regra também
às vendas com expedição qualificada. Defendemos, portanto, a
aplicação extensiva do artigo 797.º. Concluimos, então, que da
aplicação do Código Civil à venda marítima resulta que a transferência
do risco se dará sempre com o cumprimento da obrigação de entrega,
inclusivamente nas vendas de coisa determinada, por força da
aplicação extensiva do artigo 797.º. Contudo, vimos que havia uma
exceção à regra, segundo a qual, o risco se transfere com o
cumprimento da obrigação de entrega. É ela a situação de mora do
credor. Se o credor, sem motivo justificado, não aceitar a prestação
que lhe é oferecida nos termos legais ou não praticar os atos
necessários ao cumprimento da obrigação (artigo 813.º CC), então, e
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não obstante o não cumprimento da obrigação de entrega, o risco
transfere-se para si, nos termos do artigo 815.º CC. Relativamente aos
INCOTERMS, também o momento em que se cumpre a obrigação de
entrega é o determinante para que se dê a transferência do risco,
sendo que temos, essencialmente, dois tipos de INCOTERMS: aqueles
que correspondem às vendas com expedição simples – também
apelidadas pela doutrina de vendas indiretas ou cláusulas de
embarque –, isto é, em que a obrigação de entrega se cumpre com a
entrega da mercadoria ao transportador, no porto de embarque; e
temos, depois, os INCOTERMS que correspondem às vendas com
expedição qualificada – vendas diretas ou cláusulas de desembarque
– em que obrigação de entrega se cumpre com a entrega da
mercadoria no porto de descarga. Assim, o vendedor suportará o risco
do preço até que a mercadoria seja depositada ao longo do navio, na
cláusula FAS, ou até que trespasse a amurada do navio de fora para
dentro, na cláusula FOB. Vimos que, nos INCOTERMS, é muito
importante ter em conta, quer a mora do devedor, quer a mora do
credor para efeitos de transferência do risco: se o devedor estiver em
mora com o cumprimento da sua obrigação de entrega, o risco não
se transfere; se for o credor a estar em mora, então o risco transferir-
se-á. Ainda que a mercadoria não tenha sido entregue, nos termos
em que já referimos acima. Concluímos, portanto que, quer no sistema
português, quer nos INCOTERMS, a transferência do risco na venda
marítima se dá, salvo raras exceções, no momento em que se cumpre
a obrigação de entrega da mercadoria. Vimos, por fim, ainda que já
fora do âmbito da problemática da distribuição do risco contratual,
como a responsabilidade do transportador perante o comprador,
apesar da existência de limites a essa responsabilidade, acaba por, de
certa forma, suavizar o risco detido por qualquer das partes na venda
marítima, dada a imputação do dano ao transportador, nos termos da
responsabilidade civil.
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Apontamentos sobre Conhecimentos de Carga
Limpos e Cartas de Garantia75
1. Introdução: constitui uma prática já antiga do comércio marítimo, os transportadores
aceitarem conhecimentos de carga limpos (clean bills of lading), ou seja, sem reservas,
contra a garantia, assumida pelos carregadores, de indemnizar aqueles pelos prejuízos
decorrentes da emissão dos conhecimentos nesses termos. A emissão de
conhecimentos limpos contra a emissão de letters of indemnity surge algo demonizada
como uma «malattia del commercio», uma vez que dessa prática – de permanente
mentira – resultariam prejuízos não só para o destinatário da mercadoria ou para o
portador legítimo do título, mas também para as seguradores e para as instituições de
crédito que concedam crédito, fiadas na limpeza do conhecimento. Naturalmente que,
na base desta reação, está a pressuposição de que, não fora o confronto dado pela
letter of indemnity, o transportador – o armador como refere a versão portuguesa da
CB 1924, relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimentos de caga –
emitiria um conhecimento de carga sujo, ou seja com reservas. Essas reservas seriam,
sem dúvida, desfavoráveis ao carregador, mas teriam a enorme vantagem de não
induzirem em erro os diversos operadores que entrassem em contacto com o título.
Através da exigência da carta de garantia, o transportador previne a hipótese – vista
como provável – de ser acionado pelo destinatário da mercadoria, a quem terá de
indemnizar pelo estado da mesma ou pela sua insuficiência em número ou em peso:
visa, assim, o transportador o efeito final de ficar indemne face a qualquer pretensão
de terceiro portador legítimo do conhecimento. Propomo-nos tecer algumas
considerações sobre a articulação entre a emissão de conhecimentos limpos e as cartas
de garantia, tendo fundamentalmente presente não só o regime constante dos artigo
25.º e 26.º do Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, mas também o regime da CB 1924 e
das Regras de Hamburgo de 1978 (RH 1978). Não nos propomos, assim, tratar
exaustivamente do tema que não é alheio, aliás, à doutrina nacional. Destacam-se, em
particular, os recentes contributos de Mário Raposo e de Vasconcelos Esteves, sendo
certo, porém, que não deixamos de encontrar referências nos clássicos, com destaque
para Palma Carlos, quem pertence o seguinte esclarecido trecho:
«Compreende-se facilmente a vantagem que têm os carregadores em
obter sempre conhecimentos sem reservas. Efetivamente, a enunciação de
duvidas no conhecimento acerca do estado das mercadorias, é por si só
suficiente para pôr os maiores obstáculos a qualquer transação que o
carregador queira efetuar sobre tal conhecimento. Nem o destinatário
aceitará mercadorias cujo estado de conservação haja inspirado dúvidas
ao capitão; nem os bancos efetuarão operações de crédito sobre
conhecimentos relativos a tais mercadorias; nem as seguradores estarão
dispostas a assumir por elas as responsabilidades emergentes do seguro».
75 O Ensino do Direito Marítimo; o soltar das amarras do direito da navegação marítima; por Manuel Januário da Costa Gomes, Almedina, novembro de 2004. (páginas 225 a 253)
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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Ainda com cariz introdutório, convirá deixar claro o seguinte: a emissão de
conhecimentos limpos, em troca de cartas de garantia, surge, frequentemente, como
uma prática não fraudulenta e como tal sã. Assim acontece, desde logo, nos casos em
que o transportador aporia reservas no conhecimento, não por constatar insuficiência
ou avaria da mercadoria, mas por falta de tempo ou de conhecimento para o efeito.
Referia-se já Palma Carlos à frequência com que o capitão, por falta de conhecimentos
específicos, considerava defeituosas mercadorias que efetivamente estavam em bom
estado de conservação. Outra situação, também focada por Palma Carlos, em que há
vantagem e se justifica emprego de cartas de garantia, é aquela em que, por má fé, o
capitão «levanta embaraços ou dificuldades ao carregador», pretendendo, contra a
evidência, que a mercadoria é defeituosa, ou que as embalagens são deficientes, ou
que há divergência no peso ou no volume da carga, recusando-se, assim, a emitir um
conhecimento de carga limpo. Recentemente, Carbone chama também a atenção para
o facto de a omissão de aposição de reservas em contrapartida da emissão de cartas de
garantia, não corresponder necessariamente a um propósito fraudulento, dando como
exemplo o caso em que a mercadoria transportada e constituída por materiais em
segunda mão – caso em que a existência de anomalias mesmo aparentes é
absolutamente normal. A contentorização – a revolução da contentorização – ao
legitimar, por razões de operacionalidade e evidência, a prática da cláusula said to
contain, veio bulir com o estado de cosias existente em relação aos conhecimentos
limpos e às cargas de garantia, na medida em que impôs a aceitação desse tipo de
reservas. Contudo, a prática da emissão de carta de garantia como forma de limpar
conhecimentos que, de outro modo, seriam emitidos sujos, está longe de ter decrescido,
fenómeno que tem por si razões de diversa natureza, uma das quais será a não
uniformidade legislativa, mesmo a nível das Convenções Internacionais: entre o regime
da CB 1924 e o das RH 1978 existem diferenças relevantes. Por outro lado, no
transporte em contentores, haverá que distinguir, conforme adverte Mário Raposo,
entre os contentores FCL (full container load) – arrumados pelo carregador já fechados
ao transportador – e os contentores LCL (less than full container load) – em que a estiva
é feita pelo transportador. Finalmente, a doutrina questiona a dimensão da eficácia da
reserva said to contain. A letter of indemnity (letter of guarantee) de que aqui curamos
não se confunde da mercadoria, que ainda não seja detentor do conhecimento de carga,
a favor do transportador, como condição para a descarga e entrega da mesma
mercadoria. Institucionalizou-se, na verdade, a prática, decorrente do facto de, amiúde
– em virtude da morosidade provocada pela articulação entre os conhecimentos de
carga e o crédito documentário – as mercadorias e entrega-la ao destinatário contra a
entrega por este de uma carta de garantia que coloque o transportador em causa ao
abrigo de qualquer ação que lhe seja movida por um (eventual e imprevisto) portador
legítimo do título. Como é evidente, o transportador não estará, em princípio, obrigado
a aceitar tais cartas de garantia, já que pode não estar interessado em afrontar uma
ação de indemnização intentada pelo portador legítimo do conhecimento. Contudo, a
circunstância de, normalmente, tais cartas de garantia surgirem fortalecidas com uma
garantia bancária, aliada ao facto de, amiúde, o próprio transportador ter pressa na
descarga, confluem no sentido dessa prática. Aliás, conforme informa Carbone, é
frequente os contratos de venda e de charter-party conterem cláusulas que legitimam
que o destinatário possa exigir a entrega da mercadoria mesmo na falta dos originais
dos conhecimentos de carga, contra a apresentação de uma letter of indemnity de
conteúdo standard, garantida por um banco.
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2. Os documentos de transporte marítimo, em especial o conhecimento de carga: cingindo-
nos aos clássicos documentos de transporte marítimo de mercadorias, importa analisar
fundamentalmente os documentos previstos na CB 1924, convenção a que Portugal
está internacionalmente vinculado, e no Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, que
disciplina o contrato de transporte de mercadorias por mar, curando o artigo 2.º deste
diploma, de forma pouco feliz, da articulação entre os «tratados e convenções
internacionais vigentes em Portugal» e o próprio regime do Decreto-Lei n.º 352/86.
Fora de consideração direta está o Decreto-Lei n.º 37.748, 1 fevereiro 1950, não porque
constitua direito ultrapassado mas porque, ao ter inserido os artigos 1.º a 8.º da CB
1924 como Direito interno – que se mantêm em vigor na medida em que não conflituam
com o regime do diploma de 1986 – nada acrescenta neste particular. Conquanto não
ratificados por Portugal, não deixaremos de aludir aos documentos previstos nas RH
1978. Ao nos circunscrevermos aos documentos clássicos do transporte marítimo de
mercadorias, deixamos de fora, entre outros, quer os seaway bills, quer os
conhecimento de carga eletrónicos. O paradigma dos documentos de transporte
marítimo é o conhecimento de carga (bill of landing, connaissement). O conhecimento
de carga tem na CB 1924 um lugar central, conforme decorre do facto de a Convenção
ser precisamente relativa à unificação de certas regras em matéria de conhecimento de
carga. Contudo, diversamente do que acontece com o Decreto-Lei n.º 352/86 – que no
artigo 8.º, n.º1, fundamentaliza o conhecimento – o artigo 3.º, n.º1 CB estabelece o
dever de entrega do conhecimento ao carregador, a pedido (sur demande) deste: o
conhecimento deverá ser entregue pelo armador, capitão ou pelo agente do armador
após receber e carregar as mercadorias. É diversa a solução do artigo 8., n.º1 Decreto-
Lei n.º 352/86, que impõe a entrega pelo transportador ao carregador, após o início do
transporte marítimo, de um conhecimento de carga «de acordo com o que
determinarem os tratados e convenções internacionais referidos no artigo 2.º». Numa
solução curiosa – uma vez que o artigo 3.º CB 1924 já é, como se disse, Direito interno,
na parte não prejudicada pelo Decreto-Lei n.º 352/86, por força do Decreto-Lei n.º
37.748 – o artigo 8.º, n.º1 impõe que o conhecimento tenha as menções das alíneas a)
a c) do artigo 3.º CB.
a. As marcas principais necessárias à identificação das mercadorias tais quais
foram indicadas por escrito pelo carregador antes de começar o embarque
dessas mercadorias, contanto que essas marcas sejam impressas ou apostas
claramente, de qualquer outra maneira, sobre as mercadorias não embaladas
ou sobre as caixas ou embalagens que as contêm, de tal sorte que se
conservem legíveis até ao fim da viagem;
b. O número de volumes, ou de objetos, ou a quantidade, ou o peso, segundo
os casos, tais como foram indicados por escrito pelo carregador;
c. O estado e o acondicionamento aparentes das mercadorias.
O exagero do legislador nacional no que ao conhecimento de carga respeita, torna-se
de novo evidente quando constatamos que, diversamente da CB – que no artigo 1.º,
n.º1, alínea b), admite «qualquer documento similar servindo de título ao transporte de
mercadorias por mar» - opta pela infungibilidade do conhecimento: a única alternativa
ao conhecimento de carga do artigo 8.º, n.º1 é o conhecimento de carga do artigo 8.º,
n.º2, operado por conversão do conhecimento de embarque (recibo ou conhecimento
de carga para embarcar). A rigidez do legislador nacional é tanto maior quanto, a
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246
montante do conhecimento de carga, já surge como excessivo o caráter formal do
contrato de transporte de mercadorias (artigo 3.º). Aliás, independentemente dos
excessos assinalados, não há uma verdadeira coerência entre o estabelecimento de um
regime na base da existência de um conhecimento de carga e a necessidade de uma
forma específica para o contrato subjacente à emissão do mesmo conhecimento. A
montante do conhecimento de carga do artigo 8.º, n.º1, o Decreto-Lei n.º 352/86,
refere-se à declaração de carga (artigo 4.º) e ao recibo ou conhecimento de carga para
embarque (artigo 5.º). A declaração de carga, emitida pelo carregador e entregue ao
transportador, deve mencionar os elementos referidos no artigo 4.º, n.º1:
A natureza da mercadoria e os eventuais cuidados especiais de que a mesma careça
(alínea a) );
As marcas principais necessárias à identificação da mercadoria (alínea b) );
O número de volumes ou de objetos e a quantidade ou o peso (alínea c) );
O tipo de embalagem e o acondicionamento da mercadoria (alínea d) );
O porto de carga e o de descarga (alínea e) );
E a data (alínea f) ).
Esses elementos estão para além dos exigidos no artigo 3.º, n.º3 CB – que se refere às
marcas principais necessárias à identificação das mercadorias, indicadas por escrito
pelo carregador e mais especificamente (infere-se do artigo 3.º, n.º3, II) às marcas,
números, quantidade e peso – e mais ainda em relação às RH 1978, que, no seu artigo
15.º, n.º1, alínea a), não alude a qualquer documento escrito do carregador, devendo,
porém, os elementos aí referidos condizer com os fornecidos por aquele (all such
particular as furnished by the shipper). A importância da declaração de carga torna-se
patente em função do que dispõe o artigo 4.º, n.º2: o carregador responde perante o
transportador pelos danos resultantes das omissões ou incorreções de qualquer
elemento da declaração de carga. Recebida a mercadoria para embarque, cabe então
ao transportador entregar ao carregador um recibo ou um conhecimento de carga com
a menção expressa para embarque. A alternatividade (reafirmada no artigo 5.º, n.º2)
no que concerne à emissão de documento, sugere, a nosso ver, que os documentos em
causa não têm o mesmo valor e que há uma gradação qualitativa a favor do
conhecimento. Digamos que, usando a expressão do artigo 3.º, n.º7 CB 1924, enquanto
que o conhecimento para embarque dá já direito às mercadorias, que assim podem ser
negociadas, nos termos ao artigo 11.º, o mesmo não acontece com o recibo, cuja
eficácia está à partida limitada às estritas relações carregador – transportador,
inclusivamente no que respeita ao direito sobre as mercadorias. Substancialmente, o
mero recibo equivalerá a um conhecimento para embarque não transmissível, mas
ainda assim se diferencia deste pelo facto de não poder ser convertido em
conhecimento de carga, nos termos do artigo 8.º, n.º2. Esta diferenciação entre recibo
e conhecimento de carga para embarque, para que aponta o artigo 5.º Decreto-Lei
352/86, não é positiva, já que complica desnecessariamente o quadro dos documentos
de transporte, tanto mais que, de acordo com o artigo 5.º, n.º1, as menções que devem
constar dos documentos em causa são exatamente as mesmas. Para além dos
elementos referidos ou o conhecimento de carga para embarque deve conter indicação
do acondicionamento e do estado aparente da mercadoria (artigo 5.º, n.º1, alínea b) ),
do nome do navio transportador (alínea c) ), podendo ser indicados outros elementos
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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tidos por relevantes (alínea d) ). Numa solução paralela com a do artigo 4.º, n.º2, o
artigo 5.º, n.º2 responsabiliza o transportador perante o carregador pelos danos
resultantes das omissões ou incorreções de qualquer dos elementos do recibo ou do
conhecimento de carga. O conhecimento de carga para embarque – o received for
shipment bull of lading – pode dar origem a um conhecimento de carga embarcada –
shipped bill of lading – bastando, para tal, que o carregador aponha no mesmo a
expressão carregado a bordo e a data de embarque. Esta conversão prevista no artigo
8.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86, é harmónica com o regime CB 1924, cujo artigo 3.º,
n.º7 prevê que se o carregador tiver anteriormente recebido qualquer documento
dando direito às mercadorias embarcadas, pode haver lugar a uma de duas soluções:
ou à restituição do documento ao transportador, contra a entrega de um conhecimento
com anota de embarcado, ou, em alternativa, à menção nesse mesmo documento
anterior, feita no porto de embarque, à menção nesse mesmo documento anterior,
feita no porto de embarque, do nome ou nomes dos navios em que as mercadorias
foram embarcadas bem como a data ou datas de embarque; se esse documento, assim
notado, contiver as menções do artigo 3.º, n.º3 CB, será então considerado como
conhecimento de carga com a nota de embarcado. Quer face à CB 1924, quer face ao
Decreto-Lei n.º 352/86, a primazia vai para um conhecimento de carga novo, contendo,
ab origine, as menções embarcado; assim decorre do artigo 3.º, n.º7 CB e do artigo 8.º,
n.º1 Decreto-Lei n.º 352/86. A transformação, por adição de menções, do received for
shipment bill of lading em shipped bill of lading, surge como uma solução de
equiparação, aliás plena. Também as RH 1978, depois de, no artigo 14.º, n.º1, imporem
ao transportador a emissão de um conhecimento, a pedido do carregador (on demand
of the shipper), e de preverem, no artigo 15.º, n.º2, a emissão de um shipped bill of
lading, de novo a pedido (if the shipper so demands), estabelecem que se o
transportador tiver previamente emitido um conhecimento ou outro título
representativo de qualquer mercadoria, poderá exigir a devolução de tal documento
em troca de um conhecimento – do shipped bill of lading; em alternativa, o mesmo
artigo 15.º, n.º2 prevê que se o carregador solicitar um conhecimento de embarque
shipped, o transportador poderá, para atender a essa solicitação, modificar qualquer
documento anteriormente emitido se, com tais modificações, o dito documento
contiver toda a informação que deve constar de um conhecimento de carga embarcado.
Fora de consideração direta, deixamos os casos de outros documentos relativos ao
transporte marítimo de mercadorias como o conhecimento direto (through bill of lading)
ou o pertence (delivery order). O conhecimento direto é um conhecimento de carga que
cobre a intervenção de vários transportadores marítimos, mantendo-se a unidade do
contrato de transporte. O pertence é um documento emitido por ordem do portador
legítimo do conhecimento de carga no sentido de entregar (delivery order) ao portador
legítimo do documento nessa sequência emitido (o pertence) a parte da mercadoria
titulada pelo conhecimento de carga. A emissão de pertences tem a grande vantagem
de facilitar a negociação fracionada da mercadoria titulada pelo conhecimento, tendo
conhecido um grande desenvolvimento a partir do século XIX nas compras e vendas
marítimas, em especial na venda CIF. Obedecendo à lógica e à natureza dos
conhecimento de carga, o transportador terá toda a vantagem em abater no
conhecimento de carga original as mercadorias destacadas representadas pelo novo
documento – pelo novo e cumulativo conhecimento, na modalidade de pertence. Se
não o fizer, poderá ser responsabilizado por um novo portador legítimo do
conhecimento (sem a menção do pertence emitido) para a entrega pelo portador
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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legítimo do pertence. Diferente deste pertence emitido pelo transportador (o pertence
próprio), relativamente ao qual não deixam de se suscitar dificuldades de regime, o
pertence impróprio é emitido pelo próprio portador do conhecimento (normalmente o
carregador), constituindo – apesar do seu caráter unilateral, sob o ponto de vista
documental – a manifestação documentada de um acordo entre o portador legítimo do
conhecimento e um terceiro designado que, não tendo, por essa via, qualquer direito a
exigir a entrega da mercadoria ao transportador, a poderá exigir ao emitente. Contudo,
diversamente do que acontece com o portador legítimo do conhecimento de carga – e
logo, também, do pertence próprio – que tem, face ao transportador, um crédito à
entrega da mercadoria mas que também se pode arvorar titular de um direito real sobre
a mesma, o titular do conhecimento impróprio apenas tem um crédito face ao emitente,
não podendo arvorar-se titular das mercadorias em causa, já que o pertence não
representa as mercadorias. Identifica-se, finalmente, uma delivery order emitida pelo
consignatário da carga, documento esse que já não representará as mercadorias a
bordo, não podendo dar lugar a qualquer ação contra o transportador.
3. O concurso do conhecimento de carga com a carta-partida: a referência ao transporte
sob conhecimento de carga (bill of lading) postula a inconfundibilidade com a carta
partida (charter-party). No Direito interno, está firmada, desde os anos oitenta do
século passado a base legal para a demarcação entre o contrato de transporte de
mercadorias, regulado pelo Decreto-Lei n.º 352/86, e o contrato de fretamento,
regulado pelo Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril. A distinção, está, aliás, sedimentada na
doutrina e na jurisprudência portuguesas, que passaram a adotar a diferença assim
resumida no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 352/86:
«O elemento matricialmente determinante da distinção entre o transporte
de mercadorias e o fretamento é o de que aquele respeita a uma carga e
este a um navio».
A distinção é, aliás, patente nas noções dos contratos em causa; no contrato de
transporte de mercadorias o transportador obriga-se em relação à outra parte «a
transportar determinada mercadoria de um porto para porto diverso» (artigo 1.º
Decreto-Lei n.º 352/86); no contrato de fretamento, o fretador põe à disposição do
afretador «um navio ou parte dele para fins de navegação marítima» (artigo 1.º
Decreto-Lei n.º 191/87). As fronteiras surgem, porém, nebuladas no caso de fretamento
por viagem já que aí o afretador deverá (artigo 5.º Decreto-Lei n.º 191/87) utilizar o
navio «numa ou mais viagens, previamente fixadas, de transporte de mercadorias
determinadas». Ou seja: tanto no contrato de transporte de mercadorias quanto no
fretamento por viagem o objeto é a deslocação de mercadorias: só que tal objeto é
imediato no primeiro caso e mediato no segundo. Pode, portanto dizer-se que,
cotejando o sistema da CB 1924 e do Decreto-Lei n.º 352/86, por um lado e o do recurso
a charter-parties e ao regime do Decreto-Lei n.º 191/87, por outro, há fundamento para,
no âmbito de uma ampla referência a transporte de mercadorias, distinguir o
transporte sob conhecimento de carga do transporte com base em carta-partida. A
diferença fundamental que está na base do recurso às charter-parties ou aos bills of
lading para o transporte de mercadorias está, como diz Carbone, «nas diversas
características estruturais dos respetivos mercados, aos quais, não por acaso,
correspondem regras diversas em matéria de concorrência»: enquanto que os contratos
documentados por cartas-partidas são, na prática, negociados e estipulados em função
das exigências do contratante, o mesmo não acontece com os contratos sujeitos ao
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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regime do conhecimento de carga, que se insere no transporte das linhas regulares, em
termos pré-anunciados e pré-determinados e com cláusulas padronizadas. Nesta lógica,
podemos assumir a comparação feita por Tetley: «A bill of lading is similar to public
transportation on an auto bus route; a voyage charter is similar to hiring a taxi to carry
you from one place to another of your choice». Ora esta diferença espelha o facto de,
enquanto que no fretamento por Viagem os contratantes estarão, em principio no
mesmo pé de igualdade e com similar poder negocial, o mesmo não ocorre nos casos
das linhas, nos quais o carregador é perspetivado como contraente débil, cuja posição
deve ser tutelada por normas imperativas «que impõem standard mínimos e
inderrogáveis de responsabilidade do transportador». Entre nós, Lima Pinheiro é
particularmente crítico em relação à conceção bipartida da lei portuguesa – na linha,
de resto, da francesa e italiana – considerando que a mesma «não encontra
correspondência ao nível do regime aplicável e é errónea de um ponto de vista de
construção jurídica». Para o autor, tanto o fretamento a tempo seriam subtipos do
transporte: «o que caracteriza o fretamento, enquanto subtipo do contrato de
transporte de mercadorias, é a afetação de navio ou navios determinados ou
determináveis à realização do transporte. No fretamento à viagem o navio é afeto à
realização de uma ou várias viagens pré-definidas. No fretamento a tempo o navio é
afeto durante determinado período de tempo». Em consonância, Lima Pinheiro
propunha, no seu projeto para Macau, a seguinte noção: «contrato de transporte de
mercadorias é aquele em que uma das partes se obriga a deslocar mercadorias ou a
fornecer um navio para deslocar mercadorias, por águas marítimas ou interiores,
mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete». Esta noção – que segundo o
autor, encontra correspondência nos sistemas do Common Law, no conceito de
contract of affreightment e, no Direito alemão, no conceito de Seefrachtvertrag – é
contrariada por Mário Raposo que sustenta a dualidade transporte-fretamento. A
polémica entre os dois maritimistas é saudável e só revela que o Direito Marítimo está
a mexer em Portugal. Os escritos que documentam a polémica e, em causa – a que
estão associados outros assuntos marítimos – constituirão, sem dúvida, importantes
elementos de reflexão numa futura reforma de fundo do Direito Marítimo, maxime,
aquando, se for o caso, da preparação de um Código da Navegação Marítima. Até lá, os
Decreto-Lei n.º 352/86 e 191/87 impõem, sem margem para dúvidas, a via dual que
tem a seu crédito, de resto, importante argumentos. Pese embora a diferença de
regimes entre a lógica do transporte sob conhecimento de carga e a carta-partida, bem
como dos diversos ambientes que presidem à adoção de uma ou outra via, o que é certo
é que se verificam, amiude, situações de concurso entre o bill of lading e a charter-party,
sendo, então, importante determinar o regime aplicável. A situação problemática é
aquela em que, apesar da celebração de um contrato de fretamento por viagem e, logo,
da existência de uma carta-partida, há lugar à emissão de um conhecimento de carga
pelo fretador a favor do afretador. Teremos, então, uma situação singular: aposta ou
sobreposta a uma relação jurídica em sentido estrito, entre fretador e afretador, temos
a emissão de um documento que, em virtude da sua especificidade, maxime no que à
sua circulabilidade concerne, potencia a externalização, se não da situação do seu todo,
pelo menos daquilo que o título em si comporta. A questão estará, então, em saber se
a emissão ou pelo menos a entrega do conhecimento revoga a carta-partida ou se
determina, antes, a necessidade de uma partilha de espaços de regulamentação. Como
parece evidente, o problema só se coloca se o título em causa for negociável, por ser à
ordem ou ao portador: se o conhecimento for simplesmente nominativo, não pode, à
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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partida, circular, ficando (rectius, mantendo-se) assim vedada a intromissão de
terceiros na situação jurídica decorrente do fretamento. É que, numa situação deste
jaez, não existe verdadeiro concurso entre a carta-partida e o conhecimento de
embarque, já que este é importante para sair do círculo interno – imediato – daquela.
A única dúvida que se poderá então gerar – dúvida de, digamos concurso interno – é a
de saber de o conhecimento de carga desconforme com a carta-partida a prejudica e
substitui nessa parte, passando o estabelecido no conhecimento a vigorar como uma
alteração à mesma. Não vemos que seja possível resolver a questão simplesmente com
base na anterioridade da carta-partida e, logo, com base na maior atualidade do
conhecimento: não podemos esquecer o facto estrutural de a carta-partida ser bilateral
e o conhecimento ser unilateral. Assim, e à partida, só será de aceitar a precedência do
conhecimento quando os dizeres desconformes com a carta-partida constem também
da declaração de carga a que se refere o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 352/86, ou quando
o comportamento do afretador demonstre concordar com os termos do conhecimento.
Voltemos, porém, à situação que nos preocupa: àquela em que, num fretamento por
viagem, o fretador emite um conhecimento negociável que entrega ao afretador:
apaga-se, então, a valência da carta-partida em favor da lógica imperante do
conhecimento? A resposta não pode deixar de ser negativa, pelo menos numa primeira
fase, ou seja: a simples emissão e entrega do conhecimento negociável não pode, de
per si, revogar a carta-partida, tal como não revoga a emissão e entrega de um
conhecimento não negociável. Na verdade, o facto de o conhecimento ser negociável
não significa que venha a ser efetivamente negociado, podendo acontecer que, a final,
o título não saia das mãos do afretador; tudo se passará, então, na prática, como nos
casos atrás analisados, em que o conhecimento não era passível de circulação. Assim
sendo, a questão do concurso só se coloca quando o emitido conhecimento circula: é
nesse caso que intervirá, no terreno, um terceiro alheio às relações fretador-afretador,
que não se norteia, diversamente destas, pela lógica da charter-party mas, antes pela
lógica do conhecimento de carga. A questão que se levanta é, então, singelamente a
seguinte: é possível impor ao terceiro, portador legítimo do conhecimento o
regulamento da carta-partida ou este pode reivindicar, no que a si respeita, a aplicação
do regime do conhecimento de carga? A resposta é quase intuitiva e tem por si o regime
da B 1924, do Decreto-Lei n.º 352/86 e das RH 1978. A primazia do regime do bill of
lading, de acordo com a CB 1924, resulta da alínea b) do seu artigo 1.º, que equipara ao
contrato de transporte provado por um conhecimento ou documento similar servindo
de título o transporte de mercadorias por mar, o «conhecimento ou documento similar
emitido em virtude duma carta-partida, desde o momento em que esse título regule as
relação do armador e do portador do conhecimento». Por sua vez, o artigo 5.º, II CB
1924, depois de vincar que nenhuma das disposições desta se aplica às carta-partida,
exceciona a situação em apreço: «se no caso de um navio regido por uma carta-partida
forem emitidos conhecimentos, ficarão estes sujeitos aos termos da presente
Convenção». O regime que resulta da CB é, assim, claro: no âmbito das relações internas
entre as partes outorgantes da carta-partida, é esta aplicável; já no que concerne às
relações entre o emitente do conhecimento e o seu portador legítimo, vale o regime do
conhecimento de carga. Como explica a Cassazione (na sua sentença de 2/12/1984), a
origem da distinção está na ratio de impor aos transportadores de coisas determinadas
limites perentórios, em favor dos carregadores, à faculdade de derrogação das normas
sobre responsabilidade no transporte marítimo – exigência que não se faz sentir no
transporte de carga total ou parcial, já que os afretadores constituem uma categoria de
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
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carga total ou parcial, já que os afretadores constituem uma categoria particularmente
forte no tráfico marítimo que participa em condições de paridade com os
transportadores na determinação do conteúdo dos contratos. O sistema da CB é
explicado por Tetley:
«A bill of lading in the hands of a character who is also the shipper is only
a receipt and it is the charter-party of a character who is also the shipper is
only a receipt and it is the charter-party which is the contract of hire (and
of transportation) subject to the compulsory provisions of the Hague and
Hague/Visby Rules (or Hamburg Rules). On the other hand, if the bill of
lading is placed in the hands od a third party for value, then the bill of lading
is the contract of carriage between the bill of lading holder and the issuer
of the bill of lading and the vessel owner and probably the charter. In this
case, the mandatory provisions of the Hague or Hague/Visby or Harmburh
Rules apply».
O regime da CB tem inteira tradução no Decreto-Lei n.º 352/86, estabelecendo a alínea
b) do artigo 29.º que o diploma se aplica «nas relações entre o transportador e o terceiro
portador do conhecimento de carga, com prejuízo do que em contrário possa dispor a
carta-partida, quando esse conhecimento tenha sido emitido ao abrigo de uma carta-
partida». O regime do Decreto-Lei 352/86 é claro: o conhecimento de carga, uma vez
emitido e negociado, determinará a aplicação do regime do conhecimento, no que às
relações com o portador legítimo do título respeita; conforme se lê no doutrinário
preâmbulo do diploma (ponto 6) «o que se passará então é que, perante terceiros, o
fretador assume um estatuto análogo ao do transportador, com os corolários daí
dimanáveis». As situações que poderão suscitar dúvidas são aquelas em que o próprio
conhecimento remete para a carta-partida ou a anexa. A simples remissão deve ser
considerada ineficaz; já quanto à anexação, a solução que se lê no ponto 6 do
preâmbulo do Decreto-Lei n.º 352/86 – e «tudo se passará, então, no âmbito da
interpretação da vontade das partes e da aplicação da lei» - é pouco animadora já que
não dá a segurança que é essencial nas transações. A solução que, neste contexto, nos
surge como preferível, é dar aos casos de anexação o mesmo tratamento dos casos de
remissão. Contudo, em todas estas situações, será essencial colher a orientação que se
firme em sede jurisprudencial. Finalmente, o regime das RH 1978 não se afasta do
exposto relativamente à CB 1924 ou ao Decreto-Lei n.º 352/86. O artigo 2.º, n.º3, depois
de estabelecer que as disposições da Convenção não são aplicáveis a charter-parties,
faz a seguinte ressalva: «However, where a bill of lading is issued pursuant to a charter-
party, the provisions of the Convention apply to such a bill of lading if it governs the
relation between the carrier and the holder of the bill of lading, not being the charter».
Diversas das situações focadas, estão aquelas em que o conhecimento de carga é
emitido pelo afretador enquanto transportador. Nesses casos, estão claramente
delimitados o âmbito de aplicação da carta-partida, por um lado, que regula as relações
entre o fretador e o afretador e o do conhecimento de carga que vincula o
transportador-afretador face a terceiros. Nestas situações, em que não se concentram
na mesma pessoa a qualidades de fretador e transportador, será mais difícil o concurso
entre a carta-partida e o conhecimento de carga. Contudo, se ta acontecer, verbi gratia
pelo facto de o fretador, que detém as gestões náutica e comercial (artigo 8.º Decreto-
Lei n.º 191/87, 29 abril), emitir o conhecimento – então como agente do afretador
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(artigo 10.º Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro) – a solução será exposta para as
situações atrás analisadas.
4. As reservas no conhecimento de carga: a CB 1924 não alude diretamente a reservas
inseridas pelo transportador no conhecimento de carga, as o artigo 3.º, n.º3, depois de
enunciar os elementos que o conhecimento de carga – entregue pelo transportador (ou
capitão ou agente) ao carregador, a pedido deste – deve conter, dispõe no seu último
parágrafo o seguinte: «Porém, nenhum armador, capitão ou agente do armador será
obrigado a declarar ou mencionar no conhecimento, marcas, número, quantidade ou
peso que, por motivos sérios, suspeite não representarem exatamente as mercadorias
por ele recebidas, ou que por meios eficientes não pode verificar». É importante verificar
que a ressalva do último parágrafo do artigo 3.º, n.º3 não inclui os elementos referidos
na alínea c) imediatamente anterior, que menciona «o estado e o acondicionamento
aparentes das mercadorias». Ou seja: a admissão de reservas feita pela CB apenas s
refere a elementos objeto de prévia indicação pelo carregador, não abarcando os
referidos na citada alínea c), que são exclusivos do transportador. Não se pode concluir
daqui, sem mais, que à CB seja alheia a aposição de menções no conhecimento
relativamente ao estado e ao acondicionamento aparente da mercadora, desde logo
porque essas menções se apresentam, como se disse, desligadas da declaração do
carregador, curando a CB apenas da articulação entre os termos dessa declaração e a
do transportador, através do conhecimento de carga. O que se pode afirmar é que a CB
é omissa quanto a essas menções cuja caracterização como reservas é, aliás,
controversa. É importante destacar o facto de o artigo 3.º, n.º3 CB não admitir uma
qualquer aposição de reservas, exigindo que as mesmas encontrem uma justificação
objetiva nas condições da mercadoria e nos meios técnicos de carregamento. A
importância do conhecimento e dos respetivos dizeres – nos quais se incluem, se for
caso disso, as reservas admitidas no último parágrafo no artigo 3.º, n.º3 – torna-se
patente face ao estabelecido no artigo 3.º, n.º4 CB: «um tal conhecimento constituirá
presunção, salvo a prova em contrário, da receção pelo armador das mercadorias tais
como foram descritas conforme §3.º, alíneas a), b) e c)». A natureza da presunção
parece-nos clara: o transportador responderá pela mercadoria nos termos da sua
própria declaração, podendo, porém, fazer a prova de que, não obstante os dizeres (ou
os não dizeres) do conhecimento, a mercadoria foi efetivamente recebida em termos
diversos. Na prática, o artigo 3.º, n.º4 CB permite ao transportador exonerar-se de
responsabilidade face a um terceiro portador legítimo do conhecimento, na medida em
que consiga provar a receção em termos diversos dos mencionados no conhecimento.
O artigo 3.º, n.º4 CB 1924 viria a ser alterado pelo Protocolo de Visby, a que Portugal
não está vinculado, o qual veio tornar a presunção inilidível quando o conhecimento
tenha sido transferido para terceiro de boa fé. A alteração consumou-se através da
adição da seguinte expressão: «However, proof to the contrary shall not be admissible
when the bill of lading has been transferred to a third party acting in good faith». Face
ao Direito interno Português, um efeito similar é, de algum modo e até certo ponto,
conseguido através do regime do artigo 26.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86.
Diversamente da CB 1924, as RH 1978 tratam a questão das reservas de forma direta.
O artigo 16.º, n.º1 dispõe que o transportador (ou a pessoa que o emite em seu nome)
pode incluir no conhecimento uma reserva na qual especifique as inexatidões, os
motivos de suspeita u a falta de meios razoáveis para verificar os dados, quando sabe
ou tem motivos razoáveis para suspeitar que os dados constantes do conhecimento
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relativos à natureza geral, às marcas principais, ao número de volumes ou unidades, ao
peso ou à quantidade das mercadorias, não representam com exatidão as mercadorias
que tomou a seu cargo ou carregou ou não dispuser de meios razoáveis para verificar
tais dados. Quanto ao estado aparente das mercadorias, que constitui um dos
elementos que deverá constar do bill of lading (artigo 15.º, n.º1, alínea b) RH 1978) -
«the apparent condition of the goods», o artigo 16.º, n.º2 determina que se o
transportador (ou outra pessoa que emita o conhecimento em seu nome) não a
assinalar, tal equivalerá à menção de que a mercadoria estava em boa condição
aparente: «he is deemed to have noted on the bill of lading that the goods were in
apparent good condition». As RH retomam depois o sistema da presunção estabelecido
no artigo 3.º, n.º4 Regras de Haia/Visby dispondo (artigo 16.º, n.º3, alínea ) ) que, com
exceção dos casos em que tenham sido feitos nos termos e nos limites do artigo 16.º,
n.º1, o conhecimento constitui presunção, salvo prova em contrário (prima facie
evidence), de que o transportador tomou a mercadoria a seu cargo ou, no caso de se
tratar de shipped bill of lading a carregou, tal como surge descrito no conhecimento; na
esfera do aditamento das Regras de Visby ai artigo 3.º, n.º4 CB 1924, a alínea c) do
artigo 16.º, n.º3 das RH não admite, porém, prova em contrário por parte do
transportador quando o conhecimento tenha sido transferido para um terceiro de boa
fé: «if the bill os lading has been transferred toa third party, including a consignee, who
in good faith has acted in reliance on the description of the goods therein». Beneficiando
dos trabalhos que coduziram às RH 1978 e do próprio regime desta, o Decreto-Lei n.º
352/86, consagra o artigo 25, diretamente, às «reservas no conhecimento de carga»,
disposição que é complementada pelo artigo 26.º, relativo às cartas de garantia. A lei
portuguesa começa (artigo 25.º, n.º1) por estabelecer requisitos para as reservas: elas
devem ser claras, precisas e suscetíveis de motivação. Estas exigências cumulativas não
são complementadas com a estatuição da sorte das reservas que não revistam essas
características. Contudo, a consequência não pode deixar de ser a ineficácia dessas
reservas, funcionando o conhecimento como se as mesmas não tivessem sido apostas.
Estamos perante situações em que, por razões atinentes à segurança e lealdade das
transações há que irrelevar a letra – rectius, as especificas letras das reservas – do título,
numa justificada inflexão ao princípio da literalidade. As exigências do artigo 25.º, n.º1
Decreto-Lei n.º 352/86 são, assim, claramente contrárias à eficácia das reservas
genéricas que, a serem admitidas, subverteriam totalmente a economia e o regime do
conhecimento de carga, já que o transportador utilizaria sempre essa forma de se eximir
a qualquer responsabilidade. Atento, porém, a práticas como a da contentorização, o
artigo 25.º, n.º2 faz uma inflexão ao rigor draconiano do n.º1 do artigo, ao admitir que
o transportador possa não incluir no conhecimento os elementos a que se referem as
alíneas b) e c) do artigo 4.º, n.º1 – ou seja, as marcas principais necessárias à
identificação da mercadoria e o número de volumes ou de objetos e a quantidade ou o
peso – se, pela prática usual no tipo de transporte considerado e face às específicas
condições da mercadoria e aos meios técnicos das operações de carga, as declarações
prestadas pelo carregador não forem verificáveis em termos de razoabilidade. Abre,
assim o artigo 25.º, n.º2 claramente as portas À eficácia das conhecidas cláusulas «said
to be», «dice essere», «said to contain»; não obstante, independentemente das
situações específicas da diversidade de tipos de contentores, há que pôr em relevo o
facto de a cláusula said to contain não ser uma solução mágica para todas as menções
relativas à mercadoria contentorizada. Pense-se no peso da mercadoria que, a priori, é
verificável em termos de razoabilidade (artigo 25.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86);
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usando a terminologia do artigo 16.º, nº1 RH 1978, não haverá, em princípio, em
relação a ele, «absence of reasonable means of checking». Em suma, o artigo 25.º, n.º2
Decreto-Lei n.º 352/86, na linha do artigo 16.º RH 1978, abre as portas a reservas
genéricas mas não as escancara. Esta caracterização está de acordo com a apresentação
do regime do artigo 15.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86 feito no preâmbulo do diploma
(ponto 5):
«Realmente, sob pena de desorganizar por completo a sequência do
transporte, eliminando as vantagens que advêm da contentorização, não
será dado ao transportador, muitas vezes, verificar o conteúdo dos
contentores: terá de aceitar as indicações prestadas pelo carregador ou por
quem o substituía».
E ainda,
«A validade da reserva dependerá, no entanto, da verificabilidade de tais
indicações, em termos de razoabilidade».
É frequente a diferenciação entre reservas quantitativas e reservas qualitativas. As
primeiras – a que se reporta o artigo 25.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86 – respeitam,
grosso modo, à quantidade de mercadoria, enquanto que as segundas reportam-se à
qualidade da mesma. Mais rigorosamente, pode dizer-se que enquanto as quantitativas
respeitam grosso modo às menções das alíneas b) e c) do artigo 4.º, n.º1 Decreto-Lei
n.º 352/86 – as marcas principais necessárias à identificação de mercadorias e o número
de volumes ou de objetos e a quantidade ou o peso – as qualitativas reportam-se às
menções doo artigo 5.º, n.º1, alínea b) Decreto-Lei n.º 352/86: o acondicionamento e
o estado aparente das mercadorias. Em rigor, porém, só as primeiras são reservas, já
que só elas contrariam – colocam reservas – os termos da declaração do carregador. As
segundas inserem-se no desenvolvimento normal das menções do conhecimento de
carga, revestindo a particularidade de o transportador – diversamente do que esperaria
o carregador – dar nota negativa sobre o acondicionamento e o estado aparente da
mercadoria, não introduzindo, com tal menção, qualquer contraditório com a
declaração de carga do artigo 4.º, que não contém essa menção. As reservas
qualitativas – rectius, a não aposição de reservas quantitativas – surge focada no artigo
26.º, n.º2, segundo o qual a omissão de reservas em relação a defeitos da mercadoria
que o transportador conhecia ou devia conhecer no momento da assinatura do
conhecimento, determina que o mesmo transportador não possa prevalecer-se de tais
defeitos para exoneração ou limitação da sua responsabilidade. Aparentemente, em
função da sua inserção numa disposição relativa às cartas de garantia, o regime do
artigo 26.º, n.º2 só teria aplicação nos caos em que há emissão de tais cartas. Contudo,
pensamos que não é assim e que o regime estabelecido no artigo 26.º, n.º2 tem
igualmente aplicação nas situações em que o transportador omite reservas relativas à
qualidade da mercadoria sem ter exigido, como condição de omissão, a emissão de uma
letter of indemnity. Certo é que é difícil imaginar que um transportador emita um
conhecimento limpo quando constata – conhece, como diz o artigo 26.º, n.º2 – defeitos
da mercadoria, sem se garantir através de uma carta de garantia emitida pelo
carregador. Será assim, quiçá, uma das razões pelas quais a matéria surge estabelecida
no artigo 26.º, n.º2, em sede de cartas de garantia. Contudo, o legislador nacional
tomou a nuvem de Juno, já que não é seguramente inimaginável, se não já a emissão
de conhecimento limpo, sem exigência de uma carta de garantia, quando conhece os
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defeitos, pelo menos a emissão apressada de um conhecimento limpo quando não
conhece os defeitos, conquanto os devesse conhecer. Assim, o regime do artigo 26.º,
n.º2 não está, apesar das aparências contrárias, dependente da emissão de cartas de
garantia, surgindo antes, aparentemente, por inspiração, porventura não exclusiva, do
disposto no artigo 16.º, n.º2 RH 1978, de acordo com o qual se o transportador não
assinala no conhecimento de carga o estado aparente da mercadoria, considera-se que
ele apôs menção do bem estado aparente da mesma. Não encontramos, de facto, no
artigo 17.º RH, relativo às garantes by the shipper, qualquer alusão à matéria que surge
no artigo 26.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86. A preocupação central do artigo 26.º, n.º2
está – na linha do artigo 3.º, n.º4 das Regras de Haia/Visby e dos artigos 16.º, n.º2 e
16.º, n.º3, alínea h) RH – na proteção a terceiros de boa fé, perante os quais o
transportador poderia pretender exonerar-se de responsabilidade, ou limitá-la, fazendo
prova da receção da mercadoria em mau estado. Não é assim, correta, no nosso
entender, a interpretação segundo a qual o artigo 26.º, n.º2 impediria uma qualquer
ação do transportador contra o carregador, como punição pela emissão de uma
omissão de reservas qualitativas, desde logo, porque o artigo 26.º, n.º2 não cura das
relações entre transportador e carregador mas, antes, das relações entre o
transportador e o destinatário ou outro portador legítimo do título. Uma outra
observação se impõe ainda em relação ao regime do artigo 26.º, n.º2 Decreto-Lei n.º
253/86: uma vez que, diversamente do teor aparentemente pleno do artigo 16.º, n.º2
RH 1978, o artigo 26.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 352/86 apenas estatui em termos de
relações, digamos, externas, entre o transportador e o terceiro portador legítimo do
título, fica o campo aberto para, ilidindo a presunção expressa em letra de forma no
artigo 3.º, n.º4 CB 1924, o transportador fazer repercutir no carregador a indemnização
que tenha pago a terceiro.
5. As cartas de garantia: a CB 1924 não se refere às cartas de garantia do carregador
emitidas como condição de não aposição de reservas. Contudo, a CB reporta-se, como
vimos, a uma garantia dada pelo carregador ao transportador, só que a mesma é
inerente ao documento da declaração de carga que é entregue a este último. Na
realidade, o artigo 3.º, n.º5 CB estabelece que o carregador «será considerado como
tendo garantido ao armador, no momento do carregamento, a exatidão das marcas, do
número, da quantidade e do peso, tais como por ele foram indicadas»; a tradução
prática dessa garantia é seguidamente concretizada através da estatuição de que o
carregador indemnizará o armador de todas as perdas, danos e despesas provenientes
ou resultantes de inexatidões sobre estes pontos. Como é evidente – di-lo, aliás, o 2.º
período do artigo 3.º, n.º5 CB – o direito do transportador a obter uma indemnização
do carregador não limita de modo nenhum a sua responsabilidade e os seus
compromissos, derivados do contrato de transporte, para com qualquer pessoa diversa
do carregador. O regime de Direito interno é idêntico, neste particular: segundo o artigo
4.º, n.º2, que tem, de resto, natureza imperativa (artigo 27.º, n.º1) – o carregador
responde perante o transportador pelos danos resultantes das omissões ou incorreções
de qualquer elemento da declaração de carga. Contudo, face a terceiros, funciona a
lógica do conhecimento emitido pelo transportador que se não pode valer do facto de
ter sido eventualmente induzido em erro por uma informação do carregador. O teor do
conhecimento – a sua letra – é, neste particular, determinante. A contrapartida da
responsabilidade prevista no artigo 4.º, n.º2 está no artigo 5.º, n.º2: o transportador
responde, por sua vez, perante o carregador pelos danos resultantes de omissões ou
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incorreções de qualquer elemento do recibo ou conhecimento de carga. Cria-se, assim,
uma situação de, digamos, garantias recíprocas, que tem como consequência que o
transportador seja diligente na emissão do conhecimento, podendo mesmo responder
perante o carregador no caso de aposição de reservas injustificadas ou ineficazes.
Diversamente da CB, as RH estabelecem um regime específico para as cartas de garantia,
regime esse que influenciou o legislador nacional. O artigo 17.º, n.º2 considera
inoponíveis a terceiros («void and of no effect as against any third party»), incluindo
um consignatário, a quem o conhecimento tenha sido transferido, qualquer carta ou
acordo do garantia na qual o carregador assuma a responsabilidade por danos
resultantes da emissão do conhecimento de carga pelo transportador (ou seu
representante) sem reservas relativas aos elementos fornecidos pelo carregador para
inserção no conhecimento ou relativos ao estado aparente das mercadorias. Impõe-se,
desde logo, uma observação, sugerida pelo confronto com o estabelecido no artigo 3.º,
n.º3 CB 1924: as reservas referidas – como omitidas – no artigo 17.º, n.º2 RH não são
apenas reservas quantitativas mas também qualitativas, referentes «to the apparent
condition of the goods», o que demonstra, que as RH não diabolizam estas últimas.
Conforme já resultava, por interpretação, do artigo 17.º, n.º2, o artigo 17.º, n.º3
considera as cartas ou acordos de garantia eficazes em relação ao carregador. Contudo,
o mesmo artigo 17.º, n.º3 exceciona o caso em que o transportador (ou o seu
representante), ao omitir a inclusão de reservas, tenha tido a intenção de prejudicar um
terceiro, incluindo o consignatário, que aja em função da descrição das mercadorias
constante do conhecimento de carga. Neste caso, a carta (ou o acordo) de garantia não
é válida mesmo em relação ao carregador. Acresce que se as reservas omitidas se
reportarem a elementos facultados pelo carregador para inserção no conhecimento, o
transportador não tem direito a invocar a garantia dada pelo carregador imanente à
declaração de carga, garantia essa estabelecida no artigo 17.º, n.º1 RH e no artigo 4.º,
n.º2 Decreto-Lei n.º 352/86. O regime do artigo 17.º, n.º4 RH expressa bem o propósito
de combater as cartas de garantia fraudulentas: no caos da fraude internacional por
parte do transportador (nos termos do artigo 17.º, n.º3), ele é responsável face a
terceiros, incluindo o consignatário, que tenha agido com base na descrição das
mercadorias constante do conhecimento de carga, sem poder invocar o benefício da
limitação de responsabilidade previsto na Convenção. O regime do artigo 26.º, n.º1
Decreto-Lei n.º 352/86 surge inspirado pelo artigo 17.º RH, estabelecendo, porém, um
regime aparentemente mais simples e mais suave: as cartas ou acordos de garantia em
que o carregador se compromete a indemnizar o transportador pelos danos resultantes
da emissão do conhecimento de carga sem reservas, não são oponíveis a terceiros,
designadamente ao destinatário e ao segurador. O regime do artigo 26.º, n.º1, não
difere, neste particular, do estabelecido no minucioso artigo 17.º, n.º2 RH, devendo
entender-se, que, tal qual neste acontece, as omitidas reservas pressupostas tanto
podem respeitar a elementos antes facultados pelo carregador na declaração de carga
(artigo 4.º) quanto ao estado aparente da mercadoria: ou seja, as omitidas reservas,
aqui referidas, tanto poderiam ser quantitativos como qualitativos. Estabelece, pois, o
artigo 26.º, n.º1 que os terceiros, não lhes podendo embora ser opostas as cartas ou
acordos de garantia, delas se podem prevalecer contra o carregador. Trata-se de uma
solução que não consta do artigo 17.º RH e que tem razão de ser, conquanto não seja
forte a probabilidade de ocorrência da situação aí prevista – ou seja, de o terceiro ter
acesso a uma carta ou acordo de garantia. Diversamente do artigo 17.º, n.º2 RH, o artigo
26.º, n.º1 aceita a validade e eficácia interna das cartas de garantia, no âmbito das
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relações entre o carregador e o transportador: na verdade, diversamente do regime das
RH, ainda que o transportador, ao omitir as reservas, tenha tido a intenção de prejudicar
um terceiro, ainda assim continua a ter a cobertura da responsabilidade do carregador,
eventualmente reforçada por garantias especiais. O legislador nacional terá,
aparentemente, ponderado que o verdadeiro beneficiário dessa fraude é o carregador,
pelo que não se justificaria uma solução que o favorecesse, a final, como ocorre com o
regime das RH, ao considerar nulos as cartas ou acordos. A solução das RH parece partir
do improvável pressuposto de que a fraude do transportador é unilateral e não
concertada com o carregador. Não é por acaso que Remond-Gouillaud, depois de aludir
ao facto de a carta fraudulenta ter como consequência a privação do transportador do
direito de a invocar mesmo contra o carregador, considera a medida excessiva: «dans
les rapports interpartes, en revanche, on conçoit moins biens porquoi lla lettre ne
pourrait être belle et bonne: la répartition dès risques de l’opération de transporte st
leur affaire dès lors qu’elle ne nuit pas aux tiers». Resulta do exposto que, no quadro
gral das soluções possíveis no que à validade e eficácia das cartas de garantia concerne,
a leiportuguesa dá plena eficácia ao contrato de garantia nas relações entre as partes,
não aplicado a lógica das fraus omnia corrumpit, que encontramos no artigo 17.º, n.º3
RH. Do artigo 26.º, m.º2, já focado supra, resulta que se as reservas omitidas se
referirem a defeitos da mercadoria que o transportador conhecia ou devia conhecer no
momento da assinatura do conhecimento de carga, o transportador não pode
exonerar-se de responsabilidade (ou limitá-la) com base em tais defeitos. Cremos ter
demonstrado que o regime estabelecido no artigo 26º., n.º2 não está forçosamente
associado à existência de cartas de garantia, conquanto seja essa a situação mais
previsível, pelo menos nos casos em que o transportador conhecia efetivamente os
defeitos.
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Capítulo I – Identificação do contrato de transporte de
mercadorias76
Secção I – O contrato de transporte em geral
Conceito e características: apesar das inúmeras variantes do contrato de transporte e da
correlativa diversidade de regimes jurídicos aplicáveis, pensamos ser aconselhável o seu
tratamento unitário inicial. Na verdade, importa destacar as características essenciais comuns às
várias modalidades, características essas que se nos afiguram bastantes para permitir analisar,
com a necessária adequação, o contrato de transporte. O contrato de transporte pode ser definido
como o contrato pelo qual uma das partes – o transportador – se obriga a deslocar determinadas
pessoas ou coisas de um local para outro, mediante retribuição. Nesta noção destaca-se a
obrigação de deslocar, pois reside aí o núcleo definidor do instituto, que autoriza a sua
abordagem como tipo contratual unitário. Não obstante a unanimidade existente a este propósito,
trata-se de um aspeto que merece ser sublinhado e precisado atendendo à sua importância. A
mera deslocação física de pessoas ou coisas não implica imediata e inelutavelmente a existência
de um contrato de transporte. Em múltiplas circunstâncias a deslocação surge como operação
material inerente ao fornecimento de uma outra prestação; não constituindo, nestes casos, a
finalidade primeira do contrato. Ora, a deslocação terá de ser o principal da prestação do
transportador. Quando tal não acontece, não se pode falar de contrato de transporte. A doutrina
e a jurisprudência francesas apresentam um rol de situações exemplificativas do que acabamos
de expor e que passamos a enumerar. Na sequência de um contrato de fretamento pode operar-
se a deslocação de mercadorias, todavia o cerne de tal contrato reside no colocar à disposição
do afretador um navio, ou parte dele, para fins de navegação marítima e não na deslocação.
Refiram-se ainda os casos do contrato de compra e venda com entrega no domicílio do
comprador; do contrato de manuseamento de carga (onde se inclui, entre outros, o contrato de
estiva)77. O controlo que o transportador exerce sobre a deslocação tem também influência na
qualificação do contrato de transporte. Exige-se eu seja ele a dirigir em exclusivo a deslocação,
uma vez que nenhum dos demais intervenientes no contrato interfere na sua atividade, ou, dito
de outro modo, o transportador tem a gestão comercial e técnica da execução material das
operações de deslocação. O que distingue o contrato de transporte de figuras próximas, como
sejam o aluguer de veículos de transporte ou o reboque é justamente o facto de a direção da
deslocação não pertencer, nestes contratos, ao transportador. Efetivamente, no aluguer de
veículos de transporte, o locador ainda que forneça o condutor ou a tripulação não pode ser
considerado transportador pois não tem a direção das operações de transporte, nem sequer
recebeu as mercadorias ou pessoas a transportar. A operação de reboque marítimo serve,
também, para exemplificar o problema em causa; a sua qualificação jurídica dependerá do
controlo exercido pelo rebocador sobre o rebocado. Estar-se-á perante um contrato de transporte
se o rebocador tiver a direção e o controlo da operação. Se, porventura, o rebocado participar
ativamente na operação então o que existe é um mero contrato de prestação de serviços. O que
se disse para o contrato de reboque marítimo vale também para o contrat de poussage e, bem
assim, para as demais modalidades de reboque. Apesar de ser possível a «variação da
consignação dos objetos em caminho» (artigo 380.º CCom) nem por isso o transportador deixa
76 Rocha, Francisco Costeira da; O Contrato de Transporte de Mercadorias, Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias; Livraria Almedina; Coimbra, julho 2010. 77 Também designado por contrato de manutenção (traduzindo do Francês contract du manutention).
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de ter a direção efetiva do transporte. A direção abrange apenas a organização da operação de
movimentação de mercadorias e não a definição do que se transporta, em que condições e para
quem. Exemplificando: uma coisa é acordar sobre o meio de transporte e utilizar, outra é
escolher o concreto veículo onde o transporte se efetuará. A direção pelo transportador da
operação de deslocação não exclui a cooperação dos demais intervenientes (v.g. carregador,
destinatário) na boa execução do contrato; tais deveres laterais de conduta são decorrência do
princípio da boa fé objetiva. Embora se diga que a deslocação há-de ser «de um local para
outro», em boa verdade apenas se quer vincar a necessidade de uma transferência física e
material no espaço, sendo essencial que as pessoas ou coisas sejam deslocadas para um sítio
diferente do ponto de partida. Todavia, não basta falar, apenas, em deslocação. O transportador
não se obriga a deslocar as mercadorias de qualquer maneira, mas a fazê-lo de tal modo que
umas e outros cheguem ao destino incólumes. Quer dizer, o transportador tem um dever de
custódia relativamente às mercadorias e um dever de vigilância (também designado por
obrigação de segurança) quanto às mercadorias. Por isso, há incumprimento do contrato de
transporte (lato sensu) não só em caso de perda total, mas igualmente em caso de perda parcial
ou de avaria (e também, obviamente, em caso de atraso na entrega). A obrigação nuclear e
caracterizadora do contrato de transporte situa-se no campo das obrigações de resultado: o
transportador obriga-se a proporcionar um concreto resultado que satisfaz o interesse creditório
final ou primário, a saber, a entrega da mercadoria transportada ao destinatário. Acresce que o
contrato de transporte não se esgota na deslocação de pessoas ou coisas, antes abrange todo o
período que decorre desde o momento em que o transportador recebe as coisas a transportar até
que são entregues no local convencionado. Como contrapartida da prestação do transportador
deverá ser pago o preço do transporte. A onerosidade constitui uma característica de que não
prescinde a generalidade da doutrina, de tal modo que se coloca a retribuição ao lado da
obrigação de deslocar como sendo os dois elementos essenciais do contrato. Um outro problema
– que desde há muito vem sendo debatido e ainda sem solução aceite generalizadamente – é o
de saber sobre quem recai a obrigação ou o ónus do pagamento do preço do transporte.
Atendendo aos dois referidos elementos, costuma qualificar-se o contrato de transporte como
um contrato sinalagmático, pois existem duas prestações ligadas por um nexo de reciprocidade:
por um lado, a obrigação de deslocar pessoas ou coisas e, por outro, a obrigação de pagamento
do preço. O contrato de transporte caracteriza-se por uma paradoxal consensualidade, pois
embora se afirme que o contrato de transporte em gral é um contrato consensual, que vale neste
âmbito o princípio da liberdade de forma (artigo 219.º CC), é também verdade que ao contrato
de transporte surge quase sempre ligado um documento de transporte. De todo o modo, continua
a defender a doutrina contemporânea que estemas perante um contrato consensual, e no duplo
sentido que a fórmula comporta. Em primeiro lugar, porque a lei não costuma exigir que as
declarações de vontade das partes se manifestem com determinada forma; vale, portanto, o
princípio da liberdade de forma. Esta solução resulta quer da inexistência de normas impondo o
formalismo, seja de várias disposições, onde se estabelece que da inexistência dos documentos
de transporte não resulta prejuízo para a validade do contrato de transporte (e no mesmo sentido,
a jurisprudência: acórdão RP 1983/10/06). Uma das exceções a esta normal consensualidade
emerge do artigo 3.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 352/86, onde se estabelece que «o contrato de
transporte de mercadorias por mar está sujeito a forma escrita». Refira-se que na vigência dos
artigos 538.º CCom – revogados pelo Decreto-Lei n.º 352/86 – a emissão do conhecimento de
carga já era exigida. Não se pense porém, que ao afastar o princípio da liberdade de forma o
nosso legislador tenha inovado ou imposto um custoso encargo às partes. Por um lado, os
documentos de transporte existem há séculos, nomeadamente o conhecimento de embarque, e
são hoje, como sempre foram, de utilização corrente. Por outro, neste âmbito, não se exige um
formalismo rígido, antes se concede uma ampla maleabilidade à forma escrita. Mas ainda
quando não se exige a forma escrita, da sua ausência resultam importantes consequências. Por
outro lado, o contrato de transporte é um contrato consensual no sentido de não real pois não se
Direito Marítimo | Professor Doutor Januário da Costa Gomes 2015/1016
260
exige, além das declarações de vontade das partes, a prática anterior ou simultânea de um certo
ato material, isto é, a entrega da mercadoria. A perfeição do contrato dá-se com o simples acordo
das partes. A entrega da mercadoria são já o início da execução do contrato. Atualmente, o
contrato de transporte apresenta-se, na esmagadora maioria dos casos, como um contratual
standard (contrato de adesão), assentando sobre cláusulas contratuais gerais. Não surpreende
que seja assim porquanto o Direito dos Transportes não é, nem nunca foi, alheio à aceleração da
história, nem à interpenetração entre Direito e realidade social, nem à padronização negocial
imposta pelo dinamismo inerente à atividade económica em geral e dos transportes em especial.
Embora ainda subsistam contratos de transporte com cláusulas especificamente negociadas, o
mais frequente é o recurso a um clausulado tipo. De tal forma que, segundo alguma doutrina, a
principal divisão do contrato de transporte operar-se-ia entre contratos standard e contratos
negociados. Autores há que apenas aceitam a qualificação de um contrato como de transporte
se se verificarem outros pressupostos. Assim, e por exemplo, para além dos aspetos expostos há
a realçar a posição tradicional da doutrina francesa que entende como elemento necessário ao
contrato de transporte o caráter profissional do transportador.
Transporte marítimo: a Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em
Matéria de Conhecimentos, assinada em Bruxelas em 25 agosto 1924 – mais conhecida por
Convenção de Bruxelas de 1924 –, constitui, ainda hoje, um marco essencial e o normativo mais
aplicado, relativamente ao contrato de transporte marítimo de mercadorias. Pelo Decreto n.º 19
857, de 18 maio 1931, foi autorizada a adesão de Portugal à CB. A subsequente Carta de Adesão
foi subscrita em 5 dezembro 1931 e depositada a 24 dezembro 1931. Seis meses após esta data,
isto é, a 25 junho 1926, a CB passou a produzir efeitos em relação a Portugal (artigos 12.º, alínea
2 e artigo 14.º CB). Continua a ser a única Convenção Internacional relativa ao contrato de
transporte marítimo a que Portugal aderiu. Aquela Convenção sofreu já duas alterações, uma
pelo Protocolo de 23 fevereiro 1968, outra pelo Protocolo 21 dezembro 1979, mas nenhum deles
mereceu a adesão de Portugal. O Decreto-Lei n.º 37.748, 1 fevereiro 1950, veio «introduzir em
Direito interno»? Os artigos 1.º a 8.º da Convenção. Perante as evidente limitações da CB 1924,
surgiu a necessidade de uma nova disciplina, necessidade colmatada com as Regras de
Hamburgo, entradas em vigor em 1992, e constantes da Convenção das Nações Unidas sobre o
Transporte de Mercadorias por Mar, de 31 março 1978, também conhecida por Convenção de
Hamburgo. Apesar de ainda não ratificada pelo nosso país, esta Convenção reveste grande
interesse para a matéria em análise; seja por conter as evoluções sofridas pelo regime aplicável
ao transporte marítimo de mercadorias desde a CB 1924, seja porque as Regras de Hamburgo
foram uma das principais fontes inspiradoras da reformulação do Direito Comercial Marítimo
português empreendida em 1986. Como referimos acima, o artigo 366.º, §4. CCom estabelece
que os transportes marítimos são regulados pelas disposições aplicáveis do Livro Terceiro do
mesmo Código, destacando-se neste Livro as normas contidas nos Capítulos V, Vi, VII do Título
I. Passado cerca de um século sobre sua publicação, sem qualquer alteração, fácil é imaginar o
desajustamento destes textos face à realidade a que se dirigiam. Daí a permanência da citada
reformulação. No que respeita ao contrato de transporte de mercadorias por mar, destaca-se a
publicação do Decreto-Lei n.º 352/86, 21 outubro, que, além de outros preceitos, revogou os
artigos 538.º a 540.º CCom, ou seja, todo o Capítulo V, referente ao conhecimento de carga.
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Secção II – O contrato de transporte de mercadorias
Subsecção I – Noção
Definição: tomando como referência a noção proposta para o contrato de transporte em geral
podemos definir o contrato de transporte de mercadorias como o contrato pelo qual uma das
partes – o carregador – encarrega outra – o transportador – que a tal se obriga, de deslocar
determinada mercadoria de um local para outro e de a entregar pontualmente ao destinatário,
mediante retribuição. Aqui, como em qualquer modalidade do contrato de transporte, a
deslocação assume especial relevo. Bem se compreende, por isso, o protagonismo que alguma
doutrina atribui ao transportador, uma vez que este é o responsável pela deslocação das
mercadorias. Porém, assiste-se, atualmente, a um afastamento do fulcro do contrato da
deslocação para a entrega. No início do século XIX o acento tónico era posto no momento da
carga, nas operações à partida da mercadoria e no acordo entre carregador e transportador tal
como emergia do documento de transporte. Já na maior parte do século XIX e do presente século
o contrato de transporte era o contrato dos transportadores, no sentido de que a sua posição era
a posição preponderante. Sublinhava-se, então, a obrigação de deslocar a mercadoria, mas de
acordo com as conveniências dos transportadores. Atualmente, o acento tónico é posto no
momento da entrega; vem-se entendendo que a deslocação embora constituindo a obrigação
principal do transportador não passa de um meio tendente a permitir a entrega da mercadoria ao
destinatário. Assim, este interveniente adquire uma insuspeitada relevância e o contencioso
relativo à entrega conheceu um incremento notável. Concomitantemente, faz-se agora constar a
entrega da noção do contrato de transporte de mercadorias.
O conceito de mercadoria: o regime jurídico do contrato de transporte assenta,
tradicionalmente, na summa divisio entre o contrato de transporte de pessoas e o contrato de
transporte de coisas. E também muitos autores apresentam as suas reflexões baseando-se nesta
dicotomia. No entanto, vários obstáculos desaconselham o estudo do contrato de transporte de
coisas, ainda que por contraposição ao contrato de transporte de pessoas: quer as dificuldades
emergentes do conceito de coisa, quer a multiplicidade e heterogeneidade de coisas existentes,
quer as especificidades inerentes ao transporte das diversas coisas, quer a correspondente
multiplicação de textos normativos sobre o contrato de transporte de certas coisas. Sendo assim,
fizemos incidir a nossa atenção, apenas, sobre o contrato de transporte de mercadorias. Importa,
pois, refletir sobre o conceito de mercadoria, com vista a tentar caracterizá-lo e circunscreve-lo.
De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa entende-se por mercadoria «tudo aquilo que
é suscetível de compra e venda; todo género que se destina ou se expõe à venda, que se compra
ou que se vende»; e por coisa «tudo o que existe ou pode existir». Daqui resulta, acertadamente,
que os termos mercadoria e coisa não são sinónimos, que o termo coisa é mais abrangente que
o vocábulo mercadoria. É um lugar-comum, dir-se-á; porém escasseiam elementos que auxiliem
na tarefa de determinar com rigor o que seja uma mercadoria. Quer dizer, constitui objeto do
presente estudo não o contrato de mercadorias, isto é o contrato de transporte de certas coisas.
Perante a evidente dificuldades em circunscrever o alcance do vocábulo mercadorias, os
diversos textos normativos, máxime as Convenções Internacionais relativas ao transporte de
mercadorias (repare-se que nenhuma destas Convenções se dirige ao transporte de coisas)
costumam incluir uma indicação. No entanto, são normalmente indicações insuficientes de onde
resultam dificuldades para o intérprete. Em matéria de transporte marítimo, segundo a CB, o
termo «mercadorias compreende os bens, objetos, mercadorias e artigos de qualquer natureza,
exceto animais vivos e a carga que, no contrato de transporte, é declarada como carregada no
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convés e, de facto, é assim transportada» (artigo 1.º, alínea c) CB 1924). O vocábulo
mercadorias tem, aqui, um alcance circunscrito, não abrangendo, também, as bagagens de
passageiros nem as plantas vivas. Nas RH, o alcance do vocábulo é ampliado passando a incluir
os animais vivos (artigo 1.º, n.º5 RH), os próprios contentores, palettes e embalagens similares
(artigo 1.º, n.º5 RH) e, por outro lado, são afastadas as tradicionais restrições quanto às
mercadorias transportadas no convés (artigo 9.º RH). O Decreto-Lei n.º 352/86 não define
mercadorias, nem se refere expressamente a qualquer mercadoria em especial, como por
exemplo aos animais vivos. Tal como a lei francesa de 1996, o Decreto-Lei n.º 352/86 aplica-
se a qualquer mercadoria, pois não exclui do seu âmbito nem os animais e plantas vivas, nem as
mercadorias transportadas no convés. No caso do transporte de mercadorias no convés, as
especialidades resultam não da mercadoria transportada mas do facto de o transporte ser feito
no convés. Do exposto resulta que o conceito de mercadorias se apresenta vage e o elenco de
ens aí contido variável. Não obstante, pode tomar-se (ao menos) como ponto de partida a
seguinte definição: mercadorias, no âmbito do contrato de transporte, são coisas que possam ser
objeto de operações comerciais ordinárias. Em relação a cada tipo de transporte há que atender
aos normativos aplicáveis.
Operações que necessariamente precedem ou se seguem à deslocação da
mercadoria: de acordo com a orientação hoje prevalecente, devem estar sujeitas ao regime do
contrato de transporte todas as operações que necessariamente precedem ou se seguem à
deslocação, sem prejuízo de estas operações poderem ser objeto de contratos específicos.
Referimo-nos às operações designadas de uma forma genérica por operações de manuseamento
de carga (manutention ou handling); no essencial, ao carregamento, estiva, descarga e
armazenamento das mercadorias. A CB aplica-se ao «carregamento, manutenção, estiva,
transporte, guarda, cuidados e descargas» (artigo 2.º), isto é, ao «tempo decorrido desde que
as mercadorias são carregadas a bordo do navio até ao momento em que são descarregadas»
(artigo 1.º, alínea e CB1924). Ficam, portanto, excluídos os períodos que medeiam entre a
receção e o carregamento e entre a descarga e a entrega; períodos em que também decorre a
execução do contrato de transporte. Segundo o artigo 7.º CB 1924, valerá o princípio da
liberdade contratual. Nos contratos de transporte marítimo de mercadorias nacionais, o regime
aplicável é o definido no Decreto-Lei .º 352/86. Relativamente ao período receção/carregamento,
o artigo 6.º Decreto-Lei n.º 352/86 estabelece a aplicação do regime do contrato de depósito
«regulado na lei civil» (isto é, artigos 1185.º e seguintes CC, o CCom dedica ao contrato de
depósito os artigos 403.º a 407.º). E ainda que ocorra a intervenção de terceiros em qualquer
operação relativa à mercadoria, nem por isso a responsabilidade do transportador é afastada,
embora este conserve o direito de agir (direito de regresso) contra esses terceiros (artigo 7.º
Decreto-Lei n.º 352/86). Também ao período posterior à descarga se aplica o regime do contrato
civil de depósito, porém, neste caso, o Decreto-Lei n.º 352/86 apenas prevê expressamente a
aplicabilidade de tal regime quando o transportador deve entregar a mercadoria, «no porto de
descarga, à entidade a que, de acordo com os regulamentos locais, caiba recebê-la» (artigo
18.º Decreto-Lei n.º 282-B/84, 20 agosto, sobre operadores portuários), sendo portanto aquela
entidade que fica sujeita ao citado regime. Se porventura o transportador não entregar as
mercadorias a tal entidade e continuar a detê-las – seja porque o destinatário se recusa a receber
a mercadoria (artigo 19.º Decreto-Lei n.º 352/86), seja porque várias pessoas pretendem a sua
entrega (artigo 20.º Decreto-Lei n.º 352/86), pode questionar-se qual será o regime aplicável.
Nas hipóteses previstas nos artigos 19.º e 20.º Decreto-Lei n.º 352/86, a mercadoria «fica à
guarda» da entidade referida (como se dispõe expressis verbis, mas apenas no artigo 20.º). Já
no caso do exercício do direito de retenção o transportador pode manter a mercadoria a bordo
(artigo 21.º, n.º 3 Decreto-Lei n.º 352/86) e neste caso a mercadoria continua embarcada,
aplicando-se, inquestionavelmente, a disciplina do contrato de transporte e sendo caso disso a
CB 1924. Mas pode também optar pela descarga da mercadoria, devendo então assegurar «com
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diligência a sua guarda e conservação» (artigo 21.º, n.º4 Decreto-Lei n.º 352/86). No artigo
23.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 352/86, o legislador veio dissipar as dificuldades em torno dos
conceitos de carga e descarga, ao estatuir: «para efeitos do disposto o presente diploma, a
mercadoria considera-se carregada no momento em que, no porto de carga, transpõe a borda
do navio de fora para dentro e descarregada no momento em que, no porto de descarga
transpõe a borda do navio de dentro para fora». Este critério gera uma situação peculiar: no
decurso da mesma operação aplicam-se regimes diferentes consoante a mercadoria esteja para
um ou para outro dos lados da borda do navio. A determinação exata do momento de embarque
e desembarque assume grande importância pois, entre o mais, por aí se apurará se é ou não
aplicável a CB 1924. Pires de Lima/Antunes de Varela afirmam claramente que a obrigação de
guardar uma coisa pode existir no contrato de transporte; no entanto advertem que, neste caso,
a obrigação de guardar é sempre secundária, acessória ou instrumental, enquanto no depósito
ela tem caráter final. O contrato de depósito tem natureza real, exigindo-se pra que exista a
entrega da coisa.
A receção da mercadoria a transportar: sendo o contrato de transporte um contrato
consensual, no sentido de não real, que fica celebrado com o encontro de vontades dos
contraentes, a receção da mercadoria, pelo transportador constitui o primeiro ato de execução
do contrato. O carregador tem aqui uma evidente obrigação de cooperação, pois deve entregar
a mercadoria para que esta possa ser transportada. Por sua vez, o transportador deve receber a
mercadoria se esta estiver de acordo com o estabelecido (a mercadoria pode ser recebida ainda
que não esteja conforme, mas devendo o transportador formular as respetivas reservas, sob pena
de vir a ser responsabilizado pelos defeitos apresentados pela mercadoria). A receção é o ato
pelo qual o transportador passa a deter materialmente a mercadoria e aceita transportá-la nas
condições em que se apresenta. A partir deste momento incide sobre o transportador o dever de
guarda da mercadoria a transportar. Como adiante melhor se verá, o transportador é um simples
detentor ou possuidor precário (artigo 1253.º, alínea a) CC), pois exerce um poder de facto sobre
a mercadoria a transportar sem intenção de agir como beneficiário de um direito real sobre a
mesma. Segundo Asquini, o transportador exerce a «detenzione del carico per conto del mittente
[expedidor] che resta possessore mediato». Não ocorrendo a entrega das mercadorias ao
transportador, o que inviabiliza, logicamente, a receção, torna-se impossível ao carregador tendo
este que suportar todas as consequências daí emergentes. Gonneli/Mirabelli entendem que não
é possível o transportador obter o cumprimento coativo da obrigação de entrega do carregador,
fundando-se no direito conferido pelo artigo 1685.º do CCIV 1942 ao carregador de, mesmo
após a receção, suspender o transporte e exigir a restituição da coisa ainda que com a obrigação
de pagar ao transportador as despesas e de reparar os danos por este sofridos. Além da
mercadoria o carregador deve entregar ao transportador todos os documentos que a devem
acompanhar e, bem assim uma declaração de carga. Se tiver sido convencionado que o preço de
transporte é pago à partida, o carregador deve, no momento da receção, pagar o preço do
transporte e das prestações acessórias. Incorrendo o carregador em mora, o transportador tem o
direito de suspender a execução do transporte (exceptio non adimpleti contractus), de exercer o
direito de retenção sobre a mercadoria (artigo 390.º CCom, artigo 755.º, n.º1, alínea a) e n.º CC;
artigo 2761.º CCIV 1942) e todas as demais prerrogativas que lhe assistem, na sequência da
mora.
A obrigação de entregar a mercadoria ao destinatário: entendemos que a noção do
contrato de transporte de mercadorias deve referir, de forma expressa, a entrega da mercadoria
ao destinatário; autonomizando-a, pela sua importância, da obrigação de deslocar a mercadoria,
onde costuma vir integrada. Não é supérfluo acentuar que a obrigação essencial do transportador
é de entregar a mercadoria ao destinatário. O transportador cumpre o que lhe impõe o contrato
de transporte com a entrega da mercadoria ao destinatário. O transportador cumpre o que lhe
impõe o contrato de transporte com a entrega da mercadoria ao destinatário. O cumprimento de
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contrato só pode ser aferido por referência a este momento; é no momento da entrega que o
destinatário verifica o estado das mercadorias. Por isso, hoje em dia, atribui-se mais importância
à entrega do que à própria deslocação da mercadoria. Finalmente, é a partir deste momento que
começam a contar-se os prazos de propositura das ações relativamente ao contrato. A obrigação
de entrega da mercadoria ao destinatário remete-nos para a estrutura triangular do contrato de
transporte, na medida em que chama ao contrato um personagem que não interveio na
estipulação entre carregador e transportador, mas a ela insitamente ligado. Importa sublinhar
que descarga e entrega são realidades distintas. A descarga é uma operação material, enquanto
a entrega é um ato jurídico, podendo decompor-se em dois momentos, a apresentação da
mercadoria ao destinatário e a sua aceitação. Segundo Rèmond-Goullioud no contrato de
transporte marítimo internacional de mercadorias a entrega coincide com a descarga. No entanto,
Palma Carlos manifesta opinião contrária.
Estrutura triangular: desde há mais de um século, no fundo desde que o contrato de
transporte surge com a sua fisionomia moderna, que se atribui ao destinatário um papel de
primeira importância, a ponto de atualmente se afirmar que o destinatário (ou talvez mais
corretamente, a entrega) é a razão de ser do contrato. Admitiu-se de forma pacífica que
carregador, transportador e destinatário são os três principais intervenientes no contrato. Já se
vê, então, porque falamos de estrutura triangular. Porém, esta constatação não evita a
persistência de dúvidas e discussões em torno da qualificação da posição jurídica do destinatário
e da natureza jurídica do contrato de transporte. Ainda hoje, no final do século XX, se continua
a discutir a natureza jurídica do contrato, mas sempre sem contestar a intervenção do carregador,
transportador e destinatário. Embora a doutrina maioritária continue a defender que o contrato
de transporte de mercadorias é um contrato bilateral e sinalagmático celebrado entre carregador
e transportador, sendo o destinatário um terceiro, logo se invoca a figura do contrato a favor de
terceiro. Quer dizer, mesmo de acordo com a perspetiva tradicional o destinatário não é afastado
do contrato, pelo contrário: o destinatário é uma figura essencial ao equilíbrio do instituto. Ainda
que a maioria o qualifique como terceiro, reconhece que é um terceiro próximo dos outros
intervenientes e particularmente interessado no resultado do negócio, pois o transporte tem em
vista a entrega da mercadoria ao destinatário. Segundo a orientação ainda hoje maioritária, o
contrato de transporte de mercadorias constitui um exemplo de contrato a favor de terceiro,
realizando-se por esta via a integração do destinatário no contrato. Carregador, transportador e
destinatário, todos diferentemente interessados no contrato, são como que vértices de um
triângulo. No lado carregador-destinatário temos a relação de cobertura ou de provisão. No lado
transportador-carregador verifica-se a relação de valuta. No lado destinatário-transportador
encontramos o direito do destinatário à prestação do transportador. Mas ainda que assim não se
entenda – i. e., ainda que se rejeita a qualificação do contrato de transporte ccomo contrato a
favor de terceiro – qualquer que seja a natureza jurídica que se pretenda atribuir ao contrato,
será sempre verdade que estamos perante uma estrutura triangular, existem três centros de
interesses, diferenciados mas complementares. Advirta-se, uma vez mais, que nos estamos a
referir à situação normal de contrato de transporte em que não há coincidência entre carregador
e destinatário. Coincidindo a pessoa do carregador no destinatário não existirá uma estrutura
triangular (fica postergada a trialidade), tudo funciona entre dois intervenientes principais: o
carregador e o transportador.
Subsecção II – Distinção de figuras próximas
Figuras próximas do contrato de transporte: breve enumeração: a caracterização do
contrato de transporte de mercadorias não ficaria completa sem o distinguirmos de figuras
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próximas com as quais se poderia confundir. A complexidade material que o envolve e que é
inerente ao mesmo potencia o surgimento de figuras contratuais gravitando na sua órbita, mas
dele distintas. Importa estudá-las e distingui-las, não só porque se afigura cientificamente
necessário traçar o respetivo perímetro substantivo porque a delimitação das diferentes figuras
é de suma importância prática, como bem demonstra a abundante jurisprudência produzida
sobre a matéria. Incluem-se neste grupo, nomeadamente, o contrato de expedição ou trânsito, o
contrato de reboque e o contrato de fretamento78.
O contrato de reboque:
1. Introdução: não se ignora que a discussão clássica a propósito do contrato de reboque
costuma confrontar o contrato de reboque marítimo com o instituto da salvação e
assistência; no entanto, a confundibilidade com o contrato de transporte, porque existe
realmente, não deve ser ignorada. De entre as várias modalidades que pode revestir o
contrato de reboque, sobressai pela sua importância prática o reboque marítimo. Mas,
como no já distante ano de 1873 constatava Éloy, o reboque marítimo só adquire a sua
relevância com o advento da navegação a vapor.
2. Noção e modalidades: de acordo com o Decreto-Lei n.º 431/86, 30 dezembro – que
estabelece o regime jurídico do contrato de reboque marítimo – «o contrato de reboque
é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a proporcionar a força
motriz de um navio, embarcação ou outro engenho análogo, designado rebocador, a
navio, embarcação flutuante diverso, designado rebocado, a fim de auxiliar a manobra
deste ou de o deslocar de um local para local diferente». De acordo com a definição
legal o elemento caracterizador do contrato de reboque, quer marítimo, quer de qualquer
outra natureza é o proporcionar força motriz. Este núcleo deverá ser entendido em
sentido amplo. Ou seja, proporcionar força motriz, não é apenas rebocar na aceção
corrente do termo de arrastar atrás de si, aceção que neste âmbito se revela demasiado
restritiva, mas também, por exemplo, travar ou acelerar o movimento do rebocado, ou
ainda empurra-lo. Repare-se que o elemento definidor é o proporcionar força motriz,
independentemente da finalidade que com ela se pretende atingir. O objeto do contrato
de reboque não é a deslocação, mas sim o proporcionar força motriz. Pode dizer-se que
a força motriz proporcionada é um meio tendente a um ceto fim. Só que esta finalidade
exorbita da obrigação nuclear do rebocador, este obriga-se, apenas, a fornecer força
motriz. A finalidade do reboque pode ser carreada para o âmbito contratual, mas será
algo que acresce ao núcleo definidor do contrato, e como tal não integra esse núcleo.
Importa sublinhar que à operação material comummente designada por reboque pode
não corresponder um contrato de reboque. Na verdade, a operação física pode ser a
materialização de diversas figuras jurídicas. Resulta assim que também aqui haverá de
atender à vontade das partes e às circunstâncias do caso para a determinação do instituto
em causa. O nomen iuris atribuído ao contrato celebrado pode ser irrelevante, por
exemplo, se se verificarem os pressupostos da assistência. Dito de outro modo, para
estarmos perante um contrato de reboque não basta a realização material de uma
operação de reboque, nem sequer que as partes a identifiquem como tal. Um outro
aspeto que importa abordar é a retribuição; será a retribuição um elemento essencial do
contrato de reboque? De iure constituto, estamos em crer que se trata de um elemento
só natural, embora seja um elemento presente na esmagadora maioria dos casos. A este
propósito, cotejando as disposições do Decreto-Lei n.º 352/86 com as do Decreto-Lei
431/86 resulta claro que o legislador adotou solução diferente nos dois casos. No
78 Saltámos, no resumo, as páginas 69 a 92 (atinentes à figura do transitário) face ao pouco relevo que se deu nas sucessivas aulas práticas e teóricas a esta figura: faz-se assim a remissão para as ditas
páginas para o seu estudo mais detalhado [大象城堡].
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primeiro, a onerosidade é apresentada como elemento essencial do contrato de
transporte marítimo. Diferentemente, «o contrato de reboque presume-se retribuído,
salvo acordo expresso em contrário», sem que da falta de retribuição resulte qualquer
diferença de regime. Finalmente, analisemos se para além de fornecer a força motriz, o
contratante rebocador não estará, também, obrigado a prestar um serviço de direção do
trem de reboque. Em nosso entender, do contrato de reboque tout court emerge apenas
a obrigação nuclear de proporcionar força motriz, sem mais. Mas é sabido que – até por
referência expressa do nosso legislador - «no cumprimento da obrigação, assim como
no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé». Não
repugna, por conseguinte, que o rebocador comunique ao rebocado indicações sobre a
direção deste. Deverá mesmo fazê-lo em certos casos, «dentro de um espírito de leal e
recíproca colaboração», por imposição de vertente positiva (obrigação de cooperação=
inerente ao princípio de boa fé. Mas daí não resulta que ele tenha uma obrigação de
direção do reboque, trata-se de um dever acessório de conduta, um dever lateral
emergente e reflexo da necessária e louvável eticização das relações jurídicas. Bernardin,
em análise de desencontrada jurisprudência, defende posição semelhante à exposta,
chamando a atenção para o facto de o fornecimento de força motriz levar inerente uma
obrigação de direção, embora se trate – no seu entender – de uma «obrigação
secundária e relativa». O Decreto-Lei n.º 431/86, 30 dezembro, dispõe no mesmo
sentido; indicando no respetivo artigo 8.º, n.º1 que, em princípio, «a direção do trem de
reboque pertence ao contratante-rebocado». Este problema da determinação da parte a
quem pertence a direção do trem de reboque é essencial, pois as obrigações que a lei faz
incidir sobre as partes dependerão desse elemento. Costumam distinguir-se várias
modalidades do contrato de reboque, atendendo ora ao meio físico onde se desenvolve
a operação material de reboque, ora à entrega do elemento rebocado, ora à direção do
trem de reboque, ora, ainda, atendendo a outros critérios. A tipologia que iremos
apresentar é meramente exemplificativa, constitui uma entre outras hipóteses de
sistematização. Reputamos necessárias as linhas que se seguem, para a compreensão do
conteúdo e alcance atribuído às múltiplas designações cunhadas pela doutrina,
legisladores e jurisprudência, bem como aos pontos de contacto existentes. No âmbit do
reboque marítimo, é usual distinguir dois tipos de reboque, consoante a operação
decorra nos portos ou em alto mar. No Direito Francês distingue-se estas duas
modalidades, diversamente do estatuído, por exemplo, pelo Decreto-Lei n.º 431/86, 30
dezembro. A esta distinção corresponde, tendencialmente, uma outra entre transporte e
reboque manobra. O contrato de reboque transporte, tal como é definido pelo Decreto-
Lei n.º 431/86, nada terá de transporte, a não ser a característica comum de em ambos
haver a entrega de uma mercadoria. Ora, se é esta a característica comum mais relevante,
então será de designar esta modalidade de reboque por reboque com entrega do
rebocado. E a remissão do decreto nacional para o regime do transporte também é
forçada, dever-se-ia, tão só remeter para as regras do contrato de depósito, a aplicar
cumulativamente com o regime do contrato de reboque. Entendemos que não há
reboque transporte, pois se uma das partes se obriga a rebocar uma coisa de um
determinado sítio para outro, então teremos um contrato de transporte e não um contrato
de reboque ou um reboque transporte. O critério que nos parece mais relevante prende-
se com a direção da manobra, ou, dito de outro modo, com a direção do trem de reboque,
uma vez que daí emergirá o funcionamento das regras de responsabilidade. É também
este o critério adotado pelo nosso legislador, solução anterior ao Decreto-Lei n.º 431/86.
3. Natureza jurídica: para a determinação da natureza jurídica do contrato de reboque
costuma a generalidade da doutrina e jurisprudência italianas distinguir entre reboque
com e sem entrega do elemento rebocado. Neste caso estaríamos perante uma espécie
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do contrato de transporte e naquele perante uma espécie do contrato de empreitada. Ora
esta tradicional visão dualista, caracterizada da doutrina e jurisprudência italiana, é
incorreta. Azevedo Matos, manifesta a este propósito uma opinião inconclusiva,
considerando que o contrato de reboque «é locação de serviços ou transporte e há nele,
expresso ou tácito e implícito, um contrato». Em nosso entender, o contrato de reboque
deve ser estudado e analisado com uma figura jurídica dotada de autonomia. Não
obstante as diversas modalidades que pode revestir e que devem ser tidas em conta, o
debate sobre o instituto deve incidir sobre o seu núcleo caracterizador e não centrar-se
nas categorias que a este núcleo acrescem, originando as várias modalidades. O contrato
de reboque é um contrato de prestação de serviços, tal como o contrato de transporte.
Por esta via já se vê que ambos entroncam em raiz comum, de onde resulta proximidade.
Mas distinguem-se: a obrigação definidora e característica do contrato de transporte é o
deslocar de um local para o outro, enquanto a do contrato de reboque e a de proporcionar
força motriz. E sê-lo-á qualquer que seja a modalidade que revista. O conceito unitário
do contrato de reboque encontra reflexo em disposições legais sobre a matéria. Assim,
o Decreto-Lei n.º 431/86 define a figura no seu artigo 1.º e no artigo 3.º ao fornecer a
noção de «reboque transporte» dá claramente a entender que esta modalidade entronca
no conceito de contrato de reboque.
4. A responsabilidade no contrato de reboque: um dos aspetos mais delicados que o
contrato de reboque suscita é o da responsabilidade perante terceiros. O sistema
preconizado pelo Decreto-Lei n.º 431/86, assenta na direção do trem de reboque. «A
parte a quem pertencer a direção do trem de reboque responde pelos danos ocorridos
durante a execução do contrato, salvo se provar que os mesmos não resultam de facto
que lhe seja imputável» (artigo 10.º Decreto-Lei n.º 431/86). Qualificado no n.º2 do
preâmbulo desse diploma como «o critério mais claro e natural», não nos parece que o
seja, pois suscita uma questão adicional e de problemática resposta, qual seja, a de
determinar a quem pertence a direção do reboque.
5. Distinção entre o contrato de reboque e o contrato de transporte: referimos já que
tanto o contrato de reboque como o contrato de transporte são contratos de prestação de
serviço, embora as respetivas obrigações nucleares sejam distintas. Por outro lado, no
primeiro está em causa, essencialmente, uma obrigação de meios e neste uma obrigação
de resultado. No contrato de reboque, o contratante-rebocador não se obriga à produção
de um resultado – deslocação dos elementos a rebocar para um determinado sítio –, mas
tão só a fornecer força motriz, dito de outro modo, vincula-se a diligenciar no sentido
de que aquele resultado se produza (não pode, portanto, ser reconduzido ao contrato de
transporte ou ao contrato de empreitada). Caso assim não suceda por facto que lhe não
é imputável, deve considerar-se desonerado. Trata-se de uma obrigação de meios, em
que o devedor pode cumprir a obrigação que sobre ele impende sem que o escopo visado
pelo credor se produza. Tenha-se sempre presente que o nomen iuris que as partes
atribuem ao contrato, embora possa constituir um indício num ou noutro sentido, não é
por si só decisivo. A distinção entre os dois tipos contratuais é difícil, podendo mesmo,
o reboque ficar sujeito ao regime do transporte marítimo. O próprio legislador admite
esta possibilidade no n.º1 do artigo 3.º Decreto-Lei n.º 431/86, invocando o regime do
contrato de transporte de mercadorias para regular cumulativamente o chamado reboque
transporte. Quer dizer, haverá casos em que não é possível estabelecer uma fronteira
definida entre os dois conceitos, em que a interpretação de elementos é tal que
inviabiliza a distinção. Bem se vê o alcance da aplicação do regime do contrato de
transporte ao contrato de reboque com entrega: não é lógico, nem correto aplicar o
regime de uma obrigação de resultado a uma obrigação de meios. O contrato de reboque
envolve apenas (hoc sensu) uma obrigação de meios, enquanto o contrato de transporte
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é uma obrigação de resultado. Em nosso entender, o contrato de reboque é um contrato
de prestação de serviço, em que a obrigação principal e caracterizadora é uma obrigação
de meios e não uma obrigação de resultado (hoc sensu). A noção de contrato de
prestação de serviço contida no artigo 1554.º CC fala em resultado. O vocábulo
resultado não deve aqui ser entendido no sentido de obra. O que vale por dizer, o
contrato de reboque não é um contrato de empreitada, mas tão só um contrato de
prestação de serviço. O contrato de reboque é uma figura contratual co autonomia.
Assim, não é, sem mais, que pelo facto de haver entrega que passaremos a estar perante
um contrato de transporte, nem pelo facto de serem prestados serviços suplementares
que estaremos perante uma situação de assistência, com a aplicação dos respetivos
regimes jurídicos. Veja-se a este propósito o artigo 4.º CB 1910. Uma remissão prudente
é admissível, mas não deve nunca perder-se de vista o cerne caracterizador do contrato
de reboque. Só analisando cada caso se poderá aferir se a figura contratual em presença
é um contrato de reboque ou um contrato de transporte. O legislador traça uma diferença
entre os dois institutos, mas que na prática tem um alcance reduzido, e prende-se com a
retribuição. A retriuiçãoé qualificada como elemento essencial no contrato de transporte
marítimo (artigo 1.º Decreto-Lei n.º 352/86), enquanto que o contrato de reboque apenas
se presume retribuído (artigo 5.º Decreto-Lei n.º 431/86). O alcance prático é reduzido,
uma vez que tanto um como outro são, normalmente, retribuídos. Compreende-se, pois,
que são distintos os dois contratos. No contrato de transporte a obrigação fundamental
e caracterizadora é a deslocação de determinada mercadoria e a consequente entrega ao
destinatário. Diferentemente, o rebocador obriga-se apenas a proporcionar força motriz,
zelosamente, é certo, mas independentemente do resultado que o rebocado pretende
atingir; obriga-se a desenvolver diligentemente certa atividade para a obtenção de um
determinado efeito, mas sem assegurar que esse mesmo efeito se venha a produzir.
6. Reboque e assistência: permeabilidade e autonomia: a discussão clássica no âmbito
do contrato de reboque estabelece-se entre o contrato de reboque marítimo e o instituto
da assistência marítima. Já em 1873 Eloy se referia explicitamente ao problema. Das
várias decisões jurisprudenciais sobre o assunto emerge a tendência constante de os
rebocadores/assistentes qualificarem como assistência situações de reboque, pois a
enumeração da assistência é superior à retribuição do contrato de reboque. Por esta
razão se diz «o reboque é o parente pobre da rica assistência». E esta diferença de
retribuição constitui o elemento motivador da distinção entre estas figuras. A linha entre
o contrato de reboque e o instituto da salvação e da assistência é particularmente ténue
nas situações em que o rebocador presta serviços excecionais. Este problema era
resolvido pelo artigo 4.º CB sobre assistência e salvação no sentido de que «só quando
houver prestado serviços excecionais, que não possam ser considerados como
cumprimento do contrato de reboque, terá o rebocador direito a remuneração pela
assistência ou salvação do navio rebocado ou da sua carga». Para Azevedo Martins o
elemento que permite distinguir o contrato de reboque da assistência é o perigo que o
assistido corre, neste caso. Assim, decidiu a Relação de Lisboa a 12/2/1958. Uma
disposição que se presta a interpretações equívocas é o artigo 682.º, §2.º CCom. De
acordo com esta norma, «deve-se salário de assistência quando o navio, achando-se no
mar com avaria, é socorrido e conduzido a bom porto com auxílio de terceiros». Quer
dizer, haveria assistência ainda que não se verificasse perigo. Entendemos, com
Azevedo Matos, não ser esta a interpretação correta. O instituto da assistência pressupõe
sempre excecionalidade, consubstanciada em perigo para o elemento assistido. Tem
sido também esta a orientação da jurisprudência.
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O contrato de fretamento:
1. Introdução: no âmbito do transporte marítimo, deve estabelecer-se a histórica
diferenciação entre o contrato de transporte e o contrato de fretamento Mas, se é certo
que existiu uma intensa discussão sobre o tema e que se trata de uma distinção
historicamente importante, é também verdade que a questão se encontra hoje
definitivamente esclarecida. Além de que a recente produção legislativa nacional veio
consagrar e institucionalizar a autonomização entre as duas figuras. Existem, pois, bases
sólidas que permitem ultrapassar o sincretismo antigo de forma segura. A distinção será
o único tema que merecerá a nossa atenção. Começaremos pela apresentação da noção
e das modalidades do fretamento marítimo. A seguir, passaremos ao confronto deste
instituto com o contrato de transporte e o contrato de locação. E concluiremos referindo-
nos à eventual existência do contrato de fretamento para além do âmbito da navegação
marítima e à locação de veículos de transporte, uma vez que nos momentos anteriores
nos reportaremos apenas ao âmbito marítimo.
2. Noção e modalidades: nos termos do artigo 1.º Decreto-Lei n.º191/87, o «contrato de
fretamento de navio é aquele em que uma das partes (fretador) se obriga em relação à
outra (afretador) a pôr à sua disposição um navio, ou parte dele, para fins de
navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete». Como
se vê o legislador acentua três aspetos: o colocar à disposição um navio ou parte dele, a
finalidade de navegação marítima e a retribuição. Estes elementos são necessários e
suficientes para a caracterização do instituto, o que a seguir se evidenciará aquando do
confronto com o contrato de transporte e com o contrato de locação. Não basta afirmar
que a essência do fretamento radica na obrigação de navegar, na utilização de um navio
para finalidades de navegação marítima. É também necessário referir a colocação à
disposição do afretador do navio ou de parte do mesmo (de espaço naval na expressão
da doutrina italiana: spazio navale). O contrato de fretamento pode revestir, segundo o
artigo 4.º Decreto-Lei n.º 191/87, três modalidades, a saber, fretamento por viagem
(artigos 5.º a 21.º), fretamento a tempo (artigos 22.º a 32.º) e fretamento em casco nu
(artigos 33.º a 42.º). Esta trilogia que o legislador crismou de clássica não coincide
inteiramente com as modalidades apontadas pela doutrina nacional, baseadas no elenco
do revogado artigo 542.º CCom, nem esgota o elenco das variantes possíveis. Não deve
confundir-se o fretamento em casco nu seja com o contrato de leasing de navios – erro
em que incorre o Decreto-Lei n.º 287/83, 22 junho – seja com a locação, embora o artigo
42.º Decreto-Lei n.º 191/87, 29 abril, preconize a aplicação subsidiária, ao fretamento
em casco nu, da «lei geral sobre a locação». Já do artigo 482.º CCom parece resultar
que o legislador concebeu o fretamento como modalidade especial do contrato de
aluguer mercantil. Mas são figuras destintas. Importa, também, destacar a noção do
contrato de fretamento por viagem acresce um importante elemento. Neste caso, o fim
a que o navio se destina é, por definição, apenas o transporte de mercadorias (artigo 5.º).
Outro tanto não sucede no fretamento a tempo nem no fretamento em casco nu (artigos
22.º e 33.º). Quer dizer, aquela afirmação de princípio segundo a qual o contrato de
fretamento pode ter por finalidade uma qualquer afetação marítima só será válida para
estas duas modalidades. A solução do artigo 5.º Decreto-Lei n.º 191/87, que vinca a
proximidade existente com o contrato de transporte de mercadorias, encontra apoio em
Rodière e merece o claro apoio de Mário Reposo. Por aqui facilmente se percebe que a
distinção entre o fretamento e o contrato de transporte assume destacada premência face
ao fretamento por viagem.
3. Distinção entre o contrato de fretamento e o contrato de transporte marítimo de
mercadorias. Do sincretismo à autonomização: a distinção entre o contrato de
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fretamento e o contrato de transporte marítimo de mercadorias só é estabelecida de
forma inequívoca enumerados do presente século (embora alguns a tenham pressentido
e defendido mais cedo). Até então, o contrato de fretamento absorvia todas as formas
de exploração do navio. O ponto de viragem deu-se em França, por impulso de Rodière
em 1966 onde, em duas reformas legislativas, se passam a definir e regular com clareza
as duas figuras. O nosso legislador seguiu o exemplo francês, embora com vinte anos
de atraso, regulando os dois contratos diplomas distintos: o Decreto-Lei n.º 352/86, 21
outubro, relativo ao contrato de transporte marítimo de mercadorias e o Decreto-Lei n.º
191/87, 29 abril, relativo ao contrato de fretamento. Após esta intervenção legislativa a
jurisprudência tomou a consciência da distinção. E a nossa escassa doutrina passou a
aceitar unanimemente a diferenciação, se excetuarmos o caso isolado de Palma Carlos.
A autonomização do contrato de transporte marítimo de mercadorias perante o contrato
de fretamento impõe-se até, por ser uma consequência lógica da realidade. Vejamos.
Nuclear no contrato de transporte é a deslocação das mercadorias. O que importa é a
deslocação das mercadorias nas condições acordadas e não o específico barco onde o
transporte é feito. Não está em causa o navio, a disponibilidade total ou parcial do
mesmo, mas sim a deslocação das mercadorias. O transportador assume a obrigação de
transportar. No fretamento, pelo contrário, está em causa a disponibilidade de um navio
(no todo ou em parte), «para fins de navegação marítima». O acento tónico é posto no
navio e não na deslocação das mercadorias. O fretador assume a obrigação de navegar,
hoc sensu. Ao contrário do que sucede no contrato de transporte, no contrato de
fretamento o fretador não fica responsável pelo exercício da atividade de transporte, não
se obriga a fazer chegar as mercadorias incólumes ao local de destino; limita-se a
colocar à disposição da outra parte (afretador) um veículo de transporte, podendo
eventualmente responder pelas suas deficiências. No fretamento as mercadorias não são
entregues ao fretador, pelo que sobre este não incide qualquer obrigação de custódia,
quer dizer: o fretador não é transportador. O risco do transporte corre por conta do
afretador. O afretador apenas é responsável pelo que respeita ao fornecimento do meios
e à atividade objeto do contrato de fretamento. Um traço auxiliar na demarcação
residiria, segundo o n.º1 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 191/87, na preponderância da
autonomia da vontade no contrato de fretamento, ao contrário do contrato de transporte
de mercadorias onde a «preocupação de proteger os carregadores deu a causa a uma
disciplina quase sempre imperativa». Sucede, porém, que este indício perdeu muita da
sua aptidão distintiva com a utilização generalizada de cartas-partida standard, facto que
o próprio legislador reconhece. A distinção é mais problemática quando se esteja
perante o fretamento por viagem. Mas, repare-se, embora o fim último seja o mesmo,
i.e., a deslocação de mercadorias; a tónica, objeto do contrato é, num caso o navio, no
outro a deslocação da mercadoria, tout court. Entre o fretamento por viagem e o contrato
de transporte de mercadorias existe proximidade bastante para atribuir ao fretador o
direito de retenção sobre as mercadorias transportadas (artigo 21.º Decreto-Lei n.º
191/897, e n.º4 do preâmbulo do mesmo diploma). A distinção – afirma Spasiano – é
simples, mas logo adverte que na prática podem surgir dificuldades. Na verdade,
operada a autonomização conceitual entre os dois institutos, a questão que ora subsiste
prende-se com o exato enquadramento no seu âmbito de situações concretas.