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DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO PROF. ANDERSON ROSA RIBEIRO 1 UNIDADE I - ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL 1. Entendendo o que é o direito internacional público Os Estados não são iguais. Suas características variam segundo diversos fatores (econômicos, sociais, políticos, culturais, comerciais, religiosos, geográficos etc.). À medida em que crescem os intercâmbios internacionais, nos mais variados setores da vida humana, o Direito transcende os limites territoriais da soberania estatal rumo à criação de um sistema de normas jurídicas capaz de coordenar vários interesses estatais simultâneos, de forma a poderem os Estados, em seu conjunto, alcançar suas finalidades e interesses recíprocos. Assim, o Direito deixou de somente regular questões internas para também disciplinar atividades que transcendem os limites físicos dos Estados, criando um conjunto de normas jurídicas (dinâmico por excelência) que visa disciplinar e regulamentar as atividades exteriores da sociedade dos Estados (e também, atualmente, das organizações interestatais e dos próprios indivíduos) é o que se chama de Direito Internacional Público ou Direito das Gentes. 2. Sociedade e comunidade internacional O Direito Internacional Público disciplina e rege prioritariamente a sociedade internacional, formada por Estados e organizações internacionais interestatais, com reflexos voltados também para a atuação dos indivíduos no plano internacional. Durante o cenário internacional do entreguerras entendia-se por sociedade internacional como o conjunto de nações civilizadas (para falar como o art. 38, § 1 °, alínea c, do Estatuto da CIJ). A formação desse conjunto corresponderia ao produto da vontade "racional" ou "instrumental" dos associados, nascida de uma decisão voluntária dos mesmos. Assim, a formação da sociedade internacional ocorreu por uma escolha livre e não depende senão da vontade das partes. Porém, o conceito de sociedade internacional está em mutação, que poderá ser modificado no futuro com a presença de novos atores nas relações internacionais, tais como algumas novas organizações internacionais e de outras

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DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO PROF. ANDERSON ROSA RIBEIRO

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UNIDADE I - ORIGENS DO DIREITO INTERNACIONAL

1. Entendendo o que é o direito internacional público

Os Estados não são iguais. Suas características variam segundo diversos

fatores (econômicos, sociais, políticos, culturais, comerciais, religiosos, geográficos

etc.). À medida em que crescem os intercâmbios internacionais, nos mais variados

setores da vida humana, o Direito transcende os limites territoriais da soberania

estatal rumo à criação de um sistema de normas jurídicas capaz de coordenar vários

interesses estatais simultâneos, de forma a poderem os Estados, em seu conjunto,

alcançar suas finalidades e interesses recíprocos.

Assim, o Direito deixou de somente regular questões internas para

também disciplinar atividades que transcendem os limites físicos dos Estados, criando

um conjunto de normas jurídicas (dinâmico por excelência) que visa disciplinar e

regulamentar as atividades exteriores da sociedade dos Estados (e também,

atualmente, das organizações interestatais e dos próprios indivíduos) é o que se

chama de Direito Internacional Público ou Direito das Gentes.

2. Sociedade e comunidade internacional

O Direito Internacional Público disciplina e rege prioritariamente a

sociedade internacional, formada por Estados e organizações internacionais

interestatais, com reflexos voltados também para a atuação dos indivíduos no plano

internacional.

Durante o cenário internacional do entreguerras entendia-se por

sociedade internacional como o conjunto de nações civilizadas (para falar como o art.

38, § 1 °, alínea c, do Estatuto da CIJ). A formação desse conjunto corresponderia ao

produto da vontade "racional" ou "instrumental" dos associados, nascida de uma

decisão voluntária dos mesmos.

Assim, a formação da sociedade internacional ocorreu por uma escolha

livre e não depende senão da vontade das partes.

Porém, o conceito de sociedade internacional está em mutação, que

poderá ser modificado no futuro com a presença de novos atores nas relações

internacionais, tais como algumas novas organizações internacionais e de outras

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coletividades chamadas de não estatais (como os beligerantes, os insurgentes, os

movimentos de libertação nacional etc.).

Por sua vez, a formação de uma comunidade internacional estaria a

pressupor um laço espontâneo e subjetivo de identidade (familiar, social, cultural,

religioso etc.) entre os seus partícipes, em que não exista dominação de uns em

detrimento de outros, em tudo diferindo da existência de uma sociedade.

Assim, para usar a fórmula clássica de Marcello Caetano, enquanto na

comunidade os seus membros "estão unidos apesar de tudo quanto os separa, na

sociedade eles "permanecem separados apesar de tudo quanto fazem para se unir".

Atualmente, a formação da ordem internacional baseia-se na ideia de

vontade dos seus partícipes (ainda que não espontânea) , visando a determinados

objetivos e finalidades comuns, o que está a caracterizar um agrupamento

nitidamente do tipo societário, e não comunitário.

3. Gênese do direito internacional público

O Direito Internacional Público vem, ao longo do tempo, desde a época

provável de seu nascimento, ganhando novos contornos e evoluindo pari passu ao

avanço da sociedade internacional.

Não se poder determinar uma data precisa para o seu nascimento, tem-

se como certo que o Direito Internacional Público é fruto de inúmeros fatores sociais,

políticos, econômicos e religiosos que transformaram a ordem política da Europa na

passagem da Idade Média para a Idade Moderna.

Foi tão somente a partir do final do século XVI e início do século XVII

que o Direito Internacional Público aparece como ciência autônoma e sistematizada,

principalmente a partir dos tratados de Westfália (de cuja elaboração Hugo Grotius

participou na qualidade de Embaixador do Rei da Suécia), concluídos em 24 de

outubro de 1648, que colocaram fim à sanguinária Guerra dos Trinta Anos (1618 -

1648), conflito religioso entre católicos e protestantes que teve como bloco vitorioso

esse último (dos protestantes), fortalecido pela França. Foi a reforma protestante a

motivadora da insurgência que mais tarde acabaria na Guerra dos Trinta Anos,

quando desmontou a unidade católica na Europa medieval, fomentando o início do

conflito. O que a reforma pugnou foi derrotar definitivamente o poder católico, a fim

de atribuir à autoridade civil o poder supremo dentro do território. E sua missão foi

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tão bem sucedida que, como explica Brierly, mesmo naqueles países que rejeitaram o

protestantismo como religião, a Igreja ficou tão profundamente abalada que não

pôde competir mais com o Estado como força política, fato esse responsável por dar

"um golpe mortal à ideia, já moribunda, de que o mundo cristão, apesar de todas as

suas lutas, constituía ainda em certo sentido uma unidade".

Com os dois tratados de Westfália (Tratado de Münster, assinado por

Estados católicos e Tratado de Osnabrück, assinado pelos protestantes envolvidos no

litígio) demarcou-se então a nova era do Direito Internacional Público, que a partir

daí passaria a ser conhecido como ramo autônomo do Direito moderno.

Assim, pela primeira vez, no plano internacional, aplicou-se o princípio

da igualdade formal dos Estados europeus e a exclusão de qualquer outro poder a

eles superior, criando um sistema pluralista e secular de uma sociedade de Estados

independentes, substituindo, desde então, a ordem providencial e hierarquizada da

Idade Média.

Foi de grande importância ainda por marcar o surgimento do que hoje

conhecemos por Estado moderno, que a partir desse momento passou a se tornar o

sujeito mais importante do Direito Internacional (é certo que com os temperamentos

introduzidos pelas normas mais modernas de Limitação da autoridade estatal).

O Congresso de Viena (1815) foi, depois dos tratados de Westfália, o

segundo grande marco do Direito Internacional e das relações internacionais. O

Congresso marcou o fim das guerras napoleônicas e estabeleceu um novo sistema

multilateral de cooperação política e econômica na Europa, além de ter agregado

novos princípios de Direito Internacional, como a proibição do tráfico de negros, a

liberdade irrestrita de navegação nos rios internacionais da região e as primeiras

regras do protocolo diplomático. Os aspectos principais desse sistema perduraram

até quase o início da Primeira Guerra Mundial.

Em conclusão, pode-se dizer que a afirmação histórica do direito das

gentes e, consequentemente, a prova de sua existência, decorreu da convicção e do

reconhecimento por parte dos Estados-membros da sociedade internacional de que

os preceitos do Direito Internacional obrigam tanto interna como

internacionalmente, devendo os Estados, de boa-fé, respeitar (e exigir que se

respeite) aquilo que contrataram no cenário exterior.

4. Problemas de definição

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São três critérios de definição utilizados para conceituar com precisão o

Direito Internacional Público:

a) critério dos sujeitos intervenientes - o Direito Internacional Público disciplina e

rege a atuação e a conduta da sociedade internacional (formada pelos Estados, pelas

organizações internacionais intergovernamentais e também pelos indivíduos);

b) critério das matérias reguladas - o Direito Internacional Público visa alcançar as

metas comuns da humanidade e, em última análise, a paz, a segurança e a

estabilidade das relações internacionais;

c) critério das fontes normativas - o Direito Internacional Público consubstancia-se

num conjunto de princípios e regras jurídicas, costumeiras e convencionais.

Sinteticamente, o Direito Internacional Público pode ser definido como

a disciplina jurídica da sociedade internacional. Esta fórmula reconhece a existência

de uma sociedade internacional (distinta da sociedade nacional, interna ou estatal) e

delimita os campos de aplicação respectivos do Direito Internacional e do Direito

interno.

Em uma definição mais abrangente (e mais técnica), o Direito

Internacional Público pode ser conceituado como o conjunto de princípios e regras

jurídicas (costumeiras e convencionais) que disciplinam e regem a atuação e a

conduta da sociedade internacional (formada pelos Estados, pelas organizações

internacionais intergovernamentais e também pelos indivíduos), visando alcançar as

metas comuns da humanidade e, em última análise, a paz, a segurança e a

estabilidade das relações internacionais.

5. Aplicação internacional e interna

Em direito interno as normas são hierarquizadas como se se

inscrevessem, graficamente, numa pirâmide encabeçada pela lei fundamental. Não

há hierarquia entre as normas de direito internacional público, de sorte que só a

análise política — de todo independente da lógica jurídica — faz ver um princípio

geral, qual o da não intervenção nos assuntos domésticos de certo Estado, como

merecedor de maior zelo que um mero dispositivo contábil inscrito em tratado

bilateral de comércio ou tarifas.

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UNIDADE II - FUNDAMENTO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

1. Fundamento do direito internacional

Saber qual o fundamento do Direito Internacional Público significa

desvendar de onde vêm a sua legitimidade e sua obrigatoriedade, ou os motivos que

justificam e dão causa a essa legitimidade e obrigatoriedade.

2. Doutrinas

A questão do fundamento do Direito Internacional Público tem sido,

desde longo tempo, objeto de inúmeros estudos, existindo várias doutrinas que

buscam demonstrar o fundamento jurídico de sua obrigatoriedade e eficácia (v.g. , as

doutrinas do direito estatal externo, da auto limitação, dos direitos fundamentais dos

Estados, da vontade coletiva dos Estados, do consentimento das nações, da norma

fundamental, da solidariedade social, da opinião dominante, as jusnaturalistas etc.).

3. Doutrina voluntarista

Para a corrente voluntarista, de base notadamente positivista, a

obrigatoriedade do Direito Internacional decorre sempre do consentimento

(vontade) comum dos Estados, da mesma maneira que o Direito interno funda-se no

assentimento dos cidadãos.

Daí também nominar-se tal doutrina de consensualista. Frise-se que

esse consentimento estatal pode ainda provir, além dos tratados, de uma vontade

tácita, pela aceitação do costume internacional, ou ainda das normas do

ordenamento jurídico interno. Em suma, de acordo com a concepção voluntarista o

Direito Internacional Público é obrigatório porque os Estados, expressa ou

tacitamente, assim o desejam e querem; o seu fundamento encontra suporte na

vontade coletiva dos Estados ou no consentimento mútuo destes, sem qualquer

predomínio da vontade individual de qualquer Estado sobre os outros.

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4. Crítica à doutrina voluntarista

Tal teoria, entretanto, não é imune a críticas. 6 A primeira delas é a de

que não explica como um novo Estado, que surge no cenário internacional, pode

estar obrigado por tratado internacional, norma costumeira ou princípio geral do

direito de cuja formação ele não participou com o produto da sua vontade.

Em segundo lugar - talvez esta seja a crítica mais concreta e relevante

contra a doutrina voluntarista -, se o Direi to Internacional encontra o seu

fundamento de obrigatoriedade na vontade coletiva dos Estados, basta que um

deles, de um momento para o outro, se retire da coletividade ou modifique a sua

vontade original para que a validade do Direito Internacional fique comprometida, o

que ocasionaria grave insegurança às relações internacionais.

A doutrina voluntarista, de índole subjetivista, não explica o

fundamento do Direito Internacional, cujas normas existem independentemente da

vontade dos Estados e, em vários casos, contra essa própria vontade.

Hodiernamente, por exemplo, o voluntarismo encontra um grande obstáculo nos

tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, nascidos em decorrência

do terror e da barbárie advindos da Segunda Guerra Mundial, que impõem limites à

atuação do Estado nos cenários interno e internacional, com vistas a salvaguardar os

seres humanos protegidos por suas normas.

5. Doutrina objetivista

Do fato evidente de ser o voluntarismo incapaz de resolver o problema

do fundamento do Direito Internacional Público, houve a necessidade de se

encontrar um princípio transcendente e objetivo que viesse pôr termo à questão.

Nascida nos últimos anos do século XIX, como reação dos filósofos,

sociólogos e internacionalistas às ideias voluntaristas, a corrente objetivista apregoa

que a obrigatoriedade do Direito Internacional advém da existência de princípios e

normas superiores aos do ordenamento jurídico estatal, uma vez que a sobrevivência

da sociedade internacional depende de valores superiores que devem ter prevalência

sobre as vontades e os interesses domésticos dos Estados.

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Para a doutrina objetivista, a legitimidade e obrigatoriedade do Direito

Internacional devem ser procuradas fora do âmbito de vontade dos Estados, ou seja,

na realidade da vida internacional e nas normas que disciplinam e regem as relações

internacionais, que são autônomas e independentes de qualquer decisão estatal.

Dentre os autores mais conhecidos, representantes dessa concepção, merecem

destaque Maurice Bourquin, Georges Scelle e H. Lauterpacht, segundo os quais o

Direito não é um produto da vontade humana, mas uma necessidade advinda de

fatores sociais.

6. Fundamento do DIP na regra pacta sunt servanda

Uma terceira corrente, mais moderna (e, a nosso ver, mais coerente) e

consagrada por instrumentos internacionais, acredita que o fundamento mais

concreto da aceitação generalizada do Direito Internacional Público, dentre as

inúmeras doutrinas que procuram explicar a razão de ser desse Direito, emana do

entendimento de que o Direito Internacional se baseia em princípios jurídicos alçados

a um patamar superior ao da vontade dos Estados, mas sem que se deixe totalmente

de lado a vontade desses mesmos Estados. Em verdade, trata-se de uma teoria

objetivista temperada, por também levar em consideração a manifestação de

vontade dos Estados. Afinal de contas, um Estado ratifica um tratado internacional

pela sua própria vontade, mas tem que cumprir o tratado ratificado de boa-fé, sem se

desviar desse propósito, a menos que o denuncie (e então, novamente, aparece a

vontade do Estado, hábil a retirá-lo do compromisso que anteriormente assumira).

UNIDADE III - RELAÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL COM O DIREITO INTERNO

1. Colocação do problema

Uma questão antiga, mas particularmente importante no campo da

disciplina do DIP, diz respeito à situação (eficácia e aplicabilidade) do Direito

Internacional na ordem jurídica interna dos Estados, ou seja, há grande discussão de

como resolver o problema das relações entre o Direito Internacional Público e o

Direito interno estatal.

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Ou seja, o Direito Internacional Público pode regular qualquer matéria,

muitas delas semelhantes (ou até idênticas) às do Direito interno.

EXEMPLO: Uma embarcação estrangeira pode ser apreendida por

desrespeitar as leis alfandegárias, e a sua tripulação julgada num tribunal interno da

autoridade que procedeu à apreensão. O Direito interno determina uma zona de

imposição de direitos alfandegários de x milhas. Os réus argumentam que o Direito

Internacional autoriza uma zona aduaneira de x menos 4 milhas, e que a embarcação,

quando foi apreendida, ainda não tinha entrado na zona em que a imposição se

justificava nos termos do Direito Internacional.

É claro que a questão pode ser colocada sob dois pontos de vista: o do

Direito Internacional, que enxerga o problema de fora para dentro; e o do Direito

interno, que o visualiza de dentro para fora. Evidentemente que cada Estado, levando

em conta variados fatores (tradição legislativa, cultura jurídica, aspectos econômicos

etc.) , disciplina como melhor lhe parece a questão da aplicação interna do Direito

Internacional. Mas isso não impede o Direito Internacional, que é superior aos

ordenamentos dos Estados, de dar a última palavra relativamente ao tema.

Nasce o problema do conflito entre normas internacionais e normas

internas, que poderá ser resolvido estudando-se a colisão entre dualismo (ou

pluralismo) e monismo.

Assim, a questão vem se desenvolvendo através dos tempos, tendo

surgido várias teorias que buscaram equacionar o problema, dentre as quais se

destacam duas, com seus temperamentos: a dualista e a monista.

2. Teoria dualista

O Direito interno de cada Estado e o Direito Internacional são dois

sistemas independentes e distintos, ou seja, constituem círculos que não se

interceptam (meramente contíguos), embora sejam igualmente válidos.

Portanto, de acordo com os dualistas, quando um Estado assume um

compromisso exterior, o está aceitando tão somente como fonte do Direito

Internacional, sem qualquer impacto ou repercussão no seu cenário normativo

interno. Para que isto ocorra, ou seja, para que um compromisso internacionalmente

assumido passe a ter valor jurídico no âmbito do Direito interno, é necessário que o

Direito Internacional seja "transformado" em norma interna, o que se dá pelo

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processo conhecido como adoção ou transformação. Assim, o primado normativo,

para os dualistas, é da lei interna de cada Estado, e, não, do Direito Internacional.

É dizer, a norma internacional só vale quando "recebida" pelo Direito

interno, não operando, a simples ratificação, essa transformação. Seria necessária

uma derradeira manifestação dos poderes constituídos (v.g. , do Poder Legislativo) , a

fim de transformar a norma internacional em norma interna. Nesse caso, havendo

conflito de normas, já não mais se trataria de contrariedade entre o tratado e a

norma interna, mas entre duas disposições nacionais, uma das quais é a

materialização da norma convencional transformada.

Dessa maneira, o direito internacional rege as relações entre os Estados,

e o direito interno as relações entre indivíduos.

Consequentemente, se os Estados não adaptarem o seu Direito interno

àquilo que a norma internacional ratificada recomenda, a norma interna continua

(equivocadamente) válida, sendo a única consequência a responsabilidade

internacional do Estado, em vista do descumprimento de um tratado ratificado pelo

Estado) . É esse o sistema adotado na Itália, em que, além da ratificação, se exige,

para a aplicação interna dos tratados, leis de aprovação. Na Islândia, em situação

análoga, o tratado somente passa a ser aplicável internamente após um ato especial

do Parlamento.

DUALISMO MODERADO - Os defensores do chamado dualismo

moderado, por sua vez, não chegam ao extremo de adotar a fórmula legislativa para

que, só assim, o tratado entre em vigor no país, mas admitem a necessidade de um

ato formal de internalização, como um decreto ou um regulamento executivo. A

Suprema Corte brasileira tem exigido, após a aprovação do tratado pelo Congresso

Nacional e a troca dos respectivos instrumentos de ratificação - o que, de resto, a

prática brasileira já segue há vários anos -, que seja o tratado internacional

promulgado internamente, por meio de um decreto de execução presidencial (não se

exigindo seja o tratado "transformado" em lei interna) . Para o Supremo Tribunal

Federal, tal decreto executivo, enquanto momento culminante do processo de

incorporação dos tratados ao sistema jurídico brasileiro, é manifestação essencial e

insuprimível, considerando-se seus três efeitos básicos: a) a promulgação do tratado

internacional; b) a publicação oficial de seu texto; e c) a executoriedadedo ato

internacional. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que o STF tem assumido a posição

dualista moderada. Mas deve-se esclarecer que a Suprema Corte jamais conseguiu

demonstrar o dispositivo constitucional no qual se fundamentou para dizer da

obrigatoriedade da promulgação executiva do tratado entre nós. Em nenhum de seus

artigos a Constituição de 1988 diz caber ao Presidente da República promulgar e fazer

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publicar tratados; o texto constitucional (art. 84, inc. IV) somente se refere à

promulgação e publicação das leis (e sabe-se já que quando a Constituição quer se

referir a tratados ela o faz expressamente, como no art. 5°, §§ 2° e 3° etc.).

3. Teoria monista

Os autores monistas (que têm em Kelsen o seu maior expoente) partem

de uma inteligência diametralmente oposta à concepção dualista, vez que têm como

ponto de partida não a dualidade, mas a unidade (ou unicidade) do conjunto das

normas jurídicas, internas e internacionais.Para a corrente monista, então, o Direito

Internacional e o Direito interno são dois ramos do Direito dentro de um só sistema

jurídico. Trata-se da teoria segundo a qual o Direito Internacional se aplica

diretamente na ordem jurídica dos Estados, independentemente de qualquer

"transformação", uma vez que esses mesmos Estados, nas suas relações com outros

sujeitos do direito das gentes, mantêm compromissos que se interpenetram e que

somente se sustentam juridicamente por pertencerem a um sistema jurídico uno,

baseado na identidade de sujeitos (os indivíduos que os compõem) e de fontes

(sempre objetivas e não dependentes - como no voluntarismo - da vontade dos

Estados).

Ainda segundo esta concepção, o Direito Internacional e o Direito

interno convergem para um mesmo todo harmônico, em uma situação de

superposição em que o Direito interno integra o Direito Internacional, retirando

deste a sua validade lógica.

Assim, Para a doutrina monista, a assinatura e ratificação de um tratado

por um Estado significa a assunção de um compromisso jurídico; e se tal

compromisso envolve direitos e obrigações que podem ser exigidos no âmbito do

Direito interno do Estado, claro está que não se faz necessária, só por isso, a edição

de um novo diploma normativo, "materializando" internamente (pela via da

transformação) o compromisso internacionalmente assumido.

Aceita a tese monista, surge, porém, um problema hierárquico a ser

resolvido, qual seja, o de saber qual ordem jurídica deve prevalecer em caso de

conflito, se a interna ou a internacional.

Assim, no que tange à hierarquia entre as ordens jurídicas interna e

internacional temos:

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4. Monismo nacionalista

A escola monista nacionalista apregoa o primado do Direito nacional de

cada Estado soberano, sob cuja ótica a adoção dos preceitos do Direito Internacional

reponta como uma faculdade discricionária.

5. Monismo internacionalista

Esta doutrina (que é resultado do antivoluntarismo) fora desenvolvida

principalmente pela Escola de Viena, cujos maiores representantes foram Kelsen,

Verdross e Josef Kunz, tendo se firmado no cenário mundial a partir do século XX,

notadamente após a Segunda Guerra Mundial.

O Direito interno deriva do Direito Internacional, que representa uma

ordem jurídica hierarquicamente superior. No ápice da pirâmide das normas

encontra-se, pois, o Direito Internacional (norma fundamental: pacta sunt servanda) ,

do qual provém o Direito interno, que lhe é subordinado. Ambos os ordenamentos, o

interno e o internacional, sob o comando deste último, marcham pari passu rumo ao

progresso ascensional da cultura e das relações humanas.

6. Monismo internacionalista dialógico

Não há dúvida de que a solução monista internacionalista "clássica” que

se acabou de estudar tem bem servido (até o presente momento) ao Direito

Internacional Público, contando com o apoio da melhor doutrina (tanto no Brasil,

como no exterior). Ela, porém, não diferencia as normas internacionais pelo seu

conteúdo (pelo seu núcleo material ou substancial) .45 Ou seja, a primazia da norma

internacional sobre a norma interna, para o monismo internacionalista clássico, é de

caráter intransigente (não admitindo qualquer concessão por parte da norma

internacional). Ocorre que, quando em jogo o tema "direitos humanos", uma solução

mais democrática (e, portanto, transigente) pode ser adotada, posição essa que não

deixa de ser monista, tampouco internacionalista, mas refinada com dialogismo (que

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é a possibilidade de um "diálogo" entre as fontes de proteção internacional e interna,

a fim de escolher qual a "melhor norma” a ser aplicada no caso concreto) .46 Essa

"melhor norma” há de ser encontrada à luz da dimensão material ou substancial das

fontes de proteção em jogo, prevalecendo a que maior peso protetivo tiver em

determinado caso concreto.

7. Doutrina conciliatória

Registre-se, por fim, apenas a título informativo, que atualmente soma-

se à contraposição dualismo-monismo uma terceira corrente (basicamente monista)

integrada pelas denominadas correntes coordenadoras ou conciliatórias, que

sustenta a coordenação de ambos os sistemas a partir de normas a eles superiores, a

exemplo das regras do Direito Natural. Esta posição conciliatória não encontrou

guarida nem nas normas e tampouco na jurisprudência internacionais.

8. Conflito entre tratados internacionais comuns e normas da Constituição

Modernamente, vários são os Estados em cujas Constituições existem

regras expressas e bem delineadas sobre as relações entre o Direito Internacional

Público e o Direito interno. Alguns deles, em suas Constituições:

1 - Trazem cláusulas de adoção global das regras do Direito Internacional pelo Direito

interno, sem, contudo, dar primazia de uma pela outra;

2 - Trazem também a cláusula de adoção global, mas também trazem regras

expressas no sentido de dar primazia às normas emanadas do Direito Internacional;

3 – Não trazem nem cláusula de adoção global e nem regras expressas.