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Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Graduação Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Pró-Reitora de Orientação e Assistência ao Estudante Sirlei Dias Gomes Pró-Reitor de Desenvolvimento Comunitário Ely Carlos Petry Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Representação Institucional Martim Carlos Warth Pró-Reitora das Unidades Externas Jussará Lummertz DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Editor Plauto Faraco de Azevedo Editor Associado César Augusto Baldi Conselho Editorial Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Altayr Venzon (ULBRA) DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Vol. 2 - Número 1 - 1º semestre de 2001 ISSN 1518-1685 U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000. Semestral 1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Ju- rídicas. CDU 34 CDD 340 Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas Etienne Picard (Université de Paris I/França) Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (UNISINOS) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha) José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS) Luís Afonso Heck (ULBRA) Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ) Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA) Vladimir Passos de Freitas (UFPR) EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Capa: Everaldo Manica Ficanha Projeto Gráfico e Editoração: Isabel Kubaski CORRESPONDÊNCIA/ADDRESS Universidade Luterana do Brasil PROGRAD/Divisão de Publicações Periódicas a/c Prof. Paulo Seifert, Diretor Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 127 92420-280 - Canoas/RS - Brasil E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. O conteúdo e estilo lingüístico são de respon- sabilidade exclusiva dos autores. Direitos auto- rais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

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ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugênio BeckerPró-Reitor de GraduaçãoNestor Luiz João BeckPró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoEdmundo Kanan MarquesPró-Reitora de Orientação e Assistência aoEstudanteSirlei Dias GomesPró-Reitor de Desenvolvimento ComunitárioEly Carlos PetryPró-Reitor de AdministraçãoPedro MenegatPró-Reitor de Representação InstitucionalMartim Carlos WarthPró-Reitora das Unidades ExternasJussará Lummertz

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRA

EditorPlauto Faraco de AzevedoEditor AssociadoCésar Augusto Baldi

Conselho EditorialAldacy Rachid Coutinho (UFPR)Altayr Venzon (ULBRA)

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRA

Vol. 2 - Número 1 - 1º semestre de 2001ISSN 1518-1685

U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – CiênciasJurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000.

Semestral

1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Ju-rídicas.

CDU 34CDD 340

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas

Etienne Picard (Université de Paris I/França)Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA)Ielbo Marcus Lôbo de Souza (UNISINOS)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)Joaquín Herrera Flores (Universidad PabloOlavide/Espanha)José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS)Luís Afonso Heck (ULBRA)Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ)Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

EDITORA DA ULBRAE-mail: [email protected]: Valter KuchenbeckerCapa: Everaldo Manica FicanhaProjeto Gráfico e Editoração: Isabel Kubaski

CORRESPONDÊNCIA/ADDRESSUniversidade Luterana do BrasilPROGRAD/Divisão de Publicações Periódicasa/c Prof. Paulo Seifert, DiretorRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 12792420-280 - Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]

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2 Direito e Democracia

Índice

3 Editorial

Artigos7 O centenário do “Méthode d’interprétation et sources en droit privé

positif” ~ Luiz Luisi

15 O princípio da diversão penal: um viés lusitano ~ Jayme Weingartner Neto

61 Do ensino jurídico: conhecimento e produção criativa do direito ~Plauto Faraco de Azevedo

73 Argüição de descumprimento de preceito fundamental- alguns aspectoscontroversos ~ Ingo Sarlet

97 A teoria da imprevisão e a nova codificação ~ Maria Regina SantiniMartins

117 Juizados Especiais Criminais: uma abordagem sociológica sobre ainformalização da Justiça Penal no Brasil ~ Rodrigo Ghiringhelli deAzevedo

141 A violência e os meios de comunicação social ~ Altayr Venzon

149 O direito fundamental de acesso à Justiça ~ Rosanne Gay Cunha

161 Direito Urbanístico como mapa das trilhas da Política Habitacional naPorto Alegre do Século XX ~ Betania Alfonsin

183 Alimentos transgênicos e o Direito ~ Márcia Fernandes Saitovitch

205 Poluição dos mananciais por dejetos suínos ~ Miguel L. Gnigler

213 El carácter político del control de constitucionalidad ~ Paula Viturro

Documento Histórico241 Declaração de princípios sobre a tolerância (UNESCO, 1995).

249 Normas para publicação

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Direito e Democracia 3

Editorial

Salienta Boaventura de Sousa Santos1 a necessidade de repensar o direito,de forma a criar novas inteligibilidades para a compreensão da relação exis-tente entre o direito e a sociedade. Destacando que o uso das metáforas acabapor transformá-las em literalidade, pugna por uma nova cartografia jurídica,buscando novas conotações para os mais diversos setores do direito, de formaa trabalhar com as noções de escala, projeção e simbolização. Diz, então, quea escala cria o fenômeno, as projeções estabelecem novas formas de percep-ção e que, portanto, a própria simbolização permite a visualização de fenôme-nos e aspectos que não eram perceptíveis à primeira vista.

A miopia da Escola de Exegese, que somente via na lei o direito todo, écontestada por François Geny, no artigo de Luis Luisi, que analisa o que épossível resgatar do pensamento do professor francês, passados mais de cemanos da publicação de sua obra fundamental. Uma visão voltada para o co-nhecimento crítico e a produção criativa do direito é a preocupação de PlautoFaraco de Azevedo, evidenciando a lacuna do desconhecimento da Históriado Direito e dos dados configuradores do quadro histórico presente e seusreflexos na aplicação do direito.

O espelho que maximiza o Direito Penal como solução de todos os proble-mas sociais e políticos e, portanto, distorce realidades e visibiliza apenas al-guns fenômenos, é tratado em dois artigos. Enquanto Jayme WeingartnerNeto discorre sobre o princípio da diversão penal, em que se procuram formasde desjuridicionalização do procedimento penal, Rodrigo Ghiringhelli deAzevedo aborda o processo de informalização da Justiça Penal, por meio dosJuizados Especiais Criminais. Nos dois casos, uma moldura mais ampla ampa-ra a análise: no primeiro, a comparação com o Direito português; no segundo,a ênfase no duplo procedimento legislativo de repressão e humanização. Oespaço do Direito Penal, aliás, tem sido pródigo em simbolismos e objeto demúltiplas projeções de medos e terrores.

O Direito Urbanístico visto como um “mapa” é, aliás, o motivo para aapreciação da política habitacional no município de Porto Alegre no século

1 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma cartografia simbólica das representações sociais. Coimbra, Revista Crítica deCiências Sociais, 24.

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XX, desde a invisibilização da população de mais baixa renda até as alteraçõesno sentido de um reconhecimento do direito à cidade sustentável, tratadopor Betania Alfonsin.

A utilização de um mapa que enfatiza o modo nacional de produção dodireito deixou de considerar, durante muito tempo, problemas que afetam osseres humanos em escala local e mundial. O cuidado com a regulação jurídicados alimentos transgênicos, que extrapola as fronteiras nacionais, é o foco dacontribuição de Márcia Fernandes Saitovich. Em escala local, salientando anecessidade de licenciamento ambiental para a criação extensiva de suínos,destaca-se o texto de Miguel Gnigler, tese aprovada em Congresso do Minis-tério Público, Órgão, aliás, cuja visibilidade social mostra-se compatível coma altura de suas responsabilidades.

No que toca ao Direito Constitucional, que é o grande mapa configuradordas estruturas jurídicas nacionais, Ingo Sarlet destaca os aspectos mais polê-micos da regulamentação do dispositivo constitucional que versa sobre argüi-ção de descumprimento de preceito fundamental. O acesso à justiça, entendi-do como direito fundamental, é a preocupação de Rosanne Gay Cunha, pon-to sobre o qual as preocupações jurídicas têm colocado pouca luz, apesar damagnitude do problema. Paula Viturro discorre sobre o caráter político docontrole de constitucionalidade, a partir da polêmica travada entre CarlSchmitt e Hans Kelsen.

O presente número de “Direito e Democracia” contém também escritosobre a teoria geral dos contratos. O contrato, não há dúvida, tem sido onúcleo destacado do mapa jurídico das sociedades ocidentais, o que é facil-mente perceptível na linguagem político-jurídica. Assim, diz-se ser neces-sário um “novo contrato social”, a sociedade é constantemente chamadapara estabelecer novo pacto entre governantes e governados, e, mais recen-temente, investe-se contra as garantias imanentes ao contrato de trabalho.A revisão da teoria, no Direito Privado, é a contribuição de Maria ReginaSantini Martins.

A ausência de certezas absolutas em muitos campos do conhecimento éuma das características de nosso tempo, cuja sociedade é tida, por alguns soci-ólogos, como uma “sociedade de risco”2. O paradoxo desta situação acha-seem que, por outro lado, é possível repensar os parâmetros sobre o quais se tem

2 BECK, Ulrich. La sociedade de riesgo. Barcelona: Paidós, 1999.

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trabalhado e desenvolver a criatividade dentro da incerteza, da instabilidadee da turbulência de escalas, como tem salientado Immanuel Wallerstein3.

O presente número pretende apresentar uma modesta contribuição para oencaminhamento das soluções dos problemas agudos, pelas quais urge o tem-po. Neste sentido, é indispensável refletir sobre os princípios da tolerância,de que trata o texto histórico deste número, contribuindo ao combate da ce-gueira da intolerância, em qualquer de seus níveis, buscando um diálogointercultural, multirracial e interreligioso, em que o outro seja efetivamentereconhecido e não apenas visto como um “inferior”, em virtude de crer empadrões de pensamento ou de conduta distintos daqueles assentes.

Finalmente, Altayr Venzon procura verificar como os meios de comuni-cação de massa refletem a violência, esta indesejável componente de nossotempo.

Plauto Faraco de AzevedoCésar Augusto Baldi

3 WALLERSTEIN, Immanuel. Incerteza e criatividade. Canoas, Logos 12 (2): 5-8.

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O centenário do Méthoded’interprétation et sources en droit

privé positifThe Centenary of the Méthode d’interprétation et

sources en droit privé positif

LUÍS LUISI

Professor Titular do Curso de Mestrado em Direito-ULBRAProfessor livre docente e do Curso de Especialização em Direito Penal, da Faculda-

de de Direito/UFRGS

RESUMO

Passados mais de cem anos da publicação do “Méthode d’interprétation et sourcesen Droit Privé Positif”, a crítica ao fetichismo da lei escrita e codificada, bem como anecessidade de ampliação das fontes do direito, constantes na obra de François Gény,continuam tão atuais quanto na época de sua publicação, em que ainda predomina-va o espírito legalista da Escola da Exegese.Palavras-chave: Metodologia do Direito, História do Direito, François Gény.

ABSTRACT

After over one hundred years of the publication of the “Méthode d’interprétation etsources en droit privé positif”, the critique to the fetichism of the written and codifiedlaw, as well as the need of enlarging the sources of law, as found in the work ofFrançois Gény, continue as updated as at the time of its publication, when the legal-ist spirit of the exegesis school still ruled.Key words: Methodology of Law, History of Law, François Gény.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.7-13

Artigos

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1 Faz mais de cem anos- 1899- da publicação do “Méthode d’interpretationet sources en Droit Privé Positif”, de François Geny. Esta obra daria um novoenfoque ao problema das fontes do direito e a matéria pertinente à interpre-tação.

Como acertadamente sustentou Recasens Siches, quando em 1899 apare-ceu o Méthode dominava na França e na Europa Continental em geral, oentendimento que as disposições dos Códigos, especialmente a do Código Civil,continham todas as regras necessárias para resolver qualquer problema jurídico.1

Deve-se ao Mestre de Nancy ter sustentado que a lei não era a única fonte dodireito, e que ao intérprete cabia, também, com a “libre recherche scientifique”,buscar o direito no âmago da realidade natural e social.

2 Os pensadores iluministas no século XVIII postularam a criação de umaordem jurídica de poucas, claras e simples leis, para usarmos a expressão deRousseau.2 Também sustentaram os enciclopedistas, enfática e zelosamente,que só ao Poder Legislativo incumbia elaborar, como também interpretar asleis. Ao Judiciário caberia tão-somente aplicá-las. A função judicial se res-tringia tão-somente ao mecanismo de um silogismo: a premissa maior é a lei,a premissa menor os fatos comprovados, e a sentença, a conclusão.

Consectário deste enfoque foi o famoso Decreto nº 1624, editado na Fran-ça em agosto de 1790, que previu o Instituto do Referée, segundo o qualinexiste uma lei que regulasse um caso concreto, ao Juiz cabia pedir à Assem-bléia a elaboração da lei que pudesse disciplinar essa espécie. Ainda em 1790-como expressão desta linha de legalismo extremado- foi criado, pelas leis de27 de novembro e 1º de dezembro, na França, o Tribunal de Cassação, inde-pendente do Poder Judiciário, e ao qual cabia cassar, isto é, anular toda a sen-tença que contivesse uma violação expressa do texto da lei.

Quando se procurou, todavia, elaborar o Código Civil, em obediência aodeterminado pela Assembléia Francesa em 1790, Cambeceres, ao apresentaro seu primeiro projeto, em agosto de 1793, à Convenção Nacional, e seu ter-ceiro projeto em junho de 1795 ao Conselho dos Quinhentos, expressamentereconheceu a absoluta impossibilidade de elaboração de um Código, comple-to e definido, capaz de prever todos os casos ocorrentes da realidade social.

1 RECASÉNS SICHES, Luís. Panorama del pensamiento jurídico en el siglo XX. México: Porrua, 1963. Tomo 1, p. 27.2 ROUSSEAU, Jean Jacques. Considerations sur le gouvernement de Pologne. Paris: Garnier, 1960. p.342

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Outro sentido não têm as palavras de Jean Etienne Marie Portalis em seufamoso discurso preliminar ao projeto de Código Civil Francês, pronunciadoem agosto de 1801: as necessidades da sociedade são tão várias, a comunicaçãoentre os homens, tão ativa, seus interesses tão múltiplos e suas relações tão intensasque resulta impossível para o legislador prever tudo. E mais: Tudo prever é umobjetivo impossível de atingir. Será, pois, um erro pensar que possa existir um corpode leis capaz de prever todos os casos possíveis. Face à insuperável existência delacunas no ordenamento jurídico, Portalis sustenta a necessidade de o Juizmuitas vezes recorrer ao costume ou à eqüidade, entendida esta como o retor-no à lei natural, em razão do silêncio, das contradições ou obscuridades das leispositivas.3

Todavia com o advento do Código Napoleão, em 18 de março de 1804, arigidez dos princípios iluministas, no concernente ao absoluto primado da lei,torna-se o princípio básico. Por força do artigo 4º do “Code”, ficando o Juizobrigado a julgar o caso concreto, Portalis entende que, havendo carência,contradição ou obscuridade da lei, pode o Juiz suprir essas deficiências com oscostumes e, principalmente, com a eqüidade, ou seja, o direito natural.

A Escola constituída pelos juristas voltados devotadamente para a análisedo “Code”- a Escola da Exegese- haveria de contrapor-se ao entendimento dePortalis, e sustentar que o Juiz, face ao imperativo do artigo 4º do “Code”, nãopodia socorrer-se de elementos estranhos à lei, mas encontrar no “Code”, porvia da analogia ou da dedução de seus princípios, a norma aplicável à espéciefática. Consagrava-se, com esse enfoque, não só a primazia da lei, mas tam-bém a sua exclusividade como fonte do direito. Inaugura-se, com a Escola daExegese, a monocracia da lei. Um longo reinado de um legalismo extremadoe exclusivista.

Nesta perspectiva, a Escola da Exegese introduz, como ressalta MarioCattaneo4, o dogma da completezza do ordenamento jurídico, inadmitindo aexistência de qualquer lacuna, e “consagra a possibilidade de resolver qual-quer caso com base no direito positivo, achando a norma dentro doordenamento.”

Essa idolatria da lei, com exclusão de qualquer outra fonte do direito, do-minou a ciência jurídica francesa no século XIX.

3 PORTALIS. Discurso preliminar del proyecto de Codigo Civil Frances. Madrid: Edeval, 1978. p. 35 e 43.4 CATTANEO, Mario. Iluminismo e Legislazione. Milano: Comunitá. P. 146.

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Segundo a lição de Antonio Hernandez Gil, as características da Escola daExegese são as seguintes: a) o direito positivo é todo o direito, e o direito positi-vo está constituído pela lei; b) a interpretação objetiva busca a intenção dolegislador, de tal forma que “os códigos não deixam nada ao arbítrio do intér-prete”, que não “tem por missão fazer o direito”: “o direito está feito”; c) o cos-tume nada vale: as insuficiências da lei se sanam com a própria lei, através daanalogia; d) o direito tem um caráter eminentemente estatal - dura lex, sed lex -, de tal modo que as leis naturais só valem quando sejam leis escritas, não ha-vendo maior eqüidade que a da lei, e nem mais racionalidade do que na lei.5

Jean Bonnecase, em clássica obra sobre a Escola da Exegese, assinala que amesma teve três fases. A primeira, de formação, iniciada com Melville, queem 1805 publicou “Analyse Raisonnée de la Discussion du Code Civil auConseil d’État”, à qual se seguiram os livros de Delvincourt, Proudhon eToullier. A segunda, do apogeu, marcada por extensos comentários do “Code”,e que teve marcada influência na jurisprudência francesa e de outros Países.São deste período as obras de Duraton, Aubry e Rau, Marcadé e Laurent, den-tre tantos outros. A terceira, da decadência, já em fins do século XIX, a quepertencem Baudry Lacantinerie, Demolombe e Guilhonard.6

No último decênio do século XIX, o “Code” revelava, com evidência, seuenvelhecimento ante a nova realidade sócio-econômica, resultante das re-voluções industriais ocorridas no curso do século. Uma série de estudos7 pas-sou a contestar o fetichismo legalista e a pregar a superação do exclusivismoda lei como fonte do direito, bem como a conveniência de uma revisão arespeito do que seja a interpretação jurídica.

A crítica definitiva e os novos rumos a serem dados à ciência do DireitoCivil, e do direito em geral, todavia, seria a obra de François Gény, com o seu“Méthode”. Em perspectiva histórica, este trabalho representa o término dalonga hegemonia da Escola da Exegese na ciência jurídica francesa. É o fim deuma visão estrita e exclusivamente legalista do direito.

Retorna, com o “Méthode”, uma visão pluralista das fontes, enfoque es-

5 HERNANDEZ GIL. Metodologia del Derecho. Madrid: Revista de Derecho Público. p. 57-58.6 BONNECASE, Julien. L’école de l’exégèse in Droit Civil apud HERNANDEZ GIL, op. cit. p. 56.7 GROSSI, Paolo. Ripensare Gény. Quaderni fiorentini, vol. 20, p. 7-8, antológico estudo sobre o Mestre de Nancy, noticia

um “pullalare di insoddisfazioni e di tentative di ricerca da parte di intelligenti homines novi di cui sono efficacetestemonianza per tutto il corso dell’ultimo decennio del secolo parecchie significative tesi dottorali”, mencionandoos nomes de Lambert, Josserand, Langlois e outros.

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quecido desde o “Discurso” de Portalis. Nega François Gény a monocracia dalei, alinhando, ao lado desta, como fontes do direito positivo, entre outras, ocostume e a jurisprudência. Acrescenta, contudo, não encontrada a regra nes-sas fontes, a busca do direito com a libre recherche scientifique. Quando a lei eas outras fontes do direito positiva falham, a busca da solução se faz através dalivre investigação científica. Livre, porque independente da vontade da au-toridade. Científica, porque se embasa nos elementos objetivos passíveis deconhecimento científico.

Esta livre investigação científica tem por elementos “dados”, ou seja, oselementos mais ou menos permanentes, que se encontram na realidade ounos princípios essenciais à ordem geral do universo. São dados que se devembuscar nas coisas, pois têm existência objetiva.

Esses dados ou são reais ou são históricos, e, ainda, racionais e ideais. Osprimeiros podem ser tanto as condições físicas e sociais, como o solo, o clima,a anatomia e a fisiologia do ser humano, a situação política, social e econômi-ca, os sentimentos religiosos, etc. Essas realidades não criam diretamente asnormas, mas delimitam e marcam o seu perfil. Os dados históricos são consti-tuídos através do tempo, tais como costumes, leis pretéritas, e os instrumen-tos de interpretação e aplicação das mesmas. Esses dados se inserem nos fatose oferecem à investigação científica do direito uma de suas bases mais impor-tantes. Os dados racionais são constituídos pelas regras jurídicas que a razãodeduz da natureza humana, e que se apresentam como necessários, imutáveise universais. Preceitos que a razão nos mostra como imperiosamente postula-dos pela natureza do homem. Os dados ideais consistem nas aspirações huma-nas relativamente à organização jurídica.

Esses dados são a matéria com que trabalha o jurista na livre investigaçãodo direito. Buscá-las é a missão da ciência do direito.

Ao jurista, no entanto, cabe também uma tarefa técnica, que é a de traba-lhar esses dados, em regra muito gerais e indeterminados, tornando-os con-cretos e precisos. A técnica, portanto, constrói a regra capaz de disciplinar asmúltiplas e variáveis exigências sociais.

A ciência tem por objeto os dados. À técnica cabe explicitar o direitoínsito nos dados, em normas capazes de atender aos reclamos da vida social.A ciência trabalha com os dados que se encontram no meio natural e no meiosocial. A técnica, a partir desses dados, constrói a norma capaz de regularconcretamente as relações humanas.

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3. Há, no entanto, um outro aspecto que é necessário enfatizar. Com estelivro, François Gény insurge-se, como já enfatizado, contra a monocracia dalei que a Escola da Exegese, por quase um século, fizera um axioma indiscutí-vel. E faz vingar uma concepção pluralista das fontes, e abre uma perspectivade pesquisa do direito no âmago da natureza das coisas. Dentre as fontes dodireito, todavia, François Gény confere à lei a primazia absoluta. Bem vistasas coisas, o Mestre de Nancy é, como textualmente afirma Paolo Grossi, umlegalista 8

A rigor, como sustenta José Luiz de Los Mozos9, o professor francês jamaisdiscutiu ou pôs em dúvida a importância da lei e a primazia desta como fontedo direito. Embora insurgindo-se contra o fetichisme de la loi écrite et codifiée,dá à lei e ao legislador um papel importante, posto que, no seu entender,l’injonction légale est un merveilleux instrument de sécurité des relations juridiquese uma pièce capitale de l’ordre10

A postura de Gény face à lei é de que a mesma é a fonte primordial erelevante do direito. Insurge-se, todavia, contra o entendimento de ser fonteexclusiva da ordem jurídica. Ao monismo legalista contrapõe um fecundopluralismo de fontes capaz de expressar toda a riqueza do permanente e docambiante da vida do direito. O jurista francês, portanto, não é umantilegalista, pois reconhece ser a lei indispensável. No entanto, surpreen-dendo a insuffisance irrémédiable de la loi para disciplinar a complexité infinie etla mouvance incessante de la vie sociale , preconiza o “alargamento” das fontes,de modo a fazer do direito um instrumento capaz ante a l’inépuisable richesse etla prestigieuse variété de la vie sociale11

4 Há, ainda, outro aspecto a salientar. A Escola da Exegese, como de restouma longa tradição jurídica, cujas origens de situam na Escola dos Glosadores,entendeu que a missão do jurista consistia apenas na interpretação da lei vi-gente. A este cabia procurar e desvendar o sentido da lei, para facilitar suaaplicação. É, pois, exclusivamente um intermediário entre a lei elaborada eseus usuários. François Gény atribuiu ao jurista, ainda,uma outra tarefa: atra-vés da livre investigação científica, como cientista, lhe compete descobrir

8 GROSSI, op. cit., p. 15.9 DE LOS MOZOS, José Luiz. Algunas reflexiones a proposito de la teoria de la interpretación en la obra de François Gény.

Quaderni fiorentini, vol. 20, 1991.10 GÉNY, François. La notion de droit positif à la veille du XXe siècle. Discurso em sessão solene na Universidade de Dijon,

em 8 de novembro de 1900. P. 2111 Ibidem, p. 17 e 21.

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nos dados naturais, racionais, históricos e ideais, o direito neles ínsito, e, atra-vés da técnica, explicitá-los em normas capazes de atender aos reclamos davida social. Não é, pois, um mero exegeta, mas um verdadeiro intérprete, emcontato direto com os fatos.

Neste início de século e de milênio, vivemos um momento de crise, comcertas semelhanças com o fim do século XIX. Estamos ante uma paisagemsócio-econômica produzida por uma extraordinária e trepidante revoluçãotecnológica, e ante novas articulações da organização econômica. E isto tudoestá a exigir a criação de novos institutos jurídicos capazes de disciplinar essasnovidades fáticas.

Esta realidade implica reconhecer que o jurista tenha hoje o perfil deline-ado por François Gény. Não um mero dogmático, mas cientista voltado parauma inédita realidade sócio-econômica, visando lhe dar disciplina jurídicaadequada. Não lhe cumpre apenas analisar a lei, mas ajudar a elaborá-la, ouseja, na lapidar frase de G. Capograssi, a recolher e depurar a vontade social,transformando-a dallo stato grezzo nel prodotto finito delle legge12

Passados mais de cem anos, o Méthode nada tem de arcaico. A sua mensa-gem renovadora é de evidente atualidade. E faz com que se possa incluirFrançois Gény na galeria dos juristas perenes.

12 CAPOGRASSI, G. L’ambiguité nel diritto contemporaneo. In: La crisi del diritto. Ed. Cedam, 1951. p. 14.

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O princípio da diversão e oMinistério Público: um viés lusitano

The Principle of Diversion and The Public Ministry: APortuguese Approach*

JAYME WEINGARTNER NETO

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul; Mestrando em Direito na Universidadede Coimbra; Coordenador do Curso de Direito da Ulbra, Campus Cachoeira do

Sul; Professor licenciado na Escola Superior do Ministério Público; Professor-Assisten-te da disciplina de Direito Penal.

RESUMO

O princípio da diversão tem raiz político-criminal plantada no Estado Democráticode Direito. Na sua concretização processual penal, o Ministério Público é instânciaprivilegiada de harmonização de regras processuais e preceitos constitucionais, comodemonstra a experiência portuguesa.Palavras-chave: Processo Penal, princípio da diversão, Ministério Público, DireitoComparado.

ABSTRACT

The principle of diversion has a political-criminal origin, rooted in the DemocraticState of Law. In its penal processual concretization, the Public Ministry is the privi-leged instance of the harmonization of processual rules and constitutional precepts,as has been demonstrated by the Portuguese experience.Key words: Penal Process, principle of diversion, Public Ministry, ComparativeLaw.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.15-59

* O presente texto foi apresentado como relatório de Direito Processual Penal no seminário dirigido pelo Pofessor DoutorJosé Francisco de Faria Costa, no âmbito do Mestrado na área de Ciências Jurídico-Criminais da Faculdade deDireito da Universidade de Coimbra, em junho de 2000.

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1 INTRODUÇÃO E APROXIMAÇÃO CONCEITUAL

O único herói capaz de cortar a cabeça à Medusa é Perseu,que voa de sandálias aladas, Perseu que não volta os olhospara o rosto da Górgona mas só para a sua imagemreflectida no escudo de bronze. (...) Para cortar a cabeçada Medusa sem se deixar petrificar, Perseu apoia-se no quehá de mais leve, o vento e as nuvens; e fixa o olhar no quesó poderá revelar-se-lhe numa visão indirecta, numa ima-gem captada num espelho. (...) A relação entre Perseu e aGórgona é muito complexa: não acaba com a decapitaçãodo monstro. Do sangue da Medusa nasce um cavalo alado,Pégaso; o peso da pedra pode-se converter no seu contrá-rio; com uma patada no Monte Hélicon, Pégaso faz jorrara fonte em que bebem as Musas. (...) Quanto à cabeça cor-tada, Perseu não a abandona mas leva-a consigo, fechadanum saco; quando os inimigos estão prestes a vencê-lo, bastaque ele a mostre, erguendo-a pela cabeleira de serpentes, eeste sangrento despojo torna-se uma arma invencível nasmãos do herói: uma arma que ele só usa em casos extremose só contra quem merecer o castigo de se transformar emestátua de si próprio. (...) Perseu venceu uma nova bata-lha, massacrou à espadeirada um monstro marinho, liber-tou Andrômeda. E agora dispõe-se a fazer o que qualquerum de nós faria após uma façanha deste gênero: vai lavaras mãos. Neste caso o seu problema é onde colocar a cabe-ça da Medusa. E aqui Ovídio tem versos que considero ex-traordinários para exprimir a delicadeza de alma que é ne-cessária para se poder ser um Perseu, vencedor de mons-tros: ‘Para que a rija areia não desgaste a cabeça anguímoca,amolece o terreno com uma camada de folhas, estende so-bre esta algas nascidas debaixo das águas e aí depõe a cabe-ça da Medusa, de cara para baixo’. Parece-me que não sepoderia representar melhor a leveza de que Perseu é o he-rói, do que com este gesto de refrescante gentileza para comaquele ser monstruoso e tremendo, mas também de certomodo frágil e deteriorável. Mas a coisa mais inesperada é omilagre que se segue: as algas em contacto com a Medusatransformam-se em corais, e as ninfas para se enfeitarem

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de corais acorrem aproximando ramos e algas da terrívelcabeça.” 1

Ao analisar-se o princípio da diversão, que surge no seio de uma políticacriminal tendencialmente efetivadora do Estado Democrático de Direito, nassuas concretizações processuais penais – e, de maneira correlata, ao enfatizar-seo papel catalisador do Ministério Público como instância formal de controle eagente político -, é possível clarificar diversas interações entre o sistema pro-cessual penal e o direito constitucional, numa via de mão dupla: a essencialpoliticidade de regras processuais e a densificação jurídica de preceitos consti-tucionais. Demonstrar tal caminho é a intenção do presente texto.

Numa primeira aproximação, diversão é um conceito reflexivo, que nãoprescinde de sua referência a um processo normal/padrão de solução dos lití-gios penais. Assim, toda tentativa de solucionar um conflito jurídico penalfora do curso normal da Justiça Penal é, genericamente, um modo desviado, dife-rente, divertido.2 Avançando, interessam mais precisamente as resoluções ob-tidas antes da determinação da culpa, o que retira do âmbito deste trabalhouma série de institutos que, não obstante, comungam de alguns postulados efinalidades (penas alternativas, probation, sursis etc.).

Expressão sinônima, menos anglo-saxônica, é desjudiciarização, termoque já indica a grande relevância que assumem, nestes casos, as instânciasformais de controle pré-judiciais, nomeadamente a polícia e o Ministério Pú-blico. No caso, por questão de espaço e opção metodológica, o foco centralrecairá na magistratura do Ministério Público. *

Ainda previamente, convém ressaltar que é do cerne do próprio institutoa participação voluntária do infrator/arguido/suspeito, sendo sua adesão cons-ciente às finalidades elemento fundamental.

1 CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milénio (lições americanas). 3ª ed. Lisboa, Teorema, 1998, trad. José C.Barreiros. pp. 18-20. As referências literárias estribam-se, conscientemente, na busca do resgate de um dos tipos deracionalidade moderna, talvez o mais esquecido em nosso campo de atuação, a racionalidade estético-expressiva dasartes e da literatura, acanhada diante da racionalidade moral-prática do Direito e esmagada pela cognitivo-instru-mental das ciências. Conceitos jurídicos, por vezes, nessa perspectiva, ganham expressão superior. A classificação, aretrabalhar Weber, encontra-se em SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 7ª ed. Porto, Afrontamento, 1999. p. 193.

2 COSTA, José Francisco de Faria. Diversão (desjudiciarização) e mediação: que rumos? Coimbra, 1986 - separata do v. LXI(1985) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 5.

* Este o “status” constitucional do Ministério Público em Portugal, cf. infra, item 4.

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Outro corte aqui impositivo é afastar o texto do desenvolvimento da me-diação, cujo conceito essencialmente não diverge da “diversion”, com notadistintiva, selo específico, isto é, a intervenção de um mediador, terceiro queentra no conflito buscando harmonizá-lo, reconciliar as partes mercê de es-tratégias comunicativas que privilegiam os espaços consensuais e cooperati-vos.3 Papel que é protagonizado por uma série de atores, preferencialmentenão jurídicos e num contexto privado, dependendo das nuances histórico-valorativas das diversas comunidades.

Sem desmerecer a possibilidade aberta pela mediação, seu estágio aindacomporta riscos excessivos, eventualmente mais potenciadora que apazigua-dora de conflitos, a par da pressuposição de intervenientes – sensíveis ao con-senso – na mesma posição, o que é meramente formal em face do consabidodesequilíbrio na distribuição dos bens, materiais e simbólicos, a reforçar posi-ções sociais de domínio. Ademais, ao revés da arbitragem, na mediação háque se encontrar solução que seja aceita pelas partes, já que os mediadores nãotêm poder para compelir à resolução do conflito. Sem embargo, o terceiroimparcial tem grande valor nos casos que envolvem “relações permanentes”– família, vizinhança, colegas de trabalho.4

A Associação Internacional de Direito Penal, no colóquio de Tóquio(março de 1983), ao versar sobre o tema, limitou a discussão aos desvios doprocesso criminal ordinário, antes de uma declaração judicial de culpa, quetermina com o caso sem um julgamento por um tribunal, propiciando aosuspeito a participação em algumas formas de programas não-penais, cujopropósito não é punir o transgressor, mas reabilitá-lo ou solver o conflitosubjacente à infração.5

2 TIPOLOGIA DA DIVERSÃO E DISTINÇÕES

Segundo a classificação explanada por Faria Costa6, a diversão, como gê-nero, comporta algumas espécies, como segue:

3 COSTA, Diversão, op. cit., p. 6.4 « Actes du Colloque (Dejudiciarisation – Diversion – et Mediation) tenu à Tokyo, Japon 14-16 mars 1983 », Revue

Internationale de Droit Pénal 54 (1983), pp. 894-5.5 Revue Internationale de Droit Pénal 54 (1983), p. 894.6 COSTA, Diversão, pp. 21-4.

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a) Diversão simples – presente quando a solução imediata do conflitoopera-se nas instâncias formais de controle pré-judiciais (políciaou Ministério Público), sendo de notar-se que se conjuga mais fa-cilmente com o princípio da oportunidade, embora ocorra, na práxisda pequena criminalidade, também em sistemas de legalidade(desjudiciarização na solução de conflitos em face da seletividade/discricionariedade real, eventualmente encobertas por argumentosde “insuficiência de provas” etc.). Exemplos o § 153 da StPO (or-denação processual alemã) e o art. 280 do Código de Processo Pe-nal Português (CPP);7

b) Diversão com intervenção – ocorre quando a suspensão do processo éobtida contra injunções e regras de conduta impostas pelo Ministé-rio Público ao argüído. Há, aqui, intercessão formal do órgão estatale conformação da conduta do arguido, sempre por adesão voluntá-ria, emblemáticos o § 153 a da StPO e o art. 281 do CPP;8

c) Diversão por mediação – embora já referida no item 1, merece aindarelevo a mediação mitigada, que se aperfeiçoa nos crimes privados ousemipúblicos, sempre que não desencadeado o impulso persecutóriopelo ofendido, podendo-se prescindir de mediador preciso.9

Difere, todavia, a solução divertida (de natureza processual) das viassubstantivas (não obstante partam de axioma idêntico) da descriminaliza-ção10 – quando o legislador subtrai a dignidade penal de uma infração,desqualifica determinada conduta que deixa de ser crime11 – e da

7 Adiante desenvolvidos.8 Idem.9 A noção é desenvolvida por Faria Costa (Diversão, p. 24), ao notar que “a não apresentação de queixa ou de acusação

particular pode ser o resultado de um conjunto de forças conflituantes que foram mediadas – e aqui indiscutivel-mente – pelo portador histórico do bem jurídico ofendido”.

10 DIAS (Jorge de Figueiredo), ANDRADE (Manuel da Costa). Criminologia. O Homem Delinquente e a SociedadeCriminógena. Coimbra, 1992, referem-se a uma descriminalização de fato: não aplicação da lei incriminatória porforça da renúncia da vítima (situação que se qualificou, supra, de mediação mitigada) ou como efeito das cifrasnegras (p. 401).

11 ZAFFARONI (Eugenio Raúl), PIERANGELI (José Henrique). Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 2ª ed. rev.e atual. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999, conceituam assim a descriminalização: “é a renúncia formal(jurídica) de agir em um conflito pela via do sistema penal. Isto é o que propõe o Comitê Europeu para a Descrimi-nalização em relação a vários delitos: cheques, furtos em fábricas pelos empregados, furtos em grandes lojas etc.” (p.357), que pode ser “de fato”, quando o Estado deixa de agir, sem que formalmente tenha perdido competência(exemplo seria o adultério no Brasil), mas “na maioria dos casos o que se propõe é que o Estado intervenha apenas demodo não punitivo: sanções administrativas, civis, educação, acordo etc.” (p. 358)

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despenalização12, em que persiste o ilícito com diminuição, redução da san-ção aplicável, ou, mesmo, pela remessa da solução repressiva para outroramo jurídico, caso das ordenações sociais.13

No caso da diversão, remanesce a infração intocada na sua dignidadepenal, mas é em nível de processo14, a afastar-se do formalismo regular,que se busca solução diferente, que prescinde da juridicização. O que nãocoincide com a bagatela, instituto de direito material que significa dispen-sa de pena (ausente requisito preventivo) em caso de culpa e ilicitudediminutas. É o caso do art. 74 do Código Penal Português; ao revés dadiversão, porém, que solve a questão antes da declaração de culpa, “paraque se faça uso desta medida é, assim, necessária a verificação de um juízode culpa”.15

3 INCURSÃO POLÍTICO-CRIMINAL

Indagar-se da origem e razões da profusão de medidas divertidas exigeadentrar na Política-Criminal que, ao ocupar-se da reformas do direito vigen-te, projeta o direito como deveria ser16, levantando preciosa ponte entre a

12 Segundo Zaffaroni, “é o ato de ‘degradar’ a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no qual entraria toda a possívelaplicação das alternativas às penas privativas de liberdade” (Manual, op. cit., p. 358).

13 Questiona-se, aqui, a mera burla de etiquetas, neste sentido a inclinar-se Faria Costa, taxando a transposição tópica de“falsa diversão”. Sugestivamente, “a infração deixou o mundo jurídico-penal, mas ainda gravita no universo jurídico-penal” (Diversão, p. 44), embora se reconheçam traços divertidos e fatores positivos, tais como menor estigmatizaçãoe diminuição da sobrecarga dos tribunais. Para um aprofundar da questão do direito de mera ordenação social, na suaespecificidade em relação ao direito penal, vide COSTA, José Francisco de Faria. Les problèmes juridiques e pratiquesposés par la différence entre le droit criminel et le droit administratif-pénal. Coimbra, 1988 - separata do v. LXII (1986) doBoletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 45 pp.

14 “Diversificação é a possibilidade legal de que o processo penal seja suspenso em certo momento e a solução ao conflitoalcançada de forma não punitiva. É o que acontece no ‘sistema de prova’ anglo-saxão ou o que está sendo tentadoem alguns países a respeito dos maus-tratos a crianças. No Brasil, a Lei 9.099, de 26.09.1995, retrata esta tendência.O mesmo ocorre no Peru, com a Lei 26.320, de 02.06.1994 e com o código de processo penal colombiano de 1991”(ZAFFARONI, obra citada, p. 358). “Em geral, todas essas tendências têm sido criticadas por parte dos criminologistascontemporâneos sob o fundamento de que são produto da crise fiscal do Estado e tendem a trocar o controleinstitucional pelo controle difuso na sociedade, o que levaria a uma ‘extensão’ da prisão a toda a sociedade. Cremosque estas objeções não se dirigem às tendências em si mesmas, mas às mudanças estruturais que podem ocorrer nassociedades centrais, e que em nada afetam o juízo que possam merecer do ponto de vista de nossas sociedadeperiféricas” (idem). Discorda-se da inclusão da probation no espectro da diversão, por pressupor determinação deculpa, como anotado já na introdução. Quanto à lei nº 9.099, do Brasil, vide infra (item 8).

15 GONÇALVES, Maia M. Código Penal Anotado. 13ª ed. Coimbra, Livraria Almedina, 1999. pp. 263-4.16 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Madrid, Editorial Civitas, 1999. Tomo I, trad. da 2ª ed. Alemã por Diego-

Manuel Luzón Peña “et alli”. p. 24.

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dogmática jurídico-penal e a criminologia.17

É dado de percepção geral a crise da sociedade moderna (que para alguns éjá, na falta de termo mais adequado, pós-moderna18), sendo uma de suas facetasmais visíveis a crise de aplicação da justiça, no bojo de transiçõesparadigmáticas mais amplas.19

Análises doutrinais, em muito confluentes, iluminam à perfeição tal con-texto, no prisma que ora interessa (em que pese a síntese):

3.1. Figueiredo Dias20 descreve a desordem dos modelos de política-cri-minal identificados por Galtung como azul e vermelho21, o que culmina nacrise da política-criminal.

17 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal. Parte general. 4ª ed. cor. e ampl. Granada, Editorial Comares,1993. trad. José Luis Manzanares Samaniego. pp. 36-7.

18 Acredita-se que o paradigma da modernidade, cientificista, de leis causais rigorosas, de um determinismo mecanicista,apresenta já rachaduras irrecuperáveis - a relatividade da simultaneidade (Eistein), a alteração do objeto peloobservador (física quântica, Heisenberg), a teoria das estruturas dissipativas, a ordem através de flutuações (Prigogine),e muito mais, a clamar por um paradigma emergente, científico (um conhecimento prudente) e social (uma vidadecente). Um conhecimento que é sempre autoconhecimento e que visa a constituir-se em senso comum: “Tenta,pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas.” Um senso comum retórico emetafórico, que “não ensina, persuade”, no qual “A prudência é a insegurança assumida e controlada” (SANTOS,Um discurso sobre as ciências, 11ª ed. Porto, Afrontamento, 1999, pp. 55-7).

19 O período de transição que atravessamos será “caótico” e “su resultado ultra-incierto”, discurso de Immanuel Wallerstein(El fin de las certidumbres y los intelectuales comprometidos) ao receber o doutorado “honoris causa” da Universidadede Puebla, 23/9/99 – http://fbc.binghamton.edu/iwbuap.htm

20 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime. Lisboa, Aequitas/Editorial Notíci-as, 1993.

21 É notável a eficácia da metáfora visual, quanto mais cromática, numa sociedade dominada pelas imagens, que padeceda pulsão do olhar. De forma impressiva: “as sociedades, tal como os indivíduos, usam espelhos e fazem-no de ummodo mais feminino do que masculino. Ou seja, as sociedades são a imagem que têm de si vistas nos espelhos queconstróem para reproduzir as identificações dominantes num dado momento histórico. São os espelhos que, ao criarsistemas e práticas de semelhança, correspondência e identidade, asseguram as rotinas que sustentam a vida emsociedade. Uma sociedade sem espelhos é uma sociedade aterrorizada pelo seu próprio terror.”, a desembocar na“crise da consciência especular: de um lado, o olhar da sociedade à beira do terror de não ver reflectida nenhumaimagem que reconheça como sua; do outro lado, o olhar monumental, tão fixo quanto opaco, do espelho tornadoestátua que parece atrair o olhar da sociedade, não para que este veja, mas para que seja vigiado.” - SANTOS,Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (Para um novo senso comum. Aciência, o Direito e a Política na transição paradigmática, v. I). Porto, Afrontamento, 2000. pp. 45-6. Noutro contexto,mas sugestivamente: “a televisão está a produzir uma mutação, uma metamorfose, que interessa a própria naturezado Homo sapiens. A televisão não é apenas instrumento de comunicação; é também, ao mesmo tempo, paidea, uminstrumento ‘antropogenético’, um media gerador de um novo anthropos, de um novo tipo de ser humano.” (SARTORI,Giovanni. Homo videns: televisão e pós-pensamento. Lisboa, Terramar, 2000. trad. Simonetta Neto, p. 28). O autorpostula que a profusão de comunicação visual degrada a capacidade de abstração e, portanto, a própria essência daespécie humana, como animal simbólico.

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Na alvorada histórica da luta burguesa contra o feudalismo, situa-se omodelo clássico e neoclássico22, de corte liberal, impregnado de um humanismoracional e idealista – modelo azul.

A pena é retribuição (nas linhas kantiana e hegeliana) e prevenção geral(intimidação), sendo a punição (castigo) função estatal a realizar-se sem la-cunas, o que reflete no processo:

a) igualdade formal;

b) princípio da legalidade na persecução penal;

c) judiciarização integral da matéria penal.

Na sequência, a ideologia do tratamento da escola positiva, no bojo dareação da classe trabalhadora contra a burguesia (modelo vermelho), articu-lando o Estado Providência ao ideal de reabilitação – o crime como doençasocial curável. Finalidade da sanção é a prevenção especial, perseguindo-se areinserção social por meio de terapias impostas pelo Estado, com asconsequências processuais:

a) princípio da oportunidade na “persecutio”;

b) individualização das sanções (paradigma epidemiológico);

c) diálogo terapêutico (ao invés da audiência penal clássica).

Claro que, na vida real, prevaleceram sistemas mistos, tendencialmenteneoclássicos no centro e sul da Europa e modernos nos Estados Unidos e Eu-ropa do Norte, sem descurar da influência do movimento de defesa social,moderado por Marc Ancel: Estado de Direito na base de um processo forma-

22 Contra englobar-se os diversos movimentos sob o manto de uma mesma escola, vide Zaffaroni, (Manual, loc. cit.): “Aexpressão ‘escola clássica’ foi uma invenção de Enrico Ferri. Segundo Ferri, há uma escola ‘clássica’ do direito penal,fundada por Beccaria, integrada por todos os penalistas não positivistas e capitaneada por Carrara. Esta pretensão éabsurda, porque ninguém pode afirmar judiciosamente que seja uma escola, nem sequer uma corrente de pensa-mento, algo integrado por pensamento revolucionário de cunho francês, idealista alemão, aristotélico-tomista,iluminista, kantiano etc., sem contar as sínteses pessoais de muitos dos autores que reúne nesta pretensa ‘escola’. (...)Pode-se afirmar, com absoluta segurança, que a denominação difundiu-se e, ainda hoje, fala-se em ‘escola clássica’e ‘escola positiva’, e existem pessoas que falam na ocorrência de um ‘armistício’ entre ambas. Não deixa de ser umrecurso bastante cômodo na ânsia de simplificar o problema... Jamais existiu uma ‘escola clássica’, a não ser na invençãode Ferri, e tão somente ocorreu um enfrentamento entre positivistas e todos aqueles que não compartilhavam seuspontos de vista.” (p. 299). Preferem, os autores, configurar a divergência entre concepções antropológicas: “Comefeito: o que houve foi um enfrentamento entre a concepção biológica do homem – sustentada pelo positivismo – e asdistintas concepções filosóficas do homem – sustentadas por seus opositores.” (p. 300), duas concepções antropológicasque não admitem meio-termo.

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lizado e garantido por juiz protetor de direito individuais; idéia de culpa/res-ponsabilidade individual e humanização, com substituição da detenção – pri-são como “extrema ratio” da política-criminal.

Se, na afirmação de Figueiredo Dias, a expiação retributiva não se coadu-na com o Estado Democrático de Direito, secular e plural, o tratamento for-çado viola a dignidade da pessoa humana (o direito à diferença), questionan-do-se mesmo o monopólio estatal da administração da justiça penal, com re-ação centralizada. Por outro lado, números (aumento de criminalidade, rein-cidências) sustentam o ceticismo sobre a eficácia da intervenção penal, e,paradoxalmente, resgatam a privação da liberdade, pura e dura, como a rea-ção criminal por excelência – just desserts em face do terrorismo e donarcotráfico, nos países nórdicos e anglo-saxônicos.23

O paradigma emergente (que se aproxima do modelo verde de desenvol-vimento24), todavia, aponta para uma não-intervenção moderada25, apoiadasobre três vetores:

a) descriminalização, cabível o direito penal apenas onde se verifiquemlesões de bens jurídicos essenciais das condições comunitárias e sócomo “extrema ratio” da política social;

b) diversão/desjudiciarização, a fim de se alcançar uma solução de con-flitos fora do sistema formal de aplicação da justiça penal (ao me-

23 A ‘crise fiscal’ do Estado do bem-estar é um fenômeno ocorrido na década de 70, cujo efeito é a necessidade de diminuirgastos públicos. Também ressentiu-se o nível de consumo das populações dos países centrais, eclodindo uma ideologiade ultradireita, ocasionalmente antidemocrática: “Esta tendência política manifestou-se em uma corrente inorgânicairracionalista, conhecida como ‘nova direita’, cujos expositores foram divulgados de forma desproporcional a seutalento filosófico, principalmente na França. Quanto à ideologia penal, traduziu-se em tentativas de restabelecimentoda pena de morte em toda a Europa, e alcança nos Estados Unidos sua manifestação menos incoerente, com o nomede ‘novo realismo criminológico’, cuja ‘bíblia’ parece ser um livro de Ernest van den Haag.” (ZAFFARONI, Manual,citado, p. 354). A “tolerância zero”, bandeira da prefeitura de Nova Iorque desde o início dos anos 90 (e que fezescola), supõe a ineficácia das estratégias brandas ou informais de controle social.

24 Zaffaroni e Pierangelli situam, no quadro de uma política criminal verde, o movimento abolicionista de Hulsman,destacando que peca porque “não situa claramente o problema na história. Temos afirmado e reiterado que o sistemapenal é somente uma forma do controle social institucionalizado e, como é lógico, o controle social não desaparecerá,porque não desaparecerá a estrutura de poder dentro da sociedade. Assim, o lógico será que, se o sistema penal cedemuita margem de controle social, este será igualmente exercido com outras formas que nem sempre serão melhoresquanto ao respeito à dignidade humana.” (idem, pp. 356-7).

25 “Intervenção mínima é uma tendência político-criminal contemporânea que postula a redução ao mínimo da soluçãopunitiva dos conflitos sociais, em atenção ao efeito frequentemente contraproducente da ingerência penal doEstado. Trata-se de uma tendência que, por um lado, recolhe argumentos abolicionistas e por outro a experiêncianegativa quanto às intervenções que agravam os conflitos ao invés de resolvê-los. É uma saudável reação realistafrente à confiança ilimitada no tratamento e na solução punitiva dos conflitos” (ibidem, p. 358).

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nos antes da determinação da culpabilidade/sanção), com o efeitopositivo de impedir-se o efeito estigmatizante. Não deixa de ser ocorrelato adjetivo da descriminalização; 26

c) descentralização/participação comunitária (que não se confunde comprivatização).

3.2. Na lição de Faria Costa27, liminar e oportuna advertência acerca daspeculiaridades históricas nacionais, ao constatar refrações à mediação no in-consciente coletivo português, que cedo viveu a tendência centralizadora queplasmou uma das primeiras nações modernas.28

Amparou-se, o sistema jurídico geral do modelo azul, na tríade liberdade,igualdade (formal) e judiciarização, fruto do embate contra o “ancien régime” eque representou, bem de ver, notáveis avanços. No subsistema de aplicação dajustiça penal, reaparece o tripé assente no homem livre e responsável, na retri-buição e na punição repressiva. Certo, também, que se preconiza maior rigor edureza em todos os momentos de aplicação da justiça penal, inclusive da peque-na criminalidade - o que sugere uma ideológica reação patrimonial burguesa.29

As lutas sociais do século XIX significaram o advento do proletariado comoprotagonista sócio-político30, ao mesmo tempo que dominavam correntespositivistas. O “modelo vermelho” parte, no geral, de idéias reducionistas, deconcreção e oportunidade, a implicar, no subsistema penal: prevenção espe-cial, ressocialização e tratamento.

26 DIAS, Direito Penal Português, op. cit., p. 67.27 COSTA, Diversão, pp. 9-21.28 José Hermano Saraiva destaca a precoce centralização do estado português, segundo o padrão a que se chamou

“moderno”; vide SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. 5ª ed. Publicações Europa-América, 1998. pp 130,154 e 162.

29 No mesmo sentido: “Mesmo um período como o do racionalismo-iluminismo, tão celebrado pelo seu empenhodescriminalizador, não deixou de conhecer o reflexo de um movimento de neocriminalização, alargando significa-tivamente a área global do criminalmente relevante. Tal sucedeu, por exemplo, no domínio das infrações contra opatrimônio e em homenagem, segundo a interpretação de FOUCAULT, aos interesses das novas classes possidentesem vias de afirmação.” DIAS/ANDRADE, op. cit., p. 434.

30 A assunção do operariado na cena política (ligada à adoção do sufrágio universal, em substituição ao censitário) teriatambém reflexos nos sistemas de governo: a partir do momento em que conquistava cadeiras no parlamento,agudiza-se a tendência a reforçar o poder executivo, mesmo nos sistemas parlamentaristas. Noutro contexto, mascom apreciação similar: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Para uma crítica da opinião pública: a propósito dasagressões ideológicas dos mass media reacionários. Universidade de Coimbra, sem data.

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A atitude é, segundo a sutileza da análise, “conformista” (resta esperar quea ciência descubra a causa do crime, enquanto a sociedade remete o problemapara o Estado Providência, concentracionista e dirigista na exata medida dapassividade da sociedade). O fluxo é unidirecional, do Estado ao delinqüente,e a terapia desconsidera um valor fundante da sociedade moderna, o direito àdiferença.

O aumento da criminalidade e sua natureza violenta alimentam oestreitamento das margens de tolerância, que tem vertentes clássicas e positivas,mas Faria Costa apresenta duas metas racional-valorativas:

1. evitar o estrangulamento do sistema de aplicação normal, vale di-zer, aliviar sua sobrecarga de trabalho, para que os conflitos comsuficiente dignidade penal sejam solucionados por órgãos imparci-ais e independentes;31

2. manter e intensificar o ideal de reabilitação, reduzindo ao máximoa estigmatização individual. Não permitir, portanto, que os órgãosestatais potencializem fenômenos naturais de estigmatização.

Uma das vias privilegiadas para alcançar tais propósitos é, naturalmente, adiversão. Quanto à via da desconcentração dos aparelhos de aplicação da jus-tiça penal, pressupõe um chamamento ao diálogo de indivíduos e pequenascomunidades. Aguda, contudo, a premissa levantada em forma dequestionamento: esse projeto tem adesão da sociedade, mormente em gran-des metrópoles, nas quais a regra é o anonimato, pouco remanescendo dovizinho no bairro periférico/dormitório? Qual o espaço de encontro nos aglo-merados que só funcionam em movimento?32

31 Houve grande divergência, no Congresso do Cairo, entre practitioners e scholars, prevalecendo a “pureza” dos últimos, nosentido de que a redução da sobrecarga do sistema não pode ser o objetivo principal da diversão (proposição que,aliás, já vinha do colóquio de Tóquio, cf. “Compte rendu des travaux de la troisième section (Diversion andMediation), Caire, Egypte 1-7 octobre 19843 » Revue Internationale de Droit Pénal 56 (1985), p. 511.

32 “Em Cloé, grande cidade, as pessoas que passam pelas ruas não se conhecem. Ao verem-se imaginam mil coisas uma dasoutras, os encontros que poderiam verificar-se entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as ferroadas. Masninguém dirige uma saudação a ninguém, os olhares cruzam-se por um segundo e depois afastam-se, procurandonovos olhares, não param. (...) Assim entre os que por acaso se encontram juntos a abrigar-se da chuva debaixo de umpórtico, ou se apinham debaixo de um toldo de um bazar, ou param para ouvir a banda no coreto da praça,consumam-se encontros, seduções, ligações, cópulas, orgias, sem que troquem uma palavra, sem que se toquem comum dedo, quase sem se olharem. Uma vibração de luxúria move continuamente Cloé, a mais casta das cidades.”(CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Lisboa, Teorema, 1999. trad. José Colaço Barreiros, p. 53). O “fazer” é novosegmento onto-ontropológico que entra em cena, ao lado do “ser” e do “ter”, expressão do movimento constante – deum perpetuum mobile sem parança – e que encontra seu lugar de eleição na chamada comunicação social , conceitode COSTA, “Os novos horizontes sobre os meios de comunicação social e a Justiça (ou a vertigem de Hermes)”,Direito Penal da Comunicação, pp. 121-2. Vide o movimento das cidades, conectadas por rotundas: “As metrópolis

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3.3. Roxin trabalha a idéia-força de subsidiariedade do direito penal naproteção dos bens jurídicos, pelo que é a última das medidas protetoras a con-siderar, só podendo intervir quando falharam os outros meios sociais de solu-ção dos problemas – o sistema penal como “ultima ratio” da política social, oque também significa que só tutelará alguns bens e não de forma total, mascontra determinados ataques concretos. Daí a natureza fragmentária do direi-to penal e o princípio da proporcionalidade, que deriva do princípio do Esta-do de Direito.33

Tais idéias abrem ampla margem de ação ao legislador, que conserva suaprerrogativa de estimação: o princípio da subsidiariedade é mais uma diretrizpolítico-criminal do que um mandato vinculante.34 Aponta, é certo, paradescriminalizações setoriais, para eventuais penas privadas, para a necessáriabipartição entre delitos graves e menos graves, comportando procedimentosabreviados e suspensão, quanto aos processos, a última categoria.

3.4. Jescheck, na mesma senda, afirma que a política criminal deve aten-tar para a hierarquia dos valores constitucionais (e os deveres de proteçãocorrelatos), bem como ao princípio da subsidiariedade.35 Assenta-a em dois megaprincípios: o da culpabilidade (limite e critério de aferição da medida da san-ção) e o do estado de direito, que pode ser visto através de um prisma formalou material.

Por outro lado, ressalta o tripé operacional da política-criminal: pena,medida de segurança e vias alternativas, cuja finalidade, por razões de preven-ção geral e especial, é não deixar sem reação estatal o delito cometido, mastampouco apenar o infrator. Nessa última hipótese destaca a “probation”, o

cada vez mais beneficiam a velocidade e o deslocamento. Numa linguagem simbólica, há mais ruas do que praças.‘Juntos, individualismo e velocidade, amortecem o corpo moderno; não permitem que se vincule’. Nos automóveis, a cidadecontemporânea procura conforto, segurança, rapidez e solidão.” (PASQUALINI, Alexandre. O Público e o Privado,“in”: “O Direito Público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel”, Alexandre Pasqualini...[et al.]; Ingo Wolfgang Sarlet, organizador. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1999. pp. 32-3) - embora algunsnúcleos de democracia participativa, v.g. o orçamento de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul,Brasil, pareçam questionar a clivagem conceitual de Benjamin Constant: a liberdade dos antigos, amiga da partici-pação na cidade, e a dos modernos, de não serem estorvados (assente na distanciação perante o poder), cf.CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 94.

33 ROXIN, op. cit., pp. 65-6.34 Idem, p. 67.35 JESCHECK, op. cit., p. 233.

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“sursis” franco-belga, suspensão com medidas ambulatoriais/hospitalares e,no que interessa mais diretamente ao tema, a renúncia ao exercício da acusa-ção pública para delitos menos graves (suspensão provisória do processo).

A crise do sistema sancionador tradicional (primordialmente o reconheci-mento do componente dessocializador da privação de liberdade) não carece demaior demonstração e as Resoluções da ONU, desde 1980, advertem ser obriga-ção dos Estados adotarem a prisão como “ultima ratio” e buscarem alternativas(multa, prestação de serviços comunitários, suspensão condicional).

Este, precisamente, o núcleo da diversão, a possibilitar reação jurídico-pe-nal sem sancionamento formal, ou seja, nos casos de escassa gravidade, o pro-cesso penal formal substitui-se por medida comunitária integrativa semestigmatização. A experiência alemã concentra-se nos §§ 153 e 153a do res-pectivo Código de Processo Penal.36

3.5. Noutra vertente, a criminologia de perspectiva interacionista37 real-ça o caráter criminógeno da reação formal à delinquência, problematizaçãoque assume uma dimensão intrinsicamente política.38

A injunção básica “leave the kids alone wherever possible” desdobra-seem quatro tópicos de política-criminal de corte interacionista: a descrimina-lização; a exigência de “due process”; a não intervenção radical (no sentidode que o “alargamento das margens de tolerância será, muitas vezes, a melhorforma de superação de conflitos e tensões”39) e a diversão, no escopo de desviarprincipalmente os jovens do estigmatizante sistema de justiça criminal, a parda conveniência de responder a condutas que denotam carências/perturba-ções, levando a soluções informais e não institucionais.

36 infra, item 7.37 labeling approach, deslocando-se do crime e/ou do delinqüente para o “estudo do impacto da reação institucional e da

estigmatização sobre a identidade e a carreira do delinqüente” (DIAS/ANDRADE, Criminologia, p. 356). A “novacriminologia” poderia resumir-se assim: a criminalidade não existe, mas se faz; é criada com a criminalização e excluídacom a descriminalização, cf. HASSEMER (Winfried), MUÑOZ CONDE (Francisco). Introdución a la criminologia yal derecho penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989. pp. 56-8. Embora a considerem excessiva, os autores reconhecemque a perspectiva demonstra que a intervenção do direito penal pode favorecer carreiras criminais (e que afeta commaior frequência e dureza aos integrantes dos setores socias mais baixos), além de iluminar uma investigação sobreo princípio da oficialidade da persecução dos delitos, na busca de funções substitutivas (p. 62) – vide, sobre o princípiocitado, infra, item 5.4.

38 Idem, p. 358.39 Ibidem, p. 360.

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28 Direito e Democracia

4 A DESJUDICIARIZAÇÃO E O MINISTÉRIOPÚBLICO

Não desconhecendo instâncias informais de controle, centra-se o “labeling”na análise da lei criminal (instância de criminalização primária), na polícia,no Ministério Público e no tribunal. A opção do texto, como se adiantou,cuidará apenas do Ministério Público, embora caiba noticiar característicascomuns do sistema formal de controle:

a) profissionalização e burocratização;

b) diferença fundamental de papel e atitude entre quem sofre e quemfaz a justiça (o delinquente dotado de reduzida competência de ação);

c) ambigüidade dos objetivos organizacionais (conflito entre lógica deprodução e lógica de justiça);

d) (in)coordenação entre as instâncias.40

Ainda como implicação político-criminal geral, é de se destacar a refra-ção sofrida pela lei penal em face dos “second-codes” das instâncias decriminalização secundárias – que podem frustrar as reformas legislativas maislegítimas e audaciosas.41

Inconteste o decisivo papel do Ministério Público como instância formalde controle, diante da sua função de deduzir a acusação ou de ordenar o arqui-vamento, a atuar como instância de seleção. Para ilustrar, na Alemanha Fede-ral, no ano de 1970, “dos 3.100.000 processos recebidos da polícia o MP man-dou arquivar 72%”.42

Historicamente, a superação do processo penal de estrutura inquisitória

40 DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., pp. 368-70.41 Na Alemanha Federal, por exemplo, atribui-se à rotina de atuação do Ministério Público o relativo insucesso dos

programas de diversão – isto é, de desvio de casos para fora do sistema de justiça penal -, recentemente introduzidasno processo penal relativo à pequena criminalidade, cf. DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 391.

42 cf. DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 472. Dados portugueses confirmam tal realidade: entre 1981 e 1993, ocoeficiente de acusação, depurado dos inquéritos pendentes, entrados e findos, oscila de 14,1% a 30,2% - fonteEstatísticas da Justiça, quadro apresentado por SANTOS (Boaventura de Sousa), MARQUES (Maria ManuelLeitão), PEDROSO (João). “O que se pune em Portugal”, in Sub Judice: Justiça e Sociedade 11 (1996), p. 88 – artigoque reproduz algumas das conclusões do relatório da investigação Os Tribunais na Sociedade Portuguesa, da responsa-bilidade de uma equipe interdisciplinar do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidadede Coimbra, dirigida pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos.

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medieval (de matiz canônico-italiana, que se consolidou com os Estados Ab-solutistas e Policiais autoritários que se seguiram) pelo processo penal refor-mado, de estrutura acusatória (multividência do Estado liberal), concretizou-se, com os ideais iluministas, na Revolução Francesa e na respectiva Declara-ção dos Direitos do Homem e do Cidadão, desaguando no “Code d’instructioncriminelle” de 1808 – e articula-se com a emergência do Ministério Público:“Com este (Código) o processo de tipo acusatório substitui, de vez, o tipoinquisitório, através da criação do Ministério Público como órgão oficial de acusa-ção (autonomizado da magistratura judicial) e da vitória dos princípios dacontraditoriedade, publicidade e oralidade do julgamento e da livre convic-ção probatória. Foi este sistema - podemos dizer de figurino anglo-francês eque na doutrina ficou conhecido sob nome de processo reformado – que naprimeira metade do séc. XIX obteve prevalência absoluta na generalidade daslegislações européias continentais”.43

Assim, salta aos olhos o relevo pragmático-político do Ministério Públi-co, que é quem, “em última instância, decide se a comunidade deve ou nãodar uma resposta formal a um caso concreto”.44 Não admira, portanto, quetenha ganho “status” constitucional nas cartas mais recentes.

Sem descurar da pluralidade do estatuto jurídico e sociológico do Ministé-rio Público (podendo-se colocar nos extremos o “prosecutor” americano45 e omodelo francês, com a figura intermediária do Ministério Público alemão), épossível e útil uma teoria geral do Ministério Público. Logo desponta, comonota comum, a discricionariedade real na atuação do Ministério Público, que seopera tanto em sistemas de discricionariedade formal (a “plea bargaining”dos Estados Unidos) como em sistemas de legalidade formal (Alemanha) –inerência da dimensão política da sua função.46

43 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, Universidade de Coimbra, Secção de Textos, p. 43. Movimentopendular semelhante ocorreu com o processo penal português (op. cit., p. 43, item 64; pp. 54-5, itens 81 a 83).

44 DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 472.45 O Ministério Público protagonista é a personagem glamourizada, para o bem e para o mal, pela indústria do entretenimento

norte-americana. E, contudo, há raiz histórica: “A história do MP na América é a história da progressiva e irreversívelexpansão do seu domínio, acabando por se sobrepor em larga medida ao da polícia e do tribunal ... Há sistemas em quea atuação do MP é plena e formalmente discricionária, como acontece, de forma paradigmática, no processo america-no... O MP americano é provido por via eleitoral, mediante programa sufragado por uma dada comunidade mais oumenos periférica. Por isso os critérios determinantes de sua atuação relevam fundamentalmente do empenho político namanutenção do lugar pela reeleição, ou na promoção política” (DIAS/ANDRADE, loc. cit., pp. 474 e 478).

46 As mais modernas teorias jurídicas e metodológicas estão de acordo em que a lei não permite uma subsunção automá-tica, antes deixa ao aplicador grandes margens de liberdade, “incluso en aquellos países en los que impera el mandatode certeza, como consecuencia del principio de legalidad recogido en los textos constitucionales” (HASSEMER/MUÑOZ CONDE, op. cit., p. 61).

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“Por um lado, o MP apresenta o estigma de Jano, condenado aser e atuar (simultânea e contraditoriamente) como juiz e comopolícia. Por outro lado, o MP é, por razões óbvias, a instânciaformal de controle mais claramente ligada às agênciasdefinidoras da política criminal. O MP é, por isso, a instânciade controle em cuja ação é possível identificar um maior coe-ficiente político. E também por essa via se ampliam as vias deconflito no interior do papel do MP: a dimensão política nãopode deixar de colidir com o seu ethos de polícia e de juiz.”.47

Se na origem concebeu-se o Ministério Público como elo de ligação entreo poder judicial e o poder político, hoje, nos termos constitucionais portugue-ses, é órgão do Poder Judicial: magistrados com garantias de autonomia e in-dependência (art. 219, 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, CRP),numa posição de “sujeição à lei” equiparável à dos juízes (CRP, art. 203).48

Sua função, não tendo natureza administrativa, é diferente daquela do juiz:o Ministério Público “colabora no exercício do poder jurisdicional, sobretudoatravés do exercício da ação penal e da iniciativa de defesa da legalidade de-mocrática”. Sua autonomia radica na vinculação a critérios de legalidade eobjetividade e na sujeição exclusiva às normas emanadas da lei do MinistérioPúblico.49

É de se frisar que a função do Ministério Público baliza-se pelo interessepúblico primário, exercida no interesse do Estado-Comunidade e não do Es-tado-Pessoa (Pizzorusso, apud Canotilho).

Considerando as maiores semelhanças entre os sistemas português (e bra-sileiro) e germânico, importa aprofundar a experiência teutônica, aliás di-retamente ligada à questão da diversão. Preliminarmente, há que se distin-guir dois sistemas de persecução penal, o da legalidade e o da oportunidade,ensejo para exame, mais amplo, das implicações constitucionais do temaem apreço.

47 DIAS/ANDRADE, Criminologia, ob. cit., p. 482.48 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra, Livraria

Almedina, 1999. p. 634.49 Idem, p. 635.

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5 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A íntima conexão entre o Direito Processual Penal e o Direito Constitu-cional é quase lugar comum, ressaltada pela unanimidade da doutrina con-temporânea. Por um lado, o crime é a maior ofensa que o indivíduo podedesfechar contra os bens da vida protegidos pelo Estado; de outro, a interven-ção penal é a mais aguda e gravosa invasão perpetrada pelo Estado na esferaindividual.50

Ademais, é consabido que o direito penal substantivo não atua por si, masexige a regulamentação complementar do ramo adjetivo (numa relação mú-tua de complementariedade funcional).51 Natural, pois, que o exercício do“jus puniendi”, na fórmula consagrada, fosse uma questão política fundamen-tal, inerente ao exercício do poder e, como tal, juridicizada e racionalizadapelo Constitucionalismo.

As respostas variarão de acordo com a evolução sócio-cultural de cadacomunidade, com a concepção política de fundo e as respectivas vicissitudeshistóricas, tudo a refletir-se na interação das duas ordens jurídicas.52 Nestaesteira, afirma-se que o direito processual penal é o “sismógrafo”, “espelho darealidade constitucional”, “sintoma do espírito político-constitucional de umordenamento jurídico”, verdadeiro direito constitucional aplicado, na dupla di-mensão destacada por Figueiredo Dias:

a) porque seus fundamentos são alicerces constitucionais do Estado;

b) porque cruciais problemas processuais têm concreta regulamenta-ção jurídica na Constituição.53

Por exemplo, “Ampliar ou restringir as garantias do argüido no proces-

50 A sugestiva imagem é de PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Trad. Gérson P. dos Santos, PortoAlegre, Fabris, 1989, pp. 16-7: “Se de um lado, a ação delituosa constitui, de fato, ao menos como regra, o mais graveataque que o indivíduo desfere contra os bens sociais máximos tutelados pela Estado, por outro lado, a sançãocriminal, também por sua natureza, dá corpo à mais aguda e penetrante intervenção do Estado na esfera individual.”

51 DIAS, Direito Processual Penal, op. cit., p. 5, item 5.52 Significativo, e exemplar, que a definição do processo penal italiano proposta por Ferrajoli (uma série de atividades

realizadas por juízes independentes na forma prevista pela lei e dirigidas a formulação, num debate público entreacusação e defesa, de um juízo consistente na verificação ou refutação empírica de uma hipótese acusatória e aconseguinte condenação ou absolvição de um acusado) baseie-se em nove artigos da Constituição Italiana e emapenas quatro do novo Código Processual. – FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. 2ª ed.Madrid, Editorial Trotta, 1997. trad. de Perfecto Ibáñez “et ali”. p. 732.

53 DIAS, idem, p. 35, item 51.

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so penal é problema político que muito tem a ver com a concepção dehomem subjacente à estruturação política de qualquer comunidade”. Por-tanto, o processo penal é o “mais sujeito a sofrer com as alterações consti-tucionais”.54

Esclarecedoras, e fecundas, as considerações feitas por Faria Costa, a partirda idéia de que o ordenamento penal e o ordenamento constitucional sãomatricialmente duas ordens jurídicas fragmentárias, e, embora a ordem cons-titucional eleja os valores mais fortes e mais densos (o núcleo duro danormatividade constitucional), “não determina essa eleição, inapelavelmente,uma imposição de criminalização para o legislador ordinário”, pois não hácoincidência (ou há curvas de diferença): “o direito penal não tem de ficaradstrito ou acorrentado, de um modo positivo, à ordem de valores jurídico-constitucionalmente protegida”.55

Nessa compreensão, “as referências e as implicações são recíprocas e tam-bém sucessivamente enriquecedoras”.56 Aceitar a função sistemática e de ori-entação da constituição não significa abdicar do quadro normativo de algu-mas categorias dogmáticas do direito ordinário, pois “a procura do exacto ecorrecto sentido normativo contido na norma tem de efectuar-se através desucessivos afeiçoamentos e ajustamentos entre o direito penal (com a suadogmática) e o direito constitucional, também ele apoiado pela sua especí-fica dogmática”.57

54 SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal. 3ª ed. rev. e atual. Lisboa, Editorial Verbo, 1996. v. I, p. 29.55 COSTA, José Francisco de Faria. O Perigo em Direito Penal. Coimbra, Coimbra Editora, 1992. pp. 188-9. Discorrendo

acerca da concepção kantiana do caráter co-natural que intercede entre o direito penal e a constituição (fundação)de uma comunidade organizada de homens, e sobre a confirmação antropológica da assertiva (a proibição do incesto,enquanto tabu, como ponto de viragem da hominização sem retorno, cf. nota 26, pp. 190-1), e passando pela noçãode “minimal state” de Gewirth, desemboca o autor numa linha de pensamento que faz do direito penal elementofundante da sociedade política (nota 27, p. 193), até porque o direito penal foi, de um ponto de vista histórico, um priusface à ordem constitucional, “o que está geneticamente na base, como vimos, da comunidade não é a fundaçãoconstitucional, mas antes a constituição penalmente fundante” (nota 31, p. 220). Noutra vertente, afirma-se que oDireito Penal, “não sendo de Direito Constitucional proprio sensu, é juridicamente constitucional, ou fundante”(CUNHA, Paulo Ferreira da. A constituição do crime: a substancial constitucionalidade do direito penal. Coimbra,Coimbra Editora, 1998. p. 90). Numa linguagem sugestiva, traça o dualismo simbólico: “O Direito Constitucionalapresenta o Estado nas grandes avenidas da pompa e da circunstância do poder triunfante: é narração do contodoirado de reis e rainhas (ou do mito republicano de presidente sábios, ponderados e rectíssimos), de parlamentaresdemofílicos e eloquentes, de grandes declamações de princípios e objectivos nacionais, ao som de hinos que fazemflutuar bandeiras e comover patriotas até as lágrimas. (...) Em contrapartida, o Direito Penal, direito de morte, direitode pobreza, direito de desvio social, direito de peso e de pecado, mostra-nos o lado negro da sociedade e do Estado:as mãos sujas e as mãos manchadas.” (pp. 92-4).

56 COSTA, O perigo, ob. cit., nota 28, p. 194.57 COSTA, idem, p. 199.

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Num esboço de cartografia constitucional58, vão destacados, por conse-guinte, os princípios gerais de processo penal mais diretamente ligados à di-versão (e ao Ministério Público).

5.1 O princípio da intervenção mínima ou da necessidadeSe o princípio da legalidade – no tríplice postulado: reserva legal, anterio-

ridade da lei definidora de crime e pena; determinação taxativa, evitando-setipos demasiado abertos e vagos; e irretroatividade59 - impunha limites aoarbítrio judicial, era necessário avançar mais e prevenir-se contra eventuaisabusos do legislador.

Na formulação iluminista, “A lei apenas deve estabelecer penas estrita eevidentemente necessárias” (art. 8º da Declaração Universal dos Direitosdo Homem e do Cidadão, 1789).60 Modernamente, tem-se destacado que oprincípio em tela é imanente ao Estado de Direito, articulando-se com aprópria dignidade da pessoa humana, constitucional, pois, mesmo que nãoliteralmente esculpido nas constituições (casos da Alemanha e da Itália,por exemplo).

58 A proposta, de uma cartografia simbólica das representações sociais (no caso, o Direito), é de SANTOS, Boaventura deSousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (Para um novo senso comum. A ciência, oDireito e a Política na transição paradigmática, v. I). Porto, Afrontamento, 2000. Os mapas são distorções reguladasda realidade, distorções organizadas (segundo escalas, projeções e simbolizações) para instituir a orientação. Devemser fáceis de usar, do que resulta permanente tensão entre representação e orientação (representação a mais podeimpedir a orientação) – pp. 183-90. O Direito Constitucional é talvez o ramo do direito estatal (que convive, nopluralismo jurídico, com direitos locais e globais) de menor escala num grau de média escala (entre o local e o global):“a legalidade de pequena escala é pobre em detalhes e reduz os comportamentos e as atitudes a tipos gerais eabstractos de ação. Mas, por outro lado, determina com rigor a relatividade das posições (os ângulos entre as pessoase entre as pessoas e as coisas), fornece direcções e atalhos, e é sensível às distinções (e às complexas relações) entreparte e todo, passado e presente, funcional e disfuncional. Em suma, esta forma de legalidade cria um padrão deregulação baseado na orientação e adequado a identificar movimentos” (p. 195).

59 vide LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre, Fabris, 1991. pp. 13-24. Princípio que, no contexto delegalidade da administração, articulado com o da segurança jurídica e o da proteção da confiança, é considerado umsubprincípio concretizador do Estado de Direito, cf. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit. pp. 252-3.

60 De forma desenvolvida, LUISI, obra citada, pp. 25-30. Tratava-se da positivação do que fora anunciado, vez primeira em1764, pelo gênio de Beccaria, logo no ponto II dos “Delitti”: Toda a pena que não deriva da absoluta necessidade – dizo grande Montesquieu – é tirânica (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,1998. trad. José de Faria Costa. p. 64. Como observa o Professor Marinucci, da Universidade de Milão, ao prefaciar aobra citada (p. 39), mais tarde von Liszt repetiria que só a pena necessária é justa, máxima reconduzível, em termospolítico-criminais, a idéia de que a pena criminal deve ser a extrema ratio. No dizer de Faria Costa, tradutor ecomentador do clássico (p. 20): “É assim propugnado um uso parco, cauto e racionalmente fundamentado do direitopenal. Aquela utilização que seja, na verdade, a expressão clara e inequívoca de ultima et extrema ratio.”

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Deriva, daí, o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal, que sódeve entrar em cena como remédio último, concepção que se choca com aexcessiva extensão da legislação penal, o fenômeno da “overcriminalization”(aliás criticado desde o início do século XIX), a afrontar, muitas vezes, obrocardo milenar “minima non cura praetor”. Contra a hipertrofia penal, anomomania, a inflação legislativa, a nomorréia penal, têm protestado, desdesempre, significativa parcela do pensamento jurídico-criminal, a germinar erecomendar um esforço de deflação penal.

Sob ponto de vista português, “O artigo 18, 2º da Constituição da Repú-blica Portuguesa, por seu lado, deve porventura reputar-se o preceito políti-co-criminalmente mais relevante de todo o texto constitucional: vinculan-do a uma estreita analogia material entre a ordem axiológica constitucional ea ordem legal dos bens jurídico-penais, e subordinando toda a intervençãopenal a um estrito princípio de necessidade, ele obriga, por um lado, a toda adescriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalizaçãodispensável...”.61

Recorde-se que a diversão é a face adjetiva da descriminalização e tem-seum princípio constitucional que postula viabilizar-se toda diversão possível.

5.2 O princípio da culpa ou “nulla poena sine culpa”Significa, consabido, que a cominação de reação criminal só pode ter por

base um juízo de censura ao agente – não pode haver pena sem culpa(reprovabilidade),62 cuja medida mensura a própria dosimetria penal.

Seu fundamento axiológico repousa no princípio da inviolabilidade da dig-nidade pessoal, plasmado nos artigos 1º, 13-1º e 25-1º, todos da Constituiçãoda República Portuguesa.63

61 DIAS, Direito Penal Português, ob. cit., p. 84. Vide, também, COSTA, O perigo, p. 208 (em especial nota 11). Num prismamais lato, enunciado como princípio da proibição de excesso – da proporcionalidade em sentido amplo, videCANOTILHO, Direito Constitucional, loc. cit., pp. 261-7, com referência à intrigante questão da “proibição pordefeito”, no sentido de imposições constitucionais de criminalização a fim de proteger-se direitos fundamentais. Cf.,ainda, supra, nota 53.

62 O contrário, subsistir culpa sem pena, é possível, vide art. 74 do Código Penal Português.63 cf. DIAS, Direito Penal Português, loc. cit., pp. 73 e 84. Como esfera constitutiva da república, princípio material antrópico

do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo seu próprio projeto de vida, vide CANOTILHO,Direito Constitucional, ob. cit., pp. 221-2.

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Neste sentido, como acuradamente destacado, estrutura-se o princípio emapreço como tendencial obstáculo a medidas interventivas que, à partida,prescindam de um juízo de censurabilidade, a tensionar-se com reações infor-mais ou divertidas.64

5.3 O princípio da reserva estatal da administração dajustiça penal

A culpa, vale dizer, o juízo de censura penal, deve ser declarada por umórgão judicial e, assim, “nulla poena sine judicio”. O princípio vincula-se his-toricamente a vitória da monarquia na luta dos poderes medievais travada nosistema feudal, concentrando o rei funções “soberanas” antes repartidas pordiversos setores sociais (nobreza, igreja).

A superação da poliarquia medieval, na expressão de Hegel, deu-se parti-cularmente cedo em Portugal, sendo tradição lusitana – o rei a afastar qual-quer veleidade de “compositio” entre os particulares.65

O princípio em exame insere-se no marco das garantias processuais, quepossibilitam a existência de uma proteção jurídico-judiciária individual semlacunas, um dos pilares do Estado de Direito.66 Trata-se, por outro lado, deaplicação, específica, do princípio do monopólio estatal da função jurisdicional,em conexão com os dois itens seguintes, atinentes à iniciativa processual.

5.4 Princípio da oficialidadeA quem compete desencadear a investigação de uma infração? E quem

decide submetê-la ou não a julgamento? A disjuntiva é simples: ao próprioEstado (ente público) ou ao indivíduo concretamente ofendido (particular).Em linha geral, admite-se que a promoção processual é tarefa estatal, que

64 COSTA, Diversão, op. cit., p. 37.65 Trata-se do modelo de superação de litígios através da soberania, que se estratificou na alvorada do Estado moderno,

assim formulado por Bodin em 1576 – o soberano, sem qualquer contraste interno, como terceiro isento, acima daspartes (que se dilaceravam em disputas religiosas, como na emblemática noite de São Bartolomeu), decide o litígioe submete as facções, impondo, coativamente, sua sentença – KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del Estado.Fundamentos históricos da la legitimidad del Estado Constitucional Democrático. Trad. Eugenio Bulygin. Buenos Aires,Ediciones Depalma, 1980. pp. 53-61.

66 cf. CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 268.

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deve ser realizada oficialmente, independente da vontade dos particulares,noção que evolui com a própria formação histórica do Estado Moderno – jáque, nas sociedades primitivas, os conflitos eram resolvidos pela força ou peloconsenso e a reparação do crime dava-se por autotutela, depois evoluindo-separa a arbitragem e, por fim, para o modelo de soberania interna, com oconsequente monopólio estatal na administração da justiça.67

Assim, diante do interesse público na reação criminal, não se pode deixarao arbítrio dos particulares sua aplicação efetiva, noção moderna (diferente daação popular romana e da acusação privada do antigo direito germânico) con-sagrada em princípio no artigo 219 da Constituição da República Portuguesa,que reserva ao Ministério Público o exercício da ação penal. É, portanto, umaentidade oficial que tem legitimidade para promover o processo penal (art. 48 doCódigo de Processo Penal) ou arquivar o inquérito (art. 276 do CPP).

Todavia, há limites e exceções ao princípio, respectivamente pela coexis-tência sistêmica de crimes semipúblicos, que condicionam a atuação minis-terial a uma queixa do ofendido, e particulares em sentido estrito, nos quais oofendido constitui assistente e deduz acusação particular (CPP, arts. 49 e 50).Justificam-se, como se sabe, por um interesse social menos agudo em reagirautomaticamente a ofensas que não atingem o interesse público de modo pro-eminente e pelo “strepitus fori” de certos casos (crimes sexuais, furtos famili-ares), que faz prevalecer o interesse particular em evitar a escandalização-publicização.

“Na verdade, não é estranha à existência de crimes particula-res em sentido amplo o atual mandamento político-criminalde descriminalização aqui alcançado, não por via legal massim por via real. Por outro lado, está ainda presente uma ou-tra linha de força do atual programa político-criminal – a di-versão – nesta matéria conseguida através de uma mediaçãoainda que mitigada.”.68

67 Tangente ao direito criminal do período de formação do Estado Português (situado por Marcello Caetano entre os anosde 1140 e 1248), natural que tenham coexistido “a justiça pública, aplicada pelo rei, pelos juízes, pelos senhores, pelosconcelhos – e a justiça privada exercida pelos ofendidos – vítima, parentes, vizinhos ou grupo protector”, embora arelevante distinção entre vingança (o ofendido retribui por sua própria autoridade o mal sofrido por outro mal) ejustiça privada: o ofendido dirige-se às autoridades públicas e apresenta queixa contra o ofensor, provando suaresponsabilidade; verificada a culpa, “só então fica pela colectividade autorizado o queixoso a fazer justiça por suasmãos” CAETANO, Marcello. História do Direito Português. V. 1, Fontes – Direito Público (1140-1495). Lisboa/SãoPaulo, Editorial Verbo, 1981. pp. 249 e 248, respectivamente.

68 DIAS, Direito Processual Penal, ob. cit., p. 91. Vide, também, COSTA, supra, nota 9.

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5.5 Princípio da legalidade da ação penalSempre em grandes traços, o órgão oficial de acusação, no caso o Ministé-

rio Público, está obrigado a promover o processo penal, seja abrindo inquéritoou deduzindo a acusação (artigo 262-2º combinado com os artigos 263, I e283, I, todos do CPP) e, se não cumprir seu dever, sujeita-se ao crime do art.414 do Código Penal Português (CP).

A conduta oficial, nesta senda, vincula-se estritamente à lei (subsumindo-se às hipóteses normativas), descabendo considerações de oportunidade (ques-tões políticas, custos financeiros, eficácia social etc.) a obviar a persecuçãopenal, o que importaria em espaço discricionário, pendente de juízo de valordo órgão acusatório.

Este é o princípio que, na dicção constitucional (art. 219 da CRP), orientao exercício da ação penal – o que já revela, por si, que não é sagrado de formaabsoluta. Conectado ao princípio da igualdade (art. 13 da CRP), imuniza osistema persecutório de influências externas e reforça a confiança (segurançajurídica) na objetividade da administração da justiça.

De vetor inverso, o juízo da oportunidade confia no prudente juízo do Mi-nistério Público, que decidirá da conveniência ou não de promover o proces-so, de acordo com apreciação casuística de sua utilidade. Considerações prag-máticas, que se amparam, é certo, em boa teoria, têm consagrado certos insti-tutos de oportunidade, mitigando um princípio inflexível de legalidade.

“É como limitações do princípio da legalidade no sentidoda oportunidade que, numa primeira aproximação, devemser entendidos os artigos 280º - arquivamento em caso de dis-pensa ou isenção de pena – e 281º - suspensão provisória doprocesso -, uma vez que, verificados os pressupostos quecondicionam a sua aplicação, eles assumem a veste de verda-deiras alternativas ao despacho de acusação. (...) o que signifi-ca também que o conflito juridico-penal é solucionado forado sistema formal de aplicação da justiça penal...” 69

Tal tendência político-criminal é expressamente assumida pelo Códigode Processo Penal Português, partindo aliás da “importância decisiva da dis-

69 DIAS, idem, p.97.

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tinção entre a criminalidade grave e a pequena criminalidade” e da necessi-dade de “diferente teor de reação social e formal”, a introduzir “termos deoportunidade, diversão, informalidade, consenso, celeridade”, merecendo es-pecial destaque a “possibilidade de suspensão provisória do processo cominjunções e regras de conduta” (Exposição de Motivos, item 6, letra “a”).

6 A DIVERSÃO A IRRITAR A ESTRITA LEGALIDADE

O percurso do atrito argumentativo entre a regra processual (introduzidaem 1987 pelo CPP) e a redação constitucional original do princípio da legali-dade é revelador das complexas tensões e influências entre normas constitu-cionais e a legislação ordinária, culminando num ajuste semântico do textoconstitucional operado pela alteração introduzida no item 1 do artigo 219pela quarta revisão constitucional de 1997.

A redação anterior era a seguinte (então artigo 221): Ao Ministério Públicocompete representar o Estado, exercer a ação penal, defender a legalidade democrá-tica e os interesses que a lei determinar.

Perguntava-se, diante da economia vocabular, se a Constituição impunhaou não a subordinação do Ministério Público ao princípio da legalidade, ques-tão de mais alto relevo e considerada pelo Tribunal Constitucional quandoda fiscalização preventiva do Código de Processo Penal de 1987.

Houve pronunciamento no sentido afirmativo, derivando a legalidade doprincípio da igualdade e, portanto, a acoimar de inconstitucionalidade insti-tutos divertidos consagradores do princípio da oportunidade.

Situando o problema, Germano Marques da Silva, ainda em 1996, escla-recia que a formulação constitucional “nada estatui quanto aos princípios”,vedado à lei ordinária, apenas, atribuir a outro órgão do Estado o exercício daação penal, mas não assim dispor sobre seus pressupostos e requisitos.

Por outro lado, o princípio da igualdade proíbe o arbítrio, que é diferenteda discricionariedade exercida de acordo com a finalidade de realização dajustiça: “Ora, para melhor realização da justiça no caso concreto, a lei podeatribuir aos órgãos a quem cabe a aplicação da lei o poder de escolher, dentrode várias medidas legalmente admissíveis, a que lhe parece mais adequada. Arealização da justiça penal no caso não passa necessariamente pela submissão

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a julgamento de todos quantos sejam indiciados pela prática de um crime;não o impõe a Constituição e as mais modernas correntes doutrinárias acei-tam que a tutela dos bens jurídicos penalmente protegidos e a ressocializaçãodos delinquentes pode ser alcançada, em certos casos, por outros meios quenão as penas criminais.”.70

Outra linha de raciocínio, conservando íntegro o princípio da legalidade,também concluiria pela constitucionalidade do instituto processual, pois aomissão da acusação permitida ao Ministério Público, sob pressupostos deter-minados em lei e em função de um programa político-criminal, traduz “a ado-ção de uma nova e mais rica concepção de legalidade”, aberta à solução dediversão.71

In verbis, “um princípio da legalidade que deixa de ser comandado por umaidéia de igualdade formal típica dos Estados liberais para passar a ser norteadopelas intenções político-criminais básicas do sistema penal. Intençõesradicadas na idéia de que a intervenção do sistema formal de controle deveestritamente limitar-se pelas máximas da mais lata diversão e da menor inter-venção socialmente suportáveis...”. 72

Lógico que cresce, neste contexto, diga-se ainda que de passagem, a questãofundamental do controle e fiscalização da instituição Ministério Público.73

O fato é que, fruto da experiência cotidiana e do amadurecimento doutri-nário, o texto constitucional foi enriquecido, dispondo agora: Ao MinistérioPúblico compete ...participar na execução da política criminal definida pelos órgãosde soberania, exercer a ação penal orientada pela princípio da legalidade e defendera legalidade democrática (artigo 219-1 da CRP).

Cumpre-se, parece, a assertiva de Germano Marques da Silva: “Ora, nãoobstante a Constituição dispor de um vasto conjunto de garantias, frequente-mente as enumera de forma sintética, deixando à lei ordinária a suaespecificação em pormenor e, por isso que o direito processual seja tambémcriador de direito, e não meramente regulamentar, mesmo no plano dos valo-res fundamentais.” 74

70 SILVA, Curso de Processo Penal, ob. cit., v. I, p.70.71 DIAS, Direito Processual Penal, loc. cit. p. 97.72 DIAS, idem, pp.97-8.73 DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 479.74 SILVA, Curso de Processo Penal, ob. cit., v. I, p. 87.

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No que nos interessa mais de perto, “A quarta revisão da constituição(LC 1/97) acrescentou uma outra competência de relevante significadopolítico e jurídico-constitucional: a da participação do Ministério Públicona execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania (art.219, 1).”, o que, embora corolário lógico de suas competências constitucio-nais, “não deixa de criar algumas zonas de incerteza nas relações entre oexecutivo e o judiciário”. 75

Ao Ministério Público, então, dotado seja de uma oportunidade regrada,seja de um juízo de legalidade enriquecido, acresce a “titularidade e a direçãodo inquérito, bem como a competência exclusiva para a promoção processu-al: daí que lhe seja atribuído, não o estatuto de parte, mas o de uma autênticamagistratura, sujeito ao estrito dever de objetividade” (CPP, Exposição deMotivos, III), pelo que lhe compete colaborar com o tribunal na descobertada verdade (artigo 53 do CPP).76

Neste diapasão, o Acórdão nº 5/94, de 27-10, do Superior Tribunal deJustiça, jurisprudência obrigatória: Em face das disposições conjugadas dos arti-gos 48º a 52º e 401º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas aorigem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal doMinistério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer de-cisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posiçãoanteriormente assumida no processo.

Por outro lado, se tal posição processual era também derivada, na jurispru-dência anterior a 1997, de um princípio da legalidade, remanesce incólumequer na ampliação conceitual do princípio da legalidade, quer pela incidên-cia do critério, ao qual deve obediência, “de estrita objetividade, em todos oscasos, portanto também naqueles em que se admite o funcionamento do prin-cípio da oportunidade”. 77

75 CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., pp. 635 e 636.76 O novo Código de Processo Penal Italiano, em vigor desde 1989, rompendo com uma tradição plurisecular, adotou o sistema

acusatório (não expressamente previsto pela Constituição). Também consagra o dever do Ministério Público de levar acabo não só as investigações necessárias para o exercício da ação penal (art. 326), mas também para a “comprovação defatos e circunstâncias favoráveis à pessoa investigada (art. 358), cf. FERRAJOLI, op. cit., pp. 734-6.

77 GONÇALVES, Maia M. Código de Processo Penal Anotado. 10ª ed. rev. e atual. Coimbra, Livraria Almedina, 1999. p. 177.

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7 PERSPECTIVAS PORTUGUESAS

Segundo a mais abalizada doutrina, o legislador português, pelo menosdesde o marco da Revolução dos Cravos (1974), tem mantido uma visão in-tegrada e coerente com as hodiernas tendências político-criminais, primeirono plano substancial (o Código Penal Português é de 1982, reformado em1995), e, a seguir, na esfera adjetiva (o Código de Processo Penal é de 1987).

No que tange ao diploma processual, ancorou-se confessadamente numsistema de coordenadas, cujo eixo horizontal distingue a criminalidade graveda pequena criminalidade, ao passo que o eixo vertical traça a fronteira entreos espaços de consenso e os espaços de conflito.78

Vislumbrando a pequena criminalidade longitudinal e o espaço de con-senso latitudinal, pontuam os dois institutos que passam a ser examinados,manifestações de diversão simples, no caso do art. 280 do CPP, e com interven-ção (hipótese do art. 281 do CPP). E o protagonista de tal navegação, emboranão sujeito isolado, é o Ministério Público.79

A inspiração, clara, foi buscar-se no modelo germânico, cujo MinistérioPúblico é regido pelo princípio da legalidade, já que a “Alemanha semprerecusou qualquer solução geral assente na discricionariedade do MP”.80

A par das soluções substantivas (descriminalização, contra-ordenações etc.)sobressaem reformas no plano processual, visando a atingir maior flexibilida-de na perseguição criminal, pelo que se introduziu a figura do arquivamentopuro e simples, por ausência de interesse público na persecução (§ 153 StPO),e a do arquivamento contra injunções e regras de conduta, em face doexistente,embora diminuto, interesse público (§ 153a StPO), “um claroafloramento da idéia de diversão”.81

78 Consoante SANTOS, Boaventura “et ali”, O que se pune em Portugal, loc. cit., apenas 40% (em média) dos crimesacusados se comprovam em tribunal pela condenação dos arguidos (o que pode contribuir para gerar sentimento deineficácia do sistema), em parte em função das sucessivas anistias, “para além da importância da desistência dequeixa nos crimes particulares e semi-públicos” (mediação mitigada). Como é a ordenação das condenações (e nãodas arguições) que fornece a imagem sancionatória do sistema, “Em Portugal pune-se principalmente as ofensas àpropriedade e às regras de trânsito e os comportamentos relacionados com o tráfico de droga” (p. 107).

79 “Os processos sumaríssimos não têm qualquer significados nas estatísticas judiciais. Este processo, que pretendia, de modomuito célere, dar resposta a ‘pequenos crimes’ através do consenso do ofendido, do arguido, do MP e do Juiz, nãoresultou por duas ordens de razões: a primeira, por um constrangimento legal de apenas poder ser aplicado a uminexpressivo número de crimes cujo limite máximo de pena em abstracto não é superior a 6 meses; a segunda, arelutância dos magistrados do MP em usar este processo, que também se estende para a ‘suspensão provisória doprocesso’.” (SANTOS, Boaventura “et ali”, O que se pune em Portugal, ob. cit., p. 90).

80 DIAS/ANDRADE, Criminologia, op. cit., p. 492.81 idem, p. 494.

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Em que pese a notícia de objeções teóricas e de uma recepção inicial poucosimpática pelo próprio Ministério Público, o instituto afirmou-se como “meiopor excelência de luta processual contra o perigo de esmagamento do sistemada justiça penal pela pequena criminalidade”82, observação confirmada porJescheck ao relatar números de 1983: dos 188 mil processos suspensos, 135 milforam sancionados pelo Ministério Público83, ressaltando que o instituto ga-nhou grande importância prática – sem prejuízo de eventual esvaziamento, aotornar-se pena de multa encoberta aplicada em procedimento sumário (em 1981,97% das obrigações impostas pelo Ministério Público foram pecuniárias84).

Vejamos, de volta a Portugal, articuladamente:

7.1 Arquivamento em caso de dispensa de penaDesponta, desde logo, o arquivamento puro e simples do processo quando se

tratar de crime com previsão, na lei penal, de dispensa de pena.

Procedendo a um apuro técnico, o Decreto-lei nº 317/95 suprimiu as refe-rências à isenção de pena, que se devia à simetria com a redação original doart. 75 do Código Penal, também revisto em idêntico sentido pelo Decreto-lei nº 48/95. 85

Segundo o art. 74 do Código Penal, pode o tribunal declarar o réu culpadomas não aplicar qualquer pena se:

a) o crime for punido com prisão até seis meses ou multa até 120 dias;

b) a ilicitude do fato e a culpa do agente forem diminutas;

c) não houver razões de prevenção que militem em contrário.

Presentes tais requisitos cumulativos, num atalho de nítido desvio processual egrande economia, pode o Ministério Público decidir-se pelo arquivamento do

82 ibidem.83 JESCHECK, Tratado de Derecho Penal, ob. cit., pp. 70-1.84 idem, p. 685.85 São, com efeito, institutos distintos, destinando-se a dispensa de pena a resolver casos de bagatela, “em que se verifica-

ram todos os pressupostos de punibilidade mas em que não se justificaria a aplicação de qualquer sanção penal, já quetanto não seria exigido pelo fim das penas” (GONÇALVES, Maia M. Código Penal Anotado. 13ª ed. Coimbra, LivrariaAlmedina, 1999. p.263), enquanto a isenção de pena exclui a sanção por inexistência de razões de punibilidade, v.g.,a desistência voluntária da tentativa, pelo que não dão azo sequer a processo criminal (p. 264).

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processo, com a concordância do juiz da instrução (art. 280-1, CPP). Trata-se deum arejamento de conteúdo de oportunidade, movendo-se o Ministério Público,todavia, “dentro de critérios estritos de objectividade e de imparcialidade”.86 Comono § 153 da StPO, verifica-se uma pequena mas firme ruptura com o axioma dalegalidade estrita, muito embora a oportunidade esteja mais no critério de ponde-ração da inexistência ou não de interesse público na persecução.87

É uma discricionariedade regrada ou vinculada, mesmo que o conceito in-determinado permita âmbito relativamente largo de opção político-criminal,passando pelo crivo homologatório do juiz de instrução, “não sendo necessáriaqualquer intervenção do arguido, uma vez que não chega a haver acusação”.88

No caso da acusação já ter sido deduzida, o arquivamento compete ao juiz,com a anuência do Ministério Público e do arguido (art. 280-2, CPP). A nãoconcorrência de qualquer dos assentimentos necessários fará com que o pro-cesso prossiga.

O disposto no art. 280-3 do CPP deve ser interpretado (não sindicabilidadeda decisão de arquivamento), tendo plena incidência no que tange ao arguido,porque lhe é medida favorável, “não havendo portanto legitimidade ou inte-resse de agir de qualquer desses sujeitos processuais”. Será sempre, noutro viés,“impugnável pelo assistente, com o fundamento de que não se verificaram ospressupostos”. Já a decisão do juiz “pro societate” (não aceitando o arquiva-mento ou decidindo pelo prosseguimento), é suscetível de impugnação medi-ante recurso, o que é perfeitamente lógico e admissível, em face do caráterregrado e objetivado do juízo discricionário.89

Em sentido contrário (com a ressalva de impugnação com fundamentoem violação de lei), Germano Marques da Silva90, que também condiciona o

86 GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, loc. cit. p. 529.87 COSTA, Diversão, loc. cit., p. 58.88 GONÇALVES, idem, ibidem.89 cf. GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, op. cit., p. 530.90 SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal. Lisboa, Verbo, 1994. v. III, p. 104. “Só que por esses fundamentos só o

assistente poderá ter legitimidade para impugnar a decisão de arquivamento, uma vez que relativamente ao argüido, nãotendo sido formulado qualquer juízo de imputação, caímos na regra geral. O argüido não pode nunca impugnar qualquerdecisão de arquivamento do MP nem pode recorrer da decisão do juiz, por falta de interesse de agir (art. 401º, nº 2). Oassistente pode impugnar o despacho de arquivamento com fundamento na ilegalidade da decisão e pode fazê-lo por duasvias: recurso e instrução. Se o MP decidir o arquivamento e faltar a concordância do juiz, o meio processual para o assistenteimpugnar o despacho é o requerimento de instrução; o arquivamento é ilegal e o assistente formulará acusação,consubstanciado no seu requerimento instrutório, submetendo a decisão do MP e a sua acusação a comprovação do juiz deinstrução. Se, porém, tiver havido a concordância do juiz, o meio para a impugnação pelo assistente deverá ser o recurso,porquanto o juiz de instrução já se pronunciou ao concordar com a decisão do MP.” (SILVA, idem, p. 120).

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arquivamento divertido a indícios da prática de um crime e da responsabili-dade do arguido, pois, do contrário, “a decisão do MP há de ser tomada noâmbito do art. 277 e não do art. 280”.

Imperativo, por outro lado, já que o arguido não se pode opor ao arquiva-mento, considerá-lo “como presumido inocente relativamente aos fatos pe-los quais correu o inquérito apurado”.91

Quanto ao controle da atuação do Ministério Público, é duplo: pela inter-venção hierárquica, nos termos do art. 278 do CPP e pela sindicância judicial,que “não traduz um ato de fiscalização da legalidade do procedimento do MP,mas uma verdadeira decisão sobre a legalidade e adequação do arquivamen-to”.92

7.2 Suspensão provisória do processoÀ configuração do instituto, já no “caput” do art. 281-1 do CPP, acresceu a

expressão com a concordância do juiz da instrução, uma vez que o Tribunal Cons-titucional considerou eivada de inconstitucionalidade a disposição originaldo projeto (que previa a suspensão pelo Ministério Público sem a intervençãode um juiz), ao violar os artigos 32, nº 4 e 206, ambos da CRP. Ademais, oprimeiro limite para a pena de prisão era de três anos, aprofundando-se aincursão divertida pela Lei nº 59/98, que majorou o teto para cinco anos, aaumentar, portanto, o campo de aplicabilidade da medida.93

A suspensão provisória do processo assenta na solução consensual, a pos-sibilitar a proteção de bens jurídicos penalmente tutelados - com reação esta-tal – e a ressocialização do agente, que agiu com culpa diminuta, sendo “pos-sível atingir por meios mais benignos do que a pena criminal os fins que pre-sidiram à incriminação, em abstrato, dos fatos”.94

Em casos a priori não considerados graves, em face da medida da pena abs-tratamente cominada (até cinco anos), cabe ao Ministério Público, findo oinquérito, decidir pela suspensão, todavia mediante a imposição ao arguidodas injunções e regras de conduta previstas nas alíneas “a” até “i” do nº 2 do

91 SILVA, Curso, op. cit., v. III, p. 104.92 SILVA, idem, p. 105.93 cf. GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, ob. cit., p. 531.94 SILVA, Curso, loc. cit, v. III, p. 110.

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artigo 281, desde que, cumulativamente, estejam presentes os requisitoselencados nas alíneas “a” a “e” do nº 1 do artigo em tela:

a) concordância do arguido e do assistente (além daquela do juiz, pre-vista já no “caput”) – alarga-se a margem exigível de consenso;

b) ausência de antecedentes criminais;

c) não ser o caso de medida de segurança de internamento;

d) caráter diminuto da culpa;

e) previsão de que o cumprimento das medidas seja resposta suficienteàs exigências concretas de prevenção.

“Quid juris” se não houver o ato judicial homologatório? “Caso se nãoverifique a concordância, tudo se passará como se não tivesse havido a deci-são do MP de suspender o processo, devendo portanto este seguir seus trâmi-tes normais”.95

O juízo de oportunidade do Ministério Público será versado em despachofundamentado (artigo 97-2 e 4 do CPP) e, como é condicionado, no dizer deConde-Pumpido Ferreiro, “não existe uma autêntica antítese entre legalida-de e oportunidade, enquanto esta vem regulada por aquela e se estabelece ocontrole judicial para evitar que o seu uso possa afastar-se dos limites estabe-lecidos por lei”.96

A jurisprudência vai mais longe, entendendo que a intervenção do juizdeve abarcar as própria medidas impostas pelo Ministério Público, apondo-lhes anuência.97 Ademais, os acórdãos têm entendido que o despacho judicialque indefere a proposta de suspensão formulada pelo Ministério Público nãoé passível de recurso, na dicção legal do nº 5 do artigo 281 do CPP.

Similarmente ao ponderado em relação ao item 3º do artigo 280 do esta-tuto processual, nesta altura há as dissonâncias já apontadas de Maia Gonçal-

95 GONÇALVES, idem, p. 532.96 apud SILVA, Curso, v. III, p. 110, nota 3.97 Não, porém, modificá-las: “Suspensão provisória do processo – Poderes do Juiz de Instrução (Acórdão de 8 de abril de

1997). Sumário: I – O Juiz de Instrução não pode substituir-se ao Ministério Público no sentido de, por sua iniciativa,decretar a suspensão provisória do processo, ou impor injunções e regras que não tenham sido propostas por aquelaMagistratura. II – A intervenção do Juiz de Instrução visa apenas verificar se estão reunidos os pressupostos dasuspensão provisória do processo.” (Colectânea de Jurisprudência, ano XXII, 1997, tomo II. Coimbra, Palácio daJustiça. p. 274 (Relação de Évora).

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ves98 e, afigurando-se-lhe insindicável apenas o juízo de oportunidade doMinistério Público (acusar ou suspender), de Germano Marques da Silva, queaceita a impugnação em caso de ilegalidade (decisão não escorada nos requi-sitos e pressupostos do item 1º do artigo 281).

Quanto às injunções e regras de conduta, não podem, por óbvio, ofender adignidade pessoal do arguido, nos exatos termos do item 3º do artigo em exame.

Reitere-se “que o arguido, mesmo sofrendo e cumprindo as injunções eregras de conduta, há-de continuar a ser considerado como presumido ino-cente.”.99

A suspensão do processo pode durar até dois anos, não correndo a prescri-ção no decurso deste prazo (artigo 282-1º e 2º, CPP). Trata-se de caso desuspensão do prazo - vide artigo 120-3º do Código Penal.

Cumpridas as medidas, o Ministério Público arquiva o processo, que nãopode ser reaberto (artigo 282-3º, 1ª parte, CPP): “Agora não há qualquer inter-venção do juiz; a decisão é exclusivamente do MP. O assistente pode, por isso,discordando da decisão do MP, nomeadamente por entender que não se verifi-caram os pressupostos indicados no art. 282º, nº 3, impugnar aquela decisão dearquivamento, nos termos gerais, isto é, através do requerimento de abertura deinstrução. O arguido não pode impugnar a decisão de arquivamento.”.100

Acaso descumpridas as injunções e regras de conduta, o processo prosse-gue (art. 282-3º, 2ª parte), o que deve ser lido “cum grano salis”: “o não cum-primento de qualquer injunção ou regra de conduta não poderá, por si e auto-maticamente, desencadear o prosseguimento do processo. A disposição doperíodo final do nº 3 tem que ser objecto de uma interpretação ponderada,harmônica com os princípios perfilhados pelo CP, nomeadamente sobre a cul-pa, o que terá como resultado uma interpretação restritiva. É, desde logo,exigível que a falta, para que possa desencadear o prosseguimento do proces-so, seja imputável ao arguido pelo menos a título de culpa. Também se nosafigura que faltas mínimas, de desvalor ético-jurídico de reduzido significado,terão como consequência mais adequada v. g. uma solene advertência do que,desde logo, o prosseguimento do processo.”.101

98 GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, op. cit., p. 533.99 SILVA, Curso de Processo Penal, v. III cit., p. 112.100 SILVA, idem, p. 122.101 GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, ob. cit., pp. 533-4.

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7.3 Outras hipótesesLonge de pretender esgotar a multifacetada rede de elementos divertidos

que se espalha no sistema processual-penal português, afigura-se producentedestacar alguns pontos, recolhidos da legislação esparsa, apenas para melhorcontextualizar o princípio.

No âmbito da legislação atinente a tráfico e consumo de estupefacientes esubstâncias psicotrópicas, o Decreto-lei nº 15/93, além de prever medidas defeição terapêutica, via remessa para mediação por serviços de saúde (art. 43,sujeição voluntária de consumidor habitual a tratamento), que se aplicammesmo para crimes mais graves – afastando, em regra, a prisão preventiva doarguido que tenha em curso um programa de tratamento de toxicodependência(art. 55, 1-4) -, é possível haver dispensa de pena (e, portanto, arquivamentodivertido), no caso de consumidor ocasional (art. 40), a par de expressa previ-são de suspensão provisória do processo para crimes com pena não superior atrês anos, verificados os pressupostos subjetivos das alíneas “d” e “e” do art.281 do CPP.

Mantém-se a estrutura básica do instituto: iniciativa do Ministério Públi-co, com a concordância do juiz e a anuência do arguido, impondo-se-lhe,também, em caso de toxicodependência, para além das medidas referidas nonº 2 do art. 281 do CPP, tratamento ou internamento. Contudo, “em termosglobais, os casos de suspensão representam apenas cerca de 0,3% dos inquéri-tos findos durante o mesmo período”.102

No que tange ao regime jurídico do cheque sem provisão de fundos, houverecente aposta legislativa na mediação mitigada, prevendo o art. 11 A doDecreto-lei nº 316/97 a queixa como condição de procedibilidade do respec-tivo procedimento criminal, independente do valor do cheque – a retomar,aliás, uma tradição emergente de um decreto já de 1927, a ilustrar as idas evindas da política-criminal e sua inescapável dimensão histórica.

102 ROCHA, João Luís de Moraes Rocha. “Suspensão provisória do processo e consumo de estupefacientes”, in RevistaPortugues de Ciências Criminais 9 (1999). p.111. De acordo com os dados estatísticos, o consumo de estupefacientes éo crime, logo após o de furto, a fundamentar o maior número de suspensões provisórias – oscila entre 75% e 97% oarquivamento dos processos suspensos, a indicar sucesso (p. 112); adiante, o autor refere-se à estranheza causada pelaparca utilização do instituto, pois “o mero bom senso aconselharia a aplicação sistemática de uma medida decomprovado êxito”, e procura explicar as razões, que vão da “relativa novidade com a ‘natural’ resistência à novida-de”, passam pela deficiente informação dos profissionais envolvidos quanto ao específico domínio da adição, até àsdistorções emergentes do próprio sistema judicial (redigir a acusação remete para o âmbito do juiz de julgamento umcaso complexo, sem a retenção que a suspensão implicaria, o que é gratificante para o magistrado preocupado emapresentar estatísticas a serviços de inspeção), pp. 115-6.

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De fato, trata-se de reação ao que se chamou, à semelhança do que ocorrena justiça cível, colonização da justiça penal pelo crime de emissão de chequessem provisão (versão “criminalizada” da cobrança das dívidas civis e comerci-ais: 31,3% dos crimes processados pela sistema judicial português, no ano de1993, eram de emissão de cheques sem provisão).103

8 INICIATIVAS BRASILEIRAS*

No Brasil, concretizando o mandamento constitucional que ecoava desde1988 (art. 98, inciso I, da Constituição Federal), a recente Lei nº 9.099/95regulamentou a persecução penal das infrações penais de menor potencial ofen-sivo (na feliz expressão da Carta Magna), assim consideradas aquelas cuja penamáxima não ultrapassa um ano e a que não estejam previstos procedimentosespeciais.

O diploma todo é marcado pela ideia-força do consenso, da diversão, daoportunidade regrada, da mediação (mitigada e direta). Tornou as lesões le-ves e as culposas crimes de ação penal condicionada à representação; termi-nou com os inquéritos policiais, substituídos por boletins circunstanciados;estabeleceu momento prefacial de composição, na audiência preliminar, en-tre “autor do fato” e ofendido, incentivada pelo Ministério Público e coorde-nada pelo juiz; não havendo reincidência, possibilita a transação entre o Mi-nistério Público e o autor do fato que, assumindo o cumprimento de pena nãoprivativa de liberdade (em geral prestação de serviço comunitário, multa oudoação, como restrição de direito atípica), tem extinta sua punibilidade semsequer sujeitar-se a processo e permanecendo sem registros (salvo arquivo in-terno, aos efeitos de não ser concedido o mesmo benefício em interregnosmenores do que cinco anos) – a medida, para aperfeiçoar-se, deve ser homo-logada pelo juiz.

103 Cf. SANTOS, Boaventura “et ali”, O que se pune em Portugal, p. 91, “em resultado do aumento das transaçõeseconômicas e da preferências por este tipo de ‘pagamentos-garantias’ de dívida” (p. 93). Aliás, depois de um“endurecimento” do regime punitivo (pelos DL nº 400/82, de 27/9, e DL nº 14/84, de 11/1), “em 28/3/1992 entrouem vigor o DL nº 454/91, de 28/12, que pretendeu restringir a criminalização do uso do cheque aos queefectivamente foram emitidos causando prejuízo, descriminalizando de forma clara os cheques de mera garantia”(idem, p. 94).

* Manteve-se o tópico, obviamente perfunctório, vez que o escopo era ilustrar, aos colegas portugueses e de outras nacio-nalidades, o “sistema” divertido brasileiro. Não houve preocupação, portanto, de atualização bibliográfica, inalteradasas referências de então, lançadas em 1999 diante do material disponível no estrangeiro.

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Além do que, a referida legislação introduziu a suspensão do processo paraoutra categoria de crimes, aqueles cuja pena mínima não ultrapassa um ano.Pressupõe, a proposta a cargo do Ministério Público, acusação formulada, acei-tação pelo arguido e homologação pelo juiz (que deixa de receber a denúnciaescrita), incluindo sempre a reparação do dano ou satisfação à vítima, a par deoutras condições, a serem cumpridas no prazo de dois a quatro anos. Findo otermo sem revogação, extingue-se a punibilidade.104

Recente estudo sociológico da implantação dos Juizados Especiais Crimi-nais em Porto Alegre fornece dados e instigante quadro analítico105 *, a indi-car desencontros entre o discurso de justificação da diversão e a prática judi-ciária. Por exemplo, embora previstos conciliadores escolhidos fora da admi-nistração da justiça penal, como tal disposição não foi implementada, os juízesque atuam nos Juizados são os mesmo que atuam nas Varas Criminais, “valen-do-se mais de uma relação de poder hierárquica e intimidatória sobre as par-tes para encaminhar uma solução para o caso do que de uma proximidadeadvinda de vínculos sociais comunitários”.

Em realidade, a inovação retirou da “autoridade policial a prerrogativaque tinha de selecionar os casos considerados mais ‘relevantes’, que resultavano arquivamento da grande maioria dos pequenos delitos”. A nova demanda,agora alocada para o Judiciário, “passou a representar quase 90% do movi-mento processual penal global”. Donde conclui-se que, no caso brasileiro, “ainformalização da justiça penal na verdade não ampliou o controle social for-mal do Estado sobre novas condutas, uma vez que esse controle era exercidopelas delegacias de polícias”, mas permitiu uma “espécie de recriminalização,substituindo o delegado pelo juiz no exercício da função de mediação”, quesignificou, sem paradoxo, aspectos emancipatórios: ao substituir-se a media-ção policial, informal e arbitrária (amiúde combinada com mecanismos deintimidação das partes), pela judicial, que “tende a ampliar o espaço para a

104 De uma literatura que se vai tornando farta, sugere-se, para quem deseja aprofundar o estudo da experiência brasileira:GOMES, Luiz Flávio. Suspensão condicional do processo penal. 2ª ed..rev. e ampl. São Palo, Revista dos Tribunais, 1997; MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados especiais criminais. São Paulo,Atlas, 1997; JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos juizados especiais criminais anotada. 3ª ed. São Paulo, Sarai-va,1996; GRINOVER, Ada Peligrini. FILHO, Antônio Magalhães Gomes. e FERNANDES, Antônio Scarance.Juizados especiais criminais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1996.

105 AZEVEDO, Rodrigo G. de., “A Informalização da Justiça Penal e a Lei 9.099/95 – Entre a Rotinização do controle penale a ampliação do acesso à justiça”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 30, Ed. Revista dos Tribunais, abril-maiode 2000, no prelo.

* AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Informalização da Justiça e Controle Social: estudo sociológico da implantação dosjuizados especiais criminais em Porto Alegre. São Paulo: IBCCRIM, 2000.

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explicitação do conflito e a adoção de uma solução de consenso entre as par-tes, reduzindo a impunidade”.106

Desde 1990, é justo que se destaque, com o advento do Estatuto da Crian-ça e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/90), também imperativo constitu-cional, vive-se experiência verdadeiramente divertida no que tange àdelinquência juvenil. Ao adolescente infrator, sob determinados pressupos-tos, ao invés de desencadear o processo, pode o Ministério Público aplicarremissão, espécie de perdão eventualmente cumulado com medidas sócio-educativas e de proteção, que devem ser homologadas pelo juiz e oscilam dasimples advertência, prestação de serviço comunitário, submissão a tratamentode desintoxicação, obrigação de matrícula e frequência a estabelecimentooficial de ensino fundamental etc.

9 A HARMONIZAÇÃO DA DIVERSÃO

O que se espera, a final, de um processo penal no quadro de um Estadode Direito Democrático e Social? Segundo a exposição de motivos do CPP,“o processo penal tem por fim a realização da justiça no caso, por meiosprocessualmente admissíveis e por forma a assegurar a paz jurídica dos ci-dadãos”.

Busca-se, portanto, um modelo processual preordenado à concordância prá-tica das teleologias antinômicas, na busca da maximização alcançável e admissívele com as respectivas implicações: realização da justiça, tutela de bens jurídi-cos, estabilização das normas, paz jurídica dos cidadãos – e de forma eficiente(suficiente a prevenção?).

A doutrina comunga, em grandes linhas, de tal concepção: impõe-se “umavisão harmônica que combine e concilie as três missões básicas do processo:jurídica, enquanto instrumento para a realização do direito objetivo; política,como garantia do arguido; social, enquanto contribui para a pacífica convi-vência social”.107

106 No sentido de que as “formalidades criam barreiras, mas também proporcionam um espaço no qual é possível protegeros setores socialmente desfavorecidos, enquanto os procedimentos informais são mais facilmente manipuláveis”(AZEVEDO, A informalização, op. cit.).

107 SILVA, Curso, v. I cit., p. 48.

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Assim também destacadas por Figueiredo Dias as seguintes finalidadesprimárias:108

1) a realização da justiça e a descoberta da verdade material;

2) a proteção dos direitos fundamentais das pessoas;

3) o restabelecimento da paz jurídica comunitária.

Se, no mais das vezes, tais fins têm caráter antinômico e antitético, a pe-nosa e delicada tarefa é operar a concordância prática das finalidades em confli-to, numa optimização de mútua compreensão, tendo como alicerce intocávela dignidade da pessoa humana (princípio axiológico) – art. 2º da CRP.109

Do próprio princípio do Estado de Direito, deduz-se a exigência de umprocedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direi-to110, que se concretiza em garantias gerais de procedimento e processo (exem-plo, processo equitativo, art. 20-4º, CRP) e outros específicos de processo pe-nal (e.g., “no bis in idem”, art. 29-5º, CRP).

A já citada quarta revisão constitucional, em linha de tensões, inovou aoprever um direito a procedimentos céleres e prioritários (art. 20-4º, CRP).111

Há que se compreender, na melhor perspectiva, a Constituição como umsistema aberto de regras e princípios. Ambos participam do gênero normas jurídi-cas, com distinções qualitativas:112

1) os princípios impõem optimização, variando sua concretização con-forme o condicionalismo fático-jurídico – as regras prescrevem exi-gências que se cumprem ou não;

2) a convivência dos princípios é conflitual – das regras é antinômica (osprincípios coexistem, as regras excluem-se;

3) os princípios permitem o balanceamento de valores e interesses, con-soante peso e ponderação de outros princípios – as regras, ao revés,obedecem à lógica do tudo ou nada.113

108 DIAS, Direito Processual Penal, loc. cit., pp. 20-6.109 o princípio antrópico referido por Canotilho, cf. nota 63, supra.110 CANOTILHO, Direito Constitucional, op. cit., p. 268111 cf. CANOTILHO, idem, p. 472.112 CANOTILHO, Direito Constitucional, lo. Cit., p. 1.088 1.087, respectivamente.113 Idem, p. 1.177.

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É de se reter que os conflitos entre princípios podem ser objeto deharmonização e é assim, adiante-se, que se compreende a interação do prin-cípio da diversão, protagonizado pelo Ministério Público, com os outros prin-cípios constitucionais referidos.114

Tal concepção permite ao sistema respirar (pela “textura aberta” dos prin-cípios), legitimar-se (os princípios consagram valores, dignidade, justiça, comcapacidade deontológica de justificação), enraizar-se (referências sociológi-cas aos programas e pessoas) e caminhar (através da dinâmica processual eprocedimental adequados, densificando e realizando na prática as mensagensnormativas constitucionais).

Permite “que a Constituição possa ser realizada de forma gradativa, segun-do circunstâncias factuais e legais”.115

A harmonização, ínsita à convivência principiológica, significa que umprincípio não tem validade absoluta, no sentido de que possa se impor com osacrifício total de outro. Ao revés, como princípio de interpretação, o princí-pio da concordância prática (da harmonização) parte da ideia de igual “valordos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede,como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabeleci-mento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir umaharmonização ou concordância prática entre estes bens.”.116

114 Afasta-se, de plano, em sede de diversão, a ocorrência de limites imanentes, vale dizer, que os princípios constitucionaisreferidos no item pudessem exluir em termos absolutos certas formas ou modos de exercício divertidos – para umaconfiguração doutrinária acurada dos limites imanentes, vide ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos funda-mentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra, Almedina, 1998. pp. 215-9.

115 Ibidem, pp. 1.089 e 1.109, respectivamente.116 CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., p. 1.150. Na lição de Vieira de Andrade, “haverá colisão ou conflito

sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradiçãoconcreta. A esfera de proteção de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esferade outro direito ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional.” (p. 220); a solução “não pode ser resolvidacom o recurso à idéia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais. Não se pode sempre (ou talvez nunca)estabelecer uma hierarquia entre os bens para sacrificar os menos importantes.”, pois “não é lícito sacrificar pura esimplesmente um deles ao outro.” (p. 221). A solução é de procurar “no quadro da unidade da Constituição, isto é,tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes. Esse princípio da concordância prática (...) é apenasum método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionaisaplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição (essa, sim) seja preservada na maior medidado possível.” (p. 222). Tal princípio executa-se “através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custosdo conflito”, exige-se que “o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguardados outros.” (p. 223). “É, nessa medida, uma actividade simultaneamente de interpretação e de restrição – deinterpretação restritiva – mas que parece dever, tal como a concretização dos limites imanentes, integrar-se nacompetência interpretativa do juiz e, em geral, dos aplicadores da Constituição.” (p. 224) – ANDRADE, J. C. Vieirade, Os direitos fundamentais, op. cit.

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Adiante117, os dois exemplos fornecidos foram retirados de casosparadigmáticos da jurisprudência alemã e, muito significativamente, envol-vem diretamente problematizações processuais penais: o direito à informa-ção (emissão de um documentário, por canal de televisão, sobre um crimegrave há anos ocorrido) contra o direito à ressocialização individual (o con-denado, já em liberdade e trabalhando, argumentou que seria reestigmatizado)– prevaleceu, no caso concreto (caso Lebach), o direito à ressocialização118; eo direito à vida, o dever de proteção de bens constitucionais e o direito dasvítimas, tendo prevalecido o adiamento de um julgamento de crime grave,em prol do direito à vida (risco de enfarte na iminente audiência pública) eem detrimento, circunstancial, do direito/dever do Estado de prossecuçãopenal, a par do direito das vítimas a uma decisão judicial justa e eventualreparação.

As concretizações processuais do princípio da diversão têm demonstradobem a possibilidade de soluções de compromisso entre os variados princípiosconstitucionais em linha de tensão, assim como entre as finalidadeslegitimadoras do próprio processo penal.

É o que se vê da enunciação das considerações e recomendações do jámencionado Colóquio Internacional de Tóquio, destacando-se: a superaçãodos conflitos (que deita raízes na busca de paz social), a ressocialização (quederiva do próprio princípio da dignidade humana), a satisfação à vítima (re-forçando a paz social), o evitar-se a manutenção de arquivos criminaisestigmatizantes, assim como reduzir a sobrecarga do sistema de administraçãoda justiça penal. Na prática:

a) é essencial a cooperação e o assentimento do sujeito divertido, quedeve ter a opção de submeter-se, preferindo, ao sistema formal –recomendações nº 3 e nº 11;

b) desnecessário que o sujeito reconheça a culpa – recomendação nº 5;

117 CANOTILHO, idem, pp. 1.161-2.118 Vide, a respeito do Lebach-Urteil, de 15 de janeiro de 1958, ANDRADE, Manuel da Costa. Liberdade de imprensa e

inviolabilidade pessoal: uma perspectiva criminal. Coimbra, 1996. pp. 47-9. Sobre o princípio da socialidade ou dasolidariedade (um dos princípios diretores de política-criminal de emanação jurídico-constitucional) é apresentadopor Figueiredo Dias como “vertente social” do Estado de Direito – imanente, portanto, à cláusula do Estado deDireito social: ao Estado que faz uso do seu ius puniendi incumbe, em compensação, um dever de ajuda e de solidarie-dade para com o condenado, proporcionando-lhe “o máximo de condições para prevenir a reincidência e prosseguir avida no futuro sem cometer crimes” (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Português. As consequências jurídicas docrime. Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, 1993. p. 74).

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c) a mesma pessoa não pode atuar como mediadora esubsequentemente, em caso de insucesso, como árbitro do mesmoconflito – recomendação nº 10;119

d) os arquivos devem operar apenas internamente, isto é, registros paraevitar nova aplicação inadequada do instituto, sem qualquer notí-cia externa – recomendação nº 15.120

Por outro lado, as resoluções do XIII Congresso Internacional de DireitoPenal, realizado no Cairo (Terceira Seção, Diversão e Mediação), referem asvirtudes vitimológicas do instituto (justificação nº 5); as medidas restritivasde liberdade, embora a anuência do sujeito, devem passar pelo crivo judicial.Releva o item 6º da justificação, no que tange à redução da sobrecarga dostribunais, tendo prevalecido o ponto de vista dos “scholars”, no sentido deque tal finalidade não deve constituir-se no principal objetivo das medidasdivertidas, mas sim como efeito secundário.

Ainda, a legalidade, como princípio de prossecução penal, pode conciliar-se com os institutos divertidos, visto que o Ministério Público não fica inati-vo, mas desencadeia passos necessários para a efetivação das medidas adequa-das (preâmbulo, item 4), reconhecidamente uma abordagem formalista quenão responde à pergunta acerca dos critérios sopesados pelo Ministério Públi-co para desencadear ou não um processo formal ou uma medida divertida.121

CONCLUSÃO

O que se vê, pois, são teias complexas, que procuram não deixar de foranenhum dos principais fios axiológicos e normativos atinentes ao princípioda diversão e que, entretecidos, sustentam, numa tensão dialética, as experi-ências concretas, cuja aferição do sucesso em atingir os objetivos é tarefa quenunca acaba.

Por fim, há que se destacar, numa busca de síntese plástica, que o princípioda diversão assenta e viabiliza, numa palavra, na tolerância, um valor muito

119 O sistema dos juizados brasileiros, neste particular, carece de aperfeiçoamento, pois, na ausência dos conciliadores leigos,é comum o juiz, que não logrou êxito na conciliação, instruir e julgar o feito (cf. supra, item 8).

120 Revue Internationale de Droit Pénal 54 (1983), pp. 908-15.121 Revue Internationale de Droit Pénal 56 (1985), pp. 513-20.

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caro e necessários aos nossos dias – que se não confunde com permissividademas muito menos com fanatismos e fundamentalismos.122

Faz parte desta caminhada da humanidade reconhecer que o direito penale seu sistema processual são inadequados para monitorar o modo de ser daspessoas, seus deuses e diabos são questões de foro íntimo (cada um sabe a dore a delícia de ser o que é, na composição de Caetano Veloso).

Em nosso campo, há que potenciar o modelo verde de política-criminal,diversificar as alternativas da diversão123, “contrabalançar o ímpetocriminalizante do legislador moderno e evitar a estigmatização dos sujeitos”124,aproveitando-nos das tendências descentralizadoras das organizações sociaisde nossos dias, que são facilitadoras, por óbvio, da diversão. Claro que numaperspectiva realista, reconhecendo que as zonas preferenciais para aplicaçãode tais medidas estão na pequena e média criminalidade.

Insere-se, tal discurso, num plano de ambiência cultural mais amplo, cujaética vem sendo delineada por muitos, por exemplo Umberto Eco nos seus“Cinco Escritos Morais” (a importância da tolerância, numa realidade de mi-grações, época em que urge aprender a conviver com a diferença), e cuja esté-tica (como proposta literária não excludente) foi consagrada por ÍtaloCalvino.125 Apropriando-nos, então, de sua racionalidade estético-expressi-va, desejaríamos (e acreditamos que gradativos incrementos do princípio da

122 “Em 1721, com uma ingenuidade fingida que não escondia a acidez do sarcasmo, Charles-Louis de Secondat pergun-tou-nos: ‘Persas? Mas, como é possível ser-se persa?’ Vai já para trezentos anos que o barão de Montesquieu escreveuas suas famosas Lettres Persanes (...) continuamos a não entender como foi possível a alguém ter sido ‘persa’ e, aindapor cima, como se já não fosse desproporcionada tal extravagância, persistir em sê-lo hoje, quando o espectáculo queo mundo oferece nos pretende convencer de que só é desejável e proveitoso ser-se aquilo que, em termos muito geraise artificiosamente conciliadores, é costume designar por ‘ocidental’ (...) Ser ‘persa’ é ser o estranho, é ser o diferente,é, numa palavra, ser outro. A simples existência do ‘persa’ tem bastado para incomodar, confundir, desorganizar,perturbar a mecânica das instituições (...) A mesma névoa que impede ver pode ser também a janela aberta para omundo do outro, o mundo do índio, o mundo do ‘persa’... Olhemos em silêncio, aprendamos a ouvir, talvez depois,finalmente, sejamos capazes de compreender.” SARAMAGO, José. Chiapas, nome de dor e de esperança, Visão, 09 dejunho de 1998, in: Folhas Políticas. 1976-1998. Lisboa, Caminho, 1999. pp. 209-14.

123 Uma das tendências do atual Direito Penal, que parece estável e dificilmente reversível para HASSEMER/MUÑOZCONDE, op. cit, p. 170, passa pelas diferenciações no conjunto do sistema, aumentado os instrumentos jurídico-penais, em todos os setores de controle, tanto na criação das normas, como na sanção e no processo. Dizem o mesmoem relação à “desformalización de sus instrumentos” (p. 173).

124 COSTA, Diversão, op. cit., p. 66.125 CALVINO, Ítalo, Seis propostas, op. cit. Trata-se das “Norton Lectures” promovidas desde 1926 pela Universidade de

Harvard (um ciclo de seis conferências no decorrer de um ano letivo - Calvino fora o primeiro convidado italiano,para o ano 1985-1986, de uma plêiade que contou com Eliot, Stravinsky, Borges). Tendo falecido antes da partidapara a América, o título ficou em inglês (six memos for the next millennium), e a sexta lição (“Consistency”) não chegoua ser escrita.

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diversão são agentes catalisadores desta utopia), um sistema processual penaltranspassado de leveza e multiplicidade, que não abre mão da visibilidade e queterá consistência na medida da sua rapidez e nos limites da exatidão possível.

Um espaço para a utopia.126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

« Actes du Colloque (Dejudiciarisation – Diversion – et Mediation) tenu à Tokyo,Japon 14-16 mars 1983 », Revue Internationale de Droit Pénal 54 (1983).

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126 “A exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do queexiste, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e porquemerece a pena lutar.”; espaço pautado pelo princípio da transição paradigmática, que quer: “ampliar o conhecimentodos paradigmas em presença e promover a competição entre eles de modo a expandir as alternativas de prática sociale pessoal e de lutar por elas.”, no qual o Estado tem uma dimensão providencial em “promover a pluralidade e apermeabilidade das identidades pelo incentivo à confrontação entre os dois paradigmas... Não se trata de obter atransparência total nas relações sociais, mas antes de lutar sem limites contra a opacidade que as despolitiza edesingulariza (...) Daí que na transição paradigmática se tolere a imperfectibilidade das palavras e dos cálculos se elase traduzir numa maior razoabilidade e equidade das acções e das consequências” (SANTOS, Pela mão de Alice. Osocial e o político na pós-modernidade. 7ª ed. Porto, Afrontamento, 1999. pp. 277, 281, 293 e 297-8, respectivamente).

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Do Ensino Jurídico: conhecimento eprodução criativa do direito1

On Juridical Teaching: Knowledge and CreativeProduction of Law

PLAUTO FARACO DE AZEVEDO

Doutor em Direito pela Universidade Católica de Louvain Ex-Professor dos Cursosde Graduação e Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFRGSProfessor Titular do Curso de Pós-Graduação-Mestrado em Direito da Universi-

dade Luterana do Brasil - ULBRA

RESUMO

O artigo tem por objetivo pensar o ensino jurídico atual, aferindo-lhe algumas defi-ciências e buscando uma correção de rumos, de modo a bem compreender a técnicajurídica, colocando-a a serviço do direito, em sua acepção ampla. Dentre outrosaspectos, mostra a lacuna do desconhecimento da História do Direito e dos dadosconfiguradores do quadro histórico presente e suas conseqüências na formação jurí-dica e na aplicação judicial do direito.Palavras-chave: Ensino Jurídico, dogmática jurídica, metodologia do direito, apli-cação judicial do direito.

ABSTRACT

The paper aims at thinking the present state of juridical teaching, spotting somedeficiencies and looking for some corrections in order to understand the juridicaltechnique, placing it to the service of law in its widest meaning. Among other

1 Texto-base da Palestra pronunciada no “V Seminário – O Ensino Jurídico no limiar do Século XXI”, promovido pelaComissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, de 25 a 27 de outubro de 2000, em Florianópolis.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.61-72

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aspects, it points out to the general ignorance of the History of Law and of the factsthat have molded the present historical frame and its consequences for juridical edu-cation and judicial application of law.Key words: Juridical teaching, juridical dogmatism, methodology of law, judicialapplication of law.

Pensar validamente o ensino jurídico importa em visualizá-lo no contextohistórico em que se situa, explicitando e pondo em questão a concepção queo orienta. Isto nem sempre é fácil, visto que a idéia prévia sobre que se funda,costuma ser subtraída do plano reflexivo por ser tacitamente aceita pelo juris-ta. Assim sendo, seu questionamento aparece-lhe como desnecessário. Emconseqüência, o modelo por que se pauta, perpetua-se, freqüentemente emdesconcerto com as necessidades e problemas sociais relevantes. É assim quea concepção em que assenta o ensino jurídico, no Brasil, acha-se emdescompasso com a moldura social à que deveria servir, fixando-se, acritica-mente, no modelo exegético francês e dogmático alemão, ambos fundados nopositivismo jurídico.

O positivismo, como é sabido, atém-se ao aspecto fenomênico do direito,isto é, ao direito positivo estatal, ignorando, por imposição epistemológica, asforças e interesses sociais à sua origem, abstraindo os valores em que se fun-dam e que buscam realizar as leis, e menosprezando seus efeitos sociais. Talepistemologia determina a restrição gnosiológica marcante em Hans Kelsen,segundo a qual se há de conhecer o direito que é. É, este, o direito elaboradosegundo critérios formais fundados na norma fundamental suposta, o que cons-titui a condição de sua validade. A Ciência Jurídica daí resultante é tão lógicaquanto indiferente à realidade. Nega a sua contaminação ideológica, enquantoseu caráter formal admite todas as ideologias, identificando a validade do di-reito com a sua efetividade, vale dizer, com sua capacidade de impor-se coer-citivamente. Nesta concepção, não há lugar para a aferição da validade in-trínseca do direito, visto que qualquer conteúdo pode ser direito. Segue-seque a legalidade é identificada com a legitimidade do direito, resultando im-possível cogitar-se da justiça, tida como noção ideológica, que não é negada,mas considerada passível de indagação metajurídica.2

2 Kelsen, Hans. Teoria pura do direito (Reine Rechtslehre). Trad. por João Baptista Machado 2.ed. Coimbra: ArménioAmado, 1979. p. 17-8, 277-8, 290-1, passim.

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A respeitabilidade do pensamento de Kelsen e de sua contribuição ao ra-ciocínio jurídico, mediante a hierarquização das normas legais e o reconheci-mento (pouco referido) que faz do poder criativo dos juízes3, e sua contribui-ção relevante à teoria constitucional, não deixam dúvidas. Não pode ser dei-xada de lado, tampouco, sua “influência para a criação e fixação das compe-tências para uma Corte Constitucional”4.

Não é menos verdade, no entanto, que Kelsen, preocupado com a purezade sua teoria, tenha sacrificado, já nas primeiras páginas de sua obra, asvinculações necessárias, - que reconhece, mas deixa propositadamente deconsiderar -, do direito com a Política, a Moral, a Sociologia ou a Psicologia,tendo desembocado em um formalismo lógico-jurídico, que teve conseqüên-cias deletérias na América Latina, onde auxiliou no reconhecimento dasquarteladas e dos golpes de Estado.

Verdade é que o positivismo, ainda de certa forma imperante, semprecontribui para estreitar horizontes, impedindo a visão conjunta einterdependente das funções conservadora e transformadora da ordem jurí-dica. Disto se têm valido os conservadores para frear a evolução do direito,aferrados que se encontram na manutenção de seus privilégios, esquecidosde que, sem a justiça social, que passa necessariamente pelo adequadoequacionamento da justiça distributiva, a ordem jurídica mantém-se pelacoerção, sem que possa atingir o convencimento, de que deriva sua naturalaceitação e aperfeiçoamento.

Como, a propósito, assinala José Eduardo Faria “muitas das lutas políticase dos impasses constitucionais neste continente não passam de esforços e ten-tativas quase sempre frustradas para tornar real o que as constituições de seusrespectivos países asseguram formalmente ser direito dos cidadãos, mas que setornaram, na realidade, privilégios de alguns setores sociais”.5

Não é possível suprimir da Ciência do Direito a inarredável instância crí-tica, sem a qual não há progresso jurídico possível. Sem ela, mutila-se aontologia do direito, contribuindo para separá-lo da sociedade e transformá-lo em reino encantado da taxinomia, das distinções e subdistinções cerebrinas,do formalismo, que tanto se esmera no jogo conceitual que, ideologicamente,

3 Ibid., p. 464-71.4 Dallari, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 82.5 Faria, José Eduardo. Justiça e conflito (Os juízes em face dos movimentos sociais) São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

p. 107.

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se substitui à realidade. Daí resvala-se facilmente ao conceptualismo, que é,“sem dúvida, um pecado inveterado do método jurídico”.6

O ensino jurídico tem que buscar uma concepção totalizadora do direito,em que se encontrem suas diversas dimensões - dogmáticas, filosóficas, socio-lógicas e históricas.7 Não é possível reduzir o direito à técnica jurídica, apesarda necessidade do conhecimento minudente desta. A técnica é instrumentale não pode se exaurir girando sobre seu próprio eixo, devendo servir à finali-dade social de realização do convívio interpessoal tão harmônico quanto pos-sível. O direito e seu ensino, se voltados ao interesse social e situados no con-texto histórico presente, não podem deixar de atentar aos agravos perpetra-dos contra a ordem constitucional brasileira, em nome da ideologia neoliberal.Advém esta dos países centrais, e é imposta aos países da periferia capitalista,em nome de uma modernidade que, insofismavelmente, constitui uma voltaao século XIX, conduzindo à destruição da ordem jurídica, ao desprezo pelodireito, preocupada tão-só com o ganho a qualquer custo, no menor tempopossível, ainda que em detrimento do meio ambiente.

Não pode o ensino jurídico deixar de observar que, devido à exclusão soci-al progressiva, o Direito Civil cada vez mais se afasta das necessidades popula-res, enquanto o Direito Penal cada vez mais se transforma no direito dos po-bres, sobre os quais descarrega sua fúria repressiva.8

Em obra relevante, relativa aos crimes contra o sistema financeiro nacio-nal, cujos escândalos tanta indignação vã têm provocado, Ela Wiecko deCastilho analisou 682 (seiscentos e oitenta e dois) casos, ocorridos no Brasil,relativos a condutas enquadradas na Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, “sub-metidos à Polícia, ao Ministério Público e ao Judiciário, pelo Banco Central,no exercício de sua função fiscalizadora”. Suas conclusões, bem fundadas, sãoimpressionantes. A primeira delas é que o controle penal nos crimes contra o

6 “It is a kind of abuse or misdirection of logic in the construction of artificial rules or categories which are plausible in theabstract but have little correspondence with the concrete. It was this kind of Begriffsjurisprudenz - a barren and notvery difficult intellectual exercise, by no means confined to the law - which Ihering repudiated and satirized”.Allen, Carleton Kemp. Law in the making. 7.ed. Oxford: Clarendon Press, 1964. p. 43. É deste mundo conceitual,apartado da vida, que trata o Ihering da segunda fase, aludindo ao “céu dos conceitos jurídicos”, cujo ingresso égarantido a todo aquele que for capaz “de construir um instituto jurídico, prescindindo, de modo absoluto, de seuvalor prático, baseando-se exclusivamente nas fontes e no conceito”, o que Savigny, depois de alguma dificuldade,atingira em seu escrito sobre a posse. Von Jhering, Rudolf. “En el cielo de los conceptos jurídicos”. In: Bromas y verasen la jurisprudencia (Scherz und Ernst in der Jurisprudenz). Trad. por Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ed. JuridicasEuropa-America,1974, p. 289, passim.

7 Díaz, Elías. Sociologia y filosofia del derecho. Madrid: Taurus, 1976, p. 548 Novoa Monreal, Eduardo. El derecho como obstáculo al cambio social. 3.ed. Mexico: Siglo Veintiuno, 1979, p. 25.

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sistema financeiro nacional não é democrático, pois, se o fora, deveria valerpara todas as classes sociais. Isto deriva, em parte, da ausência “de uma estra-tégia única de atuação para repressão à criminalidade contra o sistema finan-ceiro”, para o que, de resto, não há estatísticas oficiais, tudo apontando “paraa pouca importância conferida pelas instâncias formais às condutas prejudici-ais ao sistema financeiro, ainda que subsumíveis na Lei 7.492”. Tal situaçãoconduz à imunidade penal. “A resistência do Poder Legislativo brasileiro àcriminalização primária, ou seja, à produção de normas que definam tais con-dutas, como crime, está relacionada com a existência dos detentores de podereconômico que sustentam o poder político e, entre eles, significativamente,os agentes financeiros, em especial os bancos privados”. Igual resistência, demesma motivação, acha-se no poder executivo.9

É grande a responsabilidade do Banco Central, nesta matéria, pois é sua,fundamentalmente, a decisão de “quais são os fatos que geram prejuízo aosistema financeiro e que pessoas deverão se submeter à repressão penal”, oque é feito segundo “parâmetros pouco transparentes e dificilmentequestionáveis em face do sigilo bancário”. Ademais, o enfoque dado à inves-tigação pela Polícia Federal e pelo Ministério Público “é, fora raríssimas oca-siões, limitado a casos individuais, sem análise e investigação do contexto emque são praticadas”. O Poder Judiciário, por seu turno, dependendo dos dadosdo Banco Central e da investigação policial, opera com morosidade a instru-ção processual. Na data final de coleta de dados pela autora “em apenas 2,19%dos casos houve julgamento após instrução, e os casos, em que houve conde-nação, equivalem 0,88%”. Como se vê, as conclusões são alarmantes e evi-denciam “o modelo estruturalmente seletivo do sistema penal brasileiro, emque se observa a relação funcional com a profunda desigualdade sócio-eco-nômica do país e a exclusão da repressão penal de determinadas classes ou,nestas, de grupos de pessoas.”10

No que toca ao Direito Civil, observa-se que os excluídos não casam, nãotêm propriedade, nem recebem herança. Quanto à autonomia da vontade,tão celebrada pelo liberalismo, no máximo a sofrem, sob a forma de contratosde adesão, felizmente, agora, com limitação de eficácia de suas mais leoninascláusulas, em decorrência da vigência do Código do Consumidor.

9 Castilho, Ela Wiecko V. de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16 de junho de1986). Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1998, p. 285-7.

10 Ibid., 287-90.

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A observação realista da realidade brasileira evidencia a pluralidade deordenamentos jurídicos. Em pontos do território nacional não abrangidos pelaordem jurídica estatal, há outros direitos, criados à sua margem, podendo ser-lhe antagônicos, como já demonstrou, há mais de duas décadas, Boaventurade Souza Santos, estudando as normas legais vigentes na favela de Jacarezinho,no Rio de Janeiro.11 A favela atesta “a não abrangência das classesdesfavorecidas pelas instituições de direito, na medida em que a marginalizaçãosócio-econômica também produz a marginalização jurídica”, o que mostra queprecisa o ensino jurídico fazer “uma reflexão multidisciplinar capaz de des-vendar as relações sociais subjacentes às relações jurídicas”...12 Cabe ao ensinojurídico indagar o porquê desta limitação do direito estatal, a partir daconstatação do desajuste da ordem jurídica oficial à situação e às vivênciasdas pessoas que vivem sob estes outros pólos de irradiação do direito.

Quanto ao Direito Constitucional, observa-se nefando ataque à Consti-tuição, que, a continuar a situação em que vivemos, se não houver decididareação, a começar pelo ensino jurídico, poderá vir a denominar-se “regimen-to interno do governo”. Hoje há uma ditadura do Executivo, compreendendoo poder de legislar e de emendar a Constituição, “tudo sob as vistas compla-centes do Judiciário”. As medidas provisórias, derivadas do artigo 77 da Cons-tituição italiana, hoje se tornaram permanentes. Segundo a Constituição, dever-se-iam restringir aos casos de relevância e urgência, sendo de trinta dias seuprazo de vigência sem aprovação do Congresso. Todavia, o STF “entendeuque relevância e urgência são ‘questão política’ insuscetível de apreciação peloJudiciário, e passou a admitir que MPs não apreciadas pelo Congresso fossemreeditadas, com o mesmo ou diferente teor, indefinidamente”.13

O império do neoliberalismo tenta, com a colaboração solerte da grandeimprensa, eliminar a legislação resultante do intervencionismo social.Wieacker, em 1967, escrevia que “o pathos da sociedade de hoje, comprovado,em geral, por uma análise mais detida das tendências dominantes da legisla-ção e da aplicação do direito é o da solidariedade...”14 Hoje, tenta-se, de todosos modos, subverter esta tendência, com o Executivo tão solícito aos impera-

11 Versão revista e reduzida de sua tese foi, posteriormente, publicada nos Estados Unidos, sob o título “The Law of theOppressed: The Construction and Reproduction of Legality in Passargada”. Law and Society Review, Denver, Colorado,12(1) :5-126, autumn, 1977.

12 Faria, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Fabris, 1987, p. 39-53.13 Comparato, Fábio Konder. Uma morte espiritual. Folha de São Paulo, São Paulo, 14-05-1998. Caderno 1, p. 3.14 Wieacker, Franz. História do direito privado moderno. Trad. de A. M. Botelho Hespanha. 2.ed. rev. Lisboa: Fundação

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tivos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial quanto indife-rente aos malefícios sociais que ocasionam. O Legislativo, à sua vez, quandoos assuntos não são objeto de medidas provisórias, mostra-se singularmenteobediente ao Executivo.

Resta o Poder Judiciário, cuja atuação é enquadrada pejorativamente pelaimprensa, que o acusa de ser, dentre os poderes, o pior, notadamente por suamorosidade, a que se agregam, acusatoriamente, casos isolados dedesonestidade flagrante, que se busca converter em regra. Muito da morosi-dade atribuída ao Judiciário se deve aos Códigos de Processo Civil e Penal,consagradores de uma profusão de recursos e de formalidades que, sobre retar-darem a prestação jurisdicional, terminam por dar guarida ao devedor contu-maz e ao fraudador do patrimônio público. A situação é tanto pior quantomaior for o interesse em questão ou o ilícito penal cometido. Com o processotransformado de meio em fim em si mesmo, desvanece-se o direito material.Neste contexto, em que se cultua a ciência pela ciência, o processo perturbaseriamente a atividade jurisdicional, sem que disto se tenha conta. O ensinojurídico precisa atentar e criticar essa situação, em conformidade com decla-rações recentes de várias autoridades juridiscionais, inclusive, dos MinistrosPresidentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Por outro lado, o Executivo, através do Ministro da Justiça, vem à impren-sa declarar “a necessidade de acabar com a indústria das liminares”. O quenão se diz é que, se a concessão de liminares em Mandados de Segurançaaumentou em número, o trabalho dos juízes também aumentou e, “por moti-vos mais do que óbvios, os governantes, cujos atos tiveram seus efeitos susta-dos por aquelas liminares, ficaram contrariados com estas decisões judiciais e,demonstrando despreparo para a democracia e o respeito ao direito, atribuí-ram a multiplicação de liminares a uma suposta ‘indústria de liminares’.” Emverdade, como salienta Dalmo Dallari, “se alguém quiser argumentar com aidéia de uma indústria de liminares, é preciso lembrar que não existe indús-tria sem matéria prima” e esta se constitui dos “atos inconstitucionais e ilegaisdo Poder Executivo. Basta que este respeite a Constituição e as Leis para queaquela indústria desapareça”.15

No que toca à interpretação e à aplicação do direito, o ensino jurídico temque acompanhar a evolução da Hermenêutica Jurídica, na certeza de que estahá de ser material e não meramente formal, evitando o logicismo estéril, que

15 Dallari, Dalmo de Abreu, op. cit., p. 62-3.

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opera como cortina de fumaça, em que se esfumam os interesses sub judice.Trata-se, ao contrário, de desvelá-los, para que seja possível decidir de modorazoável, fazendo opções, de modo a conciliar a manutenção e a transforma-ção da ordem jurídica, o egoísmo e a solidariedade humana. Há que se traba-lhar pela dignidade do direito, que é também a dignidade do homem. Trata-sede transformar a norma abstrata - Law in the books - em norma vivida - Law inaction -, parafraseando os realistas norte-americanos, mas com atenção à rea-lidade brasileira, repensando as leis, revalorizando-as em face dos fatos, demodo a contribuir à transformação da ordem jurídica em consonância com asnecessidades sociais, isto é, com a vida real dos homens concretos. Tudo istonão se realiza sem que se abandone o modelo dogmático positivista, que cir-cunscreve o trabalho do jurista a puros juízos de constatação em face do direi-to positivo. Esta cisão no discurso jurídico tem levado à perda do assento his-tórico do direito e ao seu conseqüente descrédito. Uma verdadeiraepistemologia jurídica não pode compadecer-se com a visão atomizada dodireito. Sem absolutizar ou discriminar nenhuma de suas abordagens e respei-tando a índole de cada uma, deve admití-las como complementares. Esse ocaminho para que o ensino do direito, deixando de reproduzir um modelofalido, se torne convincente e possa conduzir a uma prática jurídica profícua,socialmente aceitável e compreensível.16

O ensino jurídico apresenta uma carência fundamental - o desconheci-mento da História, de modo geral, e da História do Direito, de modo particu-lar. É ela que ensina que Bartolo, ilustre renovador dos estudos jurídicos naIdade Média e o mais famoso dentre os pós-glosadores, “em presença de umcaso a resolver, convidava seus alunos a encontrar, em primeiro lugar, a solu-ção justa, e só, após, procurar as fontes para motivá-la”.17 É também com elaque se aprende que a pluralidade de ordenamentos jurídicos não é tão surpre-endente quanto poderia parecer, visto que já era constatável em Roma, noséculo III AC. É que, em 242 AC, foi criada uma magistratura especial - opraetur peregrinus - para resolver as relações jurídicas, sempre que nelas inter-vinha um ou mais estrangeiros, vale dizer, estabelecidas entre um cidadão ro-mano e um estrangeiro ou entre estrangeiros. Não sendo elas cobertas pelo jus

16 Azevedo, Plauto Faraco de. Justiça distributiva e aplicação do direito. Porto Alegre: Fabris, 1983, p. 109-116; __ Críticaà dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1989, p. 25-7,36-7; __ Aplicação do direito e contexto social.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, passim; passim; __ Direito, justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revistados Tribunais, 1999, passim; __ Método e hermenêutica material no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado,1999, passim.

17 Du Pasquier, Claude. Introduction à la théorie générale et à la philosophie du droit. 4.éd. Neuchatel-Paris: Delachaux &Niestlé, 1967, p. 194.

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civile, regiam-se, no início, pelo princípio da boa-fé que não figurava entre asfontes do direito romano. Assim, foi criado, pouco a pouco, o jus gentium,como parte do direito romano positivo considerado a razão escrita, “o direitocomum a todos os homens”. Deste modo, o jus civile, que se caracterizava peloformalismo, foi modificado por força das circunstâncias, tornando-se maisdútil pelo contato com idéias estrangeiras. Em conseqüência, o jus gentium foicorroendo o jus civile, até extinguí-lo completamente.18

Processo semelhante ocorreu no sistema da Common Law, na Inglaterra,em que praticamente não houve influência do direito romano. Sendo os writsmuito restritos, freqüentemente a sua ausência conduzia à denegação de jus-tiça. Para evitá-la, as partes recorriam ao Chanceler, pedindo-lhe que conhe-cesse e julgasse seu caso, por motivos de eqüidade. Sendo isto feito, caso acaso, o Chanceler foi, paulatinamente, estabelecendo novos writs, daí decor-rendo um novo ramo do direito e uma nova jurisdição na Common Law - aEquity Law.19 É também a História que permite compreender as origens, adiversidade e os pontos comuns entre a família de direitos romano-germânicae a da Common Law.

Os exemplos passados poderiam ser multiplicados, embora o que maisinteresse, hoje, é conhecer as linhas fundamentais do contexto histórico pre-sente, as influências que lhe são subjacentes, as forças históricas atuantes e asidéias e as ideologias, por que, eventualmente, se orientem. É fundamentalperceber-se que há uma mudança, que pode vir a ser radical, no desenho po-lítico-jurídico do mundo. O poder não mais está concentrado na autoridadepolítica - governos, presidentes e primeiros ministros. “Hoje, o verdadeiropoder é outro, é financeiro e econômico. Cada vez mais os governos estão setornando meros comissários, cumprindo as ordens de seus superiores. Ao in-vés de governo pelo povo e para o povo, estamos nos confrontando com algoque poderíamos chamar de fachada democrática...” A corrupção tomou con-ta da vida política, perdendo esta seu sentido representativo.20 Este é o pano-rama aberto pelo neoliberalismo, que, além da miserabilidade que semeia,retira do poder político a representatividade, tornando os cidadãos “nada maisdo que instrumentos dóceis nas mãos de poderes distantes”.21 É este o contex-

18 Sohm, Rodolfo. Instituciones de derecho privado romano. Historia y sistema. Trad. por Wenceslao Roces. México: Ed.Nacional, 1975, p. 43-5.

19 David, René & Jauffret-Spinosi, Camille. Les grands systèmes de droit contemporains. 10.éd. Paris: Dalloz, 1992, p. 16-8.20 Saramago, José. Uma democracia sem poder (depoimento a Carlos Fuentes). Zero Hora, Porto Alegre, 2000.21 Ibid.,

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to neoliberal, que é, na verdade uma “revolução conservadora de um tiponovo, que se diz feita em nome do progresso, da razão, da ciência (econômica,no caso), para justificar a restauração, tentando, deste modo, qualificar dearcaísmo o pensamento e a ação progressistas”.22 Tudo o que lhe falta de razãoe tudo o que tem ocasionado de desordem, de desassossego e de agravamentodas más condições de partição da renda nacional e internacional, lhe sobraem poder mediático a repetir sua cínica cantilena.

Dado saliente de nosso tempo é a degradação irresponsável do ambiente,tendo como contraparte uma ciência manejada por indivíduos que se julgamonipotentes, crendo que lhes é possível tanto desfazer quanto refazer a natu-reza. Essa ciência é “uma simples virtuosidade técnica especializada e, talvez,um saber de tipo enciclopédico”, enquanto “a verdadeira ciência é um saberconsciente de suas modalidades e de seus limites”.23

Não é dado ao jurista ou ao professor de direito esquecer os dados funda-mentais do presente, sob pena de contribuir à perplexidade em que se achamergulhado, conduzindo à formação daquilo que o saudoso e eminente mes-tre Roberto Lyra Filho denominava “mão de obra sem cabeça”, pedida pelaestrutura assente.24 É preciso buscar a visão global, visto que não há uma criseparticular do ensino jurídico. A crise é social. A crise não pode ser compreen-dida sem a visão global. E a visão global não pode ser atingida sem o ponto devista histórico. É, segundo ele, que cumpre interrogar, sempre, tudo o que “sepassa”. A História é “ ‘o fio condutor’, sem o qual nenhum acontecimentotem ‘sentido’ ou ‘razão de ser’...” 25

E a visão global, de que o direito é parte fundamental, não pode ser atingidaautenticamente, se a concepção, que se tem do direito, é falsa. Refletindo sobrea metodologia jurídica, em obra publicada em 1913, François Gény, eminentemestre, fazia observações de uma precisão ímpar, que, não obstante, não foramconvenientemente assimiladas. Convém, pois, repeti-las, ao menos em parte.Discernia, este jurista, uma tendência metodológica, que lhe pareciainsofismável: “De formal e passivo, que foi ou tendia ser o método jurídico,

22 Bourdieu, Pierre. “Le mythe de la “mondialisation” et l’Etat social européen”. In: Contre-feux. Paris: Raisons d’Agir,1998, p. 40.

23 Jaspers, Karl. La situation spirituelle de notre époque. Trad. de l’allemand par Jean Ladrière et Walter Biemel. Postface deXavier Tilliete. 4.éd. Paris: Desclée de Brower; Louvain: E. Nauwelaerts, 1966, p. 161.

24 Lyra Filho, Roberto. Problemas atuais do ensino jurídico. Brasília: Ed. Obreira, 1981, p. 17.25 Chagas, Wilson. “Temas do nosso tempo”. In: Conhecimento do Brasil (e outros ensaios). Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1972, p. 56.

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tornara-se crítico e ativo, de tal sorte que aquilo que primitivamente não erasenão pouco mais que uma interpretação das fontes, tende a se transformar eminterpretação do direito”. Era preciso “buscar, atrás do invólucro formal do tex-to legal, a realidade de que este não era senão o símbolo”... Discernia nessarenovação jurídica, que, infelizmente, não se deu como esperava, a necessidade“de alargar o horizonte dos juristas até a procura de uma justiça superior quepermaneça humana por seu contato com as realidades do meio social, ao qualprecisa adaptar-se, justiça essa que paira muito acima dos modos de sua expres-são contingente”. Resultava impossível “rejeitar a priori todo modo de expres-são do direito positivo que não consistisse em uma fórmula legal”. Considerava“ilegítimo, e de todo modo absolutamente vão, pretender, tão-só por meio dalógica, fecundar os princípios contidos na lei escrita, de modo a adaptá-la aqualquer custo à solução de todos conflitos jurídicos”.26

Este mesmo autor, em obra publicada há mais de um século (1899), opu-nha-se ao que denominava crítica vulgar, que restringia o campo de investi-gações aberto àqueles “que pretendem merecer plenamente o nome de juris-tas”. Contrariamente a ela, apontava “que se havia observado que, ao lado doDireito Positivo, estreitamente compreendido, havia a História, a Filosofiado Direito, a Economia Política, o Direito Internacional, a Legislação no sen-tido amplo, ou, resumidamente, todo o conjunto das Ciências Políticas, Eco-nômicas e Sociais”.27

Mais não é necessário para ver-se que o mestre francês não professava opositivismo jurídico, embora não fosse, seguramente, um revolucionário28, masum desbravador, apontando para o direito positivo situado no mundo social,de que é um elemento integrante.29

Em suma, para conceber-se o direito de modo convincente e para elabo-rar-se a Ciência do Direito de modo verossímil, tem-se que ter em mente queela desenvolve “métodos de um pensamento ‘orientado a valores’, que permi-tem complementar valorações previamente dadas...” sendo tais “valoraçõessuceptíveis de confirmação e passíveis de uma crítica racional”, sem que seus

26 Gény, François. Science et technique en droit privé positif. Paris: Recueil Sirey, 1913. v. 1, p. 25-8.27 Gény, François. Méthodes d’interprétation et sources en droit privé positif. Préf. de Raymond Saleilles. 2.éd. rev. et mise

au courant Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1954. t. 1, p. 1-2. A primeira edição desta obradata de 1899, e a segunda, revista e atualizada, data de 1919, tendo sido reimpressa em 1954.

28 Du Pasquier, Claude, op. cit., p. 191, n. 205.29 Gény, François, Science et technique en droit privé positif, p. 41, nota 70.

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resultados possam “alcançar o mesmo grau de segurança e precisão de umadedução matemática ou de uma medição empreendida de modo rigorosamenteexacto”.30

As presentes considerações, críticas por certo, têm em mira o aperfeiçoa-mento do ensino jurídico, sem que, no entanto, se perca de vista o caminhode avanços alcançados, durante as duas ou três últimas décadas. O positivismojá não é aquele bloco monolítico a paralisar a reflexão jurídica, imobilizando-a no “céu dos conceitos jurídicos”, a que aludia o Ihering da segunda fase.Neste processo, cumpre destacar a atividade pioneira da Universidade de Bra-sília, em que se destacou o pensamento fecundo e inspirador de Roberto LyraFilho. O inolvidável mestre assinalou a necessidade de superação dialética dodireito, como processo dentro do processo histórico, de que é ingrediente fun-damental. Seguiram-lhe os passos muitos professores e juristas, comprometi-dos com a justiça social, ainda que trilhando perspectivas teoréticas diversas.Dentre estes, cabe destacar José Geraldo de Souza Júnior, por sua atividadecomo professor, por sua produção teórica e por sua ação permanente, animan-do e coordenando a discussão do ensino jurídico, no Conselho Federal daOrdem dos Advogados do Brasil. Seu trabalho tem sido decisivo para ache-gar o ensino jurídico e o direito, à rua, buscando ouvir os que não têm tidovoz, identificando e traduzindo a mensagem dos novos atores sociais a confi-gurar um novo tecido político à espera de sua tradução jurídica. 31

30 Larenz, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. por José Lamego da 6.ed. alemã reformulada. 3.ed.portuguesaLisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 3.

31 Neste sentido, deve-se destacar a relevância incontestável das “Conclusões do IV Seminário- O Ensino Jurídico no limiardo Século XXI”, realizado em Vitória-ES, de 3 a 5 de maio de 2000. OAB- Ensino Jurídico; Balanço de umaexperiência. Brasília: Ordem dos Advogados do Brasil-Conselho Federal, 2000, p. 235-241

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Argüição de Descumprimento dePreceito Fundamental - alguns

aspectos controversos1

The Questioning of Unenforcement of FundamentalPrecepts - Some Controversial Aspects

INGO WOLFGANG SARLET

Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Juiz de Direito noRS. Professor de Direito Constitucional na Escola Superior da Magistratura(AJURIS) e na Faculdade de Direito da PUC/RS, onde também leciona no

Mestrado em Direito.

RESUMO

O artigo analisa as inovações no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, apartir do advento das Leis nº 9.868 e 9.882, de 1999, inclusive na prática jurisprudencial.Palavras-chave: Controle de constitucionalidade, argüição de descumprimento depreceito fundamental, Constitucionalismo moderno.

ABSTRACT

The article analyzes the innovations in the Brazilian control system of constitution-

1 Parte das considerações tecidas neste ensaio tiveram como ponto de partida texto-base elaborado pelo autor ao ensejo deparecer lavrado para o Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul (IARGS), por comissão presidida pelo Prof.Eduardo Kroeff Machado Carrion, atual Diretor e Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade deDireito da UFRGS, comissão esta integrada também pelo Professor Marcus Vinícius Martins Antunes, da Faculdadede Direito da PUC/RS. O presente texto foi originalmente publicado na coletânea versando sobre a Argüição deDescumprimento de Preceito Fundamental coordenada pelos eminentes Professores André Ramos Tavares e WalterClaudius Rothenburg, Editora Atlas, 2001.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.73-95

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ality, after the advent of the Laws n. 9868 and 9882, from 1999, including thepractice of jurisprudence.Key words: Control of constitutionality, law enforcement, modern constitutional-ism.

1) Considerações preliminares:

As Leis nº 9868 e 9882, respectivamente de 11.11.99 e 03.12.99, introdu-ziram uma série expressiva de inovações no sistema de controle deconstitucionalidade adotado pela Constituição Federal de 1988, bem comona prática jurisprudencial nesta seara. Em síntese, cuida-se de documentoslegislativos dispondo, respectivamente, sobre o processo e julgamento da açãodireta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidadeperante o Supremo Tribunal Federal (Lei nº 9.868/99), bem como versandosobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceitofundamental (Lei nº 9.882/99), diploma este que veio a regulamentar o art.102, parágrafo 1º, da Constituição Federal de 1988, transcorridos já mais de11 anos de sua entrada em vigor.2

Especialmente no que diz à argüição de descumprimento de preceito funda-mental, verifica-se, de plano, que a recente regulamentação pelo legisladorordinário pouco contribuiu para a clarificação dos contornos do instituto, in-clusive quanto ao seu objeto e finalidade, a respeito dos quais nunca houveconsenso e, a depender do que se vislumbra em termos de produção doutrinária,dificilmente se logrará obter uma certa uniformidade, ao menos não antes deque se venha a sedimentar alguma orientação por parte do Supremo Tribunal

2 A ausência de regulamentação legal não impediu a propositura de diversas argüições de descumprimento, que, todavia,esbarraram no entendimento prevalente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o art. 102,parágrafo 1º, da nossa Constituição tinha o caráter de norma não auto-aplicável e que não se poderia sequer conhecerde argüição de descumprimento sem a devida regulamentação das hipóteses de cabimento e do procedimento por partedo legislador ordinário. Neste sentido, Alexandre de Moraes, Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais, SãoPaulo: Ed. Atlas, 2000, p. 262, colaciona decisão relatada pelo Ministro Sydney Sanches, no Agravo Regimental emPetição nº 1.140-7, DJU de 31.05.96, sinalando que “para argüição de descumprimento de preceito fundamental deladecorrente, perante o STF, exige lei formal, não autorizando, à sua falta, a aplicação da analogia, dos costumes e dosprincípios gerais de direito.” Não obstante se cuide de instrumentos diversos e diversa também seja a dicção do respectivopreceito constitucional, convém relembrar que no caso do Mandado de Injunção o Supremo Tribunal Federal, apesarde ter esvaziado virtualmente - salvo alguns casos excepcionais e em que pese a louvável divergência e resistência dealguns integrantes da Corte - a natureza e função do instituto, equiparando-o à ação declaratória de inconstitucionalidadepor omissão, acabou considerando que a norma contida no art. 5º, inciso LXXI, da Constituição de 1988, é de eficáciaplena, dispensada regulamentação legal do procedimento para sua propositura.

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Federal. Assim, não é à toa que já houve até mesmo quem chegasse a considerara argüição de descumprimento como sendo algo “misterioso e exotérico”,3

adjetivações que, a despeito da recente regulamentação legislativa, parecemcontinuar sendo atuais. Aliás, cumpre destacar, neste contexto, que até o pre-sente momento, sequer tendo a nova legislação completado o primeiro ano devigência, as poucas decisões proferidas pelo nosso Pretório Excelso em matériade argüição de descumprimento, limitaram-se, em geral, a não conhecer da de-manda, por falta de algum dos pressupostos processuais e/ou condições da ação,sem que tenha, ainda, ocorrido o julgamento de mérito. Em verdade, já noconcernente a estes aspectos não são poucas as dúvidas e angústias decorrentesdo texto regulamentador, bastando aqui a referência ao requisito da inexistênciade qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, que, a depender de umainterpretação mais ou menos restritiva, poderá facilmente levar ao virtual esva-ziamento do instituto ou contribuir decisivamente para tornar ainda maior o jáinsuportável acúmulo de demandas tramitando no Supremo Tribunal Federal.4

Para além disso, como bem lembrado por Clèmerson Clève e Cibele Dias, aparametricidade da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratóriade constitucionalidade é distinta da argüição de descumprimento, já que nocaso das duas primeiras o parâmetro da fiscalização é a Constituição de 1988como um todo, ao passo que na última o referencial elegido pelo próprio Cons-tituinte - e neste ponto não clarificado pelo legislador ordinário - são apenas ospreceitos fundamentais da nossa atual Carta Magna,5 sem que se vá aqui adentrar

3 Neste sentido, a afirmação de Ronaldo Poletti, Controle de Constitucionalidade das Leis, 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense,1998, p. 214, questionando inclusive a possibilidade de lei ordinária definir quais os preceitos constitucionais quepodem ser considerados fundamentais.

4 Especificamente sobre o requisito da inexistência de outro meio mais eficaz, v. a contribuição relevante de Gilmar FerreiraMendes, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: demonstração de inexistência de outro meio mais eficaz,publicado na revista jurídica virtual Jus Navegandi (www.jus.com.br) (originalmente publicado na Revista JurídicaVirtual do Palácio do Planalto, edição de junho de 2000). Também Lenio Luiz Streck, Os meios de acesso do cidadãoà jurisdição constitucional, a argüição de descumprimento de preceito fundamental e a crise de eficácia da Constituição(texto a ser publicado na Revista da AJURIS), p. 13, propõe uma leitura mais flexível a respeito deste requisitoimposto pela lei, traçando paralelo com o recurso constitucional alemão (a conhecida Verfassungsbeschwerde), suge-rindo uma interpretação conforme à Constituição, no sentido de que, em determinadas circunstâncias, não se torneexigível o esgotamento das vias judiciárias, admitindo-se a argüição de descumprimento, em princípio, nas hipótesesnas quais não caiba ação direta de inconstitucionalidade. O autor também critica, com sua habitual lucidez eproficiência, o fato de ter sido vetada pelo Chefe do Poder Executivo a possibilidade - originalmente prevista no art.2º, inciso II, da Lei nº 9.882/99 - de que todo e qualquer cidadão poderia, diretamente e sem intermediários, proporargüição de descumprimento perante o Supremo Tribunal Federal, destacando que a argüição de descumprimentodeveria ser, em verdade, uma ação de cidadania, de caráter individual, notadamente servindo como instrumentodireto e efetivo de defesa dos direitos fundamentais (ob. cit., p. 17-18).

5 Cf. Clèmerson Merlin Clève e Cibel Fernandes Dias, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental,in: Evandro deCastro Bastos e Odilon Borges Júnior (Coord), Novos Rumos da Autonomia Municipal, Rio de Janeiro: Max Limonad,2000, p. 76.

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a discussão em torno de quais são efetivamente os preceitos que merecem oqualificativo de fundamentais para efeito de, em caso de violação pelo poderpúblico, ensejarem a propositura da argüição de descumprimento, destacando-se serem já relativamente diversificados as posições até agora sustentadas nadoutrina.6 Inquestionável é, na esteira do exposto e segundo também a nós pa-rece, recolhendo aqui a precisa lição de Celso Bastos, que entre a argüição dedescumprimento de preceito fundamental e as demais ações de controle abstra-to e concentrado, existe uma espécie de “zona comum em tese”,7 sem que comisto se possa concordar com a posição segundo a qual a lei (e, portanto tambéma Constituição) implicitamente admite que toda norma constitucional seja “pre-ceito fundamental” e, por conseguinte, possa servir de parâmetro para argüi-ções de descumprimento.8

De todas as inovações introduzidas - e as referidas até o presente momentoconstituem apenas pálida amostra do universo a ser explorado - optamos, con-tudo, por destacar, para efeitos deste breve ensaio, pela sua crucial relevânciapara o controle de constitucionalidade e para toda a ordem jurídica pátria,pelo menos três aspectos, em parte comuns aos dois diplomas legislativos:

1) A possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, ao declarar ainconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vistarazões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, pormaioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daqueladeclaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trân-sito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (art.27 da Lei nº 9.868/99 e art. 11 da Lei nº 9.882/99).

2) A introdução do efeito vinculante e eficácia contra todos nos casosde declaração de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade,

6 Sem que aqui se vá apontar e avaliar os entendimentos já existentes, parece-nos que devam prevalecer as posições quetenham como elemento comum o fato de levarem a sério o termo “fundamental”, salvaguardando, neste ponto, oespírito e a essência da Constituição, de tal sorte que preceitos fundamentais poderão ser considerados todas asnormas constitucionais (ainda que não expressamente positivadas) enunciando princípios e direitos fundamentais,evidentemente não restritos aos Títulos I e II da nossa Carta Magna.

7 Cf. Celso Ribeiro Bastos e Alexis Galiás de Souza Vargas, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, in:Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, nº 30 (2000), São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 75.

8 Neste sentido - embora de forma manifestamente contrária e crítica - a referência de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Osistema constitucional brasileiro e as recentes inovações no controle de constitucionalidade (Leis nº 9.868, de 10 de novembro enº 9.882, de 03 de dezembro de 1999), in: Revista de Direito Administrativo nº 220 (2000), p. 14, apontando para apossibilidade de uma tal interpretação, que, à evidência, extrapola os limites da razoabilidade e acabaria, além de frustraro sentido do instituto, equiparar - ao menos no que diz com a parametricidade - de modo equivocado a argüição dedescumprimento às demais ações do controle abstrato e concentrado de normas no direito brasileiro.

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inclusive nas hipóteses de interpretação conforme a Constituição edeclaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto,efeitos estes que alcançam os demais órgãos do Poder Judiciário e aAdministração Pública Federal, Estadual e Municipal (art. 28, pa-rágrafo único, da Lei nº 9.868/99 e art. 10, parágrafo 3º, da Lei nº9.882/99). Registre-se, contudo, que no concernente à Lei que dis-ciplinou o processo de argüição de descumprimento de preceito fun-damental (Lei nº 9.882/99), o efeito vinculante e a eficácia contratodos - em que pese reconhecidos nas hipóteses de declaração deinconstitucionalidade ou de constitucionalidade - não abrangem ainterpretação conforme e a declaração parcial sem redução de tex-to, ao menos não expressamente contempladas neste diploma.9 Damesma forma, no que diz com a a argüição de descumprimento, oefeito vinculante não foi expressamente limitado aos órgãos do Po-der Executivo e Judiciário, havendo como cogitar-se, ao menos emtese, de eventual extensão aos órgãos legislativos, já que o art. 10,parágrafo 3º, do citado diploma legal, refere genericamente o poderpúblico, muito embora tal entendimento tenha sido recentementerechaçado em importante ensaio sobre o tema.10

9 Neste contexto, convém sinalar - não obstante sem maior desenvolvimento - que a ausência de previsão expressa no textolegal não autoriza, pelo menos em princípio e salvo melhor juízo, a conclusão de que em sede de argüição dedescumprimento de preceito fundamental não se poderá lançar mão da interpretação conforme ou da declaraçãoparcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, já que ambas as técnicas decisórias já vinham sendo pratica-das (além de reconhecidas pela melhor doutrina) pelo Supremo Tribunal Federal mesmo antes da edição da Lei nº9.868/99, onde vieram a obter referência expressa. De qualquer modo, a questão encontra-se - como tantas outrasdecorrentes de ambos os diplomas legislativos - aberta ao debate, especialmente no que diz com eventual efeitovinculante agregado às decisões que, no âmbito de um processo de argüição de descumprimento de preceitofundamental, venham porventura a se utilizar de tais modalidades decisórias, que, reitere-se, já restaram virtualmen-te incorporadas ao sistema pátrio de controle de constitucionalidade. A respeito da interpretação conforme e dadeclaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto no âmbito do sistema de controle deconstitucionalidade brasileiro, v. – entre nós e paradigmaticamente – as relevantes contribuições de Gilmar FerreiraMendes, Jurisdição Constitucional – O Controle Abstrato de Normas no Brasil e na Alemanha, São Paulo: Ed. Saraiva,1996, especialmente p. 265 e ss., assim como Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidadeno Direito Brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 262 e ss.

10 Com efeito, esta a posição de Clèmerson Merlin Cléve e Cibele Fernandes Dias. Argüição de Descumprimento de PreceitoFundamental, in: Evandro de Castro Bastos e Odilon Borges Júnior (Coord). Novos Rumos da Autonomia Municipal,Rio de Janeiro: Max Limonad, 2000, p. 78, invocando essencialmente o argumento de que a vinculação do PoderLegislativo (para além da exclusão expressa do Legislador quando da introdução da ação declaratória deconstitucionalidade), acabaria por constituir ofensa ao princípio da separação dos poderes. Apesar das relevantesrazões esgrimidas pelos autores referidos, tal entendimento não se encontra de todo imune à controvérsia, já que avinculação do próprio legislador às decisões da Corte Constitucional (e nesta quadra o nosso Supremo TribunalFederal, em que pese sua gama variada de competências, efetivamente está a atuar como “guardião da Constitui-ção”), é admitida em diversas ordens constitucionais, tal como ocorre - apenas em caráter exemplificativo - naAlemanha e em Portugal. Neste sentido, entre outros – a respeito do direito lusitano – v. a contribuição de JoaquimJosé Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1999, p. 946.

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3) A possibilidade, expressamente prevista em ambos os diplomas le-gais, da concessão de liminar em sede de provimento cautelar (tan-to em ação declaratória de constitucionalidade quanto na argüiçãode descumprimento), consistente na determinação de que os Juízese os Tribunais suspendam o julgamento dos processos que envol-vam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até o seujulgamento definitivo (art. 21 da Lei nº 9.868/99 e art. 5º parágrafo3º, da Lei nº 9.882/99), destacando-se, todavia, que no concernenteà argüição de descumprimento - além da possibilidade de concessãoda liminar pelo Ministro Relator (embora, de acordo com o art. 5º,parágrafo 1º, da Lei nº 9.882/99, ad referendum do Tribunal Pleno)o objeto do provimento cautelar é mais amplo, já que, para além dasuspensão do andamento de processos judiciais, foi prevista atémesmo a possibilidade de suspensão dos efeitos de decisões judiciaisou de qualquer outra medida que apresente relação com a matériaobjeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental,salvo se decorrentes da coisa julgada, o que, para muitos (inclusivejá antes da entrada em vigor de ambas as leis) tem sido consideradocomo significando, em verdade, a reintrodução da avocatória ou,pelo menos, do incidente de inconstitucionalidade no ordenamentopátrio, aspectos que - apesar de seu inequívoco relevo e questiona-da legitimidade constitucional - aqui não iremos desenvolver.11

Já no que diz com a Alemanha, registra-se divergência a respeito deste ponto. Assim, de acordo com a lição de KlausSchlaich, Das Bundesverfassungsgericht, 3ª ed., München: C.H. Beck, 1994, p. 275, enquanto o 1º Senado da CorteFederal Constitucional entende que o legislador não se encontra impedido de editar lei de igual teor àqueladeclarada inconstitucional, o 2º Senado admite, por força da eficácia vinculante, uma proibição de reedição denormas por parte do legislador infraconstitucional.

11 Sobre a possibilidade de a argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal como formatada pelo legisladorordinário, contemplar também o incidente de inconstitucionalidade (embora não criticando este aspecto), v., dentreoutros, Gilmar Ferreira Mendes, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (§ 1º do art. 102 da ConstituiçãoFederal), publicado na revista virtual Jus Navigandi (www.jus.com.br) (texto originalmente publicado na RevistaJurídica Virtual do Palácio do Planalto, edição de dezembro de 1999). Posicionando-se de forma veementementecontrária e vislumbrando feições de avocatória na possibilidade de suspensão dos processos judiciais, cumpre destacaro voto em separado - lançado em 12.11.97 - da lavra do eminente Deputado Jarbas Lima, quando da apreciação, naComissão de Constituição e Justiça, do Projeto de Lei nº 2.960/97, que veio a resultar, posteriormente, na Lei nº 9.868/99. Já naquela oportunidade, o ilustre Deputado averbou que “Na verdade, a previsão contida no art. 21 do projeto- que de cautelar nada possui - pretende instituir, às avessas, o chamado incidente de constitucionalidade per saltumna via do controle difuso, ou seja, a famigerada “avocatória” que a Assembléia Nacional Constituinte de 1988rejeitou sem hesitações, nunca é demais repetir. Neste sentido, não se pode esquecer que o controle concreto difusoda inconstitucionalidade já faz parte da tradição jurídica brasileira, sendo exercitado diariamente por todos oslidadores do direito e concretizando, de forma paulatina, as disposições constitucionais. É mais do que previsível queessa construção diária leva à existência de posições diversas, mas é induvidoso que a juriprudência constitucionalassim erguida é fruto de um pluralismo democrático judiciário inafastável quanto à efetivação do Estado

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Desde logo e antes de avançarmos, importa justificar a circunstânciade que,apesar de estarmos, em princípio, versando apenas sobre a argüi-ção de descumprimento de preceito fundamental, acabamos por referirtambém vários pontos relativos às ações declaratórias deinconstitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade) e deconstitucionalidade. Com efeito, para além dos elementos comuns já ven-tilados (ainda que parcialmente) e tantos outros que poderiam vir a serreferidos, não há como proceder a um exame completamente isolado daargüição de descumprimento, também pelo fato de se cuidar, em verdade,de uma nova modalidade de controle abstrato e concentrado deconstitucionalidade, muito embora na sua origem - isto é, como pressu-posto para sua propositura - encontremos um ato determinado (que pode-rá não ser necessariamente de cunho normativo) violador de algum pre-ceito fundamental da Constituição.

Com efeito, quando se considera o rol dos legitimados ativos (que são osmesmos da ação direta de inconstitucionalidade), a natureza do pronuncia-mento final (que, de acordo com o que deflui da lei regulamentadora, pelomenos poderá constituir também em uma declaração em tese dainconstitucionalidade ou constitucionalidade de ato normativo) e, acimade tudo, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante atribuído às decisões,verifica- se que nos encontramos - não obstante a argüição dedescumprimento, tal como oportunamente averba Lenio Streck, esteja aabranger “a ambivalência própria do sistema misto de controle deconstitucionalidade vigorante no Brasil”12 - em verdade muito mais próxi-mos do controle concentrado do que do controle difuso e incidental, cons-tituindo-se, portanto, a exemplo das demais ações do controle abstrato,tendencialmente um instrumento (processo objetivo) de defesa da ordemconstitucional.13 Aliás, é justamente pelo seu impacto sobre esta tradicio-nal modalidade de controle, incorporada ao nosso sistema jurídico desde aprimeira Constituição da República, que não são poucos os que já vinhamsustentando a inconstitucionalidade não apenas do efeito vinculante, mas

Democrático de Direito no âmbito do pacto federativo da nação.Todavia, o art. 21 do Projeto cria autoritáriasubversão dessa perspectiva histórica, desprezando-a, além de ignorar a estruturação do sistema judiciário brasileiroao instituir uma espécie de avocação da matéria constitucional ao S.T.F.”. Também Lenio Luiz Streck, Os meios deacesso do cidadão à jurisdição constitucional...., ob. cit., p. 20, aponta para o fato de que o art. 5º, parágrafo 3º, da Leinº 9.882/99, “reinsere em nosso ordenamento o instituto da avocatória”.

12 Cf. Lenio Luiz Streck, Os meios de acesso do cidadão à jurisdição constitucional..., ob. cit., p. 15.13 Cf. , dentre outros, Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata..., ob. cit., p. 143.

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da própria ação declaratória de constitucionalidade14, aspecto que por ora -em que pese a sua relevância - deixaremos de adentrar.

Assim, delimitando o objeto do presente estudo, optamos por priorizar al-gumas questões vinculadas mais diretamente aos três pontos ora destacados,direta – mas não exclusivamente - ligados ao problema dos efeitos das deci-sões proferidas em sede de argüição de descumprimento (e nas demais açõesde controle abstrato), cientes de que - até mesmo em face da ainda relativa-mente escassa produção doutrinária e virtualmente inexistente jurisprudên-cia - pouco mais faremos do que arriscar algumas indagações e questionamen-tos. Estes, por sua vez, centrar-se-ão na já de há muito instalada discussão emtorno da legitimidade constitucional das novas leis, notadamente pelo pris-ma de eventual inconstitucionalidade formal, de modo especial naquilo emque dispuseram sobre os efeitos das decisões proferidas nos procedimentosrecentemente regulamentados. Além disso, tentaremos situar o problema noâmbito da legitimidade da Jurisdição Constitucional e da posição que o nossoSupremo Tribunal Federal tem ocupado - ou deveria assumir - neste contex-to, ainda mais quando se está a enrobustecer de maneira tão significativa assuas funções e os poderes dos quais se encontra investido para cumprir o seupapel de guardião da ordem constitucional.

2) A discussão em torno da legitimidade constitucional da introduçãodo efeito vinculante e da manipulação dos efeitos no âmbito do controlede constitucionalidade por lei ordinária

Desde logo, sob o prisma da assim denominada constitucionalidade formal(tomada aqui num sentido mais amplo), parece-nos que existem pelo menosalguns elementos que permitem controverter a respeito da circunstância de tersido o efeito vinculante, assim como a manipulação da extensão dos efeitos dadeclaração de inconstitucionalidade e constitucionalidade pelo Supremo Tri-bunal Federal, introduzido por lei ordinária e não por emenda constitucional,tanto é que tramitam no Supremo Tribunal Federal duas ações diretas propostas

14 A respeito deste ponto, de modo especial sobre a discussão em torno da inconstitucionalidade do efeito vinculante, v.,sem prejuízo da farta e valiosa literatura já produzida sobre o tema, a indispensável contribuição de Lenio Luiz Streck,Súmulas no Direito Brasileiro – Eficácia, Poder e Função – A ilegitimidade constitucional do efeito vinculante, 2ª ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 135 e ss. (pugnando pela inconstitucionalidade da ação declaratóriade constitucionalidade) e p. 233 e ss. (explorando, com riqueza argumentativa, a tese da ilegitimidade constitucionaldo efeito vinculante, seja em sede de súmulas vinculantes, seja no âmbito do controle de constitucionalidade).

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pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, requerendo a decla-ração de inconstitucionalidade dos diplomas legislativos ora analisados15. As-sim, sem que aqui se pretenda enunciar uma posição fechada e nem mesmoexplorar todas as possíveis facetas e argumentos a respeito deste ponto, valeregistrar alguns aspectos a serem considerados neste contexto.

Em primeiro lugar - embora não necessariamente em ordem de importân-cia - verifica-se que o efeito vinculante em sede de controle abstrato, apesarde sustentado por importantes segmentos da doutrina pátria e alguns dos pró-prios integrantes do Supremo Tribunal Federal, acabou por ser introduzidoapenas em 1993, com a criação - por emenda constitucional - da açãodeclaratória de constitucionalidade, quando - se efetivamente pudesse ter sidoprevisto em lei - tal já poderia ter ocorrido muito antes. Além disso, mesmoque tal tivesse sido sugerido16, não chegou o Supremo Tribunal Federal a en-tender possível a extensão do efeito vinculante às decisões proferidas em sedede ação direta de inconstitucionalidade, mesmo que de há muito (já sob aégide da Constituição de 1967/69) tenha prevalecido o entendimento de quea ação direta de inconstitucionalidade constitui demanda de natureza dúplice,de tal sorte que, em caso de improcedência, resulta uma declaração deconstitucionalidade do ato originalmente impugnado.17

Para além disso, não se pode desconsiderar por completo o fato de que,paralelamente à edição das duas leis ora analisadas, esteja tramitando no Con-gresso Federal, no âmbito da Reforma do Judiciário, proposta de emenda cons-titucional que, entre outros aspectos, dispõe sobre a criação do efeito vinculante

15 Cuida-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2231-8 (Relator Ministro Néri da Silveira), questionando ainconstitucionalidade total da lei nº 9.882/99, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2258-0 (Relator Minis-tro Sepúlveda Pertence), sindicando a constitucionalidade do artigo 11, parágrafo 1º, e dos artigos 21 e 27, todos daLei nº 9.868/99. Ambas as ações diretas encontram-se aguardando decisão a respeito do pedido de liminar.

16 Neste sentido, cumpre registrar a posição do eminente Ministro Sepúlveda Pertence (Reclamação nº 621-RS, publicadano DJU de 04.07.1996), no sentido de que haveria como outorgar efeito vinculante também às decisões proferidasem ações diretas de inconstitucionalidade (ADIN), nas hipóteses nas quais for cabível a propositura de açãodeclaratória de constitucionalidade, propugnando uma interpretação sistemática da Constituição em virtude dasinovações (especificamente a introdução da ação declaratória de constitucionalidade e do efeito vinculante atribu-ído às decisões ) trazidas pela Emenda Constitucional nº 3 DE 1993.

17 Cf., dentre tantos e de forma paradigmática, Gilmar Ferreira Mendes, Direitos Fundamentais e Controle deConstitucionalidade, São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 254 e ss., noticiando que tal prática encontra sua origemna admissão, pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da possibilidade de o Procurador-Geral da República,quando ainda era o titular exclusivo da ADIN, manifestar-se pela improcedência da demanda, sustentando aconstitucionalidade do ato normativo inicialmente impugnado por inconstitucional. A natureza dúplice tanto daação direta de inconstitucionalidade, quanto da ação declaratória de constitucionalidade veio a ser expressamentechancelada pela Lei nº 9.868/99 (art. 24).

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para as decisões definitivas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Tal cir-cunstância, se evidentemente não pode servir como argumento decisivo, pelomenos, sugere uma certa insegurança no que diz com a legitimidade da intro-dução, via lei ordinária, do efeito vinculante e da restrição dos efeitos da de-cisão declaratória de inconstitucionalidade ou constitucionalidade, no nossoordenamento jurídico. Afinal de contas, por quê utilizar o procedimento agra-vado da reforma constitucional para obter algo que a maioria simples, medi-ante processo legislativo substancialmente mais facilitado, já decidiu?

De outra parte, constata-se, a partir de experiências oriundas do DireitoComparado, que o efeito vinculante e a flexibilização dos efeitos da declara-ção proferida pela Corte Constitucional - notadamente quanto à sua ampli-tude e conseqüências - ou encontra-se expressamente prevista na Constitui-ção, ou foi regulamentada em Lei, neste caso, todavia, por expressa delegaçãoda Constituição, isto é, autorizada direta e inequivocamente pelo Poder Cons-tituinte Originário, não sendo o caso de se desprezar a tese de que se cuida dequestões de cunho materialmente constitucional. Não se poderá olvidar, pelasua estreita relação com o tema, que o dogma da nulidade do atoinconstitucional (e, portanto, o efeito da declaração de inconstitucionalidade),como bem recorda Gilmar Ferreira Mendes, de há muito adquiriu, tambémentre nós, hierarquia constitucional, posição esta consagrada pelo SupremoTribunal Federal,18 o que apenas reforça o espectro de argumentos em favor deuma ilegitimidade constitucional de ambos os diplomas, especialmente na-quilo em que estão a alterar - direta e substancialmente - este verdadeiro pos-tulado do nosso direito constitucional.19

Neste sentido, apenas para citarmos alguns exemplos extraídos do DireitoComparado, retratando a prática de algumas ordens constitucionais que vêmexercendo significativa influência sobre a nossa própria experiência jurídico-constitucional, verifica-se que a Lei Fundamental da Alemanha (art. 94, nº2), dispõe que uma Lei Federal versará sobre a organização do Tribunal Cons-titucional, assim como sobre o procedimento e a força vinculante de suasdecisões. A Constituição da Itália, em seu art. 136, dispõe expressamente so-bre o início dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, ao passo que oart. 137 remete os aspectos relativos à constituição e funcionamento da Cor-te Constitucional à legislação ordinária. A Constituição Portuguesa, por sua

18 Cf. Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional, ob. cit., p. 255.19 Com as presentes ponderações não se está, todavia, a rechaçar necessárias relativizações no âmbito dos efeitos da

declaração de inconstitucionalidade, mas apenas controvertendo a respeito do modo (embora também discutindo aamplitude) pelo qual modificações tão relevantes no sistema foram regulamentadas pelo direito positivo.

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vez, no art. 281, nºs 1 e 3, prevê expressamente que as decisões proferidas emsede de controle abstrato (decisão declaratória de inconstitucionalidade oude ilegalidade), possuem força obrigatória geral. Já no art. 282, nºs 1 a 4, aConstituição Portuguesa dispõe expressamente sobre a respeito da fixação doalcance dos efeitos das decisões. Também a Constituição Espanhola (art.164), faz referência expressa e direta ao efeito vinculante das decisões profe-ridas pelo Tribunal Constitucional.

Poder-se-á argumentar – sustentando ponto de vista contrário – que, pelomenos no que diz com a arguição de descumprimento de preceito fundamen-tal, a Constituição de 1988, em seu art. 102, parágrafo 1º, autorizou expressa-mente o legislador ordinário a regulamentar a norma constitucional, autori-zação esta que teria o condão de abranger até mesmo os aspectos relacionadosaos efeitos da decisão, razão pela qual desde logo não se poderia sequer cogitarda tese aqui ventilada.

Não obstante tal exegese possa, numa leitura mais apressada, ser plena-mente convincente, não nos parece que seja necessariamente a mais legíti-ma, especialmente em se procedendo à uma interpretação teleológica e siste-mática. Com efeito, já sob um prisma lógico-formal, não se afigura comoincensurável o entendimento de que, em sede de controle abstrato e em seadotando o raciocínio até agora sustentado, seja indispensável uma previsãoexpressa do efeito vinculante e da restrição dos efeitos da declaração proferi-da pelo Supremo Tribunal Federal, ou, pelo menos, sua introdução por meiode emenda constitucional, ao passo que tal providência, no âmbito da arguiçãode descumprimento de preceito fundamental, estaria dispensada, cometidatal regulamentação integralmente ao legislador. Na medida em que no pro-cesso de argüição de descumprimento de preceito fundamental igualmente seencontra prevista a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade econstitucionalidade, inclusive em conexão com decisões proferidas em sedede ação direta de inconstitucionalidade e/ou ação declaratória deconstitucionalidade, não haveria como aceitar tal assimetria de tratamento.Com efeito, como já esperamos ter demonstrado, a argüição de descumprimentointegra o cada vez mais complexo sistema de controle de constitucionalidadebrasileiro e, tendo em conta os diversos pontos de contato com as demaisações de controle abstrato, não pode se pura e simplesmente analisada deforma isolada.

Assim, pela natureza e importância do tema, envolvendo a ampliação dospoderes do Supremo Tribunal Federal em relação aos demais órgãos judicantese administração pública, a regulação por lei ordinária haveria - pelo menos

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assim nos parece lícito argumentar - de se restringir a aspectos ligados a ques-tões de ordem organizacional e procedimental (onde, de resto, houve impor-tantes e positivas novidades introduzidas por ambas as leis ora questionadas)20,sendo esta, salvo melhor juízo, uma alternativa plausível para se interpretar aremissão à lei prevista no art. 102, parágrafo 1º, da nossa Carta Magna.

É justamente pela relevância da matéria e pelas suas conseqüências para aordem jurídico-constitucional pátria - por mais que se possa sempre objetarinexistir algo como uma espécie de reserva material para a emenda constitu-cional (no sentido de que inexistem assuntos sobre os quais apenas o poderconstituinte reformador possa dispor) - que se afigura pelo menos como plau-sível o entendimento de que estamos a tratar - notadamente no que diz com opoder cautelar atribuído ao Supremo Tribunal Federal, o efeito vinculante,bem como a possibilidade de restringir os efeitos da declaração deinconstitucionalidade - de matéria tipicamente constitucional e que no mí-nimo não se revela conveniente sua regulação por mera lei ordinária, inclusi-ve se considerada a questão pelo prisma da legitimação democrática. Comefeito, não parece razoável que se atribua à maioria simples e transitória doCongresso Nacional a decisão sobre questões de tal sorte relevantes.

Apenas para ilustrar melhor a questão e desenvolver um pouco mais oponto, tomemos por referência as alterações ora focalizadas, atinentes aos efei-tos das decisões. Nesta quadra, convém lembrar que ao atribuir às decisões doSupremo Tribunal Federal efeito vinculante (pelo menos em se considerandoamplitude deste efeito) o legislador ordinário acabou por interferir direta esignificativamente no âmbito do controle difuso e incidental deconstitucionalidade, certamente um dos esteios da ordem jurídico-constitu-cional pátria desde a primeira Constituição da República. Com efeito, se talmodalidade de controle não restou suprimida - como alguns chegaram a cogi-tar de modo certamente exagerado - não há como negar, todavia, que a obrado Poder Constituinte ao longo de toda a nossa história republicana acaboupor ser substancialmente fragilizada e esvaziada, antes pela introdução da açãodeclaratória de constitucionalidade e agora, de modo significativamente maisincisivo, pela atuação do legislador ordinário. Quando então se considera a

20 Dentre outros aspectos, assume relevo a incensurável possibilidade - comum a ambos os diplomas legislativos(designadamente art. 20, parágrafo 1º, da Lei nº 9.868/99, e art. 6º, parágrafo 1º, da Lei nº 9.882/99) de, em caso denecessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato, se produzir prova pericial e realizar audiênciapública para oitiva de pessoas com experiência e autoridade na matéria discutida no processo de controle abstrato,tese que de há muito já vinha sendo, entre nós, pioneiramente sustentada por Gilmar Ferreira Mendes, DireitosFundamentais e Controle de Constitucionalidade, ob. cit., pp. 422-23.

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possibilidade - prevista justamente na lei que dispõe sobre a argüição dedescumprimento de preceito fundamental - de um Ministro do Supremo Tri-bunal Federal (mesmo que ad referendum do pleno)21 suspender liminarmentetodos os processos judiciais e/ou efeitos de decisões judiciais, ou mesmo deter-minar a suspensão de qualquer outra medida que tenha relação com a maté-ria ventilada na argüição, não há como negar que o problema se revela aindamais delicado.

O mesmo se pode afirmar - talvez ainda com maior convicção - relativa-mente à possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (ainda que por maioriaqualificada) restringir os efeitos da declaração de constitucionalidade, deci-são esta que, por sua vez, igualmente possui efeito vinculante. Com isto não seestá a questionar a necessária relativização do dogma da nulidade absoluta(com efeitos retroativos) da norma inconstitucional, que o próprio SupremoTribunal Federal, não obstante ainda de modo relativamente tímido, vinhaexcepcionando, admitindo, em alguns de seus julgados, efeitos meramenteprospectivos, deixando assim de nulificar os atos praticados com base na leideclarada inconstitucional, por razões de segurança jurídica.22 A lei ordinária,todavia, foi bem mais ousada e, para além da possível outorga de efeitos exnunc (de resto amplamente reconhecida no direito constitucional europeu ejá admitida até mesmo em alguns julgados da Suprema Corte norte-america-na23), ambos os diplomas legislativos, tal como já frisado, autorizam o Supre-mo Tribunal Federal uma margem de arbítrio sem precedentes e virtualmentesem paralelos no direito constitucional pátrio e comparado, já que o Tribunalpoderá até mesmo decidir que a declaração de inconstitucionalidade venha agerar efeitos a partir de outro momento, sem contudo estabelecer qualquertipo de limite, bem como dispor de ampla liberdade no âmbito da manipula-ção dos efeitos das suas decisões (art. 11 da Lei nº 9.882/99 e art. 27 da Lei nº9.868/99).

Neste contexto, cumpre destacar, ainda, que as dúvidas geradas pela for-mulação adotada pelo legislador, em ambos os diplomas ora parcialmente apre-ciados, tornam extremamente penosa a tarefa de um pronunciamento sobrea legitimidade constitucional (inclusive pelo prisma substancial) das inova-

21 Cf. dispõe o art. 5º, parágrafo 1º, da Lei nº 9.882\99.22 A respeito deste ponto, v. especialmente Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata..., ob. cit., especialmente p. 251

e ss., bem como Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional..., ob. cit., p. 249 e ss.23 A respeito da evolução ocorrida no âmbito da Suprema Corte Norte-Americana, v. a contribuição de Eduardo García de

Enterría, Justicia Constitucional,la doctrina prospectiva em la declaración de ineficácia de las leyes inconstitucionales, in:Revista de Direito Público, vol. 92 (1989), p. 6.

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ções no que diz com a restrição dos efeitos da declaração deinconstitucionalidade e seu diferimento no tempo. Em primeiro lugar, a dic-ção genérica adotada não permite sequer que se saiba, com precisão, quais osefeitos e quais as espécies de restrições dos quais está a se tratar, já que poder-se-á imaginar até mesmo uma restrição da própria intensidade ou âmbito deabrangência da eficácia vinculante e da coisa julgada erga omnes. Qualquerreferência ao tema em termos de análise crítica, ressente-se, de tal sorte, deflagrante caráter especulativo e, portanto, fatalmente resta, já antecipada-mente, ao menos parcialmente prejudicada, o que, por outro lado, não afastaa possibilidade de uma análise crítica, até mesmo para evidenciar esta facetado problema. Para além disso, uma apreciação mais minuciosa encontra-se nadependência do exame da diversificada prática do Supremo Tribunal Federalnesta seara e da referência às experiências no âmbito do Direito Comparado,que aqui não temos condições de recolher.

Mesmo assim - a despeito da indeterminação da fórmula adotada pelo le-gislador - é possível detectar, com alguma margem de certeza, uma série depontos controversos, apontando especialmente para alguns graves riscos quepodem decorrer da aplicação da nova legislação. Com efeito, postergar notempo, para além das alternativas ex tunc e ex nunc (ainda mais sendo estaúltima de cunho excepcional), os efeitos da declaração deinconstitucionalidade, isto é, a nulidade do ato, constitui fator de grande in-segurança jurídica e institucional, por si só potencial ameaça ao princípio doEstado de Direito, além dos graves riscos até mesmo de ofensas aos direitos egarantias fundamentais dos cidadãos. Pelo menos, tal prerrogativa, exercidasem a devida moderação, poderá colocar em cheque o princípio da separaçãode poderes consagrado pela nossa Carta Magna, por mais que se possa (e deva)relativizar e contextualizar o seu sentido e alcance.

Com relação a este ponto, poder-se-á sempre argumentar a existência deexperiências no Direito Comparado abalizando este diferimento previsto nosdispositivos legais ora comentados, tal como ocorre, v.g., na Alemanha e naÁustria, cuja Constituição (art. 140), prevê como regra geral a eficácia ex nunce viabiliza ao Tribunal Constitucional a postergação por até um ano, período noqual o ato declarado inconstitucional permanece em vigor e gerando efeitos.Na Alemanha, por sua vez, a existência de diversas decisões do Tribunal Fede-ral Constitucional declarando a incompatibilidade da norma com a Constitui-ção, sem pronunciar a sua nulidade e autorizando, por determinado período detempo, a sua aplicação até a substituição ou correção por outra norma editadapelo legislador, tem sido admitida como indispensável em determinadas situa-

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ções, mas sempre a título excepcional.24 Em Portugal, não obstante a existênciade diversas decisões do Tribunal Constitucional dispondo sobre a extensão dosefeitos da declaração de inconstitucionalidade, tal prática - especialmente amera declaração de incompatibilidade sem pronúncia de nulidade, as decisõesapelativas, a dissociação entre a declaração de inconstitucionalidade e a suapublicação e a assim chamada declaração de inconstitucionalidade com efeitoaditivo ou substitutivo (como é o caso das assim denominadas sentençasmanipulativas da Corte Constitucional Italiana) - tem encontrado alguma re-sistência.25 Aliás, até mesmo na Alemanha registra-se um incremento do roldaqueles criticam a ampliação das hipóteses de vinculação, especialmente emse cuidando de relativização dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.26

Na tentativa de ilustrar a problemática, verifica-se que, argumentandoapenas com a fórmula “razões de segurança jurídica ou de excepcional inte-resse social” (e por que não por razões de “Estado” ou, melhor ainda, de “Go-verno”?) poderá o Supremo Tribunal Federal - e o exemplo aqui vai citado emcaráter meramente especulativo - decidir até mesmo que um determinadotributo ou outra medida restritiva de direitos e garantias fundamentais (nãoolvidando aqui que as limitações constitucionais ao poder de tributar - aomenos parte delas - já foram consideradas pelo próprio Supremo direitos egarantias fundamentais do cidadão-contribuinte e “cláusulas pétreas”27), mes-mo sendo manifestamente inconstitucional, poderá continuar sendo aplica-da, cobrada ou executada por meses e, quem sabe, até mesmo por anos apóster sido declarada inconstitucional. Em assim sendo, o contribuinte - apesarde ver reconhecido o seu direito a não pagar determinado tributo ou contri-buição ofensiva aos princípios constitucionais - e como tal já declarado peloSupremo Tribunal Federal - poderá ser compelido pelo poder público (e pior,haverá de se resignar com isto, já que - em virtude do efeito vinculante e a

24 Cf., dentre tantos, Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, ob. cit., p. 220 e ss.25 Neste sentido, v. Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., ob. cit., especialmente p. 952, referindo que “o

Tribunal Constitucional tem aproveitado (de forma excessiva) esta possibilidade expressamente conferida pelaConstituição restringindo os efeitos normais da inconstitucionalidade”. Assim também parece sustentar Jorge Miranda,Manual de Direito Constitucional, vol. II, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 390.

26 Cf. novamente Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, ob. cit., especialmente p. 259 e ss.27 Cf. a paradigmática e sem dúvida louvável decisão que declarou a inconstitucionalidade (parcial) da emenda constitu-

cional nº 3-93, aqui especificamente no que diz com a criação do então denominado IPMF (Imposto provisório sobreMovimentação Financeira), proferida na ADIN nº 939-7 e relatada pelo Ministro Sidney Sanches. Nesta demanda,para além de outros aspectos relevantes (como o próprio fato de se declarar a inconstitucionalidade de emendaconstitucional), reconheceu-se expressamente que o princípio da anterioridade, consagrado no art. 150, inc. III,alínea b, da Constituição de 1988, constitui, por força do art. 5º, § 2º, da Carta Magna, direito e garantia fundamentaldo cidadão-contribuinte, decisão que também contemplou as imunidades previstas no inciso VI, alíneas a, b, c e d domesmo dispositivo constitucional.

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depender de sua amplitude e rigor - também não adiantará recorrer às instân-cias judiciais inferiores) a continuar pagando pelo prazo que vier a ser fixadopelo Tribunal?!.

Por outro lado, não há como desconsiderar que tanto a declaração deconstitucionalidade com efeito vinculante, quanto a vinculação de decisões decunho manifestamente interpretativo, tal como oportunamente adverte Go-mes Canotilho, acabam por conferir caráter normativo às decisões da jurisdiçãoconstitucional, transformando-o numa espécie de legislador positivo, de tal sorteque se vislumbra potencial ofensa aos princípios do Estado de Direito e da sepa-ração dos poderes,28 ambos agasalhados pela nossa atual Carta Magna. Nestemesmo sentido, assume relevo a posição sustentada no direito pátrio por LenioLuiz Streck, que, além de sublinhar e aprofundar a tese da ofensa ao princípioda separação dos poderes, destaca - recolhendo neste ponto lição de CármenLúcia Antunes Rocha – que, com a introdução do efeito vinculante, o SupremoTribunal Federal acaba por exercer funções de poder constituinte reformador, jáque a sua interpretação da Constituição e das leis se converte em norma comforça constitucional.29 Com efeito, vale lembrar, ainda neste contexto, a experi-ência de Portugal, onde a sentença de rejeição no âmbito do controle abstratoda constitucionalidade limita-se a não declarar a inconstitucionalidade, nãoresultando - como admitido entre nós – na declaração de constitucionalidade,além de não compartilhar do efeito vinculante.30 Nesta quadra, reportamo-nosnovamente ao magistério de Gomes Canotilho, para quem tal possibilidadeequivaleria à recepção do instituto do stare decisis no ordenamento jurídico por-tuguês, o que, por sua vez (pelo menos assim o sugere o ilustre publicista) apenaspoderia ocorrer pela via da revisão constitucional. 31

A partir do exposto, mesmo em se considerando os poucos exemplos eargumentos colacionados,32 acreditamos ter demonstrado, especialmente em

28 Cf. Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., ob. cit., p. 939 e ss.29 Cf. Lênio Luiz Streck, Súmulas no Direito Brasileiro..., ob. cit., p. 268-9.30 Cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, ob. cit., pp. 383-4. Assim também – bem como sobre os efeitos das

decisões do Tribunal Constitucional em geral – o entendimento de José Manuel M. Cardoso da Costa,A JurisdiçãoConstitucional em Portugal, 2ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992, p. 61-62.

31 Cf. Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., ob. cit., p. 956 e ss.32 Sugerindo uma inconstitucionalidade da Lei nº 9.882/99, situa-se o questionamento - já referido - de Ronaldo Poletti,

Controle da Constitucionalidade das Leis, ob. cit., p. 214, ao indagar a respeito da viabilidade de se definir, por leiordinária, quais os preceitos fundamentais aptos a desafiar argüição de descumprimento no caso de sua violação. Damesma forma - mas por outro fundamento - cabe destacar aqui a tese sustentada em recente e importante estudo dalavra de Alexandre de Moraes, Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais, ob. cit., pp. 267-68, argumentan-do, em síntese, que a Lei nº 9.882/99 distanciou-se do texto constitucional e ampliou irregularmente as

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face da relevância constitucional dos aspectos ventilados, que a tese dainconstitucionalidade por inidoneidade do meio escolhido (lei ordinária) podeeventualmente não ser a melhor nem vir a prevalecer quando de umamanfestação do Supremo Tribunal Federal a respeito, mas seguramente me-rece ser levada a sério, ao menos reclamando uma reflexão mais aprofundada,do que aqui - até mesmo em virtude da limitação física do presente texto –tivemos oportunidade de empreender.

3 - A necessária conexão das reformas no âmbito do controle deconstitucionalidade com o problema da legitimidade da jurisdição consti-tucional exercida no Brasil pelo Supremo Tribunal Federal

Por mais que se tenha como correta a conhecida afirmação do Juiz Hughes,da Suprema Corte Norte-Americana, no sentido de que a Constituição é oque os Juízes dizem que ela é (The constitution is what the judges say it is), elacertamente não poderá justificar que se outorgue à Jurisdição Constitucional(ainda mais por lei ordinária) poderes de tal sorte amplos e discricionários, aponto de colocar seriamente em risco a própria noção de que também os ór-gãos judiciais, quando atuantes na condição de intérpretes e garantes da Cons-tituição, continuam sendo órgãos constituídos e não constituintes33. Nestecontexto, a livre manipulação dos efeitos da declaração deinconstitucionalidade, especialmente quando somada ao efeito vinculantedas decisões, certamente poderá - ainda mais em se considerando as caracte-rísticas do sistema pátrio, desestabilizar o já frágil equilíbrio entre os órgãos depoder estatais (além de agravar ainda mais a crise institucional já instaladaentre nós), gerando uma superinstância controladora (e, por sua vez, isentade maiores amarras) não necessariamente desejável para o Estado democráti-

competências do Supremo Tribunal Federal, ao considerar como descumprimento de preceito fundamental qual-quer controvérsia constitucional relevante sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos osanteriores à Constituição, sustentando que tal apenas poderia ter ocorrido por emenda constitucional. Para alémdisso, ainda de acordo com o mesmo autor (ob. cit., pp. 268) - que aqui chega a referir também o problema dasdecisões e seus efeitos - o legislador ordinário acabou equiparando - no que diz com a legitimidade ativa e os efeitosdas decisões - a ação direta de inconstitucionalidade e a argüição de descumprimento, o que igualmente demonstraa tentativa inconstitucional de ampliar a competência do Supremo Tribunal Federal.

33 Neste passo, segundo bem coloca Klaus Schlaich, Das Bundesverfassungsgericht, p. 291, cumpre levar a sério a perguntade como pode a Corte Constitucional (o que, à evidência e no contexto peculiar da ordem constitucional pátriatambém se aplica ao Supremo Tribunal Federal) assegurar o âmbito de atuação dos demais órgãos constitucionais esimultaneamente assegurar e controlar seu próprio poder controlador, já que igualmente vinculado pela Constitui-ção, ainda que lhe incumba a tarefa de decidir sobre o sentido e alcance das normas constitucionais e, portanto,controlar a constitucionalidade dos atos dos demais órgãos estatais.

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co de Direito planejado (embora longe de estar implementado) pela nossaConstituição vigente.

Desde logo - e é precisamente este o outro ponto que ora pretendemos des-tacar - não há como deixar de reconhecer a íntima vinculação do problema dosefeitos das decisões em sede de controle de constitucionalidade com a sempreatual e controversa discussão em torno da legitimidade do exercício da jurisdi-ção constitucional e dos limites de sua atuação.34 Ainda que já de há muito -precisamente a partir da experiência constitucional norte-americana e de modoespecial após a segunda guerra mundial - não se tenha mais – salvo exceções -questionado seriamente a possibilidade de um controle jurisdicional dos atosdos demais órgãos estatais, com isto não resta afastada a necessidade de se refle-tir continuamente sobre a natureza e os limites deste controle, inclusive no quediz com aspectos vinculados ao próprio órgão (ou órgãos) controladores.

Um dos problemas que se põe entre nós é justamente o de poder contarcom a devida dose de self restraint (auto-limitação) por parte do SupremoTribunal Federal ao relativizar os efeitos da declaração deinconstitucionalidade, inclusive no que tange ao seu diferimento no tempo,atividade que, ao menos segundo a legislação recentemente introduzida emnosso ordenamento, praticamente não está sujeita a qualquer limite.35 Assim,reportando-nos ao exemplo referido (cobrança de tributo já declaradoinconstitucional), que apenas constitui pálida amostra dos riscos que sedescortinam, não se torna difícil imaginar que o legítimo interesse social in-vocado para fundamentar determinada decisão, poderia facilmente ser deslo-cado por razões arbitrárias de Estado e toda sorte de pressões, tudo com oobjetivo de alcançar por caminhos de legitimidade por si só já duvidosa (aomenos em se considerando os argumentos em prol da inconstitucionalidadedas inovações ora examinadas) objetivos por vezes manifestamente ilegíti-mos, por mais bem intencionada que possa ser a decisão.

34 Sobre o tema da legitimidade democrática da Jurisdição Constitucional vale conferir, entre nós, a contribuição de AndréRamos Tavares, Tribunal e Jurisdição Constitucional, São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, especialmente p. 71 e ss. Noâmbito do direito comparado, recomenda-se, em língua portuguesa, a obra coletiva contendo as contribuiçõesproduzidas por ocasião de evento comemorativo dos dez anos de instalação e funcionamento do Tribunal Constitu-cional de Portugal, intitulada Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra: Coimbra Editora, 1995,253 p.

35 Cumpre registrar que a problemática da legitimação da jurisdição constitucional vai aqui analisada basicamente peloprisma de uma legitimação político-democrática, encontrando-se, além disso, restrita ao problema da legitimação doSupremo Tribunal Federal na condição de órgão máximo desta Jurisdição Constitucional e tendo em conta aamplitude de suas funções e poderes nesta seara, já que também se poderá sempre discutir até mesmo a legitimidadedos demais órgãos jurisdicionais, ao exercerem o controle de constitucionalidade de modo difuso e incidental, istosem falar nas outras dimensões que revela o problema da legitimação das decisões e atos do Poder Judiciário.

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Os riscos de um desmesurado arbítrio (ao menos em se considerando adicção dos dispostivos legais citados) crescem quando se soma um outro argu-mento, este ligado (ainda que não exclusivamente) ao problema da legitimi-dade político-democrática do nosso Supremo Tribunal Federal para exercertal parcela de poder sobre os demais poderes e cidadãos do nosso país. Cuida-se, aliás, de tema recorrente e que deveria, especialmente entre nós, ser discu-tido de forma mais contundente e transparente. Uma Jurisdição Constitucio-nal operante e efetiva não prescinde de uma base de legitimação que lhe con-fere a devida autoridade e o devido respeito por suas decisões. Sem que secoloque aqui em questão a reconhecida idoneidade pessoal e capacidade dosintegrantes da nossa Corte Suprema - já que não é este, à evidência, o pontoem foco - não nos parece que a atual forma de composição da Corte e derecrutamento de seus integrantes seja compatível com a amplitude e gravida-de das prerrogativas que se lhe estão a atribuir paulatinamente. Se antes doadvento da Constituição de 1988 ainda se podia falar de uma manifesta pre-ponderância do controle difuso e incidental de constitucionalidade (muitoembora já presentes elementos importantes do controle abstrato e concen-trado), atualmente, notadamente a contar da introdução da ação declaratóriade constitucionalidade e da argüição de descumprimento de preceito funda-mental, especialmente em face da sua recente regulamentação legislativa (ain-da mais se esta efetivamente vier a prevalecer), já dominam os componentesde um controle abstrato e concentrado, amplamente reconhecido no cenárioeuropeu e cada vez mais objeto de recepção pelas demais ordens constitucio-nais, em especial no leste europeu e na Ásia. Com efeito, alterado substanci-almente o perfil do sistema de controle de constitucionalidade das leis, assu-me cada vez mais relevância, também entre nós (e já mesmo antes da vigên-cia da atual Constituição) a discussão a respeito da criação de um TribunalConstitucional com feições pelo menos próximas às que caracterizam - aindaque com importantes notas distintivas - de modo geral as Cortes Constitucio-nais européias, ainda que se venha a manter a designação atual do nosso maisalto Pretório.

Em verdade - e a experiência da expressiva maioria dos países da Europaassim o demonstra - quanto maior a legitimação democrática da Corte Cons-titucional, maior também o respeito pela autoridade de suas decisões por par-te dos demais órgãos estatais. Muito embora a legitimidade das decisões judi-ciais (também em sede de controle de constitucionalidade) não possa - nemdeva - ser restringida a um problema de composição e recrutamento dos Juízesque integram a Corte Constitucional por meio de mecanismos democráticos,sob um prisma meramente organizacional e procedimental, não há como

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desconsiderar que tal aspecto constitui ingrediente importante e, por vezes,decisivo.

O atual procedimento de indicação dos Ministros pelo Presidente da Re-pública, mediante aprovação pelo Senado Federal, apesar de inspirado direta-mente no modelo norte-americano (e talvez por isso mesmo), entre nós nãotem - de há muito - revelado resultados satisfatórios, a começar pela forma deapreciação das indicações no âmbito do Senado, que - convém lembrar - éórgão que representa em primeira linha os interesses do Estado na Federa-ção.36 A excessiva concentração de poder nas mãos do Executivo, especial-mente quando se cuida da composição de um órgão com poderes de fiscalizaraté mesmo os atos do Legislador, evidentemente não harmoniza com as exi-gências do regime democrático, por mais que se possa sempre (e com razãoquanto a este aspecto) objetar que os Ministros do Supremo Tribunal Federalnão podem, uma vez guindados ao cargo, terem sua nomeação tornada semefeito pelo Presidente da República, além de compartilharem da garantia davitaliciedade, comum aos demais integrantes do Poder Judiciário no Brasil.37

Em verdade, eventual abertura a ingerências sobre a independência dos inte-grantes da Suprema Corte (assim, como de resto, pode ocorrer com os demaisintegrantes do Poder Judiciário, mesmo concursados) depende bem mais dapostura individual do Magistrado (no sentido de levar a sério suas funções esua independência bem como das garantias jurídico-constitucionais indis-pensáveis ao exercício da função jurisdicional) do que de outros fatores, tantoé que a nomeação pelo Presidente nunca impediu o Supremo Tribunal Fede-ral - e o registro deve ser feito - de tomar decisões corajosas contra atos doPoder Executivo, ainda que em alguns casos - como, de resto, não apenas en-tre nós - se possa controverter a respeito.

O que nos parece relevante, neste contexto, é que o apego à experiêncianorte-americana, notadamente pelas já destacadas modificações sofridas no

36 Aliás, é de se questionar até que ponto o modelo norte-americano (que, de resto, nunca foi integralmente implementadoentre nós, inclusive pela ausência do stare decisis) efetivamente alguma vez chegou a ser a melhor solução, ponto queaqui evidentemente não iremos desenvolver.

37 Basta, apenas para ilustrar este ponto, referir os amplos poderes do Executivo no âmbito normativo, designadamente noque diz com a iniciativa legislativa e edição das medidas provisórias (ainda que venham a prevalecer as modificaçõesem curso). São justamente tais atos normativos que mais têm sido objeto de controvérsia judicial a respeito de suaconstitucionalidade, sendo apreciadas por um Tribunal composto praticamente por indicação exclusiva do Presiden-te da República, habitualmente homologada sem maior questionamento pelo Senado Federal. Somando-se a estequadro o efeito vinculante das decisões proferidas em controle abstrato e a manipulação dos efeitos da declaração deinconstitucionalidade, verifica-se, salvo melhor juízo, não serem poucos os inconvenientes que decorrem da soluçãohoje ainda adotada entre nós.

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âmbito do nosso sistema de controle de constitucionalidade, não mais se re-vela – cumpre reiterar tal aspecto - a solução mais adequada. Na busca deuma nova alternativa, haverá de se atentar, por sua vez, para a necessidade deconciliar o sistema presidencialista de governo com o princípio federativo edemocrático, objetivando uma fórmula constitucionalmente adequada. Já porestas razões, cremos que algum caminho intermediário entre a sistemáticaatual e a solução européia típica (especialmente quando atrelada ao modeloaustríaco-germânico de controle de constitucionalidade), intimamente liga-da ao sistema parlamentarista, haverá de ser encontrado, pena de restar agra-vada a já suficientemente aguda crise de credibilidade e confiança nas nossasinstituições.38

Também aqui são inúmeras as possibilidades (além de diversas as su-gestões já formuladas39) já que - consoante já assinalado - nem mesmo noâmbito europeu, em que pese a existência de alguns elementos comuns, seregistra uniformidade nesta seara, divergindo não apenas as competênciase procedimentos, mas também a forma de recrutamento, o número de in-tegrantes, a permanência no cargo, entre outros aspectos. Assim, em cará-ter meramente exemplificativo e especulativo, reiteramos nesta quadrasugestão - não necesssariamente original - já formulada quando integrá-vamos a comissão de estudos constitucionais da Presidência da Associa-ção dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS). De acordo com a nossaproposta, haveria de se transformar o Supremo Tribunal Federal em au-têntica Corte Constitucional, revendo-se as suas competências e expur-gando-se todas aquelas não diretamente relacionadas às suas funções comoguardião da nossa ordem constitucional, consoante, aliás, já havia anun-ciado o Constituinte de 1988. No que diz com a composição, impõe-se(mesmo mantida a atual fórmula) o aumento do número de Magistrados,evidentemente incompatível não apenas com as dimensões do nosso País,mas também - e de modo especial - com a magnitude das questões e o

38 Não se pretende, portanto, a importação direta, acrítica e sem ajustes de qualquer modelo estrangeiro, por melhor quepossa parecer, mas sim, a necessária adaptação e aperfeiçoamento do sistema pátrio, aproveitando-se o que efetiva-mente harmoniza com as exigências e peculiaridade de nosso ordem constitucional, caracterizada por um modelocomplexo de controle de constitucionalidade, embora tendencialmente(ou mesmo preponderantemente) influen-ciado pelo paradigma europeu, mas também marcada por uma excessiva e indesejada concentração de poderes noExecutivo.

39 Desde a época da Constituinte tanto a forma de recrutamento dos integrantes do Supremo Tribunal Federal, quanto adiscussão em torno da criação de uma Corte Constitucional, assim como da sua composição e atribuições, acabougerando uma série de propostas, formuladas no âmbito do processo legislativo, mas especialmente sugeridas peladoutrina, boa parte das quais (senão a maioria) sugerindo a criação de um Tribunal Constitucional nos moldeseuropeus, não sendo o nosso intento elencar e avaliar aqui tais projetos.

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número de processos. O aumento do número de Juízes, por outro lado,além de viabilizar uma agilização no exame dos feitos e maior racionaliza-ção e divisão do trabalho, assume relevância no que diz com a legitimida-de democrática das relevantes decisões proferidas pelo pleno do Tribunal.Não é à toa que mesmo em países como Portugal (com bem menos de 10%da nossa população) o número de integrantes do Tribunal Constitucionalé maior, o mesmo ocorrendo - em caráter exemplificativo - com a Alema-nha, Espanha e Itália.

Para além disso, agora já no âmbito do processo de recrutamento, de-veria ser priorizado o princípio democrático, a começar pela possibilidadeda elaboração de listas (no caso, poder-se-á cogitar de listas sêxtuplas)por parte do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, do MinistérioPúblico Federal e Estadual e dos órgãos do Poder Judiciário Estadual e Fe-deral, submetidas, então, à apreciação do Presidente de República que es-colheria três dos seis nomes indicados, assegurando-se assim a participa-ção direta e relevante do Poder Executivo no processo, em homenagemao sistema presidencialista que já se incorporou à tradição constitucionalpátria. Por derradeiro, a lista tríplice elaborada pelo Chefe do Poder Exe-cutivo deveria ser submetida ao Congresso Nacional, que, em votaçãoconjunta e mediante maioria qualificada (sugere-se 2/3 ou, pelo menos,3/5) elegeria um dos indicados, assegurando-se, portanto, além da preser-vação do princípio federativo, uma efetiva legitimação democrática segu-ramente indispensável para uma autêntica e operante Corte Constitucio-nal, evitando, por sua vez, o risco de uma dependência direta da vontadede um determinado partido político.

De outra parte, importa consignar a conveniência - de resto já referida emdiversas sugestões a respeito do tema - de que os Magistrados exerçam suasfunções com absoluta independência funcional e por prazo determinado (que,à evidência, não poderia coincidir com os mandatos parlamentares), que, nonossos sentir e tomando por referência a expressiva experiência européia, nãodeveria ser inferior a oito nem superior a doze anos (como é o caso da Alema-nha), vedada a recondução. Como bem destacou o ilustre Professor InocêncioMártires Coelho em recente palestra proferida no dia 27 de outubro de 2000,por ocasião do III Congresso Brasiliense de Direito Constitucional, a imperi-osa necessidade de uma renovação periódica dos quadros da Corte Constitu-cional (ainda que se mantenha a atual denominação) encontra-seumbilicalmente vinculada à própria e inevitável mudança que se processa narealidade sócio-econômica, política e cultural e jurídico-normativa, mas tam-

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bém decorre da exigência de se preservar a indispensável abertura do proces-so de interpretação jurídico-constitucional.40

Assim, cientes de que a proposta ora formulada reclama uma maior refle-xão e fundamentação e convictos de que incumbe ao poder de reforma cons-titucional, mediante amplo debate político e com o procedimento formal-mente agravado previsto na nossa Carta Magna, bem como respeitando a nossaidentidade constitucional (à qual também pertence o sistema difuso eincidental de controle de constitucionalidade) a última palavra sobre a ma-téria, pretendeu-se acima de tudo enfatizar a necessidade de se repensar, comprudência e seriedade, o problema da Jurisdição Constitucional e da sua in-dispensável legitimação político-democrática no Brasil, revelando-seincontornável o exame dos aspectos vinculados à própria composição e re-crutamento, em especial do órgão que detém o poder-dever de proferir - mes-mo no âmbito de uma desejável sociedade aberta dos intérpretes da Consti-tuição da qual nos fala Häberle41- por assim dizer, “a última palavra” em maté-ria de controle de constitucionalidade e interpretação constitucional.42 Damesma forma, esperamos ter demonstrado suficientemente a íntima vinculaçãoentre o problema da legitimação democrática da Jurisdição Constitucional eas importantes e controversas alterações que vem sendo paulatinamente in-corporadas ao ordenamento jurídico-constitucional pátrio.

40 Sobre este ponto v. a importante contribuição de Inocêncio Mártires Coelho, Interpretação Constitucional, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, especialmente p. 35 e ss.

41 Cf. Peter Häberle, Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para ainterpretação pluralista e “procedimental” da Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: SergioAntonio Fabris Editor, 1997, p. 15 (“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com estecontexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma...Como não são apenas os intérpretesjurídicos da Constituição que vivem a norma, não detém eles o monopólio da interpretação da Constituição.”).

42 Cf. a precisa e preciosa lição de Juarez Freitas, Tendências Atuais e Perspectivas da Hermenêutica Constitucional, in: Revistada AJURIS, vol. 76 (1999), p. 397 e ss., apontando, para além da necessidade de se manter efetivo o controle difusode constitucionalidade (também no nosso sentir indispensável para a abertura e democratização da interpretaçãoconstitucional) , para o relevante fato (por vêzes esquecido entre nós) de que é ao Poder Judiciário a quem incumbea missão de falar por último em matéria de controle de constitucionalidade, inexistindo, em princípio, ao menos emum sistema democrático, ato exclusivamente político e - o que é mais relevante - absolutamente insindicável.

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A teoria da imprevisãoe a nova codificação

The Theory of Imprevision and the New Codification

MARIA REGINA SANTINI MARTINS

Professora de Direito Civil (Obrigações) da ULBRA/Canoas, Mestranda emDireito.

RESUMO

O presente estudo refere-se à possibilidade de revisão dos contratos, com base nodesequilíbrio econômico superveniente a sua formação, que ocasione excessivaonerosidade a uma das partes contratantes, com o correspondente enriquecimentoda outra. A análise contempla uma evolução histórica da cláusula rebus sicstantibus como causa excepcional autorizadora da atenuação da força obrigatóriadas convenções.Palavras-chave: Direito Civil, teoria da imprevisão, teoria geral dos contratos.

ABSTRACT

The present study refers to the possibility of revising contracts on the basis ofthe economic unbalance supervining to its formation, which results in excessivecosts to one of the contracting parties, with the corresponding enrichment of theother. The analysis contemplates a historical evolution of the clause rebus sictransibus as an exceptional authorizing cause for the softening of the manda-tory force of conventions.Key words: Civil right, theory of imprevision, general theory of contracts.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.97-116

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INTRODUÇÃO

Propomo-nos tecer alguns comentários sobre a exceção ao princípio daObrigatoriedade das Convenções, a conhecida Teoria da Imprevisão, funda-da na vetusta cláusula rebus sic stantibus, que vem sendo largamente utilizadano direito contratual, no sentido de manter o equilíbrio de condições econô-micas entre os contratantes.

Como é sabido, toda a codificação acerca dos contratos assenta-se em prin-cípios basilares que lhes dá sustentação. Esses princípios são: a autonomia davontade, que confere ampla liberdade aos sujeitos que firmam uma obrigação,desde a concepção mental do ajuste até o estabelecimento das cláusulas quedeverão garantir-lhe a execução; a obrigatoriedade das convenções (deriva-ção da cláusula pacta sunt servanda), que eleva o acordo livremente firmado àcondição de lei entre partes, tornando-o fonte formal do ordenamento jurídi-co; a boa-fé, produzida pela confiança e sinceridade entre os contratantes, e oconsensualismo, que dispensa o formalismo como condição à validade e efi-cácia dos negócios jurídicos.

Assim, propomo-nos a analisar a exceção ao princípio da obrigatoriedadedas convenções, a conhecida causa imprevisível que modifica consideravel-mente a condição econômica dos sujeitos contratantes, ou de um deles, demodo a dificultar ou impedir por completo o cumprimento da obrigação.Abordaremos o assunto, considerando os pressupostos que sustentam e admi-tem sua aplicabilidade; sua evolução história e sua recepção pelo direito atu-al, especialmente pela doutrina e jurisprudência brasileira, que têm sido ex-tremamente sensíveis à aceitação dessa teoria.

A instabilidade econômica e a insegurança dos indivíduos nas relações detrabalho têm contribuído muito para o acatamento da Teoria da Imprevisão,que poderá autorizar o juiz a modificar a obrigação para viabilizar o seu cum-primento ou autorizar a sua resolução, desobrigando completamente o deve-dor, quando inexigível a satisfação da obrigação, face à alteração das condi-ções econômicas, no momento da execução, em relação às condições quemotivaram a celebração do ajuste.

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1 A CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS

Ao contrário do que muito comumente se afirma, de que a referida cláusu-la teve seu surgimento no Direito Contratual, foram os canonistas, que estu-davam o Direito da Igreja, que a definiram ao tratar da proscrição de injusti-ças morais, no século XII. Suas raízes encontram-se no Direito Europeu Me-dieval, que, através da fórmula divulgada por Bártolo e seus seguidores, esta-belecia que a alteração das circunstâncias de determinado fato, importariam,necessariamente na alteração de seus efeitos. Como existe muita incertezaacerca de sua correta evolução histórica, deixaremos de analisar aqui o aspec-to de sua criação, bem como seu processo de evolução e integração ao Direitocontratual. Analisaremos, apenas, questões absolutamente relevantes para aidentificação do instituto, bem como seus principais aspectos.

Cumpre ressaltar que a cláusula teve seu apogeu no período imediatamen-te posterior à Primeira Grande Guerra, com a finalidade de permitir que oPrincípio da Obrigatoriedade das Convenções perdesse sua força cogente,diante de circunstâncias que alteravam substancialmente a condições dossujeitos de determinado negócio jurídico.

Contudo, a origem da cláusula antecede em muito esse fato, que apenaslhe permitiu uma espécie de “renascimento”.

As questões da eficácia da alteração das circunstâncias, tratadas no direitocomum europeu sob o título de “cláusula rebus sic stantibus”, foram igualmen-te tratadas na França sob a expressão “doutrina da imprevisão”. Também emPortugal a expressão “imprevisão” foi utilizada antes do Código de 1966, paratraduzir a alteração das circunstâncias de determinado negócio 1.

Contudo, de maneira inexplicável, a cláusula “rebus” não foi contempladapelo Código Napoleônico, o que demonstra uma recusa efetiva de eficácia àalteração das circunstâncias.

Entretanto, os juízes alemães utilizavam a cláusula para justificar decisõesnas quais autorizavam a alteração no cumprimento das obrigações, com fun-damento nas profundas convulsões atravessadas pela Alemanha nos últimoscem anos.

A jurisprudência francesa, nesses períodos de guerras, manteve a resistên-

1 ROCHA, Antonio Manuel da; CORDEIRO, Menezes. Da Boa-Fé no Direito Civil. Almedina, 1997, p.955.

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cia às modificações, com dois pontos específicos importantes: o rígidoconceitualismo exegético e a imputação da relevância das circunstâncias auma eqüidade perigosa. A doutrina, salvo raríssimas exceções, acompanhavaa postura da jurisprudência. Como a rigidez sistemática não abrigava justifica-tivas, algumas saídas começaram a ser aceitas, através da Legislação e da “te-oria da imprevisão”, na jurisprudência administrativa. Posteriormente, a di-nâmica foi incorporada pelo direito contratual 2.

Uma vez incorporada ao direito moderno, verifica-se que o estudo da “Te-oria da Imprevisão” mostra-se bastante necessário, especificamente na áreacontratual, dadas as profundas alterações que as modificações econômicasacarretam nos acordos firmados entre os indivíduos.

A recepção da antiga cláusula rebus, com nova roupagem, aconteceu noBGB (C.C.Alemão), que, consagrando a idéia de impossibilidade, definiu-acomo causa extintiva, se superveniente; ou como fundamento da nulidade docontrato, se inicial ou preexistente à contratação 3. A jurisprudência tomoualguns rumos novos, de modo a estabelecer uma espécie de sistematização dasdecisões proferidas, em três grupos, a saber:

• no primeiro grupo, atentam-se às modificações das situações fáticas,retirando-se de suas próprias modificações, eficácia jurídica. Dessamaneira, as decisões teriam como fundamento a impossibilidadeeconômica ou a inexigibilidade da prestação;

• no segundo grupo, far-se-ia uma aplicação direta da boa-fé, de modoa justificar que a exigência da obrigação, diante das situações (mo-dificações) ocorridas seria contrária à boa-fé. Também, nesse caso,estaríamos próximos da teoria da inexigibilidade;

• no terceiro grupo, estaria presente a exceção da ruína do devedor,caso não se admitisse a inexecução da obrigação, diante das modifi-cações ocorridas. Assim, justificada estaria a modificação da obriga-ção, face às modificações fáticas ocorridas, para evitar a ruína ine-vitável do devedor;

2 ROCHA, ob. cit. p.960 a 962.3 ROCHA, ob cit. p.1001.

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2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CLÁUSULA REBUS SICSTANTIBUS

A cláusula rebus sic stantibus, como função humanizadora do princípio daobrigatoriedade das convenções, foi teorizada por inúmeros doutrinadores epesquisadores do Direito. Contudo, teve seu renascimento na França, em 1918,com a promulgação da Lei Failliot, que estabeleceu a possibilidade de resolu-ção dos contratos comerciais firmados antes de 1914, quando, em razão doestado de guerra, a execução da obrigação de qualquer das partes se tornasseimpossível ou lhe causasse prejuízos, em razão das modificações das condiçõeseconômicas determinantes da formação dos contratos em relação ao tempoem sua execução. Assim, iniciou-se na França a hoje conhecidíssima Teoriada Imprevisão, como conseqüência do processo evolutivo iniciado pela cláu-sula rebus sic stantibus, cuja justificação histórica passou pelas teorias da pres-suposição, da superveniência e da base do negócio jurídico, dentre outras tan-tas que não tiveram tanta importância.

2.1 Teoria da PressuposiçãoFoi o pandectista Bernardo Windscheid que formulou a teoria supra, em

meados do século passado, sustentando que:

“quem manifesta sua vontade sob uma certa pressuposiçãoquer, à semelhança de quem emite uma declaração de vontadecondicionada, que o efeito jurídico pretendido só venha a exis-tir se ocorrer um certo estado de relações, mas não vai ao pon-to de fazer depender dele a sua existência.” 4

De acordo com seu criador , em todos os negócios de execução diferida oucontinuada, existe, de parte daquele que assume a obrigação, a pressuposiçãotácita de que as condições gerais de valor, da moeda, de mercado, enfim, situ-ações que determinaram a formação do contrato, permaneçam relativamenteconstantes até o momento da satisfação integral da obrigação. Portanto, emtodo negócio jurídico, de caráter patrimonial e execução sucessiva existiria,de modo latente uma cláusula rebus sic stantibus.

4 apud.BESSONE, Darcy. Do Contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 138.

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Para J. R. Vieira Netto a conseqüência da pressuposição seria uma conditioou exceptio de resolução do contrato por circunstância imprevista: a contradi-ção entre o suposto pelo contratante e a realidade subseqüente. 5

Arnoldo Medeiros da Fonseca afirma que a pressuposição agiria nos con-tratos como uma espécie de autolimitação da vontade, dando vida a umaconditio e a uma exceptio. E poderia referir-se tanto a circunstâncias futuras,como presentes ou passadas, assim como a fatos positivos ou negativos. 6

Windscheid, em sua obra “Diritto delle Pandette” , primeiro volume, expõeque “a pressuposição se ajunta à condição e ao termo como terceiro elemen-to”, significando uma espécie de “condição não desenvolvida”. Seria, em últi-ma análise, uma limitação da vontade que não chegou a ser tornar condição. 7

Apesar de todos os fundamentos que a justificaram, sérias críticas foramdestinadas a esta teoria. Talvez a mais veemente seja a que atribui efeito sub-jetivo à possibilidade de resolução, pois a eficácia de um contrato bilateralpoderia ser destruída por uma só das partes, aquela cuja expectativa viesse ase frustrar. A pressuposição tácita representaria verdadeiro atentado à estabi-lidade das operações jurídicas concluídas, uma vez que se o pressuposto nãoconsta expressamente no contrato, não pode ser considerado condição bila-teral de execução ou resolução.

O nosso Código Civil, em seu artigo 90, aproxima-se bastante da teoria dapressuposição:

“Só vicia o ato a falsa causa, quando expressa como razãodeterminante ou sob forma de condição”’.

De acordo com o nosso legislador, a falsa causa seria o falso motivo, quenão deixa de ter esse caráter quando comunicado à parte contrária como ra-zão determinante, a menos que seja transformado em condição através deacordo bilateral.

5 O Risco e a Imprevisão. Curitiba: Juruá Editora, 1989, p.130.6 Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. Forense, 1958, p. 154.7 OLIVEIRA, Anísio José de. A Teoria da Imprevisão nos Contratos. 2. ed. São Paulo: Livraria e Editora da Universidade

de Direito Ltda, 1991, p. 114.

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2.2 Teoria da SuperveniênciaFoi Giuseppee Osti, na Itália 8, o criador da teoria da superveniência, se-

guindo de perto a teoria da pressuposição.

Fundava-se a respectiva teoria na existência de um fato ulterior ao con-trato firmado, capaz de impedir a verificação do resultado concreto esperadopelo promitente.

Nos contratos firmados em dado momento, estabelecendo promessa paraser futuramente cumprida, o promitente faz uma espécie de representaçãomental de seus efeitos, evidenciando-se uma “determinação de vontade”, des-tinada a traduzir-se em ação quando do cumprimento do avençado. Qualquercircunstância que viesse a modificar essa possibilidade de execução da von-tade prevista, constituiria causa justificativa para a alteração dos seus efeitos.Dessa forma, o resultado pretendido necessitaria ser modificado, sob pena detornar-se impossível ou muito dificultoso ao obrigado.

Esta teoria assemelhava-se bastante à da pressuposição, nos seus efeitos,mas a causa autorizadora da resolução ou modificação do acordo poderia serqualquer uma, desde que superveniente e não prevista pelo obrigado quandoda concretização do ajuste.

2.3 Teoria da Base do NegócioCoube a Paul Oertmann, na monografia Geschäftsgrundeage desenvolver

a teoria em estudo, que, até o presente momento, é a que melhor representa aevolução da cláusula rebus sic stantibus.

Oertmann explica que a base do negócio “consiste na representação men-tal de uma das partes no momento da conclusão do negócio jurídico, conhe-cida na sua integridade e não repelida pela outra parte, ou a comum represen-tação das diversas partes sobre a existência ou aparição de certas circunstân-cias, em que se baseiam a vontade negocial”. 9

J. M. Othon Sidon distingue a teoria da base da teoria da pressuposição,afirmando que a teoria de Windscheid é parte de uma declaração isolada, não

8 La Cosi della cláusola “’rebus sic stantibus”. In: Novissímo Digesto Italiano, 1959.9 ROCHA, ob. cit. p.1033.

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do negócio bilateral, ao passo que a teoria de Oertmann refere-se ao negóciocomo um todo. 10

A base do negócio objetivo desaparece quando se destrói a relação de equi-valência das prestações, a tal ponto que o contrato não pode mais ser consi-derado um acordo bilateral. Vejamos: todo contrato bilateral pressupõe equi-líbrio entre prestação e contraprestação, representado subjetivamente peladeterminação dos contratantes. Esse equilíbrio é o próprio sentido do acordobilateral. Assim, a base do negócio é representada pela equivalência entre aprestação e a contraprestação, a manutenção do preço convencionado, aimutabilidade de todo o contexto determinante da contratação.

Karl Larenz modificou em parte a referida teoria, escrevendo:

“essa base do negócio não pode ser tomada senão num sentidorestrito: as representações sobre a existência e permanência decertas circunstâncias fundamentais, as quais, sem haver che-gado a integrar o contrato, têm sido feitas base do negócio porambos os contratantes, ou por um só, sabendo-o o outro, semrepelí-lo.” 11

De acordo com Oertmann, citado por Antonio Manuel da Rocha, a mo-dificação objetiva da base do negócio não o torna caduco ipso iure, mas ocontraente em cujo favor se deu o desequilíbrio, tem o direito de manter onegócio, se o quiser; o devedor da prestação diminuída não pode romper uni-lateralmente o contrato nem impor aumento de preço ao credor. O devedorpode propor a manutenção do acordo com uma contraprestação aumentada,para que o credor possa optar entre esta e a liquidação judicial; em caso denão haver acordo voluntário, decidirá o juiz. Para melhor esclarecer o que sejaa base do negócio, Oertmann lança mão do seguinte exemplo:

“Na seqüência da sua saída de uma sociedade comercial, o R.compromete-se a transmitir ao A. um determinado prédio,então pertença da sociedade, mas que lhe haveria de ser atri-buído. O preço foi fixado na altura. A desvalorização poste-

10 SIDON, J. M. Othon. A Revisão Judicial dos Contratos e outras figuras jurídicas. Forense, 1978.11 LARENZ, Karl. Base del negócio jurídico y cumplimiento de los contratos. Madrid: Editorial Revista de Derecho

Privado, 1958, p.14.

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rior veio multiplicar o valor de mercado do prédio; o R. recu-sa-se a aliená-lo pelo preço inicialmente acordado....Teria ha-vido, por força da alteração ocorrida, uma não manutençãoda equivalência da prestação e contraprestação, tal como teriasido visualizada pelas partes na conclusão.” 12

Esta teoria, em sua concepção inicial foi bastante criticada, por ser muitoampla e pouco objetiva. Entretanto, com algumas modificações vem sendobastante utilizada atualmente na Alemanha, em Portugal e no Brasil, pois,depois da Segunda Grande Guerra, de todas as teorias que procuraram servirde fundamento à cláusula “rebus sic stantibus” é a menos imperfeita.

O professor Ruy Rosado Aguiar Junior, em sua obra “Extinção dos Contra-tos por incumprimento do devedor” citando Ennecerus, em manifestação do“Tratado de Derecho Civil” afirma que, para que um fato seja reconhecidocomo base do negócio, é preciso:

“1) que a outra parte tenha podido conhecer a importânciabásica da circunstância para a conclusão do contrato;

2) que fosse unicamente a certeza a respeito da existência, sub-sistência ou posterior chegada da circunstância em questão, oque motivara a parte, que lhe atribui valor, a prescindir de pe-dir à outra parte seu reconhecimento como condição:

3) finalmente, que em caso de que a inseguridade da circuns-tância se tivesse tomado a sério, a outra parte contratante hou-vesse acedido a essa pretensão, tendo em conta a finalidade docontrato, ou houvesse tido que aceder, procedendo de boa-fé.” 13

Larenz estabelece distinção entre a base objetiva e a subjetiva do negócio.Base subjetiva seria a representação mental de ambos os contratantes, deter-minando a vontade na conclusão do negócio. Base objetiva é o conjunto decircunstâncias e o contexto das coisas, cuja existência e subsistência é objeti-vamente necessária para que o contrato, segundo a intenção de ambos os

12 ROCHA, ob. cit. p.1045.13 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos Contratos por incumprimento do devedor”. p.146-150.

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contratantes, possa subsistir como regulação dotada de sentido. A base obje-tiva desaparece quando há destruição da relação de equivalência ou frustra-ção da finalidade do contrato, podendo a parte prejudicada pedir a modifica-ção ou a resolução da obrigação. 14

Pontes de Miranda critica as teses fundamentadas na teoria da base donegócio, não aceita a aplicação do princípio da boa-fé, rejeita a teoria daimprevisão e conclui que:

“tudo se reduz à questão da interpretação dos negócios jurídi-cos. Quando o uso está perceptível na conformação da coisa,ou nas indicações de seu destino objetivo, a proposição “para ouso tal” não precisa ser formulada, mas existe.” 15

Antunes Varela restringe a incidência da doutrina da base negocial a duassituações, a saber:

• quando as circunstâncias levam a crer que o outro contratante teriaaceito a resolução do negócio, por aquele motivo, se proposta a clá-usula na celebração;

• se o princípio da boa-fé impuser a resolução, após malogrado o mo-tivo essencial que levou a parte a firmar o contrato. 16

2.3.1 A teoria da base do negócio jurídico no direitobrasileiro

O sistema contratual no século XIX, época em que ocorreram grandesmodificações no Direito Civil, tinha como expressão máxima o princípio daautonomia da vontade. Colaborava para a efetivação desse princípio o fato deque as relações econômicas eram estáveis, sem haver sequer a mais remotaprevisão das grandes crises que ocorreram na primeira metade do nosso sécu-lo. Por essa razão, os Códigos não inseriram conceitos limitadores dessa auto-nomia, a exemplo da cláusula “rebus sic stantibus”. Contudo, ainda no séculopassado, alguns juristas perceberam que a estrutura contratual pressupõe, para

14 LARENZ, Base del Negocio jurídico, p. 226.15 Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro. Vol. XXII, p.221 e seguintes.16 VARELA, Antunes, Direito das Obrigações, Vol. II, p.103.

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a manutenção de sua função de troca de obrigações, uma estreita relação coma realidade econômica. Essa vinculação fazia-se representar sob condiçõessuspensivas ou resolutivas ou sob a teoria da impossibilidade posterior.

A dificuldade do cumprimento da obrigação em razão das modificaçõeseconômicas, configurava hipóteses de utilização da cláusula rebus sic stantibus,como uma maneira de atenuar a obrigatoriedade dos acordos, representadopelo princípio pacta sunt servanda.

Entretanto, foi em meados de nosso século que a questão da base do negó-cio jurídico surgiu para justificar a alteração ou resolução dos contratos, quan-do ocorresse a modificação da realidade subjacente ao vínculo, quando de suaexecução.

O risco a que estão sujeitos os contratantes nas obrigações de execuçãocontinuada ou diferida, equipara as modificações circunstanciais a uma espé-cie de impossibilidade. Como sustentou Karl Larenz:

“o conceito objetivo da base do negócio jurídico se vincula coma finalidade real do contrato e procura responder à questão desaber se a integração geral dos contratantes pode ainda efeti-var-se, em face das modificações econômicas sobrevindas. Porisso, ela se vincula com a teoria da impossibilidade.” 17

A impossibilidade posterior à formação do vínculo, quando baseada ex-clusivamente na modificação das condições econômicas, recebeu a denomi-nação de “onerosidade excessiva”. Quando absoluta, resolve o negócio jurídi-co, de acordo com o artigo 865 do nosso CCB 18. Entretanto, nesse caso, éprevista apenas a impossibilidade relativa ao objeto da prestação, inexistindoprevisão para os casos de mudança das condições individuais subjetivas.

Em nosso ordenamento jurídico, a teoria da base do negócio decorre daaplicação dos princípios da eqüidade e da boa-fé, em que seria ilógico exigir-se um sacrifício demasiado de uma das partes, quando a alteração da base donegócio tivesse causa absolutamente alheia à atuação dos contratantes. Por-

17 LARENZ, ob. cit.18 Art. 865. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente

a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes. Se a perda resultar de culpa do devedor,responderá este pelo equivalente, mais as perdas e danos.

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tanto, considerando-se o conceito de base objetiva, levamos em conta a situ-ação de ambos os contratantes em relação ao contexto em que o contrato forafirmado e aquele em que deva ser concluído. Um dos setores mais férteis deaplicação da base objetiva do negócio jurídico é o da alteração das prestaçõesem virtude da inflação, ou das modificações contratuais ocasionadas pela in-tervenção do Estado na economia, de modo a atingir e modificar as regras doacordo firmado.

Cabe à jurisprudência o papel de adaptar o principio da cláusula pacta suntservanda à realidade concreta, seja através da autorização de resolução do acor-do ou de sua substancial modificação. Nessa tarefa, o magistrado precisa com-binar as determinações do contrato com a lei, de modo a não fazer da exceçãoa regra, causando insegurança jurídica. Contudo, não temos dúvida em afir-mar que o nosso sistema jurídico contratual adota atualmente a teoria da baseobjetiva do negócio jurídico, pois a relação jurídica apresenta aspectos objeti-vos e subjetivos resultantes da tensão entre o contrato e a realidade econômi-ca. Esta tensão, no entender do saudoso Professor Clóvis do Couto e Silva,constitui a “base objetiva” do contrato 19.

3 A CLÁUSULA REBUS SIC STANTIBUS NODIREITO CONTEMPORÂNEO

O estudo da Cláusula Rebus sic Stantibus, na atualidade, sob a denomina-ção de Teoria da Imprevisão, apesar de bastante freqüente, não esgota, abso-lutamente, as situações fáticas que a cada momento estão a exigir sua aplica-ção. A cada nova decisão, a cada motivação de uso, surge inovação nuncaantes identificada. Contudo, em todas as situações, possui a finalidade únicade amenizar a rigidez do princípio representado pela pacta sunt servanda, queestabelece a obrigatoriedade dos ajustes firmados, pois de acordo com oordenamento jurídico vigente, estes passam a constituir lei entre as partes.

A Teoria da Imprevisão procura, de certa forma, humanizar o princípio daobrigatoriedade das convenções, permitindo sua permanência e estabilidadeno ordenamento, através de um mecanismo de adequação ao fato concreto.

19 COUTO e SILVA, Clóvis. A teoria da base do negócio jurídico no Direito Brasileiro. In: FRADERA, Vera Maria Jacob de( org). O Direito Privado Brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Advogado. 1997, p. 96.

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O eminente professor Darcy Bessone afirma que a cláusula rebus sic stantibusestaria ínsita em todos os contratos, especialmente naqueles em que as obri-gações se apresentassem de forma sucessiva e dependentes do futuro. O cum-primento dessas obrigações ficaria condicionado à permanência do mesmoestado de fato do momento da formação do vínculo. A alteração desse estadode coisas, se absolutamente imprevisível ao tempo da celebração do ajuste enão provocado pelo devedor, poderia provocar sua exoneração. 20

De acordo com outros autores, a mudança ou alteração considerável nascircunstâncias existentes ao tempo da celebração do acordo, poderá ocasio-nar o seu reajustamento, uma vez que a cláusula rebus sic stantibus estaria taci-tamente subentendida em todas as obrigações que envolvessem prestaçõesfuturas. Ainda de acordo com Planiol et Ripert:...“Rebus sic stantibus” é acláusula que faz presumir que as partes, de comum acordo, subordinavam a execu-ção do contrato à duração do estado de coisas existentes no dia de sua formação”. 21

Considerando que a maioria dos acordos não são executados de imediato,ocasionando obrigações que devem ser cumpridas no futuro, presume-se queas mesmas condições presentes na formação do vínculo deverão existir até omomento de sua conclusão (satisfação). Assim, todos os contratos de execu-ção diferida ou sucessiva entendem-se subordinados ao mesmo estado de fatovigente à época de sua celebração.

O Professor Caio Mário da Silva Pereira afirma que para se possa atingir ocontrato em decorrência da Teoria da Imprevisão são necessários os seguintesrequisitos:

• existência de um contrato vigente, de execução diferida ou sucessiva;

• alteração fundamental das condições econômicas objetivas no mo-mento da execução, em confronto com as condições objetivas dacelebração do ajuste;

• onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício exage-rado para outro;

• imprevisibilidade da modificação econômica no momento da for-mação do vínculo. 22

20 Citado por Anísio José de Oliveira na obra “A Teoria da Imprevisão nos contratos”. LEUD, 1991, p.32-33.21 “Traité Elémentaire de Droit Civil”. § 167, Paris, 1950.22 Inst. de Direito Civil, Vol. III. § 216.

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A essas condições, Francisco Campos ainda acrescenta:

• não basta qualquer mudança, mesmo que imprevista. Necessário quea mudança ocorrida determine tal agravamento da prestação, quese prevista, teria levado os contratantes a não concluírem o ajuste;

• necessário, por derradeiro, que o acontecimento que torne a execu-ção onerosa ou impossível, seja absolutamente estranho à vontadedo devedor. 23

Dessa forma, a aceitar-se a aplicação da Teoria da Imprevisão na ocorrên-cia de circunstâncias modificadoras, poderíamos concluir que a cláusula “pactasunt servanda” não se aplica mais ao sistema contratual do mundo moderno.Aceita-se, assim, a intervenção estatal, através da prestação jurisdicional,modificando as condições pactuadas para adequar a rigidez do acordo firma-do às condições fáticas do momento de sua execução. Essa conclusão é decor-rente do próprio Princípio da Eqüidade, que atribui ao magistrado, na suafunção de realizar o direito, o dever de fazer justiça no caso concreto. Nessatarefa, assim como ele poderá se afastar da Lei injusta, também poderá afastar-se dos acordos firmados, quando verificar que a concretude da obrigação nãocondiz mais com a situação de fato do momento da execução.

4 O ACOLHIMENTO DA CLÁUSULA REBUS SICSTANTIBUS NO DIREITO BRASILEIRO

Embora não tenha havido recepção formal expressa da Teoria da Imprevisãopelo nosso Código Civil, devemos considerar que o nosso ordenamento jurí-dico, ao recepcionar os princípios contratuais da autonomia da vontade, daboa-fé e da obrigatoriedade das convenções, também recepcionou a cláusularebus sic stantibus, a permitir que se modificasse ou resolvesse o acordo livre-mente pactuado, quando as circunstâncias objetivas que determinaram asmanifestações de vontade sofressem substancial alteração, não prevista oupassível de previsão e, principalmente, não motivada pela conduta ou atua-ção dos contratantes. Assim, aqueles que negam a existência da cláusula nãoconseguem explicar a atuação da jurisprudência, quando reconhece e autori-za a modificação ou resolução do acordo, em decorrência da superveniência

23 Direito Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, p. 9.

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de acontecimentos que alteram a situação econômica dos contratantes, demodo a tornar inexigível o cumprimento da obrigação.

Umas das primeiras decisões jurisprudenciais de acatamento da velha clá-usula foi proferida pelo então Juiz Nelson Hungria, em 1930, baseando seuarrazoado nos princípios gerais do direito e na eqüidade, e fundamentandosua decisão na interpretação da vontade declarada e na boa fé contratual,face ao silêncio do nosso estatuto civil com referência à cláusula. Vale a penaa transcrição de sua corajosa manifestação:

“É certo que quem assume uma obrigação a ser cumprida emtempo futuro sujeita-se à alta de valores, que podem variar emseu proveito ou prejuízo; mas, no caso de uma profunda einopinada mutação, subversiva do equilíbrio econômico daspartes, a razão jurídica não pode ater-se ao rigor literal do con-trato, e o juiz deve pronunciar a rescisão deste. A aplicação dacláusula rebus sic stantibus tem sido mesmo admitida comoum corolário da teoria do erro contratual. 24

O nosso CCB, no seu art. 1092 25, quando acolhe a possibilidade de exone-ração de uma das partes do cumprimento da obrigação, nos casos em que, como implemento do contrato, ficasse lesada pela alteração do patrimônio da outra,admite, ainda que de maneira indireta, que o juiz autorize o cancelamento daprestação que lhe compete, até que a contraprestação a que tem direito acon-teça.

Segundo Caio Mário, esta situação, denominada pela doutrina de cláusularesolutiva tácita, presente em todos os contratos bilaterais, nada mais é doque a aplicação da velha cláusula rebus sic stantibus em sentido estrito 26.

Apesar de a Teoria da Imprevisão não se encontrar regulada expressamen-

24 OLIVEIRA, Anísio José de. A Teoria da Imprevisão nos Contratos. Pg. 72.25 Art. 1092. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contraentes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o

implemento da do outro. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição emseu patrimônio, capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a parte, a quemincumbe fazer prestação em primeiro lugar, recusar-se a esta, até que a outra satisfaça a que lhe compete ou dêgarantia bastante de satisfazê-la.

Parágrafo único. A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos.26 Instituições de Direito Civil. Vol. III. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

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te no vigente Código Civil Brasileiro, o anteprojeto do Código das Obriga-ções, procurou acolhê-la, em seu artigo 322 . Vejamos:

“Quando por força de acontecimentos excepcionais e imprevistos ao tem-po da conclusão do ato, opõe-se ao exato cumprimento desta dificuldade ex-trema com prejuízo exorbitante para uma das partes, pode o juiz, a requeri-mento do interessado, e considerando com equanimidade a situação doscontraentes, modificar o cumprimento da obrigação, prorrogando-lhe o ter-mo, ou reduzindo-lhe a importância.” 27

5 A RESOLUÇÃO DO CONTRATO PORONEROSIDADE EXCESSIVA

O Código Civil Italiano regula a resolução contratual por excessivaonerosidade, nos casos de acordos de execução continuada, periódica, oudiferida, desde que a prestação de uma das partes tenha se tornado excessiva-mente onerosa ou impossível, em decorrência de acontecimentos posterioresa sua celebração, de natureza imprevisível ou extraordinária.

O projeto do novo Código Civil Brasileiro 28 acolheu a resolução poronerosidade excessiva, incluindo nos seus requisitos, além do cárater ex-traordinário dos acontecimentos imprevisíveis e do excessivo encargo parauma das partes, a extrema vantagem para o outro contratante, limitandodessa forma o seu âmbito de abrangência. Se um dos sujeitos não estiverem situação de excessiva vantagem em relação ao outro, a resolução sópoderá ocorrer por outra justificativa. Contudo, a resolução por excessivaonerosidade traz a vantagem de poder ser utilizada por qualquer um doscontratantes, seja pelo credor ou pelo devedor, desde que circunstânciassupervenientes perturbem a conclusão do contrato, acarretando ônus exa-gerado e injustificável para qualquer das partes. Assim, a desvalorizaçãoda moeda, embora seja um fato provável em uma economia instável comoa nossa, poderá apresentar grau tão elevado de imprevisibilidade que jus-tifique a resolução ou modificação da obrigação para permitir a satisfaçãodo ajuste.

27 OLIVEIRA, ob. cit. p. 74.28 REALE, Miguel. Visão Geral do Projeto de Código Civil. SP: Revista dos Tribunais, V. 752, Junho/1998.

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A onerosidade poderá atingir a obrigação parcialmente cumprida ou im-pedir absolutamente o seu cumprimento. Entretanto, se o devedor já estiverem mora quando sobrevier a circunstância extraordinária, não lhe caberá ainvocação. Aplica-se, neste caso, o efeito do artigo 957 do CCB. 29

Devemos enfrentar a questão formulada por Mirabelli, que consiste emsaber se o contratante atingido pela superveniência de um agravo insustentá-vel pode cessar a prestação em curso ou abster-se da prestação ainda não exe-cutada. São três as posições possíveis:

• o devedor não pode deixar de efetuar a prestação sob pena de setornar inadimplente;

• pode deixar de prestar, depois de avisar expressamente o credor desua dificuldade ou depois de promover a demanda de resolução;

• pode quedar-se inerte, alegando a onerosidade excessiva como de-fesa, na ação de adimplemento ou na de resolução proposta pelocredor. 30

A onerosidade excessiva em nosso ordenamento representa uma espéciede “inexigibilidade de conduta”. Por isso, recomendável que diante de situa-ção dessa natureza, o devedor tome a iniciativa de propor a ação de revisãojudicial do contrato ou resolução, de acordo com o grau de limitação que ocontexto lhe impõe.

6 A ATUAÇÃO JURISPRUDENCIAL NA RESOLUÇÃODO CONTRATO EM DECORRÊNCIA DE CAUSASUPERVENIENTE

No momento em que estamos adentrando o terceiro milênio, impõe-se anecessidade de uma nova codificação, de modo a adequar o rigorismo formalde nosso ordenamento vigente às situações de fato concretas. Entretanto,

29 Art. 957. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de casofortuito, ou força maior, se estes ocorrem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria,ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. (Art. 1058).

30 Giuseppe Mirabelli. Eccessiva onerosità e inadempimiento. Rivista del Diritto Commerciale. Milano. Ano LI, 1953, p.84.

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embora a nova codificação seja uma necessidade, sabe-se que não será sufici-ente para contemplar todas as situações que precisam de solução concreta.Assim, o papel do juiz, a quem cabe realizar a prestação da justiça no casoconcreto, torna-se cada vez mais importante. Nesse sentido, a utilização dasfontes formais de direito sempre terá lugar, mesmo quando da entrada emvigor de nova codificação.

A Teoria da Imprevisão, instituto secular presente nos ordenamentos na-cional e estrangeiros, embora em muitos deles não existente no sistema codi-ficado, continua a orientar os juízes e os doutrinadores nas relações econômi-cas e obrigacionais. Não importa a denominação ou a teoria que justifique suautilização, a autorização para resolução contratual ou revisão do conteúdo doajuste continua sendo instituto moderno e adequado ao Direito das Obriga-ções. A possibilidade de modificação ou inexecução do contrato firmado emdado contexto econômico, para ser executado de maneira sucessiva ou diferidaem momento futuro, sempre será reconhecida pela jurisprudência, nas situa-ções em que sobrevierem condições adversas e extraordinárias, absolutamen-te imprevisíveis e independentes da conduta dos contratantes, que possamagravar sobremaneira a condição do devedor ou tornar impossível o cumpri-mento do avençado, consistindo a inexecução contratual na única condutapossível e aceitável do obrigado. Assim, a jurisprudência tem autorizado, oraa resolução do contrato, ora a sua revisão, seja em decorrência da modificaçãode suas bases objetivas, seja por ocasião da superveniência de circunstânciaque tornem a obrigação inexigível, seja ainda pelo reconhecimento de exces-siva onerosidade a qualquer dos contratantes. Entretanto, embora sob diver-sas denominações ou diferentes justificativas, estará sendo reconhecida a per-manência da velha cláusula rebus sic stantibus, sob as vestes que lhe deu osistema francês, ao recepcioná-la sob o nome de Teoria da Imprevisão, comocausa excepcional autorizadora da atenuação do princípio da obrigatoriedadedas convenções.

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Juizados Especiais Criminais: Umaabordagem sociológica sobre a

informalização da Justiça Penal noBrasil

Special Criminal Courtrooms: A Sociologicalapproach on informalization of Penal Justice in

Brazil

RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO

Advogado, Mestre e Doutorando em Sociologia/UFRGS, Professor das disciplinasde Sociologia Geral e Jurídica e Criminologia na UFRGS, PUCRS e ULBRA/RS.

RESUMO

Através do estudo de caso da implantação dos Juizados Especiais Criminais na ci-dade de Porto Alegre, confrontando as previsões legais com a realidade empírica deum novo modelo de justiça penal, busca-se compreender o sentido e os limites dainformalização da prestação estatal de justiça penal no Brasil, desde a promulgaçãoda Lei 9.099/95. Retirando das mãos da polícia o exercício da seletividade, e dandoà vítima a possibilidade de participação no processo, o sistema penal informalizadoabre novas perspectivas, substituindo a punição pela mediação, e a violência pelodiálogo, mas esbarra na dinâmica burocratizante e autoritária dos mecanismos devigilância e controle social institucionalizados.Palavras-chave: Controle Penal, Administração da Justiça Penal, Informalização,Juizados Especiais Criminais, Conflitualidade Social e Mediação.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.117-140

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ABSTRACT

Through the case study of the implantation of special criminal courtrooms in PortoAlegre, confronting the legal provisions with the empirical reality of a new model ofpenal justice, we try to understand the meaning and the limits of the informalism inBrazilian penal system, since the promulgation of law n. 9.099/95. Removing theexercise of selectivity from the hands of the police, and giving the victim the possibilityof participating in the process, the informalized penal system opens new perspectives,substituting punishment for mediation, and violence for dialogue, but has to face theburocracy dynamics and authoritative mechanisms of institutionalized social control.Key words: Penal Control, Administration of Penal Justice, informalization, spe-cial criminal court rooms, social conflict and mediation.

1. INTRODUÇÃO

Os modernos Estados constitucionais podem ser visualizados como umconjunto de órgãos instituídos para a criação, aplicação e cumprimento dasleis. Com a despersonalização do poder do Estado, este passa a fundar sua legi-timidade não mais no carisma ou na tradição, mas em uma racionalidade le-gal, isto é, na crença na legalidade de ordenações regularmente estatuídas enos direitos de mando dos chamados por essas ordenações a exercerem a au-toridade (Weber, 1996 , p. 172). Nesse tipo de Estado, a legitimidade derivade terem as normas sido produzidas de modo formalmente válido, e da pre-tensão de que sejam respeitadas por todos aqueles situados dentro do âmbitode poder daquele Estado.

Entre as principais características deste tipo de Estado, está o controle cen-tralizado dos meios de coerção. O Estado moderno se apresenta, assim, comoum complexo institucional artificialmente planejado e deliberadamenteerigido, que tem como característica estrutural mais destacada o monopólioda violência legítima, garantido pelo que Weber chama de um quadro coativo(Weber, 1996, p.28). O controle centralizado dos meios de coerção é fortale-cido pela legitimidade que lhe confere a racionalidade jurídica, tornando acoerção mais tecnicamente sofisticada e exercida por um setor especializadodo Estado. Esta característica constitui-se em um marco do que Elias denomi-na processo civilizador, com a adoção de formas mais racionais e previsíveisde instauração de processos e de punição pela prática de atos legal e previa-mente previstos como crimes.

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Correspondendo, como paradigma teórico, aos modernos estados liberais,a doutrina do direito como conjunto orgânico e universalmente válido denormas institucionalmente reconhecidas é progressivamente minada, na épocacontemporânea, por tentativas de adequar a regulamentação legal e a suaimplementação pelas instâncias judiciais a um contexto onde emergem dis-cursos normativos rivais e se exige do Estado a execução de funçõescrescentemente político-administrativas.

A concentração de poder nas mãos do Estado, a complexificação da soci-edade e a regulamentação legal de setores cada vez mais amplos da vida soci-al, culmina, nas sociedades urbano-industriais do final do século XX, com acrise de legitimidade de uma ordem baseada em um discurso jurídico esvazia-do, paralela e simultaneamente à crise fiscal do Estado-Providência. Come-çam a aparecer as fissuras neste aparato que ainda sustenta sua legitimidadeem uma legalidade abstrata, constituída de acordo com normas gerais e apro-priadamente promulgadas. Isso ocorre porque algumas premissas daracionalidade legal começam a ser minadas ou desgastadas (a divisão de po-deres, a supremacia e generalidade da lei, etc.), frente a concentração de ex-pectativas no pólo do Poder Executivo, e dos recursos limitados de que dispõepara garantir a estabilidade social e a acumulação de capital.

Além disso, na medida em que se desgasta a crença na naturalidade dashierarquias de poder ou de distribuição de riqueza existentes, a atividade go-vernamental (inclusive a judicial) passa a depender cada vez mais de suasconseqüências em termos da satisfação de interesses fracionários, e a linhadivisória entre Estado e sociedade civil começa a se tornar cada vez mais difusa,aumentando a influência e a pressão sobre as políticas governamentais e asdecisões judiciais por parte das forças sociais (desde as camadas subprivilegiadasaté as grandes empresas multinacionais), que se rebelam contra a estrita ob-servância de normas processuais e legais.

A renovação das fontes de legitimidade do Estado é, então, buscada na suacapacidade em promover o desenvolvimento industrial e o crescimento eco-nômico, vistos como padrão necessário e suficiente para o desempenho decada Estado, e na garantia da efetividade dos mecanismos formais de controlesocial para a manutenção da ordem, justificando com isso deslocamentos nalinha Estado/Sociedade Civil (Poggi, 1981, p.140). A busca de prosperidadeinterna, como um fim em si mesmo, e a manutenção da ordem pública, tor-nam-se as principais justificações para a existência do Estado, e a sua fonte delegitimidade, sobrepondo-se à mera racionalidade jurídico-legal.

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No âmbito do sistema formal de controle social, ou seja, o sistema penal,as reformas institucionais que daí decorrem são apresentadas como tentativasde dar conta do aumento das taxas de criminalidade violenta, do crescimentogeométrico da criminalidade organizada e do sentimento de insegurança quese verifica nos grandes aglomerados urbanos. A pressão da opinião pública,amplificada pelos meios de comunicação de massa, aponta no sentido de umaampliação do âmbito de incidência do controle penal, tendo como paradigmapreferencial a chamada política de “tolerância zero”, adotada pela prefeiturade Nova Iorque no início dos anos 90, e defendida por diferentes setores doespectro político. O pressuposto dessa política de segurança pública é a perdade eficácia das estratégias brandas ou informais de controle social1.

O problema é que as mudanças sociais ocorridas durante o século XX fo-ram gradualmente enfraquecendo os mecanismos de controle comunitáriosobre os comportamentos, exacerbando determinados focos de conflitualidadeantes abafados por hierarquias tradicionais de poder. Com o debilitamentodos controles sociais informais, o crescente sentimento social de desordemampliou a demanda para que o Estado restaure a ordem mesmo em domínioscomo a vizinhança e os conflitos de família. Para assegurar a consistência dasexpectativas normativas existentes na sociedade, o sistema penal passa a terde responder a uma demanda crescente por resolução de conflitos privados.

Em sociedades com alto grau de complexidade, no entanto, se expressammuito mais expectativas normativas do que podem ser efetivamenteinstitucionalizadas. Para assegurar a consistência das expectativas normativascriadas pelo direito, o mecanismo eleito é a pena ou sanção, principalmentepelo seu papel simbólico, e não por sua real incidência sobre os autores dedelitos. Enquanto em um período anterior (anos 60/70) a explosão delitigiosidade deu-se sobretudo no domínio da justiça civil, no período atual(anos 80/90) o maior protagonismo é assumido pela justiça penal, que alémde dar conta da “velha” criminalidade individual, passa a ter que responder auma nova demanda, já que desde a proteção ao meio ambiente até as regras detrânsito são ancoradas no poder de punir do Estado. Isto somado à demandasocial crescente pelo fim da impunidade dos crimes de corrupção (“colarinhobranco”), e ao aumento da criminalidade urbana violenta, coloca os tribunaisno centro de um complexo problema de controle social.

Frente à crise fiscal do Estado e ao aumento da demanda por controle pe-

1 Sobre “Tolerância Zero”, vide WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.

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nal, as novas estratégias de controle vão incorporar a contribuição dos estu-dos sociológicos e antropológicos que tiveram por objeto o sistema jurídico.Paralelamente aos mecanismos convencionais de administração da justiça,surgem novos mecanismos de resolução de conflitos, através de instituiçõesmais ágeis, relativa ou totalmente desprofissionalizadas, menos onerosas, demodo a maximizar o acesso aos serviços, diminuir a morosidade judicial eequacionar os conflitos através da mediação.

Na esfera penal, estas reformas operam através dos movimentos dedespenalização e de informalização, na busca de alternativas de controle maiseficazes e menos dispendiosas do que as oferecidas pelo sistema penal tradici-onal. Quer se fundamentem em razões de legitimidade, quer privilegiem umaperspectiva de eficácia, as reformas no sentido da informalização adotam ca-racterísticas diversas: no âmbito do direito material, pode ser adotada a formadireta de descriminalização, pela revogação da norma incriminatória, ou se-rem incorporados princípios gerais de aplicação da pena, excluindo de suaincidência os chamados delitos de bagatela. No âmbito do direito processual,as mudanças têm visado o alargamento do princípio da oportunidade da açãopenal, conferindo ao acusado uma gama de alternativas (transação, suspen-são condicional do processo) nos chamados delitos de menor potencial ofen-sivo, e incorporando a participação da vítima para o encaminhamento daquestão.

No âmbito processual, as alternativas de informalização apontam para aredução da competência do sistema penal tradicional para o controle de con-dutas que permanecem sendo consideradas como socialmente indesejáveis.São as chamadas soluções conciliatórias, que visam promover a interação face-a-face entre vítima e acusado, como forma de superar o conflito que está naorigem do delito. As soluções de conciliação constituem uma das manifesta-ções mais expressivas do movimento de “deslegalização” ou “informalização”da justiça.

Nas heterogêneas comunidades urbanas contemporâneas, os programas demediação e informalização da justiça penal obtêm rápida adesão graças à insa-tisfação com as sanções penais tradicionais para a solução de disputas e confli-tos interpessoais, e apelam para as estruturas existentes da comunidade, emboramuitas vezes não passem de um apêndice do sistema legal formal. De qualquerforma, correspondem à busca de alternativas de controle mais eficazes e menosonerosas do que as oferecidas pelo sistema penal tradicional, que permitam umtratamento individualizado, particularista, de cada caso concreto, ao invés daorientação pela generalidade e universalidade das normas jurídicas.

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Pesquisas sobre os modelos de informalização adotados em diversos esta-dos norte-americanos identificaram uma importante diferenciação, emboradeterminadas características fossem recorrentes. Em alguns casos, a ênfase écolocada na mediação como processo terapêutico e a pressão da comunidadeé o meio para alcançar soluções voluntariamente acordadas entre as partes,no interior das cortes tradicionais. Em outros casos, se colocam como umaalternativa ao sistema formal, como as chamadas “community courts”, que têmjurisdição exclusiva sobre certas ofensas. A corte comunitária tem funçõesconciliatórias e adjudicatórias, e os mediadores são eleitos pela comunidadeonde residem e recebem um treinamento formal mínimo. Esse modelo seaproxima da chamada democracia participativa, com o envolvimento maiorda comunidade em questões antes restritas e resolvidas pelo aparato estatal.

Em que pese a existência de modelos diferenciados, os elementosconceituais que configuram um tipo ideal de informalização da justiça nosEstados contemporâneos são os seguintes: uma estrutura menos burocrática erelativamente mais próxima do meio social em que atua; aposta na capacida-de dos disputantes promover sua própria defesa, com uma diminuição da ên-fase no uso de profissionais e da linguagem legal formal; preferência por nor-mas substantivas e procedimentais mais flexíveis, particularistas, ad hoc; me-diação e conciliação entre as partes mais do que adjudicação de culpa; parti-cipação de não juristas como mediadores; preocupação com uma grande vari-edade de assuntos e evidências, rompendo com a máxima de que “o que nãoestá no processo não está no mundo”; facilitação do acesso aos serviços judi-ciais para pessoas com recursos limitados para assegurar auxílio legal profis-sional; um ambiente mais humano e cuidadoso, com uma justiça resolutivarápida, e ênfase em uma maior imparcialidade, durabilidade e mútua concor-dância no resultado; geração de um senso de comunidade e estabelecimentode um controle local através da resolução judicial de conflitos; maior rele-vância em sanções não coercitivas para obter acatamento.

2. A LEI 9.0999/95 E A INFORMALIZAÇÃO DAJUSTIÇA PENAL NO BRASIL

No Brasil, a incorporação dessas inovações no sistema judicial teve impul-so a partir dos anos 80, em especial após a promulgação da Constituição de88. Uma série de novos mecanismos para a solução de litígios foram criados,com vistas à agilização dos trâmites processuais, entre os quais tem um signi-

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ficado relevante os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, voltados para aschamadas pequenas causas e para os delitos de menor potencial ofensivo, pre-vistos no ordenamento constitucional e regulamentados pela Lei Federal nº9.099, de setembro de 1995.

A implantação dos Juizados Especiais Criminais (JEC) integra uma lógicade informalização, entendida não como a renúncia do Estado ao controle decondutas e no alargamento das margens de tolerância, mas como a procura dealternativas de controle mais eficazes e menos onerosas (Dias e Andrade,1992, p. 403). Para os Juizados Especiais Criminais vão confluir determinadostipos de delitos (com pena máxima em abstrato até um ano), e de acusados(não reincidentes). Com a sua implantação, se espera que as antigas varascriminais possam atuar com maior prioridade sobre os chamados crimes demaior potencial ofensivo.

Promulgada a Lei 9.099/95 em setembro de 1995, o rito processual nelaprevisto passou a ser imediatamente aplicado, pelas Varas Criminais comuns,para os delitos de menor potencial ofensivo, especialmente a suspensão con-dicional do processo e as novas alternativas de conciliação entre vítima eautor do fato e de transação entre Ministério Público e autor do fato.

Porto Alegre foi uma das primeiras comarcas de grande porte do país acriar os Juizados Especiais Criminais, que passaram a ter competência exclusi-va para o processamento dos delitos previstos na lei 9.099/95, com a ediçãoda Lei Estadual nº 10.675, em 2 de janeiro de 1996, que criou o Sistema dosJuizados Especiais Cíveis e Criminais no Estado do Rio Grande do Sul.

Pelo pioneirismo de sua implantação, os Juizados Especiais Criminais dePorto Alegre constituem-se em um importante laboratório para a verificaçãoda aplicabilidade dos dispositivos da Lei 9.099/95, das mudanças no movi-mento processual efetivamente ocorridas, assim como das dificuldades estru-turais existentes na máquina burocrática do Poder Judiciário para uma pres-tação de justiça mais ágil e voltada para a defesa dos interesses e a resoluçãodos dilemas da clientela do sistema penal (vítimas e acusados).

A Lei 9.099/95 deu aos Juizados Especiais Criminais a competência para aconciliação e o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo,que compreendem as contravenções penais (Decreto-Lei nº 3.688, de03.10.1941) e os crimes a que a lei penal comine pena máxima não superior aum ano de detenção ou reclusão, excetuados os delitos para os quais está pre-visto procedimento especial.

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Até a edição da Lei 9.099/95, as contravenções penais e os delitos punidoscom pena de detenção eram processados pelo rito processual previsto no Ca-pítulo V, Título II, do Livro II (art. 531 a 540) do Código de Processo Penal,denominado Processo Sumário. Pouca diferença havia entre este tipo de pro-cedimento e o Processo Ordinário, aplicado aos delitos apenados com reclu-são. A lei previa apenas a redução de alguns prazos e o abreviamento de deter-minados momentos processuais, mas a estrutura do processo era basicamentea mesma: inquérito policial, denúncia do Ministério Público, interrogatóriodo réu, defesa prévia, audiência de instrução, debates orais, julgamento. Nãohavia a possibilidade de reparação civil dos danos sofridos pela vítima no pró-prio processo penal, ficando relegada ao papel de mera informante da justiçapenal. Nem tinha o réu qualquer interesse em reconhecer o fato que lhe eraimputado, com a negociação em torno da pena.

De acordo com o que estabelece a legislação no art. 62 da Lei 9.099/95, oprocesso perante os Juizados Especiais Criminais deve ser orientado pelos cri-térios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade,objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítimae a aplicação de pena não privativa de liberdade. Dispensando a realização doinquérito policial, a Lei 9.099/95 determina que a autoridade policial, ao to-mar conhecimento do fato delituoso, deve imediatamente lavrar um termocircunstanciado do ocorrido e encaminhá-lo ao Juizado, se possível com oautor do fato e a vítima, providenciando a requisição dos exames periciaisnecessários para a comprovação da materialidade do fato (art. 69).

Não sendo possível o comparecimento imediato de qualquer dos envolvi-dos ao Juizado, a Secretaria do Juizado deverá providenciar a intimação davítima e do autor do fato, por correspondência com aviso de recebimento,para que compareçam à audiência preliminar (art. 71).

Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público,o autor do fato e a vítima, acompanhados de advogado, o juiz esclarecerá so-bre a possibilidade de composição dos danos, assim como sobre as conseqüên-cias da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa deliberdade ao autor do fato (art. 72).

Nos crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada àrepresentação, o acordo para composição dos danos extingue a punibilidade.Não obtido o acordo, o juiz dá imediatamente à vítima a oportunidade deexercer o direito de oferecer queixa-crime ou representação verbal (art. 75).

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Havendo queixa-crime ou representação ou sendo o crime de ação penalpública incondicionada, o Ministério Público poderá propor ao autor do fatoa transação penal, com a aplicação imediata de pena restritiva de direitos oumulta, a não ser no caso do acusado ser reincidente, ou no caso de “não indica-rem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como osmotivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida” (art.76). Não aceita a proposta, o representante do Ministério Público ofereceráao juiz, de imediato, denúncia oral, e o processo seguirá o rito sumaríssimo,previsto na Lei 9.099/95.

Oferecida a denúncia, poderá ainda o representante do Ministério Públi-co propor a suspensão do processo por dois a quatro anos, desde que o agoradenunciado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado poroutro crime. A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o denunciadofor processado por outro crime ou descumprir qualquer outra condição im-posta. Expirado o prazo sem revogação, o juiz declarará extinta a punibilidade.

Caso não seja possível a suspensão do processo, o juiz deverá intimar aspartes para a audiência de instrução e julgamento, que se inicia com a respos-ta oral da defesa à acusação formulada na denúncia ou queixa-crime. Aceita aargumentação da defesa, o juiz não recebe a denúncia ou queixa e encerra oprocesso. Recebida a denúncia ou queixa, são ouvidas a vítima e as testemu-nhas de acusação e de defesa, o acusado é interrogado e realizam-se os debatesorais entre defesa e acusação. Em seguida o juiz profere a sentença final con-denatória ou absolutória.

Os recursos previstos pela Lei 9.099/95 são a apelação (em caso de senten-ça condenatória ou absolutória ou da decisão de rejeição da denúncia ou quei-xa) e os embargos de declaração (em caso de obscuridade, contradição, omis-são ou dúvida na sentença), e são encaminhados a uma Turma Recursal com-posta de três juízes em exercício no primeiro grau de jurisdição.

2. A IMPLANTAÇÃO DOS JUIZADOS ESPECIAISCRIMINAIS EM PORTO ALEGRE

Para dar conta da análise do período de implantação dos Juizados Especi-ais Criminais na Comarca de Porto Alegre, a partir de uma perspectiva soci-ológica, foi adotado o método do estudo de caso, reunindo dados a partir de

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diferentes técnicas de pesquisa, para abarcar o conjunto de questões que pre-cisavam ser enfrentadas.

Como se sabe, as instâncias judiciais singularizam-se, entre as demais ins-tâncias de controle social, por serem as mais opacas e resistentes à “devassa”da investigação sociológica. Tal situação é compreensível, uma vez que, detodas as instituições, são os tribunais judiciais aqueles cuja legitimidade de-pende em maior medida da integridade de uma imagem decantada ehipostasiada em séculos de teorização política e jurídica (Dias e Andrade,1991, p. 527/528).

A análise de um objeto com este grau de complexidade compreende umasérie de passos fundamentais na investigação: a construção do objeto científi-co; a relação entre o investigador e o investigado; o questionamento dos mé-todos e técnicas de investigação; a perspectiva da descontinuidade do pensa-mento sociológico no momento da elaboração interpretativa. É a perspectivada complexidade, “mediante a qual o conhecimento é definido como um processomultidimensional, marcado pela diversidade, pela multiplicidade e pelamultidimensionalidade” (Tavares dos Santos, 1995, p. 74). O reconhecimentodos limites de toda técnica e da própria relação entre sujeito-investigador esujeito-investigado leva a um necessário pluralismo teórico-metodológico.

Em um primeiro momento, buscou-se obter os dados estatísticos disponí-veis para o período pesquisado. Coletados e tabulados pela Corregedoria Ge-ral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com o auxílio daPROCERGS, os dados obtidos dizem respeito ao movimento processual pe-nal na comarca de Porto Alegre, no período imediatamente anterior (1994 e1995) e posterior (1996 e 1997) à implantação dos Juizados. Também esta-vam disponíveis as decisões terminativas adotadas nos Juizados Especiais Cri-minais de Porto Alegre, cuja fonte eram os mapas de movimento processualfornecidos mensalmente pelas secretarias dos Juizados à Corregedoria Geralde Justiça. Por fim, obteve-se também o gráfico comparativo de morosidadejudicial entre os Juizados e as Varas Criminais, para os processos concluídosno primeiro semestre de 1998.

A partir do levantamento de dados estatísticos acima citados, e levandoem consideração a carência de dados quanto a uma série de elementos essen-ciais para a compreensão de como a lei vem sendo aplicada na prática (tiposde delito, dados sobre as partes, tipos de conflito, etc.), partiu-se para a etapade observação sistemática de audiências nesses Juizados, nos meses de junho aoutubro de 1998.

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Quando da realização das observações, já havia entrado em vigor o novoCódigo Nacional de Trânsito, retirando dos Juizados Especiais Criminais acompetência para julgar a maioria dos delitos de trânsito. Embora no primei-ro semestre ainda estivessem em funcionamento os três Juizados especializa-dos neste tipo de delito, extintos em agosto de 98, optamos por restringir aobservação aos JEC comuns, que passaram a julgar também os poucos delitosde trânsito que mantiveram a pena máxima até um ano (ex.: direção semhabilitação), para que a análise pudesse contemplar essa nova situação.

Ingressando nas salas de audiência como qualquer estagiário de direito,realizamos o trabalho de observação sistemática de um total de sessenta audi-ências, sendo 28 delas nos Fóruns Regionais e 32 no Fórum Central. A verifi-cação do que efetivamente ocorre no momento de interação face a face entreos operadores jurídicos do sistema e a sua clientela permitiu verificar a exis-tência de uma série de padrões de judicialização de conflitos nos Juizados Es-peciais Criminais. Foi constatada a existência de alguns tipos de delito am-plamente predominantes, vinculados a determinadas formas de conflitualidadesocial. Em relação às partes envolvidas, foi possível verificar como se distribu-em vítimas e autores do fato a partir da variável de gênero. Também foi possí-vel identificar como tem sido alcançada a conciliação ou a transação penal,ou seja, qual o conteúdo concreto deste tipo de solução nos casos observados,bem como as diversas situações em que o juiz é colocado diante de limitaçõesestruturais para o exato cumprimento do que dispõe a legislação (ausência dedefensor para as partes, ausência do Ministério Público, etc.).

Depois de tabulados os dados estatísticos e da observação das audiênciasnos JEC/POA, partimos para as entrevistas com juízes que atuavam ou havi-am atuado nos Juizados Especiais Criminais, já que a observação das audiênci-as indicava que, entre os operadores jurídicos, cabia aos juízes um papel pre-ponderante para a dinâmica de funcionamento dos novos Juizados, e amaior ou menor eficácia dos instrumentos processuais previstos pela Lei 9.099/95. Foram entrevistados seis juízes criminais com passagem pelos Juizados,contemplando a diversidade de experiências, fruto do maior ou menor tempode atuação nos Juizados, bem como pela atuação em diferentes Fóruns Regio-nais. Entre os entrevistados, encontramos juízes que atuavam nos JuizadosCriminais desde sua implantação, em 96, e outros que estavam substituindo otitular havia apenas um mês. Também encontramos profissionais que já havi-am atuado em outros Juizados, como os de trânsito, e agora tinham sidorealocados para um Juizado comum, e juízes que vinham de experiências emJuizados Especiais no interior do Estado. Quanto à diversidade territorial, as

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entrevistas contemplaram juízes com passagem por dois Juizados do FórumCentral, pelos Juizados Regionais do Sarandi, Alto Petrópolis e Partenon.

Com a implantação dos Juizados Especais, havia a expectativa de uma signi-ficativa redução do movimento processual nas Varas Criminais Comuns, quepoderiam concentrar a atenção nos delitos mais graves. A análise do movimen-to processual verificado na Comarca de Porto Alegre nos dois anos anteriores eposteriores à implantação dos Juizados não confirma essa expectativa.

Tomando por base os dados fornecidos pelos mapas de andamento proces-sual da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande doSul referentes à Comarca de Porto Alegre para o período considerado, o quese verifica é que, enquanto nos anos de 94 e 95 foram distribuídos para asVaras Criminais Comuns em torno de 6.000 processos por ano, em 96 o nú-mero de processos distribuídos salta para 54.687, baixando para 37.608 pro-cessos no ano de 1997.

1994 1995 1996 19970

1000020000

30000

40000

5000060000

1994 1995 1996 1997

Movimento Processual Criminal em POA 1994 a 1997

DistribuídosJulgados

Fonte: Corregedoria Geral de Justiça do TJ/RS.

Apesar da significativa redução percentual, o volume de processos distri-buídos nas antigas Varas Criminais se mantém praticamente inalterado. Comoessas Varas foram reduzidas a partir da criação dos Juizados de 18 para 14, háde fato um aumento do número de processos para as Varas Criminais Co-muns. A conclusão é que, ao invés de assumir uma parcela dos processos cri-minais das Varas Comuns, os Juizados Especiais Criminais passaram a dar contade um tipo de delituosidade que não chegava até as Varas Judiciais, sendoresolvido através de processos informais de “mediação” nas Delegacias dePolícia, ou pelo puro e simples “engavetamento”. Com a entrada em vigor da

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Lei 9.099/95, as ocorrências policiais deste tipo de crime, que se encontravamnas Delegacias, aguardando a realização de inquérito policial, e que normal-mente resultavam em arquivamento pela própria Polícia Civil, foram remeti-das para os Juizados Especiais.

Quanto ao tempo médio de tramitação dos processos criminais, constata-se que o rito processual adotado pelos Juizados Especiais é efetivamente maisrápido do que nas Varas Criminais. Os dados disponíveis quanto à morosida-de judicial dizem respeito ao tempo médio de tramitação dos processos crimi-nais encerrados no primeiro semestre do ano de 1998 em Porto Alegre. En-quanto nas Varas Criminais o tempo médio de tramitação foi de 520 dias, nosJuizados Especiais Criminais a média foi de 130 dias de tramitação.

VarasCriminais

JuizadoEspeciaCrimina

0

100

200

300

400

500

600

Dias

VarasCriminais

JuizadoEspeciaCrimina

Tempo Médio de Tramitação dos Processos Cencerrados em Porto Alegre no 1º Semestre d

Fonte: Corregedoria Geral de Justiça do TJ/RS.

Uma das principais evidências obtidas a partir da análise dos mapas deandamento processual da Corregedoria Geral de Justiça é quanto ao alto nú-mero de processos cujo término se deveu ao arquivamento, situação em quenão chega a ser realizada nenhuma audiência durante o processo.

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Como se pode verificar pelas entrevistas realizadas e em contato com ospróprios funcionários dos cartórios, isto ocorreu em grande parte porque umdos dispositivos da Lei 9.099/95 não foi respeitado pelas Delegacias de Polí-cia, muito menos pelas secretarias de muitos dos Juizados Especiais, nesse pe-ríodo de implantação: a intimação das partes para a audiência de conciliação(art. 71 da Lei 9.099/95).

Indo até a Delegacia para registrar a ocorrência, a vítima permanecia aguar-dando o encaminhamento judicial da questão. Não sendo intimada para aaudiência de conciliação, e nem avisada de que o registro na polícia não eraconsiderado como representação, passados seis meses o processo era arquiva-do por decadência do direito de representação (art. 103 do Código Penal),resultando em uma situação de impunidade e na manutenção da descrençada população quanto à possibilidade de judicialização desse tipo de delito.Outra causa comum de arquivamento é o não encaminhamento, pela PolíciaJudiciária, dos exames de corpo de delito, necessários para a comprovação damaterialidade do fato.

Condenatória Absolutória Conciliaçãoou Transação

Renúncia Arqu0

5000

10000

15000

20000

25000

Condenatória Absolutória Conciliaçãoou Transação

Renúncia Arqu

Tipos de Decisão Terminativa nos JEC POA - 1996 e 1997

Fonte: Corregedoria Geral de Justiça do TJ/RS.

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Dentre os mais de cem delitos considerados pela Lei 9.099/95 como demenor potencial ofensivo, por terem pena de prisão até um ano, tanto a ob-servação das audiências quanto as entrevistas com os juízes que atuam nosJuizados Especiais Criminais de Porto Alegre confirmaram uma ampla predo-minância de dois tipos penais: os delitos de ameaça e lesões corporais leves,que juntos corresponderam a 76% das audiências observadas.

Tipos de Delito nas Audiências Observadas

38%

38%

7%

5%

3%3%

2% 2%2%

Fonte: Observação de audiências nos JEC/POA.

A observação das audiências permitiu também verificar quais os conflitossociais que estão por trás dos delitos tipificados pela lei penal. Nesse sentido,constatou-se que a maioria dos delitos de menor potencial ofensivo é originá-ria de situações de conflito entre vizinhos (41%), entre cônjuges (17%), entreparentes (10%), ou em relacionamentos entre consumidor e comerciante(10%). Além destes, foram também encontrados conflitos na relação entrepatrão e empregado (8%), brigas eventuais em locais públicos entre desco-nhecidos (5%), e ainda alguns conflitos de trânsito (5%), embora a grandemaioria dos delitos de trânsito tenha retornado às Varas Criminais, com aelevação das penas previstas pelo novo Código Nacional de Trânsito.

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Tipos de Conflito nas Audiências Observadas

17%

10%

10%

8%

5%

5% 2% 2%

41%Entre Vizinhos

Entre Cônjuges

Entre Parentes

Em Relação de Consumo

Em Relação de Trabalho

Briga em Bar

No Trânsito

Religioso

Eventual

Fonte: Observação de audiências nos JEC/POA.

Deparando-se com um tipo de conflitualidade social que poucas vezeschegava até a sala de audiências, e tendo de conduzir um processo de concili-ação entre os envolvidos, os juízes que passam a atuar nos Juizados EspeciaisCriminais enfrentam dificuldades para assumir este novo papel. Entre os en-trevistados, foi freqüente o reconhecimento de que se trata de uma mudançasignificativa:

“Eu diria que a mudança é fundamental, porque enquanto afigura do julgador na justiça tradicional adota uma posturabastante rígida, com relação ao fato de presidir um processocriminal, na justiça consensual, e aqui nos juizados especiaiscriminais, a figura do juiz se transmuda, o juiz passa a ser umaespécie de conciliador, uma espécie de aconselhador até mes-mo das partes. Muitas vezes se pacificam os ânimos das pesso-as, e aí um dos desejos do legislador, ao editar a lei 9.099, queé justamente o de restabelecer a harmonia nas relações.”

O reconhecimento de que se trata de uma nova função, voltada para arecomposição dos laços de sociabilidade, que passa a ser exigida dos juízes,ao invés de uma simples decisão punitiva ou absolutória de uma figura neu-

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tra e alheia ao ambiente social, começa a aparecer no discurso de algunsmagistrados:

“Eu acho que o juiz passa a ter uma função muito mais ativa.Antigamente a função do juiz era praticamente ouvir as par-tes, ouvir, antes o juiz era um grande ouvido, digamos assim. Eao final, depois de tanto ouvir, prolatava uma sentença. Ago-ra, eu acho muito interessante essa disposição do art. 72, quediz que competirá ao magistrado explicar os objetivos da audi-ência, e eu acho que essa explicação, se feita de um maneirabem adequada ao caso concreta, produz resultados, em níveispedagógicos, fantásticos. Então eu acho que o juiz passa a serum agente de pacificação social, dependendo da postura delenessa audiência inicial.”

Com uma visão mais reticente a respeito da nova sistemática processual,um dos entrevistados manifestou opinião diversa, no sentido de que o papelque agora se exige do juiz já deveria ser praticado na sistemática anterior:

“O julgador virou mais um conciliador, ele tem agora a lei afavor dele, embora eu me lembre que na prática muitas vezeseu tentava, antes da Lei 9.099, fazer certas conciliações, den-tro do possível. Por exemplo, essas lesões corporais causadaspor marido na mulher, eu acho até que era mais eficiente osistema, porque a gente julgava e dava o sursis, com uma con-dição para o marido cumprir. Normalmente essas lesões eramdecorrentes de alcoolismo do marido, então se colocava nosursis a obrigatoriedade dele se submeter a tratamento, acom-panhamento dos alcoólicos anônimos. Então a impressão quese tinha é que não gerava tanta impunidade. E a impressãoque eu tenho é que em relação às mulheres vítimas de violên-cia doméstica essa lei acaba gerando uma certa impunidade,porque a mulher não chega nem a representar. Se ao menoshouvesse uma medida, pagasse uma multa, prestasse serviçosà comunidade, mas o marido simplesmente olha para a mu-lher na hora, o juiz pergunta: a senhora quer representar con-tra o seu marido, e pelo olhar dele ela acaba não tendo cora-gem de representar, enquanto que antes, quando não era con-dicionada a representação e o promotor é que oferecia a de-

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núncia, podia a vítima mentir, mas ela era advertida que nãodeveria mentir. Na verdade, se aplicava uma pena mínima,curta, se dava o sursis, e depois, quando entrou em vigor anova parte geral de 84, se podia aplicar prestação de serviços acomunidade, multa, quer dizer, penas alternativas. Eu achoque nesse tocante a lei não foi muito feliz, agora as pesquisas,as estatísticas é que vão mostrar.”

Quanto à existência de iniciativas institucionais para a conscientização eo preparo dos operadores jurídicos sobre as funções que lhes foram delegadasnos Juizados Especiais Criminais, constatou-se que muito pouco tem sido fei-to. A maioria dos atuais juízes teve formação acadêmica que não contemploua possibilidade de informalização processual. Nessa fase de implantação daLei 9.099/95, a busca de resultados positivos tem dependido do empenho da-queles juízes que assumiram a nova legislação como um avanço, seja na pers-pectiva da conciliação, do desafogamento do Judiciário ou de fim da impuni-dade para os pequenos delitos:

“Eu não sei se está havendo uma preocupação, por exemplo,dentro da Escola da Magistratura, quando dos cursos de pre-paração para o concurso, em enfatizar essa questão. Tambémnão sei se dentro da Corregedoria está havendo essa preocu-pação. Acho que hoje em dia a coisa se resolve mais dependen-do da forma como o juiz encara a lei 9.099, e como o própriojuiz encara o seu papel e como o juiz pode se adaptar a essenovo papel. Ele pode se adaptar ou não. Então eu posso estarerrada, mas imagino que ainda não estamos na fase da forma-ção dos juízes, de largada. Acho que os magistrados que já es-tavam na judicância antes do advento da lei estão se adaptan-do, e acredito que esses magistrados é que vão passar essa ex-periência para os novos magistrados.”

Uma das entrevistadas lamentou essa falta de uma preocupaçãoinstitucional mais efetiva para a formação dos juízes que vão atuar nos JuizadosEspeciais Criminais, pela compreensão de que depende em grande medida daconduta dos juízes a configuração dessas novas instâncias judiciaisinformalizadas:

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“Uma outra sugestão é que se promovesse mais uma reflexãosobre o papel dos operadores jurídicos no JEC, porque se osoperadores que estiverem naquela audiência não tiverem umposicionamento, uma visão do JEC como algo de uma eficáciasocial muito grande, nós vamos perder a chance de poder fazerum bom trabalho em termos de pacificação e de luta contra aimpunidade. Então eu acho que essa reflexão seria importan-te, não sei se através de cursos específicos, do estímulo dosmagistrados a fazerem publicações, sobre esse assunto especi-ficamente: qual a importância do operador jurídico no JECenquanto atuação na comunidade.”

4. CONCLUSÃO: AS ANTINOMIAS DAINFORMALIZAÇÃO DA JUSTIÇA PENAL

Boaventura de Sousa Santos, no início dos anos 80, em um trabalhoexploratório que visava a construção de novas hipóteses de trabalho e o alar-gamento do campo analítico da sociologia jurídica para o estudo do fenôme-no informalista, reconhecia a carência de uma sólida base empírica que dessesustentação às suas proposições, mas sugeria que a novidade nos programas deinformalização e comunitarização da justiça era que, se até aquele momentoas classes oprimidas foram desorganizadas individualmente – como cidadãos,eleitores ou beneficiários da previdência – no futuro passariam a sê-lo emnível societal ou comunitário – como moradores de um bairro, trabalhadoresde uma fábrica, consumidores de um produto. A hipótese formulada à épocaera de que a organização comunitária tutelada pelo Estado seria a forma dedesorganização das classes trabalhadoras no capitalismo tardio (Sousa San-tos, 1985, p. 92/93).

Na medida em que o Estado consegue, pela via da informalização, articu-lar, ao mesmo tempo, uma resposta à crise fiscal e o controle sobre ações ereações sociais dificilmente reguláveis por processos jurídicos formais, ele estáde fato a expandir-se por sobre a sociedade civil. A dicotomia Estado/Socie-dade Civil, tão cara ao pensamento da modernidade, deixa de ter sentido te-órico, e o controle social pode ser executado na forma de participação social,a violência na forma de consenso, a dominação de classe, na forma de açãocomunitária.

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Assim como o próprio projeto da modernidade encontra-se permanente-mente tensionado entre o aumento da regulação e a demanda por emancipa-ção, Sousa Santos já visualizava, na época, a presença de um elementoemancipador nas reformas informalizantes: sua associação ideológica a sím-bolos emancipatórios com forte implantação no imaginário social (participa-ção, auto-gestão, etc.). Nesse sentido, embora aprisionados por uma estraté-gia global de controle social, estes símbolos apresentariam um potencial utó-pico ou transcendente, que faria com que a justiça informal não pudesse “ma-nipular” sem oferecer algum pedaço genuíno de conteúdo ao público que vaiser manipulado (Sousa Santos, 1985, p. 97/98).

No caso dos Juizados Especiais Criminais brasileiros, embora a Lei 9.099/95 tenha previsto a utilização de conciliadores escolhidos fora dos quadros dajustiça criminal, até hoje essa disposição legal não foi implementada, e os juízesque atuam nos Juizados são os mesmos que atuam nas Varas Criminais, valen-do-se mais de uma relação de poder hierárquica e intimidatória sobre as par-tes para encaminhar uma solução para o caso do que de uma proximidadeadvinda de vínculos societais comunitários.

Ao invés de permitir um acesso mais fácil a grupos excluídos do sistemajudicial, compensando suas limitações, Lance e Bohn concluem que, no casonorte-americano, os centros de justiça informal funcionariam mais como sa-ída do que como entrada no sistema de justiça formal, sendo mais bem sucedi-dos em remover casos considerados inúteis ou menores do sistema formal,que em sua grande maioria envolvem mulheres, negros e pessoas de nívelsócio-econômico baixo, do que em fornecer uma forma mais acessível de jus-tiça.

Nesse ponto, constatou-se que, no caso dos Juizados Especiais Criminaisbrasileiros, há uma situação bastante diferenciada. Ao invés de retirar dosistema formal os casos considerados de menor potencial ofensivo, a Lei9.099/95 incluiu esses casos no sistema formal de justiça, através de meca-nismos informalizantes para o seu ingresso e processamento. A dispensa darealização do inquérito policial para os delitos de competência dos JuizadosEspeciais Criminais retirou da autoridade policial a prerrogativa que tinhade selecionar os casos considerados mais “relevantes”, que resultava no ar-quivamento da grande maioria dos pequenos delitos. O problema é que aestrutura judiciária não foi adequada para o recebimento dessa nova de-manda, que passou a representar quase 90% do movimento processual pe-nal global.

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A especificidade do caso brasileiro é que a informalização da justiça pe-nal na verdade não ampliou o controle social formal do Estado sobre novascondutas, uma vez que esse controle era exercido pelas delegacias de polí-cia. Na prática, as delegacias acabavam cumprindo informalmente uma fun-ção de filtro para a descriminalização de certas condutas, como as ameaçase lesões leves no ambiente doméstico, consideradas de menor importânciapara ingressar no sistema judicial. A Lei 9.099/95 permitiu a incorporaçãodesses delitos ao sistema judicial, numa espécie de recriminalização, substi-tuindo o delegado pelo juiz no exercício da função de mediação. Enquantoa mediação policial, informal e arbitrária, era freqüentemente combinadacom mecanismos de intimidação da vítima (sobrevitimização) e do acusa-do, a mediação judicial tende a ampliar o espaço para a explicitação do con-flito e a adoção de uma solução de consenso entre as partes, reduzindo aimpunidade.

É preciso reconhecer, portanto, os aspectos emancipatórios que fazem par-te do processo de informalização da justiça no caso brasileiro. No entanto, sãojustamente essas características as mais facilmente relegadas quando da im-plementação prática das medidas informalizantes. De um lado, a manutençãodo sentido emancipatório do informalismo depende de níveis de entusiasmomoral, consenso e convencimento por parte dos operadores jurídicos, especi-almente os juízes/conciliadores, a fim de evitar que procurem reforçar seu statuse autoridade adotando toda a pompa formalista: trajes e discursos, procedi-mentos, etc.

Além disso, é preciso destacar que tendências históricas e atuais apontampara a mesma conclusão: formalidades criam barreiras, mas também propor-cionam um espaço no qual é possível proteger os setores socialmentedesfavorecidos, enquanto que procedimentos informais são mais facilmentemanipuláveis. Isto sugere que a efetivação de direitos através de procedimen-tos informais somente pode ser bem sucedida se forem ultrapassadas as limita-ções inerentes à falta de apoio jurídico aqueles que pretendem exercer estesdireitos. Portanto, um extraordinário esforço será necessário para conduzir omovimento de informalização procedimental da justiça em uma direção fa-vorável. Os resultados deste esforço vão ter um significativo impacto sobre avida cotidiana das pessoas comuns.

No Brasil, o processo de abertura e informalização da prestação estatal dejustiça ocorre em uma situação na qual ainda não há de fato um Estado deDireito funcionando plenamente sob critérios racionais-legais de legitimação.

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O Estado brasileiro ainda não rompeu com relações tradicionais de poder, quepouco espaço concedem para a representação dos interesses e reivindicaçõespopulares no quadro institucional. Particularmente o Poder Judiciário, pelodistanciamento que lhe confere um discurso especializado e somente acessí-vel aos estudiosos do direito, permanece hermético ao senso comum e seleti-vo em suas decisões, além de disputar espaço com métodos informais de reso-lução de conflitos, que vão desde formas comunitárias de mediação até a atu-ação do próprio sistema policial, que em muitas situações cria a sua legalidadeprópria.

A seletividade do sistema judicial opera em duas vias: enquanto no âmbi-to civil a promoção de demandas depende da capacidade da parte em identi-ficar seus direitos lesados e arcar com as custas do processo, no âmbito penalsomente chegam ao judiciário os inquéritos policiais dos crimes dolosos con-tra a vida e contra a propriedade, ficando sob o arbítrio policial os delitosrelacionados com a conflitualidade interpessoal das favelas e cortiços, das re-lações domésticas e de vizinhança, das relações entre vendedor e consumidor,de patrão e empregado. Em todos estes contextos, a violência interpessoalemerge como um mecanismo de excesso de poder, em que a parte mais forteimpõe a sua vontade através da humilhação do outro, em relacionamentossociais freqüentemente duradouros.

Para tirar as lições da implantação da Lei 9.099/95 no âmbito criminal, nacomparação com as demais experiências de informalização da justiça penal, épreciso compreender essa especificidade do Estado brasileiro, em que se dele-gou à polícia o relacionamento com a maioria da população, para aintermediação dos seus conflitos, e as salas de audiência nas Varas Criminaisforam reservadas à punição pública dos ladrões e homicidas.

Os Juizados Especiais Criminais, tendo surgido sob a ideologia da concili-ação e da dispersão, para desafogar o Judiciário, acabaram abrindo as portasda justiça penal a uma conflitualidade antes abafada nas delegacias, e para aqual o Estado é chamado a exercer um papel de mediador, mais do que puniti-vo. Com a promessa de resolver disputas através da comunicação e do enten-dimento, e permitindo uma intervenção menos coercitiva e mais dialógica,em um espaço estrutural (a domesticidade, os relacionamentos interpessoais)que antes ficava à margem da prestação estatal de justiça, a informalização dajustiça penal pode ser um caminho para o restabelecimento do diálogo, con-tribuindo para reverter a tendência de dissolução dos laços de sociabilidadeno mundo contemporâneo.

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A violência e os meios decomunicação social

Violence and the Mass Media

ALTAYR VENZON

Professor titular do Pós-graduação Mestrado em Direito da ULBRA; Advogado eRadialista; Professor de Direito Penal; Procurador de Justiça, aposentado; Doutor

em Direito Penal pela Sorbonne – Paris.

RESUMO

Neste estudo, é examinada a relação da violência com os meios de comunicaçãosocial, focalizando dois aspectos básicos: a) causas da violência; b) Conseqüênciasda violência, quando transmitida através dos meios de comunicação social.Palavras-chave: Violência, meios de comunicação, direitos humanos.

ABSTRACT

In this study the relationship of violence with the midia is examined, focusing twobasic aspects: a) the causes of violence; b) the consequences of violence, when trans-mitted through the midia.Key words: Violence, media, human rights.

O prof. Hilário Veiga de Carvalho (1973), consagrado criminólogo paulista,ao iniciar o que denomina uma tentativa de interpretação da criminalidade,alerta para o exemplo do insultoso ataque vândalo à obra-prima deMichelangelo, o conjunto escultórico da Virgem acolhendo em seus braços oCristo morto – a “Pietá”, como um estigma, como uma marca, como o tristesímbolo da época em que tresloucadamente entramos, para vilipêndio da hu-

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.141-148

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manidade. A época da violência.

A destruição gratuita de bens, de valores materiais e espirituais, o vanda-lismo, o desprezo à espiritualidade e aos valores artísticos e científicos, a des-truição da natureza, por uma selvageria primata, desumana, imotivada, nesteturbilhão de criminalidade, desafiam governantes e governados, sociólogos,criminólogos, penalistas, a buscarem os meios capazes de deter a crise em quese encontra a sociedade.

O que o crime, diz Manuel López-Rey (1973), perdeu em originalidade,ganhou em extensão e em gravidade.

A Justiça Criminal tornou-se anacrônica, inadequada, ineficaz, infecunda,difusa e até confusa para enfrentar o crime e o criminoso, e os olhos de todosse voltam para a Criminologia, ciência causal-explicativa, para que esta, atra-vés da pesquisa científica das organizações, da sanção punitiva, do tratamen-to dado ao sentenciado, dos meios de prevenção, da predição do avanço dadelinqüência, da reincidência, do estudo das mudanças sociais e da condutadesviada, seja capaz de apontar alguma terapêutica para curar o mundo dehoje do egocentrismo, da agressividade, da violência e da indiferença, do cri-me enfim, com seu conteúdo variado, com as diversas modalidades possíveisda conduta do agente criminoso.

Dizendo-lhe respeito a descoberta das causas do crime ou criminogênese,a busca dos fatores da delinqüência, através da criminologia clínica e dacriminologia geral, associada à irmã gêmea, a ciência penitenciária oupenologia, a ciência de Garófalo, de Ferri e de Lombroso combina, hoje, aná-lise e síntese como métodos modernos adotados para pesquisa, para a investi-gação, para a experiência, para a identificação do fenômeno crime.

Não é, pois, a criminologia uma ciência exclusivamente da pessoa huma-na. O homem é o agente do ato ilícito, mas sobre ele operam inúmeras causas,algumas ainda desconhecidas, que modificarão o caráter essencialmente hu-mano do fenômeno crime. Há questões de ordem transcendental, que ultra-passam os meros limites da Antropologia, que devem ser considerados comoelementos subsidiários, ou explicativos mesmo, de muitas ações delituosas,mas que interessam, sobremaneira, à ciência criminológica.

Foi Paul Cuche (1905) quem distribuiu a Criminologia em dois grupos:1º) As ciências puras: Antropologia criminal; Biopsicologia criminal e Soci-ologia criminal. 2º) Ciências aplicadas: política criminal, profilaxia criminal(prevenção) e a Penalogia (ou ciência penitenciária).

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Jean Pinatel, entretanto, combateu e criticou este pluralismo criminológicodos fins do século XIX, explicando que a série de estudos parciais do fenôme-no criminológico não englobam sua totalidade.

Com efeito, na atualidade, e sob a influência decisiva do II Congresso In-ternacional de Criminologia realizado em Paris em 1950, surge a era dacriminologia como ciência unitária e interdisciplinar.

Pinatel, com rara felicidade, para explicar este monismo da Criminologia,na atualidade, recorre a uma figura geométrica, o cone de Mendes Corrêa. Nabase do cone, a circunferência representaria as condições biológicas e men-tais; na periferia, as condições econômicas e sociais. No centro da circunfe-rência, a personalidade. No eixo do cone, as situações pré-criminais. No vér-tice, o ato criminal. As geratrizes, a psicose ou a miséria. As condições bioló-gicas e sociais teriam a sua influência indireta através da personalidade e dasituação (Pinatel, 1945).

Numa síntese, poder-se-á dizer que entre os fatores gerais da criminalidade,objeto da criminologia, se encontram:

1) as crises políticas, econômicas e sociais;

2) a evolução da sociedade.

Para cada criminoso, por mais hedionda que tenha sido sua ação, o exameem busca de uma terapêutica adequada somente poderá ser feito de formaglobalizante, envolvendo não só a personalidade do delinqüente, mas tam-bém o contorno mesológico, físico e social em que viveu.

Não nos parece, data venia, correta a teoria do determinismo criminoso,tão comentada nos últimos anos, de que o conjunto cromossômico XYY eXYY que não é, entretanto, hereditário, mas que exerce grande poder sobre aconduta humana, tenha tanta influência sobre esta conduta que possa con-duzir ao crime sem outros fatores concomitantes, mesológicos, sociológicos,econômicos e inclusive sem o livre arbítrio.

Razão assiste, porém, aos doutrinadores filiados ao neo-ecletismo penalquando, na análise da criminogênese, sustentam que a personalidade huma-na indiscutivelmente se caracteriza pela possibilidade de usar o arbítrio, adeterminação da vontade, que a sua própria natureza de ser racional apresen-ta, diz Hilário Veiga de Carvalho (1973), “como ápice das suas imanentes quali-dades”. Sobre ela é que vão influir os fatores criminógenos pessoais e ambien-

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tais, biológicos e mesológicos que por si sós não seriam, entretanto, suficien-tes para a realização do crime.

Ora, é certo que o hipertireoidismo poderá provocar uma reação exagera-da aos estímulos exteriores, que tornam a pessoa portadora de excesso dohormônio tireóideo alguém de grande valia no trabalho e outros setores davida pública ou particular ou um líder na prática de ilícitos penais. Dependeapenas do grau de arbítrio à aceitação do incitamento endócrino.

Cabe, então, verificar quais os outros aspectos que merecem estudo a res-peito da violência, da criminalidade e da delinqüência.

O que é a violência para o público, cabe indagar? Em que consiste a vio-lência? Quais os atos e quais os fatos que são geralmente associados à idéia deviolência?

Ao ser feita esta indagação, a resposta imediata á dada espontaneamente:refere-se à violência física, “vis corporalis”, como atentados à pessoa; as agres-sões contra as pessoas idosas, os raptos de crianças, tumultos, mas tambématentados políticos, guerras, seqüestros de aeronaves, etc.

A população não tem realmente uma polarização sobre uma forma crimi-nal precisa, mas há sempre a impressão de uma agravação da criminalidadesob todas as formas.

Não resta dúvida, entretanto, que uma forma de criminalidade ocupa lu-gar à parte: a criminalidade juvenil, que é a mais freqüentemente citada emquaisquer estatísticas, supera toda evocação feita a respeito da violência emnossa sociedade.

Os jovens, portanto, ocupam lugar muito importante no discurso coletivosobre a violência.

Eles são, com efeito, duplamente considerados, como vítimas e como au-tores.

A agressão de uma pessoa de idade por um adolescente é lamentavelmen-te a ocasião de um sociodrama, onde se joga brutalmente o confronto simbó-lico de duas idades.

Por outro lado, embora, no Brasil, seja aparentemente inexistente a vio-lência política, é neste campo, o político, que se situa outro domínio específi-co da violência. Com efeito, embora raros ou quase inexistentes os atentados

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políticos tipo Aldo Moro, os períodos eleitorais são inelutavelmente acom-panhados de violência.

Esta dramatização da política participa, certamente, como causa e comoefeito, de uma concepção inquieta das relações sociais.

Em qualquer pesquisa estatística que se faça a respeito dos autores da vio-lência, além dos jovens e dos militantes políticos (estes em menor grau), algu-mas indagações sempre surgem. É certo, por exemplo, que as mulheres sãomenos violentas que os homens e que a violência decresce com o avançar daidade da pessoa.

Mas o que flui facilmente de estudos, entre todas as opiniões, é certamen-te a de que os autores da violência são geralmente os outros. Ninguém assumea violência que pratica.

As causas da violência apontadas pelo público, em entrevistas e em ques-tionários, são o alcoolismo; as habitações em celas pobres; o ritmo da vidamoderna; as desigualdades sociais; e há os que entendem que também se ali-nham, entre os fatores gerais da criminalidade – cuja pesquisa encontra-se nocaráter finalístico da criminologia –, a influência dos meios de informação ede comunicação coletiva.

Com efeito, muitos pensam que a televisão, o cinema, revistas e jornaiscontribuem para o desenvolvimento da delinqüência e estes órgãos dão exa-gerada importância em suas mensagens à violência e ao erotismo.

Num relatório elaborado por um comitê de estudos sobre a violência, acriminalidade e a delinqüência, em França, concluiu-se que grande parte dainsegurança, demonstrada por considerável parcela da população, em todasas classes sociais, decorre da leitura e do conhecimento de fatos criminosospublicados pela imprensa.

Por outro lado, os meios de comunicação exercem também uma influên-cia sobre a representação que se faz da criminalidade ou da pessoa do crimi-noso. Há, muitas vezes, uma inversão de valores morais. O delinqüente peri-goso aparece aos olhos do grande público como um herói, sendo transmitida,portanto, apenas uma certa imagem da realidade: herói-bandido, vítima dasociedade.

Ao se fazer tal afirmativa, entretanto, ainda não se disse serem os meios deinformação e de comunicação coletiva um fator criminógeno.

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O que se poderia, por certo, criticar é o exagero no uso de espaçosjornalísticos para explorar comercialmente a violência, o crime e a miséria.

Num estudo efetuado sob a égide do Conselho da Europa, concluiu-se que,em média, os artigos relativos à delinqüência ocupam mais ou menos 7% doespaço redacional dos grandes jornais europeus e que um pouco mais da meta-de destes trata de condutas violentas.

Conclui-se, assim, com Jacques Leauté, em sua consagrada obra,“Criminologia e Ciência Penitenciária” (1972) que a intervenção dos meios deinformação e de comunicação se produz, em nossos dias, em três fases do fe-nômeno criminal descrito por eles: 1º) na elaboração das leis, quando expres-sando a opinião pública, que em ultima ratio contribui, com o valioso costumedo povo, para a redação legislativa, podendo exercer decisiva ação sobre olegislador; 2º) por ocasião da infração dessas leis, quando os meios de infor-mação têm o dever de dar ciência à coletividade dos problemas que a estãoafligindo; e 3º) o registro da reação social, noticiando e informando acercados processos, dos recursos, das audiências, do Tribunal do Júri e das senten-ças.

Já Lombroso entendia nefasta a ação da imprensa durante o processo e ojulgamento do crime, porque pode desviar o julgador da sentença em que fariaverdadeiramente justiça, orientado por uma falsa imagem da opinião pública.

Objeta-se, entretanto, e nesta posição se encontram muitos profissionaisda imprensa, que é necessário informar o público a respeito do crime, é útil aocontrole da reação social pela coletividade e prestam, assim, os meios de in-formação e de comunicação social relevante trabalho, com o impulso que dãoà adaptação das leis penais às necessidades e às aspirações sociais, à realidade.

À criminologia, ciência causal-explicativa, compete investigar se realmen-te os meios de comunicação de massa também constituem fator criminógeno.

Ao noticiar um crime, dir-se-á, de início, a ação criminógena, que poderádecorrer do meio de comunicação coletiva e de informação, terá um duploefeito.

De um lado, a incessante relação de crimes, junto às múltiplas imagens daviolência, expostos à vista de todos, diminui, reduz a capacidade de resistên-cia dos indivíduos frágeis, que, em razão de sua pouca idade, se deixam influ-enciar pela imagem permanente de crimes, armas e assassinos. Com a excita-ção dos instintos baixos, muito facilmente passa da imagem psíquica, que re-

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teve, ao ato exterior. Por outro lado, o destaque, o enfoque, o elogio, muitasvezes, contribui para excitar a vaidade do delinqüente e a agravação das for-mas de delinqüência. Muitas vezes, também, os meios de informação defor-mam a imagem pública dos Juízes, da Justiça e do Ministério Público, desacre-ditando-os perante os homens e as instituições.

Cabe-nos, entretanto, também alinhar alguns elementos positivos da in-tervenção dos meios de comunicação de massa.

Para a mídia, o crime é um fato novo, fazendo parte da atualidade; é deverdos jornalistas, telejornalistas e radialistas informar tanto as causas boas comoas más, o bem como o mal.

No momento em que, usando de seu fabuloso poder amplificador, os meiosde comunicação difundem e divulgam os fatos criminosos e causam indigna-ção social, contribuem, no entanto, para a expressão da necessidade social dejustiça. Os jornais, a radiodifusão e a televisão excitam os sentimentos úteisna luta contra o crime.

Uma função de catarse é atribuída, em nossos dias, aos meios de comuni-cação de massa, assim como ocorreu com as tragédias gregas, pós-clássicas. Anarração dos crimes, reais ou imaginários, os filmes de terror, longe de provo-car a delinqüência, exerceriam, ao inverso, uma ação terapêutica, libertandoo indivíduo. A publicidade da justiça torna necessária a reportagem a respeitodos processos. O público raramente participa dos julgamentos de processos dojúri ou assiste às audiências e aos debates. Sem a crônica jornalística, poucaspessoas saberiam como são julgados os processos e que tipo de justiça é feita.

Mencione-se, ainda, que a participação dos meios de comunicação socialnos processos de elaboração das leis novas é realmente benéfica, porque con-tribui não apenas para a expressão da necessidade social de justiça, mas tam-bém para a criminalização e a descriminalização.

Em questionário recente, a respeito da opção: mostrar ou não a violênciapela televisão-, alinharam-se posições favoráveis e contrárias.

Entre as posições favoráveis, encontra-se a de que o fato informado mos-tra a realidade de hoje, suscita a reflexão e faz abrir os olhos às pessoas, mor-mente aos jovens. Faz compreender a vida das grandes cidades. Ensina-nos aprudência. Mas, a violência mostrada em ocasiões excepcionais, é aceitável,porém, se for repetida muito seguidamente, representa uma agressão.

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Por outro lado, um tipo de filme violento pode incitar mais solidariedadeentre as pessoas. Outrossim, informa o que a gente pode fazer numa situaçãosemelhante. Por derradeiro, o telespectador é livre: ele pode decidir se assisteo programa ou não.

Há, entretanto, opiniões francamente desfavoráveis. É um mau exemplopara os jovens que recebem detalhes a respeito de práticas violentas. Os fil-mes podem chocar a sensibilidade da pessoa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Hilário Veiga. Compêndio de Criminologia. São Paulo José BushatskyEditor, 1973.

CUCHE, Paul. Traité de criminologie. Paris: Librairie Générale de Droit et deJurisprudence, 1905.

LÉAUTÉ, Jacques. Criminologie et science pénitentiaire. Paris: Presses Universitairesde France, 1972.

LÓPEZ-REY, Manuel. Crime. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.

PINATEL, Jean. Précis de Science Pénitentiaire. Paris: Libraire Sirey, 1945.

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O direito fundamental do acesso àjustiça

The Fundamental Right of Access to Justice

ROSANNE GAY CUNHA*Mestranda em Processo Civil-PUCRS

Professora de Processo Civil – ULBRA/RSProfessora de Processo de Execução na especialização em Processo Civil da ULBRA

e UCS/RS

RESUMO

O acesso à justiça é direito fundamental assegurado na Constituição Federal, masnão é irrestrito, pois encontra limites quando em confronto com outra norma opos-ta, igualmente legítima, quando exercido abusivamente, ou quando conflitante comigual direito da parte adversa. O acesso à justiça somente poderá ser limitado emrazão de outro direito ou liberdade constitucionalmente protegido. Para tanto, suge-re-se a aplicação do princípio da proporcionalidade como técnica de relativizaçãodos direitos em conflito.Palavras chave: Direito Constitucional, direitos fundamentais, acesso à justiça.

ABSTRACT

The access to justice is a fundamental right commended in the Federal Constitution, butit isn’t unrestricted, because it meets some limits when in confrontation with anotheropposite norm, equally legitimate, when abusively exercised, or when in disagreementwith a similar right of the adverse part. Access to justice will be limited only because ofanother right or liberty constitutionally protected. Therefore we suggest the application ofthe principle of symmetry as a technique for relativization of the rights in conflict.Key words: Constitucional Law, fundamental rights, access to justice.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.149-160

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INTRODUÇÃO

A idéia do presente trabalho surgiu do estudo dos princípios processuaisconstitucionais, em particular do princípio do acesso à justiça, também conhe-cido como “direito à tutela judicial efetiva”. Na expectativa de realizar umaabordagem diferenciada daquela utilizada pela doutrina processual, pretendeu-se investigar o referido princípio sob a ótica dos direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais são o elemento essencial do Estado Constitucional,no sentido da legitimação do poder estatal. Não se concebe atualmente o Estadode Direito sem a garantia dos direitos fundamentais, assim como estes somentepoderão aspirar à plena eficácia com o reconhecimento do Estado de Direito1. Éigualmente correto dizer-se existente um liame que une os direitos fundamentaiscom a idéia de democracia, na medida em que aqueles exercem a função de ga-rantes da limitação do poder e instrumento de exercício das liberdades. E, ainda,se pensarmos num Estado de Direito de conteúdo não meramente formal, é cor-reto afirmar que os direitos fundamentais são condição para a realização da justiçamaterial, da igualdade, ou seja, do Estado social de Direito.

Assim, posicionando os direitos fundamentais como elemento essencialde um Estado social e democrático de Direito, e na medida em quehodiernamente se concebe o Estado democrático, importa saber em que me-dida a comunidade jurídica - aqui compreendidos o Estado e os “consumido-res” do Direito - tem lhes outorgado aplicabilidade.

Interessa-nos, portanto, fazer algumas considerações acerca do direito fun-damental à tutela judicial efetiva. O tema tem norteado a modernaprocessualística e toma relevância na medida em que o direito fundamental àtutela judicial se verifica como meio para a realização de outros direitos, quan-do não reconhecidos ou insatisfeitos. O acesso efetivo à justiça é, portanto, agarantia do exercício dos demais direitos fundamentais e/ou subjetivos cons-tantes do nosso ordenamento jurídico.

Nessa perspectiva, e valendo-se da mais moderna e atual doutrina sobre otema, pretende-se, num primeiro momento, abordar o acesso à justiça comodireito fundamental, verificando as conseqüências de seu desrespeito.

Mais adiante, estudando o significado e a abrangência do direito à tutela

1 Segundo Ada Pelegrini Grinover (1973, p. 46), o Estado de direito se contrapõe ao Estado absoluto por reconhecer aosindivíduos a titularidade de direitos subjetivos, de “posições jurídicas ativas com relação à atividade estatal”.

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judicial efetiva, veremos que, sob a rubrica do próprio princípio de acesso àjustiça, os direitos podem entrar em conflito entre si, oportunidade em que ire-mos propor a restrição dos direitos, nesse caso específico, desde que, é claro,observado o sistema da constituição, atendendo ao seu “conteúdo essencial”.

I - O DIREITO À TUTELA JUDICIAL COMO DIREITOFUNDAMENTAL

O poder estatal, como concebido atualmente, tem sua legitimação estri-bada nos direitos fundamentais, que são preceitos constitucionais imperati-vos válidos em um determinado território, para uma determinada comunida-de. A existência do Estado de Direito está ligada diretamente à garantia dosdireitos fundamentais, assim como estes somente poderão aspirar à plena efi-cácia com o reconhecimento daquele.

O “direito à tutela judicial”, também conhecido como “direito de acesso àjustiça”, é direito fundamental, previsto na atual Constituição Federal atravésde vários preceitos, tais como o direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a”), osprincípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), o do respeito àcoisa julgada (art. XXXVI), o da motivação das decisões (art. 93, IX), etc.,sendo um direito materialmente constitucional, ainda que não expressamen-te enunciado no catálogo da constituição formal.

Entre os povos civilizados, o acesso aos tribunais é um direito fundamen-tal baseado no fato de que o pedido de justiça é inalienável, que a ninguémpode ser negado, sendo um dos valores fundamentais de qualquer ordenamentojurídico. É um direito que se mostra relevante, na medida em que se afirmacomo meio para a realização de outros direitos não reconhecidos ou insatis-feitos. O acesso à justiça é, pois, garantia do exercício dos demais direitosfundamentais e/ou subjetivos constantes do ordenamento jurídico.

É oportuna a lição de BURRIEZA, no sentido de que o direito à jurisdição“... no sólo engloba todas las situaciones jurídicas susceptibles de merecer protecciónjudicial, sino que además, entendiendo el derecho a la jurisdición como un conceptoinstrumental del derecho fundamental de defensa jurídica y modo de satisfacerla,tiene un contenido que es el poder atribuido a todos los ciudadanos para provocar laactividad jurisdiccional y obtener a través del proceso una sentencia determinada” 2.

2 Àngela Figueruelo Burrieza, 1990, p. p. 31-2.

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Nessa perspectiva, interessa saber em que medida a comunidade jurídicatem outorgado aplicabilidade ao direito à tutela judicial. O debate doutriná-rio atual pode ser sintetizado pela afirmação de Kasuo Watanabe: “a proble-mática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acessoaos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à jus-tiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica jus-ta”3, ou como refere Luiz Guilherme Marinoni, direito a procedimentos “quetutelem de forma efetiva, adequada e tempestiva os direitos”4.

No mesmo sentido conclui Burrieza: “De ahí que se entienda que no bastagarantizar a todos el acceso a la justicia proponiendo al juez la demanda de tutela,sino que será preciso garantizar a cada ciudadano la posibilidad de obtener la tutelajudicial en un caso concreto, porque, de lo contrario, la garantía se reduciría a merasdeclaraciones de principios que eluden toda intención de concretizar. La soluciónadoptada en el orden práctico es interpretar la norma en cuestión, tratando de indi-vidualizar fuera de los esquemas dogmáticos acostumbrados el concepto que puedadesarollar lo mejor posible el potencial garantizador y aprovechar los instrumentospositivos del control de constitucionalidad de las leyes. (...) La relación entre accióny defensa ... es condición indispensable para convertir en algo concreto y no solamenteaparente el derecho a la pretensión jurisdicional. La existencia del derecho no severá disminuida por las diferentes modalidades que para su ejercicio se arbitren segúnla distinta estructura de los procedimientos singulares. En este sentido, las garantíasde tutela que sólo operan en los procedimientos jurisdiccionales no pueden agotar sucontenido en la libertad para promover la acción judicial; el derecho a la pruebacoadyuva a lograr la plenitud de los derechos de acción y de defensa en sus relacio-nes com el derecho a la tutela jurisdicional, porque cada vez que se niega o se limitaa alguna de las partes el poder procesal de representar ante el juez la realidad de loshechos que le son favorables en la práctica se le está negando el derecho a la tutelajurisdicional”5.

Por outro lado, não se pode esquecer que, embora os direitos fundamentaisrequeiram lhes seja outorgada a maior carga de eficácia possível, oordenamento jurídico não pode ser conivente com seu exercício abusivo. Odireito de acesso à justiça não é direito irrestrito, sem limites, quando con-fronta com outra norma oposta, mas igualmente legítima.

3 Ada Pelegrini Grinover, 1988, p. 128.4 José Guilherme Marinoni, 1998, p. 18.5 Àngela Figueruelo Burrieza, 1990, p. p. 44-46.

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Assim, o direito de demandar, embora garantido constitucionalmente,encontra limite quando exercido abusivamente, em desacordo com os finsprecípuos do processo civil ou quando conflitante com o direito da parte quelhe é adversa, da mesma forma que o direito à ampla defesa sofre restriçõesquando confronta com o direito do autor que tem razão. Este sempre foi oembate entre o direito à tempestividade da tutela jurisdicional e o direito àcognição definitiva, ante à morosidade do processo que tanto mal faz, já quepossibilita o descrédito nas instituições judiciárias.

O movimento do acesso à justiça surgido com o estudo de MauroCappelletti, embora bastante recente, tem sua origem no princípio dainafastabilidade do Poder Judiciário, surgido na Revolução Francesa, para de-fender o cidadão em face do Estado.

Nos Séculos XVIII e XIX, segundo Cappelletti, “o acesso formal, mas nãoefetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva” 6. Issosignifica que o Estado não tinha o dever de agir para a proteção do direito deacesso à justiça, mas que, tão-somente, devia exigir a sua preservação, ou seja,tinha apenas o dever de impedir a sua violação por quem quer que fosse. Ocomportamento do Estado no sistema do laissez-faire, portanto, era passivo.

Com a transformação do conceito de direitos humanos, tornou-se pacífi-co que o Estado deve atuar positivamente para assegurar o acesso efetivo àjustiça.

II - CARACTERÍSTICAS DO DIREITO DE ACESSO ÀJUSTIÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Modernamente, diz-se que o direito à tutela judicial, no âmbito da liber-dade individual, é um direito de defesa (direito de primeira dimensão), a re-clamar uma abstenção do Estado na esfera da liberdade do indivíduo. É direi-to de acesso a uma ordem de valores e direitos fundamentais (justiça em sen-tido material), mas é, ao mesmo tempo, direito fundamental prestacional (desegunda dimensão), significando um dever de agir positivamente, a fim deproteger os direitos individuais. É direito de acesso ao Judiciário e, ao mesmotempo, direito a uma ordem jurídica digna (justa, adequada e tempestiva).

6 José Guilherme Marinoni, 1988, p. 9.

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Essa posição assumida pelo direito de acesso à justiça, no nossoordenamento jurídico, desvenda algumas características.

A primeira é a de que, como autêntico direito fundamental, submete-seao disposto no § 1º do art. 5º da CF/88. Isso porque os direitos e garantias sãoauto-aplicáveis, independendo da interpositio legislatoris para que gerem a ple-nitude de seus efeitos 7.

Com esta constatação, parte-se para a segunda característica, qual seja, oefeito vinculante do § 1º do art. 5º da CF/88, segundo o qual decorre, “... numsentido negativo, que os direitos fundamentais não se encontram na esfera de dispo-nibilidade dos poderes públicos” 8, ou seja, há uma vinculação do poder públicoe dos particulares ao direito de acesso à justiça, de modo que, além de deve-rem atuar no sentido da concretização do direito fundamental, estandoadstritos a outorgarem-lhe o máximo de eficácia possível, devem abster-se deatentar contra o sentido e a finalidade da norma de direito fundamental.

O Estado não podendo intervir na esfera da liberdade das pessoas, devegarantir seu acesso a uma ordem jurídica justa, tendo a obrigação de emitiratos destinados a criar órgãos e estabelecer procedimentos ou medidas.Corresponde-lhe, em contrapartida, e essa é a terceira característica, um di-reito público subjetivo do indivíduo, equivalente ao terceiro status, segundo aclassificação de Georg Jellinek 9, denominado status positivus (direitos à pres-tação estatal), assim como, numa interpretação mais extensiva, representaum direito subjetivo do indivíduo, equivalente ao status negativus (direitos àsações negativas) no âmbito da liberdade individual, como direito de defesa.

Não resta dúvida de que, face à proibição da autotutela, e ao monopólioestatal da jurisdição, surge para os cidadãos um “auténtico derecho subjetivo aque el poder público se organice de tal modo que los imperativos de la justicia quedenminimamente garantizados. El fundamento básico del derecho que analizamos seencuentra en el hecho de que a las personas se les há proibido satisfacer por suspropios medios el conjunto de derechos e intereses que constituyen su patrimoniojurídico” 10.

7 Essa afirmativa vale para o direito à tutela judicial, pois, como direito de defesa e como um direito à prestação por parte dospoderes públicos (agir positivo do Estado para garantir a liberdade do indivíduo), ainda que dependa de concretizaçãolegislativa, na sua falta é o próprio Judiciário o poder competente para aplicar imediatamente os direitos fundamen-tais no caso concreto, assegurando-lhes a plena eficácia.

8 Ingo Wolfgang Sarlet, 1998, p. 323.9 Apud Sarlet, 1998, p.p. 154-8.10 Àngela Figueruelo Burrieza, 1990, p. 50.

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O direito à jurisdição, portanto, nada mais é do que uma compensação àproibição do exercício da força privada como forma de satisfação das preten-sões e direitos dos indivíduos.

Como lembra Burrieza, é preciso também que o Estado crie os instrumen-tos adequados a essa finalidade, sob pena de restar insatisfeito o desejo dejustiça, e, conseqüentemente, ressurgimento da autotutela e do caos social.Por esta razão é indispensável para a estabilidade do sistema político aefetividade do direito de acesso à justiça, como um direito de “... todo aquelque, sufriendo una violación, pueda acudir a un órgano estatal que le atienda y quehaga efectivos sus derechos en el caso de que lo juzgue procedente” 11.

Por fim, a quarta característica que salientamos é que, como todos os direi-tos fundamentais, o direito de acesso à justiça está guindado à condição decláusula pétrea, como meio de impedir a destruição dos elementos essenciaisda Constituição, protegendo os direitos fundamentais das reformas levadas aefeito pelo Poder Constituinte derivado.

III - CONSEQÜÊNCIAS DO DESRESPEITO AODIREITO

Conforme já se disse alhures, todos os órgãos jurisdicionais estão vincula-dos ao direito fundamental, de maneira que exercem o controle daconstitucionalidade dos atos dos demais órgãos estatais, declarando ainconstitucionalidade dos atos ofensivos a tais direitos.

Dada a amplitude do conceito de tutela judicial efetiva, o STF, como Tri-bunal Constitucional e intérprete supremo da constituição, converte-se naúltima instância jurisdicional em matéria de pressupostos inseridos na consti-tuição (material ou formal).

A função assumida por esse Tribunal, nestes casos, é de relevância para odesenvolvimento da função jurisdicional do Estado, porque grande númerode sentenças serão anuladas e atos processuais deverão ser refeitos, no mo-mento em que a instância ordinária violar o direito constitucional à tutelajudicial efetiva. A violação ao direito fundamental abre a via do recursoextraordinário.

11 Idem, p. 51.

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IV - SIGNIFICADO E ABRANGÊNCIA DO CONCEITODE EFICÁCIA DO DIREITO À TUTELA JUDICIAL

O direito a obter a tutela judicial efetiva desborda, pois, do simples acessoao Judiciário e, acrescenta-se, do acesso ao processo. Compreende, igualmen-te, um processo com base na legalidade, no direito a obter uma decisão funda-da no Direito, devidamente motivada, a fim de permitir o controle da ativi-dade jurisdicional, e ainda, compreende um processo com respeito à coisajulgada material e à executividade das sentenças, sob pena de privar-se deeficácia o que se decidiu com firmeza ao fim do processo.

O direito de acesso à justiça somente pode ser limitado, sem maiores pre-juízos, em razão de outro direito ou liberdade constitucionalmente protegido.Assim, o legislador ordinário somente poderá regular os requisitos de admis-são de um recurso, por exemplo, se tal atitude corresponder à natureza doprocesso e às finalidades que justifiquem sua existência, evitando que se con-vertam em meros obstáculos processuais, constituindo limitação ao direitofundamental. As limitações devem se basear em uma causa legal, que não sejacontrária ao conteúdo essencial do direito de acesso à justiça, e que seja inter-pretada e aplicada da maneira mais favorável para a efetividade do direito.

V - O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E ASLEIS RESTRITIVAS

Os direitos fundamentais são passíveis de limitação. A própria CF/88 pre-vê restrições ao exercício de direitos fundamentais, permite que o legisladorinfraconstitucional venha a limitá-lo, ou ainda, há limites imanentes quedecorrem do caráter de princípio das normas de direitos fundamentais que,quando em conflito no caso concreto, submetem-se a uma ponderação.

No dizer de ALEXY, as normas restritivas “não constituem nenhuma ‘restri-ção’ senão tão somente fundamentam a ‘restringibilidade’ dos direitos fundamen-tais”12, isto é, as normas restritivas indicam apenas até onde o ordenamentojurídico deve proteger o direito (âmbito de proteção do bem jurídico).

A restrição, entretanto, deve observar os limites dados pela Constituição,

12 Robert Alexy, 1993, p. 173.

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atendendo ao seu “conteúdo essencial”, sob pena de, em extrapolando-os,tornar-se ilegítima e violadora desse conteúdo essencial.

Assim, a CF/88, em um dos enunciados que dão suporte constitucional aodireito à tutela judicial, quando prevê que “a lei não excluirá da apreciação doPoder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5, XXXV), ensejando o acessoao Judiciário àqueles que estão submetidos ao monopólio estatal da jurisdi-ção, limita esse direito enunciando outro, igualmente fundamental e suportetambém do princípio do acesso à justiça, quando prescreve que “aos litigantes,em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados ocontraditório e ampla defesa, com os recursos a ela inerentes” (art. 5, LV).

Outra norma restritiva do direito de demandar e do direito de defesa, rea-lizado pelo legislador infraconstitucional, é o art. 17 do CPC, que regula alitigância de má-fé. Nesse caso, o núcleo essencial dos direitos tutelados pelaConstituição está resguardado. Não se retira o direito de pleitear em juízo oude se defender em uma demanda, mas apenas se estabelece que tais direitosserão tutelados, estarão protegidos, enquanto exercidos de boa-fé que é o prin-cípio retor do processo civil. Se a parte passar a litigar de má-fé, a sua garantiadeixa de estar abrigada pelo ordenamento jurídico e passa a sofrer uma sançãopelo dano processual causado.

Isso porque “o jogo dos princípios opostos somente é possível devido ao caráterde princípio das normas iusfundamentais, resultando em direitos fundamentais res-tringidos e passíveis de restrição, que, por sua vez, também têm sua restrição erestringibilidade restringidas” 13. A limitação está, pois, no resguardo do núcleoessencial.

E se acontecer, pelas relações que os indivíduos mantém entre eles e com acoletividade, que surja a necessidade de restrição ao direito, o que é denomi-nado pela doutrina como limite imanente implícito, ou seja, “um conflito posi-tivo de normas constitucionais, a saber entre uma norma consagradora de certodireito fundamental e outra consagradora de outro direito ou de diferente interesseconstitucional” 14, a solução para o conflito será a ponderação.

O princípio da proporcionalidade surge como forma de relativizar tais direitos,em nome de princípios fundamentais como o da justiça e da dignidade da pessoa,hierarquizando os valores em jogo, a fim de atingir o objetivo maior que é o da coe-

13 Raquel Denize Stumm, 1995, p. 139.14 Canotilho e Moreira , 1993, p. 135.

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xistência destas normas no sistema jurídico. A tutela de um deve encontrar limite natutela do outro. Entretanto, não há como estabelecer definitivamente esse limite,como afirma N. BOBBIO: “Na maioria das situações em que está em causa umdireito do homem, ao contrário, ocorre que dois direitos igualmente funda-mentais se enfrentem, e não se pode proteger incondicionalmente um delessem tornar o outro inoperante. Basta pensar, para ficarmos num exemplo, nodireito à liberdade de expressão, por um lado, e no direito de não ser engana-do, excitado, escandalizado, injuriado, difamado, vilipendiado, por outro.Nesses casos, que são a maioria, deve-se falar de direitos fundamentais nãoabsolutos, mas relativos, no sentido de que a tutela deles encontra, em certoponto, um limite insuperável na tutela de um direito igualmente fundamen-tal, mas concorrente. E, dado que é sempre uma questão de opinião estabele-cer qual o ponto em que um termina e o outro começa, a delimitação do âm-bito de um direito fundamental do homem é extremamente variável e nãopode ser estabelecida de uma vez por todas” 15.

O princípio da proporcionalidade, pois, nada mais é que uma ponderaçãodos valores conflitantes em jogo, funcionando como instrumento, por meiodo qual se verifica se os limitadores a serem impostos aos direitos fundamen-tais conflitantes são idôneos. É uma técnica segundo a qual não apenas selegitima a referida restrição, mas também se otimizam os direitos, determi-nando-lhes o máximo de eficácia possível, o que vem a respaldar a grandepreocupação atual com a problemática dos direitos fundamentais: a sua eficá-cia16. Isso porque o enunciado contido no art. 5º, XXXV, da CF/88 não quersignificar somente, como afirma Marinoni, “... direito de ir a juízo, mas tambémquer significar que todos têm direito à adequada tutela jurisdicional ou à tutelajurisdicional efetiva, adequada e tempestiva” 17.

CONCLUSÃO

O direito à tutela judicial, também conhecido como direito de acesso àjustiça, é direito fundamental previsto na atual Constituição Federal. É umdireito fundamental, porque o pedido de justiça é inalienável, não podendo

15 Norberto Bobbio, 1992, p. 42.16 Isso porque, como salienta Bobbio (1992, p. 25), “... o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não

era mais o de fundamentá-los, e sim de protegê-los”.17 Luiz Guilherme Marinoni, 1998, p. 24.

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ser negado ao cidadão, por ser um dos valores fundamentais do ordenamentojurídico.

Esse direito, entretanto, não é irrestrito, pois encontra limites quando emconfronto com outra norma oposta, igualmente legítima, quando exercidoabusivamente, em desacordo com os fins precípuos do processo civil ou quan-do conflitante com o direito da parte que lhe é adversa.

Como direito fundamental, o princípio do acesso à justiça: a) submete-seao disposto no § 1º do art. 5º da CF/88; b) o poder público e os particulareslhe estão vinculados; c) o Estado não podendo intervir na esfera da liberdadedas pessoas, faz surgir também para o cidadão um direito público subjetivo aque aquele aja estabelecendo procedimentos ou medidas; d) está guindado àcondição de cláusula pétrea, como meio de impedir a destruição dos elemen-tos essenciais da Constituição, protegendo os direitos fundamentais das refor-mas levadas a efeito pelo Poder Constituinte derivado.

Desta forma, o desrespeito ao princípio enseja exame em última instânciapelo Supremo Tribunal Federal, na qualidade de Tribunal Constitucional eintérprete supremo da Constituição.

Por derradeiro, o direito de acesso à justiça somente pode ser limitado, seem razão de outro direito ou liberdade constitucionalmente protegido, base-ado em uma causa legal, que não seja contrária ao conteúdo essencial do di-reito de acesso à justiça, e interpretada e aplicada da maneira mais favorável àefetividade do direito.

Para tanto, sugere-se a aplicação do princípio da proporcionalidade comotécnica de relativização dos direitos em conflito, pois a tutela de um deveencontrar limite na tutela do outro.

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Direito Urbanístico e PolíticaHabitacional

Urban Law and Housing Policies*

BETÂNIA DE MORAES ALFONSIN

Advogada, Mestra em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR-UFRGS,Professora de Direito Urbanístico e Municipal na Faculdade de Direito da

ULBRA; autora do Livro Direito à moradia: instrumentos e experiências deregularização fundiária nas cidades brasileiras, publicado pelo IPPUR/FASE em

1997.

“Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai, que jamaisse deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve.Contudo, existe uma ligação entre eles.”

Italo Calvino1

RESUMO

O artigo analisa a evolução da legislação urbanística do município de Porto Alegre/RS ao longo do século XX, no que diz respeito ao tratamento dispensado aos territó-rios de moradia da população de baixa renda, nesta cidade. Utilizando o DireitoUrbanístico como “mapa”, foi possível, através de ampla pesquisa, desvendar asestratégias governamentais adotadas ao longo de seis diferentes ciclos da políticahabitacional do município.Palavras-chave: Direito urbanístico, políticas habitacionais, população de baixarenda.

* O presente paper constitui resumo da Dissertação de Mestrado da autora, defendida e aprovada sob o título “DaInvisibilidade à Regularização Fundiária: A trajetória legal da moradia de baixa renda em Porto Alegre” , em maiode 2000, junto ao PROPUR – UFRGS.

1 CALVINO, Italo - As cidades invisíveis, Companhia das Letras, 1993, pg. 59.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.161-181

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ABSTRACT

The article analyzes the evolution of urban legislation in the city Porto Alegre, RioGrande do Sul State, Brazil, along the XXth Century as far as the treatment givento housing territory for the population of lower income is concerned. Using Urbanrights as a “map”, it was possible, through ample research, to unveil governmentstrategoes adopted along six differente cycles of housing policies in the county.Key words: Urban law; housing policy, low income population.

Porto Alegre é uma das cidades com a legislação urbanística mais avança-da do Brasil. Diversas pesquisas confirmam esta afirmação2. Em termos depolítica habitacional, sem dúvida alguma, está servida por um repertório bas-tante amplo de instrumentos, adotados principalmente a partir da promulga-ção da Constituição de 1988 e da Lei Orgânica do Município, de 1990.

O 2º Plano Diretor de desenvolvimento urbano ambiental, aprovado pelaCâmara de Vereadores em meados de 1999, é a culminância de um amploprocesso de avaliação da legislação urbanística do município, conduzido pelaMunicipalidade de forma bastante democrática, e com uma participação po-pular bastante satisfatória para uma peça legal essencialmente técnica. Alémda qualidade que marca o processo de elaboração do mesmo, o Plano Diretoratual se caracteriza por “consolidar” em seu corpo inúmeros instrumentosimportantes de política habitacional já incorporados pela legislação urbanís-tica do município, de forma esparsa, durante toda a década de 90.

De fato, o pesquisador desavisado, que porventura chegasse a Porto Ale-gre a fim de verificar “o estado da arte” de sua legislação urbanística, ficariamuito bem impressionado e, se não aprofundasse seu estudo e apurasse o seuolhar, poderia ser levado a crer que esta cidade SEMPRE teve esse grau deexcelência em termos de legislação, e, principalmente, este “acolhimento”do direito à cidade que o Plano Diretor atual tão bem expressa...

Este, no entanto, seria um olhar “raso” sobre a realidade, pois é precisobuscar a gênese dos processos, a fim de compreendê-los de forma mais profun-

2 Ver CARDOSO, Adauto Lúcio & RIBEIRO, Luiz Cesar - A municipalização das políticas habitacionais - Um avaliação daexperiência recente (1993-1996), abril de 1999; ALFONSIN, Betânia de Moraes - Direito à moradia - Instrumentos eExperiências de Regularização Fundiária nas cidades brasileiras,1997; RIBEIRO, Luiz Cesar (Coord.) - Questão urbana,desigualdades sociais e políticas públicas: avaliação do programa da reforma urbana no Brasil” , Relatório de Pesquisa, 1994.

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da. Linhas de continuidade ou sinais claros de ruptura? Qual a relação doatual instrumental jurídico e urbanístico, colocado à disposição para fins decondução da política habitacional do município, com a “história legislativaurbanística” da cidade e as práticas políticas conduzidas de forma sucessivapelo Poder Público a partir dela? Só é possível responder a estas indagações,investigando a história da legislação urbanística desde seu nascedouro, “iso-lando” a legislação aplicável a cada época, de forma a revelar a “identidade”de um período determinado, e estabelecendo a relação desta legislação comas estratégias públicas adotadas relativamente à presença dos territórios demoradia da população de baixa renda no espaço urbano.

Verificar a hipótese de que a legislação urbanística referente à Políticahabitacional destinada à população de baixa renda de Porto Alegre percorreu, aolongo de um século, claros e sucessivos “ciclos”, em estreita correspondência comdistintas estratégias adotadas pelo Poder Público Municipal, marcadas, estas, peloimaginário social da época respectiva, o que redundou em distintos graus de eficáciadessa mesma legislação, foi a intenção desta pesquisa histórica.

O objeto de investigação privilegiado é o próprio Direito UrbanísticoMunicipal, consubstanciado na legislação urbanística do município nesse sé-culo. Trata-se de um objeto complexo, que exigiu uma pesquisa inter-disci-plinar, buscando contribuições (i) do Direito; (ii) da História, (iii) do Urba-nismo.

A fim de responder ao problema de pesquisa colocado e verificar a veraci-dade da hipótese formulada, realizou-se uma pesquisa de campoconsubstanciada em uma “varredura” na legislação urbanística promulgadaem Porto Alegre desde a primeira legislatura, logo após a Proclamação daRepública, em 1892, até o ano de 19993.

A pesquisa de campo empreendida buscou atender a um triplo objetivo:

(i) verificar e caracterizar o tratamento dispensado pela legislação ur-banística aos territórios de moradia de população de baixa renda nomunicípio de Porto Alegre, em uma perspectiva diacrônica;

(ii) identificar “ciclos” legislativos com identidade própria e o “imagi-nário” urbanístico e ideológico que justificou, em cada períodoanalisado, a adoção política/administrativa de uma legislaçãomarcada por determinada estratégia/postura;

3 A principal fonte de consulta foi o acervo legislativo da Câmara de Vereadores de Porto Alegre

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(iii) analisar, subsidiariamente, a eficácia da legislação na condução dapolítica habitacional no ciclo correspondente.

Aqui o que importa compreender é que o Direito é tomado como fonte paraentender a História da cidade e o tratamento que esta cidade dispensou aos seus“pobres”. Por óbvio que o Direito é apenas uma dimensão desta realidade urba-na, mas se tomarmos a teoria de Boaventura de Souza Santos4 sobre o Direito,explicitada em seu célebre artigo “Uma cartografia simbólica das representaçõessociais: Prolegômenos a uma concepção pós-moderna do Direito”, saberemos que oDireito é fonte segura de orientação sobre determinada realidade:

A comparação proposta é, pois, entre mapas e direitos. O di-reito, isto é, as leis, as normas, os costumes, as instituições ju-rídicas, é um conjunto de representações sociais, um modoespecífico de imaginar a realidade que, em meu entender, temmuitas semelhanças com os mapas. (...) Esta abordagem quese pode designar por cartografia simbólica do Direito, (...)questiona radicalmente alguns dos postulados filosóficos e po-líticos da teoria liberal do Estado e do direito modernos e, poressa via, contribui para a construção de uma concepção pós-moderna do Direito. (...)

Para ser prático, o mapa não pode coincidir ponto por pontocom a realidade. No entanto, a distorção da realidade que issoimplica não significa automaticamente distorção da verdade,se os mecanismos de distorção da realidade forem conhecidose puderem ser controlados.

Passa, então, o jurista e sociológo português, a discorrer sobre a escala, aprojeção e a simbolização, como os mecanismos principais de distorção da reali-dade utilizados pelos mapas e pelo Direito, impressionando-nos com a riquezadesta metáfora. Se podemos, de fato, tomar o Direito como um “mapa”, ele atuaem diferentes escalas, representa uma realidade e adota mecanismos e símbolospara reproduzir esta realidade. Para a história que estamos querendo contar aqui,nada mais apropriado que utilizar o Direito como fonte historiográfica capaz denos reportar o imaginário social e as representações de uma época.

4 SOUZA SANTOS, Boaventura - Uma cartografia simbólica das representações sociais: Prolegômenos a uma concepção pós-moderna do Direito, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 13, janeiro-março 1996, Editora Revista dosTribunais, 1996, pg. 255-256.

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Procedida a catalogação e a análise de toda a legislação urbanística domunicípio, a qual se mostrou generosamente reveladora das posturas do Po-der Público, bem como do imaginário social de diferentes épocas, foi possívelidentificar claramente a existência de 6 grandes “ciclos” sucessivos de estra-tégias do Governo local diante das necessidades habitacionais da populaçãode baixa renda na cidade:

CICLOS DE POSTURAS e/ou ESTRATÉGIASInvisibilização da moradia de baixa renda. .

Expulsão da população de baixa renda das áreascentrais da cidade.

Provisão privada de lotes e moradias na NÃOCIDADE

A transição: Da provisão privada à públicaReconhecimento do Direito à moradia:

40 anos de (des)provisão pública de lotes emoradias

Reconhecimento do Direito à cidade,à cidadania e à diferença:Regularização Fundiária

Por óbvio, os limites deste trabalho não permitem examinar em detalhe adiversidade de diplomas legais que, vigentes à mesma época, autorizaram a iden-tificação da “tônica” predominante da política habitacional em cada um dos pe-ríodos analisados. Assim, aqui, só vamos dar alguns exemplos de legislação típicade cada um dos ciclos, destacando as características essenciais dos mesmos.

1892 A 1914 - A INVISIBILIZAÇÃO

No mundo todo, a cidade de 100 anos atrás convivia com a pobreza, “fa-zendo de conta” que ela não estava ali, ou seja, escondendo-a, invisibilizando-a, ignorando-a propositalmente nas intervenções urbanas. Londres,Manchester, Paris, Berlim, Chicago, Nova York, São Paulo, Rio de Janeiro,são exemplos estudados e documentados.5

Na Porto Alegre do início do século, a situação não era diferente. O ima-

5 Ver, a respeito: HALL, Peter - Cidades do amanhã, Perspectiva, São Paulo, 1995; BONDUKI, Nabil - Origens da habitaçãosocial no Brasil - São Paulo, Estação Liberdade/FAPESP, 1998; PESAVENTO, Sandra Jathay - O imaginário dacidade: visões literárias do urbano - Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, Porto Alegre, 1999.

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ginário operava ativamente para “invisibilizar” uma população que a elitepreferia não ver. A população de baixa renda portoalegrense, no início doSéculo, residia ainda, em sua grande maioria, no centro da cidade. Moravamem pequenas casas, de porta e janela, em becos da área central. A principaltipologia habitacional adotada, no entanto, era a do “cortiço”.

No “Regulamento Geral de Construcções”6 de 1913, encontram-se dispo-sitivos que representam lapidarmente o imaginário da época. Veja-se o quediz o § 3º do artigo 20:

Fica proibida a divisão de casas ou compartimentos de gran-des dimensões por cubículos de madeira, de modo a se estabe-lecerem sob o mesmo tecto varias famílias ou ocupantes.

Ora, o que se torna ilegal, aqui, é o cortiço. A municipalidade simplesmenteproíbe a principal tipologia de habitação dos pobres do início do século!

Plano Geral de MelhoramentosO Plano Geral de Melhoramentos de 1914, embora não se constitua em

um instrumento legal, teve força de ordenamento e, sem dúvida, como nosexplica Boaventura de Souza Santos7, foi um fenômeno/manifestação do“pluralismo jurídico”. Este conceito integra a concepção do sociólogo portu-guês que concebeu a “cartografia simbólica do Direito” e pode, sinteticamen-te, ser explicado por suas próprias palavras:

(...) ao contrário do que pretende a filosofia política liberal e oque sobre ela se constituiu, circulam na sociedade, não uma,mas várias formas de direito ou modos de juridicidade. O di-reito oficial, estatal, que está nos códigos e é legislado pelo go-verno ou pelo parlamento, é apenas uma dessas formas, se bemque tendencialmente a mais importante.

(...) [o conceito de pluralismo jurídico] trata-se outrossim,da sobreposição, articulação e interpenetração de vários espa-

6 “Regulamento Geral de Construcções”, Acto nº 96, de 11 de junho de 1913.7 SOUZA SANTOS, Boaventura - Uma cartografia simbólica das representações sociais: Prolegômenos a uma concepção pós-

moderna do Direito, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 13, janeiro-março 1996, Editora Revista dosTribunais, 1996, pgs. 259-260, 272.

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ços jurídicos misturados [o que nos conduz ao conceito deinterlegalidade]. A interlegalidade é a dimensão fenomenoló-gica do pluralismo jurídico.

Embora não tenha se tornado lei, o Plano Geral de Melhoramentos tevegrande impacto na cidade, por ser ao mesmo tempo produtor e produto doimaginário social da Porto Alegre de então. Sua força reguladora se fez sentirpor muitos anos e se ele próprio não teve status legislativo, a lei orçamentáriado município lhe destinou recursos por 4 anos, entre 1914 e 19188.

Vê-se daí a importância que o referido Plano tinha para a cidade, tantopara a municipalidade como para a sociedade de então. Essa importância de-corre de seu protagonismo simbólico. O Plano Geral de Melhoramentos pro-jetava Porto Alegre como os porto alegrenses de então gostariam que ela fos-se: moderna, higiênica e bela...

Porto Alegre, na verdade até tardiamente, se insere em um movimentoque ocorria nacionalmente e que já tinha projetado Belo Horizonte comouma cidade nova - idealizada para substituir a antiga capital das Minas Ge-rais, Ouro Preto - e que já havia promovido a “reforma urbana” do Rio deJaneiro, aos moldes das reformas levadas a efeito em Paris décadas antes peloPrefeito Haussmann.

O referido Plano Geral de Melhoramentos guiou-se pelo trinômio básico:trânsito, beleza e higiene. Essas 3 questões são colocadas na justificativa doPlano como “necessidades crescentes” da capital. As intervenções propostas,e mais tarde realizadas nestas 3 áreas, desconsideravam os pobres da cidade.Foram projetadas praças e jardins em áreas de moradia de população de baixarenda, bem como avenidas foram abertas sobre antigos becos habitados exclu-sivamente pelos pobres da cidade - como se a terra estivesse livre, nenhumapalavra sobre o destino daquela população, como se ela fosse invisível...

1915 - 1928 - A EXPULSÃO

De 1915 em diante, a legislação de Porto Alegre vai “apertar o cerco” prin-cipalmente em relação aos cortiços. Se o momento anterior foi marcado pelaINVISIBILIZAÇÃO da moradia da população de baixa renda, aqui, a estra-

8 Actos nº 117, 123, 134 e 140, de 1914, 1915,1916 e 1917 respectivamente.

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tégia adotada pela Municipalidade se torna mais explícita e mais dura com ospobres residentes na área central, constituindo-se em uma clara postura pú-blica de EXPULSÃO.

A legislação tributária e a implantação do serviço de esgotos serão as ve-detes do período, taxando e controlando os cortiços com uma estratégia queacabou por inviabilizar a presença dos pobres nas regiões de maior centralidade.

A legislação sanitarista controlava rigorosamente a obrigatória ligação aoserviço do esgoto (um serviço caro à época) dos imóveis situados na zonaurbana, multando pesadamente os prédios desprovidos deste serviço (princi-palmente em se tratando de habitações coletivas) .

O gráfico a seguir mostra, por outro lado, a evolução do imposto predialurbano durante este ciclo. Enquanto o imposto devido pelos proprietários dosdemais imóveis residenciais se manteve estável, com uma alíquota de 10%sobre o valor locativo ao longo de 12 anos, o imposto devido pelos cortiçosaumentou 4 vezes e subiu de 25% sobre o valor locativo até a escorchantealíquota de 55%.

Evolução do imposto predial urbano durante o período da EXPULSÃO

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

1916 1918 1920 1922 1924 1926 1928

CortiçosImóveis urbanos

Não é preciso dizer que esta fórmula perversa (SANITARISMO + CON-TROLE + TRIBUTAÇÃO) teve êxito na explícita estratégia do Poder Pú-blico de limpar o centro da presença incômoda dos pobres.

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Década de 30 - A ambiguidade: Provisão privada (eauto-construção) de moradias na NÃO CIDADE

A política rentista, que, em capitais como São Paulo tinham sido marcaregistrada da República Velha9, somente se tornará uma alternativa de inves-timento para os capitalistas porto-alegrenses a partir da Era de Getúlio Vargas(1930-1945). Esta política tinha 2 faces, respondendo a 2 interesses: porparte da população de baixa renda atende a uma parte da demanda por mora-dias, e por parte de quem edifica para alugar a esta população, trata-se deinvestimento seguro e de alta rentabilidade em tempos de baixa inflação.

Em Porto Alegre, o período foi dominado pelo incentivo governamental,principalmente pela via fiscal, para a produção privada de moradias. Algumasdestas leis eram sofisticadas, e se faziam acompanhar, inclusive, das plantasdas casinhas a serem edificadas. Os incentivos fiscais, no entanto, eram con-cedidos a quem edificasse na zona urbana de então, ou seja, na zona providade serviços urbanos.

Ocorre que, ao adotar esta política, o Governo, embora oficialmente tentas-se limitar a construção de novas moradias para baixa renda dentro da regiãodotada de serviços, acaba por ignorar a população pobre que foi para a periferiaem decorrência da eficácia do Ciclo da Expulsão, se desresponsabilizando pelaprovisão de serviços públicos na periferia. Assim, a contrapartida da políticaoficial é o seu oposto: a expansão clandestina da periferia através do fenômenoda auto-construção de moradias. São desta época os assentamentos humanosembriões das primeiras favelas de Porto Alegre.

Década de 40 - A transição: Da provisão privada àpública

A década de 40 representou uma espécie de transição entre o modelo deprodução privada de moradias (principalmente para fins de aluguel) para omodelo de provisão estatal de moradias. Nele observa-se um hibridismo nasestratégias e políticas conduzidas pelo Poder Público, que oscila entre assumirele próprio responsabilidades pela política habitacional ou continuar na polí-tica de concessão de incentivos à iniciativa privada, dominante no períodoanterior.

9 BONDUKI, Nabil - Origens da habitação social no Brasil - São Paulo, Estação Liberdade/FAPESP, 1998.

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Durante o Governo de Getúlio Vargas, a União passou a tomar conhecidasiniciativas na área social e habitacional. Uma delas foi a permissão legal paraque os Institutos de Aposentadorias e Pensões destinassem parte de seus recur-sos para financiar a construção de moradias para seus associados. No modelo definanciamento atodado pelos IAP’s os recursos tinham uma fonte tripartite,na qual participavam empregados, empregadores e o Estado. A participação doEstado, neste período foi determinante para o sucesso da fórmula.

Coadunando-se com a política do Governo Federal, Porto Alegre tam-bém apoiaria a provisão de moradias via isenções fiscais10, para que os Institu-tos de Aposentadorias e Pensões comprassem terrenos e edificassem para seusassociados, pertencentes a diferentes categorias profissionais.

Aproveitando-se do incentivo fiscal, o Instituto de Aposentadorias e Pen-sões dos Industriários (IAPI) veio a adquirir um terreno para fins de edificaçãode um importante conjunto habitacional na Zona Norte da cidade, por estaépoca. Tomando o nome de “Conjunto Residencial Passo da Areia”, o “IAPI”,como veio a ser conhecido na cidade, teve sua construção iniciada em 1943 efoi um dos primeiros empreendimentos habitacionais de porte de Porto Ale-gre. Com 1.691 unidades à época de sua inauguração, adotou variadas tipologias(prédios de apartamentos e casas térreas ou assobradadas), e demarcou umeixo de expansão da zona urbana da cidade em direção à Zona Norte, regiãona qual passavam a se localizar as indústrias.

Além da novidade em termos de política habitacional, por significar umempreendimento de massa, o IAPI adotou a proposta da Cidade Jardim e é,ainda hoje, bastante emblemático da influência desta proposta urbanísticano traçado de algumas regiões da cidade.

Vê-se aí a importância do IAPI como um “capítulo à parte” na políticahabitacional do município, sem precedentes e praticamente sem sucessores àaltura. Em grande parte ele foi possível por se tratar de uma política que, em-bora se tratasse de uma orientação do Governo Federal, era dotada de auto-nomia no plano local. Assim, os IAPs tinham poder de decisão para escolhertipologias, contratar arquitetos, adquirir terrenos, etc. Porto Alegre, no casodo “Conjunto habitacional Passo da Areia”, saiu lucrando, pois, através daconcessão de um incentivo fiscal, viu erguer-se uma obra que tanto do pontode vista social como urbanístico e arquitetônico tornou-se uma referência.Tanto que hoje, o IAPI é “patrimônio cultural” do município.

10 Decreto-lei nº 96, de 17 de abril de 1942.

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1950 -1988 - DIREITO À MORADIA: 40 ANOS DE(DES)PROVISÃO PÚBLICA DE LOTES E MORADIAS

O período que vamos examinar agora abrange 40 anos durante os quais atônica foi a forte intervenção estatal, das diferentes esferas governamentais,no problema da moradia de baixa renda. No início dos anos 50, a populaçãobrasileira chegava já a mais de 40 milhões de pessoas e a capital do Rio Gran-de do Sul, nosso objeto aqui, já beirava os 400 mil habitantes11.

Porto Alegre já havia dado passos importantes no caminho da assunçãoadministrativa da política habitacional, mas será em 1952 que teremos, atra-vés da Lei nº 98212, a criação do Departamento Municipal da Casa Popular.A iniciativa, sem precedentes institucionais, demonstra a importância dis-pensada no período à política habitacional, já que a lei também trazia em seucorpo importantes instrumentos de incremento à política habitacional nacidade, tais como uma pioneira taxa de financiamento da casa popular, a sercobrada sobre o custo total de toda nova construção com área superior a cen-to e cinquenta metros quadrados (150 mts2). As medidas dão conta de umdefinitivo envolvimento do Poder Público com a questão habitacional e como reconhecimento do direito à moradia de uma população de baixa rendacada vez mais numerosa.

De fato, a cidade crescia em ritmo acelerado e, no final da década de 50, apopulação de Porto Alegre já era 60% maior do que em 195013. Este cresci-mento espantoso, com certeza era ainda maior nas áreas faveladas, que nãocessavam de se expandir. Também pudera, com o país tendo experimentado,na “Era Juscelino Kubitschek”, um crescimento econômico considerável, umagrande massa populacional havia migrado para os centros metropolitanos embusca de emprego e renda, em um fenômeno de caráter nacional.

O crescimento das favelas, no entanto, não foi capaz de sensibilizar o gru-po de urbanistas que durante a década de 50 elaborou o Plano Diretor de1959, uma pérola do urbanismo modernista. Neste Plano, o Zoneamento eraa palavra de ordem, a espinha dorsal, o núcleo estruturador da proposta urba-nística apresentada pelos planejadores à Câmara. A lei, extremamente técni-ca, não atingia a totalidade do território do município e somente as zonas de

11 Fonte: IBGE - Dados históricos dos censos (http://www.ibge.gov.br/)12 Lei nº 982, de 19 de dezembro de 1952.13 Segundo dados do IBGE, a população de Porto Alegre passou de 394.151 em 1950 para 641.173 em 1960.

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maior centralidade mereceram a atenção do planejador urbano. Aliás, ironi-camente o resto da cidade nem aparece no mapa, literalmente como se nãoexistisse, em um resquício do primeiro ciclo que examinamos, o da“Invisibilidade”, no qual uma espécie de véu se estende sobre as moradias dapopulação pobre. Enquanto uma parte da cidade é ultra-regulamentada, a“outra”, a “marginal”, é uma terra de ninguém, sobre a qual não incide a“ordem urbanística14“.

Seria então, dotada de uma nova ordem urbanística, consolidada no Pla-no diretor de 59, que Porto Alegre seria atingida pela repressão instalada peloGolpe Militar de 1964 e pelos reflexos igualmente nefastos havidos na Políti-ca Urbana e Habitacional conduzida no país. Para além do autoritarismo po-lítico, que redundaria na sufocação da vida democrática brasileira, os milita-res impuseram um modelo absolutamente centralizador das políticas públicasdesenvolvidas nesta área, uniformizando a produção habitacional e os pro-blemas urbanos das grandes cidades.

Pela Lei nº 4380 de 21/08/1964, o Governo Federal, através do Minis-tério de Planejamento, criava o Banco Nacional de Habitação (BNH)como órgão de cúpula do Sistema Financeiro para a aquisição da CasaPrópria (Sistema Financeiro de Habitação - SFH), instalando um novoperíodo na história da produção habitacional no Brasil. Ambicioso, o pro-jeto dos militares pretendia, conforme documentos do próprio GovernoFederal15, construir mais de 140.000 casas anuais e absorver um déficithabitacional estimado em 4.600.000 casas em 1966. Por força da criaçãodo BNH foram criadas também, em todo o país, Companhias de Habita-ção, estaduais e municipais.

Em 1965, de fato, através da Lei nº 2.90216, seria reestruturado, sob adenominação de Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB), oDepartamento Municipal da Casa Popular. A lei é um testemunho do pen-samento hegemônico à época, e portanto, uma fonte importante de inter-pretação do imaginário social de então a respeito de nosso objeto de estudo.Vale a pena reproduzir na íntegra o Capítulo I da lei, constituído de apenas1 artigo:

14 O termo é cunhado por Raquel Rolnik. A cidade e a lei - Legislação, Política Urbana e Territórios na cidade de São Paulo”,Studio Nobel, FAPESP, São Paulo, 1997, pg. 14.

15 MINISTÉRIO DA FAZENDA - BRASIL - A Política Habitacional Brasileira: Banco Nacional de Habitação; PrimerCongresso Inter americano de la vivienda, Outubro de 1966, Santiago, Chile, pg. 8.

16 Lei nº 2.902, de 30 de Dezembro de 1965.

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“Capítulo I - Da Política Habitacional

Art. 1º - O Prefeito orientará a política habitacional geral e deinteresse social no Município, em harmonia com os Gover-nos da União e do Estado, através do Departamento Muni-cipal de Habitação.

§ 1º - Habitação de interesse social, neste caso, é aquela desti-nada a substituir por melhores padrões arquitetônicos asatuais moradias vulgarmente denominadas, em nossomeio, “Malocas”.

§ 2º - Política Habitacional de interesse social é a que visa aretirar das habitações marginais urbanas seus atuais mo-radores, proporcionando-lhes novas e melhores moradias paraintegrá-los na vida espiritual, econômica e cultural da comu-nidade.” (grifos meus)

Os textos grifados visam traduzir o “espiríto”, a essência desta lei. Prelimi-narmente aparece claramente o perfilamento do órgão recém criado à políti-ca federal. A lei não usa subterfúgios, em segundo lugar, para estabelecer osobjetivos do DEMHAB, que eram literalmente, segundo os conceitos intro-duzidos neste artigo 1º, remover as “malocas” e junto com elas a população“marginal” que as ocupa. Especialmente esta faceta da política seria conduzidacom grande eficácia nos anos seguintes. Assim, vê-se que, quando a tônica doperíodo é a provisão pública de moradias, não faltam resquícios de Ciclos an-teriores, notadamente do Ciclo de Expulsão. Sob os auspícios da política deprovisão pública de moradias, então, Porto Alegre experimentaria, nas déca-das seguintes, um crescimento expressivo do número de favelas e loteamentosclandestinos e irregulares, resultante de uma absoluta incapacidade governa-mental de atender à imensa demanda por novas moradias para a populaçãode baixa renda.

Às vésperas da promulgação do 1º Plano Diretor de DesenvolvimentoUrbano de Porto Alegre (1º PDDU), em 1979, a população de baixa renda domunicípio vivia sérias dificuldades para resolver seus problemas de moradia,tendo a auto-construção da casa, muitas vezes como única saída. Em plenaDitadura Militar, e no auge da ideologia desenvolvimentista que marcou asrealizações urbanas do Estado pós-64, no entanto, os planejadores urbanosque elaboraram o Plano Diretor de 1979, não foram suficientemente sensí-veis para o problema.

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Elaborado sem qualquer participação popular, consoante os costumes dostécnicos contemporâneos da Ditadura Militar, o Plano dedicou apenas 1 arti-go17 (dentre 384) aos territórios de moradia de população de baixa renda. Oartigo criava as “‘Areas Funcionais de Recuperação Urbana”. O termo “áreafuncional” trai a visão funcionalista de cidade e, se a área é de “recuperaçãourbana”, subjaz a idéia de que ela está, em verdade, perdida para a cidade, ou“funcionando mal”, ou, voltando às metáforas que acompanharam os assenta-mentos auto-construídos desde o início do século XX, são áreas “doentes”, queprecisam ser tratadas, no caso, através da instituição de uma A.F.R.U. Indepen-dentemente das críticas teóricas que possam ser feitas ao instrumento, é precisodizer que sua eficácia foi praticamente nula. Apenas umas poucas AFRUS fo-ram instituídas ao longo de mais de 20 anos de vigência do 1º PDDU...

Melancólica e caótica era a situação dos pobres da cidade e de seus locais demoradia, portanto, quando o país atravessava a transição para a Democracia einiciava o processo constituinte que redundou na promulgação da Constitui-ção Federal de 1988. A Carta Federal inauguraria um capítulo radicalmentenovo na História da política habitacional brasileira, e ainda mais, da políticaconduzida nesta área pelo Poder Público em Porto Alegre, como veremos.

1988-2000 - DIREITO À CIDADE: AREGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

No decorrer da década de 80, quando o país iniciou a transição democrá-tica, ficou claro o desejo da sociedade por mudanças. Vinte anos de DitaduraMilitar haviam reprimido as manifestações populares, violado os direitos hu-manos individuais e coletivos e deteriorado as condições materiais de vida damaioria da população. O movimento pelas “Diretas JÁ”, em 1984, no entan-to, demonstrou que as energias sociais tinham estado apenas adormecidasdurante os anos de chumbo e que despertavam com insuspeitado vigor, dis-postas a conduzir o país novamente à Democracia. O desdobramento naturaldesta busca pelo reequílibrio da vida nacional, só poderia ser um: a exigênciade uma nova Ordem Constitucional, que pudesse, definitivamente, reinstauraro Estado Democrático de Direito no Brasil.

Foi assim que, a partir de 1986, quando se iniciou o processo constituinte,

17 Artigo 49 da Lei complementar nº 43/1979.

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o conteúdo que assumiria a nova ordem constitucional pautou as agendas dospartidos políticos e dos movimento sociais, de Norte a Sul do país. Tambémna área que estamos investigando, houve intensa movimentação. Entidadesnão governamentais, pesquisadores, sindicatos, profissionais liberais e movi-mentos sociais urbanos trataram de consolidar, em uma “Emenda Popular daReforma Urbana”18, as reivindicações, propostas e instrumentos urbanísticosque pretendiam ver contemplados na Nova Carta, a fim de intervir no caossocial em que haviam se transformado as cidades brasileiras.

Segundo Orlando Santos Júnior19, a tal emenda abordava inúmeros te-mas: Dos Direitos Urbanos; Da Propriedade Imobiliária Urbana; da PolíticaHabitacional; Dos Transportes e Serviços Públicos; Da Gestão Democrática daCidade. Tinha 23 artigos, que, após o embate com o “Centrão”20, se tornaramo Capítulo “Da Política Urbana” da Constituição Federal de 1988, com ape-nas 2 artigos. Apesar da aparente derrota, as conquistas foram bastante signi-ficativas, como veremos.

Edesio Fernandes21 lembra que o princípio da Função Social da Proprieda-de estava presente em todas as Constituições Brasileiras desde 1934, mas aqui,pela primeira vez, ela apareceu como um princípio estruturador da PolíticaUrbana no país. Além disto, a Constituição Federal22 delegou aos municípiosa condução desta mesma política urbana, dando-lhes poder para coibir osabusos especulativos praticados por proprietários inescrupulosos. Como se sabe,a maior parte das favelas brasileiras se ergueu sobre “vazios urbanos”, ou seja,áreas privadas, cujos proprietários aguardavam a valorização decorrente dosinvestimentos públicos realizados no entorno dos terrenos. A dinâmica é bemconhecida: a terra, tornada mercadoria no regime capitalista, é compradabarata já que desprovida de infra-estrutura. O proprietário, que trata o espaçourbano como “investimento”, deixa a terra ociosa e espera que, ao longo dosanos, a provisão de serviços e equipamentos públicos dote a gleba de infra-estrutura e com isto o terreno passe a valer bem mais do que o valor original-mente pago pelo mesmo.

18 SAULE JÚNIOR, Nelson - Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento Constitucional da PolíticaUrbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1997, pg. 25.

19 SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos - Reforma Urbana - Por um novo modelo de planejamento e gestão das cidades. Riode Janeiro, FASE/UFRJ, 1996. Pg. 46.

20 “Centrão” foi a alcunha dada nos meios políticos e na imprensa nacional à aliança Centro-direita que impediu que aspropostas mais progressistas passassem na Assembléia Nacional Constituinte.

21 10 FERNANDES, Edésio - Direito e urbanização no Brasil in FERNANDES, Edésio (organizador) -Direito Urbanístico,Livraria Del Rey Editora, São Paulo, 1998, pg. 213.

22 Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.

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Os constituintes reconheceram a perversidade desta dinâmica e, no § 4ºdo artigo 182, permitiram ao poder público exigir adequado aproveitamentoda terra urbana, sob pena de parcelamento ou edificação compulsória, IPTUprogressivo no tempo e, em última instância, desapropriação. Além disto, noartigo 183, ficou consagrada a maior vitória do Movimento Nacional pelaReforma Urbana:

“Art. 183 - Aquele que possuir como sua área urbana de até250 mts2, por cinco anos, ininterruptos e sem oposição, utili-zando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á odomínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel ur-bano ou rural. “.

O artigo 183 da Constituição Federal, que incorporou a Usucapião urbanapara fins de moradia, tem uma importância capital, portanto, para nossa in-vestigação aqui. Veja-se, em primeiro lugar, que ele se relaciona com o anteri-or, punindo também o proprietário que deixa a gleba urbana vazia, já que suainércia permitiu a ocupação e dará as condições para que os posseiros possamrequerer em Juízo a Usucapião-moradia. Em segundo lugar, o artigo implicaum reconhecimento da falência da política habitacional conduzida durantetodo o período da Ditadura Militar, já que há implícita nessa redação a com-preensão de que milhares de famílias brasileiras, de fato, na ausência de polí-tica pública com capacidade de atender a demanda habitacional de baixarenda no país, auto-construíram suas moradias em terrenos vazios, que foram“ocupados” para que essa população pobre pudesse exercer o mais elementardos direitos humanos: o direito de morar. Mais do que isso, o artigo não reco-nhece apenas um “fato”, reconhece um “direito” que emerge desse fato: odireito de permanecer no local ocupado, adquirindo a propriedade da terraocupada.

Estas disposições da Constituição Federal revolucionaram as possibilida-des da política urbana e habitacional brasileira. Pela primeira vez, o tema“Habitação” foi colocado no centro da política urbana, rompendo com déca-das de marginalização da questão pelos planejadores urbanos marcados pelaideologia desenvolvimentista, que sempre tratou com explícito preconceito“o problema” dos territórios de moradia da população de baixa renda.

Porto Alegre, como já se ressaltou na introdução deste trabalho, foi umadas cidades que melhor aproveitou o “gancho” da Constituição Federal parainovar em termos de Política Urbana e Habitacional. Para tanto, dois aconte-

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cimentos foram fundamentais. Em 1989, Porto Alegre elege uma Frente Po-pular encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores, tendo Olívio Dutra comoPrefeito, e um slogan de campanha baseado na “Coragem de Mudar”. Alémdisto, a Câmara de Vereadores promulgou, em 1990, a Lei Orgânica do Muni-cípio23, incluindo aí um capítulo intitulado Da Política e Reforma Urbanas,cujo conteúdo foi detalhadamente debatido por vereadores comprometidoscom as bandeiras da Reforma Urbana e por um Fórum de mais de 100 institui-ções que acompanhou ativa e propositivamente o processo constituinte mu-nicipal.

Na Lei Orgânica de Porto Alegre foram previstos e posteriormente regu-lamentados os seguintes instrumentos :

• Função social da Propriedade - IPTU progressivo no tempo

• Programas de Regularização Fundiária

• Apoio à usucapião urbana

• Concessão do direito real de uso

• Fundo Municipal de Desenvolvimento

• Solo Criado

• Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação

• Áreas Especiais de Interesse Social - AEIS

Embora não haja como detalhar aqui as características de cada um destesinstrumentos, é preciso registrar que, somados, permitem ao Poder Públicocosturar firmemente política urbana e política habitacional. Mais importan-te do que a mera previsão destes instrumentos é o fato de que a Prefeituraorganizou, a partir de 1990, um Programa de Regularização Fundiária, quetinha à disposição instrumentos jurídicos, urbanísticos, financeiros e de de-mocratização da gestão da política habitacional. O Programa passou a atuarcom uma concepção radicalmente nova de Política Habitacional, na qual seevoluía de Direito à moradia para Direito à cidade.

Basicamente, neste novo momento a “auto-construção” da moradia (e dacidade) é reconhecida, e, mais do que isto, valorizada, pela Administração.

23 Lei orgânica do Município de Porto Alegre, de 21 de setembro de 1990, CORAG, Porto Alegre, 1990.

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Finalmente, o direito à moradia deixa de ser direito apenas a “4 paredes” epassa a ser Direito à cidade, à moradia adequada e à cidadania. Mais de100 assentamentos auto-produzidos são indicados, via OrçamentoParticipativo24 e gravados como áreas especiais de interesse social para fins demanutenção de moradias de população de baixa renda através de interven-ções de Regularização Fundiária.

A Regularização Fundiária, carro chefe da nova política habitacional domunicípio, foi implantada com uma concepção pluridimensional, implican-do (i) ampliação da segurança no exercício do direito de morar, (ii) Melhoriado ambiente urbano do assentamento (iii) Sustentabilidade ambiental urba-na (iv) resgate ético da cidadania dos beneficiados pela intervenção.

Mesmo enfrentando uma série de obstáculos (administrativos, jurídicos,econômicos, culturais), a Política começa lentamente a dar resultados e hojejá se tem territórios de moradia de população de baixa renda dignamente re-gularizados no tecido intra-urbano da cidade de Porto Alegre. A participaçãoativa da população beneficiária é sabidamente uma das condições para o su-cesso da Regularização e, nesta cidade, ela existe, embora possa sempre serampliada.

CONCLUSÃO25

O Direito Urbanístico Municipal foi uma fonte generosa na confirmaçãode nossa hipótese. As sucessivas estratégias do Poder Público resultaram per-feitamente caracterizadas e os ciclos de política habitacional vividos pelomunicípio tornaram-se perfeitamente identificáveis pela predominância deestratégias determinadas. Sugere-se que estes “ciclos”, com pequenas varia-ções cronológicas, observaram-se no Brasil todo ao longo do século XX.

A análise dinâmica destes ciclos permite concluir que as “estratégias” do-minantes em cada um deles, embora se constituindo em tendência hegemônica

24 O orçamento participativo é um instrumento de democratização da gestão do orçamento público municipal de PortoAlegre, criado pela “Administração Popular” e implantado em suas três gestões (1989-1992; 1993-1996 e 1997-2000).Funciona incorporando a participação popular (por regiões da cidade e por “temáticas”) na discussão da peçaorçamentária, em especial dos investimentos a serem realizados pelo município. Implantado desde 1989 não foiregulamentado legalmente.

25 A conclusão desta investigação foi ligeiramente alterada a partir da singular contribuição de Raquel Rolnik a quemagradeço pela competente avaliação.

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de um período determinado, não se esgotaram no interior do mesmo. Pelocontrário, foram observadas vários “sombreamentos” e “interpenetrações”.De fato, o que se constatou foi que algumas das posturas governamentaisremanesceram para além do seu ciclo original, vindo a marcar a PolíticaHabitacional de grande parte do período analisado, ressurgindo em diplomaslegais e práticas públicas conduzidas anos mais tarde pela Prefeitura Munici-pal, comprovando sua influência para além do ciclo em que surgiram e domi-naram.

Assim, podemos dizer, por exemplo, que a INVISIBILIZAÇÃO e a EX-PULSÃO, estratégias predominantes nos primeiros ciclos identificados, mar-caram inúmeras iniciativas da política habitacional conduzida anos mais tar-de pelo BNH - Banco Nacional de Habitação, por exemplo. Da mesma for-ma, diante da incapacidade do Poder Público em atender ao conjunto da de-manda por moradias, notamos que durante o longo ciclo em que o Estadoassumiu a provisão de moradias como uma responsabilidade sua, houve mo-mentos em que mal-disfarçadamente o Poder Público apoiou a provisão pri-vada de moradias, quer através de “anistias” a loteamentos clandestinos e ir-regulares, quer através de uma tolerância à auto-construção de moradias.

As características do ciclo inaugurado com a Constituição de 88 em PortoAlegre, no entanto, apontam para uma ruptura paradigmática com as estra-tégias de modelos anteriores. Ao passo que as posturas governamentais dosciclos antecedentes promoviam segregação sócio-espacial, a regularizaçãofundiária tem potencial para amenizar significativamente o problema, embo-ra não seja possível nos limites deste trabalho demonstrar claramente estaevidência. De qualquer forma, o desenho a seguir anexado esclarece nossavisão ao graficar os ciclos em sua sucessão cronológica, bem como os ciclosreciprocamente considerados.

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No que diz respeito à eficácia da legislação em cada um dos ciclos, pode-mos apresentar o seguinte quadro-resumo:

A eficácia das estratégias predominantes em cada Ciclo

Ciclos EficáciaInvisibilização Alta

Expulsão AltaProvisão privada Baixa

Transição AltaProvisão pública Baixa

Regularização Fundiária Média

De fato, no que diz respeito ao último ciclo, o da Regularização Fundiária,aquele que representou a grande ruptura paradigmática em termos de políticahabitacional no município, não se pode dizer que este programa tenha alcan-çado altos níveis de eficácia, inclusive a julgar pelo próprio mapa da irregula-ridade construído pela Secretaria do Planejamento Municipal em 1998 e queaqui se anexa. Mesmo considerando que muitas destas áreas já são objeto deintervenção para fins de Regularização, um Programa desenvolvido desde 1990já poderia ter resultados mais significativos.

Por óbvio, não imaginamos que tenhamos chegado ao “Fim da História”da política habitacional de Porto Alegre. Pelo contrário: mais do que nunca épreciso avançar no sentido de incorporar a população de baixa renda à ordemurbanística. Para além do direito à cidade, é preciso construir o direito àprodução regular da moradia também para este segmento populacional.

De qualquer forma, é inegável que a política habitacional em curso, umaradical novidade no município, com as meritórias características que lhe sãoinerentes, promete muito para o novo século. Esperemos, então, que cada vezmais se alarguem os horizontes daqueles que tiveram o privilégio de viver aotempo em que, finalmente, o direito à moradia é reconhecido como parteinalienável dos direitos humanos e o direito à cidade é uma aposta coletivade que se pode vencer a segregação sócio-espacial e construir uma Cidadepara todos no século que se inicia.

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Alimentos transgênicos e o direitoTransgenic foodstuffs and Law

MÁRCIA FERNANDES SAITOVITCH*

Especialista em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo –USPMembro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Sul

Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.

RESUMO

Este artigo tem como finalidade contribuir de alguma forma para o debate quecertamente vai marcar este século, sobre a biotecnologia agrícola e consequentementesobre os alimentos transgênicos. Inicialmente define o que é biotecnologia e o quesão os alimentos transgênicos; na seqüência, trata do assunto tomando como pontode partida a legislação pátria referente ao Direito Ambiental e ao Direito de Propri-edade Intelectual, objetivando abordar também, além das fronteiras jurídicas, asdiversas opiniões sobre o tema, expressas por empresas de biotecnologia, cientistas,organizações não governamentais, consumidores, entre outros. Por fim, discute opapel dos alimentos transgênicos na erradicação da fome no mundo.Palavras-chave: Biotecnologia, alimentos transgênicos, direito ambiental, direitode propriedade intelectual, fome.

ABSTRACT

This article aims at contributing with the debate on agricultural biotechnology, whichalready is an important issue in our century. Initially, it conceptualizes biotechnol-ogy in general and more specifically biotechnology in food. Afterwards, it analysesthe legality of transgenic food taking into account the Brazilian law on Environ-mental Rights and the Intellectual Property Rights. The author goes further in the

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.183-204

* A autora deseja agradecer ao Professor Dr. Plauto Faraco de Azevedo pela revisão criteriosa deste artigo, assim como peloseu apoio e estímulo para o desenvolvimento deste estudo.

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debate on the matter among biotechnology companies, scientists, journalists andnon-governmental organisations (NGO), among others. Finally, it discussestransgenic food and the context of starvation in the world.Key words: Biotechnology, transgenic food, Brazilian Environmental Rights, Bra-zilian Intellectual Property Rights, starvation.

I- INTRODUÇÃO

“O progresso ingressa no direito e mexe com os nossos concei-tos e tradições.” Galeno Lacerda 1

No final de século XX, a engenharia genética proporcionou avanços rele-vantes e significativos em inúmeras áreas da ciência, provocando um grandedebate ético em todo o mundo.

Estas transformações científicas têm colocado em cheque muitos dos con-ceitos sobre os limites da ciência e desencadeado novos questionamentos quetranscendem os argumentos científicos, abrangendo as questões éticas, cul-turais, econômicas, sociológicas, políticas e jurídicas.

Dentre estes avanços, podemos citar o mapeamento de toda a seqüênciada estrutura do DNA humano - projeto genoma - e o desenvolvimento dabiotecnologia agrícola com a transformação de plantas e vegetais.

Este novo século, “século da biotecnologia”2, começou marcado pelas gran-des discussões em torno da biotecnologia agrícola - alimentos transgênicos -além do desenvolvimento gerado na área da agricultura e na indústria de ali-mentos. Diz Jeremy Rifkin: As indústrias se movimentam rapidamente para fazerdos animais e lavouras geneticamente construídos uma realidade comercial até ofinal do século XXI. 3

O Brasil tem uma importância fundamental nas discussões sobre este tema,pois é o país que lidera a lista dos países de megadiversidade biológica do pla-neta, à frente da Colômbia, México, Madagascar e Indonésia; cobre 48% da

1 LACERDA, Galeno - Pensamento manifestado em aula em Porto Alegre, no dia 04 de setembro de 1999.2 RIFKIN, Jeremy, O século da Biotecnologia, 1ª ed., São Paulo: Makron Brooks, 1999.3 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg. 85.

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superfície total da América do Sul e contém cinco dos maiores biomas destecontinente (Amazônia, Floresta Atlântica, Caatinga, Cerrado e Pantanal)4.

É indiscutível que estes novos conceitos científicos, dentre eles, o de ali-mentos transgênicos, têm gerado grandes debates em todo o mundo, despertan-do o interesse não só dos cientistas, como das pessoas, das comunidades, dasempresas, das ONGs (organizações não governamentais), dos governos, etc.

As opiniões estão bastante divididas com relação aos efeitos benéficos emaléficos, a médio e longo prazo, dos alimentos transgênicos, no meio ambi-ente, na saúde da humanidade, no desenvolvimento econômico e naerradicação da fome.

Este artigo tem como objetivo desenvolver alguns dos pontos acima referidos,sempre tendo como parâmetro o direito brasileiro. Ele está dividido em três tópi-cos principais e conclusão. No primeiro tópico, delimitamos o conceito e qualifi-camos os alimentos transgênicos e, especificamente, referimos algumas das téc-nicas de biotecnologia que têm sido aplicadas na área da agricultura; no segundo,abordaremos algumas questões do Direito Ambiental brasileiro e da biotecnologiavegetal; no terceiro, trataremos de alguns aspectos concernentes ao Direito dePropriedade Intelectual na área da biotecnologia vegetal e dos alimentostransgênicos, e no quarto e último, traçamos um paralelo entre a erradicação dafome e os alimentos transgênicos. Finalmente, apresentamos algumas conclusões.

II -CONCEITO

Há mais de dez mil anos, desde a descoberta da agricultura para a subsistên-cia humana, o homem utiliza técnicas convencionais de transferência genéticaentre animais e entre vegetais intimamente relacionados, híbridosintraespecíficos. Estas técnicas têm como finalidade o aumento de variabilida-de das espécies, caracterizando-se basicamente pela transferência genética atra-vés da hibridização sexual e pela indução de mutações por radiações ou agentesmutagênicos químicos5. Entretanto, os resultados alcançados com as referidastécnicas são limitados pelo número de combinações genéticas possíveis.

4 Recomendações e Conclusões dos Grupos de Trabalho produzidos em virtude do Seminário - Clonagem e transgênicos -Impactos e Perspectivas – realizado entre 08 a 10 de junho de 1999 no Senado Federal, Brasília.

5 ZANETTINI, Maria Helena Bodanese e PASQUALI, Giancarlo, Plantas Transgênicos – Uma nova ferramenta para omelhoramento genético vegetal, patrocinado por FIERGS, CIERGS, FARSUL, SENAR E UFRGS, p. 09, PortoAlegre, 1999.

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Hoje, os limites impostos pelas técnicas convencionais estão sendo trans-postos pelas novas técnicas de biotecnologia. Especificamente os alimentostransgênicos (AT) ou organismos geneticamente modificados (OGM) sãoproduzidos através das modernas técnicas de engenharia genética. Basicamen-te, estas técnicas permitem o transplante de genes6 específicos de uma espécie(doadora) para outra espécie (receptora), sem que ditas espécies estejam rela-cionadas entre si, quebrando a seqüência de DNA (ácido desoxirribonucléico)do organismo receptor e provocando uma reprogramação de sua seqüência deDNA, o que capacita a espécie a produzir novas substâncias. A grande revo-lução da biotecnologia consiste em possibilitar que a transferência de genespossa ser realizada com mais precisão, se comparada às técnicas convencio-nais, pois são transferidos genes específicos de interesse7. Isto possibilita que es-tes genes sejam funcionais em outro DNA, alterando características específi-cas e produzindo modificações desejadas nas espécies receptoras.

O que diferencia a biotecnologia das técnicas convencionais é a atuaçãoem nível molecular, fisiológico e bioquímico. Estes fatores possibilitam a reti-rada de fragmentos genéticos específicos, para que sejam transferidos a outraespécie. Desta forma, a biotecnologia possibilitou que fossem isolados eclonados genes de bactérias, plantas e animais, para introduzi-los e expressá-los em plantas, alterando seu código genético. O transplante de genes pode sedar entre espécies vegetais ou animais, assim como também genes de um ani-mal podem ser introduzidos em uma planta e vice versa.

Outra questão relevante, debatida pelos críticos das plantaçõestransgênicas, é o uso ainda maior de herbicidas, tornando as ervas daninhascada vez mais resistentes aos seus efeitos e o aumento constante de agrotóxicose de produtos químicos, podendo provocar a contaminação do solo, da água,dos animais e dos seres humanos. Espécies transgênicas daninhas podem ocor-rer quando espécies híbridas, que se tornarem ervas daninhas, transmitam otransgene para gerações subseqüentes, criando assim as ervas daninhastransgênicas. Neste sentido, foi comprovado, em estudos realizados por pes-quisadores da Universidade Charles Sturt, em New South Wales, Austrália,que uma erva daninha comum na Austrália, chamada azevém, está tornando-

6 Unidade funcionais que o compõem o DNA. Assim as características totais de uma planta dependerão de quais genes foramrecebidos das plantas genitoras, da expressão (funcionamento) ou não destes genes e, também, de interação entre os genes edestes com fatores ambientais., ZANETTINI, Maria Helena Bodanese e PASQUALI, Giancarlo, Op. Cit., p. 09.

7 Por exemplo: a transferência de genes que conferem resistência contra a uma determinada praga, para as sementes deuma espécie vegetal.

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se cada vez mais resistente ao Roundup, herbicida venenoso produzido pelaempresa Monsanto, podendo tolerar até quatro ou cinco vezes a dose reco-mendada.8

Há também trabalhos desenvolvidos pela indústria agrícola de espéciestransgênicas, no sentido de possibilitar que todas as células da planta produ-zam, automaticamente, inseticidas. Pode-se mencionar, como exemplos, umaespécie de milho (milho maximizante), produzido pela empresa Novartis, re-sistente a pragas, e uma espécie de tabaco, também resistente a pragas, daempresa Rohm and Haas. Referidas espécies são produzidas com a introduçãode uma bactéria, encontrada naturalmente no solo, uma arma natural contrainsetos e pragas, o bacillus thuringiensis; esta bactéria produz uma proteína,chamada Bt prototoxina.

Algumas espécies transgênicas foram programadas para ter em seu DNAa proteína Bt, em função do que esta proteína torna-se imediatamente ativaapós sua produção pelas plantas, ao contrário do que ocorre em situações na-turais, quando ela deve ser ativada pelos ácidos estomacais de insetos e pra-gas.

Os agricultores de plantações orgânicas utilizam-se de referida protéina,Bt prototoxina, na pulverização de suas plantações e, por este motivo, há umapreocupação muito grande destes agricultores com o fato de que estas lavou-ras transgênicas com o Bt prototoxina possam criar espécies resistentes a inse-tos e pragas, tornando o Bt “natural” absolutamente ineficaz. Além disso, acorrespondente transgênica da proteína Bt prototoxina, permanece tóxica nosolo por três vezes mais tempo que a proteína natural, além de ser mais letal.9

Neste sentido, a ONG Greenpeace sustenta que os organismos genetica-mente modificados (OGM) são devastadores do meio ambiente e, como exem-plo, menciona o milho transgênico. Com base em estudos publicados na re-vista Science e Nature, referidos pelo jornal Folha de São Paulo10 e11, o pólen domilho transgênico pode matar as larvas da inofensiva borboleta monarca.Da mesma forma, o milho transgênico com a toxina natural Bt, produzidapela bactéria Bacillus thuringiensis, poderá disseminar nas espécies de lagartas

8 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.87.9 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.88.10 Folha de São Paulo, 05 de maio de 1999, pg. 18.11 Folha de São Paulo, 5 de agosto de 1999, pg.19.

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e insetos esta resistência, o que, conseqüentemente, poderia criar populaçõesinvulneráveis ao Bt.

Há pesquisas na indústria agrícola, utilizando-se das técnicas dabiotecnologia, para criar espécies vegetais que automaticamente possam evi-tar vírus comuns a elas, ou seja, criar lavouras resistentes a vírus. A pesquisaconsiste, basicamente, na inserção de genes com revestimentos virais em es-pécies vegetais, com a finalidade de proteger estas espécies de infeções causa-das pelos vírus respectivos. O que, sem dúvida, é bastante tentador para osagricultores e é uma fonte certa de lucros às empresas produtoras.

O risco derivado destas espécies transgênicas, resistentes a vírus, é osurgimento de novas espécies de vírus, absolutamente desconhecidos comcaracterísticas inéditas e surpreendentes, através da recombinação deles comdiferentes genes de outros vírus presentes na natureza. Para muitos, a perspec-tiva da criação de novas espécies de vírus é preocupante e abala enormemen-te a segurança do meio ambiente.

Acrescenta-se a esta preocupação da produção de espécies de vírus desco-nhecidos a possibilidade de migração sem controle de novas espéciestransgênicas daninhas - que são correspondentes transgênicos de ervas dani-nhas silvestres12 - o que poderia provocar uma nova e virulenta forma de polui-ção genética13.

Contrariamente, os representantes da indústria agrícola biotecnológicaafirmam ser esta uma possibilidade muito pequena, em função da inexistênciade produção de lavouras comerciais próximas a suas correlatas silvestres. En-tretanto, estudos têm demonstrado que há a migração de genes, a qual não éfacilmente controlada ou mesmo detectada. Rifkin, referindo-se a estes estu-dos, escreve: cientistas cultivaram batatas geneticamente modificadas, que conti-nham um gene resistente a antibióticos. Em áreas com distancias variadas foi entãoplantada a batata comum. Das sementes coletadas em batatas, cultivadas a até 1.100metros de distância da lavoura transgênica, 35% continham o gene resistente.14

As correntes, que defendem a segurança e a utilização dos alimentos

12 Pode ocorrer que espécies hibridizadas se tornem ervas daninhas e retrasmitam o gene para gerações futuras; o fluxo degenes entre culturas e espécies de ervas daninhas correlatas é estudado por biólogos, desde o século passado. Porexemplo: o arroz silvestre, hibridizado com o cultivado, fez surgir um arroz silvestre daninho, que freqüentemente se misturaàs culturas, causando incalculáveis problemas para a agricultura. RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.92

13 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.93.14 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.94.

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transgênicos, tais como as empresas transacionais, governos e cientistas atu-antes na área da biotecnologia agrícola, entendem que as espécies transgênicastestadas, como por exemplo, o trigo, o milho e a soja, não sofrem alteraçõesquímicas e não fazem mal à saúde das pessoas, levando-se em consideração osgraus toleráveis de toxicidade e alergenicidade. Da mesma forma, consideramque a plantação de respectivas sementes não causaria danos ao meio ambien-te, pois a produção destas sementes teria seus riscos ambientais monitorizados,e quaisquer eventuais alterações consideradas significativas para abiossegurança levaria à suspensão imediata dos plantios comercias de respec-tivas espécies.

Por outro lado, os opositores à utilização dos alimentos transgênicos en-tendem que não há estudos conclusivos de nenhuma espécie a respeito doassunto e, muito menos, estudos de impacto ambiental capazes de garantirque sua utilização não seja desastrosa a médio e longo prazo para o meio ambi-ente e para a saúde dos seres humanos. Ainda, sugerem que há uma grandepossibilidade das plantações transgênicas serem responsáveis por uma polui-ção genética que, sem dúvida, seria devastadora. Diz Jeremy Rifkin: Nós sim-plesmente não sabemos. Isso é o que torna a intervenção no mundo da agriculturatão problemática. Trata-se de um empreendimento de alto risco, com poucas regraspara a nova era da biotecnologia agrícola, com muitas esperanças, poucos freios eum vaga idéia dos resultados potenciais15.

Como exemplo, podemos referir alguns dos principais riscos apontados naprodução e do consumo de alimentos transgênicos: o empobrecimento dabiodiversidade; a eliminação de insetos e microorganismos benéficos ao equi-líbrio ecológico; o aumento da contaminação dos solos e lençóis freáticosdecorrentes do uso intensificado e excessivo de agrotóxicos; o desenvolvi-mento de plantas e animais resistentes a uma ampla gama de antibióticos eagrotóxicos e o aparecimento de novos tipos desconhecidos de vírus e de do-enças, etc. Em outras palavras, o desequilíbrio ecológico decorrente do em-prego de tecnologia de transgênicos na agricultura e suas conseqüências, nãomensuráveis de forma antecipada, constituem uma grande ameaça potencialà humanidade.

São muitos os aspectos duvidosos que podem ser relacionados e discutidossobre os efeitos de transformações “frankenstônicas” de plantas, bactérias, ví-rus e animais relativamente ao meio ambiente e aos seres humanos, e são, sem

15 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg 86.

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dúvida, poderosos os instrumentos oferecidos pela biotecnologia para tal; urge,portanto, que sejam tomadas medidas para viabilizar o controle e a realizaçãode estudos sérios e precisos dos impactos ambientais16 e avaliações de conse-qüências eventuais das plantações de espécies transgênicas. A utilização dabiotecnologia deve atentar a fatores primordiais, ou seja, a biossegurança, amanutenção do equilíbrio da natureza e a saúde da humanidade; o que não sepode aceitar é, simplesmente, a satisfação e as exigências impostas pelo mer-cado.

III- O DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO E OSALIMENTOS TRANSGÊNICOS

A este respeito, a legislação brasileira nesta área está moldada inicial-mente no art. 225 da Constituição Federal, que diz: Todos têm direito ao meioambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sa-dia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

A Constituição Federal, art. 23, incisos VI, VII e XI, estabeleceu que aproteção do meio ambiente, o combate à poluição, a preservação das flores-tas, da flora e da fauna, a exploração de recursos hídricos são de competênciacomum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nestesentido, o art. 24, incisos VI e VIII, parágrafo 2º, estabeleceu a a competênciaconcorrente entre os entes da Federação para estabelecer normas em matériaambiental. A União tem competência para editar normas e princípios gerais,os Estados membros têm competência suplementar para editar normas sobrea mesma matéria, desde que não contrariem as normas e princípios geraisestabelecidos pela União. No entanto, caso seja inexistente a norma federal, osEstados exercerão a competência legislativa plenamente de molde a atender às suaspeculiaridades17. Da mesma forma, os Municípios e o Distrito Federal têm com-petência para legislar sobre o meio ambiente e poderão fazê-lo sobre assuntosde interesse local, art. 30 da CF, e suplementar a legislação federal e estadual,no que couber, sem contrariá-las.

16 HONER, Michael Robin diz: “Os testes (não existentes) de segurança e toxidade, sugeridos pela desinformação embutida nasexplicações oficiais, não existem simplesmente porque nenhum pesquisador sabe como fazê-los.” Artigo publicado no JornalMedicina, do Conselho Federal de Medicina, dezembro de 1999,pg. 0 e 09.

17 ANTUNES, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 3ª Edição, 1999, p. 193.

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A Lei 8.974, de 5 de janeiro de 1995 e o Decreto n. 1.752/95, estabelecemnormas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso de técnicas de en-genharia genética, e na comercialização, cultivo, transporte, manipulação,liberação e descarte no meio ambiente de organismos geneticamente modifi-cados. O uso destas técnicas depende de autorização do Poder Público Fede-ral, através de seus Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente, da Agriculturae da Reforma Agrária e de licenciamento pelo órgão ambiental competente,que poderão ser federais, estaduais ou até municipais.

Especificamente sobre a matéria, a Lei 8.974/95 autorizou o Poder Execu-tivo a criar, no âmbito da presidência da República, um órgão ligado ao Mi-nistério de Ciência e Tecnologia, a Comissão Técnica Nacional deBiossegurança (CTNBio). Esta comissão é responsável pelo controle datecnologia molecular, além de possuir, dentre suas atribuições, a de emitir pa-receres técnicos sobre qualquer liberação de OGM no meio ambiente.

A CTNBio aprovou, desde 1997, seiscentos e quarenta e duas (642) expe-riências com produtos transgênicos, e o número de novas solicitações conti-nua crescendo. Havia uma estimativa, para o final de 199918, de que o núme-ro de solicitações chegue a setecentos (700). Neste período muitas críticasforam manifestadas contra o posicionamento da CTNBio, acusando esta Co-missão de não promover o debate público necessário e, muito menos, de pro-mover ou de exigir estudos de impacto ambiental dos respectivos produtos,inclusive, tendo sido, por isto, alvo de ações judiciais. Recentemente, foijulgada procedente uma Ação Cautelar Inominada19, promovida pelo Institu-to Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC - e a ONG Greenpeace, con-tra a União Federal, visando impedir, imediatamente, a autorização para qual-quer plantio de soja transgênica (Round up Ready), da empresa Monsanto,antes de se proceder à devida regulamentação da matéria e ao prévio Estudode Impacto Ambiental.

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) é um dos instrumentos mais im-portantes para a efetiva proteção do meio ambiente. Garantido pela Consti-tuição Federal, art. 225, parágrafo 1º, inciso IV, deverá ser realizado sempreque houver a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de signifi-cativa degradação do meio ambiente.

18 Jornal Medicina do Conselho Federal de Medicina, Editorial, dezembro de 1999, pg. 25.19 Ação Cautelar Inominada, processo n. 1998.34.00.027681-8, Sentença proferida pelo Juiz Titular da 6ª Vara Cível da

Justiça Federal, Seção Judiciária do Distrito Federal, Dr. Antônio Souza Prudente. Sentença na íntegra na revistaConsulex, Vol. II, n. 33, setembro/99, ps. 4 a 8, referência nº34 .

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O EIA é um instituto constitucional, cuja a importância cresce dia a dia , tendoele tem como finalidade realizar estudos prévios para averiguar e oferecer,através do Relatórios de Impacto sobre o Meio Ambiente (RIMA), os escla-recimentos sobre as certezas e/ou as incertezas científicas e tecnológicas, se-jam elas positivas ou negativas, que determinados projetos poderão ocasionarno meio ambiente. O EIA, expresso pelo RIMA, deve integrar o processo delicenciamento ambiental, conforme exigência legal. Portanto, se o EIA nãofor realizado, pode-se impedir que a licença seja concedida, anulada, se exis-tente. 20

Conforme os ensinamentos do professor Paulo de Bessa Antunes o “estudodo impacto ambiental é procedimento formal e material. É formal, pois não se podelicitamente deixar de realizar nenhum dos procedimentos determinados nas normasconcernentes à sua realização. É material, pois a implementação das regras formaisdever ser feita com a utilização de todos os recursos técnicos disponíveis e na análisedos resultados, devem ser aplicados os princípios norteadores do Direito Ambiental,em especial o princípio da cautela.” 21

No caso específico dos alimentos transgênicos, uma vez que a liberação deOrganismos Geneticamente Modificados (OGMs) no meio ambiente pode repre-sentar uma intervenção em grande escala nos processos naturais, é exigida a apre-sentação de EIA/RIMA em audiência pública, quando do processo de liberação daprodução/cultivo de OGMs.22

No Direito Ambiental a audiência pública está regulada pela resolução n.9 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) de 3 de dezembrode 1987, publicada em 18 de março de 1988. Ela tem a finalidade de asseguraro cumprimento dos princípios democráticos, que informam o DireitoAmbiental, e dar publicidade à sociedade do conteúdo dos EIA e do RIMA,oportunizando aos cidadãos, de forma democrática, ofertar à administraçãosua opinião quanto à possibilidade de implantação ou não de determinadoprojeto. 23,

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) advoga uma

20 ANTUNES, Paulo de Bessa, Direito Ambiental, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 3ª Edição, 1999, p. 205.21 ANTUNES, Paulo de Bessa, Op. Cit., p. 199.22 Texto referente às Recomendações e Conclusões dos Grupos de Trabalho produzidos em virtude do Seminário -

Clonagem e transgênicos - Impactos e Perspectivas, Grupo 1 – Biotecnologia e Meio Ambiente, realizado entre 08 a 10de junho de 1999, no Senado Federal, Brasília.

23 O CONAMA foi constituído através do Decreto n.99.274, de 06 de junho de 1990.

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moratória de cinco anos para a utilização de produtos transgênicos, pelo fatode haver insuficiência de dados relativos ao impacto ambiental e à segurança ali-mentar. A idéia é a de que este prazo seja utilizado para o desenvolvimento deestudos e controle de riscos das plantas geneticamente modificadas, monito-ramento ambiental e rotulagem destes alimentos para comercialização, alémde entender necessária uma modificação na estrutura da CTNBio. 24.

Por sua vez, o Estado do Rio Grande do Sul proibiu a existência de planta-ções transgênicas e o abastecimento de produtos alimentícios derivados deplantações transgênicas, principalmente, de soja e de arroz, mandando, inclu-sive, incendiar arroz geneticamente modificado, produzido pela Embrapa. Taismedidas são justificadas pelo Governo do Rio Grande do Sul com base nafalta de segurança e conhecimento de referidos produtos, portanto, em res-peito ao princípio da precaução ou princípio da cautela (conceito formulado naECO/92). A proibição tem a finalidade de proteger os direitos e a saúde doscidadãos gaúchos e das futuras gerações, assim como salvaguardar o meio-ambiente. O Governo do Rio Grande do Sul também entende que a permis-são do plantio de transgênicos ocasionaria, a médio e a longo prazo, aescravização dos agricultores às sementes, como por exemplo, a de soja, se-mentes estas vendidas com exclusividade pelas empresas produtoras. 25

Inclusive, em recente decisão judicial, processo n. 70000027425, o Egré-gio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu em favor do Estado doRGS e interditou o cultivo de soja transgênica ROUNDUP READY, porquea empresa não tinha a licença competente. O Tribunal entende que o parecertécnico conclusivo da CTNBio, não é licença, ele apenas destina-se a instruir opedido de autorização dirigido aos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e daAgricultura, não suprindo a exigência do licenciamento ambiental a cargo da auto-ridade competente, que, neste caso, é o Estado do Rio Grande do Sul. 26,

O Estado do Rio Grande do Sul (RS), através da Lei n. 9.453 de 10 dedezembro de 1991, exige que as empresas que desenvolvam pesquisas, testes,

24 Pocisionamento manifestado na reunião da SBPC, em Porto Alegre, de 11 a 16 de julho de 1999 por Glací Zancan,presidente da SBPC. Jornal Medicina do Conselho Federal de Medicina, dezembro de 1999, pg. 24.

25 O princípio da precaução visa à durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas e a continuidade da naturezaexistente no planeta. A precaução deve ser visualizada não só em relação às gerações presentes, como em relação ao direitoao meio ambiente das gerações futuras, como afirma Michel Preiur, professor da Universidade de Limoges. Sentença do Dr.Antônio Souza Prudente, Revista Consulex, Vol. II, n. 33, setembro de 1999, pg. 7 .

26 Mandado de Segurança n. 70000027425, de 06 de outubro de 1999, exarado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul, Segunda Câmara Cível, promovido pela Monsoy Ltda. contra o Estado do Rio Grande do Sul. Adecisão foi, por unanimidade, a negativa do recurso do impetrante e o provimento do recurso do Estado.

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experiências ou atividades na área de Biotecnologia e da Engenharia Genéti-ca notifiquem sobre suas atividades ao agente controlador e fiscalizador domeio ambiente, que é o Poder Executivo estadual.

A justificativa para o posicionamento do RS, também, inclui questões es-tratégicas de mercado. No caso da soja transgênica: os governantes do RioGrande do Sul entendem que este Estado, assim como o Brasil, podem vir adominar a exportação de soja não transgênica aos mercados de países que nãosejam favoráveis à utilização de produtos geneticamente modificados, como éo caso de países do continente europeu, atualmente nossos maiores compra-dores de soja.27

Outra questão muito relevante é a da defesa do direito dos consumidores.Organizações em prol destes direitos têm assumido um papel questionadormuito importante, proporcionando a democratização do debate sobre os pro-dutos transgênicos e fazendo com que este debate extrapole os limites dacomunidade científica, atingindo a todos nós, também consumidores e, vi-sando a este fim, a audiência pública tem papel fundamental.

Essas organizações defendem o direito dos consumidores ao amplo acessoà informação e ao controle dos produtos consumidos. Uma das medidas de-fendidas é a de rotular claramente os alimentos transgênicos ou seus deriva-dos, oferecendo aos consumidores uma oportunidade real de optarem peloseu consumo ou não. A União Européia deliberou que, dentro de dois meses,passará a rotular toda a soja e seus derivados, sendo, talvez, esta a tendênciafutura para todos os outros produtos alimentares.

O Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicação de Agrobiotecnologiainforma que a área global de plantações geneticamente modificadas cresceu44% em 1999, aumentando as plantações de 27,8 milhões de hectares para39,9 milhões de hectares. Os principais países produtores são: os Estados Uni-dos, 72%; a Argentina, 17%; Canada, 10% e China, 1%.28

Entretanto, várias ONGs vêm fazendo pressão sobre alguns países da UniãoEuropéia, para que os alimentos transgênicos sejam absolutamente banidosou controlados. A ONG Inglesa Consumer´s Association, que tem muita in-fluência sobre os consumidores e um orçamento de mais de 60 milhões de

27 Os grandes produtores de soja, no mundo, são: o Brasil, EUA e Argentina, detendo mais de 90% da produção Mundial;o Brasil é o único a não implementar a produção de soja transgênica e os nossos maiores compradores são o continenteeuropeu e União Européia, que não vêm se manifestando muito favorável aos produtos transgênicos.

28 Jornal do Comércio, 3 de fevereiro de 2000, pg. 14, setor de agronegócios.

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dólares, condena a utilização dos alimentos transgênicos e já afirmou que omercado para os alimentos transgênicos na União Européia está “morto”. 29

O papel estratégico da biotecnologia para o desenvolvimento da ciência ésignificativo e sem dúvida marcará este século, especialmente na área da agri-cultura, portanto é importante que um ajuste institucional e uma estruturalegal adequada sejam estabelecidos para regulamentar a questão, tanto na or-dem interna como na internacional, levando em consideração, acima de tudo,o equilíbrio e a preservação ambiental e as questões sociais e culturais a elainerentes.

IV – DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E ABIOTECNOLOGIA VEGETAL

A megadiversidade dos recursos naturais do Brasil é reconhecida em todoo mundo e torna-o um país com um grande potencial econômico e tambémbastante atraente às pesquisas ligadas a biotecnologia vegetal, entre outras;por esta razão, nosso país tem que promover as medidas necessárias, sejam elaslegislativas, administrativas, de investimentos em pesquisa e educação, paraproteção de nossos recursos naturais, que é nosso grande patrimônio e quetemos o dever de preservar para as futuras gerações.

É notório que a biotecnologia é um poderoso instrumento da ciência. Damesma forma, fica evidente o interesse econômico no desenvolvimento demuitos projetos nesta área. A indústria da biotecnologia em geral movimentamilhões de dólares, com ganhos brutos de mais de 4 milhões de dólares, so-mente na venda de herbicidas nos Estados Unidos30. No Brasil, o mercadotambém é muito significativo, ocupando lugar de destaque na área dabiotecnologia vegetal, pois somente no setor de sementes, o Brasil movimen-ta aproximadamente US$ 1,2 milhões/ ano e gera cerca de 300 mil empregosdiretos e indiretos.31

Assim, neste mercado, a conquista de novas patentes é um objetivo cons-

29 Jornal Zero Hora, 16 de fevereiro de 2000, pg. 26, Campo e Lavoura.30 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.86.31 NERO, Patrícia Aurélia Del, Propriedade Intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia, Editora Revista dos Tribunais, São

Paulo, 1998, p. 211.

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tante e muito tem impulsionado as empresas de biotecnologia. Tanto é assim,que a maior parte dos esforços das empresas, que atuam nesta área, destina-sea lançar plantas transgênicas tolerantes a herbicidas e resistentes a pragas evírus. Logicamente, a idéia destas empresas é vender sementes patenteadas,que sejam resistentes a cada uma das marcas de herbicidas produzidas tam-bém por estas empresas.

Mesmo nos Estados Unidos, país reconhecidamente defensor e promotordas patentes, inclusive na área da biotecnologia agrícola, grupos de fazendei-ros preocupados com o domínio do mercado pelas grandes empresas debiotecnologia, promoveram um processo32 contra a empresa Monsanto, acu-sando-a de lançar no mercado sementes geneticamente modificadas, poten-cialmente causadoras de problemas à saúde, antes de testá-las adequadamen-te e também de estar criando cartel, a fim de monopolizar o mercado de se-mentes geneticamente modificadas de soja e milho, restringindo o comércionesses mercados, além de manipular os preços.33

Especificamente, no que concerne às patentes34, o tema é bastante delica-do e é, sem dúvida, um dos pontos críticos no debate em torno dos alimentostransgênicos. Os opositores à utilização dos alimentos transgênicos alertampara o domínio e a monopolização das grandes empresas na área da agricultu-ra, visto que poucas empresas seriam detentoras das patentes, por exemplo, desementes transgênicas e dos processos relacionados às plantas e grãos.

Em geral, as patentes são obtidas a partir de invenções que devem ser ino-vadoras em sua concepção e que não devem ser compreendidas pelo estado datécnica35 em sua utilização, devendo ser suscetíveis de aplicação industrial.36

O TRIPS (Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights) 37, tratado

32 Folha de São Paulo, 17 de dezembro de 1999.33 Folha de São Paulo, 15 de dezembro de 1999.34 As patentes são documentos oficiais outorgados pelo governo ao inventor, garantindo-lhe o uso e o gozo exclusivo da

exploração econômica (produzir, utilizar, vender, importar e exportar)de seu invento, por tempo determinado por lei(geralmente 20 anos), podendo o inventor permitir sua exploração por outrem, mediante o recebimento de royalties.

35 NERO, Patrícia Aurélia Del, Propriedade Intelectual. A Tutela Jurídica da biotecnologia, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo,1998, p. 59. “O estado da técnica é constituído por tudo que foi tornado acessível ao público, seja por uma descrição escrita ou oral,seja por uso ou qualquer outro meio, inclusive conteúdo de patente no país ou no exterior, antes do deposito do pedido de patente.”

36 Ver Lei de Propriedade Industrial, 9.279/96, art. 10.37 O TRIPS, tratado referente à propriedade industrial, formulado na Rodada do Uruguai do GATT, 1986 a 1993, tem

como objetivo abordar a nível internacional aspectos concernentes à propriedade industrial, permitindo, assim, auniformização nas legislações dos países signatários quanto à disciplina jurídica da propriedade industrial. O Brasil ésignatário do TRIPS, assim como é membro da OMC. Portanto em princípio, as disposições contidas neste tratadotornam-se parte da legislação brasileira, a partir de 1º de janeiro de 2000.

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do qual o Brasil é signatário, assim como o são os Estados Unidos, o Japão e aUnião Européia, não faz quaisquer restrições ao patenteamento de microorganismose de processos biotecnológicos, desde que atendidos os requisitos de patenteabilidade(novidade, passo inventivo e aplicação industrial). 38

Recentemente, comprovado o grande interesse econômico nesta área dabiotecnologia, a Organização Mundial do Comércio- OMC39 discutiu, emseu encontro em Montreal, Canadá, a questão relacionada ao TRIPS. Os de-bates foram centrados no comércio e no patenteamento dos Organismos Ge-neticamente Modificados (OGMs), incluindo-se neste debate os alimentostransgênicos.

O Brasil, em princípio, pode reconhecer o patenteamento demicroorganismos, pois aprovou através do Decreto Legislativo n.30, de 15 dedezembro de 1994 a Ata Final do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT)da Rodada do Uruguai; assim a partir de 1º de janeiro de 2000, as normas doTRIPS40 deveriam estar implementadas. Entretanto, há um prazo para que osajustamentos internos necessários sejam realizados, para que referido tratadoseja absolutamente incorporado à nossa legislação, o que permitirá ao paísamadurecer os termos e condições, diante das inúmeras controvérsias gera-das, através de uma discussão ampla, que deverá envolver vários setores dasociedade.

38 NERO, Patrícia Aurélia Del, Op. Cit., p. 135.39 OMC – Organização Mundial do Comércio foi originada na Rodada do Uruguai do GATT( Acordo Geral sobre Tarifas

e Comércio), com a finalidade de sucedê-lo, em 1º de janeiro de 1995. Entretanto, a OMC é composta por umnúmero maior de membros e, em comparação com as matérias tratadas no GATT, a OMC tem normas de maioralcance, por conta de seu aprofundamento ratione materiae. É uma organização internacional com a finalidade defornecer um marco institucional comum para a conduta de relações comerciais entre seus membros, no que concerneàs matérias dos acordos e instrumentos jurídicos firmados. Um dos acordos, sob a gerência da OMC, é o TRIPS(Trade Related Aspects os Intelectual Property Rights), muito importante para o nosso estudo, que trata de aspectosrelacionados à propriedade Intelectual. Ver LAFER, Celso. A OMC e a Regulamentação do comércio internacional:uma visão brasileira, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

40 Entre os princípios respaldados e fixados pelo GATT/TRIPS as legislações de propriedade industrial dos países signatáriosdevem reconhecer o trade secret e o pipeline. Em outras palavras, o trade secret significa pois que a descrição dosprocessos e produtos patenteados é apresentada de forma sucinta e muitas vezes de forma cifrada impedindo areprodução e a reaplicação dos inventos, transformando assim toda a forma inventiva em uma verdadeira caixa –preta,descaracterizando os mecanismos de funcionamento da patente. O outro princípio referido é do pipeline que significaque qualquer produto ou processo da biotecnologia que já conta com a proteção monopolística conferida pela patente noexterior fica impedido de ser explorado ou utilizado no Brasil, salvo o caso expresso de anuência do titular que podeefetivamente, mediante concessão de licença voluntária, porém sempre onerosa, autorizar a sua utilização. Ver NERO,Patrícia Aurélia Del, Propriedade Intelectual: a tutela jurídica da biotecnologia, Editora Revista dos Tribunais, SãoPaulo, 1998, ps. 145, 270 e 271.

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Tendo em vista esta realidade, será necessário ao Brasil objetivar e harmo-nizar a sua legislação quanto a propriedade intelectual da biotecnologia, vi-sando, efetivamente, preservar os interesses nacionais relativos a suabiodiversidade. Hoje regulamentam a matéria, genericamente, a Lei 8.974 de5 de janeiro de 1995, que disciplina o uso de técnicas de engenharia genéticae liberação no meio ambiente de OGMs; a Lei 9.456 de 25 de abril de 1997,lei de proteção cultivares, que regula os direitos de melhorista e a Lei 9.279 de14 de maio de 1996, que regulamenta os direitos de propriedade industrial.

No caso da biotecnologia vegetal, há discussões e divergências quanto aaplicabilidade da Lei 9.279/96 ou da Lei 9.456/97 (Direito de Cultivares), pois severifica que, em tese, existe uma área comum na regulamentação das duas normasquanto à propriedade intelectual dos OGMs.

A Lei da Propriedade Industrial, determina, em seu art. 18, que microor-ganismos transgênicos são patenteáveis desde que atendam aos requisitos danovidade, atividade inventiva e aplicação industrial. O parágrafo único desteartigo diz que microorganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou par-te de plantas ou de animais, que expressem mediante intervenção humana direta emsua composição genética, uma característica não alcançável pela espécie em condi-ções naturais.

Ainda, a Lei 9.279/96, em seu art. 10, inciso IX, não considera invenção otodo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na nature-za, ou ainda que dela isolados, inclusive genoma ou germoplasma de qualquer servivo natural e os processos biológicos naturais.

Por outro lado, o art. 2º da Lei 9.456/97, Lei de Cultivares, diz que: Aproteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetuamediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerado bem mó-vel para todos os efeitos legais e única forma de proteção de cultivares e de direitoque obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou multipli-cação vegetativa, no País. 41

Assim, a Lei 9.456/97, que visa a proteção de cultivar, por intermédio dodireito de melhorista, não contraria as disposições do GATT/TRIPS, pois estedispõe que os países membros podem excluir o patenteabilidade de plantas eanimais, sendo-lhes facultado dispor de sistema específico para a proteção devariedades de plantas.

41 NERO, Patrícia Aurélia Del, Op. Cit., p. 216.

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No entanto, existe um paradoxo nas leis, tanto de Propriedade Intelectualcomo de Cultivares (direito de melhorista), pois no momento em que é pos-sível a patenteabilidade de microorganismos, é possível a patenteabilidadedos seres vivos. Em outras palavras, desde que as estruturas dos microorganis-mos sejam manipuladas, potencialmente elas poderão ser patenteadas, poisserão consideradas invenções, devido, apenas, a um conceito normativo.

Patrícia Aurélia Del Nero entende que seria mais vantajosa a regulamen-tação da biotecnologia vegetal no contexto exclusivo da proteção de cultiva-res (direito de melhorista). Primeiro, porque o agricultor pode usar a “cultivarprotegida” sem o pagamento de nenhuma remuneração ou royalties; segundo,há a possibilidade de comercialização do produto obtido pelo plantio do ma-terial protegido, e, terceiro, este sistema facilitará o desenvolvimento da pes-quisa do Brasil, na área da biotecnologia vegetal, pois a fonte de variação efonte de informação científica poderão ser livremente utilizadas. Conclui aautora que: “A forma de proteção concedida às cultivares, por intermédio de regis-tro da propriedade intelectual ao titular, é flexível e contrapõe-se à forma rígida emonopolística própria do sistema de patentes. 42

V – A FOME MUNDIAL E OS ALIMENTOSTRANSGÊNICOS

Além destas questões quanto aos alimentos transgênicos, relacionadasdiretamente ao direito de propriedade intelectual e ao meio ambiente, exis-te a questão da fome no mundo, que, além de ser uma questão de saúdepública, também é de caráter ambiental, com conseqüências as mais signifi-cativas. Os defensores da utilização e desenvolvimento de plantações e la-vouras transgênicas entendem que a biotecnologia agrícola seria uma novasolução para erradicar a fome no planeta, pois as espécies poderiam recebertratamentos adequados, tornando-se resistentes a adversidades naturais,além de terem suas qualidades incrementadas. Por exemplo, cientistas inse-riram genes de uma proteína “anticongelamento”, obtida do peixe linguado,no código genético de tomates, para proteger essa fruta contra danos causa-dos pela geada.43

42 NERO, Patrícia Aurélia Del, Op. Cit., ps. 214 e 215.43 RIFKIN, Jeremy. Op. Cit., pg.85.

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Recentemente, o Banco Mundial (BIRD), durante a conferência realiza-da no encontro anual da AAAS (Associação Americana para o Progresso daCiência) em Washington, os Estados Unidos, defenderam a utilização dos ali-mentos transgênicos no combate à subnutrição mundial. Entretanto, este paísafirmou que as sementes devem ser distribuídas gratuitamente entre as comu-nidades mais pobres, pois, do contrário, os pesquisadores da área dabiotecnologia agrícola estarão fadados a criar um “apartheid científico”, em quea tecnologia gerada em países desenvolvidos não será repassada às nações em desen-volvimento. 44

O presidente do Grupo Consultivo para Pesquisa Agrícola Internacional(CGIAR) e vice-presidente dos Programas Especiais do Banco Mundial, IsmailSerageldin, de nacionalidade indiana, afirmou que, no ano de 2020, o mundonecessitará produzir 40% a mais de grãos para suprir a população mundial,sendo que 15% das necessidades referem-se a países desenvolvidos e, por isso,seria preciso desenvolver uma pesquisa de sementes adaptada aos mais pobres e aomeio ambiente.45

Neste sentido, pode-se mencionar, a título de exemplo, o arroz com ferro,que é uma espécie transgênica, a qual poderia combater a anemia em paísesem desenvolvimento. Há estudos que afirmam ser suficiente uma porção dearroz transgênico para prover de 30% a 40% das quantidades do mineral ne-cessário para um adulto. Este arroz foi produzido da seguinte forma: cientistasdo Instituto Central de Pesquisa da Indústria de Elétrica, em Chiba, Japão46,retiraram um gene presente na soja, chamado ferritina, que facilita a absorçãode ferro pela planta, inserindo-o na espécie de arroz Oryza sativa. O arrozgeneticamente modificado pode reter três vezes mais ferro do que o seu pa-rente comum. 47

O ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1999, o indiano AmartyaSen, afirmou, através de seus estudos econômicos, que a fome existe e cresceno planeta, não porque não sejam produzidos alimentos suficientes, mas por-que a distribuição dos alimentos é realizada de forma desigual e injusta. De-duz-se logicamente desta idéia estarem os ricos engordando e os muito pobrestornando-se cada vez mais famintos. Uma das idéias desenvolvidas por

44 Folha de São Paulo, pg. 10, 21 de fevereiro de 2000.45Folha de São Paulo, de fevereiro de 2000, pg. 10, 21.46 Folha de São Paulo, 06 de junho de 1999, pg. 5/12.47 Folha de São Paulo, 06 de junho de 1999, pg. 5/12.

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Amartya Sen é de que a mudança vantajosa para cada indivíduo deve ser umamudança igualmente proveitosa para toda a sociedade, porém identificar vantagemcom utilidade nada tem de óbvio. 48

Nikos Alexandratos, pesquisador da FAO, concorda plenamente com estaidéia. Para ele, a insegurança alimentar e a subnutrição não se caracterizamcomo problemas de produção, mas de distribuição, quando se refere ao mun-do como um todo. Acredita ele que a solução do problema da insegurançaalimentar está na produção local de comida, pois, em muitas partes do mun-do, há falta de boas sementes, de educação, de água e de fertilizantes, tudo issosomado à pobreza e à instabilidade política e às guerras. Estudos realizados porAlexandratos indicam que, em 2010, ainda existirão 680 milhões de famin-tos no mundo.49

Assim, esta conclusão obriga-nos a questionar quais as mudanças que de-veriam ser realizadas para acabar com a fome no planeta. Obviamente, pode-ríamos, de forma superficial, apresentar algumas hipóteses, tais como: demo-cratização da distribuição de alimentos, de sementes e de recursos humanosespecíficos conforme as necessidades específicas de cada área do planeta; pro-mover projetos de irrigação em áreas áridas do planeta; etc.

No entanto, o término da fome no planeta, infelizmente envolve uma gamade aspectos complexos, cujas soluções não são nem simples nem tampoucofáceis, pois a sua efetivação está intimamente ligada ao poder econômico e àvontade política da comunidade internacional. Assim, algumas questões sãoinevitáveis quando se reflete sobre a afirmativa de que as plantaçõestransgênicas colaborariam para o término da fome mundial: como as empre-sas da área da biotecnologia agrícola conseguirão ressarcir-se dos investimen-tos nesta área? A resposta mais provável conteria a afirmação de que estasempresas tornariam-se detentoras de patentes e, sendo assim, a agriculturatransgênica restringiria ainda mais o acesso dos povos mais pobres ao consu-mo de alimentos. Então, será que o sistema de agricultura mundial não seriacontrolado por um número ainda menor de países e empresas, ao invés deexpandir-se de forma mais igualitária e acessível às diversas regiões do plane-ta? Parcialmente, esta pergunta está respondida pelas preocupações do Ban-co Mundial quanto à criação de um apartheid científico, e as outras questõesnós mesmos é que temos que tentar responder ou exigir respostas.

48 SEM, Amartya, Sobre Ética e Economia, São Paulo: Companhia Das Letras, 1999.49 Folha de São Paulo, Caderno especial ANO 2000, 2 de julho de 1999.

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VI- CONCLUSÃO

Finalmente, apesar da divergência de opiniões sobre a questão dos alimentostransgênicos, pode-se afirmar que sobre um aspecto há consenso: abiotecnologia é uma realidade e marcará este século. Entretanto, o debatesobre os alimentos transgênicos está longe de terminar. Talvez, o ideal seriaque as técnicas modernas de manipulação genética de plantas e animais ser-vissem essencialmente para o desenvolvimento e para a melhoria de condi-ções de vida e de saúde da humanidade, sem ignorar questões fundamentaiscomo a proteção ao meio ambiente e a proibição do controle econômico,pelas empresas transacionais, no patenteamento da vida.

“O que leva o homem a desafiar a natureza e os elementos,somente para saciar seu apetite pelo dinheiro, fruto do capita-lismo selvagem, não importa o que aconteça, nem que danoscause a outro ser a própria natureza e às gerações futuras?”(Juiz Federal, Dr. Antônio de Souza Prudente).

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A Poluição Dos Mananciais PorDejetos Suínos1

The Pollution Of Water Sources Due To Swine Dejects

MIGUEL L GNIGLER

Promotor de Justiça em SC

RESUMO

Pretende-se com o presente trabalho demonstrar que a suinocultura desenvolvida,isolada ou integradamente com a piscicultura, é uma atividade potencialmentepoluidora de mananciais, além de gerar maus odores que afetam o bem-estar e asaúde da população, sujeitando-se, pois, ao licenciamento ambiental previsto noart. 60 da Lei n. 9.605/95.Palavras-chave: Suinocultura, poluição de mananciais, Lei nº 9.605/95,licenciamento ambiental.

ABSTRACT

The present paper aims at demonstrating that swineculture developed either isolatedlyor in parallel with fish culture is a potentially polluting activity for water sources,and also generates bad odors which affect the well-being and the health of the popu-lation, therefore being subject to the environmental licencing required in article 60of Brazilian law 9.605/95.Key words: Swineculture, pollution of water sources, law 9.605/95, environmen-tal licencing.

1 Texto apresentado no XV Congresso Nacional do Ministério Público, de 27-29 de outubro de 1999, em Curitiba, tendosido a proposição aprovada.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.205-212

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Enquanto a atenção dos ambientalistas se volta para as regiões Norte eCentro Oeste, onde os satélites têm identificado a destruição de grandes áreasde florestas e de cerrados, provocadas pela ação criminosa de madeireiros eagropecuaristas, e bem assim a poluição de rios com metais pesados utilizadosnos garimpos clandestinos, a suinocultura intensiva presente no Sul do Brasilnão tem sido alvo de preocupação daqueles que lutam por um meio ambienteequilibrado, em que pese tratar-se de atividade altamente poluidora de ma-nanciais e fontes de água.

Dados estatísticos publicados por órgãos ligados à Secretaria Estadual daAgricultura de Santa Catarina indicam que o rebanho de 4 (quatro) milhõesde suínos produz anualmente o equivalente a 10 milhões de metros cúbicosde dejetos, volume suficiente para encher uma vala imaginária, com 20 metrosde largura e 1 (um) de profundidade, ligando os dois extremos do território (Oeste – Leste).

Assim, embora seja a suinocultura uma atividade potencialmentepoluidora, sujeita ao prévio licenciamento ambiental ( art. 60 da Lei 9.605/95), o que se verifica na prática é que ainda prevalecem as propriedades ruraiscom instalações inadequadas para o manejo e destinação final dos dejetossuínos. Primeiro, porque as chamadas bio-esterqueiras ou câmaras de fermen-tação, necessárias para depuração dos dejetos em adubo orgânico, via de regranão passam de buracos abertos no solo, revestidos de lona plástica resistente,onde os efluentes permanecem em depósito a céu aberto, exalando maus odo-res; segundo, porque a conformação topográfica do terreno dificulta a incor-poração dos dejetos ao solo, sendo constantemente carreado das encostaspara os mananciais.

Além desses fatores, há ainda as agravantes como a prevalência dominifúndio, cuja localização das benfeitorias deu-se originariamente com afixação das pocilgas próximas às fontes de água, dada a inexistência de ener-gia elétrica ao tempo da ocupação dos imóveis. Convém mencionar, ainda ,que o agricultor ainda custa compreender que é ônus seu produzir sem pro-vocar a degradação do meio ambiente, vale dizer, ao suinocultor competedar destinação adequada dos efluentes produzidos nos limites de sua pro-priedade.

O tema sob enfoque, como se vê, é de indiscutível importância num mo-mento em que a atenção da humanidade se volta ao que é de interesse detodos : a preservação do meio ambiente. Especialmente no caso da suincultura,onde o impacto ambiental incide diretamente sobre a água, seguramente o

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bem natural mais indispensável para a sobrevivência do homem, afigura-seurgente combater as atividades que causam a sua conspurcação.

A água é a substância que predomina na biosfera, mas segundo dados pu-blicados na revista Saúde, edição de janeiro/97, p. 26, quatro quintos do glo-bo terrestre são cobertos de água, mas de todo o manancial existente na faceda terra , 97,6% é de água salgada e apenas 2,4% de água doce. Desta pequenaporção, 79% está sob a forma de geleiras, nas calotas polares; 20,96% corremsilenciosos nos subterrâneos do planeta e apenas 0,04% da água doce do Glo-bo constituem rios e lagos.

Esses números evidenciam que o bem “água” será um dos recursos natu-rais mais escassos neste no milênio que se avizinha. A escassez, naturalmen-te, não reside no volume de água doce encontrada na biota terrestre, masdevido a sua poluição generalizada, reduzindo a porção disponível para o con-sumo humano. Daí o consenso mundial acerca da necessidade de garantir àspresentes e futuras gerações o direito a um ambiente ecologicamente equili-brado ( art. 225, CF), com qualidade razoável que lhes permita viver comdignidade e bem-estar.

No Brasil, sucessivas normas esparsas têm surgido com inegável finalida-de de proteger os mananciais de água, cuja preocupação já se fazia presenteno Código Penal de 1890, que verbalizava como conduta típica “Corromperou conspurcar a água potável de uso comum ou particular, tornando-a impossívelde beber ou nociva à saúde. Pena: prisão celular de 1 (um) a 3 (três) anos.”( art.162).

Com o advento do Código de Águas, editado em 1934, época em que amata nativa e as fontes de água potável eram ainda abundantes, o vetustoestatuto já traçava regras de conduta ainda válidas para os dias atuais, confor-me se depreende de seus artigos 109 e 110.2

Já o Código Penal de 1940 reproduziu a figura penal de 1890, dispondo :“art. 271 - Corromper ou poluir água potável de uso comum ou particular, tornan-do-a imprópria para o consumo ou nociva à saúde. Pena : Reclusão, de dois a cincoanos. Se o crime é culposo: pena: detenção, de dois meses a um ano.”

A lei de proteção da fauna ( 5.197/67), impropriamente chamada Código

2 “Art. 109 - A ninguém é lícito conspurcar ou contaminar as águas que não consome, com prejuízo de terceiros e 110 - Os trabalhospara salubridade das águas serão executadas à custa dos infratores, que, além de responsabilidade criminal, se houver,responderão pelas perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos administrativos.”

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de Caça, com as modificações introduzidas pela Lei n. 7.653/88, transformouem crimes diversas figuras contravencionais, cominando a pena de reclusãode 2 (dois) a 5 (cinco) anos para quem “provocar, pelo uso direto ou indireto deagrotóxicos ou de qualquer outra substância química, o perecimento de espécimesda fauna ictiológica existente em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou mar territorialbrasileiro.”(Art. 27, par. 2o )

A aplicação da norma penal protetora dos peixes mostrava-se mais eficazpara proteger os mananciais do que os dispositivos específicos do Código Pe-nal, embora o estatuto em referência apresentasse exageros indiscutíveis, aorotular de inafiançáveis condutas que contavam com a tolerância do gruposocial. Cite-se, como exemplo, o sertanejo que, para saciar a fome de sua pro-le, abatia um pássaro silvestre ( art. 34).

Outras normas foram erigidas com a finalidade de proteger os cursos deágua. A propósito, o art. 15 da Lei n. 7.802/89, cominava uma pena dereclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos para “ aquele que produzir, comercializar,transportar, aplicar ou prestar serviço na aplicação de agrotóxicos, seus compo-nentes e afins, descumprindo as exigências estabelecidas nas leis e nos seus regula-mentos.”

O coroamento do ordenamento legal de proteção ambiental veio com aConstituição Federal de 1988, que dispôs no seu art. 225 : “Todos têm direito aomeio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencialà sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever dedefendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Já sob a égide da nova Carta Magna, a Lei n. 7.804/89 deu nova redaçãoao art. 15 da Lei n. 6.938/81, estabelecendo que “O poluidor que expuser aperigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais gravesituação de perigo existente, fica sujeito à pena de um a três anos de reclusão e multade 100 a 1.000 MVR.”

Mais recentemente, a Lei no 9.433/97 regulamentou o inciso XIX, do art.21 da Constituição Federal, instituindo a Política Nacional de Recursoshídricos e o seu gerenciamento, normatizando a utilização dos recursoshídricos, objetivando a sua preservação e disponibilidade, em benefício daqualidade de vida da população, reconhecendo, expressamente, que “a águaé um bem de domínio público; um recurso natural limitado, dotado de valor econô-mico e que, em situações de escassez, o seu uso deve ser prioritário para o consumohumano e para saciar a sede dos animais”

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A Regulamentação da sobredita norma constitucional sobreveio com aedição da nova lei ambiental ( Lei n. 9.605/95). Esse novo estatuto, a par deinovações como a responsabilização penal da pessoa jurídica, procurou siste-matizar as normas de caráter penal ambiental, facilitando a sua observância eaplicação pelos agentes do poder público.

Oportuno anotar que a expressão poder público deve ser compreendidacomo sendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Àscomunas, o constituinte concedeu, por via de competência comum ( art. 23),a obrigação de cuidar do meio ambiente. A competência para legislar sobrematéria ambiental pertence concorrentemente à União e aos Estados ( art.24, VI, VII e VIII). Há quem sustente que, dispondo o art. 30, - “Compete aosmunicípios.... II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”,caberia ao legislador municipal dispor complementarmente sobre matériaambiental de interesse local.

Na prática, o que se observa é a Administração Pública atuando comoagente incentivador, quando não poluidor direto do meio ambiente, figuran-do reiteradamente no polo passivo de ações civis públicas aforadas com oobjetivo de embargar atividades nocivas ao meio ambiente. É como diz o in-signe Hugo Nigro Mazzilli “Não raro, as pessoas jurídicas de direito público inter-no serão legitimadas passivas para a ação civil pública, pois que, quando não partadelas o próprio ato lesivo, muitas vezes para ele concorrem diretamente, quandolicenciam ou permitam a atividade nociva, ou então deixam de coibi-la” (A Defesados Interesses Difusos em Juízo, Atlas, 1993, p. 156).

Sobreleva assinalar, nesta etapa, que a nova lei ambiental protege a água,tipificando como crime : “Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza emníveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que pro-voquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. Pena –reclusão , de um a quatro anos , e multa. (...) § 2o – Se o crime (...) – ocorrer, porlançamento de resíduos sólidos , líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substân-cias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.Pena – reclusão , de um a cinco anos.”

Assim, conquanto o ordenamento jurídico brasileiro disponha de uminvejável aparato de leis tuteladoras do meio ambiente, é de se lamentar queas normas de caráter penal não estejam cumprindo a sua finalidade principalde prevenir a ocorrência do crime e, de conseguinte, o dano ao meio ambien-te. Em que pese a publicidade que se deu à nova legislação ambiental na mídia,nas escolas, em eventos comemorativos de datas relacionadas ao meio ambi-

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ente, nos pedágios educativos, etc., basta sair a campo para constatar que osinfratores continuam agindo como de antanho, e pior, sem que sejam moles-tados pelo poder público, a quem a Constituição Federal comete o dever decombater todas as formas de poluição ambiental.

De fato, basta percorrer alguns quilômetros de uma rodovia interiorana,com os olhos voltados às suas margens, para perceber o quanto o homemmaltrata o meio ambiente. A primeira agressão ambiental de fácil constataçãoé em relação ao desmatamento das faixas de preservação existentes nas mar-gens das rodovias ( art. 3., “c”, do Código Florestal). As demais formas deagressão ambiental podem variar segundo a região observada. No caso especí-fico de áreas, onde se desenvolve a suinocultura em grande escala, não seránecessário sequer sair da rodovia para constatar a existência de pocilgas des-pejando dejetos suínos em mananciais, além de causar incômodos ao bem-estar dos transeuntes com a produção de maus odores.

Ao observador também será possível verificar a existência de chiqueirossobre açudes, uma espécie de palafitas para abrigar suínos, cujos excrementossão despejados diretamente na água e utilizados para criar e engordar alevinos,técnica de manejo e aproveitamento dos dejetos suínos que infelizmente jáfaz parte da nossa paisagem rural e, não raro, tem recebido o aval de órgãos depesquisa ligados às Secretarias Estaduais de Agricultura, empenhados emdemonstrar que o método não provoca a poluição da água, ao argumento deque a matéria orgânica é integralmente absorvida pelos peixes.

A conduta, salvo naquelas hipóteses em que a condição pessoal do agenteafastar a sua culpabilidade, por ausência de potencial consciência de ilicitude,subsume-se perfeitamente no tipo penal descrito no art.54 e seu inciso V, daLei n. 9.605/98: “Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resul-tem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou provoquem a mortandade deanimais ou a destruição significativa da flora (...) Se o crime ocorrer por lançamen-to de resíduos sólidos líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas,em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.”

É que a piscicultura, desenvolvida com o aproveitamento de detritos ge-rados na suinocultura, é, sem dúvida, uma atividade poluidora, notadamenteporque a utilização dos dejetos suínos in natura provoca a poluição doscorpos receptores, especialmente nos períodos de despesca, quando ocorreo despejo da água represada e dos resíduos orgânicos acumulados no fundodos açudes.

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Já nas pequenas comunas, verificar-se-á que os maus odores gerados coma suinocultura estabelecida nas proximidades do perímetro urbano causamtranstornos e incômodos ao bem-estar e à saúde da população urbana, cujasituação se agrava nos dias em que os dejetos são espalhados sobre o solo eaguardam a sua incorporação.

Na hipótese acima mencionada, encontra-se presente o interesse local aque se reporta o art. 30, II, da Constituição Federal, legitimando os Municí-pios a disporem, em seus Códigos de Posturas e Regulamentos de Higiene,sobre o manejo de dejetos suínos nas proximidades do perímetro urbano, esta-belecendo regras eficazes para proteger a população dos maus odores.

Como se nota, todas as condutas acima mencionadas causam poluiçãoambiental, incidindo os agentes poluidores nas penas cominadas em normaspenais de caráter ambiental, dada a perfeita correspondência entre a condutado poluidor e o tipo penal descrito abstratamente. Entretanto, a carência dosórgãos estatais encarregados de fiscalizar o cumprimento dessas leis, e bemassim de autuar os eventuais infratores, acaba gerando a ineficácia da lei.

Diante desse quadro de poluição generalizada de nossos mananciais,provocada com o manejo inadequado dos dejetos suínos , urge que o poderpúblico das três esferas de governo cumpra com o seu papel, garantindo ummeio ambiente saudável e equilibrado, emprestando plena eficácia às nor-mas editadas com tal finalidade , inclusive as de natureza extrapenal previstasnos regulamentos de higiene e nos Códigos de Posturas Municipais.

SÍNTESE CONCLUSIVA

1. A suinocultura é uma atividade potencialmente poluidora, sujei-tando-se ao prévio licenciamento ambiental e à observância dasnormas legais e regulamentos pertinentes, especialmente no tocan-te às técnicas de manejo de dejetos suínos e às regras de higiene eposturas municipais.

2. O uso de excrementos de suínos “in natura” para alimentar alevinos,com a manutenção do rebanho em pocilgas construídas sobre açu-des ou tanques de água, com o posterior despejo em mananciais re-ceptores, configura , em tese, o crime de poluição hídrica tipificadano art.54, combinado com o seu § 2º , VI, da Lei n. 9.605/95,

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excluída a culpabilidade do agente se, pela sua condição pessoal,ficar demonstrada a ausência de potencial consciência de ilicitude.

3. Observada a Legislação Federal e Estadual, reconhece-se aos Mu-nicípios competência suplementar para disporem, em seus Códigosde Postura e Regulamentos de Higiene, sobre o manejo e a utiliza-ção de dejetos suínos em propriedades rurais estabelecidas nasimediações do perímetro urbano, visando proteger a saúde e o bem-estar da população em face dos maus odores gerados pelasuinocultura.

Obs. A Segunda conclusão sofreu emenda modificativa do MP/SP,ficando com a seguinte redação:

“2. O despejo, lançamento ou disposição de excrementos desuíno in natura em cursos de água ou mananciais receptoresconfigura, em tese, o crime de poluição hídrica tipificado noart. 54, combinado com seu parágrafo 2º, VI, da Lei n 9.605/95, excluída a culpabilidade do agente se, pela condição pesso-al, ficar demonstrada a ausência de potencial consciência deilicitude.

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El carácter político del control deconstitucionalidad

The Political Character of the Control ofConstitutionality

PAULA VITURRO

Docente de la Maestria de Sociologia Jurídica- Universidad Buenos AiresMaster por la Universidad Internacional de Andalucía

Doctoranda del programa Derechos Humanos y Desarollo-Universidad Pablo deOlavide( Sevilla)

“El Estado es el más glaciar de los monstruos. Miente fría-mente, y de su boca sale esta falacia: Yo, el Estado, soy el pue-blo” (F. Nietzche, Así hablaba Zaratustra).

RESUMEN

El artículo está destinado a mostrar cuáles son las principales cuestiones problemá-ticas que subyacen al ejercicio del control de constitucionalidad, cuestiones todasellas que se derivan del innegable caracter politico de dicha tarea. Para comprendermejor el alcance de la problemática planteada, la autora se introduce en uno de losprimeros debates que se suscitaron en torno a este tema, a saber, aquél que sostuvie-ron Hans Kelsen y Carl Schmitt”Palabras claves: control de constitucionalidad, caracter politico, Kelsen, Schimitt.

ABSTRACT

This article is aimed at showing the main problematic questions which underline theexercise of the control of constitutionality, all these questions generated from theundeniable political character of the mentioned task. To better understand the scope

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.213-239

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of the problem in case, the author introduces herself in one of the first debates thatever occurred on this subject, the one between Hans Kelsen and Carl Schmitt.

Key words: Control of constitutionality; political character; Kelsen;Schmitt.

En la Argentina, rara vez los constitucionalistas se refieren a la grave com-plejidad que plantea la justificación de la revisión de las leyes y otras normasjurídicas, por parte de los jueces. Se asume simplemente que esta instituciónes una secuela incuestionable de los ideales del constitucionalismo norte-americano. No obstante ello, aún en el ámbito donde surgió, fue sometida aduros cuestionamientos y actualmente el problema de la justificación del con-trol judicial de constitucionalidad se ha convertido en una discusión de teo-ría de la democracia.

Las diferencias comienzan cuando se toma en consideración la naturalezade esta tarea, la cual generalmente era concebida sólo como una actividadtendiente a evitar que se dicten o se apliquen normas infraconstitucionalesque contradigan lo establecido en la constitución. Sin embargo, interrogantestales como qué abarca la constitución, en qué consiste su defensa, qué carac-terísticas tiene la función del juez constitucional, cuáles son los límites delcontrol judicial, cómo debería estructurarse un poder judicial democráticocapaz de llevar a cabo la tarea de control, cuál es el fundamento de su legiti-midad, si es el control judicial de constitucionalidad un requisito indispensa-ble de la democracia constitucional, cuál es el alcance de las llamadas cues-tiones políticas o el de la constitucionalización de los derechos sociales y loque esto implica respecto a una intervención activista por parte del poderjudicial en la preservación de esos derechos, etc., nos encontramos con unainfinidad de respuestas diferentes que llevan a poner en duda la originariaconcepción del control de constitucionalidad como una actividad estricta-mente técnico-jurídica y a centrar la polémica -permanentemente abierta-en torno a la politicidad del juez constitucional. Así, el establecimiento enmuchos Estados democráticos, de órganos judiciales con competencia pararevisar en última instancia la constitucionalidad de disposiciones emitidaspor legislaturas elegidas democráticamente, no hizo más que revelar y lle-var a su punto máximo la inescindible relación entre el ámbito jurídico y elpolítico.

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Dicho en otras palabras, si con el surgimiento de las constituciones rígidasy la necesidad de determinar cómo atribuirles significado, cobró más relevan-cia tanto teórica como práctica la gran problemática de la interpretación,con la consecuente aparición de la jurisdicción constitucional, la cuestión seha vuelto aún más compleja. Así surgió el “formidable problema”, en palabrasde Mauro Cappeletti, de fundamentar la legitimidad democrática de este po-der, que llegaría a ser calificado por muchos como contra-mayoritario. Heaquí las dos caras de la misma moneda: cómo decidir (interpretación), y quiény por qué decide (legitimación). Ambas están presentes en los debates acercade los fundamentos del control judicial de constitucionalidad, aunque de di-versas maneras: mezcladas, separadas, negadas y/o ignoradas.1

Para quien aborde el tema desde la interpretación, puede resultar una buenaguía recordar la siguiente afirmación de Robert Alexy, “la ciencia del dere-cho, tal como es cultivada en la actualidad, es, ante todo, una disciplina prác-tica porque su pregunta central reza: ¿qué es lo debido en los casos reales oimaginarios? Esta pregunta es planteada desde una perspectiva que coincidecon la del juez”.2

Los intentos por responder a la cuestión de la interpretación generaron,en las últimas décadas, significativos y conocidos debates aún vigentes, acer-ca del carácter de la toma de decisiones judiciales, los cuáles se desarrollaronen torno a tópicos tales como el poder creador del juez y la posibilidad de hallarmediante interpretación soluciones correctas, sobre todo en aquellos casos ca-lificados como difíciles -hard cases-. Las alternativas que se plantearon, secorreponden con alguna teoría respecto de la naturaleza del derecho, ya que“lo que cuenta en última instancia y de lo que todo depende, es la idea delderecho, de la Constitución, del código, de la ley, de la sentencia”.3 Si de acuer-do con Habermas,4 desechamos la aspiración del iusnaturalismo racionalistaque cree posible someter al derecho vigente a criterios suprapositivos, el de-bate se genera entre tres posturas bien conocidas, a saber:

1 A su vez, este debate acerca de la fundamentación del control de constitucionalidad se inserta en otro de carácter másgeneral que surgió a raíz del creciente protagonismo social y político de los jueces a lo largo de los últimos doscientosaños, protagonismo que generó múltiples cuestionamientos a la labor judicial, sobre todo en lo atinente a su capaci-dad, su legitimidad y su independencia. Es por ello que ahora se habla cada vez más de la judicialización de losconflictos políticos, ya que si bien es cierto que en el origen del Estado moderno el sector judicial es un podersoberano, lo cierto es que sólo se asume públicamente como poder político en la medida en que pueda interferir conlos otros poderes.

2 Robert Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, pág. 33.3 Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia., Madrid, Trotta, 1995, pág. 9.4 Jurgen Habermas, Facticidad y Validez, Madrid, Trotta, pág. 268.

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a) la positivista, que proclama el sentido normativo específico de lasproposiciones jurídicas que conforman los sistemas jurídicos; loscuales a su vez son descriptos como completos y cerrados reducien-do así el problema a la inevitable textura abierta de los lenguajesnaturales,5

b) la conformada por las tesis de la respuesta correcta,6 la más distingidade las cuales es la de Ronald Dworkin al proponer la inserción de larazón que en el contexto histórico de las tradiciones de que se trate,a fin de reducir la indeterminación del proceso circular de com-prensión mediante referencia a principios que provean la mejor jus-tificación moral para la decisión de un caso,7

c) la escéptica que afirma la indeterminación radical propia del dis-curso jurídico habitual y busca las tensiones propias del mensajepolítico escondido en la idea de justicia, para revelar la posibilidadde interpretaciones alternativas, perfectamente coherentes con laspremisas declaradas por los jueces y mostrar así la falta de neutrali-dad valorativa que los distingue.8

Esta última posición, cobra fundamental importancia porque es la que nospermite salir del falso dilema que plantea el punto de partida clásico de estacontroversia, el cual inquiere si los graves problemas políticos que se sometenal máximo tribunal pueden resolverse con los criterios y métodos de una de-cisión judicial, y de ser así cuáles deben ser esos criterios y métodos.9 De esa

5 “A primera vista el espectáculo parece paradojal; ante nuestros ojos tenemos jueces ejerciendo potestades creadoras quedeterminan los criterios últimos para comprobar la validez de las propias normas que les confieren jurisdicción entanto que jueces. ¿Cómo puede una constitución conferir autoridad para decir lo que la constitución es? Pero laparadoja desaparece si recordamos que aunque toda regla puede ser dudosa en algunos puntos, es por cierto unacondición necesaria de un sistema jurídico existente que no toda regla sea dudosa en todos los puntos” (H.L.A. Hart,El concepto de derecho, trad. de Genaro Carrió, 2º ed., Buenos Aires, Abeledo Perrot, 1995, pág. 189).

6 En otros términos, implica afirmar que los tribunales tendrán en todos los casos que se les presenten, una única soluciónaplicable. Esta postura, que entronca con el realismo moral y la tradición iusnaturalista supone que a todo sistemajurídico le corresponde un mundo posible absolutamente determinado, y susceptible de otorgar una sola calificacióndeóntica para cada acción.

7 Véase por ejemplo R. Dworkin, Los derechos en serio, Barcelona, Planeta-Agostini, 1993, capítulo IV.8 “¿Cómo conjugar el acto de justicia que debe referirse siempre a una singularidad, a individuos, a grupos, al otro o yo como

el otro en una situación única, con la regla, la norma, el valor o el imperativo de justicia que tiene necesariamente unaforma general, incluso si esta generalidad prescribe una generalidad cada vez singular?... Dirigirse al otro en la lenguadel otro es la condición de toda justicia posible, pero esto parece rigurosamente imposible?” (Jacques Derrida, “Fuerzade ley: el fundamento místico de la autoridad”, Doxa, N°11, Alicante, 1992).

9 Cfr. Francisco Fernández Segado, “Reflexiones en torno a la composición del Tribunal Constitucional en España”,Lecciones y Ensayos, Nº 55, Buenos Aires, 1991, pág. 37.

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manera, se inicia la discusión desde un reduccionismo que presupone la neu-tralidad judicial y que evade toda consideración acerca de la dimensión polí-tica de esta función. Es justamente esta presunción, la que generará los mayo-res problemas a la hora de fundamentar la legitimidad del control judicial y laque de origen a más de una discusión circular y bizantina.

Como señala Gargarella,10 la estrategia consiste en demostrar que existenformas más o menos obvias y no arbitrarias de interpretar la Constitución,para luego volver a afirmar que los jueces no gobiernan ni reemplazan a loslegisladores, sino que simplemente dan cuenta del significado del texto. Paratal fin se apeló históricamente a diferentes justificaciones pretendidamenteobjetivas, a saber: las tradiciones, el derecho natural, los principios neutrales,la razón, el consenso, los principios filosóficos, etc.11 No obstante ello, lacomplejidad creciente de la mayor parte de los conflictos de rango constitu-cional, hizo que fuera cada vez más difícil sostener la caracterización tradicio-nal del poder judicial como el neutro equilibrio entre los verdaderos poderespolíticos, lo que implicaba negarle este carácter al primero. Como sostieneHabermas:

“el Tribunal Constitucional habría de proteger precisamenteese sistema de los derechos que posibilita la autonomía privaday pública de los ciudadanos. El esquema clásico de la separa-ción e interdependencia de los poderes del Estado ya no res-ponde a esa intención porque la función de los derechos fun-damentales ya no puede apoyarse en los supuestos de la teoríade la sociedad que el paradigma liberal de derecho comporta,es decir, ya no puede agotarse en proteger de las intrusiones delaparato estatal a los ciudadanos que de por sí gozasen de auto-nomía privada. Pues la autonomía privada viene tambiénamenazada por posiciones de poder económico y social...”12

La interpretación ya no puede reducirse entonces tan fácilmente a unatécnica jurídica que posibilite llevar adelante una mera lectura de la Constitu-

10 Roberto Gargarella, La justicia frente al gobierno, Buenos Aires, Ariel, 1996, pág. 60.11 Un análisis crítico y sintético de estas propuestas se encuentra en John Hart Ely, Democracia y desconfianza. Una teoría del

control constitucional, trad. cast. de Magdalena Holgín, Santafé de Bogotá, Siglo del Hombre Editores, Universidadde los Andes- Facultad de Derecho, 1997, en especial capítulo III.

12 J. Habermas, Facticidad..., op. cit., pág. 339.

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ción, ni se puede eludir el carácter político y discrecional de la función deljuez ni aún por parte de quienes gustan de combinar normas con lógica. Surgeasí la necesidad de nuevos argumentos que desarrollarán la otra cara de laproblemática, es decir la de la legitimidad del poder judicial para ejercer estafunción.

Como no es posible seguir negando el carácter político de la tarea de losjueces constitucionales, los nuevos argumentos estuvieron en muchos casosdestinados a cuestionar la función y legitimidad democrática de estos juecesno elegidos popularmente, muchas veces con carácter vitalicio y aparente-mente exentos de responsabilidad política. De nuevo las opiniones que sedieron fueron muchas, y todas intentaron resolver el “dilema entre la inope-rancia o la ilegitimidad”13 de los tribunales constitucionales, o dicho en otraspalabras entre optar por una concepción restrictiva de esta actividad y con-denarla a la inoperancia, o bien aceptar una amplia competencia con posi-bles márgenes de ilegitimidad.14 Aquí se revela con toda claridad como detrásde cada una de estas teorías subyace una concepción diferente de la democra-cia, y que este es el tema que en realidad se debería discutir. A tal fin resultaútil recordar uno de los primeros debates que se suscitaron durante los añosveinte en torno a este tema, aquél que sostuvieron Hans Kelsen y Carl Schmitt.Este último por medio de su rechazo a la democracia liberal, cuestionó la legi-timidad democrática de los procedimientos establecidos de defensa de la Cons-titución y sostuvo que la jurisdicción no podría tener a su cargo el control deconstitucionalidad de las leyes, especialmente cuando se trata de un controlcentralizado que hace perder fuerza a la ley, pues se trataría de una funciónnetamente política. Las próximas páginas estarán simplemente dedicadas aexponer ese debate, no porque encuentre valorable la conclusión a la quellega este autor, sino porque tal como sostiene Chantal Mouffe, muchas de suscríticas al liberalismo pueden prestar hoy en día un buen servicio en esta dis-cusión, al poner de manifiesto que no se puede excluir el fenómeno de lopolítico creyendo que “el acuerdo sobre reglas de procedimiento debería bas-tar para regular la pluralidad de intereses de una sociedad”.15

13 Cfr. José E. Estévez Araujo, La Constitución como proceso y la desobediencia civil, Madrid, Trotta, pág.69.14 En relación a losdebates acerca de los fundamentos de control judicial de constitucionalidad véase Gargarella, op. cit.15 Chantal Mouffe, “De la articualción entre liberalismo y democracia”, en El retorno de lo político, Barcelona, Paidós, 1999.

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EL DEBATE ACERCA DEL GUARDIÁN DE LACONSTITUCIÓN

Múltiples son los ejemplos que la historia nos da, sobre todo a lo largo deeste último siglo, de líderes políticos que reivindicaron para sí la legítima yúltima representación de su pueblo. E.J. Hobsbawm nos recuerda que muchosde los políticos nacionalistas, populistas y, en la forma más peligrosa, los fas-cistas, simplemente redescubrieron el tipo de relación que Napoleón III esta-bleciera con las masas campesinas francesas y que fuera lucidamente descriptapor Marx en el El dieciocho brumario de Luis Bonaparte.16

La terrible ejecución por parte del nazismo, de esta idea según la cual losauténticos valores de la gente pueden ser descubiertos de manera más confiablepor una elite hizo que la misma pasara a conocerse como “el principio delFührer”.17 La puesta en práctica del mismo incluyó en todos los casos, el reco-nocimiento de márgenes de acción amplios e incontrolados que permitieranal líder tomar las decisiones necesarias para realizar lo que “el pueblo” le en-comendó en forma directa. Muy común es que se aluda a dicha facultad conel término “decisionismo”, y que inmediatamente resurja la figura de CarlSchmitt, quien durante la decadencia de la República de Weimar previa aladvenimiento del nazismo, argumentó en favor del fundamento democráticodel cargo de Presidente del Reich concluyendo que, en virtud del mismo, soloél podía ser el legítimo defensor de la Constitución.

A simple vista, pareciera subyacer a lo largo de su planteo la siguienteidea: el poder no debe ser juzgado, el poder ejecutivo debe estar exento decontrol judicial ya que el respeto a las normas jurídicas supone en numerosasocasiones limitaciones al ejercicio de ese poder directamente encomendadopor el pueblo, por parte de jueces sin responsabilidad política directa.

El desarrollo de sus argumentos lo hizo en un trabajo denominado Ladefensa de la Constitución,18 que fuera escrito en abierta polémica con Hans

16 Eric Hobsbawm, La era del capital, 1848-1875, trad.cast. de A. García Fluixá y Carlo A. Caranci, Buenos Aires, Crítica, 1998).17 “Mi orgullo es que no conozco a ningún estadista del mundo que, con mayor derecho que yo, pueda decir que

representa a su pueblo” (A. Hitler, citado por Ely, op.cit., pág. 91).18 Carl Schmitt, La defensa de la Constitución, trad. cast. de Manuel Sánchez Sarto, 1º ed., Madrid, Tecnos, 1983 (2º ed., 1998),

por donde se citará. El mismo, originariamente publicado en 1931, es una versión ampliada y más elaborada -segúncuenta el propio Schmitt en el Prólogo- de una serie de estudios previos, el más importante de los cuáles ya había sidopublicado en 1929. Observa G. Cassió (véase el Estudio Preliminar de ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución? deHans Kelsen, trad.cast. de Roberto J. Brie, Madrid, Tecnos, 1995, pág. IX) que en el primer escrito Schmitt habla de“dictadura “ del Presidente, mientras que en segundo lo presenta como “defensor de la Constitución”.

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Kelsen,19 creador y miembro del Superior Tribunal austríaco; quien a su vezrespondió con la obra ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución?,20 en laque rechaza la consideración de aquél según la cual la justicia constitucio-nal no conduciría a juridificar la política, sino a politizar la justicia.

Este enfrentamiento se produjo en un delicado momento histórico signadopor el comienzo de las modernas dictaduras totalitarias facistas y por el ocasode la República de Weimar,21 la cual hacia 1929 sufrió una crisis económicaque acabaría con el período de relativa estabilidad política que había disfru-tado desde 1925. A su vez, la coalición tripartita (socialdemocracia, SPD;liberalismo democrático, DDP, y catolicismo social Zentrum), que había sidoel principal apoyo de la República, presentaba profundos signos deresquebrajamiento. Desde marzo de 1930 el gobierno estaba encabezado porel canciller Brüning, quien, frente al rechazo parlamentario de las leyes finan-cieras en el mes de julio, disuelve el Reichstag, y comienza a gobernar por re-glamentos del presidente Hindenbourg,22 apoyándose en la segunda parte delartículo 48 de la Constitución del Reich Alemán referente a los poderes deexcepción del Ejecutivo.23 Las elecciones que siguen dan un importante triunfoelectoral a Hitler, quien pudo así desmontar el sistema de la Constitución deWeimar, sin necesidad de derogarla formalmente.

Que esta polémica se haya desarrollado en tal contexto histórico, entredos de los más destacados especialistas de derecho público de la época y entorno a los problemas que encierra el ejercicio del control de

19 Más elocuentes son las palabras del propio Schmitt, La defensa..., op. cit. pág. 81: “Toda la aberración de esta especie delógica que se manifiesta en una rara mezcla de abstracciones sin fondo y metáforas llenas de fantasía se manifiestaen el problema del protector o garante de la constitución”. Al respecto señala C. Herrera en “La polémica Schmitt-Kelsen sobre el guardián de la Constitución”, Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), Nº 86, octubre- diciembrede 1994, pp. 195- 227, que si bien en este caso se trata de una confrontación directa entre ambos autores, se trataríade la consecuencia de un largo contrapunto que ya venía realizándose desde el inicio de la década del veinte oincluso antes. Agrega este autor, que de hecho podría afirmarse que la obra que Schmitt elabora durante ese períodode tiempo, se desarrolló fundamentalmente a partir de una “constante (aunque no siempre explícita)” contraposi-ción con la obra de Kelsen, que debe ser situada en el marco de una reacción general que se estaba produciendo enesa época, en los ámbitos académicos europeos contra la doctrina de la “escuela de Viena”.

20 Hans Kelsen, ¿ Quién debe ser el defensor de la Constitución?, trad.cast. de Roberto J. Brie, Madrid, Tecnos, 1995, por dondese citará.

21 Véase además Claude Klein, De los espartaquistas al nazismo: La República de Weimar, Madrid, Sarpe, 1985 y Carlos M.Herrera, op.cit.

22 La Constitución de Weimar preveía dos posibles titulares del poder político: el Presidente del Reich, elegido directamentepor el pueblo y el Canciller del Reich que era elegido por el primero y debía tener la confianza del Parlamento.

23 Schmitt argumentó a favor de esta medida en La defensa..., op.cit., pág. 68 y sig., y tuvo la oportunidad de ponerlas enpráctica en 1832, en un dictamen que como consejero jurídico del gobierno central, hiciera ante el Tribunal Superiorde Liepzip, en un conflicto entre éste y el gobierno de Prusia. Al respecto véase C. Herrera, op. cit., pág. 214.

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constitucionalidad muestra una vez más la importancia política de la misma ycómo la forma de entenderla, fundamentarla y ejercerla, lleva ínsita una con-cepción acerca de la democracia, tal como afirmáramos al comienzo.

LA TEORÍA DE LA CONSTITUCIÓN DE CARLSCHMITT

Si bien en Teoría de la Constitución24 Schmitt no se ocupa particularmentedel problema de la defensa de la Constitución, allí deja sentadas las premisasfundamentales con las que luego elaboraría su tesis sobre el tema.

La propuesta que realizará Schmitt en oposición a la que realizara Kelsen,debe ser ubicada en la tradición constitucional de la Alemania del siglo XIX,la cual difiere notablemente de las tradiciones francesa y americana. SeñalaEstévez Araujo,25 que en dicho país influyeron fundamentalmente dos tiposde factores, por un lado, una reacción historicista contra las pretensionesuniversalizadoras del pensamiento ilustrado en general y delconstitucionalismo francés en particular, y por otro, la ausencia de un procesorevolucionario que lograra poner en cuestión la existencia de la monarquía einstaurara un sistema político ex-novo.

La concepción historicista supuso así un rechazo de la concepción del dic-tado de la Constitución siguiendo el modelo del contrato social, y por lo tan-to la Constitución no sería un acuerdo formalizado por escrito, sino el frutode un proceso de decantación histórica que convierte a cada Constitución enun producto particular de su pueblo. De ese modo se dio preeminencia alconcepto de pueblo como “estirpe” frente a una concepción de pueblo comoconjunto de los individuos vivos dotados de uso de razón.26 Así se generó “unaconcepción material de la Constitución en virtud de la cual, ésta no sería laordenación jurídica del Estado recogida en un texto legal, sino el modo comode hecho es gobernado un pueblo”.27

24 Cfr. Carl Schmitt, Teoría de la Constitución, Madrid, Alianza, 1982, por donde se cita. Según Habermas (Facticidad..., op.cit., pág. 517, nota 74), marca la importancia que adquirieron las tesis de este autor el hecho de que aún hoy enAlemania, la discusión acerca de la generalidad de la ley sigue viniendo determinada por la exposición que hizo enesta obra, la cual resultó de mucha influencia en la República Federal, directamente a través de E. Forsthoff, oindirectamente a través de F. Neumann.

25 J. A. Estévez Araujo, La Constitución..., op.cit., pág. 43.26 Op.cit., pág. 44.27 Ibídem.

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Posteriormente con la culminación de la unificación alemana y la pre-eminencia del positivismo jurídico en el ámbito del derecho público, se im-pondría un concepto de Constitución estrictamente formal y despojado deexigencias políticas por el cuál, ésta sería considerada como una ley diferen-ciada de las leyes comunes por el procedimiento agravado previsto para sureforma. De esta forma, la Constitución aparecía como consecuencia de lavoluntad del Estado y no como el elemento constitutivo del mismo.

En cuanto a la interpretación del texto constitucional, el método utiliza-do por el iuspublicismo alemán privilegió el análisis de la norma entendidacomo texto legal plasmado por escrito, y su aplicación fue concebida de acuerdoal modelo silogístico sin consideración de cuestiones históricas, sociológicasy o políticas.28

Schmitt en su obra Teoría de la Constitución, intenta darle nuevamente aesta última un sentido unitario dada la disgregación que se había producidoen virtud de la adopción por parte de la Escuela Alemana de Derecho Públi-co, de ese concepto formal de Constitución.

Según él, la caracterización de la Constitución como una ley con procedi-miento agravado de reforma convierte a las diversas disposiciones que la in-tegran, en leyes constitucionales y a la Constitución en una simple suma deesas leyes. Esa caracterización positivista carecería así de un criterio para de-terminar qué disposiciones deben tener necesariamente carácter constitucio-nal y cuáles no. Afirma que el criterio necesario para otorgarle a las disposi-ciones que integran la Constitución ese sentido unitario, consiste en que setrata de decisiones acerca de la forma de existencia de una determinada uni-dad política. Esa es la caracterización de la Constitución que sostiene y quecalifica como concepto “positivo” de Constitución: la Constitución es unadecisión consciente acerca del modo de existencia de una unidad políticarealizada por el titular del poder constituyente. Remarca especialmente lanoción de poder constituyente, insistiendo en que deben distinguirse normay existencia. De esta forma intenta refutar que la Constitución puede ser de-finida como “norma de normas”; atacando así la “teoría normativa del Esta-do”, es decir, la teoría del Estado de Kelsen “en tantos libros repetida”.29

A partir de esa definición de Constitución, marca la diferencia entre esta, ylas meras “leyes constitucionales”. Según él, la primera está integrada única-

28 Op.cit., pág. 47.29 Op. cit., pp.45-46.

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mente por aquellas disposiciones que atañen al modo de la existencia políticadel Estado, mientras que las restantes disposiciones no son más que leyes cons-titucionales que valen en base a una Constitución y que la presuponen.30 De esadistinción, sobre la que se basa toda su teoría de la Constitución, extrae dosconsecuencias: por un lado, que la Constitución no puede reformarse por me-dio del procedimiento de reforma previsto por el propio texto constitucional,ya que el mismo sólo es utilizable para reformar las leyes constitucionales. Porotro lado, que el juramento de fidelidad a la Constitución se refiere a las deci-siones fundamentales contenidas en la misma y no se agota su contenido a ate-nerse al procedimiento de reforma constitucional.31

En relación al poder constituyente del pueblo, afirma que es de carácter“inconstituible” y que el mismo persiste una vez aprobada la Constitución.32

Cuando habla del carácter “inconstituible” del poder constituyente del pue-blo se refiere a que la expresión de su voluntad no está vinculada a determi-nadas “formas jurídicas y procedimientos”, sino que vale en cuanto puedacomprobarse que responde a la auténtica voluntad de su titular. Exigir quedicha manifestación de voluntad se ajuste a determinadas formas o procedi-mientos supondría constitucionalizar el poder constituyente, o bien supon-dría afirmar que por encima del poder constituyente existe otra instancia quele impone la observancia de determinadas formas.

Acerca de la persistencia del poder constituyente del pueblo tras la aproba-ción de la Constitución, dice que existen fundamentalmente dos supuestos enlos que se debe apelar al mismo y dejar que sea el que decida dado que es sutitular. El primer supuesto es el de los conflictos constitucionales que afectan “alas bases mismas de la decisión política de conjunto”,33 el segundo se refiere a laslagunas de la Constitución que “pueden llenarse, tan sólo, mediante un acto delpoder constituyente”.34 En los dos casos se daría una manifestación del puebloen cuanto poder constituyente en el marco de un sistema político constituidopara resolver problemas graves que afectan a su esencia, pero sin que llegue adarse una situación de crisis global de dicho sistema. En tales casos el pueblocomo poder constituyente se encontrará por arriba de la Constitución, ya queeventualmente podrá modificarla o reemplazarla por una nueva.

30 Op.cit., pág. 48.31 Op. cit., pp. 49-52. Esta distinción es importante ya que en La defensa..., se basará en ella para realizar su crítica a la

propuesta kelseniana.32 Op. cit., pp.97-99.33 Op. cit., pp.94-95.34 Ibídem.

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Por lo tanto en la concepción de Schmitt, la Constitución abarca ademásdel propio texto, la voluntad de una instancia dotada de legitimidad que pue-de manifestarse en el marco del sistema constituido, al margen de los procedi-mientos de reforma de la Constitución. Es esa posibilidad de apelar al pueblopara resolver conflictos o para eliminar lagunas, la que convierte a esta solu-ción en un criterio decisorio integrante de la Constitución.

También señaló otros casos en los que el pueblo no actúa en su calidad depoder constituyente sino que lo hace como poder constituido, en virtud deciertas competencias atribuidas por la Constitución; esto es, ejerciendo unafacultad reglada que debe ajustarse por disposición constitucional a ciertosrequisitos procedimentales y formales, como por ejemplo el derecho a votopara elegir al Presidente, el referéndum, etc.35 No obstante esta circunstancia,cabe aclarar que Schmitt niega que sólo puedan tener valor las manifestacio-nes de la voluntad popular expresadas mediante un procedimiento específicopreestablecido, ya que para él la forma natural de manifestación de la volun-tad popular es la aclamación,36 y por ello considera en particular al sufragioindividual y secreto como una forma inadecuada de manifestación de la vo-luntad popular. La aclamación supera, desde su punto de vista, los inconve-nientes que plantea la mera suma de voluntades del sufragio universal y se-creto, como mecanismo apto para configurar una auténtica voluntad general.

EL PRESIDENTE DEL REICH COMO DEFENSOR DELA CONSTITUCIÓN

Mas tarde en La defensa de la Constitución, Schmitt retoma ciertos aspec-tos de su teoría constitucional, y, desarrolló diversas líneas de argumentaciónen defensa de su tesis según la cual la interpretación de la Constitución no esuna actividad de carácter jurisdiccional como sostenía Kelsen,37 sino que porel contrario se trata de una función netamente política motivo por el cual

35 Op.cit., pp. 108 y 114.36 “la voz de asentimiento o repulsa de la multitud reunida” (op.cit., pág. 100).37 “la manera usual de ser actualmente tratada esta difícil cuestión de Derecho Constitucional hállase aún muy influida

por las ̀ ideas judicialistas´ que se inclinan a encomendar simplemente la solución de todos los problemas a unprocedimiento de tipo judicial y desprecian en absoluto la fundamental diferencia que existe entre un fallo procesaly la resolución de dudas y divergencias de criterio acerca del contenido de un precepto constitucional.” (LaDefensa..., op.cit., pág. 31).

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debe ser atribuida a un poder con responsabilidad política directa como elPresidente del Reich.

En el primer capítulo,38 Schmitt se ocupa de descalificar a la justicia comoprotectora de la Constitución utilizando diferentes argumentos. Sostiene enprimer lugar que el “derecho de control general (accesorio) ejercido por losjueces, y también llamado material”, no constituía en Alemania, una defensade la Constitución “en sentido estricto”.39 Dicho en otras palabras, para esteautor, el comprobar si las leyes simples están de acuerdo, en su contenido, conlos preceptos constitucionales, negando en caso de colisión y por aplicación delprincipio de supremacía constitucional vigencia a las leyes que no cumplancon ese requisito, no constituye una defensa de la Constitución. El error deconsiderar a los tribunales como “garantía máxima de una Constitución” loatribuye a ciertas opiniones generalizadas acerca del Tribunal Supremo de losEstados Unidos, que para algunos juristas alemanes de la época se había conver-tido “en una especie de mito”. Sin embargo, en su opinión, el mismo sólo puedeser considerado como un protector de la Constitución en un estado judicialista40

en el que se erige al Tribunal Superior en protector y defensor del orden social yeconómico existente.41 Por el contrario, en un Estado como el Reich alemán deesa época, el control debía apoyarse exclusivamente en normas que permitanuna “subsunción concreta”, de no ser así el juez dejaría de ser independiente“sin que pueda aducirse en su descargo ninguna apariencia de judicialidad”.42

De esta manera concluye reconociendo a la independencia judicial sólo elreducido ámbito del ejercicio de la subsunción silogística precisa y delimitadade la norma al caso concreto. Para él la posición del juez en el Estado de Dere-cho, su objetividad, su situación por encima de las partes, su independencia einamovilidad, descansa sobre el hecho de que falla sobre la base de una ley, ysu decisión deriva, en cuanto al contenido, de otra decisión definida y con-mensurable, que se haya contenida en la ley.43 Un buen resumen de esta pri-mera argumentación es el siguiente párrafo del propio Schmitt:

38 Op.cit., pág. 43 y sig.39 Ibídem.40 Para Schmitt los Estados pueden ser clasificados de acuerdo a la función que en ellos predomina, de la siguiente manera:

Estado de jurisdicción propio de la época medieval, Estado ejecutivo como el Estado absolutista, y Estado legislativoes decir el Estado liberal del siglo XIX. Cfr. C. Herrera, op. cit., pág. 210.

41 Op.cit.,. pp. 44, 46 y 52.42 Op.cit., pág. 53.43 “La independencia judicial es solamente el otro aspecto de la sujeción del juez a las leyes, y, por esa razón, es apolítica.”

(op. cit., pág. 248).

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Ante todo la justicia queda sujeta a la ley, pero por el hecho desituar a la ley constitucional por encima de la sujeción a la leysimple, el poder judicial no se convierte en protector de la Cons-titución. En un Estado que no es un mero Estado judicial, noes posible que la justicia ejerza semejantes funciones. Precisa,además, tener en cuenta que la observancia del principio delegalidad y, por añadidura, de legalidad constitucional, no cons-tituye por sí misma una instancia especial. De lo contrario,cada organismo público y, en fin de cuentas, cada ciudadanopodría ser considerado como un eventual protector de la Cons-titución.44

Vemos así como no sólo considera improcedente el atribuir la defensa dela Constitución a los tribunales, ya que la no aplicación de leyesanticonstitucionales a lo sumo solo “puede contribuir” a que sea respetada,sino que además concibió a esa tarea en términos excluyentes aún de la pro-pia ciudadanía. De hecho afirma que una buena prueba de la existencia de uneficaz protector de la Constitución, es el constatar que éste ha podido “supliry hacer superfluo este general y eventualísimo derecho a la desobediencia y ala resistencia.”45

El segundo argumento desarrollado por Schmitt en defensa de su posicióncontraria al control jurisdiccional, apunta a mostrar los “límites reales de todopoder judicial”46 cuestionándose qué es lo que en general puede hacer la justi-cia para proteger a la Constitución y hasta qué punto es posible organizardentro de su esfera instituciones especiales cuyo sentido y fin sea asegurar ogarantir la Constitución. Que esa pregunta no haya sido planteada en los añosde la primera posguerra sino que directamente se haya optado “con manifies-ta ligereza” por situar al protector de la Constitución en la esfera de la justiciase explica para Schmitt por diversas razones, entre las que sobresalen por unlado la vigencia de una “idea falsa y abstracta acerca del Estado de derecho”,y por otro una “tendencia orientada contra el democrático principio de ma-yorías”.47

44 Op. cit., pág. 55.45 Schmitt, op. cit. pág. 56.46 Op. cit., pág. 57.47 Op. cit., págs. 57 y 61.

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La primera de las razones citadas, la atribuye a la comodidad que implicael concebir a la resolución judicial de todas las cuestiones políticas, como elideal dentro de un Estado de Derecho sin tener en cuenta que con la expan-sión del campo de intervención de la justicia “a una materia que acaso ya noes justiciable sólo perjuicios pueden derivarse para el poder judicial”. Es aquídonde afirma que la consecuencia no es una judicialización de la política sinouna politización de la justicia. Se enfrentó así directamente a Kelsen48 afir-mando que este último por concebir al Estado de Derecho en términos abs-tractos no reconoce las distinciones “concretas” e ignora las diferencias “efec-tivas” que existen entre Constitución y ley constitucional, concluyendo sar-cásticamente que con tal criterio más sencillo hubiera sido “hacer que el Tri-bunal supremo estableciera a su leal saber y entender las normas de la Políti-ca, orientadas a perfeccionar, en sentido formal, el Estado de Derecho.”

La tendencia orientada contra el democrático principio de mayorías, laatribuye a una alteración de las funciones de gobierno tendiente a asegurarintereses determinados, en especial de una minoría contra las mayorías parla-mentarias de cada momento. Así se intentarían proteger ciertas actividades eintereses que sólo competen al legislador, contra el legislador mismo. Inten-ción que para él, sólo encuentra sustento en la teoría de la separación de po-deres con su tradicional división tripartita,49 y en la vigencia de la tradicióndel Estado judicial propio de la Edad Media que sólo podía conducir a “lasaspiraciones ́ naturalísimas` de un Tribunal soberano”.

Explicitados los motivos por los cuáles se optó por el control jurisdiccio-nal, se pregunta si el ejercicio de tal actividad “aunque aureolado con apa-riencia de judicialidad” sigue siendo en la práctica justicia o si se trata de “undisfraz engañoso” de atribuciones de marcado carácter político.50 Llega a estaúltima conclusión diciendo que si efectivamente se tratara de una prácticajudicial desarrollada mediante un procedimiento regular controvertido entrepartes, rápidamente se encontrarían las limitaciones de la justicia para ejercerla tarea de protección de la Constitución. En otras palabras, dado que todoórgano jurisdiccional posee límites objetivos por ocurrir post eventum,51 y porlo tanto su misión sólo puede ser sancionadora o absolutoria, reparadora o

48 “Es cierto que un habilidoso método formulista logra sobreponerse a tales razones, y resulta incontrovertible, porquetrabaja con ficciones que carecen de contenido y contra las cuales, por tal causa, es inútil luchar.” (Op. cit., pág. 57).

49 Op. cit., pp.61y 62.50 Op. cit., pág. 63.51 “La lógica interna de toda judicialidad llevada hasta sus últimas consecuencias conduce inevitablemente al resultado de

que el fallo judicial genuino sólo se produce post eventum” (Op. cit., pág. 71).

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represiva, pero siempre de hechos pasados, y teniendo en cuenta además quepor ser incidental, accesoria y aplicable exclusivamente al caso concreto yespecífico que fue sometido a proceso,52 sólo puede virtualmente servir comoprecedente judicial pero no como protectora de la Constitución.53 Si se inten-tara corregir ese inconveniente facultando a los tribunales para dictar “reso-luciones previsionales”, el juez se enfrentaría a la posibilidad de adoptar me-didas políticas o de impedir otras, procediendo activamente en el orden polí-tico quedando así convertido en un “factor dominante de la política inte-rior”.

Subyace a este razonamiento su concepción material de jurisdicción,54 se-gún la cual “juzgar”, “dictar sentencia”, etc., quiere decir adoptar una decisiónsobre un caso concreto “en base a una ley”. Lo cual, a su vez, significa que ladecisión que se adopte en la sentencia está predeterminada en su contenidopor lo establecido en la ley.55 Dictar sentencia “en base a una ley” es, en estesentido, diferente de ejercer determinadas funciones “en base a la Constitu-ción”. Schmitt utiliza la categoría de “subsunción” para ilustrar esta diferen-cia: lo que el juez hace al dictar sentencia es subsumir el caso concreto bajo laley general, por el contrario, cuando el presidente del Reich declara el estadode excepción en razón de las atribuciones que le otorga la Constitución norealiza subsunción alguna.56 Pareciera que la diferencia entre aplicar una ley yaplicar la Constitución radica para él en que esta última otorga facultadespara adoptar decisiones, pero sin determinar el contenido de las mismas, mien-tras que la ley sí predetermina la decisión para el caso concreto.57

Consecuentemente su tercer argumento en contra de la jurisdicción comoprotectora de la Constitución, consiste en afirmar que la determinación pre-cisa de un precepto constitucional dudoso en cuanto a su contenido, es mate-ria de la legislación constitucional y no de la justicia. Aquí pone en cuestión,

52 Cabe aclarar que si bien las experiencias en materia de control de constitucionalidad de Weimar y Austria fueron de lasprimeras, existía una diferencia importante entre ambas, ya que la primera tenía un sistema difuso.

53 “la protección judicial de la Constitución no es más que un sector de las instituciones de defensa y garantía instituidascon tal objeto, pero revelaría una superficialidad notoria el hecho de olvidar la limitación extrema que todo lo judicialtiene, y que por encima de esta protección judicial existen otras muchas clases y métodos de garantizar la Constitu-ción.” (Op. cit. pág. 41).

54 Op.cit., pág.79.55 “En el Estado cívico de Derecho sólo existe Justicia en forma de sentencia judicial sobre la base de una ley.” (Op. cit., pág.

78).56 Op.cit., pág. 80, nota 58.57 “Es un abuso dejar que se borre la diferencia entre indicación de competencia y regulación concreta.” (Op. cit., pág. 81).

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por un lado, que el control abstracto de normas sea una cuestión de aplica-ción de normas, es decir una operación genuina de la práctica de toma dedecisiones judiciales. Afirma que “las reglas generales sólo se comparan entresí, pero no se subsumen unas bajo otras o se aplican unas a otras”, mostrandode esa manera la falta de relación entre norma y hecho58 necesaria en la ope-ración lógico-jurídica -en particular, en la “subsunción en el supuesto de he-cho”-, que, según la tradición del positivismo, es la única a la que habría podi-do referirse el término “aplicación”.

Claro que para ello, utiliza nuevamente su concepto muy estricto de “apli-cación” en virtud del cual “aplicar” un ley se refiere únicamente a la opera-ción de decidir acerca de un caso concreto “subsumiéndolo” en los conceptosabstractos contenidos en la norma. De ahí que por esa ausencia del supuestode hecho, afirme que el control de constitucionalidad de la actividad estatalno podría consistir en una “aplicación” -en el sentido judicial de la palabra-de las normas constitucionales a los contenidos de dicha actividad y que, amenos que se incurriera en un evidente “abuso de las formas”, la garantía deconstitucionalidad de la actuación del Estado no podría configurarse comoactividad jurisdiccional.59

Señala además, que con la concepción jerárquica del orden jurídico, lascuestiones más difíciles de resolver y de mayor trascendencia práctica queson aquellas que se presentan dentro de los mismos preceptos legales formu-lados en la Constitución, seguían sin resolverse ya que “en ese caso no existela posibilidad de fingir una gradación de normas, y, por consiguiente, cuandoun precepto legal de los contenidos en la Constitución determina algo distin-to que otro de los preceptos de la misma [...], la colisión no puede resolversecon ayuda de una ´jerarquía de normas`”.60 Para él, por el contrario, debeconcebirse en términos políticos y atribuir su competencia a órganos com-prometidos y responsables políticamente.

La estructura de las fórmulas constitucionales de principio las atribuye asíal campo de la utilización o gestión “política”, irremediablemente incompati-ble con la naturaleza de las funciones que se consideran auténticamente judi-ciales desde el positivismo. Esta circunstancia no sólo derivaría del carácter

58 Op. cit., pág. 85.59 “cuando la ‘norma’ es tan amplia y vacía que no resulta ya posible una subsunción concreta, o cuando sólo existe una

indicación de competencia, en esa misma medida se pierde, con la norma justiciable, el fundamento para unasolución de tipo judicial.” (Op. cit., pág. 81, nota 58).

60 Op. cit., pág. 87.

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impreciso y no rígido de los principios y, por tanto, del carácter inevitable-mente creativo ínsito de la determinación de su significado, sino también, ysobre todo, de su pretensión de generar adhesión y participación en la con-cepción “política” de la que son expresión.61

Por último, en apoyo de su idea Schmitt desarrolla una línea de argumen-tación con la finalidad de demostrar que en las resoluciones del Tribunal Cons-titucional el componente decisionista es el determinante a diferencia de loque ocurre en las sentencias judiciales. Schmitt admitie que en toda senten-cia judicial hay un “componente decisionista”, pues la resolución del casoconcreto no puede derivarse por completo de la norma general, pero en lasdecisiones que ponen fin a la discusión acerca de las interpretaciones de lospreceptos legales dudosos contenidos en la Constitución, este elementodecisionista no es sólo un componente, sino el “sentido y objeto” de la deci-sión.62 Por lo tanto, cuando el Tribunal Constitucional fija el sentido de unadisposición constitucional de contenido impreciso el componente normati-vo desaparece quedando únicamente el componente decisionista de ponerfin a la discusión.63

Lo que Schmitt quiere poner de manifiesto es que la sustancia del poderdel Tribunal Constitucional consiste en la facultad de adoptar una decisiónque ponga fin a la controversia. El Tribunal tiene la facultad de decidir enúltimo extremo, de adoptar una decisión que no puede ya ser puesta en cues-tión. Es esa facultad, y no la calidad de sus argumentos, lo que fundamenta susdecisiones. Por ello, para él, el Tribunal Consitucional no pone fin a la discu-sión porque sea el “máximo experto”64 en derecho constitucional y sus argu-mentos sean los más fundados y sólidos, sino porque tiene la facultad de deci-dir en última instancia el contenido “de una ley formulada en la Constitu-ción, y como consecuencia esto significa una determinación del contenidolegal: es decir, legislación, y hasta legislación constitucional, pero no Justi-cia.”65

61 Zagrebelsky, op. cit., pág. 127, nota 7, califica a estas argumentaciones de Schmitt como:”anticipadoras acerca del tipode problemas que toda jurisdicción constitucional actual debe afrontar, ligados, por lo general, a la necesidad deevaluar la validez de las leyes”.

62 Op. cit., pp.90-92.63 “podemos decir que la decisión, es como tal, sentido y objeto de la sentencia, y que su valor no radica en una

argumentación aplastante, sino en la autoritaria eliminación de la duda...” (Op. cit., pág. 91).64 Op. cit., pág. 90.65 Op. cit., pág. 80.

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El corolario de todas estas argumentaciones es que cuando el TribunalConstitucional determina el contenido impreciso o dudoso de una disposi-ción constitucional, está realizando una “interpretación auténtica de la mis-ma”. La operación del Tribunal Constitucional consistente en determinarautoritariamente el contenido dudoso e impreciso de una norma constitucio-nal, es pues para Schmitt, legislación y no jurisdicción como pretende Kelsen.66

Por ello agrega que, cuando se llega a considerar que la misión de un tribunalde justicia constitucional consiste en resolver de modo indiscutible las dudasreferentes a un precepto constitucional, la tarea de dicho tribunal no sólo yano es hacer justicia, sino que constituye una “turbia asociación de legislacióny labor de asesoramiento.”67 Opción que además presenta para él dos dificul-tades previas, por un lado el definir quién decide qué se entiende por litigioconstitucional ya que si fuera el propio tribunal “el protector se convertiríaen dominador de la Constitución”;68 y por otro el determinar quiénes even-tualmente podrán ser parte en ese litigio. En relación a esta última cuestiónnuevamente da una solución restrictiva y excluyente, al afirmar que el admi-tir como partes a los más variados grupos sociales, daría lugar a una concep-ción pluralista del Estado, en virtud de la cual la Constitución pasaría de ser“una decisión política del titular del poder legislativo”, a ser un sistema dederechos contractualmente adquiridos.69

En tal caso, los diversos grupos sociales tenderían a reclamar el derecho alejercicio del poder político que surge de la Constitución, por haber sido ellosquienes la han llevado a término, provocando de esa manera la fragmenta-ción pluralista del Estado.70 Situación, a la que ve más acorde con una socie-dad estamental propia de la Edad Media que con la situación que atravesabael Reich alemán de esa época, cuya Constitución “afirma la idea democrática

66 Op. cit., pp.89-90.67 Op. cit., pág. 96. Llegados a este punto, nuevamente se referirá a la independencia de los jueces, afirmando que:”La

tendencia de los juristas profesionales que integran un Tribunal a mantenerse dentro del marco concreto de laJusticia no debe considerarse como signo de una mera precaución política o como mezquindad de subalterno, nidebe tildarse por esa razón como un acto reprobable, psicológica o sociológicamente. Con ello más bien se demuestrasolamente que es improcedente atribuir a la Justicia ciertas funciones que rebasan el ámbito de una subsunción real,es decir, que traspasan las fronteras establecidas por la sujeción a normas de contenido preciso.”

68 Op. cit., pág. 101.69 “Cuando el Estado no se considera como una unidad hermética (ya sea por domino de un monarca o de un grupo

imperante, ya sea por la homogeneidad de la nación, unificada en sí misma), descansa de manera dualista o acasopluralista sobre un convenio o compromiso de varias partes.” (Op. cit., pág. 111).

70 Op. cit., pág. 111 y sig. En este punto nuevamente se distanció de Kelsen, afirmando que este último negaba con“desenfado” esta situación al calificar al Estado parlamentario como un compromiso, negación que tendría origen enla típica confusión liberal entre liberalismo y democracia. Cfr. op. cit., pág. 114, nota 88.

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de la unidad homogénea e indivisible de todo el pueblo alemán, que, en vir-tud de su poder constituyente, se ha dado a sí mismo esta Constitución me-diante una decisión política positiva, es decir, mediante un acto unilateral.”71

Por esto último, dice que quienes intentaran ver en la Constitución deWeimar un contrato, o algo de similares características, estarían vulnerandosu espíritu; en cambio quienes hubieran comprendido que se trataba de unadecisión política del pueblo alemán unificado como titular del poder consti-tuyente, en virtud del cual el Reich alemán era una democracia constitucio-nal, podrían ver que la cuestión relativa al protector de la Constitución hu-biera podido resolverse de otra manera que mediante una “ficticiajudicialidad”.72

A esta altura ya se puede advertir porqué en la segunda parte de La defensade la Constitución tampoco reconoce en el legislador al auténtico defensor dela misma, a pesar de que el argumento que utilizó con mayor insistencia paradescalificar a la jurisdicción como protectora de la Constitución es que en talcaso se estaría aceptando que realice tareas legislativas.

Para Schmitt conspiraba contra la unidad del Reich alemán, la “neutrali-dad” liberal característica del “disolvente Estado de partidos de coalición lá-bil”73 que caracterizaba al sistema parlamentario de aquél entonces, en el quelos partidos políticos constituían estructuras fuertes que representan clases eintereses diversos, y que lo transforman en un Estado pluralista.

Las crisis del parlamentarismo y de la representación las asocia con laemergencia de una ciudadanía ampliada a los sectores populares y de los con-siguientes partidos de masas. Estos últimos habían acabado para él, con ladiscusión abierta y la competencia de argumentos, ya que en la nueva demo-cracia de partidos la verdadera formación de políticas y leyes no se hace pú-blicamente, sino desde una u otra comisión y conforme a las decisiones yarreglos de las cúpulas partidarias.

Todos esos intereses contrapuestos en el Parlamento impedirían “formaruna voluntad política e instituir un Gobierno capaz de gobernar”. Esto impli-ca que si se acepta que la Constitución funcione como una regla de juego para

71 Op. cit., pág. 113, la negrita es nuestra. Aquí se advierte claramente como volvió sobre sus conceptos de la Teoría de laConstitución.

72 Op. cit., pág. 124.73 Op. cit., pág 167.

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la lucha entre partidos políticos, la unidad política desaparecería porque nose trataría de otra cosa que alianzas y compromisos entre ellos, por lo quesurge la necesidad de restablecer la unidad política, es decir la situación nor-mal. Así a lo largo de su razonamiento opone al “parlamentarismo liberal” el“presidencialismo democrático” mediante las antinomias: votación- aclama-ción, pluralismo- unidad; y al “pluralismo” el “Estado total”.

Vemos que en la concepción de Schmitt es esencial para la democracia,entendida como la unidad e identidad de un pueblo, el defender la homoge-neidad “que le es propia y aniquilar las diferencias que la amenazan”. Por ello,afirma que el órgano legislativo no sólo resulta un imposible defensor de laConstitución, sino que es el propio generador de esa necesidad de defensa dela misma. Por ello, planteó la importancia de recrear la forma de gobierno yresuelve que debe relegarse al Parlamento y hacer del Presidente del Reich eldefensor de la Constitución.74

A esa conclusión llega luego de analizar y descartar una serie de medidasque califica como “remedios y reactivos”, tales como la adopción de una Cons-titución económica como la soviética o el establecimiento de incompatibili-dades entre cargos parlamentarios e intereses económicos.

El carácter democrático del Presidente del Reich, deviene así de la legiti-midad plebiscitaria, ya que en la unidad e identidad del propio pueblo alemánse encontra la única fuente y el único límite del poder presidencial, estable-ciendo así una vinculación directa entre el Presidente y el pueblo considera-do como un todo. Esa vinculación la derivó de dos tipos de consideraciones:por un lado, porque es elegido por medio de sufragio directo; por otro lado,porque determinadas facultades suyas, como la de disolver el Parlamento o lade promover un plebiscito, las entiende como formas de “apelar al pueblo”.75

De este modo, el Presidente del Reich es considerado por Schmitt comoel punto de referencia que sirve para canalizar la expresión de la voluntadpopular en un sentido plebiscitario: como manifestación de aprobación o re-pulsa frente a una determinada propuesta que el Presidente es el encargadode formular.

74 “La necesidad de instituciones estables y de un contrapeso al Parlamento representa en la Alemania actual un problema denaturaleza distinta que anteriormente el control del monarca. Ello puede aplicarse tanto al derecho de control general,difuso, de los jueces, como al control concentrado en una sola instancia.[...] Esto significaría algo apenas imaginabledesde el punto de vista democrático: trasladar tales funciones a la aristocracia de la toga” (op. cit., pág. 245).

75 Op.cit., pág. 250.

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Una vez equiparado el Estado democrático con la unidad política de unpueblo, afirma que no puede existir más que una voluntad política y que paradefenderla, el soberano, es decir el que decide, debe distinguir al amigo delenemigo, tanto dentro como fuera del Estado. Es a partir de la relación conese enemigo virtual, que cobra significado para él la defensa de la Constitu-ción.

Schmitt lo explica señalando una serie de mecanismos cuyo objetivo esgarantizar la independencia de los diversos órganos estatales, estos meca-nismos consisten en un conjunto de “incompatibilidades” e “inmunidades”.76

Ahora bien, el sentido de dicha independencia es diferente en unos casos yen otros. En el caso de determinados órganos -como los jueces-, los meca-nismos garantes de la independencia tienden a evitar la formación de unavoluntad política o que en sus decisiones influyan los grupos políticos. Enotros supuestos, de lo que se trata es de garantizar la formación de una vo-luntad política fuerte por encima de las diferencias entre partidos y tenien-do como única referencia la unidad política en su conjunto.77 Por ello afir-ma que los mecanismos de garantía de la independencia del Presidente delReich -elección realizada por todo el pueblo, mandato de siete años y trabasque se oponen a su revocación- son del tipo de los que tienden a asegurar laformación de una voluntad política fuerte por encima de las que considera“tendencias disgregadoras” de los partidos y grupos sociales organizados. Alser el presidente, el órgano que para él puede establecer una comunicaciónmás directa con el titular del poder constituyente a la cual ve materializadaen la aclamación del pueblo, lo convierte en el verdadero “guardián de laConstitución”.78

Sin embargo, su defensa de la Constitución no consiste -como en el casode Kelsen- en controlar la constitucionalidad de las leyes, sino que el Presi-dente es una instancia “protectora y garante del sistema constitucional y delfuncionamiento adecuado de las instancias supremas del Reich”. La defensade la Constitución consiste, entonces, en la preservación de la unidad políti-ca, y ello implica mantener la unidad del Estado frente a la disgregación par-tidista e impedir que los enemigos instrumentalizen la Constitución para suspropósitos.

76 Op. cit. , pág. 238 y sig.77 Op.cit., pp. 245-248.78 Op.cit., pp. 249-251.

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El desarrollo de su planteo lo hace a partir de una interpretación del artí-culo 48 de la Constitución de Weimar79 y tomando como base la teoría delpouvoir neutre, intermédiaire y régulateur de Benjamin Constant,80 por la queidentifica los “poderes excepcionales” del presidente del Reich con la fun-ción de “defensor de la Constitución”. Tales poderes excepcionales estan paraél, constituidos por una serie de prorrogativas y atribuciones del Jefe de Esta-do, creadas como elementos y posibilidades de intervención en su calidad depouvoir neutre, a saber: posición privilegiada del jefe de Estado, refrendo ypromulgación de las leyes, prerrogativa de indulto, nombramiento de minis-tros y funcionarios, etc.

Según él, la Constitución de Weimar al establecer un Estado parlamenta-rio representativo procura dar al Presidente del Reich una suma de atribucio-nes de ese tipo, que lo colocaran como un auténtico “poder neutral, media-dor, regulador y tutelar”81 dentro de la clásica división de poderes, como “uncierto centro en la Constitución” frente a las antítesis sociales y económicasde la sociedad, cuya actividad se produciría activamente sólo en casos de ne-cesidad. Este poder neutro sería el llamado a constituir el “eficaz remedio contrala desintegración automática propia del estado pluralista”, ya que en este últi-mo cuanto más numerosas fueran las elecciones colectivas ya sea por referén-dum, en el Consejo del Reich, en los Consejos obreros, etc., mayor sería lanecesidad de disponer “de un punto fijo, al cual concurran todos los hilos,ideológicamente por lo menos.”82

79 Este artículo, que era aquél en el que se había apoyado el canciller Brüning para disolver el Parlamento, decía: “Cuandoun Territorio no cumple con los deberes que le imponen la Constitución o las leyes del Reich, el Presidente del Reichpuede obligarle a ello con la ayuda de la fuerza armada. Cuando en el Reich alemán el orden y la seguridad públicosestén considerablemente alterados o amenazados, el presidente del Reich puede adoptar las medidas necesarias parael restablecimiento de la seguridad y el orden públicos, incluso con ayuda de la fuerza armada en caso necesario. Aeste efecto, puede suspender temporalmente, en todo o en parte, los derechos fundamentales consignados en losartículos 114, 115, 117, 118, 123, 124 y 153 [se trataba de la libertad personal, inviolabilidad del domicilio, secreto decorrespondencia, libertad de opinión, libertad de reunión, libertad de asociación y derecho de propiedad respectiva-mente]. De todas las medias que adopte con arreglo a los párrafos 1.º y 2.º de este artículo, el Presidente del Reichdeberá dar conocimiento inmediatamente al Parlamento. A requerimiento de éste, dichas medidas quedarán sinefecto. El gobierno de un Territorio podrá aplicar provisionalmente las medidas expresadas en el párrafo 2.º de esteartículo cuando el retraso en adoptarlas implique peligro. Tales medidas quedarán sin efecto a instancia del Presiden-te del Reich o del Parlamento. Los pormenores serán regulados por una ley del Reich.” Cfr. G. Gasió, op.cit., pág.XXVI, nota 36.

80 “Tanto en el orden constitucional como en la teoría política es esta doctrina de máximo interés. Descansa sobre unaacepción política, que reconoce claramente la posición del rey o del presidente del Estado en el Estado constitucio-nal, y la expresa en una fórmula certera.” (Schmitt, La defensa..., op. cit., pp. 215-216).

81 Op. cit., pág. 225.82 Op. cit., pág. 221.

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LA RESPUESTA KELSENIANA

En su obra ¿Quién debe ser el defensor de la Constitución?, Hans Kelsen con-testó a Schmitt diciendo que su concepción de la jurisdicción como meraaplicación no controvertida de la regla al supuesto de hecho es una caricatu-ra, un fantoche que ningún jurista conocedor de la naturaleza actual de lajurisdicción puede tomar en serio y que parece creada adrede por su antago-nista para facilitar su función polémica específica: la destrucción de laspremisas de un posible control judicial sobre la constitucionalidad de las leyes.

Señala Kelsen que a tal fin, el razonamiento de Schmitt parte del presupues-to erróneo de que existe una contradicción esencial entre la función jurisdic-cional y las funciones políticas, y que en especial la decisión acerca de laconstitucionalidad de las leyes y la anulación de leyes inconstitucionales sonactos políticos, a partir de lo cual concluye que tal actividad no sería justicia.Recuerda además, que quienes como en su caso defendieron la instauración deun Tribunal Constitucional, nunca habían negado que el mismo tiene un ca-rácter político en una medida aún mucho mayor que el resto de los tribunales,ni habían desconocido el significado político de sus sentencias. Agrega tam-bién que cuando se califica a un conflicto como “no arbitrable” o político, no esporque haya algo en su naturaleza que determine tal condición y por lo tanto loconvierta en no justiciable, sino que una de las partes o ambas no quieren poralgún motivo que sea sometido a una instancia “objetiva”.83

Para Kelsen, Schmitt cae en el error de considerar al Parlamento como elúnico órgano creador de derecho. Por ello concluye diciendo que la concep-ción de Schmitt:

es falsa porque presupone que el proceso de ejercicio del poder seremata en el proceso legislativo. No se ve, o no se quiere ver, queel ejercicio del poder encuentra su muy esencial continuidad eincluso hasta su efectiva iniciación en la jurisdicción, no menosque en la otra rama del ejecutivo, cual es la Administración.[...]todo conflicto jurídico es, por cierto, un conflicto de intereses, esdecir, un conflicto de poder; toda disputa jurídica es consecuen-temente una controversia política, y todo conflicto que sea ca-racterizado como conflicto político o de intereses o de poder pue-de ser resuelto como controversia jurídica 84

83 H. Kelsen, ¿Quién debe ser el defensor de la constitución?, pág. 20.84 Op. cit., pp. 18-21.

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Por otro lado, en relación a la objeción de Schmitt según la cuál el controlabstracto de normas no constituye una genuina aplicación de normas, Kelsenreplica que el objeto del control no es el contenido de una normaproblematizada, sino la constitucionalidad de su producción: “El hecho queen las decisiones sobre la constitucionalidad de una ley se subsume bajo lanorma que representa la Constitución, no es la norma [...], sino la producciónde la norma”.85

Sin embargo, sus argumentos más importantes se situan en el terreno delas concepciones políticas que lo separan de Schmitt, ya que tal como vimos,ante la crisis del sistema jurídico-político de la Constitución de Weimar, mien-tras Kelsen busca la conciliación de intereses en un Estado parlamentariocontrolado jurisdiccionalmente,86 Schmitt reclama un líder político que dis-tinga al amigo del enemigo y adopte decisiones en el Estado total. Por ello eneste trabajo se dedica sobre todo a defender a la Constitución del defensorpropuesto por Schmitt.87

Comenza por recordar que “defensor de la Constitución” significa, un ór-gano cuya función es defender la Constitución contra las violaciones del Es-tado subordinado directamente a la misma; y que la función política de laConstitución es la de poner límites jurídicos al ejercicio del poder, por lo queconcluye que si algo es indudable es que ninguna otra instancia es menosidónea para tal función que aquella, precisamente, a la que la Constituciónconfiere el ejercicio total o parcial del poder y que por ello, tiene en primerlugar “la ocasión jurídica y el impulso político para violarla.”88 Quienes por elcontrario sostienen que la garantía de la Constitución es una tarea del Jefe deEstado, sólo estan disfrazando su inexplicable y verdadero objetivo políticoque consiste en impedir las garantías efectivas de la Constitución. Señala queesta última situación, en general no puede ser vista claramente porque se laoculta mediante la ficción de un interés general o de una unidad de intereses,

85 Op. cit. , pág. 25.86 Cfr. C. Herrera, “La polémica Schmitt- Kelsen sobre el guardián de la Constitución”, Revista de Estudios Políticos (Nueva

Época), Nº 86, octubre-diciembre de 1994, pp. 201-202.87 “Como precisamente en los casos más importantes de vulneración de la Constitución el Parlamento y el gobierno son

partidos en pugna, lo recomendable para dirimir esta disputa es recurrir a una tercera instancia que esté fuera de esaoposición y que de ningún modo esté implicada ella misma en el ejercicio del poder que la Constitución distribuyeen lo esencial entre Parlamento y Gobierno. El que esta instancia obtenga por esta vía un cierto poder, es inevitable.Pero se da una gran diferencia entre dotar a un órgano del Estado de un poder que se reduce al poder de controlinstitucional, o reforzar aún más el poder de uno de los dos principales portadores del poder del Estado, asignándoleademás la función de control constitucional” ( Kelsen, La defensa..., op. cit., pág. 54).

88 Op. cit., pág. 5.

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que es la “típica ficción” de la que se echa mano “cuando se trabaja con la´unidad` de la ´voluntad` del Estado, o con la ´totalidad` de lo colectivo,en un sentido distinto al puramente formal, con el fin de justificar una deter-minada configuración del orden estatal.”89 Un ejemplo de esto es el referén-dum, el cuál constituye para Schmitt una garantía de la expresión del pueblocomo unidad, mientras que para Kelsen en el -mejor de los casos- sólo consti-tuye la voluntad de una mayoría.

Concluye señalando que la afirmación de Schmitt, según la cual las ame-nazas a la Constitución provienen solamente del poder legislativo, es absolu-tamente injustificada ya que “está en contradicción directa con los hechos”90,recondándole a su oponente que el Tribunal austríaco a través de su jurispru-dencia había entrado en un conflicto con el gobierno que prácticamente pusoen peligro su existencia; y que en relación a Weimar, no se podían “cerrar losojos” frente a la relevante expansión legislativa que tenía lugar cuando el“derecho del Gobierno a reglamentar toma[ba] el lugar del derecho legislativo delParlamento.”91

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89 Op. cit., pág. 43.90 Op. cit., pág. 74.91 Op. cit., pp. 74 y 53.

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Declaração de princípios sobre atolerância proclamada e firmada

em 16-11-1995 - UNESCO1

Os Estados membros da Organização das Nações Unidas para a Educação,a Ciência e a Cultura, congregados em Paris, por motivo da 28 Reunião daConferência Geral, de 25 de outubro a 16 de novembro de 1995,

PreâmbuloEl carácter político del control de constitucionalidad

Tendo presente que a Carta das Nações Unidas declara “ nós, os povos dasNações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guer-ra... a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e novalor da pessoa humana ... e com tais finalidades a praticar a tolerância e aconviver em paz como bons vizinhos”,

Recordando que no Preâmbulo da Constituição da UNESCO, aprovada em16 de novembro de 1945, se afirma que a “paz deve basear-se na solidariedadeintelectual e moral da humanidade”,

Recordando ainda que na Declaração Universal de Direitos Humanos seafirma que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciên-cia e de religião” ( artigo 18), “de opinião e de expressão” ( artigo 19) e que aeducação “favorecerá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas asnações e todos os grupos étnicos ou religiosos” ( artigo 26),

Tomando nota dos seguintes instrumentos internacionais pertinentes:

Documento Histórico

1 Tradução do original espanhol por César Augusto Baldi

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.241-247

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- o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,

- o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,

- a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formasde discriminação racial,

- a Convenção para prevenção e sanção do delito de genocídio,

- a Convenção sobre os direitos da criança,

- a Convenção de 1951 sobre o estatuto de refugiados, seu protocolode 1967 e seus instrumentos regionais,

- a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discrimina-ção contra a mulher,

- a Convenção contra a tortura e outros tratos ou penas cruéis,inumanos ou degradantes,

- a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerânciae de discriminação fundadas na religião ou nas crenças,

- a Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minoriasnacionais ou étnicas, religiosas e lingüísticas,

- a Declaração sobre as medidas para eliminar o terrorismo interna-cional,

- a Declaração e Programa de Ação de Viena da Conferência Mundi-al de Direitos Humanos,

- a Declaração de Copenhagen sobre o desenvolvimento social e o Pro-grama de Ação da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social,

- a Declaração sobre a Raça e os preconceitos raciais ( da UNESCO),

- a Convenção e a recomendação relativas à luta contra as discrimi-nações na esfera de ensino ( da UNESCO),

Tendo presentes os objetivos do Terceiro Decênio da luta contra o racismoe a discriminação racial, o Decênio das Nações Unidas para a Educação naesfera dos Direitos Humanos e o Decênio Internacional das Populações Indí-genas do Mundo,

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Tendo em conta as recomendações das conferências regionais organizadasno marco do Ano das Nações Unidas para a Tolerância de conformidade coma Resolução 27c/5.14 da Conferência Geral da UNESCO, assim como as con-clusões e recomendações de outras conferências e reuniões organizadas pelosEstados-membros no marco do programa do Ano das Nações Unidas para aTolerância,

Alarmada pela intensificação atual dos atos de intolerância, violência, ter-rorismo, xenofobia, nacionalismo agressivo, racismo, anti-semitismo, exclusão,marginalização e discriminação perpetrados contra minorias nacionais, étni-cas, religiosas e lingüísticas, refugiados, trabalhadores migrantes, imigrantes egrupos vulneráveis da sociedade, assim como por atos de violência e intimida-ção contra pessoas que exercem seu direito de livre opinião e expressão – todosos quais constituem ameaças para a consolidação da paz e da democracia noplano nacional e internacional e obstáculos para o desenvolvimento,

Pondo em relevo que corresponde aos Estados membros desenvolver e fo-mentar o respeito dos direitos humanos e as liberdades fundamentais de to-dos, sem distinções por raça, gênero, língua, origem nacional, religião ou in-capacidade, assim como o combate contra a intolerância,

Adotam e proclamam solenemente a seguinte Declaração de Princípiossobre a tolerância

Resolvidos a adotar todas as medidas positivas necessárias para fomentar atolerância em nossas sociedades, por ser esta não somente um apreciado prin-cípio, mas também uma necessidade para a paz e o progresso econômico esocial de todos os povos,

Declaramos o que segue:

Artigo 1º. Significado da tolerância.

1.1. A tolerância consiste no respeito, aceitação e apreço da rica diversida-de das culturas de nosso mundo, de nossas formas de respeito e meiosde ser humanos. A fomentam o conhecimento, a atitude de abertura, acomunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de reli-gião. A tolerância consiste na harmonia na diferença. Não só é umdever moral, mas também uma exigência política e jurídica. A tolerân-cia, a virtude que faz possível a paz, contribui a substituir a cultura deguerra pela cultura de paz.

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1.2. Tolerância não é o mesmo que concessão, condescendência ou indul-gência. Antes de tudo, tolerância é uma atitude ativa de reconheci-mento dos direitos humanos universais e liberdades fundamentais dosdemais. Em nenhum caso pode ser utilizada para justificar a quebradestes valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos in-divíduos, grupos e Estados.

1.3. A tolerância é a responsabilidade que sustenta os direitos humanos, opluralismo ( compreendido o pluralismo cultural), a democracia e oEstado de Direito. Supõe o rechaço do dogmatismo e do absolutismo eafirma as normas estabelecidas pelos instrumentos internacionais re-lativos aos direitos humanos.

1.4. Conforme ao respeito dos direitos humanos, respeitar a tolerância nãosignifica tolerar a injustiça social nem renunciar às convicções pesso-ais ou contemporizá-las. Significa que toda pessoa é livre para aderir asuas próprias convicções e aceita que os demais adiram às suas. Signifi-ca aceitar o fato de que os seres humanos, naturalmente caracterizadospela diversidade de seu aspecto, sua situação, sua forma de expressar-se, seu comportamento e seus valores, têm direito a viver em paz e a sercomo são. Também significa que ninguém há de impor suas opiniõesaos demais.

Artigo 2º A função do Estado

2.1. No âmbito estatal, a tolerância exige justiça e imparcialidade na legisla-ção, na aplicação da lei e no exercício dos poderes judicial e administrati-vo. Exige também que toda pessoa possa desfrutar de oportunidades eco-nômicas e sociais sem nenhuma discriminação. A exclusão e amarginalização podem conduzir à frustração, à hostilidade e ao fanatismo.

2.2. A fim de instaurar uma sociedade mais tolerante, os Estados devemratificar as convenções internacionais existentes em matéria de direi-tos humanos e, quando seja necessário, elaborar uma nova legislação,que garanta a igualdade de trato e oportunidades a todos os grupos eindivíduos da sociedade.

2.3. Para que reine a harmonia internacional, é essencial que os indivídu-os, as comunidades e as nações aceitem e respeitem o carátermulticultural da família humana. Sem tolerância não pode haver paz,e sem paz não pode haver desenvolvimento nem democracia.

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2.4. A intolerância pode revestir a forma da marginalização de grupos vul-neráveis e de sua exclusão da participação social e política, assim comoda violência e discriminação contra eles. Como confirma o Artigo 1.2da Declaração sobre a raça e preconceitos raciais, “todos os indivíduose os grupos têm direito a serem diferentes”.

Artigo 3° Dimensões sociais.

3.1. No mundo moderno, a tolerância é mais essencial que nunca. Nossaépoca se caracteriza pela mundialização da economia e uma acelera-ção da mobilidade, a comunicação, a integração e a interdependência;a grande amplitude das migrações e o deslocamento de populações; aurbanização e a transformação dos modelos sociais. O mundo se ca-racteriza por sua diversidade, a intensificação da intolerância e dosconflitos, o que representa uma ameaça potencial para todas as regi-ões. Esta ameaça é universal e não se circunscreve a um país em par-ticular.

3.2. A tolerância é necessária entre os indivíduos, assim como dentro dafamília e da comunidade. O fomento da tolerância e a inculcação deatitudes de abertura, escuta recíproca e solidariedade hão de ter lugarnas escolas e universidades, mediante a educação extra-escolar e nolar e no lugar de trabalho. Os meios de comunicação podem desempe-nhar uma função construtiva, facilitando um diálogo e um debate li-vres e abertos, difundindo os valores da tolerância e pondo em relevo operigo que representa a indiferença à ascensão de grupos e ideologiasintolerantes.

3.3. Como se afirma na Declaração da UNESCO sobre a raça e os precon-ceitos raciais, é preciso adotar medidas, onde façam falta, para garantira igualdade em dignidade e direitos dos indivíduos e grupos humanos.A este respeito se deve prestar especial atenção aos grupos vulneráveissocialmente desfavorecidos, para protegê-los com as leis e medidas so-ciais em vigor, especialmente em matéria de habitação, de emprego ede saúde; respeitar a autenticidade de sua cultura e seus valores e faci-litar sua promoção e integração social e profissional, em particularmediante a educação.

3.4. A fim de coordenar a resposta da comunidade internacional a este de-safio universal, se devem realizar e criar, respectivamente, estudos eredes científicos apropriados, que compreendam a análise, mediante

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as ciências sociais, das causas fundamentais e das medidas preventivaseficazes, assim como a investigação e a observação destinadas a prestarapoio aos Estados-membros em matéria de formulação de políticas eação normativa.

Artigo 4º Educação.

4.1. A educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeiraetapa da educação para a tolerância consiste em ensinar às pessoas osdireitos e liberdades que compartilham, para que possam ser respeita-dos e em fomentar, ainda, a vontade de proteger os dos demais.

4.2. A educação para a tolerância deve ser considerada um imperativo ur-gente; por isso, é necessário fomentar métodos sistemáticos e racionaisde ensino da tolerância, que abordem os motivos culturais, sociais, eco-nômicos, políticos e religiosos da intolerância, ou seja, as raízes princi-pais da violência e da exclusão. As políticas e os programas educativosdevem contribuir ao desenvolvimento do entendimento, da solidarie-dade e da tolerância entre os indivíduos, e entre os grupos étnicos, so-ciais, culturais, religiosos e lingüísticos, assim como entre as nações.

4.3. A educação para a tolerância deve ter por objetivo resistir às influênci-as que conduzem ao temor e à exclusão dos demais, e deve ajudar osjovens a desenvolver suas capacidades de juízo independente, pensa-mento crítico e raciocínio ético.

4.4. Nos comprometemos a apoiar e executar programas de investigaçãosobre ciências sociais e de educação para a tolerância, os direitos hu-manos e a não-violência. Para isto, fará falta conceder uma atençãoespecial ao melhoramento da formação do corpo docente, dos planosde estudo, do conteúdo dos manuais e dos cursos e de outros materiaispedagógicos, como as novas tecnologias da educação, a fim de formarcidadãos atentos aos demais e responsáveis, abertos a outras culturas,capazes de apreciar o valor da liberdade, respeitadores da dignidade edas diferenças dos seres humanos e capazes de evitar os conflitos ou deresolvê-los por meios não-violentos.

Artigo 5º Compromisso para a ação.

Nos comprometemos a fomentar a tolerância e a não-violência medi-

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ante programas e instituições nos âmbitos da educação, ciência, cultu-ra e comunicação.

Artigo 6º Dia internacional para a tolerância.

A fim de fazer um chamamento à opinião pública, pôr em relevo osperigos da intolerância e reafirmar nosso apoio e ação em prol do fo-mento da tolerância e da educação em favor desta, proclamamos sole-nemente Dia Internacional para a Tolerância o dia 16 de novembro decada ano.

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Normas para publicação

I. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS

1. Os artigos devem ser apresentados em disquete, preferencialmenteem Windows Word 6.0 ou superior, acompanhados de uma cópiaimpressa.

2. O texto dos artigos deverá ter de 10 a 20 laudas, em média.

3. Um resumo de seis a dez linhas, em língua inglesa e em língua por-tuguesa, deverá introduzir o artigo, juntamente com palavras-cha-ve indicativas de seu conteúdo.

4. A apresentação do artigo deverá conter: identificação, com título;subtítulo ( se houver); nome do(s) autor(es); maior titulação aca-dêmica ou outra, cargo atual e instituição onde exerce as funções;telefone e endereço; e-mail, se for o caso.

5. As citações, referências bibliográficas e notas de rodapé deverãoseguir, obrigatoriamente, as normas da ABNT. As citações, no tex-to, deverão ser feitas em língua portuguesa, reservando-se as cita-ções em língua estrangeira para as notas de rodapé, se for o caso.Excepcionalmente, a critério do Conselho Editorial e dos editores,serão aceitos artigos em espanhol ou citações, no texto, nesta lín-gua, por ser ela comum aos países do Mercosul.

6. Artigos em outra língua estrangeira poderão ser aceitos, a juízo doConselho Editorial e dos editores, se o autor for estrangeiro e suacontribuição de indiscutível valor científico.

Direito e Democracia Canoas vol.2, n.1 1º sem. 2001 p.249-250

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II. PUBLICAÇÃO

1. Os trabalhos remetidos para publicação serão submetidos à apreci-ação do Conselho Editorial ou de outros consultores por este desig-nados, de acordo com a especificidade do tema.

2. O Conselho Editorial não se responsabiliza pela devolução dos ori-ginais.

3. Havendo necessidade de alteração quanto ao conteúdo do texto,será sugerido ao autor que as faça, para posterior publicação.Adeqüação lingüística e copidescagem ficam a cargo dos editores,ressalvada a alteração de conteúdo.

4. Os autores, cujos trabalhos forem publicados, receberão dois exem-plares da revista e cinco separatas.

5. Os originais deverão ser enviados para:

Prof. Dr. Plauto Azevedo, EditorUniversidade Luterana do BrasilRevista Direito e DemocraciaRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 12792.420-280 - Canoas/RS

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