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COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas - ULBRA Vol. 13 – Nº 1 – Jan./Jun. 2012 ISSN 1518-1685 Presidente Adilson Ratund Vice-presidente Jair de Souza Junior Reitor Marcos Fernando Ziemer Vice-Reitor e Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Valter Kuchenbecker Pró-Reitor de Administração Levi Schneider Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Erwin Francisco Tochtrop Júnior Pró-Reitor de Graduação Ricardo Willy Rieth Pró-Reitor Adjunto de Graduação Pedro Antonio Gonzalez Hernandez Capelão Geral Lucas André Albrecht DIREITO E DEMOCRACIA Indexador: Latindex Editora Maria Aparecida Cardoso da Silveira Conselho Editorial Membros internacionais André-Jean Arnaud (Paris X-Nanterre) Etienne Picard (Université de Paris I/França) Fabio Saponaro (Unitelma Sapienza/Itália) Fernando dos Reis Condesso Giuseppe Tinelli (Università Roma Tre/Itália) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (University of Manitoba/Canadá) Jorge Bacelar Gouveia Julian Mora Aliseda Luigi Ferrajoli (Università Roma Tre/Itália) Raúl Cervini (Universidad de la Republica de Uruguay) Wanda Capeller (Toulouse/França) Membros nacionais externos Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Anderson Vichinkeski Teixeira (UNISINOS) Cláudio Brandão (UFPE) Cláudio Muradás Homercher (UniRitter) Eduardo Reale Ferrari (USP) Elaine Harzheim Macedo (PUCRS) Gerson Luiz Carlos Branco (PUCRS) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) Jayme Weingartner Neto (UNILASALLE) José Maria Rosa Tesheiner (PUCRS) Luís Afonso Heck (UFRGS) Miguel Reale Jr. (USP) Nereu José Giacomolli (PUCRS) Orides Mezzaroba (UFSC) Vladimir Passos de Freitas (UFPR) Membros nacionais internos Daniela de Oliveira Pires (ULBRA) Jorge Trindade (ULBRA) Luiz Gonzaga Silva Adolfo (ULBRA) Marco Felix Jobim (ULBRA) Wilson Antônio Steinmetz (ULBRA) EDITORA DA ULBRA Diretor: Astomiro Romais Coordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Endereço para permuta Universidade Luterana do Brasil Biblioteca Martinho Lutero - Setor de aquisição Av. Farroupilha, 8001 - Prédio 05 92425-900 - Canoas/RS O conteúdo e estilo linguístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas / Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 2000- . v. ; 23 cm. Semestral. A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para Revista de Ciências Jurídicas. ISSN 1518-1685 1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I. Universidade Luterana do Brasil. CDU 34(05)

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COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO”

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas - ULBRA

Vol. 13 – Nº 1 – Jan./Jun. 2012ISSN 1518-1685

PresidenteAdilson Ratund

Vice-presidenteJair de Souza Junior

ReitorMarcos Fernando Ziemer

Vice-Reitor e Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários

Valter Kuchenbecker

Pró-Reitor de AdministraçãoLevi Schneider

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoErwin Francisco Tochtrop Júnior

Pró-Reitor de GraduaçãoRicardo Willy Rieth

Pró-Reitor Adjunto de GraduaçãoPedro Antonio Gonzalez Hernandez

Capelão GeralLucas André Albrecht

DIREITO E DEMOCRACIAIndexador: Latindex

EditoraMaria Aparecida Cardoso da Silveira

Conselho Editorial

Membros internacionaisAndré-Jean Arnaud (Paris X-Nanterre)

Etienne Picard (Université de Paris I/França)Fabio Saponaro (Unitelma Sapienza/Itália)

Fernando dos Reis CondessoGiuseppe Tinelli (Università Roma Tre/Itália)

Ielbo Marcus Lôbo de Souza (University of Manitoba/Canadá)Jorge Bacelar Gouveia

Julian Mora AlisedaLuigi Ferrajoli (Università Roma Tre/Itália)Raúl Cervini (Universidad de la Republica de Uruguay)Wanda Capeller (Toulouse/França)

Membros nacionais externosAldacy Rachid Coutinho (UFPR)Anderson Vichinkeski Teixeira (UNISINOS)Cláudio Brandão (UFPE)Cláudio Muradás Homercher (UniRitter)Eduardo Reale Ferrari (USP)Elaine Harzheim Macedo (PUCRS)Gerson Luiz Carlos Branco (PUCRS)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)Jayme Weingartner Neto (UNILASALLE)José Maria Rosa Tesheiner (PUCRS)Luís Afonso Heck (UFRGS)Miguel Reale Jr. (USP)Nereu José Giacomolli (PUCRS)Orides Mezzaroba (UFSC)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

Membros nacionais internosDaniela de Oliveira Pires (ULBRA)Jorge Trindade (ULBRA)Luiz Gonzaga Silva Adolfo (ULBRA)Marco Felix Jobim (ULBRA)Wilson Antônio Steinmetz (ULBRA)

EDITORA DA ULBRADiretor: Astomiro RomaisCoordenador de periódicos: Roger Kessler Gomes Capa: Everaldo Manica FicanhaEditoração: Roseli MenzenE-mail: [email protected]

Solicita-se permuta. We request exchange.On demande l’échange. Wir erbitten Austausch.

Endereço para permutaUniversidade Luterana do BrasilBiblioteca Martinho Lutero - Setor de aquisiçãoAv. Farroupilha, 8001 - Prédio 0592425-900 - Canoas/RS

O conteúdo e estilo linguístico são de responsabilidade exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados.

Citação parcial permitida, com referência à fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero

D598 Direito e Democracia: revista do Centro de Ciências Jurídicas / Universidade Luterana do Brasil. - Vol. 1, n. 1 (2000)- . - Canoas : Ed. ULBRA, 2000- . v. ; 23 cm.

Semestral. A partir do vol. 1, n. 2 (2000), o subtítulo foi modificado para Revista de Ciências Jurídicas. ISSN 1518-1685

1. Direito - periódicos. 2. Ciências jurídicas. I. Universidade Luterana do Brasil. CDU 34(05)

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Sumário3 Editorial

Doutrina nacional

4 Administração pública (tributária) e baixa constitucionalidade: ou de como um ato administrativo vale mais do que a Constituição para a administração pública (tributária)

Marciano Buffon; Mateus Bassani de Matos

21 Positivismo Jurídico 2: crítica às características centrais Orlando Luiz Zanon Junior

47 Levando o direito a sério: há realmente uma nova escola na teoria do direito? Charles Andrade Froehlich

68 Aportes hermenêuticos sobre direito dos tratados Rafael Köche

85 O plano diretor e o desenvolvimento do turismo socioambientalmente sustentável

Adir Ubaldo Reck; Karine Grassi

97 Igualdade, liberdade e responsabilidade convergentes à concepção humanista da vida e da política em Ronald Dworkin

Eliseu Raphael Venturi

109 Democracia, garantismo e direitos fundamentais: uma observação do papel da jurisdição no garantismo de Ferrajoli

Isadora Ferreira Neves

124 O devido processo constitucional como forma de alcançar a justiça das decisões Juliana de Brito Giovanetti Pontes

138 A exigência da representatividade ao amicus curiae: abertura à participação democrática e a possibilidade de atuação dos movimentos sociais como amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade

Geisla Aparecida Van Haandel Mendes

158 O ativismo judicial por meio de súmulas vinculantes: uma análise acerca dos paradoxos da separação de poderes na atualidade

Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar

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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012 3

Editorial

Apraz-nos profundamente levar ao público do meio jurídico o primeiro número do décimo terceiro volume da Revista Direito e Democracia, gerida pelo Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil (Canoas/RS). Aproveitamos o ensejo para saudar a entrada no Conselho Editorial, como membros internacionais, dos Professores Catedráticos da Universidade de Lisboa Doutor Julian Mora Aliseda e Doutor Fernando dos Reis Condesso e do Professor Catedrático da Universidade Nova Lisboa Doutor Jorge Bacelar Gouveia. De igual forma saudamos a entrada no Conselho Editorial, como membro Interno, do Professor Doutor Marco Félix Jobim.

Abrimos este número com a contribuição de Marciano Buffon e Mateus Bassani de Matos acerca do confl ito entre a Constituição e os atos administrativos na Administração Pública tributária. O positivismo jurídico é amplamente analisado em suas insufi ciências no artigo de Orlando Luiz Zanon Junior. Os fundamentos da teoria do direito é objeto de estudo para Charles Andrade Froehlich. Já Rafael Köche faz uma análise hermenêutica do direito dos tratados. O plano diretor e o desenvolvimento do turismo socioambientalmente sustentável é o assunto estudado por Adir Ubaldo Reck e Karine Grassi. Igualdade, liberdade e responsabilidade na obra de Dworkin são estudadas no artigo de Eliseu Raphael Venturi. O garantismo de Ferrajoli e o papel da jurisdição na tutela dos direitos fundamentais é o tema central do artigo de Isadora Ferreira Neves. Em seu artigo, Juliana de Brito Giovanetti Pontes analisa o devido processo constitucional como forma de alcançar a justiça das decisões. Geisla Aparecida Van Haandel Mendes analisa a participação democrática e a possibilidade de atuação dos movimentos sociais como amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade. Por fi m, concluímos o presente número com um estudo sobre o ativismo judicial por meio de súmulas vinculantes frente ao princípio da separação de poderes, de Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar.

Agradecemos aos nossos autores pelas suas valorosas contribuições, sem as quais esta Revista não seria uma realidade.

Reiteramos nossa satisfação em receber trabalhos de quem tiver interesse em vê-los publicados nesta revista.

Os artigos poderão ser remetidos para: [email protected]

Maria Aparecida Cardoso da SilveiraEditora

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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 20124Direito e Democracia v.13 n.1 p.4-20 jan./jun. 2012Canoas

Administração pública (tributária) e baixa constitucionalidade:

ou de como um ato administrativo vale mais do que a Constituição para a administração

pública (tributária)Marciano Buffon

Mateus Bassani de Matos

RESUMOO objetivo do trabalho é evidenciar a “baixa constitucionalidade” em que está inserida a

administração, mormente a tributária, a partir da análise de um ato administrativo específico. O Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição Federal de 1988, possui um caráter transformador da sociedade, erigindo parte específica para tratar dos princípios que devem conformar o exercício da função tributária. A Nova Crítica do Direito incorpora a filosofia hermenêutica de Heidegger e a hermenêutica filosófica de Gadamer, mostrando que a linguagem deixa de ser mero instrumento, transformando-se em morada do ser. Não mais se interpreta para compreender, mas sim se compreende para interpretar a partir de pré-juízos autênticos. Há o rompimento com os pressupostos metafísicos. Em relação à atividade tributária, em especial, os intérpretes/juristas continuam refratários à viragem ontológico-linguística e reféns da metafísica, mormente a objetivista, e em plena dissonância com os postulados constitucionais. O ADI/RFB nº 42/2011 implica clara ofensa ao princípio da legalidade e ao sentido do modelo de Estado instituído pela Constituição.

Palavras-chave: Administração Pública. Estado Democrático de Direito. Nova Crítica do Direito. Baixa Constitucionalidade. Tributação.

Public administration (tributary) and low constitutionality: Or as an administrative act is worth more than the Constitution

for the public administration (tributary)

ABSTRACTThe objective is to demonstrate the “low constitutionality” that is inserted the administration,

especially the tax, based on the analysis of a specific administrative act. The Democratic State of Law, established by the 1988 Federal Constitution, has a transforming character of society, erecting specific part to address the principles that should conform their exercise of the tax. The New Criticism

Marciano Buffon é Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor dos cursos de graduação e Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Advogado.Mateus Bassani de Matos é Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Graduado em Direito na UNISNOS. Advogado.

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of law incorporates the hermeneutical philosophy of Heidegger and Gadamer’s philosophical hermeneutics, showing that language stops being mere instrument, becoming a dwelling being. No more interpreted to understand, but it is understood to interpret from pre-judgments authentic. There is a break with the metaphysical assumptions. In relation to activity tax, in particular interpreters/jurists continue refractory turning ontological-linguistic and hostages of metaphysics, especially the objectivist, and in full disagreement with the constitutional principles. The ADI/RFB nº 42/2011 implies clear offense of the principle of legality and to the model established by the State Constitution.

Keywords: Public Administration. Democratic State of Law. New Criticism of Law. Low Constitutionality. Taxation.

1 INTRODUÇÃOEste ensaio tem por objetivo exemplifi car como a administração pública tributária

valoriza mais um ato administrativo do que a própria Constituição. Para fi rmar a premissa, será utilizado o Ato Declaratório Interpretativo da Receita Federal do Brasil (ADI/RFB) nº 42/2011, expedido no fi nal do ano de 2011, com o objetivo de estabelecer critérios de arrecadação acerca da contribuição previdenciária àquelas empresas que passaram a recolhê-la não mais sobre a folha de salários, mas sim sobre a receita bruta de atividades benefi ciadas – no momento oportuno à questão será devidamente explicitada.

Primeiramente, analisa-se o Estado Democrático de Direito (paradigma formalmente implementado pela Constituição), relativamente à sua carga de sentido/principiológica, mormente quanto àqueles princípios que expressam garantias aos contribuintes e balizas para a administração em sua função tributária. Se o objetivo da pesquisa é verifi car o desrespeito por parte da administração em sua função tributária, imprescindível destacar as garantias dos contribuintes.

Num segundo momento, buscando amparo doutrinário em Lenio Streck, analisa-se a contribuição da Nova Crítica do Direito – que procura superar o objetivismo/subjetivismo com fundamento em Heidegger e Gadamer – e do Constitucionalismo Contemporâneo – que contrasta com o neoconstitucionalismo, desconsiderando os efeitos que a recepção acrítica de determinadas teorias gerou no Judiciário Brasileiro.

Por fi m, apresenta-se o ato administrativo utilizado como premissa, e, que, conforme será demonstrado, pretendeu estabelecer critérios de arrecadação ao largo do princípio da legalidade. Em pleno século XXI, estando em vigor no Brasil o Estado Democrático de Direito (ainda que formalmente), a administração pública tributária continua refratária ao paradigma instituído pela Constituição, e, especialmente, à virada linguística operada pela fi losofi a hermenêutica e pela hermenêutica fi losófi ca.

Passa-se, então, à verifi cação do modelo de Estado instituído pela Constituição brasileira, e aos objetivos e princípios que nela se encontram expressos, e estão atrelados, ainda que indiretamente, à tributação.

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2 OS CONTORNOS PRINCIPIOLÓGICOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIROEm razão do aprofundamento das experiências do Estado Social e em face das

circunstâncias e contingências históricas que o conformaram, ocorreu uma sofi sticação desse modelo estatal, o qual se transformou no denominado Estado Democrático de Direito, atrelado à ideia de legitimação do poder pelo povo.

O referido modelo estatal assumiu uma inegável função transformadora da realidade social, haja vista que essa nova concepção impõe ao Estado o papel de direcionar as suas ações no sentido de construir uma sociedade menos desigual. Expresso de outra forma, cabe ao Estado Democrático de Direito a utopia (?) da concretização da igualdade material, razão pela qual Bolzan de Morais (2002, p.37/38) explica:

O Estado Democrático de Direito emerge como um aprofundamento da fórmula, de um lado, do Estado de Direito e, de outro, do Welfare state. Resumidamente pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que se tem a permanência em voga da já tradicional questão social, há como quê sua qualifi cação pela questão da igualdade. Assim o conteúdo deste se aprimora e se complexifi ca, posto que impõe à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação do status quo.

Nessa nova organização social, o Estado tem um papel decisivo no sentido de não apenas assegurar a igualdade formal, mas, sobretudo, alcançar a igualdade material, isto é, o Estado passa a ter, como condição de existência, a busca de meios que possam minimizar as desigualdades decorrentes do modelo econômico vigente.

Entretanto, o Estado Democrático de Direito, apesar de ter nascido sob o infl uxo do neoconstitucionalismo – carregando consigo a marca de um projeto de transformação social – encontra-se mergulhado em dilemas para efetivação das promessas constitucionais. Nesse sentido, Bolzan de Morais (2002, p.151/153) alerta que o grande dilema que parece ser vivido hoje é aquele que contrapõe o descompasso entre as promessas constitucionais e as possibilidades de sua realização.

Mas é fato que no Brasil, o novo texto constitucional representa uma ruptura do modelo de direito e de Estado, a partir de uma perspectiva claramente dirigente e compromissária (STRECK; MORAIS, 2006, p.139), ou seja, a constituição do chamado Estado Democrático de Direito, considerada um novo paradigma, propõe a superação do direito enquanto sistema de regras, a partir dos princípios:

O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública no processo de construção e reconstrução de

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um projeto de sociedade, apropriando-se do caráter incerto da democracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade, onde a questão da democracia contém e implica, necessariamente, a solução do problema das condições materiais de existência. (STRECK, 2006, p.97)

Frente aos objetivos do Estado Democrático de Direito e aos problemas ora enfrentados por esse modelo de Estado, as questões que se colocam são: “Como se interpreta adequadamente o texto que constitui esse Estado Democrático de Direito? Como se aplica e se é possível alcançar condições interpretativas capazes de garantir efetividade aos objetivos propostos?” (STRECK; MORAIS, 2006, p.138).

Não há como se sustentar ser adequado que um país tenha um texto constitucional que funda objetivos a serem cumpridos, e, por outro lado, esses não passam de mera promessa, sem efetivação prática. Assim, a criação do Estado Democrático de Direito aponta para o resgate de promessas não cumpridas da modernidade, circunstância que assume especial relevância em países periféricos e de modernidade tardia, como o Brasil (STRECK, 2006, p.104). Como ressalta Marciano Buffon (2009, p.31):

Esse modelo estatal assume uma inegável função transformadora da realidade social, haja vista que essa nova concepção impõe ao Estado o papel de direcionar suas ações no sentido de construir uma sociedade menos desigual. Ou seja, cabe ao Estado Democrático de Direito a utopia (?) da concretização da igualdade material, [...].

A Constituição Brasileira de 1988 instituiu (ainda que, formalmente) o Estado Democrático de Direito. Como já analisado anteriormente, trata-se de um aprofundamento do Estado Social que agregou, em seu seio, o plus democrático, dando, em tese, o poder ao povo de participar das decisões, de modo indireto, via representantes escolhidos por votação. Nesse tipo de Estado, há uma evolução na busca da igualdade, na medida em que não se pretende apenas uma isonomia formal, relativamente aos direitos civis e políticos do clássico Estado Liberal Burguês, mas a concretização da igualdade substancial, aquela que almeja, no limite de suas possibilidades, o mesmo direito à saúde, à educação e às rendas. De acordo com Bolzan de Morais (2011, p.151):

Quando se constitucionaliza o chamado Estado Democrático de Direito, deve-se atentar para o que isso signifi ca e, por consequência, para as condições, possibilidades e limites de realização das promessas construídas no/pelo “contrato constitucional” e contidas no bojo da Carta Política que o caracteriza, bem como há que se ter em mente tratar-se de um Estado Democrático de Direito, cuja normatividade não apenas organiza o poder – e mesmo por isso – mas, também, defi ne seus procedimentos e espaços de atuação

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A Carta Magna traz, entre seus fundamentos, a busca pela efetivação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, em paralelo com a livre iniciativa (art. 1º). Também adota, como objetivos fundamentais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento social, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos (art. 3º).

Com relação aos Direitos Econômicos e Sociais, restou positivado também, na Lei Maior, o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, além da assistência aos desamparados, entre outros (art. 6º). Deve-se referir, ainda, que a saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196), assim como a educação (art. 205), a cultura (art. 215) e o desporto (art. 217). Sob a perspectiva da ordem econômica, está esculpido que a república tem por fi m assegurar a todos a existência digna, de acordo com os ditames da justiça social e, entre vários princípios, a redução das desigualdades regionais e sociais, como balizamentos da livre iniciativa (art. 170).

Dentro desse contexto, o Sistema Tributário Constitucional prevê, no art. 150 da Constituição Federal, as limitações ao poder de tributar, positivando importantes princípios tributários, como o da legalidade, da igualdade, da anterioridade, da vedação ao confi sco, à limitação ao tráfego de pessoas ou bens. Além disso, o referido artigo descreve as hipóteses de imunidade, que preveem a não incidência de impostos sobre a renda, o patrimônio ou os serviços de determinadas entidades que buscam os fi ns perseguidos pela Constituição. Ademais, consta, no § 1º, do art. 145 da Constituição Brasileira, o princípio da capacidade contributiva, o qual corresponde a um desdobramento da ideia de igualdade e constitui um instrumento que deve ser utilizado na busca de uma tributação adequada por meio de seus aliados: a progressividade e a seletividade.

Em vista das constatações referentes à carga principiológica do Estado Democrático de Direito, Marco Aurélio Grecco (2009, p.173/174) aduz que a Constituição não foi apenas rearranjo de dispositivos, ela trouxe alterações no próprio fundamento constitucional da tributação, passando a ser a ideia de solidariedade, pois o Estado surge como criatura da sociedade civil para atuar na direção do atendimento às prioridades e objetivos por ela defi nidos no próprio texto nos art. 1º e 3º. Criar os tributos já não é mais mero poder do Estado, mas um dever social ou cívico, amparado na solidariedade, que se atende pelo ato de contribuir para as despesas de acordo com a capacidade contributiva. Em razão disso, o autor assinala que o Estado está investido na função de tributar ao invés do poder de fazê-lo, como antigamente.

O Estado necessita essencialmente de receitas derivadas para cumprir os seus objetivos, as quais são obtidas via tributação. Frente aos fi ns do Estado Democrático de Direito, em conjunto com as diretrizes do sistema tributário constitucional, a tributação é um forte instrumento na busca pela concretização dos direitos dos cidadãos, na medida em que pode exigir de cada cidadão aquilo que ele tem condições de entregar para colaborar com os demais, exercendo assim seu dever/direito de cidadania e fortalecendo a questão ideológica que permeia esse tipo de Estado: a solidariedade.

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É preciso levar em conta “que os princípios são dotados de um conteúdo deontológico” (STRECK, 2012, p.70), e devem, por isso, estarem por detrás de todas as normas, ou seja, os princípios são à base de sustentação do sistema normativo. Portanto, não se pode concordar com normas no âmbito do direito tributário que estejam em desacordo com princípios como o da igualdade, da capacidade contributiva etc., justamente pelo fato de que, ao estar de acordo com tais postuladas, invariavelmente a tributação contribuirá, a seu modo, para a máxima proteção e efi cácia das garantias constitucionais, corroborando a concretização dos objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Conforme Lenio Streck (2012, p.68/69) ensina, os princípios constitucionais instituem o mundo prático no direito e essa institucionalização representa um ganho qualitativo para o direito, na medida em que o juiz tem um dever de decidir de forma correta. Desse modo, tem-se o seguinte: não há regra sem um princípio instituidor. Sem um princípio instituinte, a regra não pode ser aplicada, posto que não será portadora do caráter de legitimidade democrática. Logo, não é correto falar em uma axiologia principiológica, mas sim em uma deontologia dos princípios, visto que são os princípios que instituem as bases para a normatividade do direito, pois as regras não acontecem sem os princípios. Os princípios sempre atuam como determinantes para a concretização do direito, enquanto as regras constituem modalidades objetivas de solução de confl itos.

Nessa linha, Lenio Streck (2012, p.69/70) sustenta que a normatividade assumida pelos princípios possibilita um “fechamento interpretativo” próprio da blindagem hermenêutica contra discricionarismos judiciais, porque retira seu conteúdo normativo de uma convivência intersubjetiva que emana dos vínculos existentes na moralidade política da comunidade. Acresça-se, ainda, que a regra só se aplica em face do caráter antecipatório do princípio. O princípio está antes da regra. Somente se compreende a regra através do princípio. Os princípios não são princípios porque a Constituição assim diz, mas a Constituição é principiológica porque há um conjunto de princípios que conformam o paradigma constitucional, de onde exsurge o Estado Democrático de Direito.

Estabelecidos os contornos do Estado Democrático de Direito e o norte a ser seguido relativamente à função tributária, ruma-se, pois, à analise dos pontos pertinentes em relação à Nova Crítica do Direito, inserida no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo.

3 A NOVA CRÍTICA DO DIREITO NO CONTEXTO DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEOA Nova Crítica do Direito – expressão cunhada por Lenio Streck – representa a

incorporação da viragem ontológico-linguística produzida por Heidegger e Gadamer no direito em termos de hermenêutica jurídica. Diferentemente do senso comum teórico dos juristas (WARAT, 1994, p.14/15), Lenio Streck (2010, p.90) rompe com a metafísica

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clássica e moderna no direito, isto é, faz uma cisão entre a hermenêutica jurídica e o objetivo/subjetivismo. Nesse sentido, destaca:

[...] a Nova Crítica do Direito ou a Crítica Hermenêutica do Direito é uma nova teoria que exsurge da fusão dos horizontes da fi losofi a hermenêutica, da hermenêutica fi losófi ca e da teoria integrativa dworkiniana. Dela exsurge a tese de que há um direito fundamental a uma resposta correta, entendida como “adequada à Constituição”.

As questões que se colocam, portanto, são: “como aplicar de forma adequada a Constituição? E de que forma entender a Constituição como um documento fundamentalmente direcionado à defesa dos direitos fundamentais do cidadão?” (STRECK, 2007, p.XXXIII). Quando o intérprete está diante de um texto, estará no entre-meio do círculo hermenêutico. É por isto que o conceito de círculo hermenêutico é antitético à noção de dedução. Há um movimento antecipatório da compreensão, cuja condição ontológica é o círculo hermenêutico (STRECK, 2004, p.210). Oportunas às palavras de Lenio Streck (2004, p.222):

O sentido da Constituição não pode continuar velado (isto porque, passados quinze anos desde sua promulgação, grande parte de seu texto continua inefetivo, portanto, não descoberto). Por isto, para interpretar a Constituição (entendida como o novo, o estranho), é necessário, primeiro, tornar transparente a própria situação hermenêutica para que o estranho ou diferente (sinistro) do texto possa fazer-se valer antes de tudo, isto é, sem que nossos pré-juízos não esclarecidos exerçam aí sua despercebida dominação e assim escondam o específi co do texto.

Uma hermenêutica jurídica que se pretenda crítica necessita dos dois teoremas fundamentais de Heidegger, que são o círculo hermenêutico e a diferença ontológica. Com o círculo hermenêutico é possível concluir que o método sempre chega tarde, porque o Dasein se pronunciou de há muito; pela diferença ontológica, verifi ca-se que o ser é sempre o ser de um ente, com o que se rompe com a possibilidade de subsunções/deduções, uma vez que o sentido é existencial, e não algo fi xado sobre o ente, que esteja atrás dele ou que não sabe onde esteja (STRECK, 2010, p.77/78).

A partir do rompimento com o paradigma metafísico, a linguagem abandona sua condição de mero instrumento, que traduz a essência das coisas ou os conceitos, e passa a se constituir, nas palavras de Heidegger, “na morada do ser”. A linguagem se torna a condição de possibilidade do próprio ser, e não mais uma terceira coisa na relação entre sujeito e objeto. A interpretação deixa de ser uma mera reprodução do sentido preexistente e passa a ser uma constante construção de sentido (BUFFON, 2011, p.233).

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A orientação do olhar hermenêutico quer que a linguagem seja recebida por sua vontade de expressão, contra o sentido objetivante que se fi xa no conteúdo lógico do que foi expresso. Ser e Tempo deu conta de que a compreensão e interpretação do homem é linguística, ao acentuar o caráter originário do discurso. Assim, a linguagem se faz valer como a “morada do ser”, assumindo a precedente e insuperável revelação do ser (GRONDIN, 1999, p.172/173).

Examinar a diferença entre ser e ente, portanto, é fundamental para compreender Heidegger. Para ele, o ser dos entes não é em si mesmo um outro ente. Chama-se de ente, muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira; ente também é como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado no teor e recurso, no valor e validade, na presença, no há.

O ente é diferente do ser, pois o ser só se manifesta como tal a partir do ente. O ser será sempre um ser de um ente, e por isso com ele não se confunde. Conforme Lenio Streck (2004, p.206/207), o conceito de ser é o mais universal e mais vazio, e por isso não necessita de defi nição. Como o próprio Heidegger (1995, p.32) explica:

O ser dos entes não é em si mesmo um outro ente. [...] Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado no teor e recurso, no valor e validade, na pre-sença, no há.

A diferença é extrema entre todo ente – e o ser. Todos os entes levam à diferença. Na hermenêutica fi losófi ca, a diferença entre o ente e ser é denominada diferença ontológica. O ser não é nada de ente, só o ente é; não se pode dizer que o ser é. O giz, a mesa, o anfi teatro do curso, a montanha, o rio, o pássaro, o anjo, Deus etc., todos estes entes contribuirão para levar a pensar que, se eles são, seu ser não é do modo como eles são. O Ser do giz não é como o próprio giz (DUBOIS, 2004, p.86).

A ideia de ser de Heidegger caminha para pensar o ente em razão de estar vinculada à questão do ser. O ser heideggeriano é o elemento através do qual se dá o acesso aos entes, ele é a condição de possibilidade. Aí reside a diferença ontológica. A condição de possibilidade (fundamentação), por sua vez, somente se dá pelo círculo hermenêutico, na medida em que opera apenas mediante a compreensão do Dasein, que o ser humano que se compreende (STEIN, 2008, p.116).

O ser se manifesta a partir do ente. O ser é sempre um ser de um ente. O ser se constitui na condição de possibilidade do conhecimento em geral. A revelação, a compreensão do ser, que distingue o ser do ente, sustenta o nosso conhecimento, isto é, todo vir ao encontro dos entes.

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O novo paradigma se trata de uma “virada hermenêutica”, que no Direito Lenio Streck (2010, p.17) vem denominando de Nova Crítica do Direito, signifi cando uma nova forma de abordagem na fi losofi a na qual a primeira tarefa é “o reconhecimento de que a universalidade da compreensão é condição de possibilidade da racionalização (ou da positivação)”.

Nesse novel contexto crítico, a linguagem passa a ser condição de possibilidade, e não mais uma terceira coisa que se coloca entre o sujeito e o objeto, ou entre um sujeito e um objetivo (para se referir tanto ao objetivismo quanto ao subjetivismo); ela é o que está dado, e por isso não é o sujeito que constrói o próprio objeto de conhecimento, o típico sujeito solipsista (STRECK, 2010, p.17).

A hermenêutica de Gadamer também se situa na linguagem. Para ele “ser, que pode ser entendido, é linguagem” sendo que “a linguagem não se realiza em enunciados, porém como conversação”. A compreensão da linguagem resulta da pertença a uma tradição em continuada formação, ou seja, da pertença a uma conversação, pela qual o que foi expresso adquire para o homem consistência e signifi cado (GRONDIN, 1999, p.196/197). Nesse sentido, Jean Grondin (1999, p.1999) expressa:

Para discutir corretamente a própria linguagem, e não para evitá-la ou enganá-la, é preciso realizar conjuntamente o não dito, a conversação interior. Mas, retê-la signifi ca que a hermenêutica da linguagem escolhe, como seu ponto de partida, o horizonte da linguagem, ou melhor, do enunciado.

Portanto, a compreensão, que é confi gurada e acontece por meio da linguagem, deve ser capaz de realizar conjuntamente todo o conteúdo da linguagem, a fi m de que possa chegar até o ser, o qual ela ajuda a expressar. Assim, a fundamental linguisticidade da compreensão se manifesta menos nos enunciados do homem, do que na busca de linguagem daquilo que ele tem na alma e quer externar. E é essa realização conjunta da palavra interior que irá fundamentar a universalidade da hermenêutica (GRONDIN, 2009, p.200).

Na linguagem, a dimensão da conversação interior (o dizer do homem signifi ca sempre mais do que ele realmente expressa) é hermeneuticamente signifi cativa. Um pensar ou um visar sempre irá além daquilo que realmente alcança o outro, no que é concebido como linguagem, em palavras. A vida e a essência da linguagem se completa por uma não silenciada aspiração pela palavra adequada (GRONDIN, 2009, p.204).

Essa “nova crítica” realizada a partir da hermenêutica insere-se no movimento do Constitucionalismo Contemporâneo – expressão cunhada para rescindir com as aporias do neoconstitucionalismo –, para o qual a teoria da interpretação/argumentação deve ser abordada a partir da hermenêutica da faticidade, recolocando a discussão do enfrentamento do positivismo e da indeterminabilidade do direito no contexto da fi losófi ca diferença entre texto/ente e norma/ser, que é ontológica, abrindo espaço para a construção de respostas

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hermeneuticamente adequadas à Constituição. A hermenêutica leva vantagem sobre as demais teorias, tendo na interpretação, como foco principal, a faticidade, ou seja, o modo prático de ser-no-mundo (de um alguém engajado no mundo) comanda a atividade compreensiva; no direito, costuma-se chamar de caso concreto (STRECK, 2011, p.70).

O Constitucionalismo Contemporâneo representa um redirecionamento na práxis político-jurídica, que se dá em dois níveis: em relação à teoria do Estado e da Constituição, com o surgimento do Estado Democrático de Direito; quanto à teoria do direito, a partir da reformulação das teorias das fontes, devendo a lei ceder espaço à Constituição, da teoria da norma, ganhando os princípios o caráter normativo, e na teoria da interpretação, a partir da Nova Crítica do Direito, a fi m de alcançar uma blindagem às discricionariedade e aos ativismos (STRECK, 2011, p.37).

Dessa forma, o Constitucionalismo (Contemporâneo – compromissário, principiológico e dirigente) deve signifi car uma ruptura com o positivismo jurídico em suas diversas formas, não sendo possível sustentar nenhuma forma de discricionariedade judicial neste momento histórico, por estar ligada ao subjetivismo (sujeito-objeto), avesso ao paradigma intersubjetivo (entre sujeitos, pelo compartilhamento da pré-compreensão/pano de fundo), pelo que é incompatível com o Estado Democrático de Direito (STRECK, 2011, p.65/66). É preciso desvelar o novo – entendido como o Estado Democrático de Direito:

Por isso, o des-velar do novo (Estado Democrático de Direito, sua principiologia e a consequente força normativa e substancial do texto constitucional) pressupõe a desconstrução/destruição da tradição jurídica inautêntica, mergulhada na crise de paradigmas. Ao des-construir, a hermenêutica constrói, possibilitando o manifestar-se de algo (o ente “Constituição” em seu estado de des-coberto). O acontecimento da Constituição será a revelação dessa existência do jurídico (constitucional), que está aí, ainda por des-cobrir. O acontecer será, assim, a des-ocultação do que estava aí velado. (STRECK, 2004, p.224)

É preciso ter presente que a noção de constitucionalismo trouxe para o âmbito da Constituição temas que antes eram reservados à esfera privada, fazendo com que a Constituição acabe publicizando espaços que antes eram reservados aos interesses privados, a partir da elevação de uma materialidade que ocorre pelos princípios. Uma Constituição nova exige novos modos de análise: uma nova teoria das fontes e uma nova teoria da norma, além de uma nova teoria hermenêutica. Ou seja, uma nova constituição, dentro de um novo paradigma, deve ser vista com os olhos do novo, por isso “também o modelo de conhecimento subsuntivo, próprio do esquema sujeito-objeto, cedendo lugar a um novo paradigma interpretativo” (STRECK, 2011, p.66/67).

O direito não é mais ordenador como na fase liberal; tampouco promovedor como no Estado Social, mas sim transformador da realidade na era do Estado Democrático de Direito. E é por isso que se dá o aumento de tensão em direção à jurisdição

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constitucional, que no modelo de Estado atual vai se transformar em garantidora dos direitos fundamentais-sociais e da democracia (STRECK, 2011, p.67). Como ressalta Lenio Streck (2010, p.89):

O que deve ser dito é que o problema do sentido do direito se situa antes do problema do conhecimento. O jurista não “fabrica” o seu objeto do conhecimento. A compreensão, pela sua “presença antecipada”, é algo que não dominamos. O sentido não está à nossa disposição! Por isso é que – e de há muito venho insistindo nisso (e me permito repetir a esta altura destas refl exões) – não interpretamos para compreender, e, sim, compreendemos para interpretar. A interpretação, como bem diz Gadamer, é a explicitação do compreendido. Com isso, são colocados em xeque os modos procedimentais de acesso ao conhecimento.

A partir dessas questões é que se pode falar na possibilidade de respostas hermeneuticamente adequadas à Constituição no direito. Não se pode descurar o fato de que o direito é constituído por textos (dispositivos) compostos por palavras ambíguas e polissêmicas e que possuem caráter abrangente, sendo que não se consegue esgotar todos os casos em que serão aplicados antes de analisar a situação concreta. Entretanto, será o próprio direito, por meio de princípios informados pela Constituição, que resolverá esse problema. Nesse sentido, percucientemente Lenio Streck (2010, p.93) adverte:

[...]. Ora, interpretar é dar sentido (Sinngebung). É fundir horizontes. E o direito é composto por regras e princípios, “comandados” por uma Constituição. Assim, afi rmar que os textos jurídicos contém vaguezas e ambiguidades e que os princípios podem ser – e na maior parte das vezes são – mais “abertos” em termos de possibilidade de signifi cado, não constitui novidade, uma vez que até mesmo os setores mais atrasados da dogmática jurídica já se aperceberam desse fenômeno.

O que deve ser entendido é que a realização/concretização desses textos (isto é, a sua transformação em normas) não depende – e não pode depender – de uma subjetividade assujeitadora (esquema S-O), como se os sentidos a serem atribuídos fossem fruto da vontade do intérprete. Ora, fosse isso verdadeiro, teríamos que dar razão e Kelsen, para quem a interpretação a ser feita pelos juízes é um ato de vontade. Isso para dizer o mínimo.

A dialética entre texto e atribuição de sentido ao texto não pode ser “afogada” por pressupostos metafísicos como ora se constata, estando o intérprete refém do esquema sujeito-objeto, notadamente sob a tradição erigida pelo paradigma do Estado Democrático de Direito. Daí que a tese de Lenio Streck (2012, p.87/88), referente à construção de uma teoria do direito adequada aos postulados do Constitucionalismo Contemporâneo, apresenta-se de maneira completamente ruptural com relação à tradição constituída sob a égide do positivismo exegético/normativista. A hermenêutica possibilita o enfrentamento e

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a superação do decisivo problema, não enfrentado pelo positivismo, que é da interpretação do direito, e que é, ao mesmo tempo, o problema da aplicação.

Portanto, não mais se sustenta, nos tempos que ora sucedem, que a administração pública brasileira continue a desprezar os infl uxos constitucionalistas e fi losófi cos que permeiam a atividade interpretativa, mormente os juízes. A constituição simplesmente não pode ser aquilo que o intérprete pensa ou quer que ela seja.

Urge que se permite ao texto constitucional dizer algo; é preciso que a linguagem, dentro do necessário contexto intersubjetivo seja condição de possibilidade e não mero instrumento entre o sujeito e o objeto, isto é a linguagem não poder ser utilizada como ferramenta para o assujeitamento do objeto por parte do intérprete, assim como este também não pode/deve ser assujeitado pelo objeto a partir de uma linguagem conceitual objetivista.

Vistas as principais bases da Nova Crítica do Direito, no sentido de construir um ferramental adequado para, a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito inserido no Constitucionalismo Contemporâneo, direcionar as críticas àquilo que contraria esse modelo de Estado, ruma-se à parte fi nal do trabalho, em que se ampara a premissa instituída, de que a administração não respeita os postulados constitucionais tributários (em pleno século XXI, ainda).

4 O OBJETO DA PROBLEMÁTICA: ADI/RFB Nº 42/2011 E DESRESPEITO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADEApesar de todo o catálogo de princípios estabelecidos na Constituição com relação

à tributação – mormente o princípio da legalidade reiterado no art. 150, inc. I – , esta não vem sendo exercido como deveria ser, ou seja, não vem sendo utilizada de forma adequada ao texto constitucional. A administração pública faz de conta que não se encontra vinculada aos princípios constitucionais. Ao invés de dar-se conta que ao exigir tributos exerce uma importante função constitucional,1 pensa-se estar em um pseudossistema medieval, em que a exigência de tributos confundia-se com poder.

Relativamente à administração, verifi ca-se claramente a presença do que Lenio Streck chama de “Baixa Constitucionalidade”, fenômeno pelo qual se respeita menos a Constituição do que qualquer outro veículo normativo. Aliás, em matéria de direito tributário, isso não é novidade: há a Constituição para estabelecer as balizas; as leis para criar os tributos, os decretos para regular as leis, as instruções normativas para “normatizar” os decretos, as portarias de cada órgão, as portarias conjuntas, os atos declaratórios etc., enfi m, diversos meios para o servidor decidir qual o melhor lhe aprouver sem se preocupar

1 Afi rma-se ser a atividade de exigir tributos uma importante função constitucional, porque nos dias atuais, praticamente toda a receita obtida pelo Estado para o custeio das despesas e da implementação de políticas públicas provem de receitas derivadas, ou seja, dos tributos. Com a onda globalizante de privatizações, ocorridas no Brasil principalmente nos governos COLLOR e FHC, o Estado brasileiro encontra-se destituído das possibilidades de angariar recursos via receitas originárias.

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com o que a Constituição determina, mas preocupando-se apenas com não colocar o seu “couro” em risco. Entretanto, como critica Lenio Streck (2007, p.XXI):

Independentemente disso, a Constituição não pode ser aquilo que queremos que ela seja. Nem tampouco a história (tradição) consegue eliminar a possibilidade de formulação de novos argumentos teóricos fora do texto da Constituição. Ou seja, a concepção hermenêutica do sentido da Constituição implica uma dialética constante entre texto (que não deve estar assujeitado ao interprete) e a atribuição de sentido a esse texto. Consequentemente, não é mais possível falar em deduções ou induções (ou, acrescento, subsunções): pensar assim seria admitir um retorno ao esquema sujeito-objeto, considerado superado na elaboração de qualquer perspectiva hermenêutica de uma Constituição cujo texto é atravessado pelo rio da história.

Recentemente, ocorreu uma situação na qual se constata claramente a crítica apontada. Com a entrada em vigor da Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011, fruto da conversão da Medida Provisória nº 540/2011, empresas de determinados setores passaram a recolher a contribuição previdenciária à alíquota de 1,5% sobre o valor da receita bruta, em substituição à contribuição de 20% sobre as remunerações pagas aos empregados. A nova forma de recolhimento passou a viger em 1º de dezembro de 2011.

A Secretaria da Receita Federal, usurpando a competência do Poder Legislativo, expediu o Ato Declaratório Interpretativo – ADI RFB nº 42, de 15 de dezembro de 2011, estabelecendo que a contribuição previdenciária a cargo da empresa (20% sobre os rendimentos dos empregados) não incidiria apenas sobre o valor correspondente a 1/12 (um doze avos) do décimo terceiro salário dos empregados, referente à competência de dezembro de 2011. Sobre o saldo do valor do décimo terceiro salário relativo às competência anteriores a dezembro de 2011, estabeleceu que incidiriam as contribuições na forma do art. 22 da Lei nº 8.212/91. Dessa forma, ainda que – a partir de 1º de dezembro de 2011 – a Contribuição Previdenciária Patronal sobre a folha tenha sido substituída pela nova contribuição sobre o faturamento, a Receita Federal entendeu que as empresas deveriam contribuir à alíquota de 20% sobre o valor resultante das competências anteriores a dezembro de 2011 do décimo terceiro devido aos segurados empregados.

O Ato Declaratório (supostamente) Interpretativo trata-se de uma verdadeira aberração. Ora, se é necessário lei para estabelecer base de cálculo e fato gerador de tributo, como a Receita Federal pretendeu modifi car tais elementos do tributo por ato administrativo? Será que a Constituição não importa para a Receita Federal? Ou melhor: para que serve a Constituição se não há respeito sequer ao princípio da legalidade?

O malfadado ADI/FRB causa espanto também por outras questões: o Plano Brasil Maior foi instituído via Medida Provisória, pelo chefe do Poder Executivo Federal, então, como pode a Receita Federal querer contrariá-lo? Ainda: a própria Instrução Normativa RFB nº 971/2009, disciplina no art. 52, inc. III, alínea “h”, que se considera ocorrido

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o fato gerador em relação ao décimo terceiro no mês de pagamento da última parcela, quando a referida gratifi cação é devida.

Não obstante, tendo a discussão sido levada ao judiciário via Mandado de Segurança, teve juiz denegando a ordem, de forma a acolher o fundamento da Receita Federal de que o fato gerador do 13º salário, na verdade, ocorre a cada mês trabalhado ou fração de 15 dias. O argumento do juiz, no caso, foi de que a interpretação deve ser feita de forma sistemática, analisando todos os dispositivos legais em apreço.2

Assim, a partir de uma simbiose entre leis do direito do trabalho e leis de direito tributário, o intérprete acabou por defi nir via jurisdição fato gerador e base de cálculo novos para o tributo, esquecendo-se de iniciar a sua análise por um corolário básico do Estado de Direito: o princípio da legalidade. Oportuna à crítica de Lenio Streck (2010, p.94/95):

É espantoso vermos colocados lado a lado os princípios constitucionais e os velhos princípios gerais do direito. É como se não tivéssemos aprendido nada nesses duzentos anos da teoria do direito. Ora, há um sério equívoco neste tipo de incorporação legislativa, visto que, como demonstrei em meu Verdade e Consenso – não há como afi rmar, simultaneamente, a existência de princípios constitucionais (cujo conteúdo deôntico é fortíssimo) com os princípios gerais do direito, que nada mais são do que instrumentos matematizantes de composição das falhas do sistema. Vale dizer, os princípios gerais do direito não possuem força deôntica, mas são acionados apenas em casos de “lacunas” ou de obscuridade da previsão legislativa (esses dois fatores – lacuna e obscuridade – decorrem muita mais da situação hermenêutica do intérprete do que exatamente da legislação propriamente dita).

Não obstante o juiz de primeiro grau ter denegado a segurança no case referido, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tendo-lhe sido devolvida a questão, deu provimento ao apelo do contribuinte, reconhecendo-se a ilegalidade do referido ato administrativo que se dizia interpretativo.

Entretanto, nos dias atuais, em que a Constituição “constitui a ação”, não se pode mais admitir a utilização de velhas técnicas de interpretação em detrimento dos princípios constitucionais que alicerçam o Estado Democrático de Direito, notadamente o princípio da legalidade no caso em apreço.

Os operadores do direito administrativo não estão livres das infl uências do passado, estando determinados por uma tradição na qual são jogados. É imprescindível, assim, ser

2 Trata-se de sentença proferida nos autos do Mandado de Segurança nº 5005173-64.2012.404.7108, distribuído junto à 2ª Vara Federal de Novo Hamburgo, em que são partes: H. Kuntzler & Cia Ltda. e Delegado da Receita Federal do Brasil em Novo Hamburgo, disponibilizado em 24 jul. 2012. Disponível em: <http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtV alor=50051736420124047108&selOrigem=RS&chkMostrarBaixados=&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=&hdnRefId=&txtPalavraGerada=&txtChave= >. Acesso em 07 ago. 2013.

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capazes de apreciar sua verdadeira posição na história e fugir dos paradigmas objetivistas/subjetivistas. A tradição na qual o intérprete é jogado acaba por selecionar seus juízos, e, este “já acontecido”, infl uencia na compreensão de forma a não permitir um juízo neutro (OHLWEILER, 2003, p.286). Faz-se necessário aderir à viragem ontológico-linguística, de forma a exercer a atividade administrativa de forma adequada à Constituição.

O intérprete deve ter consciência e revolver seus preconceitos, de forma a entender que dentro do novo paradigma formado por esse modelo de Estado, a lei cede espaço à Constituição, os princípios ganham força normativa e é preciso ocorrer um deslocamento dos positivismos para a Nova Crítica do Direito, que incorpora a fi losofi a hermenêutica e a hermenêutica fi losófi ca, de forma a compreender para interpretar autenticamente o direito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAISAs transformações ocorridas no Direito, em que a Constituição implementa o

Estado Democrático de Direito, exigem que se rompa com os paradigmas positivistas predominantes, que até então são utilizados para a aplicação do Direito. O novo, deve ser visto com novos olhos. E o Constitucionalismo Contemporâneo demanda essa ruptura, essa superação do positivismo em suas mais variadas formas, implicando mudanças signifi cativas no âmbito da interpretação, uma vez que deixa de apostar no método para aplicação do Direito, para demonstrar que a hermenêutica deve ser compreendida como um processo construtivo, e não meramente reprodutivo.

Com o novo modelo de Estado instituído, surge um paradigma a partir do qual a lei cede espaço à Constituição, os princípios adquirem normatividade e em termos de teoria da interpretação, supera-se a metafísica clássica e a fi losofi a da consciência, dando espaço para um redirecionamento à viragem ontológico-linguística de Heidegger e Gadamer, que supera os positivismos. O sujeito passa a não ser mais o fundamento do conhecimento, estabelecendo-se uma necessária intersubjetividade, uma conversação através da linguagem para que ocorra a fusão de horizontes necessária para uma compreensão apta a uma nova construção de sentido.

É claro que a construção de sentido não pode signifi car invenção, ou seja, não podem ser desrespeitados os limites semânticos dos textos da Constituição e dos códigos; ela não pode implicar em livre arbítrio, assim como o direito não pode ser aplicado mecanicamente, por meio de técnicas – deve consistir em atribuição de sentido, a qual se realiza pela interpretação, no caso concreto, uma vez que o sentido é construído temporalmente e a partir do que faz parte da tradição (Gadamer), relacionando-se com a distinção entre ser e ente (Heidegger).

Para um retomar hermenêutico com o intuito de compreender os princípios constitucionais aptos a colaborar com uma tributação diferente da que ora se constata, é preciso levar em consideração que o jurista, ao interpretar o texto constitucional, o faz a partir de preconceitos construídos durante sua formação, por serem intrínsecos ao seu

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modo de ser no mundo, embora não perceba claramente isso. Portanto, deve compreender o novo paradigma, situando-se no seu contexto histórico (atual), a fi m de incorporar pré-juízos que o faça alcançar interpretações adequadas à Constituição, pelos fundamentos da Nova Crítica do Direito.

Faz-se necessário que o intérprete da Constituição suspenda seus prejuízos inautênticos para poder compreender, interpretar e aplicar o texto da Constituição Federal, permitindo que o texto possa lhe dizer algo, na medida em que, apenas dessa forma, poderá perceber/descobrir o novo sobreposto no referido texto, para poder trabalhar no processo de desvelamento e fundamentação da decisão judicial.

É preciso levar em conta que, anteriormente, a função da Constituição era a de apenas legitimar a ação do Estado e estabelecer o processo de participação democrática, sem estabelecer os valores regentes da sociedade – como se verifi ca na Constituição de 1988 –, ou seja, as constituições deixam de ser meramente programáticas, pois passam a agregar conteúdo substancial, pelo que vinculam os atos do Poder Público e buscam transformar a sociedade.

Quanto à tributação, em especial, a administração continua refratária à viragem ontológico-linguística ocorrida na fi losofi a, que deveria ser incorporada pela hermenêutica jurídica. Apesar de haver uma parte da Constituição cuidando somente de princípios específi cos para o exercício da função tributária, os intérpretes continuam presos aos paradigmas metafísicos, notadamente o objetivismo e as técnicas de interpretação continuamente sustentadas pelo senso comum teórico dos juristas. Não é possível continuar a agir dessa forma em relação a um âmbito do direito que pode contribuir signifi cativamente para a redução das desigualdades sociais, pela redistribuição de riquezas como o do direito tributário.

O ato administrativo objeto da problemática, por certo, não poderia existir. O medo na diminuição da arrecadação não pode ser fundamento para a expedição de ato administrativo que contrarie o texto constitucional. Outrossim, como pode querer a administração que os contribuintes respeitem a legislação tributária, se a própria desrespeita a Constituição? Entra-se em círculo vicioso, no qual cada sujeito da relação tributária opta por desrespeitar a legislação que rege seus deveres, ao alvedrio das regras constitucionais atinentes, regras estas que fundam toda uma sociedade constituidora do Estado.

REFERÊNCIASBUFFON, Marciano. Princípio da capacidade contributiva: uma interpretação hermeneuticamente adequada. Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica, Porto Alegre, n.8, p.231-256, 2011.______. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

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Positivismo Jurídico 2: crítica às características centrais

Orlando Luiz Zanon Junior

RESUMOO referente do presente texto consiste em analisar as cinco características centrais que

compõem o conceito operacional de Positivismo Jurídico, com vistas a verificar-se em que medida merecem ser mantidas, complementadas ou superadas. A hipótese central diz respeito à necessidade de se estruturar um novo paradigma para Ciência Jurídica, com relação às suas quatro plataformas centrais, consistentes nas teorias da Norma, das Fontes, do Ordenamento e da Decisão Judicial.

Palavras-chave: Positivismo Jurídico. Moral. Subsunção.

Legal Positivism 2: Criticism about the key features

ABSTRACTThe main theme of this text consists in analyse the five key characteristics of the operational

concept of Legal Positivism, in order to verify in what measure they must be maintained, complemented or overcome. The central hipothesys is about the necessity of building a new paradigm for legal science, around it’s four basic plataforms, consistent in the thesys of Norm, Sources, System and Juditial Decision.

Keywords: Legal Positivism. Morality. Subsumption.

1 INTRODUÇÃOPode-se afi rmar que o Positivismo Jurídico, como paradigma central da Ciência

Jurídica, vem sofrendo severas críticas, a ponto de desvelar a instalação de uma crise de tal modelo disciplinar. Tal assunto foi abordado em uma tríade de artigos anteriormente publicados, consistente nos textos A Revolução na Teoria do Direito, A Centralidade Material da Constituição e A Complexidade da Norma Jurídica, nos quais se analisaram os modelos juspositivistas de Hans Kelsen e de Herbert Lionel Adolphus Hart e se apresentou as principais críticas aos seus postulados mais elementares, de modo a ilustrar a crise paradigmática, tanto no cenário do Direito legislado (civil law ou code based legal system) como também no padrão consuetudinário (common law ou judge made law). Prosseguindo em tal linha de pesquisa, resta necessário desenvolver uma apreciação unifi cada do paradigma do Juspositivismo, com destaque de suas características principais e, depois, sintetizando as principais críticas quanto aos seus aspectos descritivos (ou empíricos) e prescritivos (ou normativos). Com tal

Orlando Luiz Zanon Junior é Juiz de Direito. Doutor em Ciência Jurídica pela UNIVALI. Dupla titulação em Doutorado pela UNIPG (Itália). Mestre em Direito Pela UNESA. Pós-graduado em Preparação à Magistratura Federal pela UNIVALI. Pós-graduado em Direito e Gestão Judiciária pela UFSC.

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desiderato, projetou-se a redação de dois artigos reciprocamente complementares sobre o Positivismo Jurídico, sendo que o primeiro foi dedicado à apresentação de um conceito operacional, de acordo com suas características centrais, enquanto este segundo é voltado ao desenvolvimento das críticas que recomendam a instauração do processo de superação paradigmática, incentivado pelo advento de diversas proposições teóricas pós-positivistas.

Outrossim, no primeiro dos dois artigos, concluiu-se que o Positivismo Jurídico é o Paradigma da Ciência Jurídica caracterizado, principalmente, pela separação entre Direito e Moral, formação do Ordenamento Jurídico exclusivamente (ou prevalecentemente) por regras positivadas, construção de um sistema jurídico escalonado só pelo critério de validade formal, aplicação do Direito posto mediante subsunção e discricionariedade judicial (judicial discretion ou interstitial legislation) para resolução dos chamados casos difíceis (hard cases).

Então, o referente do presente texto consiste em analisar as cinco características centrais que compõem o conceito operacional antes desenvolvido, com vistas a verifi car-se em que medida merecem ser mantidas, complementadas ou superadas.

A hipótese central diz respeito à necessidade de se estruturar um novo paradigma para Ciência Jurídica, com relação às suas quatro plataformas centrais, consistentes nas teorias da Norma, das Fontes, do Ordenamento e da Decisão Judicial.

Assim, na primeira seção, serão tecidas algumas ressalvas importantes acerca da importância do paradigma do Positivismo Jurídico, de modo a dissipar algumas ponderações equivocadas (ou falácias) que, não raramente, são repetidas entre acadêmicos e profi ssionais brasileiros.

Na segunda parte, sem perder de perspectiva as considerações preliminares, serão analisadas cada uma das características centrais do modelo do Juspositivismo, de modo a apresentar sugestões quanto à sua manutenção ou superação.

Em sede de conclusão, serão sintetizadas as críticas antes efetuadas e lançadas algumas considerações para balizar uma eventual superação de viés pós-positivista.

Quanto à metodologia empregada, registra-se que, na fase de investigação, foi utilizado o método indutivo; na fase de tratamento de dados, o cartesiano, e o texto fi nal foi composto na base lógica dedutiva. Nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as técnicas do referente, da categoria, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfi ca.1 Ademais, é muito importante destacar que as menções ao modelo juspositivista partem da análise previamente elaborada acerca das proposições teoréticas de Kelsen e de Hart, exposta na tríade de textos que antecedeu este texto.

1 PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12.ed. rev. São Paulo: Conceito, 2011.

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2 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARESO paradigma do Positivismo Jurídico foi desenvolvido durante um extenso

período de tempo, mediante o esforço de expoentes como Jeremy Bentham, John Austin, Hans Kelsen, Herbert Lionel Adolphus Hart e Norberto Bobbio, vindo a prevalecer sobre o anterior modelo do Jusnaturalismo, principalmente por melhor atender ao valor da segurança jurídica, pois garante maior previsibilidade quanto às consequências dos comportamentos humanos. Ainda atualmente, é possível afi rmar que o ensino jurídico brasileiro está calcado nas suas teses centrais, expostas no artigo científi co anterior. Entretanto, o modelo juspositivista está sendo alvo de severas críticas, que visam demonstrar a incorreção dos seus principais postulados teóricos, com vistas a ensejar a revolução científi ca que, gradualmente, implicará a sua superação paradigmática por uma outra teoria do Direito, nos moldes explicitados por Thomas Kuhn.2

Porém, antes de ingressar na análise quanto à necessidade de tal superação paradigmática, cabe tecer algumas considerações preliminares, de modo a dissipar eventuais equívocos, não raramente propagados nos cenários acadêmico e forense brasileiros.

Primeiro, ressalta-se que tal movimento de oposição científi ca deve considerar que o Positivismo Jurídico não é necessariamente “um mal” a ser combatido, sob o argumento de que teria permitido a formação de regimes totalitários, a exemplo do Fascismo na Itália e do Nacional-Socialismo (Nazismo) na Alemanha.3 Com efeito, rejeita-se a alegação de que a substituição do Juspositivismo por alguma teoria que adote valores morais (materiais) pode, por si só, evitar a adoção de governos de cunho ditatorial.

Tal argumento, conhecido por reductio ad Hitlerum, é uma falácia, haja vista que tanto uma teoria que atente para a tese da separação entre Direito e Moral, como outra que defenda o contrário, são passíveis de conformar a construção de um Ordenamento Jurídico com as características daqueles dois antes mencionados.

Importa considerar que os partidários do regime nazista defendiam a preservação de uma “Moral” superior aos preceitos positivos, instituindo um suposto modelo estatal de justiça (Gerechtigkeitsstaat) em detrimento do Estado de Direito (Rechtsstaat), porém, com bases nas suas considerações particulares acerca da “Moral”, marcadas

2 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científi cas. São Paulo: Perspectiva, 2009.3 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.257-264, especialmente 257-258: “O juspositivismo é apresentado como teoria que traiu a causa do direito, como garantia (ou pelo menos tentativa) de pacifi cação, justiça, solidariedade social etc., enganou os operadores jurídicos e ofereceu cobertura teórica a um regime criminoso. […] O raciocínio nesses casos é conhecido como reductio ad Hitlerum. Quando se pretende rejeitar uma teoria ou visão política, afi rma-se que ela foi adotada pelo regime nazista ou, pelo menos, que correspondia à ideologia nazista. Isso permite rejeitar imediatamente essa teoria ou visão política, já que ninguém aceitaria, em nossos dias, defender o pensamento nazista”.

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pelo nacionalismo, pelo racismo e pela violência.4 Para tanto, o Terceiro Reich fomentou uma interpretação sem limites da legislação pelo aplicador (unbegrentzte Auslegung), justamente para permitir que os textos legais existentes na Alemanha fossem derrogados pelos máximos “valores” e pelas alegadas “necessidades” do “povo alemão de então”, em fl agrante oposição com os postulados teóricos juspositivistas.5

Aliás, é curioso destacar que Hans Kelsen, um dos expoentes do Positivismo Jurídico, era judeu e foi perseguido pelo regime nazista, enquanto seu opositor científi co, Carl Schmitt, cujas teses sustentam a necessidade da construção de um sistema fl exibilizado por critérios morais, esteve historicamente próximo do nazismo.

Daí ser possível concluir que não é a opção teórica que permite classifi car um regime estatal específi co como bom ou mau, haja vista que tal abordagem depende do debate acerca da ideologia que o atravessa e dos princípios morais que são conservados pelos grupos sociais que têm condições fáticas de poder para efetivamente implementar, modifi car ou extinguir o Direito6. Neste sentido, acusar o Juspositivismo de causar o Fascismo ou Nazismo “é como criticar a teoria atômica por ter levado à destruição de Hiroshima e Nagasaki”.7

Portanto, a análise acerca da opção entre um modelo juspositivista ou pós-positivista deve atentar para as qualidades específi cas de cada proposta teórica, no sentido de promover uma superação de caráter científi co, ao invés de se confundir com falácias do tipo ora examinado.

Segundo, tampouco o Juspositivismo pode ser considerado equivocado simplesmente porque implica a prisão do juiz à letra seca da lei (boca da lei ou, em expressão francesa, Bouche de la Loi) e, assim, impede sejam promovidos os valores sociais, como se tem ouvido falar nos meios forenses e acadêmicos brasileiros, principalmente após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB).8 É preciso reiterar que o Paradigma do Positivismo Jurídico foi desenvolvido justamente em razão da crise paradigmática9 do anterior modelo do Jusnaturalismo, orientando-se

4 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.257-264, especialmente 261: “O nazismo queria instituir um ‘Estado de justiça’ (Gerechtigkeitsstaat), abandonando o modelo de Estado de direito (Rechtsstaat) que era criticado como formalista e individualista. Os juristas próximos ao nazismo criticavam os ideais de segurança jurídica e as formalidades jurídicas; exaltavam os valores do povo alemão, exigindo a ‘eticização’ da aplicação do direito que os juízes deveriam impor, distanciando-se do ‘pensamento com base na lei’ (Gesetzesdenken). O positivismo era visto como negação do ideal de justiça e o próprio Hitler declaro que, no Terceiro Reich, o direito coincide com a moralidade”. 5 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.257-264, especialmente 261: “Com a exceção da legislação que visava o combate dos adversários políticos e de minorias tidas como inimigas do Estado, o regime nazista não introduziu importantes modifi cações no ordenamento jurídico alemão. Os meios empregados foram a ilegalidade governamental e a reinterpretação do direito em vigor, invocando ‘valores’ e ‘necessidades’ do povo alemão. Nesse âmbito, as autoridades estatais realizaram a denominada unbegrentzte Auslegung (interpretação sem limites), adotando uma postura que contraria frontalmente os ensinamentos do positivismo jurídico”.6 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.257-264.7 POSNER, Richard Allen. Direito, pragmatismo e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.225.8 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.46-47.9 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científi cas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

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em uma vinculação dedutiva da autoridade à lei superior (subsunção) num esforço para afastar as incertezas e inseguranças decorrentes do uso ilimitado de uma suposta razão superior, lastrada em alegados valores morais absolutos e inquestionáveis, fi cticiamente válidos e efi cazes em todo tempo e lugar.10

Outrossim, sem pretensões de fugir do referente para tratar da histórica vantagem da substituição do modelo do Direito natural pelo Juspositivismo (trabalho que certamente demandaria muitas páginas dedicadas especialmente a tal questão), importa reprisar a afi rmação de que a proposta deste texto não é retornar ao padrão anterior, mas sim verifi car quais os vícios da matriz teórica atual e, diante deles, lançar bases para uma possível superação, de viés pós-positivista. Reitera-se que o objetivo não é retroceder aos parâmetros do modelo superado (Jusnaturalismo) e tampouco desprezar as vantagens do Paradigma predominante (Juspositivismo), mas sim partir das conquistas já alcançadas para, num esforço teórico, propor elementos para contribuir no desenvolvimento de uma nova matriz disciplinar, mais adequada à pós-modernidade.

Justamente por isso, foi adotada a denominação Pós-positivismo para designar as correntes que visam superar as defi ciências do modelo atual, mediante a proposição de novas alternativas aos eventuais problemas diagnosticados. Não se olvida, porém, que algumas versões deste movimento de substituição paradigmática possam ser apelidadas de não positivistas, por simplesmente não adotarem algumas de suas teses centrais (a exemplo da proposta de Robert Alexy), ou mesmo antipositivistas, no sentido de se dedicarem declaradamente ao combate teórico contra seus principais postulados (como, exemplifi cativamente, a construção doutrinária de Ronald Myles Dworkin).

3 CRÍTICA AOS POSTULADOS JUSPOSITIVISTASFeitas estas considerações propedêuticas, é pertinente analisar criticamente as cinco

características principais da matriz disciplinar juspositivista, com o intuito de verifi car se merecem ser mantidas, modifi cadas ou suprimidas.

Sobre a separação entre Direito e Moral, esta não pode prevalecer nos moldes como proposta pelos juspositivistas, haja vista que, primeiro, são inegáveis os refl exos entre tais ordens sociais, que se conformam mutuamente, a despeito da vontade de purifi cação científi ca e de preservação da objetividade das disposições normativas; e, segundo, os temas morais estão intrinsecamente interligados com as questões jurídicas, porquanto voltados ao sentido material (axiológico) fi nalístico do Direito, que é disciplinar a tomada de decisões corretas, boas e justas (e não qualquer deliberação, a despeito de seu conteúdo).

Antes de adentrar na análise deste tema, cabe apenas ressalvar que as críticas quanto à separação entre Direito e Moral não afastam a vinculação da generalidade das propostas pós-positivistas quanto à tese da origem social das Normas (social thesis ou social sources of the law), ou seja, de que ambas as referidas ordens são produtos culturais. Notadamente,

10 DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 4.ed. São Paulo: RT, 2011. p.90-98.

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raros são os jusfi lósofos que ainda defendem a existência de alguma normatividade metafísica, ou seja, extraída do “coração do homem”, da “boa razão” ou de alguma “força divina”, consoante a doutrina do Jusnaturalismo. Outrossim, há prevalência de uma aceitação ampla (dos juspositivistas e de seus opositores teóricos sérios) quanto à origem social de ambos os mencionados sistemas de conduta, porquanto decorrem de produção humana e, portanto, são aferíveis faticamente, ainda que de forma fl uida.11

Feita essa breve ressalva, quanto ao primeiro aspecto (inafastabilidade da infl uência moral na produção normativa), assevera-se a inviabilidade das autoridades públicas escaparem totalmente das questões de moralidade política ao estabelecerem Textos Normativos (fase de positivação) ou tomarem decisões (etapa de interpretação e aplicação), haja vista que a deliberação quanto às opções disponíveis perpassa invariavelmente por análises axiológicas, no tocante à alternativa melhor (que pode ser a economicamente mais adequada, a mais justa etc.), ainda que, logicamente, os parâmetros dependam da carga de conhecimento e das convicções pessoais de cada um, bem como das forças que acomodam tal conjunto de infl uências. Sem embargo, na fase de positivação, os legisladores inegavelmente discutem os argumentos de cunho moral que ressonam no parlamento, de modo que a sua produção normativa refl ete tais infl uxos axiológicos.12 Por sua vez, os intérpretes a aplicadores (notadamente os juízes), ainda que se esforcem na adoção de uma postura imparcial, não são autômatos isolados capazes de suspender integralmente seus preconceitos (no sentido de pré-juízos) ao efetuarem a leitura dos textos legislativos e jurisprudenciais e, assim, as suas deliberações acabam por conferir um signifi cado com contornos morais, em maior ou menor grau de acomodação.13 Portanto, é

11 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.82: “Na atualidade, a construção jusnaturalista parece ter sucumbido ao peso teórico de seus críticos. São raríssimos os autores que continuam afi rmando que o verdadeiro direito está escrito ‘no coração do homem’ ou na ‘natureza humana’ e que o direito natural constitui o alicerce do direito positivo. Em virtude disso, as teses do PJ [Positivismo Jurídico] lato sensu são aceitas pela quase totalidade dos estudiosos do direito. Mesmo um autor que destaca as fortes ligações entre o direito positivo, a moral e a justiça e se diz jusnaturalista, como é o caso de Philip Soper, admite que a criação do direito decorre de ‘ação ou vontade humana’. Dito de outra forma, mesmo quem não se considera positivista aceita plenamente a positividade do direito moderno”. 12 ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Direitos humanos e moral: os valores morais nas fases de positivação e de aplicação dos direitos humanos. Sequência, Florianópolis. n.60, p.109-132, 2010, p.123: “Inicialmente, quanto à fase de positivação, cabe assinalar que os valores emergentes dos embates políticos prévios confi guram o substrato inicial para criação das normas, consubstanciando a razão de existência do ordenamento jurídico. Com efeito, a atividade criadora do direito é voltada para o fi m de disciplinar a multiplicidade de ações e omissões possíveis no cenário social e econômico, com enfoque na proteção de determinados interesses e na promoção de certos valores. O elemento anímico do legislador é, então, condicionado pela moral compartilhada em determinado contexto histórico. Daí que a relação de complementaridade entre direito e moral é verifi cável desde o nascedouro do preceito normativo”.13 ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Direitos humanos e moral: os valores morais nas fases de positivação e de aplicação dos direitos humanos. Sequência, Florianópolis. n.60, p.109-132, 2010, p.125: “No que concerne a este segundo momento, em que se verifi ca a manifestação dos valores subjacentes ao direito, cabe assinalar que o aplicador, seja qual for (um particular contratando, um gestor público ou um juiz, por exemplo), condicionará moralmente a fi nalidade da norma, ainda que mediante a suspensão de seus preconceitos pessoais em favor dos princípios e regras que extrai do sistema normativo, de modo a harmonizar o direito à moral compartilhada no contexto histórico da interpretação. Nessa linha de raciocínio, o intérprete percebe/concebe a norma do texto através de atividade intelectual que não pode ser compreendida afastada da moral que compartilha intersubjetivamente no contexto histórico. Isto porque, primeiro, o dispositivo normativo não é perceptível fora do cenário onde seu conteúdo deve se concretizar; e, segundo, o valor não é algo embutido em algum lugar secreto do preceito ou do diploma onde se insere, esperando para ser encontrado. Pelo contrário, o valor é compartilhado intersubjetivamente e condiciona a extração da norma como resposta à resolução do caso apresentado. Daí o papel da moral na fase de aplicação, como critério de harmonização da norma no momento de sua implementação fática”.

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insustentável a crença de uma total neutralidade axiológica, de modo a revelar a inegável inter-relação entre Direito e Moral, tanto na fase de positivação, como também na etapa de interpretação e aplicação. A proposição juspositivista que sustenta a total desvinculação ou a indiferença entre tais ordens normativas é altamente criticável, justamente porque é inviável a proposição de uma blindagem efi caz da interpretação e da aplicação dos preceitos jurídicos em face da moralidade política, de sorte que os Juristas não devem se esquivar em discutir tal tema ou simplesmente externá-lo artifi cialmente da Ciência Jurídica.

Os adeptos do Juspositivismo defenderam a ruptura entre moralidade e juridicidade como um meio de evitar a contaminação do Direito por aspectos materiais amplamente subjetivos (juízos de certo ou errado, bom ou mau e justo ou injusto), que poderiam prejudicar a objetividade na interpretação e aplicação das Normas Jurídicas e, assim, gerar imprevisibilidade quanto às consequências do comportamento humano. Porém, ainda que louvável tal intenção (a palavra é empregada propositadamente, pois a limpeza de cunho anti-ideológica é também, por si, uma opção ideológica),14 a exclusão do âmbito do Direito da questão moral representa, em verdade, uma fuga de tal problema complexo (e mutável), que irrefutavelmente refl ete na produção normativa, ao infl uenciar a atividade dos legisladores e juízes.

Também sob a ótica científi ca não se justifi ca que os juristas descuidem do estudo da Moral, apenas porque se trata de um tema complexo e variável, para construir uma Ciência do Direito pura e outra talvez impura (como a Ética, que para Kelsen é o ramo de estudo da moralidade15). Considerando que os infl uxos morais são inafastáveis (não é faticamente possível uma efetiva blindagem do ser humano racional com relação à Moral), consoante acima explicitado, cabe à Ciência Jurídica internalizar tal tema e, assim, traçar proposições sobre ele, com vistas a promover a disseminação de conhecimentos e aprimorar sua área de estudos. Com efeito, a externalização dos problemas morais é uma simples fi cção que somente serve ao fi m político de tentar justifi car o mito simbólico de uma Ciência Jurídica objetiva e neutra. Logo, os Juristas não podem se furtar ao diagnóstico do problema e, por se debruçarem sobre o campo de estudos das ordens sociais, têm a atribuição científi ca (função social) de propor soluções que permitam uma mais fi el e ampla compreensão da realidade e, consequentemente, promovam um progresso civilizatório mais inclusivo e dignifi cante da condição humana.

14 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p.181: “Em síntese, pode-se chegar à conclusão de que o rígido formalismo de Kelsen refl ete certa posição dominante das ciências humanas, em determinado momento do desenvolvimento político econômico das sociedades burguesas liberais contemporâneas. Porquanto, ainda que se busquem teorizações aparentemente conformistas e não engajadas ao ditame dessas sociedades, na verdade, sob tais fórmulas técnicas, ocultam-se ideologias e intentos do próprio jogo da ‘neutralidade’, objetivando fi ns ‘impuros’. De fato, a suposta ‘cientifi cidade’ e a propalada ‘neutralidade’ kelsenianas não deixaram de ser também ideologias, pois sua ‘Grundnorm’ transformou-se em instrumento de legitimação de inúmeras ordens política-jurídicas: tanto de Estados do capitalismo liberal-burguês quanto de Estados que viveram certo tipo de socialismo burocrático”.15 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.67: “Essas outras normas sociais podem ser abrangidas sob a designação de Moral e a disciplina dirigida ao seu conhecimento e descrição pode ser designada ética”.

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Acerca do segundo aspecto (relação entre os objetivos do Direito e a Moral), cabe asseverar que uma das fi nalidades centrais do sistema jurídico reside justamente em estabelecer critérios e limites para tomada de decisões que sejam corretas, boas e justas, não apenas quaisquer deliberações previsíveis, a despeito de seu conteúdo. Como uma construção cultural (produzida pela Sociedade),16 o Direito tem uma fi nalidade a desempenhar, a qual não pode ser simplesmente ignorada ou excluída, sob pena de acarretar uma contradição lógica insuperável, consistente na criação de um produto para desempenhar uma função (disciplinar corretamente a vida social) e, simultaneamente, liberação de que atinja tal objetivo (admitir que qualquer tipo de regramento de conduta é válido a despeito de seu conteúdo, desde que previsível objetivamente). Logo, também por ser a própria razão de criação histórica do Direito, este deve se dedicar a disciplinar de forma correta (certa, boa e justa) a conduta humana, sob pena de se privilegiar um sistema social sem funcionalidade específi ca (ou que não atende satisfatoriamente tal necessidade).

Sem embargo, nessa quadra da história, em que se tem em perspectiva um Estado Constitucional Democrático, na expressão empregada por Gustavo Zagrebelsky17 e por José Joaquim Gomes Canotilho,18 não se pode admitir a existência de um Ordenamento Jurídico a despeito de qualquer conteúdo, justamente porque as leis fundamentais, por via de regra, contemplam parâmetros de perfi l axiológico. É preciso reconhecer que as Normas Jurídicas devem ter legitimidade moral, ainda que tal apreciação seja axiológica e, portanto, relativa e subjetiva.19 Caberá ao processo comunicativo, de viés jurídico e democrático, o esforço para formação de consensos (ou maiorias) sobre quais os padrões que devem prevalecer no Ordenamento normativo em determinado período histórico.

Sob esta ótica, a apresentação das Normas Jurídicas com qualquer conteúdo, ou seja, a despeito da sua legitimidade moral, é outro problema que torna insustentável a teoria do Direito juspositivista, haja vista que, primeiro, são inegáveis e inafastáveis os infl uxos morais na atividade jurígena e, segundo, a própria fi nalidade histórica da normatização reside em estabelecer quais são as condutas corretas, boas e justas. Bem assim, ao lado do pilar de validade formal da estrutura normativa, é preciso tratar também das pilastras morais e axiológicas que, de forma simultânea, conferem sustentação ao sistema.20

16 GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.20: “Nível de um todo complexo – a estrutura social global –, o direito nela se compõe e resulta da sua própria interação com os demais níveis desse todo complexo. […] Produto cultural, o direito é, sempre, fruto de uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um fenômeno universal e atemporal”. 17 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia. 9.ed. Madrid: Trotta, 2009. p.33-41.18 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2003. p.87.19 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p.288: “Mas, por causa da sua função social, o poder do Estado não deve contentar-se com a legalidade técnico-jurídica; por necessidade da sua própria subsistência, deve também preocupar-se da justifi cação moral das suas normas jurídicas ou convencionais positivas, procurar a legitimidade”. 20 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.38: “O direito não é uma ordem lógica nem uma simples estrutura. Possui caráter político que se exprime em tomadas de posição, em práticas e teorias situadas no tempo e no espaço e apoiadas em opções substanciais (‘de conteúdo’) que o estudioso não pode ignorar, mesmo quando se preocupa com a análise de elementos estruturais, comuns em vários ordenamentos”.

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Portanto, de acordo com os dois aspectos antes destacados, não se pode cogitar, então, da simples opção por uma modalidade inclusiva do Positivismo Jurídico (a exemplo da proposição de Hart), ao invés de uma versão exclusiva (como a de Kelsen), no sentido de apenas admitir que, eventualmente, as contingências políticas e sociais são confl uentes com os temas jurídicos e, assim, estabelecem contornos na atividade jurígena. Tal solução não parece ser a mais adequada, considerando que há uma necessária relação fática entre Direito e Moral (primeiro ponto) e que a própria fi nalidade histórica do conhecimento jurídico é justamente permitir a tomada de decisões corretas, boas e justas (segundo ponto). Outrossim, é necessário se socorrer de uma proposição pós-positivista neste particular, que articule uma adequada confl uência entre moralidade e juridicidade.

No concernente à prevalência das Regras Jurídicas, é incorreta a proposição juspositivista de que o Direito se resume a um conjunto de imperativos legislativos, porquanto há outros elementos que inegavelmente conformam a atividade jurígena, a exemplo da Moral (como já antes assinalado), dos Princípios Jurídicos e das políticas, dentre eventuais outros. Todavia, merece ser respeitada a tese juspositivista que atribui apenas a prevalência, mas não a exclusividade, das disposições legais escritas sobre os demais padrões decisórios, com a ressalva da viabilidade do controle principiológico de constitucionalidade, já incorporada inexoravelmente na tradição jurídica de diversos países, inclusive da República Federativa do Brasil.

Aprofundando ambas as afi rmações, cabe acentuar a falha descritiva do argumento juspositivista no sentido de que a ordem jurídica seria composta tão somente de Regras postas pelo Estado, ainda que sua inserção tenha sido infl uenciada por critérios morais, políticos, ideológicos ou interesses de quaisquer outras ordens, a exemplo da proposição teórica de Kelsen21. Porém, é respeitável a versão atenuada de tal concepção do Direito, no sentido de que a legislação escrita não é o único parâmetro de julgamento, porém, são sempre prevalecentes sobre os demais, em razão do monopólio estatal da produção normativa,22 consoante expôs Hart.23

Com efeito, quanto à primeira assertiva (só as Regras Jurídicas são Direito), cabe assinalar que, quando o parlamentar se baseia em um elemento extraído da Moral para produção de um Texto Legislativo, deve se supor que tal texto foi “moralmente contaminado”. Também quando o juiz, ou outro órgão aplicador do Direito, produz uma Norma Jurídica para fundamentar uma Decisão concreta com base em um Princípio Jurídico, se estará diante do ingresso de um elemento diferente da Regra positiva na ordem jurídica. Tais exemplos demonstram que, “nos discursos jurídicos, surgem não

21 KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. p.145-156, em especial p.148.22 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.115: “O termo ‘formal’ indica tão somente que, na visão juspositivista, a validade da norma nunca pode ser julgada de acordo com critérios externos, isto é, decorrentes de outros sistemas normativos (adequação moral, política, econômica, técnica, científi ca, artística etc)”. 23 HART, H. L. A. Ensaios sobre teoria do direito e fi losofi a. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p.59-60 e, especialmente, p.347: “Assim, sejam as leis moralmente boas ou más, justas ou injustas, os direitos e deveres exigem atenção como pontos focais no funcionamento do sistema jurídico, que tem importância suprema para os seres humanos e independe dos méritos morais das leis”.

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somente argumentos imanentes ao direito, mas também argumentos éticos, empíricos e pragmáticos”.24 Não se pode negar, ainda, que tais infl uxos diversos da legislação positiva são empregados comumente e, portanto, não podem ser desconsiderados pelo cientista do Direito.25

Tanto é assim que Ronald Myles Dworkin, em seu ataque geral declarado ao Positivismo Jurídico, demonstrou que existem diversos padrões que infl uenciam o magistrado na construção da Norma que fundamenta uma Decisão concreta, dos quais reputou legítimos os Princípios (principles) e as Regras (rules) e, de outro lado, rejeitou as políticas (policies), sem olvidar da existência de outros tipos de argumentos não especifi cados.26 Embora o entendimento do referido Jurista seja objeto de análise mais adiante, cabe adiantar tal colocação para registrar que, diferentemente dos juspositivistas, reconheceu a existência de diversos aspectos normativos e passou a enfrentar o problema, ao invés de simplesmente taxá-los de estranhos à Ciência Jurídica e esquecê-los.

Aliás, o próprio Hart, após as provocações acadêmicas de Dworkin, reconheceu expressamente que sua visão foi incompleta, ao desconsiderar a importância de outros padrões de julgamento para a Ciência Jurídica. Com efeito, inicialmente seu entendimento era de que o sistema seria formado centralmente (principalmente) por Normas Jurídicas primárias (Regras coercitivas de conduta) e secundárias (Metarregras de reconhecimento, de modifi cação e de julgamento), com eventuais outros elementos distintos na periferia.27 Porém, após o mencionado diálogo acadêmico, acabou por reconhecer o equívoco do Juspositivismo neste particular e, consequentemente, admitiu que deixou de examinar outros padrões de julgamento de alta relevância para a compreensão do Direito, a exemplo dos Princípios Jurídicos.28

Acrescenta-se que, para fi ns do escorreito desenvolvimento de uma nova teoria do Direito, é possível apontar, desde o início, um conjunto de elementos que historicamente tem servido para conformar a Norma Jurídica, consistentes em, a um, os Textos Legislativos, que são vinculantes e devem ser levados a sério,29 a dois, o conhecimento técnico científi co, na medida em que for relevante para o estabelecimento de uma pauta

24 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p.352.25 ALEXY, Robert. On the concept and the nature of law. Ratio Juris, Oxford, v.21, n.3, p.281-299, 2008. p.283: “The everyday life of law is full of hard cases that cannot be decided simply on the basis of what has been authoritatively issued”.26 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.35-46, especialmente p.36: “Minha estratégia será organizada em torno do fato de que, quando os juristas raciocinam ou debatem a respeito de direitos e obrigações jurídicos, particularmente naqueles casos difíceis nos quais nossos problemas parecem mais agudos, eles recorrem a padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões. Argumentarei que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papeis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras” (grifou-se). 27 HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.128.28 HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.339.29 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p.20 e 102.

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de julgamento (a exemplo da Doutrina Jurídica),30 a três, os Princípios Jurídicos, já inseridos na tradição do Direito, a quatro, a Jurisprudência gradualmente construída e, a cinco, os padrões morais compartilhados intersubjetivamente no cenário onde ocorre a produção normativa. Todos estes cinco elementos são candidatos a auxiliarem na atividade jurígena e, portanto, ingressarem no conteúdo da ordem jurídica, mediante uma conjunção centrípeta das diversas considerações técnicas (viewpoints) sobre a legitimidade, a validade e a pertinência de cada um deles.

Veja-se bem que não se está afi rmando que todo e qualquer elemento pode integrar a ordem jurídica, haja vista que é muito importante a delimitação de quais são as Fontes legítimas do Direito (tema que será objeto de estudo, na sequência). A crítica aqui estabelecida é apenas no sentido de que a teoria do Direito não pode simplesmente ignorar que existem outros diversos padrões de julgamento que conformam a produção normativa e que, portanto, merecem ser considerados como frações, legítimas ou ilegítimas, do sistema. Uma situação é admitir que existem tais elementos suscetíveis de infl uenciar a produção normativa, tanto na formatação dos Textos Legislativos, como na fi xação das Decisões executivas ou jurisdicionais. Outra completamente distinta é qualifi cá-los de elementos estranhos à ordem jurídica e, assim, isolá-los artifi cialmente, como propõem uma parcela do movimento juspositivista, a exemplo de Kelsen. Tais elementos existem de fato e, por isto, reclamam a atenção do cientista jurídico.

Logo, forçosa a ilação de que a formação unidimensional do Ordenamento Jurídico é incompleta, justamente porque não abarca os diversos outros padrões que inegavelmente conformam as Decisões Jurídicas.31

Porém, no tocante à segunda afi rmação (o Texto Legislativo sempre prevalece sobre os demais padrões de julgamento), esta merece ser respeitada e mantida por uma proposta de superação pós-positivista, haja vista que, acaso não for conferida tal preferência à legislação escrita, geralmente confeccionada segundo padrões democráticos modernos (como se verifi ca formalmente no cenário brasileiro atual), estará se permitindo que o órgão decisor possa fazer preponderar sua apreciação pessoal sobre as opções fi xadas legitimamente, em fl agrante retrocesso no processo civilizatório.

Com efeito, desconsiderar a importância das limitações impostas pelos textos positivos signifi ca, nesta linha de pensamento, um retorno indevido aos postulados do Jusnaturalismo, o qual relativizava a importância da legislação em face de supostos direitos

30 STRECK, Lenio Luiz. Crise de paradigmas: Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz. Disponível em: <www.leniostreck.com.br. Acesso em: 12 abril 2011.31 NEVES, António Castanheira. Digesta: Escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. V 2. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p.52: “Trata-se agora também do reconhecimento, não só de que o sistema jurídico haverá hoje de pensar-se aberto e constituendo, mas sobretudo de que deixou ele de ser normativisticamente unidimensional (i. é, constituído apenas por normas, no sentido dogmático estrito desse conceito, e qualquer que seja a origem dessas normas ou mesmo que não sejam elas exclusivamente normas legais), pois se revela como normativisticamente pluridimensional – desde logo, e é essencial, com uma dimensão normativa que transcende, intencional e juridicamente, as normas formais e que é dada pelos valores e princípios normativo-jurídicos, os regulativos e constitutivos fundamentos normativos de todo o sistema juridicamente vigente”.

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naturais, altamente abstratos e fl exíveis, capazes de comportar qualquer tipo de solução, mormente em sociedades complexas e altamente heterogêneas, como a brasileira. Aliás, seria um esforço infrutífero insistir em positivar diversas orientações para tomada de decisão e, ao mesmo tempo, admitir que elas possam ser simplesmente desconsideradas com base em argumentos fi ctícios, calcadas em supostos postulados naturais que, a bem da verdade, não passam de uma retórica para amparar o ponto de vista de determinada autoridade, em detrimento de preceitos democraticamente criados.

Entretanto, importa registrar que os Textos Normativos infraconstitucionais podem ser mitigados, em determinadas hipóteses e de acordo com processos específi cos, quando contrariem os Princípios Jurídicos estabelecidos em alçada constitucional, em sistemas jurídicos que assimilaram o controle de constitucionalidade, a exemplo da tradição jurídica brasileira.

Encontra-se assentado, neste cenário, que os preceitos infraconstitucionais podem ser invalidados pela aplicação de Princípios constitucionais, cuja interpretação/concretização está sujeita a infl uxos da moralidade32. Embora se repugne o subjetivismo na apreciação moral da legislação positiva, não se pode afastar a necessidade do controle de constitucionalidade das leis positivas, ainda que com base em Princípios lidos eticamente, em sede de um Estado Constitucional Democrático33. Assim, o exercício do controle de constitucionalidade, representa, sob esta ótica, uma forma válida e amplamente aceita de invalidação dos preceitos infraconstitucionais por critérios de julgamento diversos, notadamente os Princípios Jurídicos e a Moral.

Portanto, diante de tal contexto, apresenta-se correta a tese da impossibilidade da superação dos dispositivos legais, embora se admita que os sistemas jurídicos modernos têm, de uma forma ou de outra e dentro de certos parâmetros preestabelecidos, fi xado a possibilidade de se negar efeitos aos Textos Normativos infraconstitucionais que contrariem Princípios Jurídicos (e, consequentemente, temas morais), desde que estes tenham alçada fundamental (constitucional).

Perante as duas colocações acima alinhavadas, é possível justifi car que os diversos elementos de determinação das Normas Jurídicas precisam ser conhecidos e estudados pela Ciência do Direito (mais especifi camente pela dogmática jurídica), inclusive para fi ns de auxiliar na prescrição daqueles que são juridicamente aceitáveis e devem ser tomados em conta pelo legislador e pelo órgão aplicador, bem como dos que merecem ser

32 DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: A leitura moral da constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.2: “A maioria das constituições contemporâneas expõe os direitos do indivíduo perante o governo numa linguagem extremamente ampla e abstrata, como a Primeira Emenda à Constituição norte-americana, que estabelece que o Congresso não pode fazer nenhuma lei que diminua a ‘liberdade de expressão’. A leitura moral propõe que todos nós – juízes, advogados e cidadãos – interpretemos e apliquemos estes dispositivos abstratos considerando que eles fazem referência a princípios morais de decência e justiça”.33 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme minha consciência. Porto Alegre: Do Advogado, 2010. p.102-103: “Mas, atenção: essa crítica ao subjetivismo – que é, fundamentalmente, uma crítica ao pragmati(ci)smo – não implica a submissão do Judiciário a qualquer legislação que fi ra a Constituição, entendida no seu todo principiológico. Legislativos irresponsáveis – que aprovem leis de conveniência – merecerão a censura da jurisdição constitucional”.

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desprezados. Logicamente, as afi rmações antes reduzidas tornam nítida a falseabilidade da pretensão juspositivista de que o Direito é formado apenas por Regras Jurídicas, embora mereça ser preservada a tese de que a legislação positiva deve sempre prevalecer sobre os demais parâmetros que podem infl uenciar a atividade jurígena, com a ressalva do controle principiológico de constitucionalidade.

Acerca do Ordenamento Jurídico, acentua-se que a doutrina juspositivista também merece aperfeiçoamentos, haja vista que a estrutura de uma pirâmide de Regras Jurídicas escalonadas segundo critérios formais precisa de adaptações para, primeiro, assimilar os demais parâmetros de julgamento admitidos (a exemplo dos Princípios Jurídicos e da Moral); segundo, mais fi elmente explicar a relação complexa e refl exiva dos diversos padrões jurídicos entre si, nos quadros de um mesmo sistema; e, terceiro, melhor ilustrar a posição estrutural da Norma fundamental, considerando seus aspectos político e axiológico, os quais aderem ao seu caráter formal.

Quanto à primeira assertiva, cabe reiterar o que já foi explicitado acima, no tocante à existência de outros elementos, além da Regra Jurídica, no interior do sistema normativo, os quais precisam ser devidamente tratados pela teoria do Direito.

No tocante à segunda colocação, importa assinalar que a dinâmica unidirecional da pirâmide jurídica, no sentido de cima para baixo, proposta inicialmente por Kelsen, não refl ete a complexidade das interações entre as diversas Fontes Jurídicas que se articulam no interior do Ordenamento Jurídico. Isto porque, mediante a observação da atividade da jurisdição, é possível constatar que o órgão aplicador não segue uma linha reta de raciocínio partindo da Constituição, passando pela legislação intermediária, até chegar à Norma de Decisão, ou seja, ele não simplesmente desliza linearmente do ápice até a base da pirâmide. Diferentemente, a atividade do intérprete e aplicador se apresenta dispersa entre os diversos elementos que extraí do complexo normativo para elaborar a sua Decisão, os quais são apreciados de acordo com movimentos multidirecionais, diversos da simples descida do topo até a base, inclusive em razão da inter-relação e da refl exividade entre os critérios que serão adotados.

Como exemplo, imagine-se a situação hipotética de um juiz que tem ao seu encargo a resolução de um caso criminal de trânsito, como lesões físicas causadas por um atropelamento culposo. Inicialmente, por certo que não pode desconsiderar o conteúdo da Constituição, que é o elemento central de um determinado Ordenamento Jurídico. Porém, a leitura dos preceitos constitucionais, na hipótese vertente, será irradiada por extratos dos subsistemas criminal e processual penal, os quais justamente apoiam a fi xação dos critérios de desaprovação e de punição da conduta concreta em análise. Ademais, sua análise não pode olvidar dos imperativos legais extraídos da legislação de trânsito. Então, a operação mental do juiz não se reduz a uma descida dos preceitos constitucionais, passando pelos criminais, processuais e de trânsito, até chegar à Decisão, como podem pretender os juspositivistas (mormente Kelsen). Na verdade, sua leitura da Constituição e dos estatutos processual, repressivo e de trânsito é refl exiva e irradiante, entre os subsistemas envolvidos. Outrossim, ao invés de uma linearidade, de cima para

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baixo, há uma irradiação multirrefl exiva e complexa entre os preceitos da Constituição, da legislação penal, do processo criminal e da disciplina de trânsito, de modo a conformar a sua Decisão jurisdicional.

Consequentemente, também sob esta ótica, a estrutura da ordem jurídica merece ser revista, haja vista que a forma piramidal, cuja dinâmica é meramente linear de cima para baixo, não representa adequadamente os movimentos que se operam no interior do sistema.

E, sobre a terceira colocação, é necessário repensar o posicionamento da Norma fundamental dentro do sistema jurídico, haja vista que sua colocação no topo de uma pirâmide escalonada visa apenas satisfazer um critério de validação formal das disposições que se colocam abaixo dela, contudo, não representa adequadamente a força material que irradia sobre os demais elementos do Ordenamento Jurídico.34

Em estudo anterior, no qual se expuseram alguns argumentos inaugurais da presente pesquisa, foi defendida a hipótese de que a Constituição não é o vértice de um sistema formado puramente por Regras Jurídicas escalonadas pelo critério meramente formal, mas sim um texto jurídico com inegável caráter político e axiológico, que assume a posição de centralidade formal e material (ou seja, conteudística) em uma ordem jurídica de feições orbitais. Nesta linha de pensamento, o núcleo do Ordenamento Jurídico é formado por uma pauta de princípios estruturantes, impressos na Constituição, que consubstancia o pilar de sustentações formal e material de todo o sistema.35

Portanto, diante da tripla argumentação apresentada, justifi ca-se a necessidade de repensar a estrutura piramidal da versão juspositivista de Ordenamento Jurídico, de modo a melhor sistematizar a confl uência multidirecional e irradiante dos diversos padrões de julgamento sobre os pilares formais e materiais de uma Norma fundamental.

No tocante à aplicação do Direito por subsunção, a proposição juspositivista merece ser superada, para melhor representar a realidade (aspecto descritivo da Ciência Jurídica), haja vista que as Normas Jurídicas faticamente não correspondem a soluções oferecidas de antemão pelo órgão legiferante (premissas maiores), antes de surgidos os casos concretos (premissas menores), de modo a inviabilizar um raciocínio meramente lógico dedutivo. Ademais, como decorrência da afi rmação anterior, o fenômeno da subsunção não efetivamente demonstra a atividade interpretativa e aplicativa da jurisdição, a qual é complexa e se desenvolve diferentemente do mero encaixe dos fatos em preceitos legais, através de um procedimento silogístico.

34 DUARTE, Écio Oto Ramos. POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: As faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da constituição. 2.ed. São Paulo: Landy, 2010. p.81: “Esse modelo jurídico [constitucionalismo] representa uma visão universalista do direito constitucional, a qual representa uma dimensão axiológica do jurídico, em que os valores não são simplesmente expressões de um ponto de vista, mas a expressão de um ideal moral universal. Nesse modelo, a Constituição não é somente ‘norma de autorização’ e limite do direito infraconstitucional; esta apresenta um conteúdo que sustenta todo o sistema jurídico”. 35 ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. A centralidade material da constituição. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n.95, 2011. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br. Acesso em: 01.12.2011.

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Quanto às objeções acima expostas, importa ressaltar a incorreção da presunção juspositivista de que as Normas Jurídicas são previsões de resposta para problemas futuros que, quando falhas ou imprecisas, demandam a atividade criadora discricionária do órgão aplicador do Direito. Tal entendimento encontra-se expresso, ainda que com algumas diferenças analíticas, nas obras de Hart (somatório de Regras primárias e secundárias com textura aberta)36 e, com aperfeiçoamentos, de Kelsen (Normas escalonadas e a moldura de interpretação)37.

Para Hart, as Normas Jurídicas são padrões de conduta fi xados pela autoridade competente (Direito posto), com força coercitiva, criadas para reger a vida em Sociedade. Porém, em se tratando de casos difíceis, quando o órgão aplicador encontra imprecisões na tarefa de deduzir a resposta correta prefi xada no Ordenamento Jurídico, ele deve exercer o poder legislativo intersticial e discricionário para fi xar o imperativo aplicável na situação concreta, de modo a superar a textura aberta decorrente das limitações linguísticas38.

Tal versão positivista não se sustenta, pois o Texto Legal (dos quais se extraí o imperativo) não apresenta nenhuma resposta de antemão, tratando-se de uma orientação escrita, com fi nalidade limitativa da amplitude decisória. Ou seja, antes da efetiva ocorrência de um caso (concreto ou imaginado), não há nenhuma resposta preestabelecida, mas apenas uma construção gramatical (um texto).39 Somente com a efetiva ocorrência de um problema na faticidade (concreta ou hipoteticamente), é que surge a pergunta que irá movimentar a operação interpretativa e aplicativa do órgão judicante, que passará a produzir a Norma Jurídica, segundo as balizas traçadas pelo enunciado normativo e de acordo com os detalhes da situação fática40. Portanto, não há Norma Jurídica em abstrato, ou seja, antes dos fatos, da mesma forma que inexistem respostas antes das perguntas, de sorte a demonstrar a necessidade de aperfeiçoamento deste ponto da doutrina juspositivista, com vistas a ampliar sua fi delidade descritiva (âmbito descritivo da Ciência Jurídica).

A leitura desatenta dessa consideração (inexistência de Normas Jurídicas em abstrato) poderia levar a uma objeção, baseada no fato de que, através do estudo científi co

36 HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.161-199.37 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.387-397.38 HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.351: “Para que possa proferir uma decisão em tais casos, o juiz não deverá declarar-se incompetente nem remeter os pontos não regulamentados ao poder legislativo para que este decida, como outrora defendia Bentham, mas terá de exercer a sua discricionariedade e criar o direito referente àquele caso, em vez de simplesmente aplicar o direito estabelecido já existente. Assim, nesses casos não regulamentados juridicamente, o juiz ao mesmo tempo cria direito novo e aplica o direito estabelecido, o qual simultaneamente lhe outorga o poder de legislar e restringe esse poder”.39 GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p.29: “Partindo do texto da norma (e dos fatos), alcançamos a norma jurídica, para então caminharmos até a norma de decisão, aquela que confere solução ao caso. Somente então se dá a concretização do direito. Concretizá-lo é produzir normas jurídicas gerais nos quadros de solução de casos determinados [Müller]”.40 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.549-550: “Desde já – embora essa discussão já esteja esclarecida no decorrer da obra –, é necessário (re)lembrar que, para os efeitos aqui pretendidos, a palavra ‘norma’ representa o produto da interpretação de um texto, isto é, o produto da interpretação da regra jurídica realizada a partir da materialidade principiológica. Se sempre há um princípio atrás de uma regra, a norma será o produto dessa interpretação, que se dá na applicatio. […] Desse modo, não pode haver um conceito de norma que seja prévio e anterior ao caso a ser decidido. Portanto, a norma e, máxime, a normatividade do direito emerge da confl ituosidade própria do caso”.

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do Direito (em instituições de ensino superior, por exemplo), mesmo realizado em sede meramente hipotética, seria possível a extração de Normas Jurídicas, o que faria sucumbir a presente exposição, na medida em que haveria uma Regra de conduta antes da ocorrência de um caso concreto. Todavia, tal crítica é incorreta, haja vista que as atividades de abstração somente são possíveis através de efetivos casos, ainda que os respectivos detalhes tenham resultado da criatividade (ou imaginação) de um estudioso, de acordo com os quais se torna possível a interpretação dos Textos Legais e, assim, a produção de Normas.41 Jamais um determinado dispositivo legal representa uma Norma Jurídica por si só, haja vista que esta só surge quando há a atividade de interpretação e de aplicação, diante de uma caso (ainda que hipoteticamente imaginado), mediante a interferência de um intérprete que pretende resolvê-lo.

Portanto, merece aprimoramento tal versão da teoria do Positivismo Jurídico, capitaneada por Hart, de que a Norma Jurídica é uma resposta preestabelecida, fi xada pelo órgão legiferante, que oferece soluções para os futuros casos concretos, mediante o processo dedutivo e lógico de subsunção (encaixe dos fatos nas respostas prefi xadas). Isto porque, como já dito, antes da ocorrência de um caso (ainda que hipoteticamente imaginado), não há como se efetuar a interpretação de textos necessária para produção da Norma.

A proposição teórica de Kelsen, por ser mais refi nada no ponto, aparentemente superaria a difi culdade acima descrita, porquanto estabelece que a aplicação do Direito é uma atividade efetivamente produtiva, no sentido de que cada caso específi co demanda a construção de uma resposta única (Norma individual), salvo exceções raras. Como já visto, para o Jurista austríaco, há uma construção gradual e escalonada da ordem jurídica, no sentido de que as Normas superiores (legisladas ou extraídas de precedentes judiciais) conformam a atividade do órgão aplicador, que irá produzir (criativamente) uma Regra inferior individual para reger a situação concreta. Assim, para ele, a atividade de produção normativa é uma cadeia dinâmica inserida na pirâmide do Ordenamento Jurídico, em que novas Normas são criadas com bases nas preexistentes, ou seja, a resposta específi ca e individual deve ser produzida dentro das margens de possibilidade das soluções mais amplas e genéricas. Daí que, no interior da moldura representada pela disposição normativa superior, o órgão aplicador estaria livre para estabelecer as balizas do comando individual inferior.

Todavia, cabe notar que tal versão incorre no mesmo equívoco da proposição de Hart, ao admitir a existência de Normas Jurídicas em abstrato, nas quais o jurista pode se basear para produzir o imperativo individual. Como já dito, antes de iniciada a atividade interpretativa, há apenas textos legais, inexistindo uma efetiva Norma que possa guiar a atividade do órgão aplicador. Assim, como já se se discorreu anteriormente ao se tratar da necessidade de modifi cação da estrutura do Ordenamento Jurídico, a atividade produtiva do órgão aplicador se resolve através de análises complexas e refl exivas entre diversos

41 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justifi cação e aplicação. São Paulo: Landy, 2004. p.60: “[...] quem falar de uma norma, assim como de uma regra, no sentido relevante para a regra, associa a ela a ideia de alguns casos que são iguais entre si e nos quais, por isso, a norma pode ser aplicada”.

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padrões de julgamento (dentre eles Textos Legais, de graus de hierarquia diversos), aos quais aderem os fatos. Ou seja, apenas após a pergunta surgida na faticidade (caso concreto) é que o órgão aplicador inicia a complexa atividade cognitiva, balizada pelo seu conhecimento dos enunciados normativos escritos, que irá resultar em uma resposta específi ca (Norma Jurídica). Assim, sequer existe a chamada moldura kelseniana antes de iniciada a operação mental de interpretação, de modo a demonstrar a necessidade de refi namento da teoria juspositivista neste particular, para que melhor explique como as construções léxicas limitam a atividade jurisdicional. Em outros termos, não existem respostas antes de sequer formuladas as perguntas, ou seja, não há como se estabelecer que a ordem jurídica é composta por respostas genéricas e amplas (molduras), dentro das margens semânticas das quais o órgão aplicador irá encontrar uma solução (Norma). As soluções jurídicas são construídas somente a partir da provocação do caso concreto, ocorrido na faticidade ou hipoteticamente imaginado, que irá motivar o órgão aplicador a dar uma resposta, ainda que limitado por padrões de julgamento, a exemplo dos Textos Legais.

Mas não apenas aí a proposição kelseniana demanda aprimoramentos, pois também a descrição da subsunção escalonada não refl ete fi elmente a realidade. Sem embargo, para o autor em tela, a produção do Direito ocorre na própria dinâmica do Ordenamento, seguindo uma linha sempre descendente, dividida em tantas etapas quantos forem os degraus da hierarquia. Exemplifi cativamente, o constituinte derivado poderia modifi car a Constituição mediante uma emenda, enquanto o legislador, por sua vez, observaria a alteração constitucional para editar a lei ordinária e, ao fi nal, o juiz se basearia na mencionada disposição infraconstitucional para decretar uma Norma individual na resolução de um caso concreto. Porém, não é isto que efetivamente ocorre, de modo a revelar que a construção teórica de Kelsen é um plano ideal sem paralelo na realidade fática. Isto porque, consoante demonstra a experiência, o órgão aplicador do Direito, diante de um caso, difícil ou fácil (ambos se resolvem da mesma forma, embora o segundo possa parecer evidente, de resolução automática), enxerga a ordem jurídica como um todo íntegro e, dela, procura extrair os mais diversos elementos para produção da resposta (Norma Jurídica) que irá resolver o problema (caso). Tal convergência de aspectos, a serem ponderados segundo operação mental do intérprete, é que resulta na Norma Jurídica que responderá à pergunta inaugurada pelo caso concreto (ou hipotético).42

Retome-se o exemplo anterior, do juiz que está diante de certo caso criminal hipotético, envolvendo um suposto delito de trânsito. Ele pode, primeiro, identifi car alguns Textos Normativos que lhe parecem pertinentes ao tema, extraídos da Constituição, dos códigos penal, processual criminal e de trânsito, bem como do regulamento do órgão de fi scalização de tráfego. Todavia, tais Textos podem não

42 DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.492: “O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera do comportamento. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossa vidas. O império do direito é defi nido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. […] É uma atitude interpretativa e autorrefl exiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância”.

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parecer sufi cientes para resolução do problema, persistindo ainda dúvidas quanto ao melhor desfecho. Consultando a integralidade dos documentos legais antes referidos, o magistrado percebe que dois Princípios, quando articulados com os Textos Legais que ele destacou, permitem a formação de uma resposta, embora ainda não esteja completamente certo de que seja a melhor. Então, buscando auxílio na Doutrina especializada (de Direito e de engenharia automotiva, supondo que esta última também fosse pertinente à espécie), o juiz é infl uenciado por argumentos técnicos em determinado sentido, podendo até mudar a sua opinião inicial, quando sequer havia ainda consultado a legislação. Adicionalmente, em consulta ao escólio jurisprudencial de dois tribunais, o juiz acaba por confi rmar que os contornos de uma Decisão que formava em sua mente (e, portanto, tinha como sendo sua opinião desejada para o equacionamento da demanda), orienta justamente a modifi car um dos pontos acessórios da sua solução fi nal. E, em acréscimo, ainda que se esforce em desconsiderar seus preconceitos morais sobre o caso, alguns argumentos deste teor acabam exercendo inegável infl uência na sua operação interpretativa43. Ao fi nal, todos estes padrões de julgamento convergem, em uma estrutura argumentativa (que depois será reduzida linguisticamente em um texto escrito ou em voz gravada digitalmente), sob o formato de uma Norma Jurídica que fundamentará sua Decisão, a qual está sujeita à fi scalização democrática (accountability).

O exemplo acima ilustra, embora brevemente o fenômeno de conformação de uma Norma Jurídica, que muito pouco tem de semelhante com a categoria subsunção, ainda que nos moldes produtivos (e não meramente reprodutivos) propostos por Kelsen. Sem embargo, o referido fenômeno tipicamente positivista (subsunção) consubstancia uma redução exageradamente simplista da realidade, pois a Norma Jurídica é produzida por uma operação mental complexa, que envolve diversos elementos de determinação além das Normas superiores. Como já mencionado, diversos padrões de julgamento convergem de vários ângulos para infl uenciar a criação da Norma Jurídica, não sendo aceitável a tese de que ocorre apenas o encaixe de uma Regra inferior nos moldes de outra que lhe é superior, mediante um simples silogismo.

Muito embora a subsunção represente um esforço louvável de explicar cientifi camente como ocorre a delimitação da atividade cognitiva do juiz, a realidade fática demonstra que os Textos Legais representam lindes ao órgão aplicador de forma distinta, de modo a atestar a necessidade da Ciência Jurídica encontrar uma explicação mais coerente com a complexidade da atividade decisória. Importa perceber que a limitação da amplitude de deliberação não se opera por intermédio de uma moldura ou janela (resposta genérica e ampla preestabelecida), mas sim de alguma outra forma, a ser esclarecida por alguma proposição pós-positivista que mais fi elmente represente a confl uência dos vários padrões de julgamento.

43 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de fi losofi a do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.237: “[...] a interpretação do direito feita pelo juiz não consiste jamais na simples aplicação da lei com base num procedimento puramente lógico. Mesmo que disso não se dê conta, para chegar à decisão ele deve sempre introduzir avaliações pessoais, fazer escolhas que estão vinculadas ao esquema legislativo que ele deve aplicar”.

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A aposta juspositivista de que a produção normativa ocorre por subsunção linear, do ápice (Norma fundamental) até a base (Norma de Decisão) do sistema jurídico, ou seja, mediante o estabelecimento da Norma inferior por mera dedução da superior, através de um ato de vontade subsuntivo, simplifi ca excessivamente o fenômeno complexo e multidisciplinar da hermenêutica jurídica.44 Nesse particular, cabe lembrar os ensinamentos de Edgar Morin, no sentido de que se deve ter cuidado ao limitar demais os fenômenos na tentativa de descrevê-los cientifi camente, pois a redução exagerada da complexidade pode causar cegueira quanto à totalidade dos aspectos que compõem a realidade45. Tendo isto em conta, não se pode olvidar que a subsunção é uma abreviação fenomenológica deste tipo, que merece ser superada (ou aprimorada) tecnicamente.

A insufi ciência da teoria da moldura pode ser verifi cada faticamente na atividade forense cotidiana, pelo reiterado recurso a formas diversas de solucionar os casos pelos órgãos judicantes, exatamente em razão da inexistência de respostas preestabelecidas pela ordem jurídica que possam autorizar a técnica da subsunção. Exemplifi cativamente, as Cortes Constitucionais alemã (Bundesverfassungsgericht – BVerfG) e brasileira (Supremo Tribunal Federal – STF) têm empregado a chamada técnica de ponderação de interesses ou valores, criada por autores pós-positivistas, justamente para contornar a ausência de Normas Jurídicas prévias e, assim, resolver determinados casos considerados difíceis (hard cases), mediante a articulação de preceitos legais com Princípios Jurídicos. Uma busca através dos sistemas informatizados de consulta de Jurisprudência dos tribunais brasileiros revelará um considerável número de acórdãos com a menção à ponderação e à proporcionalidade, ainda que aplicadas de forma incongruente e assistemática, num esforço jurisdicional para responder aos problemas concretos, justamente ante a insufi ciência da chamada subsunção.

Nessa linha de raciocínio, embora a teoria da Decisão Judicial baseada na subsunção goze de ampla aceitação acadêmica, nos moldes de Hart ou mesmo na refi nada versão kelseniana, ela se encontra empiricamente incorreta ou, ao menos, excessivamente simplista, porquanto o órgão aplicador não enxerga a situação fática a ser resolvida através dos limites de uma janela representada pela Norma superior, mediante um procedimento silogístico.46

44 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de fi losofi a do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.221: “O juspositivismo tem uma concepção formalista da ciência jurídica, visto que na interpretação dá absoluta prevalência às formas, isto é, aos conceitos jurídicos abstratos e às deduções puramente lógicas que se possam fazer com base neles, com prejuízo da realidade social que se encontra por trás de tais formas, dos confl itos de interesse que o direito regula, e que deveriam (segundo os adversários do positivismo jurídico) guiar o jurista na sua atividade interpretativa”. 45 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. 3.ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. p.13-14: “Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os elementos da ordem e da certeza, precisar, clarifi car, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros aspectos do complexus; e, efetivamente, eu o indiquei, elas nos deixaram cegos”. 46 POSNER, Richard Allen. Problemas de fi losofi a do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.341: “Com base apenas no que afi rmei até agora, já deve estar claro que a concepção tradicional que associa o raciocínio do common law à indução e a interpretação das leis à dedução é enganosa. Interpretação não é dedução, ainda que quando um conceito é extraído de uma lei por meio de interpretação o juiz possa proceder dedutivamente (por exemplo, a lei de monopólio e concorrência desleal [Sherman Act] – por interpretação – proíbe a formação de quartéis, X é um cartel, portanto X é proibido)”.

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Portanto, em síntese, importa ter em mente que as Normas Jurídicas não podem ser conceituadas corretamente como esquemas de interpretação, sob a forma de molduras (ou janelas), dentro dos quais há um conjunto de soluções válidas, encontráveis mediante o procedimento lógico dedutivo de subsunção. A construção de um novo Paradigma da Ciência Jurídica deve ter em perspectiva que, primeiro, antes da existência efetiva do caso (concreto ou imaginado), há apenas um conjunto de Textos Legais, os quais somente vão infl uir na construção de uma Norma Jurídica (resposta) após inaugurado o processo cognitivo, através do impulso inaugural (start) representado pela questão quanto à solução correta de um problema específi co, concreto ou imaginado (pergunta). E, segundo, que a produção normativa não ocorre por subsunção linear, do ápice (Norma fundamental) até a base (Norma de Decisão) do sistema jurídico, ou seja, mediante o estabelecimento da Norma inferior por mera dedução da superior. Ou seja, uma proposta de superação, de viés pós-positivista, deve considerar que a hermenêutica jurídica envolve, mais acertadamente, uma convergência de diversos padrões de julgamento, que dimanam de diversos ângulos de forma reciprocamente irradiante, para conformação de uma Norma (resposta) que resolverá o caso concreto (pergunta).

E, quanto à discricionariedade para resolução dos casos difíceis, a proposta juspositivista precisa ser aprimorada para reduzir ainda mais a margem de manobra do órgão aplicador e, assim, aumentar o grau de previsibilidade das Decisões jurisdicionais e, consequentemente, ampliar a taxa de satisfação da segurança jurídica, mas sem descuidar da legitimação moral.47

Com efeito, a ideologia de base da teoria juspositivista da subsunção (também conhecida aplicação silogística) visava atender a uma das principais fi nalidades do Direito, consistente justamente no desenvolvimento de uma atividade decisória guiada pelas formas legais, de modo a preservar a segurança jurídica, na medida em que estabelece limites à atividade do juiz e, consequentemente, amplia a previsibilidade das consequências das condutas em sociedade. Ora, quanto menos opções tem o órgão aplicador, mais provável que o cidadão possa prever qual a escolha que será feita, incentivando a certeza do Direito.48

A intenção juspositivista era de que o valor da segurança jurídica alcançasse elevados patamares de satisfação através da subsunção, na medida em que a autoridade judicante efetivamente resolveria todos os casos simples uniformemente (easy cases ou clear cases) e conseguiria dar a solução legal exata para os casos peculiares (hard cases), evitando

47 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8.ed. rev. atual. Porto Alegre: Do Advogado, 2009. p.335: “Esclarecendo melhor e para bem entender as críticas aqui lançadas, o positivismo pode ser traduzido pelos seguintes aspectos (suas teses centrais): a) que a existência (vigência e validade) do direito em uma dada sociedade depende das práticas dos membros dessa sociedade; são, pois, as fontes sociais do direito; b) que a validade de uma norma independe de sua ‘validade’ moral; trata-se, pois, da separação entre direito e moral (secularização); c) que as normas jurídicas de um ordenamento não ‘cobrem’ todas as hipóteses de aplicação; isto quer dizer que haverá ‘casos difíceis’ que não serão solucionáveis pelas normas jurídicas existentes; daí o recurso à discricionariedade, poder ‘delegado’ aos juízes (é neste ponto que o positivismo se liga umbilicalmente ao sujeito solipsista – Selbstsüchtiger – da modernidade)”.48 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de fi losofi a do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.40: “A subordinação dos juízes à lei tende a garantir um valor muito importante: a segurança do direito, de modo que o cidadão saiba com certeza se o próprio comportamento é ou não conforme a lei”.

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soluções incongruentes entre si e que causassem surpresas aos envolvidos (soluções ad hoc ou criadas ex post facto), através de um método com feições mecanicistas.

Aliás, em geral, há um acordo entre juspositivistas e os pós-positivistas sérios quanto à importância da preservação do valor da certeza jurídica para o Direito, haja vista que a função principal do instituto reside justamente em estabelecer limites quanto às deliberações que são socialmente aceitáveis (e promover as louváveis) e, assim, gerar previsibilidade quanto às decorrências de uma atuação desviante ou virtuosa.

Sob esta ótica, acaso a técnica da subsunção tivesse atingido seu objetivo, ao longo do período em que permaneceu em ampla aceitação, poderia se afi rmar que o Positivismo Jurídico teria efetivamente superado os problemas típicos da corrente anterior do Jusnaturalismo, a qual foi gradualmente sendo abandonada (apesar das resistências ainda eventualmente existentes) justamente por causa da sua baixa capacidade de controlar as decisões do órgão aplicador, acarretando constantes e severas quebras de expectativa na aplicação do Direito. Ou seja, se a teoria da Decisão Judicial juspositivista, calcada na subsunção, tivesse êxito histórico quanto aos seus aspectos empírico (descrevesse com alto grau de fi delidade a realidade fática) e deontológico (atingisse as fi nalidades a que se propõe, justamente a de efetivamente limitar a atividade decisória a contento), os pós-positivistas sérios pouco ou nada teriam a reclamar neste ponto específi co.

Ora, nenhum pós-positivista que considere as características e funções típicas do Direito sustentaria uma maior liberdade decisória ao órgão aplicador, pois isto simplesmente atenta contra a própria razão originária dos institutos normativos, que reside justamente em limitar as deliberações, de modo a organizar a vida em Sociedade, em atenção ao valor da segurança jurídica, o qual justamente balizou as teorias contratualistas clássicas de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau (e, mais recentemente, com profundas modifi cações, John Rawls). Sem embargo, a fi cção teórica da passagem do chamado estado de natureza para o societário, através da celebração do contrato social, representa a renúncia da amplíssima liberdade pessoal com vistas a obter, em troca, um grau superior de segurança social. E o Direito é justamente o instituto que tem esta importante função, de delimitar a amplitude de possibilidade das deliberações, com vistas a assegurar uma convivência harmônica, segundo tal clássica abordagem ideológica, ainda atualmente persistente (e que, aqui, não será objeto de aprofundamento específi co, em razão da delimitação do referente de pesquisa).49

Acaso a teoria jurídica conferisse maior liberdade ao órgão decisor, haveria um retrocesso ao modelo anterior jusnaturalista, em que as decisões eram tomadas mais livremente, ampliando as incertezas quanto aos resultados das condutas em sociedades. A origem do Juspositivismo está calcada justamente na necessidade de se ampliar os controles sobre a tomada de Decisão dos órgãos produtores do Direito, de modo a

49 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.513: “Note-se: se a história do direito é uma história de superação do poder arbitrário, então podemos afi rmar que o que se procurar enfrentar é o locus onde a decisão privilegiada acontece, o lugar onde a decisão ocorre. Nessa medida, a história do direito também é uma história de superação ou enfrentamento do problema da discricionariedade (arbitrariedade)”.

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permitir a sindicabilidade democrática das deliberações tomadas em nome e em prol da Sociedade.50 Eventual descaso com o valor da segurança jurídica recomenda, ainda que não diretamente, a retroação do Direito às fases pretéritas de menor aperfeiçoamento técnico (tipicamente medieval), em que se atribuía aos detentores do poder (nas feições executivas, legislativas e judiciárias do soberano) a faculdade para livremente tomar, subjetivamente, as soluções que reputassem mais adequadas para reger as situações concretas, inclusive franqueando-lhes a possibilidade de solucionar os casos de acordo com as suas opiniões pessoais sobre o que é certo ou errado, conforme o que entendem subjetivamente por moralmente justo ou injusto ou, ainda, consoante sua percepção particular do que é economicamente viável ou inviável.51

O problema é que a operação mental de subsunção é um instituto que não espelha a realidade fática e, tampouco, atingiu sufi cientemente sua fi nalidade de limitar a atividade decisória do órgão aplicador, consoante já antes explicitado. Notadamente, não representa adequadamente a manifestação fática (aspecto empírico da Ciência) da atividade decisória e, como se verá adiante, não logrou atingir o grau de objetividade e certeza na aplicação do Direito (âmbito deontológico da Ciência).

Com efeito, os próprios juspositivistas foram os primeiros a encarar o problema da discricionariedade judicial (judicial discretion), confi rmando que os métodos de interpretação cunhados pelo Paradigma do Positivismo Jurídico, apesar de seus esforços, ainda franqueiam uma larga margem para o exercício da livre atividade discricionária do órgão aplicador, nos chamados casos difíceis (hard cases), em razão da ambiguidade da linguagem (open texture) ou das eventuais lacunas e antinomias, consoante já se esclareceu exaustivamente acima. Diversos aspectos ligados às peculiaridades do movimento juspositivista impediram que os seus expoentes fossem além da moldura kelseniana (Normas como esquemas de interpretação) e, assim, conseguissem delimitar a amplitude de opções deixadas ao intérprete.

O resultado disso é que, hodiernamente, ainda persistem as críticas com relação às incertezas quanto aos resultados da atividade executiva e judiciária do Estado, no sentido de que o cidadão nem sempre consegue prever, ainda que obtenha a ajuda técnica de um bom profi ssional da área (um advogado ou consultor jurídico), quais serão as consequências de seus atos, para que possa alinhar sua conduta de acordo com o Direito (ou, ao menos, saiba os riscos dos comportamentos desviantes). Mais do que isto, a ampla liberdade interpretativa que a doutrina juspositivista concede aos juízes tem servido de pretexto para que se admitam respostas diversas por tribunais distintos,

50 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de fi losofi a do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.38: “[...] a liberdade do juiz de pôr normas extraindo-as do seu próprio senso da equidade ou da vida social pode dar lugar a arbitrariedades nos confrontos entre os cidadãos, enquanto que o legislador, pondo normas iguais para todos, representa um impedimento para a arbitrariedade do poder judiciário”. 51 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.60-61: “Se o intérprete pode submete o direito a avaliações de conveniência, talvez seria melhor abandonarmos os ‘pretextos’ jurídicos e substituir o direito escrito pela elaboração de discursos teóricos apresentados por oradores especializados ou simplesmente pela escolha de pessoas sábias e honestas, encarregadas da resolução informal dos confl itos, tal como ocorria nas aldeais indígenas ou em cidades medievais e como ainda hoje se verifi ca em comunidades carentes”.

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gerando severa ruptura na segurança jurídica. Neste cenário, a discricionariedade judicial vem disfarçada pela designação independência funcional, a qual certamente demanda uma nova confi guração mais democrática. Ora, a referida expressão (independência funcional), normalmente atribuída aos profi ssionais da área do Direito (juízes, promotores e advogados), não signifi ca independência quanto ao cumprimento da lei, haja vista que, em sede democrática, todos têm suas decisões submetidas à ordem jurídica, sob pena de descambar em discricionariedade ou mesmo arbitrariedade.

Logo, também no tocante à ampla margem de discricionariedade que confere ao intérprete, a proposição juspositivista precisa ser substituída (ou aprimorada), de modo a ampliar o atingimento dos valores de segurança jurídica e, concomitantemente, da democracia.52

4 CONCLUSÕESFechadas as cinco críticas, que esclareceram os problemas referentes aos aspectos

centrais do Juspositivismo, é preciso reconhecer que tal modelo representou um importante passo no desenvolvimento da Ciência Jurídica, cujos méritos precisam ser atribuídos a autores como Bentham, Austin, Kelsen, Hart e Bobbio, dentre outros. Todavia, uma vez constatadas anomalias (ou equívocos) na base teórica, justifi ca-se um esforço científi co no sentido de implementar retifi cações ou promover aprimoramentos, ainda que, para tanto, seja necessário superar os elementos basilares do modelo vigente (ainda que parcialmente) e, consequentemente, propor as bases de uma nova matriz disciplinar.

Sem embargo, a crise do Paradigma do Positivismo Jurídico já foi admita por Bobbio, apesar de ter se declarado expressamente vinculado às teses centrais de tal movimento. Em estudo publicado pela primeira vez em 1971,53 o autor italiano chegou a admitir a decadência do modelo, mormente em face da emergência de outras Fontes Jurídicas além do Texto Legislativo, que condicionam as decisões tomadas no cenário capitalista contemporâneo, caracterizado por rápidas, intensas e confl ituosas transformações em escala global54. Segundo ele, a obra de Kelsen pode ser considerada como “o clímax do movimento juspositivista, depois do que começa sua decadência, isto é (sem metáfora), sua crise”.55

Nessa linha de pensamento, muito embora o Positivismo Jurídico tenha representado um avanço com relação ao Paradigma anterior do Jusnaturalismo, os seus elementos

52 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p.248: “A resposta juspositivista quase nunca oferece ao aplicador uma solução imediata e defi nitiva do caso, pois costuma enumerar várias alternativas decisórias, cabendo ao aplicador escolher. Isso não é admitido pelos moralistas que se referem à resposta certa no sentido de escolha da melhor solução para o caso concreto”. 53 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. p.XV: “Il diritto [O direito], in Le scienze umane in Italia, oggi, Il Mulino, Bolonha, 1971, p.259-77”.54 BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007. p.41: “Um dos aspectos pelo qual se manifesta a crise do positivismo jurídico é a crescente consciência da emergência de outras fontes do direito, que minam o monopólio da produção jurídica detido pela lei – em uma sociedade em rápida transformação e intensamente confl ituosa, como é a sociedade capitalista na atual fase de desenvolvimento”.55 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de fi losofi a do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.198.

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basilares se encontram atualmente em desuso ou sob severas críticas, franqueando a ilação de que se desvela a crise do modelo.

Isto porque a Comunidade Jurídica se encontra diante de problemas que não encontram solução satisfatória dentro do Paradigma juspositivista, até então predominante. Sem embargo, as Regras positivadas não apresentam respostas adequadas aos casos que vêm se apresentando perante a jurisdição, forçando os juízes a se socorrerem de Princípios, de políticas, de soluções pragmáticas ou de outros padrões de julgamento, isolada ou cumulativamente, para os resolverem. De outro lado, a Moral vem quebrando as barreiras que fi cticiamente a separavam do Direito positivo e, assim, infl uenciando abertamente o conteúdo do Ordenamento Jurídico. Também a simples subsunção dos fatos à Norma positiva, como forma de aplicação do Direito proposta pelos juspositivistas, não responde mais à complexidade dos problemas surgidos nos meios acadêmicos e forenses. Todas estas anomalias demonstram a crise do Juspositivismo e, consequentemente, reclamam a sua substituição por uma nova matriz disciplinar, que possa responder a estas e outras perplexidades e, assim, reger a Ciência Jurídica por um relevante espaço de tempo, ao menos até eventual nova ruptura científi ca.56

A instalação da crise na teoria do Direito acarreta o processo de revolução científi ca, nos moldes propostos por Kuhn, caracterizado pela substituição gradual dos principais postulados do modelo teórico do Juspositivismo, que já não mais oferece respostas adequadas aos problemas sociais, mormente em decorrência do acentuamento da complexidade nas relações intersubjetivas, da ampliação da interdisciplinaridade e da progressão da refl exividade transnacional.

Os juristas que apregoam a necessidade de ruptura paradigmática, alcunhados de pós-positivistas, têm apresentado severas objeções aos elementos centrais das teorias dos referidos autores, em um esforço de revisão da teoria do Direito em suas quatro plataformas constitutivas, consistentes nas teorias das Fontes, da Norma, do Ordenamento e da Decisão Judicial.

Embora uma nova matriz disciplinar comum ainda não se tenha estabelecido firmemente perante a Comunidade Jurídica, verifica-se a proposição de diversas alternativas para o devir da Ciência do Direito, de perfi s procedimentalista, substancialista ou pragmatista, com aspectos discrepantes das bases positivistas antes predominantes. Outrossim, o objetivo principal das propostas de superação é justamente articular um novo complexo de bases teóricas que permitam o salto paradigmático do modelo juspositivista atual para outro que, simultaneamente, seja descritivamente mais fi el à realidade concreta, esteja prescritivamente melhor concatenado com a democracia cosmopolita e, sobretudo, não implique regressão ao antigo e superado modelo jusnaturalista.

56 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.60: “Das teorias do discurso à fenomenologia hermenêutica, passando pelas teorias realistas (que deslocam o polo da tensão interpretativa na direção do intérprete), os últimos cinquenta anos viram fl orescer teses que tinham objetivos comuns no campo jurídico: superar o modelo de regras, resolver o problema da incompletude das regras, refundar a relação ‘direito-moral’, solucionar os ‘casos difíceis’ (não ‘abarcados’ pelas regras) e a (in)efetividade dos textos constitucionais (compromissórios e dirigentes)”.

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Com tal desiderato, partindo da análise crítica acima deduzida, é preciso estruturar uma nova teoria do Direito, de viés pós-positivista, que, dentre outras coisas, primeiro, considere a inegável infl uência de diversos outros padrões de julgamento, além das Regras positivas, na produção normativa; segundo, proponha uma dinâmica multidirecional, refl exiva e complexa da interpretação jurídica; e, terceiro, contemple o tema da legitimidade moral das Normas Jurídicas, como questão inerente e intrínseca ao direito.

Em síntese, estas colocações sobre o tema demonstram a crise do Positivismo Jurídico e, consequentemente, a necessidade da construção de um novo Paradigma, cujas bases, aliás, já vêm se formando nos contextos acadêmico e forense, sob a designação coletiva de Pós-positivismo.

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Levando o direito a sério: há realmente uma nova escola na teoria do direito?1

Charles Andrade Froehlich

RESUMOO presente artigo pretende descrever o debate atual envolvendo a possibilidade ou não de

uma nova escola ou corrente do direito chamada “pós-positivismo”. Para atingir seus objetivos, resgata a conceituação fundamental das grandes escolas – positivismo jurídico e jusnaturalismo – e a proposta contemporânea do pós-positivismo. Reaviva, também, o debate entre Ronald Dworkin e Herbert Hart sobre direito e moral, a aplicação de princípios e o poder discricionário do juiz. Após, discute a crítica ingênua ao positivismo jurídico e revê esta escola conforme os estudos atuais, demonstrando sua grande importância na questão do conceito de direito e na teoria do ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Positivismo jurídico. Jusnaturalismo. Pós-positivismo. Direito e moral.

Taking Law seriously: Is there really a new school in the theory of contemporary law?

ABSTRACTThis article aims to describe the current debate about what could be a new school or current

of thought in the field of law, called “post positivism”. In order to proceed, the fundamental concept of two great schools, legal positivism and natural law, as well as the contemporary proposal of post-positivism, are revisited. The debate between Ronald Dworkin and Herbert Hart about law and morals, application of principles and the discretionary power of the judge, is also reopened. Then, naive criticism of legal positivism is discussed; this school is reconsidered according to actual studies, demonstrating its great importance about the concept of law and the theory of legal order.

Keywords: Legal Positivism. Natural Law. Post-Positivism. Law and Morals.

1 INTRODUÇÃOSabe-se que o pós-positivismo pretende apresentar-se como escola ou corrente

alternativa às grandes e tradicionais escolas do direito (juspositivismo e jusnaturalismo). Por outro lado, na bibliografi a mais recente, estão surgindo também dúvidas pertinentes: “pós-positivismo” ou “neoconstitucionalismo” são apenas rótulos? Há uma superação ou

Charles Andrade Froehlich é Bacharel em Ciências Sociais e Jurídicas e Mestre em Filosofi a pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutorando em Filosofi a na UFSM. Professor do Departamento de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul-RS (UNISC).

1 O título faz menção à obra de Ronald Dworkin Levando os direitos a sério (Taking Rights Seriously, 1977). Entretanto, enquanto o fi lósofo estadunidense fala em “direitos” (plural), queremos falar em “direito” (singular) signifi cando “Direito” no aspecto mais geral e amplo.

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reconstrução do positivismo jurídico? E estas dúvidas têm rendido estudos e trabalhos que apontam para um diagnóstico mais sério e aprofundado do próprio positivismo jurídico.

O presente artigo objetiva principalmente um trabalho de reconstrução histórica e teórica sobre as principais escolas do pensamento jurídico – jusnaturalismo e positivismo jurídico – bem como das propostas contemporâneas, seja de uma “nova” visão do direito (o “pós-positivismo”), seja das reações dos defensores do positivismo jurídico na atualidade.

Neste sentido e justifi cando o trabalho, pretendemos aprofundar a grande questão envolvida nesta “nova” teoria do direito. Este aprofundamento está em fase inicial no Brasil, com poucas obras de referência, evidenciando que o tema merece ser tratado cientifi camente com mais cuidado e atenção. Temos várias obras de enaltecimento do “neoconstitucionalismo” ou do “pós-positivismo”, mas temos poucas avaliações críticas ou sérias sobre este novo movimento.

O tema tem rendido obras jurídicas, artigos em revistas científi cas de relevância nacional, dissertações e teses por todo o país, extrapolando, conforme se observa na comunidade jurídica, os limites de pesquisa meramente fundada em manuais.

Enfi m, as formulações de problemas que inicialmente se apresentam são as seguintes: pensando-se no “pós-positivismo”, há realmente uma nova escola na teoria do direito contemporânea? O “pós-positivismo” realmente supera ou apenas opera uma reconstrução do positivismo jurídico?

2 LEMBRANDO O JUSNATURALISMO, O POSITIVISMO JURÍDICO E A PROPOSTA ATUAL: PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO

Apesar da pluralidade de matizes das escolas de pensamento jurídico, com o perigo da simplifi cação, mencionaremos, de modo geral, o jusnaturalismo, o juspositivismo e a proposta contemporânea do pós-positivismo jurídico.

A escola do direito natural é a escola mais antiga do pensamento jurídico remontando à fi losofi a clássica. De modo bastante geral, este entendimento do direito mostra que o critério de juridicidade é a justiça (o direito deve ser avaliado por critérios de justiça). Há uma dualidade: existe o direito legislado (ou simplesmente escrito, posto pelo Estado ou pelo poder estabelecido, dependendo da época) e o direito que advém de padrões superiores de ética e justiça2. O direito escrito ou legislado pelo poder estabelecido deve não ser aplicado se entrar em confl ito com aqueles padrões superiores de justiça. Obviamente,

2 Luis Fernando Barzotto afi rma, em síntese, que o critério de juridicidade do jusnaturalismo é a justiça e o do positivismo jurídico é a validade: BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo. Uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: UNISINOS, 1999, p.19-20.

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que nesta escola de pensamento jurídico encontram-se referências a princípios, vindos de máximas éticas ou religiosas, tais como “respeite o próximo”, “não faças o mal” etc., sem necessidade de presença nos ordenamentos jurídicos dos Estados.

A fonte dos padrões superiores de ética e justiça pode variar conforme a época: natureza, cosmos, deus, razão. Entretanto, o chamado jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII-XVIII obteve atuação destacada na fi losofi a jurídica devido ao contexto fi losófi co e revolucionário que desembocou na Revolução Francesa e na Independência dos EUA e suas respectivas constituições. As obras de Jean-Jacques Rosseau na França e a de John Locke na Inglaterra lançaram novas luzes sobre o direito natural. É nítida a infl uência do direito natural nas Declarações de Direito dessa época, p.ex., na Declaração dos direitos do homem e do cidadão (França, 1789), no seu Art. 2º: “A fi nalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão” e na Declaração da Virgínia (EUA, 1776), em seu Art 1º: “Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, pôr nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”.

Mauro Cappelletti já havia dito, em obra clássica que:

A Constituição pretende ser, no direito moderno, uma forma legalista de superar o legalismo, um retorno ao jusnaturalismo, com os instrumentos do positivismo jurídico. (...) A norma constitucional, sendo também norma positiva, traz em si, uma reaproximação do direito à justiça. Na verdade, na concepção moderna, a norma constitucional outra coisa não é senão a tentativa – talvez impossível, talvez ‘faustiana’, mas profundamente humana – de transformar em direito escrito os supremos valores...3

Norberto Bobbio destaca que a distinção entre direito natural e direito positivo é bastante antiga, ainda que este contraponto fosse, em outras palavras, direito natural x direito escrito/legislado, sendo que os antigos (antes da instituição do Estado moderno) reconheciam a existência do direito natural. É sempre lembrado o famoso trecho da tragédia Antígona, no qual há a invocação de leis eternas e imutáveis que concediam o direito à Antígona de fazer o funeral do irmão em contraposição ao decreto de Creonte que proibia tal ato sob pena de morte. Neste sentido, conforme este autor, a distinção ocorria basicamente nestes termos: quanto ao critério da “extensão da validade”, o direito natural é “universal” enquanto o positivo é “particular”; quanto ao critério do “tempo”, o direito natural é “imutável” enquanto o positivo é “mutável”; quanto ao critério da “fonte”, o direito natural vem da “natureza”, enquanto o positivo vem do “poder do povo”

3 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2 ed. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Fabris, 1999, p.129 e 130.

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e quanto ao critério do “conhecimento”, o direito natural vem da “razão” enquanto o positivo vem da “vontade”.4 Obviamente que tal esquema é uma simplifi cação sujeita a questionamentos em vários destes critérios, mas o intuito é somente ilustrar o comparativo histórico proposto por Norberto Bobbio, na obra citada.

Posteriormente, com o advento e construção da escola do “positivismo jurídico” é que o direito natural passou a ser desconsiderado, já que começou a pregação de que o único direito era o direito estatal. Bobbio, a certa altura, chega a dizer que, se pudéssemos sintetizar, em uma frase, a grande escola do positivismo jurídico, seria: “todo o direito corresponde ao direito estatal”.5

Enfi m, em uma breve síntese, a grande escola do direito natural remonta à Antiguidade, ainda que fosse, muitas vezes, contraposta a um direito escrito (ou “legislado”, defi nido pela vontade de representantes do povo) e, posteriormente, contraposta ao direito “positivo”. A grande escola do direito natural sofre idas e vindas, altos e baixos, ao longo da história, mas se caracteriza, de modo geral, por entender que há um direito que advém de padrões ou princípios superiores de justiça e estes padrões ou princípios devem regular o direito escrito ou posto pelo Estado. Assim, o direito escrito ou positivo pode sempre ser avaliado por este outro direito superior, ideal, advindo, seja do cosmos ou da razão, dependendo do momento histórico e da escola jusnaturalista respectiva.

Durante muito tempo, inclusive, o direito natural se confundiu com a fi losofi a do direito ou, nas palavras de Bobbio, o direito natural era a fi losofi a do direito, principalmente em momentos de apogeu desta escola como na fi losofi a clássica de Platão e Aristóteles e na época dos chamados “contratualistas”, como Hobbes, Rousseau e Locke.6 A doutrina jusfi losófi ca costuma apontar duas características ínsitas ao pensamento jusnaturalista: a) o direito natural é reconhecido como direito; b) o direito natural é superior ao direito escrito, positivo ou civil (em sentido amplo).7

Com o advento do panorama das codifi cações, da Escola da Exegese, do contexto do “fetiche da lei”, correspondente ao séc. XIX, principalmente, a teoria do direito começa a pender para o lado do direito positivo até chegarmos ao extremo da admissão colocada anteriormente de que “todo o direito corresponde ao direito estatal”. Do início do séc. XIX até a metade do séc. XX, aproximadamente, tivemos, então, o predomínio da grande escola do positivismo jurídico, a qual, sabemos, teve suas variações, mas foi “caricaturizada” da seguinte maneira: a) confusão ou equivalência entre direito e lei, chegando ao extremo da afi rmação Gesetz ist gesetz (“lei é lei”), não admitindo outro a não ser o direito legislado, posto, “positivo”; b) só é direito o que passa pelos órgãos legislativos do Estado, i.é., o próprio Estado defi ne o procedimento para a criação do Direito. Daí vem a ideia kelseniana de “conceito autônomo de direito”, tão cara aos

4 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de fi losofi a do direito. Trad. de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone,1995, p.22-23.5 Ibidem, p.26: “o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo”.6 Ver. p.ex., BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Trad. de Sérgio Bath. Brasília: Ed.UnB, 1998.7 “Direito escrito, positivo ou civil” (em sentido amplo) são designações dadas ao direito contraposto ao “natural”.

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positivistas, ou seja, o direito é defi nido pelo próprio direito;8 c) a questão interpretativa: prevaleceu durante muito tempo as ideias de “juiz boca da lei”, “o que está claro não precisa ser interpretado” ou, ainda, quando surgiram os primeiros cursos ou doutrina sobre o Código Napoleônico, o próprio Napoleão teria dito: “meu código está perdido”.9 Todas estas frases-síntese correspondem à ideia de que a lei posta deveria ser interpretada o mínimo possível, ou o juiz deveria dar a menor contribuição possível, na aplicação da lei, prevalecendo a fi gura do legislador (“onipotência do legislador”), muitas vezes “mitifi cado”, ligando-se à expressão “legislador racional”.10

Gustavo Zagrebelsky afirma com propriedade, referindo-se a essa época e característica:

Não poderíamos compreender esta concepção em seu significado pleno se pensássemos ‘na lei’ como ‘nas leis’ que conhecemos hoje, numerosas, cambiantes, fragmentárias, contraditórias, ocasionais. A lei por excelência era então o código, cujo modelo histórico durante todo o século XIX estaria representado pelo Código civil napoleônico. Nos códigos se encontravam reunidas e exaltadas todas as características da lei. Resumindo-as: a vontade positiva do legislador, capaz de impor-se indiferenciadamente em todo o território do Estado e que se endereçava ao projeto jurídico baseado na razão (a razão da burguesia liberal, assumida como ponto de partida); o caráter dedutivo de desenvolvimento das normas, ex principiis derivationes; a generalidade e a abstração, a sistematicidade e a plenitude. Na verdade, o código é a obra que representa toda uma época do direito.11

Permanecendo na análise de Bobbio, observamos que a instituição e o crescimento do positivismo jurídico foram contemporâneos do longo processo de estabelecimento do Estado Moderno. Houve a saída de uma sociedade pluralista medieval, na qual existiam várias fontes do direito (pluralismo jurídico advindo da Igreja, das corporações, das universidades…) para uma sociedade que pregava a prevalência de uma única fonte do direito: o Estado (monismo jurídico). É claro, cabe ressaltar e pedir atenção, estamos nos referindo a um longo período de tempo que passa pelo Estado absolutista, primeiramente, e, num segundo momento, pelo dito Estado liberal em sua primeira feição. Mas corresponde a este período, a saída da predominância do jusnaturalismo para a instituição e apogeu do positivismo jurídico.

8 Sobre o conceito autônomo de direito, consultar a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen e BARZOTTO, Luiz Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo. São Leopoldo: UNISINOS, 1999.9 Ver TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005, p.37.10 Como veremos nos tópicos adiante, grande parte destas críticas não são admitidas ou sustentadas elos próprios positivistas, ou pelo menos, pelo positivismo conceitual. Na verdade, é preciso distinguir o positivismo ideológico, o formalismo e o positivismo conceitual. Remetemos o leitor para a síntese crítica feita por Noel Struchiner em sua tese de doutorado: STRUCHINER, Noel. Para falar de regras. O positivismo conceitual como cenário para uma investigação fi losófi ca acerca dos casos difíceis do direito. Tese de Doutorado em Filosofi a da PUC-Rio. Rio de Janeiro: 2005, p.28-34.11 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 7.ed. Tradução de Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p.32. Grifamos.

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Este entendimento do direito passou a sofrer sérias críticas a partir da segunda metade do séc.XX, principalmente após a 2ª Guerra Mundial, em face da barbárie cometida, tanto pelos regimes totalitários quanto à reação bélica norte-americana. A instituição do Tribunal de Nuremberg e seu simbólico questionamento do direito positivo, bem como a formação de um Direito Internacional dos Direitos Humanos (criação da Organização das Nações Unidas em 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948) trouxeram a questão ética e a valoração da lei novamente para o cenário jurídico. Inicialmente, alguns autores apontaram, como o próprio Bobbio, uma dialética entre juspositivismo e jusnaturalismo, no momento em que a valoração ética retornou ao ordenamento jurídico e passamos a contar com Declarações universais de direitos humanos aceitas e incorporadas aos ordenamentos estatais.12

Na sequência, entretanto, principalmente após a entrada em vigor das novas constituições dos Estados democráticos de direito (Espanha, Portugal, Brasil), os constitucionalistas passaram a falar em pós-positivismo jurídico (ou não positivismo principiológico). O pós-positivismo jurídico tem sido caracterizado como uma nova escola de pensamento jurídico a qual pretende ser uma síntese de características das grandes escolas anteriores, mas, de certa forma, pondera os excessos e defi ciências de ambas. Em uma abordagem preliminar, podemos afi rmar que este momento e perspectiva do pós-positivismo jurídico não nega e nem pretende negar o ordenamento jurídico e, sim, revê a estratégia ou ideologia positivista de “adoração cega” da lei, ou seja, a aplicação pura e simples da lei, sem maiores questionamentos e valorações. É uma primeira característica do pós-positivismo jurídico a remarcar: o retorno da moralidade ao direito no sentido de que a norma pode ser questionada, valorada, se justa ou injusta e pode não ser aplicada em função do desequilíbrio excessivo causado pela sua aplicação.

Neste panorama, afirma-se que o positivismo jurídico (em seu formato ideológico) tem uma postura “avalorativa”, ou seja, a lei está posta e assim deve ser aplicada. Agora, as constituições possuem um catálogo de princípios e direitos fundamentais que trazem uma elevada carga valorativa ao ordenamento jurídico. Assim, estão no ordenamento, são normas, determinados princípios que devem ser aplicados como, p.ex., a dignidade da pessoa humana, a cidadania, que são princípios fundamentais da CF brasileira.

Uma segunda característica relevante do pós-positivismo jurídico a ser destacada: a normatividade dos princípios. Desde Dworkin, a doutrina jurídica defende a colocação de regras e princípios dentro do gênero norma.13 Assim, os princípios

12 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.50-51.13 Ver DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Dworkin afi rma de maneira categórica: “…os problemas de teoria do direito são, no fundo, problemas relativos a princípios morais e não a estratégias e fatos jurídicos. Enterraram esses problemas ao insistir na abordagem jurídica tradicional. Mas, para ser bem-sucedida, a teoria do direito deve trazer à luz esses problemas e enfrentá-los como problemas de teoria moral” (p.12). É bem conhecida a distinção de Dworkin entre regras e princípios, à qual remetemos o leitor, nos capítulos 2 e 3 (O modelo das regras I e II) da obra referida nesta nota.

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constitucionais devem ser aplicados como “lei”. Desta forma, o ordenamento jurídico deve ser entendido, concebido, aplicado, conforme a moldura principiológica proposta pela respectiva constituição.

Pode-se observar, agora, o porquê desta interlocução com a teoria do direito: a forma de entender e de interpretar o direito, atualmente, passa, pela hermenêutica constitucional. Alguns autores, inclusive, como Gustavo Zagrebelsky, propõem uma “noção constitucional de direito”. Na dicção deste constitucionalista italiano, tal noção deriva da passagem de um “estado de direito legislativo” para um “estado constitucional”. Evidentemente, que as teorias “constitucionalísticas” do direito são tributárias das obras de autores contemporâneos como Ronald Dworkin e Robert. Alexy.14 Enfi m, para este conjunto de autores, a noção e o entendimento do direito passa, atualmente, pelas noções de “constituição” e “justiça”, pela noção de “direitos” e pela distinção entre “regras e princípios”, na qual muda a forma de aplicar e entender os princípios constitucionais.

Para Gustavo Zagrebelsky, o “ponto de mutação” se dá na transição ocorrida entre um “estado de direito legislativo” para um “estado constitucional”. Na coluna do “estado de direito legislativo”, encontramos a postura do vetusto “positivismo jurídico”, no qual preponderam a “vontade do legislador”, o princípio da legalidade e a ideia de lei próprias desta escola. Nesta compreensão, temos uma redução de tudo o que pertence ao mundo do direito (os direitos e a justiça) ao que está disposto em lei.15 Na verdade, uma dupla redução: a redução do direito e “dos direitos” ao que está disposto em lei e a redução da justiça ao que está disposto em lei, entendendo-se “lei”, no sentido de “regra” posta pelo “Estado de direito” e, aqui, pensado como Estado de direito “oitocentista-novecentista” ou “decimonónico”.16

A mudança para o panorama do “Estado constitucional”, como já apontamos, ocorre a partir da segunda metade do séc.XX, saindo da prevalência da lei ou do código para a “Constituição” e sua força normativa, na qual existe um catálogo de princípios e direitos fundamentais e parâmetros de justiça e solidariedade a serem devidamente aplicados. Mais que uma continuação, afi rma Zagrebelsky, “se trata de uma profunda transformação que, inclusive, afeta necessariamente a concepção de direito”.17

Mas de que maneira temos uma nova concepção de direito? Em que sentido podemos dizer que superamos o dilema jusnaturalismo x juspositivismo?

Sobre a concepção de direito, vale fazer um comparativo objetivo e rápido entre a concepção de direito de Hans Kelsen e a de Robert Alexy. Para Hans Kelsen, numa

14 Giorgio Bongiovanni citado por MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.85.15 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 7.ed. Tradução de Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p.33.16 ZAGREBELSKY usa esta expressão “decimonónico” (na tradução espanhola da obra) para se referir ao panorama do Estado e do direito do séc.XIX. Ver também ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. 7.ed. Tradução de Marina Gascón. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p.96.17 Ibidem, p.34.

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compreensão geral, o direito é um sistema piramidal de normas coativas válidas, cuja validade deriva de uma norma fundamental.18 Já Robert Alexy afi rma que

[...] o direito é um sistema de normas que (1) formula uma pretensão de correção, (2) consiste na totalidade das normas que pertencem a uma Constituição, em geral, efi caz, e não são extremamente injustas, bem como na totalidade das normas que são promulgadas de acordo com esta Constituição, e que possuem um mínimo de efi cácia social ou de probabilidade de efi cácia e não são extremamente injustas, e ao qual (3) pertencem os princípios e os outros argumentos normativos em que se apoia o procedimento de aplicação do direito e/ou tem que apoiar-se a fi m de satisfazer a pretensão de correção.19 [...]

Hans Kelsen é um ícone do positivismo jurídico. Vemos que em sua concepção de direito prevalece a ideia de “conjunto de normas coativas válidas”. A característica ou o “critério de juridicidade” para o positivismo é, então, a validade da norma. Não há uma referência direta à Constituição ou justiça no conceito de Kelsen. Há, isto sim, referência a um “conjunto de normas coativas válidas”. As ideias de “constituição e justiça” são típicas do pós-positivismo jurídico e se refl etem na noção apresentada por Robert Alexy. O “estado constitucional” ou a “constitucionalização do direito” impuseram uma revisão da concepção de direito. Surgem outros “critérios de juridicidade” além da “validade” do positivismo jurídico. Além da validade, temos “constituição e justiça”.

Mas “justiça” é um critério de juridicidade afi rmado e defendido pelo jusnaturalismo. O pós-positivismo signifi ca, então, um mero retorno ao jusnaturalismo? A questão é complexa e não é pacífi ca. Objetivamente, como mencionamos linhas acima, o pós-positivismo pretende superar, no mínimo, dois caracteres do positivismo jurídico: a “avaloratividade” do direito e o uso secundário dos princípios. Sabe-se que as constituições dos estados democráticos trazem princípios que norteiam a interpretação e aplicação do ordenamento jurídico. Tais princípios valoram ou impõem formas de valoração do ordenamento jurídico respectivo e ligam o direito à moralidade. Enfi m, os princípios constitucionais estão, pois, positivados. Ou seja, o próprio ordenamento jurídico, em sua lei máxima, suprema, estabelece e propicia a relação entre direito e moralidade. Democracia, dignidade, cidadania e justiça são valores máximos a serem observados na compreensão e na aplicação do direito contemporâneo. O próprio Gustavo Zagrebelsky analisa as grandes escolas do direito e faz a sua avaliação sobre as relações do direito no Estado constitucional atual e o direito natural, em uma citação longa, mas necessária:

Assim, pois, cabe dizer, em síntese, que a Constituição não é direito natural, senão melhor, a manifestação mais alta do direito positivo. Sem embargo, dado

18 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pgs. 33-38 e 217-224.19 ALEXY, Robert. El Concepto y la validez del derecho. Tradução de Jorge Seña. 2.ed. Barcelona: Editorial Gedisa, 1997, p.123. Alexy afi rma que as correntes positivistas afi rmam a tese da separação entre direito e moral e as correntes não positivistas defendem a tese da vinculação.

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que o direito constitucional se apresenta, não como vontade de uma parte que se impõe sobre a outra, senão como expressão de um equilíbrio objetivo, no sentido acima indicado, a relação entre lei (incluída a lei constitucional) e Constituição se aproxima da relação entre lei e direito natural. O estilo, o modo de argumentar ‘em direito constitucional’ se assemelha, em efeito, ao estilo, o modo de argumentar ‘em direito natural’, como sabe qualquer um que está familiarizado com as grandes decisões dos Tribunais constitucionais. A propósito das jurisdições constitucionais, tem-se falado agudamente de ‘administração judicial do direito da natureza’ e tem-se observado que ‘a interpretação da Constituição adquire cada vez mais o aspecto de uma fi losofi a do direito’, pois seus procedimentos, não obstante estar vinculados ao direito vigente, não podem desenvolver-se no universo cerrado das regras jurídicas. Nos Estados constitucionais modernos, os princípios morais do direito natural se incorporaram ao direito positivo. As modalidades argumentativas do direito constitucional se ‘abrem’, assim, aos discursos metajurídicos, tanto mais se tomamos em consideração os princípios da Constituição.20

Assim, o aspecto valorativo do ordenamento, insculpido nos princípios constitucionais, é justamente o que possibilita esta “abertura” do direito positivo à moralidade, sem cairmos no jusnaturalismo tradicional, visto que estes valores morais estão positivados. Além disso, pode-se afi rmar que estes valores não são idealizados ou advém de “padrões superiores” de justiça como o cosmos, deus, etc. como frequente no discurso jusnaturalista, mas, isto sim, estes valores advém da própria Constituição, a qual foi devidamente deliberada e é fruto de um contexto histórico, político, cultural e jurídico determinado.

Outro autor que se dedicou a caracterizar o pós-positivismo jurídico é o jurista espanhol Albert Calsamiglia, em artigo publicado na revista Doxa.21 Para este jurista, o pós-positivismo jurídico corresponde a um entendimento do direito que questiona as teses centrais do positivismo jurídico, tais como (a) a tese das fontes sociais do direito (a questão dos limites do direito) e (b) a tese da separação entre direito, moral e política (a questão da não conexão necessária entre direito e moral).22 Em relação a primeira tese (a) os positivistas sempre se detiveram sobre fatos sociais determinados, sobre fatos usuais, “fáceis”, resolvidos pelas normas do ordenamento ou pela simples resolução de lacunas. Em sentido contrário, o pós-positivismo alarga os limites do direito, ou melhor, aceita a “indeterminação do direito”. Desloca o centro de atenção, conforme Calsamiglia, dos casos fáceis ou claros para os casos difíceis. Não interessa tanto resolver casos do passado, facilmente solucionáveis com as regras do ordenamento, mas sim, resolver os confl itos que ainda não foram resolvidos. Do mesmo modo, há um deslocamento da

20 ZAGREBELSKY, op. cit., p.116.21 No Brasil, é importante mencionar o pioneirismo de Paulo Bonavides, no capítulo Dos princípios gerais de direito aos princípios constitucionais, de sua obra Curso de direito constitucional, na qual disserta sobre o pós-positivismo e defende uma concepção principial de direito: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.259.22 CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. In: Doxa: Cuadernos de fi losofía del derecho, Nº 21, 1, 1998, p.209-220. Disponível em www.cervantesvirtual.com.

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fi gura do legislador para a fi gura do intérprete ou juiz.23 A tese (b) será melhor exposta nos próximos itens deste texto.

A recente obra Dicionário de fi losofi a do direito traz o verbete pós-positivismo, colocando-o como um novo paradigma ou nova concepção de direito que rompe com a forma hegemônica de compreensão do direito dos séculos XIX-XX: o positivismo jurídico. Esta nova concepção do direito, como mencionamos acima, ataca as teses fundamentais do positivismo jurídico (“a” e “b” acima) e corresponde à confi guração contemporânea do pensamento jurídico. O novo quadro teórico do pós-positivismo apresenta cinco aspectos:

a) deslocamento de agenda: em vez de preocupações como a norma, o ordenamento jurídico, validade e teste do pedigree (reconhecimento da norma), próprios do positivismo jurídico, o pós-positivismo dá prevalência aos princípios, à dimensão argumentativa e à hermenêutica jurídica;

b) a importância dos casos difíceis: como assinalou Calsamiglia na esteira de Dworkin, este panorama presta especial atenção aos casos difíceis (hard cases), casos complexos, controversos, insólitos, não rotineiros para os quais as práticas legais existentes não fornecem uma resposta defi nitiva ou a mera aplicação da regra é insufi ciente ou gera extrema injustiça;

c) o abrandamento da dicotomia descrição/prescrição: também muito infl uenciado pelos escritos de Dworkin e suas análises de casos, pode-se afi rmar que a teoria não só descreve, mas também atua na prática, p.ex., na aplicação de princípios para a resolução de casos difíceis;

d) a busca de um lugar teórico para além do jusnaturalismo e do positivismo jurídico: além do que já foi argumentado anteriormente, aqui surge a explicação de que a aplicação de princípios morais contidos na Constituição não signifi ca retorno ao jusnaturalismo porque Dworkin se sustenta em Rawls para o qual a justiça de uma sociedade depende da justiça de suas instituições e a Constituição é uma instituição social que contém princípios de justiça;

e) o papel dos princípios na resolução dos casos difíceis: admite-se o direito como um conjunto de normas-regras e normas-princípios. Os casos difíceis devem ser resolvidos pelos princípios contidos no direito existente, o que é, então, uma aplicação do direito e não uma situação de não direito como afi rmam os positivistas.24

Em outra obra recente, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Branco, dizendo se tratar de notas caracterizadoras de um “novo constitucionalismo”

23 Ibidem, p.211-215.24 DINIZ, Antonio Carlos e MAIA, Antonio Cavalcanti. Pós-Positivismo. In:BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de fi losofi a do direito. São Leopoldo e Rio de Janeiro: Ed.UNISINOS e Renovar, 2006, p.650-653.

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“substancialmente distinto de todas as experiências constitucionais precedentes”, apresentaram a seguinte síntese do panorama jurídico atual:25

- mais Constituição do que leis;

- mais juízes do que legisladores;

- mais princípios do que regras;

- mais ponderação do que subsunção;

- mais concretização do que interpretação.

Os autores mencionados estão se referindo, no caso, a um “novo constitucionalismo”: a Constituição deixa de ser uma Carta Política simbólica que simplesmente defi ne competências legislativas (“a la Kelsen”) para tornar-se norma suprema, compondo um conjunto de regras e princípios dotados de força normativa, tornando a lei ato infraconstitucional sujeito a controle de legitimidade, formal e material. Assim, surge com mais força a fi gura do juiz-intérprete, criador do direito, em detrimento do legislador “racional e onipotente” do período positivista. Este juiz deve buscar a aplicação dos princípios e direitos fundamentais contidos na norma suprema, mais do que isso, deve pensar, ler e interpretar o direito a partir da lente ou fi ltro constitucional. Esta forma de interpretação/aplicação obviamente pretende não se reduzir ao esquema lógico-formal positivista da subsunção dos fatos à lei já que os princípios não contêm normalmente hipótese de fato, mas sim trazem “valores” a serem efetivados.26

3 O CONTRAPONTO: O PÓS-POSITIVISMO SUSTENTA-SE CIENTÍFICA E METODOLOGICAMENTE?Como lembrado por Noel Struchiner, jusnaturalismo e juspositivismo são os eternos

fi nalistas da Copa do Mundo da fi losofi a do direito.27 Há uma imensa e longa tradição histórica na fi losofi a do direito em relação a estas duas grandes escolas de pensamento jurídico. Assim, de um lado, qualquer mudança ou apreciação de novas tendências sofre uma certa desconfi ança; de outro, os mais apressados correm para rotular o novo momento e assinar o atestado de batismo da nova escola. Nesta correria dos tempos, muitas vezes não se analisa detidamente todos os elementos teóricos envolvidos. O panorama é digno de nota:

Trata-se de um lugar comum já consagrado, um topos recorrente, a afi rmação de que o epicentro ou a força motriz da fi losofi a do direito se consubstancia no

25 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.120 e seguintes.26 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio M.; BRANCO, Paulo Gustavo G. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.120-121.27 STRUCHINER, Noel. A primazia do positivismo conceitual. In: DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p.320.

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debate positivismo jurídico/direito natural. Recentemente, vem ecoando no meio acadêmico o mais novo cliché de que a fi losofi a do direito contemporânea se caracteriza pela superação da dicotomia juspositivismo/jusnaturalismo. Prova disso é a alta produção de rótulos que visam a caracterizar essa nova era da fi losofi a do direito: “direito pós-moderno”, “pós-positivismo”, “não positivismo principiológico”... Embora seja comum a exposição a essas formas de se conceber a fi losofi a do direito, o que raramente tem acompanhado tal exposição é uma análise minuciosa das teses ou proposições que servem como notas defi nitórias do jusnaturalismo e do juspositivismo. O caso é grave. Não se trata apenas da falta de uma análise rigorosa desses conceitos. Muitas vezes esse cenário conceitual foi construído não apenas de maneira simplória, mas também errada, atingindo uniformidade, mas pagando o preço da distorção.28

Assim, o que a análise fi losófi ca está propondo é o seguinte:

a) examinar detidamente as escolas do jusnaturalismo e juspositivismo, defi nindo suas características e variações;

b) observar as variações do positivismo jurídico e ver qual formato se adequa à prática judicial contemporânea;

c) em conclusão, verifi car se temos um novo positivismo (qual variação do positivismo?)29 ou uma nova escola do pensamento jurídico. Tendo uma nova escola do pensamento jurídico: o que há de realmente novo nesta nova escola?

O tema tem chegado a publicações recentes e tem rendido um debate sério na literatura jurídica. Cabe mencionar, a título de exemplo, a obra Teoria do direito neoconstitucional, na qual juristas e fi lósofos nacionais e estrangeiros se colocam esta questão: superação ou reconstrução do positivismo jurídico?30

Enfi m, os pesquisadores têm um tom em comum: se o positivismo era tratado como uma teoria ultrapassada, ingênua e legitimadora do autoritarismo, tal entendimento é fruto da carência de investigações e estudos aprofundados sobre o tema.31 Então, ocorreu uma confusão entre positivismo jurídico e regimes autoritários? O positivismo não evoluiu? Não temos variações do positivismo?

Ainda, vale destacar, com Humberto Ávila, o seguinte: uma das principais teses do chamado “pós-positivismo” ou “neoconstitucionalismo” é aquela da distinção entre regras e princípios, distinção esta que não é tão fácil e automática como propunha

28 STRUCHINER, Noel. Para falar de regras. O positivismo conceitual como cenário para uma investigação fi losófi ca acerca dos casos difíceis do direito. Tese de Doutorado em Filosofi a da PUC-Rio. Rio de Janeiro: 2005, p.22.29 Eduardo Ribeiro Moreira, p.ex., faz um catálogo das novas correntes: positivismo exclusivo; positivismo inclusivo; neoconstitucionalismo teórico; neoconstitucionalismo total: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. O momento do positivismo. In: DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. p.243.30 DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008.31 Ibidem, na Apresentação, p.5.

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Dworkin32. Dos cinco pontos da caracterização do verbete “pós-positivismo” do Dicionário de fi losofi a do direito mencionados no item anterior, no mínimo, três se sustentam na supervalorização da distinção dworkiana entre regras e princípios. Neste sentido, temos um panorama crítico bastante sério em duas frentes: (1) o positivismo jurídico contemporâneo ainda mantém a separação absoluta entre direito e moral?; (2) existe a distinção qualitativa entre regras e princípios ao molde do proposto por Dworkin?

Voltamos a lembrar que é a partir destas duas teses fulcrais que o pós-positivismo veio se destacar em seu comparativo e luta contra o positivismo jurídico clássico.

Humberto Ávila afi rma em texto recente que não se pode afi rmar que o tipo normativo prevalente na Constituição de 1988 é o principiológico e nem que este é o melhor. Portanto, não houve passagem direta de um ordenamento fundado nas regras (positivista) para um ordenamento fundado nos princípios (pós-positivista). Ressalta, de modo bastante forte, que é urgente repensar o suposto movimento do “neoconstitucionalismo” no Brasil, visto que se trata de um rótulo impreciso, vago e com sérias defi ciências metodológicas.33

A resposta a estas questões passa, por exemplo, também pelo debate clássico entre Herbert Hart e Ronald Dworkin sobre o conceito do direito e a relação ou não entre direito e moral.34 A resposta a estas questões passa pela análise científi ca da manutenção ou não das teses do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo.35 A resposta a estas questões passa pela análise do positivismo jurídico contemporâneo e seus novos adjetivos.

4 SOBRE O CONCEITO DE DIREITO, DIREITO E MORAL E AS CRÍTICAS AO POSITIVISMOO positivismo jurídico cresceu e se estabeleceu principalmente por sua busca

incessante de um conceito de direito e a construção de uma teoria do ordenamento jurídico. Tais elaborações são inegáveis e difíceis de serem abandonadas. Atualmente, constata-se que o positivismo buscou o chamado “conceito autônomo de direito”, ou seja, uma defi nição de direito que não necessariamente se utilize da moral e da política. Esta pretensão do positivismo foi denominada “tese da separação”. De outro lado, as correntes que pretendem a relação entre direito e moral são tratadas como “tese da vinculação”.

32 Ver principalmente: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da defi nição à aplicação dos princípios jurídicos. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2008 e DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.39-42;57.33 ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a �ciência do direito� e o �direito da ciência�. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, Número 17, jan/fev/mar 2009. Disponível em: http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/679/507. Acesso em 29 de setembro de 2011.34 Debate surgido das críticas de Dworkin ao positivismo de Hart, a que este respondeu e consta no pós-escrito de sua obra O conceito de direito.35 Voltamos a indicar os textos de Ávila e de Dimoulis e Duarte constantes das referências.

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De modo breve, vamos recuperar as linhas gerais do grande e clássico debate entre Dworkin e Hart, o qual impulsionou a retomada do positivismo e sua reação crítica. Para Dworkin, o “esqueleto” do positivismo é o seguinte:

a) o direito de uma comunidade é um conjunto de regras especiais (que dependem do pedigree) que servem para determinar qual comportamento será punido ou coagido pelo poder público. Este conjunto de regras é o direito;

b) Dizer que alguém tem uma “obrigação jurídica” é dizer que seu caso se enquadra em uma regra válida. Não havendo regra, não há obrigação.36 Dworkin lança um ataque geral contra o positivismo e usa a versão de Hart como alvo.

Dworkin é um dos atuais divulgadores da questão dos princípios na Teoria do Direito. É conhecidíssima sua distinção entre regras e princípios. Basicamente, as regras são aplicáveis sob a forma “de tudo ou nada”, ou são válidas ou não são; já os princípios determinam fundamentos e possuem a dimensão do peso e da importância e, ainda, as regras ditam resultados enquanto os princípios inclinam a decisão em uma direção e permanecem intactos quando não prevalecem.

Na sua abordagem, o direito no viés positivista ou não consegue resolver uma série de casos chamados “difíceis” (hard cases) ou apela para o “poder discricionário” do juiz. Cabe ao juiz, portanto, “escolher” quais os padrões ou princípios morais aplicáveis quando não há uma regra válida aplicável. O positivista conclui que esses princípios e políticas não são regras válidas de uma lei acima do direito. São padrões extrajurídicos que cada juiz seleciona no exercício de seu poder discricionário. Dworkin vai além, afi rmando que não é possível adaptar a versão de Hart do positivismo modifi cando a regra de reconhecimento para incluir princípios. Na teoria dworkiana do direito não cabe o positivismo. Ele não concorda com o teste do pedigree e com o uso do poder discricionário do juiz para resolver os “casos difíceis”. Por outro lado, deve-se optar pelo melhor princípio moral vigente, equânime e coerente com a tradição.

Dworkin, inclusive, remonta à história comparada do direito norte-americano e do inglês, afi rmando que os antecedentes do direito norte-americano são mais complexos: “nossos tribunais desempenharam um papel mais amplo que os tribunais ingleses na reformatação do direito no século XIX às necessidades da industrialização e a nossa Constituição transformou em questões legais problemas que na Inglaterra eram apenas políticos”.37 Em mais de um momento de sua obra, Dworkin afi rma que o sistema constitucional norte-americano baseia-se em uma teoria moral específi ca: os homens têm direitos morais contra o Estado.38 Ou em uma versão mais ampliada: o direito tem uma função “mais ambiciosa” do que a preconizada pelo positivismo: os cidadãos têm direitos e deveres contra o Estado e outros cidadãos mesmo que estes direitos e deveres não estejam claramente estabelecidos. As decisões judiciais têm que ser uma questão de princípio.39

36 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.27-28.37 Ibidem, p.6.38 Ibidem, p.231.39 Ibidem, p.518 e 533.

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Enfi m, claramente podemos afi rmar que Dworkin bate em uma tese central do positivismo: a admissão e fundamentação de uma norma fundamental (Kelsen) ou norma de reconhecimento (Hart). A norma fundamental ou de reconhecimento tem um papel nobre no discurso positivista, qual seja, ou serve para pressupor a validade última do sistema ou serve para determinar o que é o direito daquela sociedade (identifi cação e existência de regras jurídicas). É deste tipo de tese que Dworkin saca ironicamente a expressão “teste do pedigree”. O direito, no positivismo, refere-se a um conjunto de regras ou normas válidas, as quais remontam, em último grau na escala, à norma fundamental.

Além disso, toda a sua teoria busca fundamentar a necessária relação entre direito e moral. Em suas palavras, a teoria do direito deve se utilizar do argumento moral, enfrentar os “casos difíceis” (dramáticos; insólitos) como problemas de teoria moral.40 Ou de outra forma: “a Constituição funde questões jurídicas e morais, fazendo com que a validade de uma lei dependa da resposta a problemas morais complexos, como o problema de saber se uma determinada lei respeita a igualdade inerente a todos os homens”.41

Herbert Hart elaborou um conhecido “pós-escrito” da sua monumental obra O conceito de direito para responder a Dworkin. A princípio, Hart defende que sua teoria do direito é geral e descritiva, visto que não está ligada a nenhum sistema e cultura jurídica concretos, é moralmente neutra e não tem propósitos de justifi cação. Já a teoria do direito de Dworkin seria uma teoria de avaliação e justifi cação dirigida a uma cultura jurídica concreta, bem como se caracteriza como “interpretativa”.42

Hart faz outras afi rmações lapidares dignas de nota:

a) considera um erro de Dworkin considerá-lo um “positivista meramente factual”, visto que se considera um “positivista moderado” (soft positivism), já que reconhece explicitamente que sua “regra de reconhecimento pode incorporar, como critérios de validade jurídica, a conformidade com princípios morais ou com valores substantivos”;43

b) as regras e os princípios têm, muitas vezes, o que chama de “textura aberta”, tornando o direito parcialmente indeterminado ou incompleto, devendo os tribunais exercer a criação do direito que designa como “poder discricionário”;44

c) entende possível conciliar sua teoria do conceito de direito com os princípios jurídicos e com o “teste do pedigree”, salientando, inclusive, a sua distinção entre regras e princípios. Contudo, Hart concorda que falou pouco sobre princípios jurídicos em sua obra.45 Neste sentido, ele afi rma que alguns princípios básicos como “ninguém pode aproveitar-se do seu próprio ilícito” (mesmo exemplo trabalhado por Dworkin) “são

40 Ibidem, p.9 e 12.41 Ibidem, p.285.42 HART, Herbert L.A. O conceito de direito. 5.ed. Trad. de A.Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p.300-301.43 Ibidem, p.312.44 Ibidem, p.314.45 Ibidem, p.321-325.

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identifi cados como direito pelo teste do pedigree, na medida em que têm sido invocados de forma coerente pelos tribunais, em séries de casos diferentes”.46

Na visão de Hart, a diferença fundamental entre sua teoria jurídica e a de Dworkin, ocorre na questão entre direito e moral. Apesar de Hart suscitar em vários momentos de sua obra (o que é esquecido ou não observado pelos críticos), as mais variadas relações e intimidades entre direito e moral,47 ele defende que a “existência e o conteúdo do direito podem ser identifi cados por referência às fontes sociais do direito (p.ex., legislação, decisões judiciais, costumes sociais), sem referência à moral, exceto quando o direito assim identifi cado, tenha, ele próprio, incorporado critérios morais para a identifi cação do direito”.48

Como mencionamos alhures, os diagnósticos do positivismo identificam claramente esta tese: o conceito de direito (identifi cação) deve ser investigado e elaborado sem a necessária referência à moral. Isto não quer dizer que o direito não tenha relações com a moral. Aliás, todos os pensadores, de fi lósofos a juristas, tem seguidamente mencionado isto. Jürgen Habermas e Neil MacCormick são dois exemplos.49 Ambos afi rmam que ninguém nega as relações, semelhanças e intimidades entre direito e moral, mas isto não quer dizer que o conceito de direito deva ser elaborado com elementos da moralidade, ainda mais na seara de um positivismo conceitual ou de uma teoria pura do direito.

5 OS “EQUÍVOCOS DO PÓS-POSITIVISMO” E A “RÉPLICA” DO POSITIVISMO JURÍDICONa esteira do que estamos comentando – sem querer obviamente exaurir o tema,

que é por demais extenso –, na bibliografi a nacional, existem, no mínimo, duas obras sintomáticas que devem ser conferidas com atenção para contextualizar o título acima e servem como exemplo ilustrativo: Positivismo jurídico de Dimitri Dimoulis e Teoria do direito neoconstitucional, organizada por Dimitri Dimoulis e Écio Duarte.

Na primeira delas, Dimitri Dimoulis dedica um capítulo para “os equívocos do pós-positivismo” (cap. II) e um capítulo para a “réplica” do positivismo: o “positivismo jurídico” legitima o direito positivo?” (cap. VI). Em primeiro lugar, afi rma-se que o rótulo “pós-positivismo” é praticamente desconhecido fora do Brasil e, mesmo na Alemanha, onde é encontrado, o sentido não é o mesmo utilizado no Brasil.

46 Ibidem, p.327.47 O capítulo IX do Conceito de Direito chama-se “Direito e Moral”, no qual são trabalhados o “conteúdo mínimo do direito natural” e a “infl uência da moral sobre o direito”.48 Ibidem, p.332.49 A título de exemplo, conferir: HABERMAS, Jürgen. Direito e moral. Tradução de Sandra Lippert. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p.39 e MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.299 e segs.

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Esta pretensa escola, corrente ou este “ideário difuso” ou “designação provisória” sofre, de início, de alguns males facilmente verifi cáveis:

a) utiliza a chamada “falácia do espantalho” em relação ao positivismo, ou seja, trata de desqualifi car o adversário ou concorrente a partir de uma suposta ideia ou entendimento geral de que ele estaria “ultrapassado”, “arcaico” ou seria um “retrocesso”, “decadente”, mas por outro lado, abandona os principais teóricos do positivismo e suas obras lapidares sem uma leitura atenta, perspicaz e crítica fundamentada. É como se o positivismo fosse um esquema ou um “esqueleto” (na dicção de Dworkin) que não precisasse mais ser estudado ou verifi cado com atenção. É como se os autodenominados médicos da teoria do direito abandonassem o estudo da doença e fi cassem, de modo distante e afastado do doente, propagandeando a tão procurada cura. Não parece ser a conduta científi ca mais adequada e é metodologicamente duvidosa. É inegável que os séculos de construção positivista no direito formaram uma teoria do direito robusta e uma tecnologia jurídica que não pode ser facilmente desprezada ou anulada a partir de um “canetaço de ditador”. Mais uma vez, devem ser conferidos, a título de exemplo, o conceito de direito, a teoria da norma e a teoria do ordenamento jurídico, bem como seus teóricos fundamentais como Hans Kelsen e Herbert Hart. O mais correto aos juristas brasileiros seria fazer como fi zeram Hart e Dworkin: um debate respeitoso, público e severamente fundamentado sobre suas reais divergências sobre a teoria do direito e não uma crítica sem fundamento e adequada a um modismo que sempre procura o “novo”, não importando muito o que seja este “novo”;50

b) sofre de uma visão idealista e metafísica do direito que o reaproxima muito do jusnaturalismo, neste discurso todo permeado de frases de “retorno da ética e valores” para o ordenamento jurídico, de modo geral, vago, sem precisar o que signifi cam estes conceitos como se fossem os coletes salva-vidas da teoria do direito prestes a se afogar. Há sempre a dúvida que os positivistas já identifi cavam: qual moralidade? Há consenso sobre esta moralidade? O direito deve pregar um tipo de moralidade no ordenamento jurídico?

c) a distinção entre regras e princípios, por si só, não serve para identifi car uma nova escola ou corrente, bem como a ideia de que os chamados hard cases são novidades no mundo jurídico, já que o próprio positivismo não tem desconsiderado os princípios e sua aplicação e a lógica e a fi losofi a demonstram que casos difíceis não são novidade no âmbito dos confl itos;

d) o panorama mencionado acima – “mais Constituição do que leis; mais juízes do que legisladores; mais princípios do que regras; mais ponderação do que subsunção; mais concretização do que interpretação” – possivelmente não passe pelo crivo de uma pesquisa empírica mais séria e detida, revelando mais uma vez que, acima de tudo, é preciso ter “fé” na “nova” escola e não se preocupar muito com a realidade do direito vigente.

50 No Brasil, as vaidades e acirradas concorrências acadêmicas para obter titulação, currículos e “seguidores” levaram muitos teóricos do direito a, recentemente, cultuarem o “novo”, inclusive no título de suas obras.

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Por fi m, neste tópico, cabe mencionar, ainda, a réplica do positivismo a algumas das críticas mais famosas que formaram gerações de juristas no Brasil: (I) o positivismo defendeu o Estado nazista – raciocínio chamado de reductio ad Hitlerum51; (II) o positivismo é um legalismo ortodoxo que pratica o “fetiche da lei”.

Em relação à primeira crítica (I), os argumentos contrários são no sentido de que o positivismo é uma teoria sobre a validade do direito e não uma proposta política. Como esta teoria poderia defi nir um regime político? Além disso, várias pesquisas demonstram que, entre outras características, podemos identifi car na Alemanha da época o seguinte:

a) uma continuidade legislativa: com exceção da legislação que combatia os adversários políticos e as minorias tidas como inimigas do Estado, não houve grandes modifi cações no ordenamento alemão;

b) um discurso ideológico: o nazismo apelava para um discurso de “Estado de justiça”, exaltando os “valores” do povo alemão e a “eticização” da aplicação do direito, distanciando-se da aplicação legal;

c) uma doutrina antipositivista: Carl Schmitt – jurista e um dos defensores do regime totalitário – fazia pesadas críticas ao positivismo em função de sua defesa dos princípios da legalidade e irretroatividade e sua falta de direção política. Ao contrário, Schmitt afi rmava que o ordenamento devia basear-se na lealdade, na disciplina, na honra, ligadas com o “princípio da direção unitária”.52

Parece estranho, mas é comum observarmos nos regimes totalitários o apelo a um sentimento nacional popular exagerado, o qual envolve um chamado a uma determinada ética ou moralidade daquele povo específi co, visando a um Estado ideal, perfeito, que seja um exemplo de justiça e segurança para aquele povo “privilegiado”. Portanto, o mero apelo à ética, moral, valores e justiça não garante um bom governo para todos e, também, não serve como crítica ao positivismo jurídico.

Em relação à segunda crítica (II), os estudos detidos e aprofundados dos grandes nomes do positivismo (Kelsen e Hart), demonstram que ambos nunca pregaram o “fetiche da lei”. Dimitri Dimoulis afi rma que se admitíssemos a visão da “aplicação mecânica da lei” como um dos baluartes do positivismo jurídico, teríamos que retirar Hans Kelsen e Herbert Hart de suas hostes, visto que ambos os teóricos tratam da criação judicial do direito (interpretação em Kelsen) e da temática da linguagem e da “textura aberta” das normas (Hart)53. Não podemos esquecer – seria o cúmulo – que o direito lida com a linguagem e não há linguagem que garanta uma “aplicação mecânica da lei” ou sustente o mito antigo do “juiz boca da lei”. Friedrich Waismann – fi lósofo austríaco que criou o

51 Sobre a expressão e sua crítica específi ca, consultar: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p.260 e MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Positivismo jurídico e autoritarismo político: a falácia da reductio ad hitlerum. In: DIMOULIS, Dimitri e DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008.52 Panorama presente em: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p.261-263.53 Ibidem, p.53-55.

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termo “porosidade” e infl uenciou a “textura aberta” de Hart – afi rmava que “nenhuma linguagem está preparada para todas as possibilidades”.54

6 CONSIDERAÇÕES FINAISPor todo o exposto, é tranquilo observar que os autores e obras que postulam o

rótulo “pós-positivismo” utilizam-se da chamada “falácia do espantalho” para criticar o positivismo jurídico. Ou seja, o positivismo é “caricaturizado”, visto a partir de resumos, esquemas ou leituras de segunda mão que previamente proíbem a leitura dos clássicos do positivismo jurídico. Ou, ainda, na melhor das hipóteses, o positivismo usado como alvo das críticas é o positivismo ideológico ou o formalismo, tipo de positivismo não mais aceito para caracterizar esta escola. Há, também, um conjunto de autores positivistas que tratam de evidenciar os problemas do positivismo ideológico e do formalismo, revelando as melhores condições ou estrutura teórica do chamado positivismo conceitual.

No contexto do positivismo conceitual, devemos esclarecer, não há negação das relações entre direito e moral, pelo contrário, tais relações são claramente admitidas e, até mesmo, padrões morais são aceitos como integrantes do ordenamento jurídico. Entretanto, para a construção do conceito de direito não há necessidade de utilização de padrões morais. O conceito de direito é obtido pelo critério da fonte e não pelo mérito. Além disso, é importante a referência a algum tipo de regra de reconhecimento ou norma fundamental.

O conjunto de características propostas para a identifi cação do pós-positivismo, como mencionado no corpo do texto, também é colocado na balança da crítica e algumas delas não se sustentam.

Trata-se de um argumento ingênuo ou baseado na fé afi rmar que o contexto atual do direito – seja chamado de “pós-positivismo”, seja “neoconstitucionalismo” – apresenta-se na estrutura citada anteriormente: mais Constituição do que leis; mais juízes do que legisladores; mais princípios do que regras; mais ponderação do que subsunção; mais concretização do que interpretação. Primeiro: existe um conjunto de autores discordando fundamentadamente desta “estrutura”. Segundo: estas afi rmações não sobrevivem a um teste empírico da realidade do direito aplicado ou não tem relevante signifi cado científi co. Humberto Ávila, por exemplo, em texto recente, afi rma que não é correto, nem científi co, propagar que temos mais princípios do que regras; que temos mais ponderação do que subsunção; mais Poder Judiciário do que Poder Legislativo. E mais, estas supostas mudanças não encontram suporte no próprio ordenamento constitucional brasileiro. A Constituição brasileira de 1988 não é composta somente de princípios, mas de regras e princípios e não é exato afi rmar que passamos totalmente de um modelo para outro e que este “novo” modelo seja melhor. No mesmo sentido, existe um conjunto de “regras legisladas”, das quais não podem ser subtraídas todas as técnicas interpretativas

54 Waismann citado por STRUCHINER, Noel. Para falar de regras. O positivismo conceitual como cenário para uma investigação fi losófi ca acerca dos casos difíceis do direito. Tese de Doutorado em Filosofi a da PUC-Rio. Rio de Janeiro: 2005, p.106.

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disponíveis, inclusive a subsunção. E, por fi m, em uma sociedade complexa e plural, o Poder Legislativo é uma casa que engloba esta pluralidade de valores e tem a função principal de legislar. Não há prevalência de um Poder sobre o outro55.

Por todos os argumentos expendidos, devemos dizer que, ao cair do pano, se o positivismo jurídico é problemático e alvo de críticas, o pós-positivismo também não sai ileso deste confronto.

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55 ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a ‘ciência do direito’ e o ‘direito da ciência’. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, Número 17, jan/fev/mar 2009. Disponível em: http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/viewFile/679/507. Acesso em 29 de setembro de 2011, p.17-18-19.

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Aportes hermenêuticos sobre direito dos tratados1

Rafael Köche

RESUMOA interpretação dos tratados internacionais pelos tribunais brasileiros sempre foi censurável.

Inúmeros “conflitos interpretativos” são talhados na busca de definição de uma hierarquia normativa entre os tratados internacionais e a legislação pátria. O debate sobre o status normativo dos tratados internacionais de direitos humanos e as polêmicas provenientes da Emenda Constitucional n. 45/2004 são exemplos disso; mais ainda com a promulgação da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados pelo Brasil em 2009. Cada vez mais se percebe a necessidade de se desenvolver uma Teoria das Fontes, uma Teoria da Norma e uma Teoria da Decisão. Não se concebe uma democracia com voluntarismos e arbitrariedades, principalmente no interior do Poder que, no Brasil, é constitucionalmente responsável por guardar a Constituição. Mecanismos “inovadores” que poderiam auxiliar na resolução desses “conflitos” não são aplicados, como as Opiniões Consultivas. Desse modo, uma questão permanece sem resposta: até quando deixaremos de cumprir o Direito Internacional?

Palavras-chave: Direito dos Tratados. Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Direito Internacional Público. Hermenêutica Jurídica.

Hermeneutical contributions on law of treaties

ABSTRACTThe interpretation of international treaties by the Brazilian courts has always been

objectionable. Several “interpretative conflicts” are carved in the search for a definition of normative hierarchy between international treaties and the domestic legislation. The debate over the normative status of international treaties on human rights and the controversies arising from the 45th Constitutional Amendment are examples. Moreover with the enactment of the Vienna Convention on the Law of Treaties by Brazil in 2009. Increasingly realize the need to develop a Theory of Sources, a Theory of Norm and a Theory of Decision. Can not conceive a democracy with voluntarism and arbitrariness, especially within the power that, in Brazil, is constitutionally responsible for safeguarding the Constitution. “Innovative” mechanisms that could assist in addressing these “conflicts” are not applied, as the Advisory Opinions. Thus, one question remains unanswered: when we will apply the International Law?

Keywords: Law of Treaties. Vienna Convention on the Law of Treaties. International Law. Interpretation. Hermeneutics.

Rafael Köche é Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Bolsista de Mestrado do CNPq. Membro do Grupo de Pesquisa Hermenêutica Jurídica (CNPq). Integrante do Projeto de Pesquisa “Direitos Humanos e Transnacionalização do Direito” (UNISINOS). Advogado.

1 Artigo premiado no Concurso de Artigos atinentes à Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2º lugar).

Direito e Democracia v.13 n.1 p.68-84 jan./jun. 2012Canoas

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O MOVIMENTO DE EXPANSÃO DO DIREITO INTERNACIONALO século XX notabilizou-se pelos avanços científi cos e tecnológicos, pela expansão

do comércio internacional e pela globalização.2 A intensifi cação das relações sociais em escala mundial conecta localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo em muitas milhas de distância e vice-versa (GIDDENS, 1990, p.61-9). É no início daquele século também que se verifi ca a chamada viragem linguística (linguistic turn), a chamada invasão da fi losofi a pela linguagem, numa ruptura paradigmática, que trará consequências irreversíveis para a Filosofi a e o Direito.3 É principalmente nesse período que verifi camos também o movimento de expansão do Direito Internacional (International Law).4

Entre inúmeros outros fatores, esse fenômeno de expansão é caracterizado pela “expansão de normas obrigatórias e de soft norms, a descentralização de fontes, a expansão dos mecanismos de controle do direito e a multiplicação de tribunais” (VARELLA, 2011), decorrente do quase desaparecimento da noção de fronteira e da ressignifi cação do conceito (ou da crise conceitual) de soberania, que passa a não mais simplesmente representar o poder absoluto que o Estado tinha sobre seus “súditos”, mas um poder/dever de proteger seus cidadãos (ICISS, 2001; ANNAN, 2011). Além disso, é consequência proeminente daquilo que representou a Segunda Guerra Mundial.

Nunca se tinha visto tamanho potencial destrutivo por parte do ser humano ainda mais no auge do desenvolvimento cientifi co e tecnológico. Tal afi rmação pode ser entendida em dois sentidos: nunca tínhamos chegado tão perto de pôr fi m à humanidade, por meio do desenvolvimento e emprego de armas nucleares; assim como podemos

2 “Hoje vivemos num mundo em que o fracasso da colheita de látex na Malásia afeta profundamente os trabalhadores em Birmingham ou em Detroit, enquanto uma negociação na bolsa de valores de Nova York e pode arruinar os produtores de cacau da África Ocidental, que pouco sabem da existência de Londres, e com certeza não conhecem nada sobre ações ou sobre valores” (CROSSMAN, 1980, p.18-9). Quando nos referimos a globalização, estamos nos referindo a um fenômeno mais abrangente que um mero “conjunto de estratégias para realizar a hegemonia de conglomerados industriais, corporações fi nanceiras, majors do cinema, da televisão, da música e da informática, para apropriar-se dos recursos naturais e culturais, do trabalho, do ócio e do dinheiro dos países pobres” (CANCLINI, 2003, p.29). Dentre as variadas terminologias existentes para descrever esse processo, talvez “globalização” não sintetize a pluridimensionalidade fenomênica a que estamos nos referindo, contexto sobre o qual estamos partindo. Reconhecemos que talvez o termo “mundialização” exprima com mais propriedade o sentido desse processo, em razão da alta carga semântica que a “globalização” acabou assumindo. Para fi ns deste texto, ressaltamos, no entanto, que o leitor deve ler esses termos como sinônimos desse processo, permeado por dinâmicas plurais, de intensifi cação e multiplicação das relações, que extrapola as fronteiras nacionais, transformando as referências modernas centradas nas nacionalidades. Trata-se, assim, de um processo, pluridimensional, contraditório, paradoxal e ambíguo, na linha que trabalha autores como: Giddens (1990), Touraine (2007), Beck (1999), Held (2001), sem (2003), para fi carmos apenas nestes.3 A (des)construção deste texto foi realizada a partir de aportes da hermenêutica fi losófi ca e da fi losofi a hermenêutica desenvolvida a partir de tal viragem. Não serão aprofundados tais fundamentos. Para tanto, ver: Wittgenstein (2001 e 2005), Heidegger (2006), Oliveira (1996 e 1993).4 Quando nos referirmos a tratados, estaremos nos referindo aos pactos regidos pelo Direito Internacional Público e, por isso, International Law. Essa “limitação conceitual” é necessária, pois alguns internacionalistas da Academia da Paris, como McNair, O’Connell, Serge Sur Nguyen Quoc Dinh Paul Reuter e Charles Rousseau, ampliam o conceito de tratado para todo acordo entre sujeitos de direito internacional público. Isso incluiria determinados acordos que são regulados pelo direito interno de cada Estado envolvido ou mesmo por princípios e regras de direito internacional privado. Para tanto, ver: Reuter (1995) e Henkin (et al. 1993). Tal distinção é mencionada também por Celso de Albuquerque Mello (2004).

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presenciar até onde a crueldade humana poderia chegar, com a criação dos campos de concentração.5 Como explica Heiner Bielefeldt, justamente o horror dos crimes do nacional-socialismo “cometidos em um moderno Estado europeu levaram, ao término da Segunda Guerra Mundial, à segunda ruptura histórica decisiva dos direitos humanos, qual seja, sua incorporação ao direito internacional” (BIELFELDT, 2000, p.41). O Direito precisava dar uma resposta à Auschwitz, tanto que, no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esse momento histórico é retratado: considerando que o desprezo e o desrespeito pelos Direitos do Homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres para se expressar e crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamada como a mais alta inspiração da Humanidade.

Ressalte-se, contudo, que os campos de concentração não foram característica apenas do governo nazista. A União Soviética os possuía muitos anos antes de a Alemanha implantar o seu primeiro campo de concentração. Morreram muito mais ucranianos que judeus na Segunda Guerra Mundial (DAVIES, 2009. p.18-9).6 Obviamente, isso não cria qualquer álibi para os líderes nazistas. Simplesmente afi rmamos que a Segunda Guerra Mundial é precariamente estudada, e as poucas obras a que temos acesso são desenvolvidas por meio de “fragmentação da memória” para o uso da história do período da guerra com propósitos políticos e para a dominação dessa história por interesses nacionais e específi cos.

Esse período foi, pois, decisivo para o Direito Internacional, que havia mostrado ser incapaz de garantir e manter a paz. A criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a eclosão de institutos e órgãos de controle (jurisdicional ou não) para limitar o poder político dos agentes estatais são marcas dessa ruptura histórica.7 A expansão do Direito Internacional acarretou também a “necessidade” (sic) da sistematização da prática do direito internacional caracterizada na edição dos primeiros repertórios da prática dos organismos internacionais e na multiplicação dos digestos de direito internacional (McNAIR, 1962).

5 Importante análise feita por Hannah Arendt (1963) sobre a chamada banalidade do mal.6 “O ensino da história é tão compartimentado quanto as publicações históricas” e o retrato apresentado é sempre o da perspectiva congelada da história dos vencedores. Nessa linha, vale referir Norman Davies, em Europa na Guerra, obra crítica que não revela “espetacularmente fatos novos”, mas reorganiza e reintegra fatos bem estabelecidos que, até agora, “vinham sendo rigidamente segregados”. Como o próprio autor refere, a guerra na Europa foi “dominada por dois monstros diabólicos, e não apenas um”. Descartando a narrativa dualista bem conhecida dos ocidentais que opõe o Bem e o Mal, notamos que “esses monstros uniram forças para destruir a ordem internacional existente, antes de embarcar em uma guerra violenta”. Os libertadores de Auschwitz eram servos de um regime que mantinha campos de concentração ainda maiores do que aqueles que libertaram. (DAVIES, 2009, passim).7 “Os acontecimento de 11 de setembro de 2001 (...) iniciam um novo ciclo histórico. Saímos de uma ordem internacional bem ou mal gerenciada para um sistema fl uido, imprevisível, descontrolado, ameaçador e, para seguir a palavra da moda, globalizado. (...) Uma das maiores ironias acontecendo sob os nossos olhos, sob as nossas barbas: a guerra declarada pela maior potência bélica de toda a História, os EUA, contra um fantasma. (...) A economia é responsável pelas armas ideológicas da morte.” (DINIZ, 2005, p.51-52).

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A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, em 1949, iniciou os estudos sobre a expansão e regulamentação dos tratados internacionais;8 Comissão desenvolvida justamente para codifi car o Direito Internacional. Ilustram o labor para a codifi cação do direito internacional em áreas como as relações diplomáticas e consulares, a responsabilidade internacional dos Estados, o código de crimes contra a paz e a humanidade, e, claro, o Direito dos Tratados. “Era inquestionável que, há algum tempo, desfrutavam as Nações Unidas de reconhecida capacidade para participar diretamente no processo de codifi cação e desenvolvimento progressivo do direito internacional” (CANÇADO TRINDADE, 1997, p.xiii).

Como muitos acordos eram extremamente difíceis naquele período (e ainda o são hoje), a Organização das Nações Unidas passou a desenvolver modos de, num primeiro momento, estabelecer parâmetros mínimos, nem que apenas sob o caráter formal, elaborando a Convenção de Viena para Relações Diplomáticas, em 1961, a Convenção de Viena sobre Relações Consulares, em 1963, e a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, aprovada em 23 de maio de 1969, ao fi nal de uma conferência diplomática internacional, que o Brasil veio a promulgar apenas em 2009.9

As disposições da Convenção, aprovadas por maiorias representativas superiores a dois terços, deram certeza a normas preexistentes, em certos casos, facilitaram a cristalização de determinadas regras, em outros, e, no tocante às demais situações, confi gurando uma opinio juris coletiva e orientando no sentido de que a prática posterior se desenvolva de acordo com ela, aceleraram a formação de novos preceitos. (CACHAPUZ DE MEDEIROS, 2007, p.63)10

Assim sendo, de modo dialético-dialógico, verifi caremos os refl exos que os tratados internacionais conferem no direito brasileiro, analisando as polêmicas mais recentes, especialmente no que tange a interpretação dos tratados frente à legislação doméstica

8 A primeira regulamentação dos tratados internacional a versar sobre o modo de sua celebração foi a Convenção Pan-Americana sobre Direito dos Tratados (1928), conhecida como Convenção de Havana, realizada por ocasião da VI Conferência Internacional Americana, em vigor até hoje. Ela foi incorporada ao ordenamento legislativo brasileiro mediante o Decreto nº 18.956, de 22 de outubro de 1929. A Convenção de Viena só entrou em vigor internacionalmente em 27 de janeiro de 1980, quando o trigésimo quinto país depositou o instrumento de ratifi cação. Ver: Henkin (1993), em especial, o capítulo 6, The Law of Treaties, seção 1-A, The Viena Convention on the Law of Treaties (p.416 e segs).9 Nesse mesmo sentido, foi elaborada a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais, concluída em 1986. Ela ainda não entrou em vigor por não ter atingido o quorum mínimo de 35 ratifi cações de Estados. “A origem histórica da codifi cação do Direito dos Tratados envolvendo organizações internacionais se confunde com o próprio aparecimento das organizações no cenário internacional, quando se percebeu que a capacidade internacional dessas entidades as levava inexoravelmente à condição de titulares do poder de celebrar tratados (treaty-making power)” (MAZZUOLI, 2010, p.290). Para aprofundar o assunto, inclusive para a compreensão deste artigo, fundamental a leitura das obras: Cachapuz de Medeiros, 1995, Cançado Trindade, 2003a, e, 2003b, pp.171-200.10 Diferentemente de outras convenções, que regulam o comportamento dos Estados em setores específi cos das relações internacionais, a Convenção de Viena de 1969 se destina a reger todos os demais tratados (CACHAPUZ DE MEDEIROS, 2007, p.63).

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pelos tribunais, principalmente porque, com a promulgação da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, o Estado poderá ser responsabilizado com maior rigor por violação do Direito Internacional, sobretudo porque o Brasil, tradicionalmente, resiste em aplicar as normas a que se submete, sob um pretenso “confl ito interpretativo”.

2 CONFLITO DE NORMAS? INTERPRETAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO BRASIL

2.1 (Re)afirmação da hermenêutica filosóficaOs ironicamente chamados “confl itos interpretativos” expostos neste artigo mostram

claramente a difi culdade de se alterar a cultura historicamente forjada sob os auspícios da modernidade, que reproduz certa metafísica ainda no campo do Direito. Nada diferente do que ocorre na Suprema Corte brasileira. É dizer, não conseguimos suspender os “pré-juízos inautênticos”, na linha de que trata Gadamer (1997). Nossa dogmática jurídica predominante é metafísica, como retrata Streck (2004), denunciando que a doutrina não doutrina, uma vez imersa naquilo que Luis Alberto Warat (1979, passim) denominou de “senso comum teórico dos juristas”.

Parcela razoável desses “confl itos” parece surgir por parte considerável da doutrina e jurisprudência que ainda sustentam posturas objetivistas, “em que a objetividade do texto sobrepõe-se ao intérprete”; ou, como o conjunto de posições doutrinário-jurisprudenciais assentadas no subjetivismo, segundo o qual o intérprete se sobreporia ao texto (STRECK, 2011, pp.191-2).

E, apesar de o Direito assumir um caráter hermenêutico, em plena “era” do constitucionalismo, da argumentação jurídica e da viragem linguística, a teoria do direito vem sendo dominada por uma crescente sincretização de cunho aparadigmático. Consequentemente, expressões como “caso concreto”, “interpretação”, “hermenêutica”, “discurso”, “argumentação” e “concretização” vem sofrendo de forte anemia signifi cativa (STRECK, 2011, p.373).

Lembremos que “um discurso sempre é acompanhado e precedido por uma antecipação de sentido, que advém do mundo prático, de um desde-já-sempre, e que se funda no encontro hermenêutico” (STRECK, 2011, p.51). As várias tentativas de criar regras para o processo interpretativo,

[...] a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade, ou, até mesmo, de conjugar a subjetividade do intérprete e a objetividade do texto, não resistiram às teses da viragem linguística-ontológica, superadoras do esquema sujeito-objeto, compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da objetifi cação provocada pelo círculo hermenêutico e pela diferença ontológica. (STRECK, 2011, pp.216-7)

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Nesse sentido, passamos a analisar as implicações da promulgação da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, tendo em vista o modo como a nossa Suprema Corte aplica (ou deixa de aplicar) o Direito Internacional em solo brasileiro.

2.2 Implicações da promulgação da Convenção de VienaO Presidente da República, mediante a mensagem 116 publicada no Diário Ofi cial

da União em 23 de abril de 1992, enviou ao Congresso Nacional o texto da Convenção de Viena de 1969 para apreciação. O projeto de Decreto Legislativo 214-C/92 referente a essa Convenção foi aprovado pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, sendo que, desde 28 de outubro de 1995, o projeto está pronto para a Ordem do Dia. O texto da Convenção tramitou pela Câmara dos Deputados mais de treze anos sem apreciação, até ser aprovado pelo Decreto Legislativo 496, de 17 de julho de 2009, tendo o respectivo instrumento de ratifi cação sido depositado perante o secretário-geral das Nações Unidas, em 25 de setembro do mesmo ano. Por meio do Decreto 7.030, de 14 de dezembro de 2009, o Presidente da República então promulgou a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.11

Esse fato lança uma situação inusitada que contradiz entendimento jurisprudencial dominante, visto que, segundo o artigo 27, “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justifi car o inadimplemento de um tratado”. Nessa linha, como fi ca o entendimento de que uma lei posterior revoga entendimento contrário disposto em tratado internacional que o Brasil seja parte? Ou, também, como fazer o controle sobre compatibilidade vertical de lei contrária a tratado internacional de direitos humanos com patamar constitucional?12

2.3 A resistência dos tribunais em aplicar o Direito Internacional no BrasilO processo legislativo no plano internacional tem uma característica peculiar: é

desenvolvida pelo Poder Executivo dos Estados. Pelo menos, num primeiro momento.

11 Como se percebe, mais de quarenta anos se passou até a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados ser aprovada pelo Congresso brasileiro, com reservas aos artigos 25 e 66, que dispõem, respectivamente: “Artigo 25: 1. Um tratado ou uma parte do tratado aplica-se provisoriamente enquanto não entra em vigor, se: a) o próprio tratado assim dispuser; ou b) os Estados negociadores assim acordarem por outra forma. 2. A não ser que o tratado disponha ou os Estados negociadores acordem de outra forma, a aplicação provisória de um tratado ou parte de um tratado, em relação a um Estado, termina se esse Estado notifi car aos outros Estados, entre os quais o tratado é aplicado provisoriamente, sua intenção de não se tornar parte no tratado” e “Artigo 66: Se, nos termos do parágrafo 3 do artigo 65, nenhuma solução foi alcançada, nos 12 meses seguintes à data na qual a objeção foi formulada, o seguinte processo será adotado: a) qualquer parte na controvérsia sobre a aplicação ou a interpretação dos artigos 53 ou 64 poderá, mediante pedido escrito, submetê-la à decisão da Corte Internacional de Justiça, salvo se as partes decidirem, de comum acordo, submeter a controvérsia a arbitragem; b) qualquer parte na controvérsia sobre a aplicação ou a interpretação de qualquer um dos outros artigos da Parte V da presente Convenção poderá iniciar o processo previsto no Anexo à Convenção, mediante pedido nesse sentido ao Secretário-Geral das Nações Unidas”.12 Talvez, nesse caso, a subsidiariedade da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) poderia responder ao problema.

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Embora classicamente a doutrina defenda que a assinatura não vincula o Estado de modo que se possa aventar a obrigatoriedade de ratifi cação13, com fulcro no chamado princípio da discricionariedade da ratifi cação, ainda assim verifi camos a proeminência do Executivo no cenário internacional.

Na complexidade das relações políticas mundiais, difi cilmente conseguir-se-ia desenvolver acordos que não por meio dos chefes de Estado. Questionar em que medida a assinatura vincula ou não o Estado é extremamente relevante. E se o Estado não pode ser “responsabilizado” pela opção de um governo, em que medida o governo, então, fi caria submetido àquela assinatura?

A questão que se coloca é que, no cenário internacional, o poder de convencionar acordos entre Estados (treaty-making power) está nas mãos do Executivo; e, no âmbito do direito constitucional, o poder legiferante é função precípua do Poder Legislativo. Isso leva a diferentes confl itos na produção e aplicação do direito, um verdadeiro tensionamento entre os Poderes14, o que inclui a interpretação dos tratados frente à legislação pátria e vice-versa.

Atualmente, desenvolvem-se na doutrina jurídica ocidental conceitos como constitucionalismo dirigente e compromissório, evidenciando o papel da Constituição e a necessidade de cumpri-la e o fortalecimento da jurisdição constitucional. Inúmeras teorias são talhadas nesse sentido15, que tentam fortemente combater arbitrariedades e decisionismos, a partir de limites interpretativos/aplicativos e de um escorço hermenêutico, parametrizados pela hierarquia normativa existente entre as regras em relação à Constituição.

Entretanto, diferente do que ocorre no direito interno, não se pode afi rmar que exista hierarquia normativa em direito internacional. Talvez possa ser feita distinção entre tratados ordinários e que versem sobre direitos humanos, que será feita mais adiante. Mas a multiplicidade de fontes de produção de tratados, os diferentes órgãos de jurisdição internacional, o papel das organizações internacionais, entre outros fatores, impedem que se faça a rasa analogia da hierarquia normativa consoante no direito constitucional para o plano internacional.

13 José Francisco Rezek, por exemplo, afi rma ser uma obviedade que a assinatura de um tratado (de “procedimento longo”) não pretende vincular o Estado, tampouco o governo (1984 p.269). Deixamos claro, todavia, que reconhecemos a possibilidade de a assinatura vincular o Estado, com fulcro no artigo 12 da Convenção de Viena de 1969: “Artigo 12: 1. O consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado manifesta-se pela assinatura do representante desse Estado: a) quando o tratado dispõe que a assinatura terá esse efeito; b) quando se estabeleça, de outra forma, que os Estados negociadores acordaram em dar à assinatura esse efeito; ou c) quando a intenção do Estado interessado em dar esse efeito à assinatura decorra dos plenos poderes de seu representante ou tenha sido manifestada durante a negociação”.14 Tal tensionamento é resultante também do movimento que convencionalmente passou-se a chamar de constitucionalismo (contemporâneo), pois, “de um lado, textos constitucionais forjados na tradição do segundo pós-guerra estipulando e apontando a necessidade de realização dos direitos fundamentais-sociais; [por outro,] a difícil convivência entre os Poderes do Estado, eleito (Executivo e Legislativo) por maiorias nem sempre concordantes com os ditames constitucionais.” (STRECK, 2011, p.23).15 A tese da Constituição Dirigente (dirigierende Verfassung), inicialmente elaborada por Lerche (1999, p.60 e segs.), foi adaptada à doutrina portuguesa por Canotilho (1994).

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Tamanha difi culdade é resolver essa questão que o Poder Judiciário francês, por exemplo, mantém certa distância, tanto quanto possível, de delimitações interpretativas voltadas para tratados internacionais. Tende a examiná-los somente no âmbito de um litígio entre particulares (REZEK, 1984, p.451). Claro, isso ocorria acentuadamente até a Reforma Constitucional de 2008, que ampliou os poderes do Conselho Constitucional francês, inaugurando uma espécie de jurisdição constitucional de controle de leis a posteriori. Podemos considerar isso uma ruptura em se tratando de um país como a França, em que o Judiciário tradicionalmente tinha papel secundário frente ao Executivo e Legislativo, que simboliza(va)m a suprema vontade do povo. Sem contar que, na França, assim como na Grécia16 e no Peru,17 os tratados são prioritários frente a confl itos com a legislação pátria.18

Nos Estados Unidos, também verifi camos uma espécie de supremacia dos tratados internacionais, mas, diferente do que ocorre na França, aplica-se o sistema de paridade entre tratados e lei nacional. Em outras palavras, os tratados ombreiam com as leis federais votadas no Congresso e sancionadas pelo Presidente. Ou seja, a denominada supremacia signifi ca que o tratado prevalece sobre a legislação dos estados federados, tal como a lei federal ordinária; não que seja superior a esta (REZEK, 1984, p.465).

De outra banda, no Brasil, segundo a doutrina majoritária, caudatária da jurisprudência, os tratados internacionais têm, em virtude dos atos de execução e transformação, apenas força de lei federal (RE 71.154; RE 80.004) (VELLOSO, 2004, pp.35-45). Essa questão foi posta em causa a propósito da prisão civil do depositário infi el, situação prevista na Constituição (em seu art. 5º, LXVII), mas vedada pelo art. 7º, §7º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica),19 um tratado internacional de direitos humanos (RE n° 466.343; RE n° 349.703).

Por isso, por tratados internacionais, é preciso distinguir aqueles que versem sobre direitos humanos e os demais, ditos ordinários. Eles possuem tratamento diferenciado no cenário brasileiro.

16 The Constitution of Greece (1975): “Article 28 – 1. The generally recognized rules of international law, as well as international conventions as of the time they are sanctioned by statute and become operative according to their respective conditions, shall be an integral part of domestic Greek law and shall prevail over any contrary provision of the law. The rules of international law and of international conventions shall be applicable to aliens only under the condition of reciprocity”. (Constituição da Grécia [1975]: “Art. 28, § 1º: As regras de Direito Internacional geralmente aceitas, bem como os tratados internacionais após sua ratifi cação [...], têm valor superior a qualquer disposição contrária das leis”). (Tradução livre).17 Constitución para la República del Perú: “Art. 101 – Los tratados internacionales celebrados por el Peru con otros Estados, forman parte del derecho nacional. En caso de confl icto entre el tratado y la ley, prevalece el primero”. (Constituição do Peru [1979]: “Art. 101 – Os tratados internacionais, celebrados pelo Peru com outros Estados, formam parte do direito nacional. Em caso de confl ito entre tratado e lei, prevalece o primeiro”). (Tradução livre).18 Constituição da França (1958): “Art. 55 – Os tratados ou acordos devidamente ratifi cados e aprovados têm, desde a data de sua publicação, autoridade superior à das leis, sob reserva, para cada acordo ou tratado, de sua aplicação pela outra parte”.19 Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969: “Art. 7º, §7: “Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

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2.4 Tratados internacionais de direitos humanos: normas constitucionais ou supralegais?Na fundamentação do voto do Min. Gilmar Mendes (RE 466.343), é possível

perceber a “divergência interpretativa” no que tange ao status normativo dos tratados internacionais, que, segundo o magistrado, poderiam ser entendidos basicamente como: constitucionais, supralegais ou como leis ordinárias.20

Os tratados internacionais ditos ordinários (ou que não versam sobre direitos humanos) mantêm patamar de lei federal, segundo o acórdão. O próprio texto constitucional, ao defi nir a competência do Superior Tribunal de Justiça, não estabeleceu distinção fundamental entre tratado e lei federal, atribuindo àquela Corte o poder genérico de conhecer, mediante recurso especial, das causas decididas pelos Tribunais federais ou estaduais “quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal”, conforme disposto no artigo 105, III, a.

Todavia, ao tratar do status normativo dos tratados internacionais de direitos humanos, a compreensão do fenômeno parece se dar de forma distinta, visto que haveria a possibilidade destes tratados terem status constitucional, quando a aprovação do tratado ocorrer pelo mesmo quórum exigido para a aprovação das emendas constitucionais, ou terem status supralegal, quando aprovado por maioria simples, com base no artigo 47 da Constituição.21

A doutrina majoritária defende o status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, por qual se aliam Piovesan (1996, p.83), Cançado Trindade (1998, pp.88-89), Bolzan de Morais (2005, pp.3-54) e Mazzuoli (2010, pp.779), para fi car apenas nestes. A redação do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal foi elaborada justamente para atender à tendência constitucional contemporânea de reconhecer este status constitucional – como já se verifi ca em parcela considerável das Constituições dos países ocidentais –, a partir de uma “cláusula de abertura”, cuja redação é fruto de uma audiência pública da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, que ocorreu em 29 de abril de 1987, contando com a presença de Cançado Trindade.

Além disso, haveria um conteúdo materialmente constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, que, por fi m, estabelecem novos direitos fundamentais e, com isso, não poderiam ter simplesmente patamar de lei ordinária. Por isso, cinco dos onze ministros que votaram na RE 466.343 foram a favor do status constitucional de todos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil é parte; os demais, a favor da posição do Gilmar Mendes: supralegalidade.22 Assim, assumiríamos o argumento

20 Gilmar Mendes ainda descreve a possibilidade de os tratados internacionais de direitos humanos serem entendidos como supraconstitucionais, na linha que defende Celso Duvivier de Albuquerque Mello (1999, pp.25-26).21 Constituição Federal (1988): “Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros”. Tratamentos díspares assim fazem com que, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos tenha status supralegal e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Defi ciência, constitucional.22 A fundamentação do Min. Gilmar Mendes, nesse sentido, ressalta o tratamento idêntico que é dado pelas Constituições da Alemanha (Art. 25), França (Art. 55) e Grécia (Art. 28).

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que “the Constitution is the point of reference of assessing the validity of international treaties (and legal order as a whole), and, because of that, the Constitution must be the supreme norm, and not even international human rights treaties must “threaten” this supremacy”.23

Desse modo, um consenso que admitisse o status constitucional desses tratados certamente teria que admitir que a Constituição concebida como um texto rígido tornar-se-ia fl exível, pelo menos para o efeito de adição de novos direitos; até porque o processo constitucional de aprovação dos tratados no Brasil reforça a ideia de que é de direito ordinário que se trata: aprovação de decreto legislativo mediante decisão da maioria (simples) dos membros presentes de cada uma das Casas, presente a maioria absoluta; e ratifi cação mediante decreto do Chefe do Poder Executivo, tudo conforme o artigo 49, I, combinado com artigos 47 e 84, VIII, da Constituição Federal.

É de se indagar, todavia, se a cláusula constante do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição, enquanto norma de remissão, permitiria que fossem incorporados ao texto constitucional princípios de direito suprapositivo. Acentue-se que a dimensão do catálogo dos direitos fundamentais previsto na Constituição brasileira torna difícil imaginar um direito fundamental que pudesse ser adicionalmente colocado dentre esses direitos basilares com fundamento nessa norma de remissão. Sem deixar de mencionar as questões advindas da Emenda Constitucional nº. 45/2004, que atribuiu status constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, por meio da inclusão de novos parágrafos ao art. 5º, que já acendem grandes discussões.

2.5 Emenda Constitucional nº. 45/2004A Emenda Constitucional nº 45/2004 acrescentou ao art. 5º, os parágrafos 3º e 4º,

que rezam, respectivamente, que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, e “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão” (sic).

In order to do so, the paragraph 4th of the Constitution article 5th promoted an extension of Brazilian jurisdiction when it clearly submits it to the International Criminal Court jurisdiction, to whose creation was celebrated its adhesion. That is, it equated such a Court with the Brazilian Judiciary organs. Hence, it can be observed that this device was not aimed on constitutionally declaring adhesion to the International Criminal Court, but to recognize whatever institution with the same nature as a national jurisdiction, enlarging then the criminal jurisdiction concerning crimes within its competence.

23 Defendida por parte da jurisprudência, conforme descreve Marques e Lixinsky (2009, p.149). Sobre o assunto, ver também: Amaral, 2006, p.11-33.

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(…)

Hence, these would not be the possibility for the President of the Republic to use its discretionary power according to his convenience and chance, and abolish this petrifi ed clause by denouncing the Rome Treaty? (PEREIRA; BARROS; LIMA, 2009, pp.134-5)

Criado para tentar responder ao dilema sobre o patamar normativo dos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil seja parte, o parágrafo 3º enfrentou intensas críticas, sendo inclusive suscitada sua inconstitucionalidade material, decorrente da proibição de retrocesso social, pois, supostamente, não poderia ter exigido procedimento mais rígido (quorum qualifi cado) para que novos direitos, criados por tratados internacionais que o Brasil seja parte, incorporem ao ordenamento jurídico nacional em patamar constitucional; enquanto a previsão anterior do parágrafo 2º não o fazia. Mesmo assim, há quem afi rme ser desnecessária a inclusão do parágrafo 3º ao art. 5º, já que o parágrafo 2º já seria o sufi ciente para uma “leitura constitucionalizante” dos tratados internacionais de direitos humanos (MOREIRA, 2007, p.100).

O parágrafo 3º veio a complementar o parágrafo anterior – que consagrara a abertura constitucional aos tratados internacionais sem estabelecer procedimento específi co para que o patamar constitucional fosse defi nido. Todavia, tal “complementariedade” desperta especulações também sobre a questão do direito intertemporal, ao tentar defi nir o status normativo dos tratados, ele aparentemente não resolveria o problema daqueles que o Brasil tornou-se parte antes da Emenda n. 45/2004. Eles continuarão sendo concebidas como normas infraconstitucionais, como se depreende do entendimento do Supremo? Ou assumirão o status constitucional apesar de não terem sido submetidos ao procedimento qualifi cado (conforme o parágrafo 3º)?

Ao atribuir hierarquia constitucional aos tratados de direitos humanos mediante procedimento específi co no âmbito do Congresso Nacional, o constituinte derivado reforçou a posição adotada no Supremo Tribunal Federal; ou seja: os tratados sobre direitos humanos não contam com a hierarquia constitucional automaticamente (DINO et al., 2005, p.16). Logo, os tratados internacionais, anteriores à Emenda, mesmo aqueles que versem sobre direitos humanos, manteriam status equivalente às leis ordinárias.

Passa despercebido, entretanto, que as alterações implantadas pela Emenda Constitucional n. 45/2004 vieram para fortalecer a proteção dos direitos fundamentais. E não o contrário. E que as questões levantadas acerca do novo parágrafo do artigo 5º poderiam ser resolvidas, em alguns casos, a partir do fenômeno da recepção.

Acerca da recepção, sabemos que se trata de princípio geral de Direito Constitucional (que independe de previsão expressa), segundo o qual as normas infraconstitucionais validamente editadas (sob o ângulo formal e material) na vigência de ordenamentos constitucionais anteriores continuam vigentes e eficazes em face de novos ordenamentos constitucionais (originários ou

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reformadores), bastando a compatibilidade material com as regras constitucionais supervenientes. (...) É verdade que a recepção convencional é vista envolvendo regras infraconstitucionais anteriores diante de novas ordens constitucionais (ou seja, a norma anterior tem forma infraconstitucional, e permanecerá como norma infraconstitucional, ainda que de competência ou hierarquia diversa), mas nada impede que o fenômeno da recepção seja aplicado em casos nos quais a ordem constitucional anterior permanece com força de regra constitucional em face ao novo ordenamento constitucional (fenômeno denominado recepção material), ou em casos nos quais regras constitucionais anteriores venham assim status de normas infraconstitucionais (chamada de desconstitucionalização em sentido estrito). (FRANCISCO, 2005, pp.103-4.)

Nesse sentido, haveria recepção convencional, visto que os dois últimos instrumentos de hermenêutica constitucional pressupõem a ab-rogação da Constituição pretérita (FRANCISCO, 2005, p.104).24 Dessa forma, os tratados internacionais de direitos humanos anteriores a Emenda passariam a ser considerados constitucionais, como boa parte da doutrina assim já os tratavam,25 como Flávia Piovesan, ao sustentar que os tratados são “materialmente constitucionais” (por força do artigo 5º, parágrafo 2º). E, a partir da inserção do parágrafo 3º, os tratados internacionais de direitos humanos passam a ter uma nova conceituação, pois, segundo a autora, podem ser agora “material e formalmente constitucionais”. Seria uma nova fase do constitucionalismo brasileiro?26

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: OU QUANDO CUMPRIREMOS O DIREITO INTERNACIONAL?Portanto, a promulgação da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados pelo

Brasil em 2009, apesar de sua importância para a sistematização e desenvolvimento da International Law, infelizmente causou (e ainda causará mais) divergências em sua aplicação, porque os tribunais brasileiros ainda não compreenderam o papel do Direito Internacional Público nesta quadra da história.

Entre tantos “confl itos interpretativos” – que, como se viu, não podem ser entendidos desse modo –, fi guram a distinção entre tratados ordinários e aqueles que versem sobre direitos humanos; o tratamento jurisprudencial dado a este último, que parte defende seu status normativo constitucional; parte, seu status supralegal; as discussões provenientes da Emenda Constitucional n. 45/2004, que içou os tratados ao patamar constitucional (material e formalmente), sendo, todavia, objeto de suscitação de inconstitucionalidade. E, agora, esses debates tendem a tornar-se cada vez mais acentuados, pela aplicação, por

24 Cf. Moreira, 2007, pp.107-8.25 Cf. Comparato (2008), Cançado Trindade (1997, 1999 e 2003), Piovesan (2009). 26 Piovesan, 2009, pp.72-3. Moreira sustenta que certas decisões provenientes dos Tribunais de alguns estados (HC 70011566882-RS; HC 700113551624-RS; Apelação Cível 1.0408.02.000139-7/001-MG), além da expansão da doutrina que reconhece o Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos contribuem para o surgimento de uma “nova cultura dos direitos humanos” (2007, p.110).

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exemplo, do artigo 27 da Convenção de Viena de 1969, que não permite aos operadores do Direito escusar-se de cumprir o dispositivo de um tratado invocando disposição de direito interno; senão vejamos.

Se os tratados ordinários possuem status normativo de lei federal,27 o que aconteceria se lei federal posterior fosse contrária a tratado: valeriam as regras/princípios constitucionais para a interpretação dessa lei, como a lex posterior derogat lex priori? Ou uma lei federal não pode ser contrária a um tratado?

Nesse segundo caso, se uma lei federal não puder ser contrária a tratado, signifi ca dizer que não possuem o mesmo status normativo. Logo, até mesmo os tratados ordinários teriam, no mínimo, status supralegal.

Isso faria com que tratados ordinários pudessem ter tratamento jurisprudencial semelhante ao dado por determinados ministros do Supremo Tribunal Federal para tratados internacionais de direitos humanos, como aferido no voto do Min. Gilmar MENDES (RE 466.343). Então como resolver: atribuímos a “supralegalidade” aos tratados internacionais ordinários também, correndo o risco de equipará-los aos tratados internacionais de direitos humanos (que não foram aprovados pelo novo procedimento)? Ou simplesmente deixamos de aplicar o artigo 27?

O desrespeito deste princípio [da superioridade absoluta do direito internacional], indissociável da obrigação que incumbe ao Estado de tomar medida internas, legislativas ou regulamentares, necessárias a execução do tratado (...), é sancionado pela responsabilização do autor pela falta (...), estando o juiz internacional proibido de pronunciar a anulação do acto interno incriminado, que é declarado simplesmente inoponível aos outros Estados.28

Desse mesmo modo, tampouco poderá valer-se das decisões internas para fazer fracassar um tratado no qual é parte. Ou seja, cada vez mais se percebe a necessidade de se desenvolver uma (nova) Teoria das Fontes, uma (nova) Teoria da Norma e uma (nova) Teoria da Decisão. Não se concebe uma democracia com voluntarismos e arbitrariedades, principalmente no interior do Poder que, no Brasil, é constitucionalmente responsável por “guardar a Constituição”, sendo que “os constituintes autorizaram o governo a concluir tratados que modifi cariam o equilíbrio dos poderes internos ou limitariam sua “soberania normativa”.29

Por fi m, mecanismos inovadores que poderiam auxiliar na resolução desses “confl itos” não são utilizados. As Opiniões Consultivas fornecidas por organizações,

27 Until the extraordinary appeal trial number 80.004-SE in 1997, the Supreme Court has settled the International Law primacy over the Internal Law. In this appeal, it has been decided that, in case of confl ict between treaty and later law, the law should prevail according to the principle lex posterior derogate legi priori (PEREIRA; BARROS; LIMA, 2009, p.130).28 Dinh; Dailler; Pellet, 2003, p.284.29 Dinh; Dailler; Pellet, 2003, p.290.

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tribunais e cortes internacionais são meios respeitáveis para corroborar uma série de aplicações do Direito Internacional em solo brasileiro.

O Estado já foi condenado por violar tratados internacionais. E essa responsabilização tende a ser cada vez mais intensa na medida em que se incorporou ao ordenamento jurídico brasileiro, em 2009, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969.

Por fi m, outra questão polêmica diz respeito justamente ao momento a partir do qual ela passou a ser exigível, porque o depósito do instrumento de ratifi cação ocorreu no dia 25 de setembro de 2009, logo, em conformidade com o artigo 84 (2), que diz que: “2. Para cada Estado que ratifi car a Convenção ou a ela aderir após o depósito do trigésimo quinto instrumento de ratifi cação ou adesão, a Convenção entrará em vigor no trigésimo dia após o depósito, por esse Estado, de seu instrumento de ratifi cação ou adesão”, o tratado passaria a vigorar a partir do dia 25 de outubro. Entretanto, o Decreto 7.030 foi publicado apenas em 14 de dezembro daquele ano.

Como fi cará, então, a interpretação/aplicação dos tratados internacionais durante esse ínterim? Seguiremos adotando a posição do Supremo Tribunal Federal ou passaremos a cumprir o Direito Internacional?

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O plano diretor e o desenvolvimento do turismo socioambientalmente sustentável1

Adir Ubaldo RechKarine Grassi

RESUMOA Constituição Federal estabelece a competência da União, dos Estados e dos Municípios

para a promoção e o incentivo do turismo como fator de desenvolvimento social e econômico. A legislação federal regulamenta com normas gerais, e as legislações estaduais com normas regionais, o que são áreas e locais de interesse turístico. Contudo, tais legislações têm um caráter geral; por conseguinte, não delimitam espaços específicos para o cumprimento das referidas áreas e locais, o que se dará conforme critérios estabelecidos pelos municípios. O instrumento jurídico que possibilita o zoneamento dos espaços e das atividades de interesse turístico é o Plano Diretor Municipal. O turismo realiza-se num determinado espaço (urbano ou rural), em decorrência de suas características naturais ou criadas; assim, é imprescindível o zoneamento das áreas de interesse turístico para a minimização dos impactos ambientais sobre esses espaços e a concretização de políticas públicas de turismo, na forma do art. 180 da CF.

Palavras-chave: Turismo. Zoneamentos específicos. Impactos ambientais. Ocupação. Desenvolvimento social e econômico sustentável.

The municipal master plan and the socially and environmentally sustainable tourism development

ABSTRACTThe Constitution of Brazil/1988 establishes the competence of the Union, the States and

municipalities to promote and encourage tourism as a factor of social and economic development. Federal law regulates general rules, as well as state laws, with regional standards, and defines which are areas and places of tourist interest. However, State and federal laws have a general character. Therefore, delimits spaces specifically designed for this purpose, leaving them at the discretion of municipalities all over Brazilian States. The legal instrument that enables the zoning of the spaces and the activities of tourist interest is the Municipal master plan. Effectively, tourism always happens in a certain space (urban or rural), due to the natural or artificial features in these spaces. It is imperative starting a zoning process, as an effective instrument in order to minimize environmental impacts and to implement public policies for tourism. That is essential for social and economic development, as provided for by art. 180 of the Federal Constitution.

Keywords: Tourism. Specific zoning. Environmental impacts. Occupation. Sustainable social and economic development.

Adir Ubaldo Rech é Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa – Portugal. Doutor e Mestre pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS. Advogado. E-mail: [email protected] Grassi é Mestranda em Direito pela UCS. Bolsista CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental na Sociedade de Risco – GPDA-UFSC/CNPq. E-mail: [email protected]

1 O presente texto foi apresentado no XII Encontro Sobre os Aspectos Econômicos e Sociais da Região Nordeste.

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1 INTRODUÇÃOMuito se tem falado sobre planejamento e políticas públicas voltadas ao

desenvolvimento do turismo, mas muito pouco tem feito o Poder Público de concreto nesse sentido, ficando muito mais a cargo da iniciativa privada, que o faz sem diretrizes, sem critérios, sem normas e sem segurança jurídica relativamente a seus investimentos. Efetivamente o turismo é um negócio lucrativo, mas também é um instrumento de construção da dignidade, de renda, de empregos e de desenvolvimento socioambientalmente sustentável. O papel do Poder Público é mais no sentido de coordenar políticas, mediante diretrizes e normas efetivas que motivem e materializem o planejamento de políticas públicas de desenvolvimento do turismo, no espaço e no tempo de forma permanente.

Ocorre que a iniciativa privada é motivada pela segurança dos investimentos, pela certeza do lucro e com base no princípio da livre iniciativa, enquanto o Poder Público, para incrementar políticas públicas de turismo, está obrigatoriamente vinculado à lei, na forma como dispõe o art. 37 da CF/88. Mas a responsabilidade pela transposição da lei para a concretização das políticas públicas de turismo é tarefa que deve ser compartilhada por ambos.

Fensterseifer reconhece que:

[...] incumbe ao Estado, por sua vez, à luz da perspectiva organizacional e procedimental do direito fundamental ao ambiente, criar instituições e procedimentos administrativos e judiciais adequados. No entanto, para que tais valores constitucionais sejam implementados, deve-se transportá-los do universo cultural para espaço político e jurídico, depositando tal responsabilidade de “transposição” a cargo não apenas do Estado, mas também dos atores privados.2

Na realidade, o Poder Público não tem coordenado nem organizado procedimentos efetivos e tampouco executado políticas públicas de desenvolvimento do turismo socioambientalmente sustentáveis, como se pode concluir após a leitura desta refl exão jurídica.

2 DA LEGISLAÇÃO EXISTENTE E DA FALTADE ZONEAMENTO DE LOCAIS E ÁREAS DE INTERESSE TURÍSTICOVerifi ca-se que a CF/88 estabelece no seu art. 180 que é competência da União, dos

Estados e dos Municípios promover e incentivar o turismo como fator de desenvolvimento

2 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.123-124.

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social e econômico. Almeida et.al. explicam que a autonomia municipal, inclusive, é uma das características nucleares da nossa Carta Magna, assim como prevê o atendimento dos assuntos de interesse locais através de aspectos administrativo, político e legislativo3.

A Lei Federal 11.771/2008 regulamenta a Política Nacional do Turismo, sendo que a Lei Federal 6.513/1977 fi xa normas gerais sobre a criação de áreas especiais e de locais de interesse turístico. Ambas as leis são normas gerais que vinculam as políticas públicas de turismo das diferentes esferas federativas, mas não obrigam a nada, pois cada esfera tem autonomia, e as referidas leis não localizam, especifi camente, nenhum espaço e tampouco estabelecem normas de ocupação para esses, como, por exemplo, as atividades que neles podem ser desenvolvidas. O desenvolvimento do turismo fi ca apenas na intenção da lei, não se materializando em lugar algum.

O Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, através da Lei Estadual 8.108, de 19 de dezembro de 1985, fi xou diretrizes para a criação de áreas especiais e locais de interesse turístico, defi nindo, no seu art. 2º, como locais de interesse turístico, as paisagens notáveis, as localidades que apresentam condições climáticas favoráveis, os bens de valor histórico, artístico e arqueológico, e as manifestações religiosas e culturais.

Ocorre que isso soa genérico, indefi nido, pois o Estado não tem um zoneamento territorial turístico e, por isso, não fi xa normas específi cas de proteção, preservação, ocupação e incentivo a nenhum espaço. O Estado faz de conta que tutela as áreas e locais de interesse turístico, mas, apesar das leis, os melhores locais e áreas de interesse turístico estão sendo degradadas, descaracterizadas e ocupadas sem nenhuma preocupação socioambiental.

Não há dúvida que as áreas e locais de interesse turístico são espaços que exigem preocupação com o meio ambiente natural e com o criado e sobre os quais o Estado pode propiciar, incentivar e assegurar o desenvolvimento do turismo, instrumento valioso de construção da dignidade e crescimento humano social e econômico, com efetiva qualidade de vida de forma sustentável.

Nesse sentido, afi rma Sarlet:

Estado Socioambiental de Direito, longe de ser um Estado “Mínimo”, é um Estado regulador da atividade econômica, capaz de dirigi-la e ajustá-la aos valores e princípios constitucionais, objetivando o desenvolvimento humano e social de forma ambiental sustentável. O princípio do desenvolvimento sustentável expresso no art. 170 (inciso VI) da CF88, confrontando com o direito de propriedade privada e a livre iniciativa (caput e inciso II do art. 170), também se presta a desmitifi car a perspectiva de um capitalismo liberal-individualista em favor de sua leitura à luz dos valores e princípios constitucionais socioambientais.4

3 ALMEIDA, Josimar Ribeiro et al. Planejamento ambiental:caminho para participação popular e gestão ambiental para nosso futuro comum: uma necessidade, um desafi o. 2. ed. Rio de Janeiro: Thex Editora e Biblioteca Estácio de Sá, 1999. p.131.4 SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p.22.

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Na realidade, apesar do ordenamento jurídico existente, que propicia a preservação, conservação e criação de espaços de interesse turístico, em termos de turismo, nada acontece de concreto, e tudo o que acontece é improvisado, pois tudo o que sucede ou vem a suceder deveria estar regulamentado nas normas de ocupação desses espaços. Não é diferente, pois, essa situação em todos os demais estados da Federação.

A CF/88, no que se refere às competências federativas, no seu art. 30, preceitua que compete aos municípios legislar sobre assuntos de interesse local, bem como suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, sendo que o art. 182 atribui aos municípios à execução de políticas de ocupação do território, dispositivo regulamentado pelo Estatuto da Cidade que ordena a elaboração de Plano Diretor em todo o território do município, quer na área urbana, quer na rural.

A própria legislação federal e a estadual, que dizem respeito à defi nição de espaços especiais e locais de interesse turístico, têm um caráter geral, isto é, não defi nem, especifi camente, nenhum espaço, deixando, portanto, a critério dos municípios, fato que se verifi ca, em regra, em todos os estados do Brasil. Portanto, os municípios não fazem corretamente o “dever de casa”.

As questões-chave são: Como fazer e o que fazer?

3 O PLANO DIRETOR MUNICIPAL E O DESENVOLVIMENTO DO TURISMO SOCIOAMBIENTALMENTE SUSTENTÁVEL: AS CIDADES GAÚCHAS DE BENTO GONÇALVES E GRAMADOPrimeiramente, o instrumento jurídico para planejamento urbano e rural, bem

como a defi nição, ou o zoneamento, dos espaços e locais de interesse turístico, conforme já mencionado, é o Plano Diretor Municipal. Não há como se incrementar o desenvolvimento do turismo, simplesmente criando-se leis e políticas públicas de turismo local, sem que isso seja concretizado, através do planejamento da ocupação dos espaços, quer aproveitando e preservando as potencialidades ambientais naturais ou criadas, quer propiciando infraestruturas adequadas e socioambientalmente sustentáveis.

Ocorre que os Planos Diretores Municipais não estabelecem zoneamentos especiais para o desenvolvimento do turismo, não regulamentando a forma de ocupação, as atividades permitidas e proibidas, a preservação e conservação do meio ambiente natural e do criado, a proteção dos patrimônios histórico, cultural, artístico, arquitetônico, paisagístico e arqueológico. Também não defi nem os índices construtivos compatíveis e a adequada acessibilidade aos espaços e locais turísticos, assim como não incentivam ou restringem atividades econômicas, evitando impactos

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ambientais que possam degradar as próprias belezas e potencialidades naturais desses espaços.5

Magalhães explica que, a partir de encontros e conferências mundiais, a Organização Mundial de Turismo – OMT6 – estabeleceu orientações para o desenvolvimento do turismo sustentável, quais sejam:

Antes de dar início a qualquer projeto turístico, devem ser efetuadas análises econômicas, sociais e ambientais, dando uma especial atenção aos diversos tipos de desenvolvimento do turismo e às formas de vida e questões ambientais; as organizações, empresas, grupos e indivíduos devem seguir princípios éticos e outros que respeitam a cultura e o ambiente da área anfi triã, o modo de vida e o comportamento tradicional da comunidade, os padrões de liderança e política; o turismo dever ser planejado e gerido de forma sustentável, tendo em conta a proteção e a utilização econômica adequada do ambiente natural e humano das áreas anfi triã; durante todas as fases do desenvolvimento e operação do turismo, deve ser preparado um programa de avaliação, supervisão e mediação cuidadoso que possa permitir à população local tirar partido das oportunidades ou adaptar-se às alterações7.

Contudo, os munícipios que de alguma forma estimulam o desenvolvimento do turismo, ignoram esses princípios no momento da organização do local destinado à atividade. Nesse sentido, esclarece Magalhães que há um descaso da administração pública local, principalmente quanto se tratam de problemas criados pelo turismo, acabando por benefi ciar poucos empresários, os quais agem, muitas vezes, consoante critérios e interesses próprios, sem cautela com o social e o ambiental.8

A defi nição do zoneamento de áreas e locais de desenvolvimento do turismo deve ser precedida de um diagnóstico específi co das potencialidades naturais e criadas e de um prognóstico criativo de profi ssionais do Direito, de urbanismo e de turismo, devidamente qualifi cados, pois se trata de uma construção epistêmica. Além disso, cada município tem suas características, peculiaridades e potencialidades próprias.

Apesar da existência do Programa Nacional da Municipalização do Turismo (PNMT) – que objetiva, em linhas gerais, o fortalecimento do papel do munícipio no turismo (sustentável nos níveis social, econômico e ambiental) através das diretrizes fornecidas nos “Cadernos de Turismo”9 – poucas são as cidades que utilizam dessa política, ou que fazem uso do instrumento de zoneamento para fi ns de turismo.

5 Pesquisa realizada pelo coautor, tendo como amostragem 100 municípios brasileiros. Projeto desenvolvido pela Universidade de Caxias do Sul e publicado no livro: RECH, Adir Ubaldo. Direito Urbanístico: fundamentos para a construção de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. 286p.6 Cf. ORGANIZACIÓN MUNDIAL DEL TURISMO – OMT. Guía para administraciones locales: dessarrollo turístico sostenible. Madrid: OMT, 1999. 221p.7 MAGALHÃES, Cláudia Freitas. Diretrizes para o turismo sustrentável em municípios. São Paulo: Roca, 2002. p.88.89.8 Ib. Idem. p.89.9 Vide BRASIL. Ministério do Turismo. Coordenação Geral de Regionalização. Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil: Ação Municipal para a Regionalização do Turismo. Brasília, 2007. 61p.

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Para exemplifi car a necessidade de zoneamento de locais e áreas de interesse turístico trazem-se algumas situações concretas, que mostram que o planejamento dos espaços resultou em signifi cativo resultado. É o caso do Vale dos Vinhedos, Município de Bento Gonçalves/RS que, cumprindo o que estabelece a CF/88 de promover e incentivar o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico, planejou a ocupação das potencialidades naturais da área do vale, criando um zoneamento específi co no Plano Diretor Municipal, cujo sucesso e reconhecimento são internacionais.

O Plano Diretor Municipal de Bento Gonçalves defi ne o Vale dos Vinhedos como zoneamento especial de vitivinicultura. Protege, incentiva e prioriza a cultura da uva, permitindo que as outras culturas tenham apenas caráter complementar e de sustento. Vale-se da paisagem natural estabelecendo regras de proteção e fi xando atividades permitidas, como hotéis, cantinas, restaurantes, produção de vinhos, etc., aproveitando tudo para incentivar e incrementar o desenvolvimento do turismo.

É importante salientar que o turismo acontece em espaços com potencialidades naturais ou criadas, e o ambiente turístico criado decorre do planejamento desses espaços naturais. O planejamento consiste, na realidade, em defi nir a forma de ocupação, a preservação e conservação desses espaços e o incremento de estruturas e atividades a ele direcionadas.

Assim dispõe o Plano Diretor Municipal de Bento Gonçalves10 em seu art. 164:

Art. 164. Distrito do Vale dos Vinhedos tem como vocação natural consolidada, a vitivinicultura, cuja cultura, ocupação do solo e paisagem fi cam protegidas na forma desta lei.

Nesse sentido, Rech, ao fazer referência ao Plano Diretor de Bento Gonçalves, afi rma:

O Novo Plano Diretor de Bento Gonçalves, por exemplo, criou zoneamentos rurais diversifi cados, como é o caso do Vale dos Vinhedos, nacionalmente conhecido, buscando combinar o manuseio e a ocupação do solo com o desenvolvimento de determinado setor da economia, no caso, a vitivinicultura. Além disso, incentiva o desenvolvimento de serviços como comércio de produtos coloniais, hotéis e áreas de lazer, buscando incrementar o turismo como fator de desenvolvimento da atividade econômica naturalmente desenvolvida pelos colonizadores italianos, na área rural. Defi niu que no Vale dos Vinhedos, a videira é cultura prioritária, sendo o cultivo das demais culturas apenas complementares e de sustento. 11

10 Lei Complementar Municipal 103, de 26 de outubro de 2006.11 RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos nas cidades: um fato cuja solução também passa pelo Direito como instrumento de construção de um projeto de cidade sustentável. Caxias do Sul: Educs, 2007.

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Fica evidente que o desenvolvimento do turismo no Vale dos Vinhedos (Bento Gonçalves) não decorre do simples fato de existir legislação que defi ne a necessidade de políticas públicas de turismo, mas concretamente se dá por meio de normas cogentes de defi nição de um zoneamento específi co, regrando a ocupação, a preservação e a conservação dos espaços com potencialidades naturais, históricas, culturais e econômicas.

Há, na realidade, uma garantia jurídica para investimentos específicos na vitivinicultura e no turismo no Vale dos Vinhedos, os quais se perpetuam no tempo e no espaço.

A existência de legislação federal e estadual estabelecendo diretrizes ou políticas de turismo, assim como a vontade política não são sufi cientes para garantir o desenvolvimento do turismo, pois não se constituem, na prática, em políticas públicas de turismo, pois essas prescindem de normas que localizem e regulamentem concretamente áreas especiais e locais de interesse turístico, e, ao mesmo tempo, que vinculem a Administração Pública e a iniciativa privada no que se refere à forma de ocupação, preservação ou conservação desses locais ou áreas.

Outro exemplo é a cidade de Gramado/RS, onde todos os espaços têm regras de ocupação e atividades direcionadas, que asseguram políticas públicas e privadas de desenvolvimento do turismo. Da mesma forma, o bairro de Santa Felicidade, em Curitiba, capital do Estado do Paraná, que, mesmo inserido no seio de uma cidade industrial, aproveitou a localidade ocupada e com atividades desenvolvidas e preservadas pelos imigrantes italianos, regrou e assegurou a continuidade da forma de ocupação e o tipo de arquitetura, incentivou as atividades gastronômicas, etc. transformando o referido bairro em área especial para o desenvolvimento do turismo.

As potencialidades de imensas áreas, como é o caso das existentes na Serra Gaúcha, são um exemplo de espaço que necessita de zoneamento, pois tem, nos campos, uma região de paisagens exuberantes e, em cada lugar, uma história diferente, contada por pessoas diferentes, impregnadas de sentimentos e simbologias, que se confundem com a paisagem, as comidas típicas, o misticismo, a hospitalidade, as rodas de chimarrão e as tradições que encantam.

No caso do zoneamento dos campos naturais da Serra Gaúcha, é preciso que o ordenamento jurídico do Plano Diretor tenha como princípio norteador, na solução de qualquer confl ito de norma, priorizar ou assegurar a preservação ambiental dos campos naturais, a preservação de sua fi nalidade econômica e pastoril e a preservação de sua paisagem notável de grande potencialidade turística. Sem isso, com o tempo, vão sendo degradados o ambiente natural, o encanto e a beleza de uma das mais belas regiões do Rio Grande do Sul, bem como a preservação de área ou local de interesse turístico, na forma como dispõem a legislação federal e a estadual.

Assim, poderiam ser referidas dezenas de outros locais deste imenso Brasil, em que, apesar da existência de legislação nacional e estadual e de políticas públicas de turismo, nada acontece, senão a constante ocupação desordenada, a degradação ambiental e a descaracterização da paisagem e das potencialidades turística.

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Isso ocorre exatamente porque nem o Estado e tampouco os Planos Diretores municipais estabeleceram zoneamentos com regras de localização e ocupação dos espaços, buscando incrementar atividades econômicas especifi cas de desenvolvimento do turismo sustentável.

O zoneamento é o principal instrumento de planejamento de políticas públicas de turismo, pois consiste em repartir o território de forma a contemplar tipos de atividades ou políticas desejadas sobre determinado espaço, sem degradá-lo e descaraterizá-lo. O turismo sempre acontece num determinado espaço e em decorrência das características desse mesmo espaço.

Afi rma Silva:

O zoneamento de uso do solo constitui um dos principais instrumentos do planejamento urbanístico municipal. O zoneamento pode ser entendido como um procedimento urbanístico ou de ocupação destinado a fi xar os usos adequados para as diversas áreas do solo municipal.12

O autor se refere ao solo municipal e acrescenta, citando texto da Associação Internacional de Administradores Municipais “que o zoneamento serve para encontrar lugar para todos os usos e potencialidades do solo, dos espaços e colocar cada coisa em seu lugar adequado, inclusive, as atividades incômodas”.13

O zoneamento do turismo e de outras formas de ocupação e parcelamento do solo com fi nalidades urbanas, cuja competência concreta e material é dos municípios, é dispositivo calcado na legislação, na forma que prevê os arts. 30 e 182 da CF/88,14 cujas normas de ocupação e expansão urbana, que devem englobar as áreas urbana e rural, conforme dispõe o art. 40 do Estatuto da Cidade,15 tem como instrumento local o Plano Diretor Municipal.

O Estatuto da Cidade reza que o Plano Diretor defi nirá a função social da propriedade no que se refere à sua ocupação para atividades urbanas,16 o que implica zoneamento. Silva, ao fazer referência ao regime jurídico do zoneamento, afi rma que “trata-se de legítima restrição ao direito de propriedade e ao direito de construir, estabelecendo o planejamento da ocupação dos espaços, com vistas às mais diversas políticas públicas”.17 Além de o zoneamento das formas de ocupação de todo o território do município ser

12 SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico brasileiro. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.241.13 Ibid., p.306.14 “Art. 30. Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local; II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.” [...]. “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fi xadas em lei, tem por objeto ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”15 “Art. 40. O Plano Diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. § 2o. O Plano Diretor englobará o território do Município como um todo.”16 “Art. 2°. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.” [...].17 SILVA, Op. cit., p.249.

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de competência local, o desenvolvimento do turismo é uma política pública de caráter urbano, mesmo que possa se desenvolver na área rural.

Efetivamente, a proteção do patrimônio natural e criado, na forma prevista no art. 2° do Estatuto da Cidade,18 constitui a base de toda política de desenvolvimento do turismo. Por isso, exige uma maior atenção por parte da Administração Pública, bem como desperta grande interesse da iniciativa privada, tendo em conta que é um fenômeno social, mas, fundamentalmente, uma atividade econômica sustentável que muito tem crescido nas últimas décadas.

Em sua modalidade urbana ou rural, é concebido como uma apropriação do espaço típico para atividades turísticas. Essas atividades têm hoje, especialmente, lugar no campo, originando transformações naturais, espaciais e culturais, bem como permitem a abordagem geográfi ca para a compreensão de mecanismos processuais desse segmento turístico.

Paralelamente à função mercadológica na prática do turismo e, devido às mudanças trazidas pelo Estatuto da Cidade, no sentido de uma nova forma de concepção dos espaços urbano e rural, denotando o fortalecimento da relação cidade/campo e o planejamento da ocupação, por parte dos municípios de ambas as áreas, consolida-se a inter-relação entre esses dois espaços. Verifi ca-se, apesar da resistência de velhas formas de produção e a permanência da cultura rural, a existência de relações de complementaridade, que se caracterizam por uma articulação entre tais espaços, seja na esfera tecnológica, na cultural, seja na produtiva.

Silva afi rma:

O espaço rural não só deixa de ser um espaço monofuncional, estritamente ligado às atividades primárias, mas também ligado às novas confi gurações espaciais do processo de globalização da economia. O meio rural ganhou, por assim dizer, novas funções e novos tipos de ocupações: propiciar lazer, descanso e práticas turísticas; moradia para empreendedores e trabalhadores rurais, função turística, além de promover preservação e conservação do meio ambiente humano e natural.19

O continente Europeu, de modo geral, representa um exemplo de ocupação de áreas para o turismo, tanto dos espaços urbanos quanto dos espaços rurais, e da necessidade de defi nir normas cogentes de ocupação, buscando evitar a descaracterização dos espaços naturais, históricos, culturais, religiosos e econômicos. Swarbrooke exemplifi ca o turismo rural na França, que é desenvolvido desde os anos 50, inclusive com práticas harmoniosas com o meio ambiente. O autor cita como empreendimentos bem sucedidos, com incentivo

18 “Art. 2°. [...] inciso XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.”19 SILVA, A. M. Os caminhos do turismo em espaço rural goiano. Revista da UFG, v. 7, n. 1, jun. 2004. Disponível em: <www.proec.ufg.br>. Acesso em: 21 set. 2011.

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do poder público, as pousadas, museus ecológicos, alimentos e bebidas tradicionais, fazendas-albergues, dentre outros20. Já no âmbito urbano, o autor faz referência ao papel positivo que constitui, para as pequenas e grandes cidades, o desenvolvimento de eventos e festivais tradicionais, citando conhecidos exemplos, tais como: o Festival de Edimburgo, na Escócia; o Festival das Ostras, na Irlanda; o Festival da Baleia, na Islândia21.

Fica evidente que, devido às transformações na política, na economia e no âmbito social, vislumbram-se uma nova sociedade e novos estilos de vida, de lazer e de atividades econômicas que exigem, urgentemente, regras de conservação e preservação das nossas potencialidades geográfi cas e da identidade, elementos que nos tornam diferentes e que são buscados pelos turistas.

O novo estilo e a qualidade de vida ganham importância dentro do “status profi ssional”, e as inovações nos setores das comunicações e dos transportes tornam possível a globalização e mudam completamente as noções relativas, criadas pelas distâncias físicas já conhecidas, facilitando a atividade turística.

A industrialização nos torna iguais na ocupação dos espaços, e o único elemento que nos resta para sermos diferentes, para que possamos atrair o turista é a preservação da história, das paisagens, da arquitetura, da cultura, do meio ambiente, em fi m dos espaços com potencial para o desenvolvimento do turismo. A necessidade de lazer e a qualidade de vida, associadas ao crescente poder aquisitivo, levam o cidadão a buscar (comprar) o prazer nas paisagens naturais, no contato com a natureza pouco transformada e no retorno às antigas formas de produção, similarmente a qualquer mercadoria que precisa ser consumida.

Vale lembrar o importante papel da “Cidade de Cultura Européia”, criada pela União Européia. Ao estabelecer o programa, explica Swarbrooke, desde os anos 80 uma cidade é escolhida – sem deixar de lado as cidades menores – e, através de investimentos fi nanceiros da própria União Européia, dos governos nacionais e entidades privadas, desenvolve seu potencial para o turismo com eventos, feiras, conceitos e outras atividades, tanto tradicionais como alternativas.22

Na perspectiva brasileira, a melhor e mais efetiva forma de planejar políticas de desenvolvimento do turismo é voltar-se à perspectiva espacial, cujas regras gerais podem ser estabelecidas por lei federal, cabendo aos Estados legislar subsidiariamente sobre os espaços de interesse regional. Não obstante, consoante dispõem a CF/88 e o Estatuto da Cidade, a competência material é dos municípios, tanto na área urbana quanto na área rural.

Ignorar isso, ou seja, a necessidade de planejar, através do Plano Diretor Municipal, espaços prioritários para o incremento do turismo, mediante zoneamentos específi cos, estabelecendo normas de ocupação do solo, bem como de atividades permitidas ou

20 SWARBROOKE, John. Turismo sustentável: setor público e cenários geográfi cos. 2 ed. Tradução de Esther Eva Horovitz. São Paulo: Aleph, 2000, p.22-25.21 Ibid., p.43-44.22 SWARBROOKE. Op.cit. p.48-49.

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proibidas, é deixar o trem do desenvolvimento do turismo socioambientalmente sustentável passar, para, depois, amargar anos de atraso.

4 CONCLUSÃOO turismo, como qualquer outra atividade social e econômica se dá em um

determinado espaço. A Constituição e a legislação infraconstitucional federal e estadual estabelecem diretrizes e normas gerais de políticas públicas sobre o desenvolvimento do turismo, porém não são materializados, de forma efetiva, o zoneamento das áreas e dos locais de potencial interesse turístico, tampouco são delimitadas a forma de ocupação ou as atividades permitidas nesses espaços, com vistas ao desenvolvimento de um turismo socioambientalmente sustentável.

O que se vê em nosso país, parafraseando Magalhães, são projetos mirabolantes e inconsequentes nos órgãos de planejamento do turismo, pois não existe cautela em verifi car as peculiaridades de cada cidade e suas potencialidades, tampouco preocupação com os recursos naturais e as comunidades locais23. As cidades gaúchas de Bento Gonçalves e Gramado são exemplos raros da utilização adequada do espaço urbano e rural para o turismo socioambientalmente sustentável.

Desta feita, não fi cam asseguradas políticas públicas permanentes que vinculem a administração pública ao problema em tela, e que deem segurança jurídica aos investimentos da iniciativa privada. A única forma de tornar obrigatório, duradouro e seguro o desenvolvimento do turismo, em um determinado local ou área, é mediante o zoneamento. Estes, nos seus aspectos gerais e regionais, podem ser definidos, respectivamente, por lei federal ou estadual, mas cuja competência material é efetivamente dos municípios, tanto na área urbana quanto na área rural, através dos Planos Diretores de cada município.

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23 MAGALHÃES. Op. cit., p.156.

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Igualdade, liberdade e responsabilidade convergentes à concepção humanista da vida

e da política em Ronald DworkinEliseu Raphael Venturi

RESUMONeste artigo, o problema de fundo é o da investigação de sentidos do humanismo jurídico

atual, de modo que, em específico, neste momento, são abordados os sentidos e alguns movimentos interpretativos de Ronald Dworkin a partir da noção de “ideal humanista”, por ele compreendida como ponto de convergência da liberdade, da igualdade e da responsabilidade enquanto valores políticos e cívicos que, ainda segundo Dworkin, junto a demais valores políticos e morais, devem ser compreendidos holisticamente, tal como uma cúpula geodésica, formando uma estrutura humanista, coerente à virtude da integridade do direito. O humanismo ético é entendido pelo autor enquanto individualismo ético determinante do valor associado à vida humana, e a partir desta cosmovisão político-jurídica pretende-se estabelecer alguns elementos do pensamento deste filósofo e que podem auxiliar na compreensão maior das dimensões de um humanismo jurídico na contemporaneidade, marcado pelas categorias de direitos subjetivos humanos, fundamentais e da personalidade, assim como demais regras e princípios tuitivos.

Palavras-chave: Humanismo. Virtude política. Integridade. Hermenêutica. Ronald Dworkin.

Equality, freedom and responsibility converging at the life’s and policy’s humanist conception on Ronald Dworkin

ABSTRACTAt this article, the fundamental problem is the investigation of current legal sense of

humanism, so that, in particular, at this point, the senses are addressed at some interpretive movements Ronald’s Dworkin from the notion of “humanist ideal,” that he understood as a point of convergence of liberty, equality and responsibility as civic and political values which, along with other political and moral values , must be understood holistically, as a geodesic dome, forming a structure humanist because of the consistent integrity of law. The “ethical humanism” is understood, by the author, as a determinant of ethical individualism, associated value to human life. From this politic-legal worldview, is possible to establish some elements of this philosopher’s thought and that can help in better understanding of the dimensions of a legal humanism in contemporary, marked by the categories of subjective and human rights, also by fundamental and personality rights, as well as other rules and tuitive principles.

Keywords: Humanism. Political virtue. Integrity. Hermeneutics. Ronald Dworkin.

Eliseu Raphael Venturi é Mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná (ESMAFE-PR). Advogado. Contato: [email protected]

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1 INTRODUÇÃOCom a ordem constitucional de 1988, marco absoluto regulador da interpretação

do direito, em termos de direito positivo, sem prejuízo dos debates anteriores do constitucionalismo, mas desta vez com um forte assento institucional e teórico de intensa tônica e apreço democráticos, sintonizado com o direito internacional dos direitos humanos e com os desafi os hipercomplexos das sociedades contemporâneas, os arranjos de liberdade, de igualdade e de responsabilidade apresentam-se como problemas fi losófi cos de raiz, incumbindo o pensamento jurídico com as questões políticas, com as morais e com as preocupações de efetividade de todo um sistema jurídico articulado em torno de princípios como o da dignidade da pessoa humana.

Aportes da teoria geral do direito e da fi losofi a do direito, ante tal cenário, mostraram-se, na construção democrática decorrida das últimas décadas, imprescindíveis para a construção interpretativa dos problemas jurídicos, sempre tendo por base o atendimento das razões do direito, insculpidas pelo corpo principiológico e, sobretudo, de construção interpretativo-argumentativa, prática discursiva de compreensão da realidade e de sua alteração prática.

O objetivo deste artigo, no contexto acima delimitado, é o de debater algumas ideias do modo de compreensão dworkiniano para enfrentamento de questões jurídicas e políticas, intrincadas no processo decisório, especialmente o jurisprudencial. Ao longo de seus textos, o autor lança afi rmativas sobre sua cosmovisão, em especial no sentido moral, jurídico e político, assim como suas estratégias de pensamento, que podem auxiliar no entendimento do modo como procede para a construção de suas refl exões políticas, jurídicas e morais.

Para Dworkin, convergem, a liberdade, a igualdade e a responsabilidade, a um mesmo ideal humanista, nas linhas de um humanismo ético – individualismo ético que defi ne o valor associado à vida humana (DWORKIN, 2010, p. 639).

A partir deste cerne toma-se como referencial o ideal humanista da vida e da política, o qual estrutura arranjos de liberdade-igualdade-responsabilidade, assim nominado o âmbito de pré-compreensão pelo autor (especifi camente na obra “A Virtude Soberana”), e que refl ete elementos do humanismo cívico, base do pensamento republicano moderno.

A partir dessa expressão, “ideal humanista”, pretende-se estabelecer, por meio dos indícios dos textos do autor, o que poderia ser visualizado como um humanismo dworkiniano, ou, ainda, em quê consistiria o humanismo nos usos deste autor. Este artigo, portanto, insere-se em uma preocupação maior, sobre os sentidos do humanismo jurídico atual.

Enfoca-se, por ora, mais o caráter hermenêutico de Dworkin, em especial, a apreensão de estratégias de raciocínio e demonstração no enfrentamento de problemas complexos, assim como a fl uidez narrativa e fi losófi ca da articulação argumentativa deste pensador.

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Busca-se depreender – e, portanto, já se interpretando a obra o autor, sem pretensões ou crença em uma leitura defi nitivamente objetiva – da tônica e verve expressivas elementos que contribuam o desenvolvimento do pensamento e raciocínio jurídicos, prático e teorético, puro e pragmático, mas, sobretudo, comprometido, vinculado e consciente da responsabilidade interpretativa dos profi ssionais do direito ante a riqueza principiológica, axiológica, emancipatória e protetora que se pode construir em torno e a partir dos preceitos vigentes do ordenamento jurídico em suas dimensões interna e internacional, reunidas sob a preocupação da tutela integral das pessoas e da condição humana, preocupação própria do fi lósofo, posto suas discussões sobre a vida, a vida boa e o bem-estar.

A obra de Ronald Dworkin reúne grandes aportes para se pensar os princípios democrático e republicano na atualidade, assim como a densifi cação hermenêutica dos direitos humanos, fundamentais e de personalidade ante casos práticos. A igualdade como virtude soberana e a prescrição da igual consideração e respeito pelos cidadãos representa um importante pressuposto nesse sentido, orientando pressupostos de interpretação, possibilitando, igualmente, os sentidos de um humanismo jurídico atual.

2 A CONCEPÇÃO DO DIREITO ENQUANTO CONCEITO INTERPRETATIVO E COMO CORPO DE ATITUDES INTERPRETATIVA, AUTORREFLEXIVA, CONTESTADORA, CONSTRUTIVA E FRATERNA: UM ESPAÇO HERMENÊUTICO FUNDAMENTALO pensamento de Ronald Dworkin, na estruturação de um modo próprio de

abordagem das relações entre os problemas jurídicos e a moralidade política precedente, permite depreender algumas estratégias básicas de raciocínio e uma visão disciplinar própria, que auxiliam no enfrentamento de questões jurídicas, em especial, no orbe hermenêutico e de construção normativa com esteio axiológico.

O pensador norte-americano estrutura complexos estágios (semântico, teórico, doutrinário, da decisão judicial) para verificar dimensões do fenômeno jurídico (DWORKIN, 2010a), estabelecendo uma teoria geral do direito que considera o papel da moral, de sorte a estabelecer elementos distintivos, em diferentes aportes teoréticos (positivismos, realismos e pragmatismos, em especial), de sorte a se identifi car padrões de compreensão sobre o que é o direito, ou seja, sobre a concepção do que ele seja e seu papel, o que se mostra determinante na interpretação feita, portanto, no jogo argumentativo e na decisão fi nal.

Assim, é fundamental considerar uma visão global sobre o que, afi nal, para o autor, pode ser tido como o campo do direito, ou seja, qual a visão geral dos traços diferenciais do direito e como ele se vincula a um contexto próprio de práticas sociais. Para tanto,

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pode-se valer das conclusões fi nais do autor em “O Império do Direito”, nas seguintes linhas:

[...] o direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é defi nido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e autorrefl exiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do direito é confi rmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua fi nalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter [grifou-se] (DWORKIN, 2007, p. 492)

Desta sorte, pode-se perceber que, para o pensador, o direito não é defi nido senão pensado no contexto das práticas sociais e jurídicas em que se realiza; o direito, pois, não se encerra no texto vigente e nos vínculos institucionais, expandindo-se em diversas atitudes dos intérpretes e, mais do que isso, consistindo em um próprio modo de se posicionar ante a vida coletiva: pode-se afi rmar que o direito é, com base nos textos e nas instituições, uma atitude, e não se pode negligenciar tal atitude enfocando-se apenas o texto e a instituição. Ademais, tal atitude não se encontra monopolizada por um agente social em específi co, mas antes espraiada pela coletividade, cada qual ao seu momento realizando um tipo de prática e controle.

O trecho acima referenciado apresenta-se muito signifi cativo à refl exão fi losófi ca da natureza do direito posto que, a partir de suas convicções, podem-se depreender práticas democráticas, eixos axiológicos e projeções temporais do direito, compromissadas com o pretérito, o presente e o futuro.

As concepções do autor admitem um espaço hermenêutico que supera o posto e mesmo a restrição dos catálogos, listas ou poderes, assim como “pelo território, poder ou processo”. Em termos hermenêuticos, trata-se de uma afi rmação com força aberta,

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no sentido de que ela permite visualizar diferentes construções possíveis a partir da concepção de um direito enquanto atitude, ainda mais se pensada tendo por valor político informativo a integridade.

O corpo de atitudes interpretativa, autorrefl exiva, contestadora, construtiva e fraterna do direito, abre o horizonte do intérprete à comunicação com os preceitos políticos da comunidade, vinculando novamente o cidadão à participação da vida política, reconhecendo nela o espaço de realização dos direitos, ao compasso de se ligar aos compromissos públicos na renovação das práticas cotidianas.

Ademais, Dworkin, posta tal concepção do direito, reconhece o espaço criativo do direito, realimentando a incidência e signifi cação dos princípios jurídicos, na busca pelas melhores interpretações, que podem ser dimensionadas não apenas pelo trabalho dos intérpretes autorizados (juízes), mas também podem ser questionadas pelo cidadão e pela opinião pública, em um espaço hermenêutico aberto.

Tanto assim que a atitude construtiva implica em um espírito interpretativo, que se insere em um contexto de passado e futuro, comprometendo-se com ambos, um enquanto tradição e outro enquanto horizonte da possível concretização, o que se reafi rma por meio da atitude fraterna, que reúne os diferentes projetos e interesses de vida sob a noção de comunidade, indicando, assim, um espaço de comunicação e de partilha de vida.

Por oportuno, Dworkin (2007, p. 477 e seguintes, no capítulo “o direito além do direito”) fi xou o direito enquanto um “conceito interpretativo”, ou seja, um daqueles que “[...] nos estimulam a refl etir sobre aquilo que é exigido por alguma prática que elaboramos, bem como contestar tal constructo” (DWORKIN, 2010a, p. 17). Portanto, um pensamento essencialmente refl exivo e discursivo, construtivo, orientado mais pelos problemas do que pelas defi nições estanques e cabais.

Nesse sentido, mais uma vez, a coordenação do eixo temporal é importante se considerar que o direito como integridade fl ui no momento presente, contatando o passado e o futuro sem se reduzir, tal como no convencionalismo ou no pragmatismo, a uma ou outra dimensão temporal, respectivamente, abarcando-se, pois, a doutrina e a jurisdição no cerne de uma prática jurídica em que se buscam as “interpretações refi nadas concretas”.

Legislação e jurisdição confi guram-se como pontos de interpretação, sempre perpassados pelo crivo da equidade, da justiça e do devido processo legal como caracteres de um julgamento interpretativo, e o trabalho se orienta para tornar “[...] o histórico legal da comunidade política o melhor possível do ponto de vista da moral política” (DWORKIN, 2007, p. 489).

A integridade do direito, assim, enquanto uma virtude política no contexto de uma comunidade política (associação de princípios), faz com que a legitimação política se insira na comunidade de pessoas livres, independentes e com espaços de divergência sobre moral política e sabedoria (DWORKIN, 2007, p. 490).

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A visão conjuntiva dada pela integridade do direito é sintetizada pelo autor do seguinte modo:

O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afi rmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas. (DWORKIN, 2007, p. 271)

A decorrência desta virtude é o juiz enquanto autor e crítico de um romance em cadeia no direito, em que o juiz, analogamente, “[...] destrinça as várias dimensões de valor” (DWORKIN, 2007, p. 275) da obra de arte (poema ou peça, nos exemplos do autor), mas que, ao mesmo tempo, “[...] introduz acréscimos na tradição que interpreta” (DWORKIN, 2007, p. 275).

Considerando o plexo de possibilidades proporcionado pela concepção de direito enquanto corpo de atitudes, assim como qualifi cado pela virtude política da integridade, no item a seguir faz-se uma retomada dos sentidos do humanismo em Dworkin, o que não pode subsistir sem o espaço fi losófi co-interpretativo inicialmente pontuado.

3 O IDEAL E A ESTRUTURA HUMANISTAS NAS LINHAS DA CONCEPÇÃO DO DIREITO: A FORTUNA AXIOLÓGICA TUITIVA DO SER HUMANO EM COMUNIDADEPartindo da assunção de que o direito possa ser compreendido como corpo de atitudes

(interpretativa, autorrefl exiva, contestadora, construtiva e fraterna), transcendendo, sem prescindir, das regras, princípios e instituições, podem-se verifi car nos escritos de Dworkin algumas linhas gerais do que ele nomina de estrutura ou ideal humanista.

O problema do humanismo jurídico se apresenta complexo na medida em que sua polissemia ínsita remete aos mais diversos campos e momentos históricos, fi xando tanto escolas do pensamento jurídico na pré-modernidade quanto compreensões atuais acerca de posicionamentos fi losófi cos sobre o direito1, abarcando-se concepções de mundo em torno do tema2.

1 Para não infl acionar este artigo com o debate, realizou-se a síntese de sentidos sem quaisquer referências. Contudo, como a questão é relevante para se fi xar o objeto próprio do debate, podem ser citadas algumas referências importantes para o sentido atual do humanismo, em especial em orbe constitucional, conforme Carlos Ayres Britto em ‘O humanismo como categoria constitucional’.2 O título provisório da dissertação do autor do artigo, ora em andamento, é: Weltanschauung humanista na constitutividade do homo juridicus contemporâneo.

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Para este artigo, será adotado o sentido de humanismo jurídico enquanto apreço pelo princípio da dignidade da pessoa humana, pelos direitos humanos, fundamentais e de personalidade, assim como na crença de um direito orientado à proteção e a promoção do ser humano.

Portanto, a compreensão do homo juridicus enquanto construção dogmática do direito, pensado em sua função antropológica e no papel de “técnica de humanização das técnicas” (SUPIOT, 2007).

Neste sentido, é importante destacar o sentido explícito dado ao ideal humanista por Dworkin em “A Virtude Soberana”, enquanto fundamento de moralidade crítica e que coliga o individualismo ético à defi nição do valor “vida humana”, afi rmando o valor objetivo da importância e da responsabilidade referentes ao êxito (destino e realização do potencial) das vidas humanas na comunidade política.

Minha própria moralidade crítica fundamenta-se em alguns ideais humanistas éticos que chamo de individualismo ético e que defi nem o valor associado à vida humana. O primeiro princípio afi rma que é objetivamente importante que qualquer vida humana, depois de iniciada, tenha êxito, em vez de fracassar – que o potencial dessa vida se realize, em vez de desperdiçar-se –, e que isso é igual e objetivamente importante no caso de cada vida humana. Digo ‘objetivamente’ importante para salientar que o êxito da vida humana não é importante só para a própria pessoa ou para os que lhe são próximos. Todos temos motivo para nos preocupar com o destino de qualquer vida humana, mesmo que seja de um estranho, e de esperar que seja uma vida bem-sucedida. O segundo princípio reconhece essa importância objetiva, não obstante, insiste que essa pessoa – a pessoa em foco – tem uma responsabilidade especial por todas as vidas, e que, devido a essa responsabilidade especial, ela tem o direito de tomar decisões fundamentais que defi nam, para ela, o que seria uma vida bem-sucedida. Se adotarmos esses dois princípios do individualismo ético como guias fundamentais na construção de uma teoria da moralidade política, esta será uma teoria igualitária, pois insistirá que o governo deve tratar a vida de cada pessoa que governa como tendo grande e igual importância, e construir as suas estruturas econômicas e outras estruturas e políticas com esse princípio igualitário em mente. E também será uma teoria liberal, pois insistirá que o governo deve fi nalmente deixar as pessoas livres para tomar decisões que defi nam os parâmetros de êxito de suas próprias vidas. (DWORKIN, 2010c, p. 639)

Como se percebe, a compreensão dworkiniana abre plenos espaços à interpretação construtiva e prospectiva tanto dos direitos humanos quanto dos fundamentais e de personalidade, permitindo assim a integração de dimensões interpretativas de modo coerente e coeso, com ressignifi cação múltipla dos valores políticos, democráticos, comunitários e humanistas. A consideração pelo indivíduo não se reduz a individualismo sem consciência das dimensões partilhadas e comunitárias, integrando a pessoa no interesse recíproco de êxito das vidas individuais, soma.

Para Dworkin, a integração dos valores da fi losofi a política requer uma construção interpretativa em que os conceitos interpretativos, após problematizados, possuam sentidos

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que se conjuguem mutuamente, e é nesta coerência que se estabelecerá a totalidade da moralidade política compartilhada.

Esta totalidade se articula na metáfora de uma cúpula geodésica, estrutura leve e protetora, que se assenta em tetraedros encaixados em uma forma global esférica, integrada e holística. A imagem proposta por Dworkin, assim, remete a conteúdos valorativos, integrando inclusive a ética na formação da estrutura política da comunidade. Esta coligação de fatores, para Dworkin, formaria uma estrutura humanista vasta, em que se articula tanto o direito quanto a moral e a política.

A fi losofi a política que pretende compreender melhor os valores políticos deve incorporar seu próprio trabalho nessa grande estrutura [nos termos do autor, valores integrados compreendidos de modo holístico e interpretativo, segundo um modelo de cúpula geodésica (p. 227)]. Deve almejar, primeiro, elaborar concepções ou interpretações de cada um desses valores que fortaleçam os outros – por exemplo, uma concepção de democracia que seja útil à igualdade e à liberdade, e concepções de cada um desses outros valores que sejam úteis à democracia assim concebida. Além disso, seu objetivo deve ser elaborar essas concepções políticas como parte de uma estrutura de valor ainda mais inclusiva, que ligue a estrutura política não apenas à moral em termos mais gerais, mas também à ética. Tudo isso, sem dúvida, parece impossivelmente e, talvez, até mesmo desagradavelmente holístico. Mas não vejo de que outra maneira os fi lósofos podem abordar a tarefa de atribuir o máximo possível de sentido crítico a quaisquer segmentos dessa vasta estrutura humanista, que dirá dela toda. Se compreendermos que essa tem sido a responsabilidade coletiva dos fi lósofos ao longo do tempo, cada um de nós perceberá melhor nossos próprios papéis individuais, periféricos e incrementais. (DWORKIN, 2010a, p. 228) [Gifou-se].

Esta integração proposta, que representa uma fusão de horizontes hermenêuticos dos mais diversos valores democráticos e jurídicos reciprocamente pensados, redunda igualmente em um único ideal humanista que inspira toda a construção proposta pelo fi lósofo.

Este modo de compreender, mais integrativo e cooperativo do que confl itual, na interrelação dos valores políticos e jurídicos, reúne um único ideal, a partir do que se podem coordenar valores tradicionalmente vistos como opositores, como é o caso da liberdade e da igualdade. O ideal humanista informa, pois, uma conciliação destes, reunidos pelo mesmo ideal, reverberando um norte hermenêutico necessário, por exemplo, para se compreender a convivência de valores no texto constitucional, por exemplo.

De qualquer forma, meu argumento não pretende subordinar a liberdade à igualdade, mas, pelo contrário, demonstrar que embora seja comum distinguirmos essas duas virtudes nas discussões e nas análises políticas, elas expressam mutuamente aspectos de um único ideal humanista. (DWORKIN, 2010c, p. 178). [Grifou-se]

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Tal concepção coloca os valores um em ordem de efetividade do outro, ao exemplo da liberdade poder ser pensada como meio possível de redução da desigualdade, de modo que o trabalho fi losófi co consiste justamente em coser estes elementos conceituais, construindo a normatividade tendo por vistas a concreção efetiva de seus preceitos.

Imaginemos porém que a estratégia dos interesses não possa, afi nal, ter êxito na proteção de nossas liberdades fundamentais no real mundo real, como afi rmei que não poderia. Então, quem se sente atraído pela liberdade será tentado a uma opção ainda mais radical. Podem encarar de maneira nova, e mais aguda, o ideal humanista que aceita o princípio igualitário abstrato como requisito absoluto do governo justo ou como qualifi cado apenas nos modos não relevantes para a liberdade. Talvez devêssemos, afi nal, tentar descobrir algum valor na liberdade que a deixe imediatamente independente da igualdade e também das vantagens que traz à vida de cada pessoa. Portanto, muito gira em torno de como a igualdade de recursos responde a nossa nova pergunta. A liberdade pode encontrar um compromisso adequado, no real mundo real, para reduzir a desigualdade nele encontrada? (DWORKIN, 2010c, p. 239) [Grifou-se]

Ora, as categorias de direitos subjetivos trabalham justamente com o desafi o dos conceitos interpretativos.

Alguns exemplos da fortuna axiológica podem ser vistos, por exemplo, no orbe dos direitos humanos, sem prejuízo, como veio se afi rmando, dos direitos fundamentais e de personalidade, que permitem similar leitura.

Deste modo, destaca-se a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que estabelece os vínculos entre reconhecimento, estima, respeito, compromisso, consciência e compreensão, ou seja, conceitos morais e hermenêuticos:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos da pessoa resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que as pessoas gozem de liberdade de palavra, crença e de liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum;

[...]

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso. [Grifou-se]

A Declaração e Programa de Viena de 1993 insculpiu importantes marcos hermenêuticos, seja por conferir a natureza jurídica dos direitos subjetivos, seja na medida

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em que se fomenta a interpretação sistemática, com relação a demais conceitos políticos fundamentais, interligando-se democracia, desenvolvimento, direitos e liberdades, em concepção similar a de Ronald Dworkin:

5. Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todo os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem os seus sistemas políticos, econômicos e culturais.[...]8. A democracia, o desenvolvimento e o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais são conceitos interdependentes que se reforçam mutuamente. A democracia se baseia na vontade livremente expressa pelo povo de determinar seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e em sua plena participação em todos os aspectos de suas vidas. Nesse contexto, a promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em níveis nacional e internacional, devem ser universais e incondicionais. A comunidade internacional deve apoiar o fortalecimento e a promoção de democracia e o desenvolvimento e respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais no mundo inteiro. [Grifou-se]

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 também prescreve importante elemento coesivo, em sua exposição de motivos:

Os deveres de ordem jurídica dependem da existência anterior de outros de ordem moral, que apoiam os primeiros conceitualmente e os fundamentam.

Desta forma, o humanismo dworkiniano se apresenta como atitude do direito e modo de construção da normatividade a partir de horizontes maiores, políticos e morais, da comunidade política, que devem ser estabelecidos de modo recíproco e inter-relacionado, fomentando o fortalecimento da mentalidade democrática e dos valores veiculados com as preocupações das sociedades igualmente democráticas e centradas no valor da pessoa humana, da liberdade, da igualdade e da responsabilidade, envoltos em seus desdobramentos e projeções. Os diplomas de direito internacional dos direitos humanos corroboram esta visão por meio de suas recomendações hermenêuticas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAISA teoria dworkiniana, ou sua cosmovisão própria, embasada na noção de igualdade

enquanto virtude indispensável para haver a soberania democrática, permite, além de pensar o humanismo jurídico atual, discutir com complexidade problemas igualmente

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ricos em matizes, recorrendo-se aos mais diversos entrelaces argumentativos conceituais, diferenciando-se, pois, pela própria estrutura e organização estrutural, da mera subsunção dissertativa.

Como destaca o próprio fi lósofo, as virtudes políticas requerem o pensamento conjunto em que uma concepção fortaleça a outra, em uma estrutura humanista fortalecida, de implicações mútuas, ao modelo da cúpula geodésica, que congrega a melhor sustentação com o emprego da estrutura mais leve e simples, e que é vocacionada à proteção arquitetônica do que estiver dentro de si.

Com isso, pode-se visualizar no autor uma díade densidade teórica – aplicação pragmática, o que indica o potencial transubstancial das categorias do pensamento para a sua realização concreta, que passa efetivamente pela habilidade do intérprete-argumentador em articular tais dimensões.

No pensamento de Dworkin, assim, o manejo dos conceitos interpretativos (liberdade, igualdade, responsabilidade, democracia, direito, humanismo), que são problemáticos em essência e que demandam o movimento do intérprete, é cabal para a própria estrutura axiológica que, em último caso, é uma estrutura humanista, porque não se desprende do valor intrínseco da vida humana, em todos os seus desdobramentos.

A atitude interpretativa se insere neste labor e esforço, posto que o sentido de tais conceitos se fi xa na prática argumentativa, estabelecendo compromissos e esclarecendo propósitos, permitindo, ainda, verifi car legitimidades de pleitos específi cos, contemporizando o espaço de divergências, sem o qual insubsiste a democracia.

O corpo de atitudes que constitui a concepção do direito, neste contexto, permite os mais amplos manejos dos sentidos que se possa depreender dos direitos humanos, fundamentais e de personalidade, fomentando, assim, interpretações jurídicas comprometidas com a manutenção das vidas afi rmadas e transformação das vidas negadas (LUDWIG, 2006), conforme visto.

Deste sentido, podem-se depreender alguns dos préstimos fi losófi cos da teoria dworkiniana, ainda que neste artigo brevemente explorada pelo interesse do sentido do ideal e estrutura humanistas fornecidos pelo autor. A partir do modo de interpretação sugerida pelo autor, é possível concatenar as relações recíprocas entre os valores, regras e princípios jurídicos, assim como os políticos, formando uma compreensão da juridicidade possível dos cenários problemáticos, orientando-se assim os entendimentos dos conceitos interpretativos.

Diante do núcleo comum essencial de direitos humanos e liberdades fundamentais, há diferentes rumos de interpretação dos diplomas, em especial as medidas que visam a assegurar, promover e proteger a observância de tais preceitos.

Diante de um eixo básico de integração de direitos-deveres se têm como valores internacionais os princípios da paz, igualdade, da liberdade e da dignidade, assim como liberdade do temor e da miséria, em conjunto à plena e absoluta vedação de quaisquer tratamentos cruéis, degradantes e desumanos e autodeterminação dos povos, a partir

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do que se assentam os direitos à vida, à segurança, à liberdade, à não discriminação, à identidade cultural, à nacionalidade, à propriedade, à honra, à vida privada, à alimentação, à educação, ao trabalho, à remuneração digna, ao descanso, à moradia habitável, à fruição e participação culturais, ao asilo político, ao célere atendimento dos serviços públicos, à petição, ao devido processo, à previdência social, à saúde; e as liberdades de crença, de pensamento, de associação, de trânsito, de investigação, opinião, expressão, criação.

O domo geodésico humanista, assim, que é expressão da integridade do direito, fortalece-se pela função própria da cúpula, que é a de tutela do seu interior, no caso jurídico, o ser humano, em todas as suas projeções individuais e coletivas, religado ao indispensável contexto do meio ambiente e demais formas de vida, posto que o humanismo atual não se reduz a antropocentrismo, mas sim a uma abordagem integrada. É a partir de leituras em que se enfrente tal complexidade se pode identifi car o âmbito de preocupações do humanismo dworkiniano.

REFERÊNCIASBRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2007.DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Original: A Matter of Principle, 1985).______. O direito da liberdade. A leitura moral da constituição norte-americana. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Original: Freedom’s Law, 1996).______. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Original: Law’s Empire, 1986).______. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. (Original: Life’s Dominion, 1993).______. A justiça de toga. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010a. (Original: Justice in Robes, 2006).______. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 3.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010b. (Original: Taking Rights Seriously, 1977).______. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. 2.ed. WMF Martins Fontes, 2010c. (Original: Sovereign Virtue, 2000). LUDWIG, Celso Luiz. Para uma filosofia jurídica da libertação. Paradigmas da filosofia, filosofia da libertação e direito alternativo. Florianópolis: Conceito, 2006.SUPIOT, Alain. Homo juridicus. Ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

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Democracia, garantismo e direitos fundamentais: uma observação do papel da jurisdição no garantismo de Ferrajoli

Isadora Ferreira Neves

RESUMOO presente artigo objetiva a abordagem do papel que exerce a jurisdição no paradigma

teórico garantista proposto por Luigi Ferrajoli. O trabalho se inicia com a leitura do que Ferrajoli entende por democracia, através dos seus conceitos e classificações, passando posteriormente à abordagem da jurisdição e do garantismo, para problematizar a forma como essas definições estão intrinsecamente relacionadas na construção do papel da atividade jurisdicional no paradigma garantista. Primeiramente, faz-se de uma descrição geral da teoria de Ferrajoli, passando à sua classificação do conceito de democracia irradiado entre democracia formal ou procedimental, democracia substancial e democracia constitucional. Apresenta-se, ainda, a definição dada pelo autor aos direitos fundamentais, no âmbito da teoria do direito, do direito positivo e da filosofia política, compondo a esfera do indecidível, a ser tutelada pela atividade jurisdicional. O trabalho objetiva, por fim, compreender como se forma o paradigma teórico garantista, abordando os seus aspectos principais e enquadrando a jurisdição nesse contexto para refletir sobre as peculiaridades da atividade jurisdicional com o advento do garantismo.

Palavras-chave: Garantismo. Jurisdição. Democracia.

Democracy, guarantism and fundamental rights: An observation of the role of the jurisdiction under the Ferrajoli’s guarantism

ABSTRACTThis article seeks to understand the approach of the role that the jurisdiction exercises in the

theoretical guarantist paradigm proposed by Luigi Ferrajoli. This paper Begins with a reading of what Ferrajoli understands as democracy, beyond its concepts and classification, passing after to the approach of the jurisdiction and guarantism, to problematize the ways of how these definitions are intrinsically related to the construction of the role of the jurisdictional activity in the guarantist paradigm. First, it makes a general description of Ferrajoli’s Theory, through its classification of the democracy concept irradiated between formal or procedural democracy, substantial democracy and constitutional democracy. This paper presents the author’s definition of fundamental rights, under the theory of law, positive law and political philosophy. The article seeks to understand how the theoretical guarantist paradigm gains its forms, addressing the main aspects and placing the jurisdiction in this context in order to ponder about the peculiarities of the jurisdiction activity with the advent of the guarantism.

Keywords: Guarantism. Jurisdiction. Democracy.

Isadora Ferreira Neves é Mestranda em Direito Público pela UNISINOS, Especialista em Direito Público pela FAINOR, Graduada em Direito pela UESC, Servidora do Ministério Público do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]

Direito e Democracia v.13 n.1 p.109-123 jan./jun. 2012Canoas

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Direito e Democracia, v.13, n.1, jan./jun. 2012110

1 INTRODUÇÃOO presente trabalho objetiva a abordagem do papel que exerce a jurisdição no

paradigma teórico garantista proposto por Luigi Ferrajoli. Para tanto, o trabalho inicia com a leitura do que Ferrajoli entende por democracia, através de uma leitura dos seus conceitos e classifi cações, passando posteriormente à abordagem da jurisdição e do garantismo, para problematizar a forma como essas defi nições estão intrinsecamente relacionadas na construção do papel da atividade jurisdicional no paradigma garantista.

Primeiramente, faz-se de uma descrição geral da teoria de Ferrajoli a partir do prólogo de Miguel Carbonell à obra “Democracia y Garantismo”, passando à sua classifi cação do conceito de democracia bipartido entre democracia formal ou procedimental e democracia substancial. A primeira é regida pela vontade da maioria, enquanto à democracia substancial é adicionada a preocupação com o conteúdo do que é decidido, tanto na esfera pública quanto na esfera privada.

É a partir da sua classifi cação de democracia e da noção de democracia substancial que Ferrajoli constrói o conceito de democracia constitucional, permeada por um sistema de limites e vínculos às instituições públicas, vínculos esses dados pelos direitos fundamentais positivados nas Constituições rígidas no constitucionalismo pós-guerra.

Apresenta-se, ainda, a defi nição dada pelo autor aos direitos fundamentais, no âmbito da teoria do direito, do direito positivo e da fi losofi a política, para concluir que os direitos fundamentais são direitos universais, indisponíveis e inalienáveis, que são atribuídos diretamente pelas normas jurídicas a todos enquanto pessoas, quer se trate de direitos negativos (direitos de liberdade) ou direitos positivos (direitos sociais). São os direitos fundamentais que compõe a esfera do indecidível, a ser protegida pela atividade jurisdicional.

O trabalho objetiva, por fi m, compreender como se forma o paradigma teórico garantista, abordando os seus aspectos principais e enquadrando a jurisdição nesse contexto para refl etir sobre as peculiaridades da atividade jurisdicional com o advento do garantismo. Nesse contexto, cabe ao Judiciário uma função de destaque na tutela dos direitos fundamentais e no controle do exercício legal dos poderes público, o que não se confunde, todavia, com um Judiciário carente de limitações, uma vez que o sistema de vínculos do paradigma garantista abrange todas as esferas estatais, alcançando também a atividade jurisdicional.

2 DEMOCRACIA E GARANTISMOMiguel Carbonell (2008, p.13-21), no prólogo à obra de Ferrajoli, afi rma que

“Democracia y Garantismo” apresenta a trajetória teórica de Ferrajoli nos anos que vão do lançamento da obra “Direito e Razão” até o lançamento de “Principia Iuris”. Manifesta ainda a sua característica de ser um jurista prático, imerso na tarefa de observar o papel dos juízes no Estado Constitucional de Direito e também a sua característica de ser um cidadão cosmopolita militante (dedicado ao trabalho de articular uma sociedade civil sem fronteiras).

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A seleção dos textos demonstra que o itinerário intelectual de Ferrajoli se nutre de uma sólida formação teórica. A arquitetura do edifício conceitual e analítico ferrajoliano se baseia, contudo, na noção de democracia constitucional. Desta forma, é possível perceber a sua transição desde o garantismo penal até a construção de um paradigma completamente novo de teoria do direito e teoria da democracia, ou de teoria da democracia constitucional, contemplando os direitos fundamentais e a divisão de poderes, ou seja, trabalhando com a noção de democracia em sua dimensão substancial.

Carbonell (2008, p.14) destaca, ainda, a veia analítica de Ferrajoli, manifesta por um rigor analítico no uso de uma lógica simbólica, presente principalmente no “Principia Iuris”, dedicado à demonstração de fórmulas que axiomatizam a sua teoria do direito e da democracia.

Como um jurista prático, Ferrajoli é ocupado em dar soluções concretas a problemas igualmente concretos e, em particular, imerso na tarefa de confi guração do papel dos juízes no Estado Constitucional de Direito. Não se trata, entretanto, da defesa de uma posição invasiva da jurisdição sobre a política. Pelo contrário, se trata de assegurar âmbitos claramente diferenciados entre uma e outra: a política pode chegar até onde lhe permite a Constituição, entendida como norma encarregada de delimitar o perímetro da ferrajoliana esfera do indecidível.

A jurisdição, por sua vez, deve atuar de tal maneira que não sufoque a democracia por excesso nem por omissão. O terceiro vetor que está presente na obre de Ferrajoli é o de cidadão cosmopolita militante, profundamente dedicado a diversas articulações de uma sociedade civil sem fronteiras.

Para Carbonell (2008, p.19), a veia de jurista cosmopolita fi rme na linha dos princípios que Ferrajoli encarna de maneira exemplar é mais necessária do que nunca, por acrescentar que a ciência jurídica é, no paradigma do Estado Constitucional, uma espécie de metagarantia, uma vez que não tem uma função meramente contemplativa de seu objeto de estudo, e sim contribui de forma decisiva para criá-lo.

2.1 A dimensão formal e a dimensão substancial da democraciaPara compreender o papel dos direitos fundamentais e da jurisdição na teoria

ferrajoliana é imprescindível que se entenda o que o autor conceitua como democracia, classifi cada em sua dimensão formal e substancial.

Primeiramente, Ferrajoli (2008, p.76) recorda a concepção dominante de democracia, segundo a qual esta seria um método de formação de decisões coletivas, ou um conjunto das regras que atribuem ao povo (ou seja, à maioria) o poder de – diretamente ou através de representantes – assumir decisões. A esta acepção Ferrajoli dá o nome de acepção formal ou procedimental da defi nição de democracia.

A democracia em sua dimensão formal ou procedimental é concebida tendo como base as formas e os procedimentos idôneos para garantir a vontade popular: tem como

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fundamento o quem (povo e seus representantes) e o como (a regra da maioria) das suas decisões, independentemente de seus conteúdos, quaisquer que eles sejam. Nesse sentido, a hipótese de um sistema no qual se decidisse por maioria a supressão de uma minoria seria, à luz desse critério, democrática (FERRAJOLI, 2008, p.76).

Ferrajoli (2008, p.77), porém, não descarta a compreensão formal da democracia, pelo contrário: para ele, a dimensão formal expressa uma característica necessária, se trata de uma conditio sine qua non, na ausência da qual não se pode falar em democracia. A dimensão formal, contudo, não é sufi ciente para identifi car todas as condições na presença das quais um sistema político é qualifi cado como democrático.

Isso porque, para Ferrajoli (2008, p.77), a dimensão exclusivamente formal sofre de duas aporias: a primeira é gerada pela incapacidade de tal concepção de dar conta das atuais democracias constitucionais, enquanto a segunda se refere à própria sobrevivência da democracia política.

Para o autor (FERRAJOLI, 2008, p.78), na ausência de limites de caráter substancial, ou seja, de limites de conteúdo das decisões legítimas, uma democracia pode não sobreviver, pois sempre será possível, em princípio, que os métodos democráticos suprimam os próprios métodos democráticos.

Para comprovar estas aporias da democracia em sua versão exclusivamente formal ou procedimental, o autor cita como exemplo as experiências do nazismo e do fascismo no século passado, que conquistaram o poder em formas democráticas para então entregá-lo democraticamente a um chefe que suprimiu a democracia. Sendo assim, o caráter formal e procedimental da decisão por maioria não é sufi ciente nem no plano empírico (com referência às atuais democracias constitucionais), nem no plano técnico. Ferrajoli (2008, p.78) afi rma, então, que um regime democrático requer, ao menos, que à maioria seja negado o poder de suprimir o poder da própria maioria.

Essas contradições lógicas são apontadas para embasar a afi rmação de que são necessários traços substanciais para toda defi nição teórica de democracia dotada de adequada capacidade explicativa. A democracia constitucional é, portanto, um paradigma complexo que adiciona à dimensão formal uma dimensão substancial da democracia, referente aos conteúdos ou à substância das decisões: aquilo que a qualquer maioria está, por um lado, proibido e, por outro, lhe é obrigatório decidir (FERRAJOLI, 2008, p.78).

Nesse sentido, o garantismo de Ferrajoli incorpora os direitos fundamentais consistentes em expectativas negativas, cuja violação gera antinomias, bem como os direitos fundamentais consistentes em expectativas positivas (é o caso dos direitos sociais) que impõem vínculos ou obrigações e suja inobservância gera lacunas (FERRAJOLI, 2008, p.79-80).

Os direitos fundamentais são, para Ferrajoli, normas substanciais sobre a produção de outras normas, uma vez que disciplinam não a forma, mas o signifi cado das normas produzidas, condicionando a validade e a coerência com as expectativas formuladas pelos próprios direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2008, p.80).

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É neste ponto que a classifi cação feita por Ferrajoli das dimensões da democracia se entrelaça com a sua noção de esfera do indecidível, tema que ainda será tratado neste trabalho. Ressalte-se, por ora, que o conjunto de normas substanciais circunscreve a esfera do indecidível, determinada pelo conjunto dos direitos de liberdade e de autonomia (enquanto expectativas negativas) e dos direitos sociais (enquanto expectativas positivas).

2.2 A democracia constitucionalDo procedimento de reforma da Constituição, se confrontam duas concepções

de democracia: a democracia majoritária (ou plebiscitária) e a segunda concepção que Ferrajoli denomina democracia constitucional.

A democracia em sua concepção plebiscitária consistiria na onipotência da maioria, ou na ideia de soberania popular (FERRAJOLI, 2008, p.25). Desse paradigma surgem algumas consequências: a desqualifi cação das regras e dos limites do Poder Executivo que é expressão da maioria, bem como a ideia de que o consenso da maioria legitima qualquer tipo de abuso.

Esta concepção leva ao rechaço do sistema de mediações, de limites, de contrapesos e de controles que formam a substância daquilo que constitui o que o autor entende como democracia constitucional. Uma conotação plebiscitária e antiparlamentarista da democracia encontra sua expressão mais apropriada no presidencialismo, ou seja, na delegação a um chefe assumido como expressão direta da soberania popular (FERRAJOLI, 2008, p.26).

Esta ideologia da maioria presente na cultura política italiana representa, por outro lado, uma ideia antiga na história do pensamento político: a ideia de governo dos homens contraposta à de governo das leis (FERRAJOLI, 2008, p.24). Tal concepção refl ete ainda uma ilusão que sempre volta a ser proposta em momentos de crise da democracia: basta recordar a polêmica, no início dos anos trinta, entre Hans Kelsen, o maior jurista do nosso século, e Carl Schimitt.1

Evidentemente, tal concepção da democracia como onipotência da maioria é abertamente inconstitucional, já que a Constituição é justamente um sistema de limites e vínculos a todo poder. Essa concepção tem uma inevitável conotação absolutista que, cada vez mais, vem identifi cando-se para o senso comum como a ausência de regras e limites à livre iniciativa (FERRAJOLI, 2008, p.26).

Está claro, portanto, que a democracia plebiscitária é incompatível com própria ideia de Constituição, designando na verdade dois absolutismos convergentes: o dos poderes políticos da maioria e o dos poderes econômicos do mercado.

1 Sobre o debate constitucional entre Kelsen e Schimitt na primeira metade do século XX acerca de quem deve ser o Guardião da Constituição, ocasião em que Kelsen afi rma que deve ser o Guardião um Tribunal Constitucional, enquanto Schimitt, por outro lado, aponta que quem deve ser o Guardião é o Presidente do Reich, discussão esta oriunda da interpretação dada aos arts. 19 e 48 da Constituição de Weimar, ver: KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007; SCHMITT, Carl. La defensa de la Constitución. Madrid: Tecnos, 1983. 251 p.Título original: Der hüter der verfassung. Tübingen.

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Para Ferrajoli (2008, p.27), essência do constitucionalismo e do garantismo, ou seja, daquilo que tem se chamado democracia constitucional, reside precisamente no conjunto de limites impostos pelas constituições a todo poder, que postula em consequência uma concepção de democracia como sistema frágil e complexo de separação e equilíbrio entre poderes, de limites de forma e de substância a seu exercício, da garantia dos direitos fundamentais e de técnicas de controle e de reparação contra suas violações.

Esta é a substância da democracia constitucional: o pacto de convivência baseado na igualdade de direitos, no Estado Social – mais que liberal – de Direito, garantido pelas Constituições, contendo obrigações para os legisladores, de cuja observância depende a sua legitimação.

Uma data importante de transformação na estrutura do direito e na natureza da democracia é certamente 1945, ou o quinquênio entre 1945 a 1949, período posterior à derrota do nazismo e do fascismo. Compreende-se que o consenso das massas sobre o qual estavam fundadas as ditaduras fascistas, de cunho majoritário, não pode ser a única fonte de legitimação do poder. Revela-se, então, o signifi cado da Constituição como um limite ou vínculo aos poderes públicos (FERRAJOLI, 2008, p.28).

Redescobre-se, em nível não só estatal, mas também internacional, o valor da Constituição como norma dirigida a garantir a divisão de poderes e direitos fundamentais de todos, exatamente os princípios negados pelo fascismo.

Outro ponto relevante é o caráter rígido do constitucionalismo, ou a garantia dessa rigidez. Tal aspecto tem como consequência a sujeição de todos os poderes ao direito, inclusive o poder legislativo, no plano do direito interno e também do direito internacional. A rigidez das Constituições signifi ca o reconhecimento de que estas são normas supraordenadas à legislação ordinária, através da previsão, por um lado, de procedimentos especiais para a sua reforma, e, por outro, da instituição do controle de constitucionalidade das leis por parte dos tribunais constitucionais (FERRAJOLI, 2008, p.29).

Essa rigidez se opõe à cultura anterior, e que as cartas constitucionais eram consideradas apenas documentos políticos, tendo mesma força de leis ordinárias. O legislador, ou na melhor das hipóteses o parlamento, era por sua vez concebido como onipotente, em consequência da política cujo instrumento era o direito. Como resultado de uma concepção formal e procedimental da democracia, identifi cada unicamente como o poder do povo e com os procedimentos e mecanismos representativos dirigidos a assegurar o poder da maioria.

Tudo isso muda radicalmente com a afi rmação, ou com o reconhecimento, da Constituição como norma suprema, à qual todas as outras normas estão rigidamente subordinadas. Graças à garantia da rigidez constitucional, a legalidade muda de natureza: não é só condicionante e disciplinante, mas ela mesma é condicionada e disciplinada por vínculos jurídicos não só formais, mas também substanciais.

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Essa legalidade já não é mais produto do legislador, mas também um limite e vínculo para o legislador. Daí que o direito resulta positivado não só em seu ser, ou seja, em sua existência, mas também em seu dever ser, ou seja, em suas condições de validade. Não é só positivado o “quem” e “como” das decisões, mas também o “que” não deve ser decidido (no caso dos direitos de liberdade), ou deve ser decidido (a respeito da satisfação dos direitos sociais).

Ferrajoli defi ne esta concepção do direito como sistema ou paradigma garantista, em oposição àquele paleo-positivista do Estado Liberal pré-constitucional (FERRAJOLI, 2008, p.30)

Precisamente neste “direito acima do direito” (FERRAJOLI, 2008, p.30), neste sistema de normas metalegais destinadas aos poderes públicos e, sobretudo, ao legislador consiste a constituição uma convenção democrática acerca do que é indecidível para qualquer maioria, porque certas coisas não podem ser decididas e outras não podem não ser decididas.

Há uma transformação na natureza da jurisdição e na relação o juiz e a lei, que já não consiste, como no paradigma juspositivista, na sujeição à letra da lei sem importar qual seja o seu signifi cado, mas sobretudo na sujeição à constituição, que impõe ao juiz a crítica das leis inválidas através da sua reinterpretação em sentido constitucional ou a denúncia da sua inconstitucionalidade.

Transforma-se ainda o papel da ciência jurídica, que resulta investida de uma função não somente descritiva, como no paradigma paleojuspositivista, lhe cabendo uma crítica às antinomias e às lacunas da legislação vigente em respeito aos imperativos constitucionais, projetando técnicas de garantias que são necessárias para superar aquelas antinomias e lacunas. A própria natureza da democracia sofre mudanças. Com efeito, a constitucionalização rígida dos direitos fundamentais impõe obrigações e proibições aos poderes públicos.

A democracia adquire, assim, uma dimensão substancial, que se agrega à tradicional dimensão política, meramente formal ou procedimental. A história da Idade Moderna nos faz recordar que o direito e a democracia são construções humanas: dependem da política e da cultura, da força dos movimentos sociais e do empenho de cada um de nós (FERRAJOLI, 2008, p.40).

Muda, fi nalmente, e como consequência de tudo que foi abordado, a relação entre a política e o direito, dado que já não é o direito que se subordina à política como instrumento, e sim a política se converte em instrumento de atuação do direito, submetida aos limites impostos pelos princípios constitucionais: vínculos negativos, tais como os gerados pelos direitos de liberdade, que não podem ser violados, e vínculos positivos, tais como os gerados pelos direitos sociais que devem ser satisfeitos (FERRAJOLI, 2008, p.32).

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2.3 Os direitos fundamentais e a esfera do indecidível A partir da definição de Ferrajoli de democracia formal ou procedimental,

democracia substancial e democracia constitucional, percebe-se o papel central que os direitos fundamentais exercem em sua teoria. De fato, os direitos fundamentais são, para este autor, aquilo que dá conteúdo à democracia como um sistema de controles e vínculos, bem como aquilo cuja tutela é função primordial da atividade jurisdicional.

Para responder ao questionamento sobre o que são direitos fundamentais, Ferrajoli (2008, p.42) admite que essa resposta possa enveredar por três correntes distintas: primeiramente a resposta pode ser dada pela teoria do direito, em segundo lugar pelo direito positivo e em terceiro pela fi losofi a política.

No plano da teoria do direito, a defi nição mais difundida dos direitos fundamentais é a que os identifi ca com os direitos que são titularizados universalmente a todos enquanto pessoas, ou enquanto cidadãos com capacidade de agir e que são, portanto, inalienáveis e indisponíveis (FERRAJOLI, 2008, p.41).

No plano do direito positivo, são direitos fundamentais, no ordenamento internacional, os direitos universais e indisponíveis estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, nos tratados internacionais e nas demais convenções internacionais sobre os direitos humanos.

A terceira resposta que pode ser dada à pergunta sobre o que sejam os direitos fundamentais advém da fi losofi a política, que aprofunda a questão, questionando quais os direitos que devem ser garantidos como fundamentais.

Para tanto, Ferrajoli (2008, p.43) esclarece que o primeiro dos critérios é o nexo entre direitos humanos e paz, instituído no preâmbulo da Declaração Universal de 1948. Devem estar garantidos como direitos fundamentais todos os direitos vitais cuja garantia é condição necessária para a paz: o direito à vida e à integridade pessoal, os direitos civis e políticos, os direitos de liberdade, mas também os direitos sociais necessários à sobrevivência.

O segundo critério é o nexo entre os direitos e a igualdade, tanto no âmbito dos direitos de liberdade quanto no âmbito dos direitos sociais, responsáveis por garantir a redução das desigualdades econômicas e sociais. O terceiro critério se concentra no papel dos direitos fundamentais como lei do mais fraco2, segundo o qual todos os direitos fundamentais são leis do mais fraco, como alternativa à lei do mais forte.

Ferrajoli (2008, p.61) esclarece, então, qual o seu conceito de direitos fundamentais, defi nindo-os como opostos aos direitos patrimoniais, sendo eles direitos universais,

2 Na tradução espanhola a expressão utilizada é “leyes del más débil”, neste trabalho traduzida como lei do mais fraco. No texto original: “El tercer criterio es el papel de los derechos fundamentales como leyes del más débil. Todos los derechos fundamentales son leyes del más débil como alternativa a la ley del más fuerte que regiría en su ausencia: en primer lugar el derecho a la vida, contra la ley de quien es más fuerte físicamente; en segundo lugar los derechos de inmunidad y de libertad, contra el arbitrio de quien es más fuerte políticamente; en tercer lugar los derechos sociales, que son derechos a la supervivencia contra la ley de quien es más fuerte social y económicamente” (FERRAJOLI, 2008, p.43-44).

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indisponíveis e inalienáveis, que são atribuídos diretamente pelas normas jurídicas a todos enquanto pessoas, quer se trate de direitos negativos (direitos de liberdade) ou direitos positivos (direitos sociais)3.

Política e mercado confi guram, portanto, a esfera do decidível, rigidamente delimitada pelos direitos fundamentais, os quais, justamente por estarem garantidos a todos e subtraídos da disponibilidade do mercado e da política, determinam a esfera do que não deve ser decidido, de forma que nenhuma maioria, e nem seque a unanimidade, pode decidir legitimamente os violar ou satisfazer.

O constitucionalismo não só é uma conquista e legado do passado, mas talvez o mais importante legado do nosso século. É também, como crê Ferrajoli (2008, p.34), antes de tudo, um programa para o futuro em um duplo sentido.

Em primeiro lugar, no sentido de que os direitos fundamentais incorporados pelas Constituições devem ser garantidos e satisfeitos concretamente: o garantismo, nesse aspecto, é outra face do constitucionalismo, dirigido a estabelecer técnicas e garantias idôneas e a assegurar o máximo grau de efetividade aos direitos constitucionalmente reconhecidos.

Há também o sentido de que o paradigma da democracia constitucional é um paradigma embrionário, que pode e deve ser estendido em uma tríplice direção: primeiramente há a garantia de todos os direitos, não só os direitos de liberdade mas também os direitos sociais; em segundo lugar frente a todos os poderes, não só frente aos poderes públicos mas também frente aos poderes privados; em terceiro lugar, a todos os níveis, não só no direito estatal mas também no direito internacional.

Desta maneira, para Ferrajoli (2008, p.80), o conjunto destas normas substanciais consistentes nos direitos fundamentais é que compõe a esfera do indecidível que, determinada pelo conjunto dos direitos de liberdade e de autonomia, impedem, enquanto expectativas negativas, decisões que possam lesioná-los ou reduzi-los. Em relação ao conjunto dos direitos sociais, estes compõem a esfera do indecidível enquanto expectativas positivas e demandam decisões dirigidas a satisfazer estes direitos.

O que está fora da esfera do indecidível, no contexto da teoria de Ferrajoli (2008, p.81), são conteúdos em que se é legítimo o exercício dos direitos de autonomia, quais sejam: a autonomia política, mediada por representação, na produção das decisões públicas, bem como a autonomia privada, segundo as regras do mercado, na produção das decisões privadas.

3 No texto original: “Entiendo por derechos fundamentales, en oposición a los derechos patrimoniales, como la propiedad y el crédito, que son derechos singulares que adquiere cada individuo con exclusión de los demás- aquellos derechos universales y, por ello, indispensables e inalienables, que resultan atribuidos directamente por las normas jurídicas a todos en cuanto personas, ciudadanos o capaces de obrar: ya se trate de derechos negativos, como los derechos de libertad, a los que corresponden prohibiciones de lesionar; o de derechos positivos, como los derechos sociales, a los que corresponden obligaciones de prestación por parte de los poderes públicos” (FERRAJOLI, 2008, p.61).

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Os princípios da maioria, a livre iniciativa, a discricionariedade pública e a disponibilidade privada são, em suma, as regras que presidem a esfera do decidível, mas que encontram, entretanto, limites e vínculos insuperáveis na esfera do indecidível (FERRAJOLI, 2008, p.81).

3 JURISDIÇÃO E GARANTISMO

3.1 O garantismo como paradigma teóricoO termo garantia aparece no vocabulário jurídico como a designação de qualquer

técnica normativa de tutela de um direito subjetivo (FERRAJOLI, 2008, p.59). As garantias têm em comum, portanto, o fato de haver sido previstas intencionalmente, com a previsão de que sua falta ocasionaria uma violação do direito que constitui o seu objeto. Elas surgem como refl exo de uma desconfi ança na satisfação e respeito espontâneo dos direito, especialmente no que se refere a direitos fundamentais, bem como no exercício espontaneamente legítimo do poder (FERRAJOLI, 2008, p.62).

Já o termo garantismo aparece associado à tradição clássica do pensamento penal liberal, associada à exigência de tutela do direito à vida, à integridade e à liberdade, frente ao poder punitivo. A teoria de Ferrajoli (2008, p.61), por sua vez, estende a concepção de garantismo para abranger um paradigma da teoria geral do direito que alcança todo o campo dos direitos subjetivos e ao conjunto dos poderes, públicos ou privados, estatais ou internacionais.

O garantismo, nesse sentido, se opõe a qualquer concepção das relações (econômicas e políticas), tanto de direito privado quanto de direito público, fundada no ideal da observância espontânea do direito. O garantismo conduz ao conjunto de limites e vínculos impostos a todos os poderes (públicos ou privados), políticos (de maioria), econômicos (de mercado), no plano estatal ou internacional. Essa tutela se dá por meio dos direitos fundamentais estabelecidos, tanto na esfera privada quanto na esfera pública (FERRAJOLI, 2008, p.62).

Como paradigma teórico, o garantismo impõe vínculos legais e jurisdicionais capazes de impedir a formação de poderes absolutos, públicos ou privados. Seguindo esse raciocínio, Ferrajoli (2008, p.65) observa que o garantismo é, na verdade, uma faceta do constitucionalismo, ou seja: embora as garantias consistam em um sistema de obrigações e proibições, a sua capacidade de vincular os poderes supremos, a começar pelo poder legislativo, depende de seu fundamento positivo rígido em normas superiores, como são as normas constitucionais.

3.2 Jurisdição, democracia e direitos fundamentaisUm fenômeno comum a todas as democracias avançadas é a expansão crescente

do papel da jurisdição. Trata-se de um fenômeno que, por sua vez, está conectado com a expansão do papel do direito como uma técnica de regulação e de limitação dos

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poderes públicos, produzida com o crescimento da complexidade dos atuais sistemas políticos e como consequência do paradigma do Estado de Direito (FERRAJOLI, 2008, p.208).

Ferrajoli (2008, p.208) afi rma que a toda expansão do princípio da legalidade, a cada passo dado na tarefa de limitação e sujeição do poder ao direito, tem correspondido, inevitavelmente, uma ampliação dos espaços da jurisdição. Por outro lado, a atual expansão do papel do direito e da jurisdição se explica por dois fenômenos convergentes e estruturais: a mudança na estrutura do sistema jurídico, produzida na segunda metade deste século com sua evolução nas formas do Estado constitucional de direito; e também a transformação na estrutura do sistema político, produzida pelo contemporâneo desenvolvimento do Estado Social e, em consequência, pela sua intervenção na economia e na sociedade.

A primeira transformação – na estrutura do sistema jurídico – se produz com a introdução, sobretudo depois da segunda guerra mundial, das constituições rígidas, que incorporam princípios e direitos fundamentais como limites e vínculos já não só ao poder executivo e judiciário, mas também ao poder legislativo.

A segunda revolução, produzida no último pós-guerra com as constituições rígidas signifi ca completar o Estado de direito, ou seja, a sujeição à lei de todos os poderes, incluindo o legislativo, que resulta também subordinado ao direito, mais precisamente à constituição, não só no que concerne às formas e procedimentos de formação das leis, mas também no plano dos seus conteúdos.

Por conseguinte, no Estado constitucional de direito o legislador não é onipotente, no sentido de que as leis emanadas por ele não são válidas somente pelo fato de sua entrada em vigor, ou seja, por terem sido produzidas na forma estabelecida nas normas sobre sua produção, mas também por resultarem coerentes com os princípios constitucionais. Tampouco a política é onipotente, ao reverter a sua relação com o direito: também a política e a legislação, que é seu produto, se subordinam ao direito.

Assim, já não é possível conceber o direito como instrumento da política, mas é esta a que deve ser assumida como instrumento para a atuação do direito, especialmente dos princípios e dos direitos fundamentais inscritos nesse projeto, ao mesmo tempo jurídico e político, que é a constituição (FERRAJOLI, 2008, p.210).

O autor (FERRAJOLI, 2008, p.211) afirma que o sistema político sofre transformações relativas à ampliação das funções próprias do Estado Social4, provocadas pelo crescimento do seu papel de intervenção na economia e pelas novas prestações que demandam os direitos sociais constitucionalizados. Esse acúmulo de funções ocorre,

4 A respeito do Estado Social e suas implicações, ver: AVELÃS NUNES, Antonio José. As voltas que o mundo dá: refl exões a propósito das aventuras e desventuras do Estado social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 266p.BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. As crises do Estado e da Constituição e a transformação espaçotemporal dos direitos humanos. 2.ed. Col. Estado e Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.GARCÍA-PELAYO. As transformações do Estado contemporâneo. Tradução Agassiz Almeida Filho. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 247p.

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entretanto, sem a previsão de garantias efetivas para os novos direitos, sendo ausentes os mecanismos efi cazes de controle político e administrativo.

Este fenômeno atribui à jurisdição um novo papel: a defesa da legalidade frente ao abuso de poder. Esse papel central, uma vez que a defesa da legalidade equivale à defesa do princípio da sujeição à lei de todos os poderes públicos, próprio do Estado de Direito, que é, por sua vez, pressuposto essencial da democracia (FERRAJOLI, 2008, p.212).

A atividade jurisdicional atua, nesse sentido, na sujeição à lei por parte de todos os poderes públicos e também como uma forma de limitação à democracia formal, procedimental, ou plebiscitária.

Como visto no tópico 2.2, Ferrajoli entende a democracia em sua dimensão constitucional ou substancial, relativa ao conteúdo do que se é lícito decidir a maioria, ou não decidir, nem mesmo por unanimidade. Essa mudança de paradigmas é que oferece um novo fundamento democrático ao papel do juiz no Estado constitucional de direito, não oposto e sim complementar à dimensão procedimental da democracia política.

O que se percebe da teoria garantista de Ferrajoli é que todos os seus conceitos são intimamente relacionados: a sua concepção de democracia, o papel exercido pelos direitos fundamentais no seu conceito de esfera do indecidível, bem como o seu conceito de garantismo, são noções que infl uenciam diretamente na coerência teórica que tem o papel da jurisdição para Ferrajoli. O entendimento conjunto desses conceitos é, portanto, fundamental.

A partir da sua noção de democracia constitucional ou substancial é que ganha sentido o papel primordial da jurisdição na tutela dos direitos fundamentais e na sujeição dos poderes públicos aos ditames constitucionais. Desse duplo papel da jurisdição democracia (garantidora tanto dos direitos fundamentais como da própria sujeição dos poderes públicos à lei) é que Ferrajoli (2008, p.213) aponta duas consequências.

A primeira está ligada ao novo papel de garantia dos direitos fundamentais a todos e da legalidade dos poderes públicos conferido à jurisdição, como um reforço do fundamento da divisão dos poderes e da independência da atividade jurisdicional. A segunda consequência, também de suma importância, se refere ao aumento do peso da jurisdição no sistema dos poderes públicos relacionado ao fortalecimento do garantismo como fonte de legitimação ou condição de credibilidade do poder judiciário.

No modelo liberal e paleopositivista5 a atividade jurisdicional estava assentada exclusivamente na legalidade de suas decisões e na coerência jurídica e fática de seus pressupostos. Esse paradigma por si só não atende ao caráter contramajoritário dos direitos fundamentais que exige um poder judiciário instituído que possa, por sua vez,

5 Para o entendimento mais completo do uso desse termo por Ferrajoli, ver: FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. Tradução de André Karam Trindade. In: FERRAJOLI, Luigi et al (orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p.13-56.

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contrariar os desígnios da maioria. Por outro lado, o papel de controle da legalidade do poder é obstaculizado por qualquer dependência (direta ou indireta) do magistrado em relação aos demais poderes (FERRAJOLI, 2008, p.213).

Para Ferrajoli (2008, p.215), portanto, não prospera o entendimento da jurisdição como um controle genérico de legalidade apto a provocar invasões na esfera do que é decidível pela política, uma vez que a jurisdição intervém naquilo que à política não é lícito decidir: sobre a invalidade e ilicitude dos atos frente à legalidade constitucional. Para o autor, o que ocorre é que a justiça deixa de ser politizada e os juízes deixam de fazer política no momento em que começam a cumprir com o seus dever de estender o seu controle sobre as ilegalidades perpetradas pelos poderes públicos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da leitura de Ferrajoli, pode-se perceber que o seu garantismo representa

uma espécie de complemento ao Estado de Direito, demandando uma submissão dos poderes ao controle de constitucionalidade. A própria legalidade é também é submetida à coerência com as normas constitucionais, por meio de Constituições rígidas que positivam os princípios e os direitos fundamentais, atuando estes como limites e vínculos à vontade da maioria.

Nesse sentido, faz-se necessária uma leitura atenciosa da cadeia de conceitos da teoria ferrajoliana, uma vez que a percepção adequada do papel da jurisdição no garantismo está diretamente relacionada com a sua defi nição de democracia substancial e constitucional, de direitos fundamentais, da esfera do indecidível, e de como esses conceitos se entrelaçam na defesa de uma atividade jurisdicional responsável pela adequada tutela dos direitos fundamentais e pelo controle da legalidade constitucional dos poderes públicos.

Sendo assim, o paradigma do constitucionalismo rígido limita e vincula o Poder Judiciário, em conformidade com o princípio da separação de poderes e com a natureza cognitiva da jurisdição. Associada ao paradigma garantista, representado pela positivação do dever ser do direito e pela sujeição a limites e a vínculos jurídicos de todos os poderes, a ciência jurídica ganha um papel crítico do direito e de suas antinomias e lacunas. À jurisdição, por sua vez, cabe o dever de remover as antinomias e apontar essas lacunas.

Embora o autor reconheça o papel fundamental que tem a jurisdição no Estado constitucional no que concerne à tutela dos direitos fundamentais e ao controle dos poderes públicos, o preenchimento das lacunas e a resolução das antinomias nas quais elas se manifestam não são confi ados ao ativismo interpretativo dos juízes. Para Ferrajoli, os juízes devem interpretar as leis à luz da Constituição, ampliando ou restringindo o seu alcance normativo de acordo com os princípios constitucionais.

O paradigma teórico garantista envolve, portanto, a elaboração de limites e garantias também ao exercício do poder judicial. Isso porque, no Estado constitucional de direito, a atividade dos juízes está limitada pela lei e vinculada à Constituição. Por outro lado,

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a jurisdição constitucional assume também um papel de destaque no cenário garantista, uma vez que ao Poder Judiciário é atribuída a função de garantia ou tutela dos direitos fundamentais no regime democrático e ainda de controle do exercício legal dos poderes públicos.

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O devido processo constitucional como forma de alcançar a justiça das decisões

Juliana de Brito Giovanetti Pontes

RESUMOO surgimento das Constituições escritas provocou diversas transformações nas ordens

sociais, entre elas a proteção aos direitos e garantias fundamentais que antes não eram previstos no texto constitucional e dificilmente eram assegurados pelo poder público. Com o advento do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo, são incorporados aos sistemas jurídicos elementos cujo objetivo era o de tornar as normas constitucionais mais efetivas e assegurar o cumprimento dos direitos. Consequentemente, foi abandonada a concepção do devido processo legal como elemento exclusivo dos direitos constitucional e processual, passando a ocorrer a análise sistematizada entre o processo e a Constituição, que consiste no aperfeiçoamento das técnicas processuais e conduz ao chamado devido processo constitucional – tutela jurisdicional inserida no âmbito da Constituição. O presente artigo tem por objetivo analisar como tem sido alcançada a justiça das decisões mediante o devido processo constitucional.

Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Direitos fundamentais. Efetividade normativa. Devido processo constitucional.

The constitutional due process as a means of achieving the justice of decisions

ABSTRACTThe emergence of written constitutions caused several changes in the social order, among

them, the protection of fundamental rights and guarantees that were not provided for in the Constitution and were hardly guaranteed by the government. With the advent of neoconstitutionalism and post-positivism, are incorporated into the legal systems of elements whose aim was to make the constitutional rules more effective and ensure the fulfillment of rights. Consequently, the design was abandoned due process of law as unique element of the constitutional and procedural rights, through the systematic analysis to occur between the process and the Constitution, which is the improvement of procedural techniques and leads to the so called constitutional due process – judicial inserted in framework of the Constitution. This article aims to analyze how justice has been achieved through the decisions of constitutional due process.

Keywords: Neoconstitutionalism. Fundamental rights. Effectiveness normative. Constitutional due process.

Juliana de Brito Giovanetti Pontes é Bolsista da CAPES pelo programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Linha de pesquisa: Jurisdição e Direitos Humanos. E-mail: [email protected]

Direito e Democracia v.13 n.1 p.124-137 jan./jun. 2012Canoas

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1 INTRODUÇÃOAs transformações ocorridas nos ordenamentos jurídicos no âmbito do Estado

Democrático de Direito tornaram possível a valorização e a busca pela efetividade dos mandamentos constitucionais. Assim, torna-se possível a relação entre o direito constitucional e o âmbito processual na jurisdição brasileira, ultrapassando a ideia da existência de um campo meramente processual.

Importante aspecto a ser observado foi o referente ao extenso conteúdo axiológico e a ampla proteção aos direitos fundamentais apresentados pelas Constituições que surgiram na fase do pós Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), englobando temas que anteriormente não eram tratados pela Lei Maior, situação esta que ampliou as espécies de direitos constitucionalmente protegidos: os direitos sociais de natureza prestacional, além dos direitos individuais e políticos.

Diferentemente do constitucionalismo, que empregou a limitação ao poder arbitrário estatal e a imposição de Constituições escritas, o neoconstitucionalismo permitiu que o Estado utilizasse mecanismos para harmonizar o equilíbrio social, sem, no entanto, limitar o exercício das garantias previstas na Constituição tanto em relação ao poder público quanto em relação aos indivíduos. Observa-se no neoconstitucionalismo, a busca pela efetividade das normas constitucionais.

2 O FENÔMENO DA EXPANSÃO DO PODER JUDICIÁRIO E SEUS REFLEXOS NAS ORDENS CONSTITUCIONAISO fenômeno de constitucionalização do sistema jurídico possibilitou a realização de

uma interpretação extensiva e abrangente das normas constitucionais pelo Poder Judiciário, ampliando a infl uência das Constituições sobre todo o ordenamento e conduzindo à adoção de novas normas e institutos nos mais variados ramos do Direito.

Com a multiplicação dos direitos fundamentais nos ordenamentos jurídicos pós-positivistas, e assim, marcados pelo neoconstitucionalismo, passou a ser protegida a ideia de que eles são compreendidos por princípios que podem ir de encontro em casos específi cos, tornando-se uma exigência social a aplicação de cada um dos direitos fundamentais (PAULA, 2011, p.271).

Com o advento do pós-positivismo, enfrentou-se a necessidade de desenvolvimento de instrumentos aptos a lidarem com a dialética do direito ao solucionar interesses confl itantes. Além disso, procurou a harmonia entre o direito e a moralidade social. Assim, as novas formas de interpretação das normas ocorre de forma mais legítima e compatível com os fatos sociais através da aplicação dos princípios jurídicos.

Foram reintroduzidas na ordem jurídica as ideias de legitimidade e justiça para a compreensão normativa. Ao mesmo tempo, o sistema jurídico deixou de ser visto como um conjunto formal e fechado de leis, havendo a efetiva utilização dos princípios jurídicos como espécies normativas que incorporam valores. A Ciência Jurídica passou a defender a integração entre as instituições estatais e estes princípios.

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Com a ascensão do neoconstitucionalismo, as normas passam a apresentar um escalonamento entre si, tendo-se a Constituição como regra superior de um ordenamento jurídico, devendo as demais normas – ditas infraconstitucionais – manterem compatibilidade com a Lei Maior; nenhuma outra regra pode apresentar desconformidades com a Constituição. Havendo contradições, serão adotadas medidas visando reparar tal situação, entre elas, a paralisação dos efeitos da norma declarada inválida.

Essa é uma das consequências do princípio da supremacia formal da Constituição, que se tornou o fundamento de validade das normas infraconstitucionais. É também pressuposto do controle constitucional a rigidez da norma vértice do Estado, vez que por meio de processo legislativo mais complexo e diverso ao das leis infraconstitucionais é possível realizar modifi cações no texto da Constituição porque a incompatibilidade existente não tem o potencial de modifi car a obra do Poder Constituinte Originário.

A proteção anteriormente conferida aos direitos fundamentais envolvia o controle feito pelo poder Legislativo. Com a reconstitucionalização ocorrida em alguns ordenamentos jurídicos, os direitos fundamentais passaram a ser protegidos pelo Poder Judiciário contra o poder político majoritário que antes limitava a sua proteção e utilização. Por conseguinte, o poder público passou a cumprir as normas imperativas constitucionais, além de respeitar o caráter obrigatório e vinculativo de suas disposições.

O crescimento da jurisdição constitucional, ocorrido após a 2ª Grande Guerra, possibilitou a criação do Estado Constitucional de Direito. O modelo antes vigente caracterizava-se por ter a Constituição como um documento essencialmente político, cujas normas dependiam da aplicação realizada pelo administrador ou legislador para que pudessem produzir seus efeitos. Nesse período ainda não havia a prática do controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário, resultando no não atendimento das necessidades sociais por parte do Poder Público. Este era o denominado Estado Legislativo de Direito; a centralidade das leis e a supremacia do Poder Legislativo eram características do referido sistema (BARROSO, 2008, p.4).

A Constituição era vista como um documento essencialmente político, uma sugestão à atuação dos Poderes Públicos. A concretização das propostas constitucionais era condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. O Judiciário não possuía qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição.

A partir das transformações ocorridas nos sistemas jurídicos, Tribunais e Cortes Constitucionais passaram a ter sua importância reconhecida quanto ao julgamento e interpretação da norma ápice do ordenamento jurídico: no Estado constitucional de direito a Lei Maior passou a vigorar como norma jurídica, regulando não apenas a produção de leis e atos normativos como também determinando limites para o seu conteúdo e impondo deveres de atuação ao Estado.

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3 AS RELAÇÕES ENTRE CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: DO DEVIDO PROCESSO LEGAL AO PROCESSO JUSTONa nova relação entre Constituição e Processo, a função jurisdicional não fi cou

limitada ao cumprimento das regras e princípios constitucionais. A partir desse momento, os direitos fundamentais passaram a receber também proteção assegurada pelos órgãos jurisdicionais capazes de cumprirem essa função sob o aspecto processual.

O Processo e suas normas procedimentais tiveram o aspecto tutelar atribuído pela ordem jurídica constitucional, passando a serem regulados pelos princípios da Lei Maior. Portanto, a tutela jurisdicional efetiva e justa compreende aquela disponível às partes com o respeito aos mandamentos constitucionais. Com isso, o direito processual e o acesso à justiça passaram a manter conexão com o plano constitucional, observado através da garantia de um processo justo em substituição à ideia do devido processo legal. “É por isso que hoje, em lugar de uma garantia do devido processo legal, se prefere afi rmar que o Estado Democrático de Direito garante o processo justo” (THEODORO JÚNIOR, 2009, p.30) – grifos no original.

Dupla foi a grande mudança de rumo do processo, na segunda metade do Século XX: a) reduziu-se a separação exagerada que se notava no tratamento das fi guras processuais em relação ao direito material, reforçando o papel instrumental do processo na realização e tutela dos direitos subjetivos substanciais, já então permeados de valores humanos e éticos, dando origem ao chamado processo justo; e b) formou-se e consolidou-se o fenômeno da constitucionalização do processo, cujos princípios ganharam assento na sede reguladora dos direitos fundamentais. (THEODORO JÚNIOR, 2009, p.31)

Como resultado, houve o abandono da concepção do devido processo legal como elemento exclusivo do direito constitucional ou processual, passando a haver a análise sistematizada entre o processo e a Constituição, que consiste no aperfeiçoamento das técnicas processuais e conduz ao chamado devido processo constitucional – tutela jurisdicional inserida no âmbito da Constituição.

O devido processo constitucional ou processo justo consiste em uma ampla garantia de natureza fundamental, englobando as garantias processuais previstas na Constituição como forma de assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais e reger os procedimentos desenvolvidos perante a Administração e o Legislativo.

O direito ao processo justo consiste no modelo mínimo de atuação do Estado no âmbito processual; sua observação é imprescindível para que sejam obtidas decisões justas (MITIDIERO, 2011, p.24).

A relação direta entre a Constituição e o Processo ocorre quando o texto constitucional especifi ca direitos e garantias processuais considerados fundamentais, quando também organiza estruturalmente as instituições essenciais à realização da justiça

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e também quando especifi ca meios formais de realização do controle constitucional. Por sua vez, a relação será indireta quando tutelar de modo diverso um certo bem jurídico ou categoria de sujeitos, permitindo ao legislador infraconstitucional a previsão de regras para que o juiz concretize a norma jurídica em cada um dos casos concretos (CAMBI, 2007, p.1).

À Constituição foi atribuída efetividade normativa a partir do momento em que houve a determinação da superioridade de suas normas frente às demais constantes no ordenamento jurídico.

Atualmente, as Constituições apresentam propriedade fi nalística ao concretizar direitos fundamentais e ser um meio para a efetivação do Estado do bem estar social. Estas Leis Fundamentais podem ser analisadas como ideologia constitucional ao expressar uma carga axiológica aceita pelos representantes dos constituintes na fase de sua elaboração. Apresentam também a fi nalidade de regulamentar as relações políticas existentes no âmbito social, representando a judicialização dos fenômenos políticos.

É, por isto, um desafi o que os estudiosos têm enfrentado para, combatendo o imobilismo conceitual, buscar práticas mais adequadas a aquilo que a Constituição coloca, como objetivo fundamental, que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. (CAMBI, 2007, p.20)

Por conseguinte, o crescimento da jurisdição constitucional signifi cou a interpretação e aplicação das normas constitucionais por órgãos da jurisdição e o controle de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público. Através da expansão do Judiciário, foi verifi cada a necessidade de separação entre política e direito. Há por isso consequências próprias do processo de expansão:

A jurisdição constitucional compreende duas atuações particulares. A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempladas. Por exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do Estado, não da União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tributária; ou do direito à liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia. A segunda atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete a utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades (interpretação conforme a Constituição). (BARROSO, 2008, p.5)

4 A NOVA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DIANTE DOS CASOS DIFÍCEISA Constituição Federal de 1988 tratou das matérias de modo aprofundado,

evidenciando a presença do neoconstitucionalismo, responsável pela ocorrência de

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modifi cações paradigmáticas na relação entre Constituição e Processo. A decadência do positivismo jurídico clássico, marcada pela distinção entre norma e preceito normativo, permitiu que se desenvolvesse uma nova hermenêutica constitucional. Tal fato foi possível devido à constitucionalização dos direitos, transferindo-os das legislações infraconstitucionais para a Lei Fundamental do sistema jurídico (CAMBI, 2007, p.17).

A nova forma de interpretação constitucional permaneceu com seus elementos clássicos, mas apresentou como elemento fundamental a teoria dos princípios sobre as regras, encontrando equilíbrio entre os aspectos da fl exibilidade e da vinculação e tornando possíveis melhores soluções para os confl itos entre direitos fundamentais.

Nesse contexto, deve-se observar, contudo, que nem todos os casos são passíveis de decisão com base nas leis preexistentes ou em teorias hermenêuticas acerca do modo pelo qual devem ser interpretadas: nas situações em que há ausência de normas específi cas e cuja solução não é possível com recurso ao texto da norma, o uso de conceitos jurídicos indeterminados, as regras imprecisas ou a presença de normas que possuem modos de solução distintos, favorecem a discricionariedade judicial, esta, contudo, não com o sentido de arbitrariedade. São os denominados casos difíceis ou inéditos (hard cases ou leading). O caso que comportar mais de uma solução é decidido pelo juiz de forma mais correta, justa, adequando-se aos elementos apresentados pelo caso concreto. Para isso, é necessária a interpretação judicial das normas.

A imprescindibilidade da interpretação decorre da amplitude normativa constitucional e da proteção a direitos confl itantes ou de conceitos vagos. Os precedentes do Supremo Tribunal Federal, as teorias hermenêuticas e o texto constitucional são elementos que servem de fundamento para as decisões dos casos difíceis e também como limitadores da arbitrariedade que por ventura possa vir a ser cometida pelo intérprete (MELLO, 2011, p.360).

Verifi ca-se no ordenamento jurídico brasileiro uma tendência à progressiva conferência de efeitos normativos às decisões proferidas pelo STF. Essa tendência mostra-se presente na criação das súmulas vinculantes (Emenda constitucional nº 45/2004). Ela se verifi ca, igualmente, na expansão dos mecanismos de controle concentrado de normas, de que são exemplos a criação da ação declaratória de constitucionalidade e a regulamentação da arguição de descumprimento de preceito fundamental. (MELLO, 2011, p.361)

O convencimento dos juízes constitui elemento importante na formação de sua convicção em determinadas matérias, sendo a fonte que contêm a ideologia e se relaciona com o modo pelo qual uma decisão é adotada e fundamentada.

Por longo período, a função jurisdicional esteve ligada à ideia de reprodução do conteúdo das leis, conforme a corrente doutrinária do pensamento sistemático ou normativo. Com o advento do controle de constitucionalidade, os juízes passaram efetivamente a submeter as leis a serem aplicadas ao caso concreto e assim, tornou-se

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inefi ciente uma atuação do Judiciário meramente reveladora do sentido das normas em abstrato e sua aplicação ao caso específi co.

Desse modo, as correntes doutrinárias que justifi cam a ausência de discricionariedade no processo decisório não apresentam como consequência a circunstância de a atividade do Judiciário sofrer determinações conforme as regras do formalismo jurídico, pelo qual, os magistrados estão submetidos aos desígnios do poder, sendo o Judiciário reduzido a um poder subordinado, tendo por função reproduzir as palavras da lei, passando a jurisdição a ser uma atividade intelectiva, impossibilitando o julgador de adicionar uma parcela volitiva aos seus julgamentos. Segundo o formalismo, a tarefa do juiz deveria limitar-se a expressar a “vontade da lei” ou a vontade do legislador; qualquer atividade interpretativa estaria sobrepondo o Judiciário aos demais poderes do Estado como também, os magistrados estariam adotando uma postura ativista quando do julgamento das questões de sua competência. (SILVA, 2004, p.92).

O posicionamento defendido pela corrente formalista também não evidencia o aspecto de que a legislação é um modo de criação do direito, modo esse diverso da criação realizada pelo Poder Judiciário, praticada por meio da interpretação das leis. O reconhecimento de que na interpretação do direito operado pelo Poder Judiciário há determinado grau de criatividade, não signifi ca que há criação do direito nos moldes do processo legislativo (CAPPELLETTI, 1999, p.20).

Na realidade, inexiste oposição entre os conceitos de criação do direito e de interpretação deste. O que varia é o grau de criatividade e os limites da criação do direito, no caso brasileiro, pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar os casos que lhe são apresentados. A criatividade e a discricionariedade são ínsitas à atividade interpretativa. Em alguma forma, toda interpretação é criativa, sempre existindo um grau mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional (CAPPELLETTI, 1999, p.42).

Contudo, poderá haver também maior espaço para a discricionariedade dos magistrados nas decisões quanto mais imprecisos forem os elementos do direito e mais vagas as leis. Essa é uma das causas da acentuação que teve o ativismo judicial.

O que caracteriza a função de um magistrado ou de um tribunal não é a ausência de criatividade na interpretação das leis, mas sim a ligação da decisão com as controvérsias e as partes integrantes do caso concreto, a imparcialidade do juiz e independência formal em relação às infl uências exercidas pelos poderes políticos (CAPPELLETTI, 1999, p.75).

[...] [A] criatividade jurisdicional – criatividade do direito e de valores – é ao mesmo tempo inevitável e legítima, e que o problema real e concreto, ao invés, é o da medida de tal criatividade, portanto de restrições. (...) Os juízes não podem fazer menos que participar na atividade de produção do direito, ainda que, no limite, tal não exclua inteiramente a possibilidade de o legislador ab-rogar ou modifi car o direito jurisdicional. (CAPPELLETTI, 1999, p.103)

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Como resultado das alterações no modo de julgar as controvérsias cuja solução não é prevista constitucionalmente, decorre o inevitável choque entre a suposta vontade do legislador (decorrente da maioria legislativa) e a decisão judicial, revelando que o posicionamento do magistrado a favor da maioria ou minorias envolve questões políticas. Poderá o Executivo não cumprir suas obrigações relacionadas aos valores constitucionais e assim, desrespeitar as garantias conferidas aos cidadãos. Nessa hipótese, o Judiciário também atua visando a suprir a omissão.

O ato de tornar válidos os direitos contidos no Texto Maior em todas as situações levadas ao Judiciário, fez com que este assumisse um novo modo de atuação no Estado Democrático de Direito. Os valores trazidos pela Constituição passaram nortear a atividade jurisdicional, que aceitou a atuação pública do referido poder na tarefa de tutela dos direitos.

A inserção dos direitos fundamentais nas Constituições resultou em um novo modo de raciocínio jurídico por meio do qual tribunais e juízes começaram a exercer um juízo que aplica a otimização dos princípios no que se refere às possibilidades de fato e de direito.

A ponderação consiste em desfazer a antiga opinião da fi losofi a política, inserida ao paradigma do direito liberal: a rigorosa separação entre os poderes, de modo que as autoridades políticas tenham a solução fi nal para questões morais e sociais, atribuindo às instâncias judiciais a função de defesa do que foi decidido politicamente (PAULA, 2011, p.272).

Por isso, deve ser fi rmemente precisado que os limites substanciais não são completamente privados de efi cácia: criatividade jurisprudencial, mesmo de forma mais acentuada, não signifi ca necessariamente “direito livre”, no sentido de direito arbitrariamente criado pelo juiz no caso concreto. (CAPPELLETTI, 1999, p.26)

Por conseguinte, bom senso e prudência devem ser utilizados pelo juiz na atividade da jurisdição constitucional, respeitando a soberania popular para que sejam cumpridos os direitos fundamentais. A liberdade do intérprete da norma há de ser responsável e autocontrolada, visto que é inadmissível a introdução nos textos de lei de conteúdos incompatíveis com o ordenamento jurídico.

Sendo o instrumento que estabelece a interação entre direito e política, a Constituição recebe o atributo de tornar o poder constituinte originário em poder constituído, convertendo a atividade política em instituições do Estado. A Lei Maior atribui as competências aos poderes: ao Legislativo a criação do direito positivo, ao Executivo a administração das entidades estatais sua e manutenção e ao Judiciário cabe a aplicação do direito quando da ocorrência de litígios entre partes (BARROSO, 2007, p.18).

Em vista dos resultados produzidos pelo controle constitucional e da atividade de produção de leis, típica do Legislativo, observa-se que controle de constitucionalidade e política são institutos distintos, mas intimamente relacionados.

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A política caracteriza-se por apresentar posicionamentos valorativos, infl uências das experiências sociais, morais e emocionais de cada um dos membros que compõem o Legislativo e o Executivo no que se refere à adoção de posturas para decidir questões de caráter público.

O Poder Judiciário utiliza-se de tais valorações nos casos não previstos na Constituição Federal e nos quais os outros dois poderes abstiveram-se em adotar seu posicionamento. Por isso, os casos práticos demonstram que eles não são totalmente indissociáveis, podendo ser considerada a existência de conexão de um campo sobre o outro.

Na política, vigoram a soberania popular e o princípio majoritário. O domínio da vontade. No direito, vigora o primado da lei (the rule of law) e do respeito aos direitos fundamentais. (BARROSO, 2007, p.17)

Havendo relações entre direito e política, tem-se que o controle constitucional é um dos fatores que permite o encerramento dos debates sobre questões políticas, vez que, além de não haver mecanismos de revogação legislativa de decisões judiciais, a atuação do legislador sofre limites decorrentes das cláusulas pétreas (PAULA, 2011, p.306). Fica limitada a reabertura das questões constitucionais pelo Legislativo, vinculando-se o controle constitucional às questões políticas.

Barroso (2008, p.13) afi rma que as decisões judiciais possuem teor isento de questões políticas, mantendo-se totalmente independentes de questões tendenciosas, de livre escolha ou partidarizadas. Esse posicionamento defende que as decisões judiciais nunca serão políticas no que se refere à discricionariedade.

Para estes, basta afi rmar que o Direito não é política, apesar de na sua origem, ser produto desta – que são institutos independentes. Esta separação seria atingida por meio da atribuição de caracteres próprios da atividade do magistrado, que impliquem na independência entre as atividades do Legislativo e Judiciário, como por exemplo, as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos.

Não mais se entende que direito e política são campos totalmente separados e cuja conexão deve ser reprimida para o bom funcionamento do Estado. Na verdade, como se verá, no fundo sempre houve latente a possibilidade de conexão maior do que se pensava entre a arena política e o canal judicial. (PAULA, 2011, p.273)

Mesmo havendo a referida crença de que o processo decisório não sofre infl uências das ideologias do magistrado e também do cenário político, a questão a ser julgada ganha contornos políticos pela possibilidade de uma política pública ser afetada pelos efeitos dessa decisão judicial. A defesa de que a decisão é imune às infl uências políticas não se

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mantém, uma vez que a norma representa a vontade da maioria legislativa responsável por sua aprovação. A concordância ou discordância do juiz com o seu conteúdo demonstra que o magistrado tende a se posicionar em prol da vontade da maioria ou das minorias, com isso interferindo na democracia.

O direito não pode permanecer inerte diante das modifi cações sociais, devendo buscar a concretização dos mecanismos de interpretação. A pós-modernidade provocou o questionamento das bases iluministas do direito moderno, compreendido como meio de revelação das verdades através do raciocínio silogístico e o apego excessivo à razão. Assim, a dimensão do novo, inserido na complexidade das relações sociais, é marcada pela insegurança, pela instabilidade e pelo incerto.

A crise da concepção formalista do Direito atinge de forma mais drástica a jurisdição constitucional que, pela relevância de suas decisões judiciais, muitas vezes oferece limites às decisões políticas, necessitando, por isso, de maior grau de legitimidade. (AGRA, 2005, p.73)

5 O DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL COMO FORMA DE ALCANÇAR A JUSTIÇA DAS DECISÕESComo resultado da pós-modernidade e das dúvidas trazidas por ela, houve a quebra

dos paradigmas ontológicos e a fragmentação social, resultando no aumento do número de confl itos. A inexistência de parâmetros visando atender e normatizar todas as expectativas do povo, deu origem à referida crise; do mesmo modo, o enfraquecimento dos órgãos estatais, provocado pelo liberalismo no plano econômico (AGRA, 2005, p.72).

Em relação aos efeitos da crise da pós-modernidade no Estado Democrático de Direito, duas motivações podem ser elencadas: a primeira diz respeito às economias capitalistas, que criaram grande complexidade social, conduzindo às crises de interesses entre os grupos sociais; a partir desse fato, o Estado passou a implementar políticas públicas visando satisfazer de forma específi ca as expectativas do povo.

A segunda motivação refere-se à infl ação legislativa. Para adequar o sistema jurídico à evolução da sociedade, novos instrumentos são produzidos para se adequarem aos fatos sem que sejam contraditórios com as mais variadas esferas sociais.

A presença do neoliberalismo fez com que na esfera econômica ocorresse situação inversa ao aumento da produção legislativa, agravando a crise. A ausência de efi cácia das normas, principalmente as programáticas, fez com que os órgãos estatais enfraquecessem, deixando de realizar as suas funções; depois, a impossibilidade de regulamentação legal relacionados a fatos específi cos.

Todas as esferas sociais foram atingidas pela pós-modernidade e com o direito não foi diferente: tendo por fi nalidade regular as relações sociais, o direito formal – baseado em sua positivação e exagerado formalismo – também foi atingido, entrando em crise e afetando seriamente a efi cácia de suas normas.

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Do mesmo modo, os paradigmas existentes difi cultam que a legitimidade da jurisdição constitucional seja estabelecida. Do mesmo modo, passam por crise o signifi cado de Estado Democrático de Direito, o conceito de Constituição, os limites da atuação do Judiciário. A crise constitucional deriva dos confl itos sociais, quando a Constituição deixa de ser considerada parâmetro normativo. Dessa forma, a Lei Maior perde a efi cácia, a sua força normativa (HESSE, 1991, p.19).

A crise constitucional pode ser melhor observada através das normas programáticas, que não conseguem obter efi cácia negativa ou positiva, nem mesmo concretizam o conteúdo da Constituição, impondo condutas a serem executadas pelos poderes constituídos. Portanto, a crise constitucional compreende a falta de eficácia dos mandamentos constitucionais diante dos múltiplos poderes normativos pertencentes às instituições reguladas a partir de decisões individuais (AGRA, 2005, p.88).

Diante dessas circunstâncias, surge no Brasil a doutrina da efetividade, que procurou superar algumas disfunções na formação do ordenamento jurídico nacional, evidenciadas na ausência de determinação política para o exercício das disposições constitucionais e no uso da Constituição unicamente como instrumento ideológico. O objetivo da doutrina da efetividade era o de tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e indiretamente na maior extensão de sua densidade normativa (BARROSO, 2008a, p.15).

A efetividade compreende a aplicabilidade da norma como modo de realização e desempenho concreto da função social do Direito, a materialização dos mandamentos normativos e a aproximação do dever-ser normativo com o ser do âmbito social; na maior parte das vezes, a efetividade das normas jurídicas advém do seu cumprimento com espontaneidade (BARROSO, 2000, p.5).

Com isso, tem-se por fi nalidade não somente o acesso de todos ao Poder Judiciário está assegurado, mas também é cabível a tutela estatal efetiva, permitindo que todos os indivíduos usufruam tanto dos direitos subjetivos individuais e da proteção às suas garantias fundamentais estabelecidas constitucionalmente.

As dimensões processual e constitucional passam a ser direcionadas não só aos produtores do direito, mas também àqueles que são atingidos direta e indiretamente pelas suas determinações:

Através dessa metodologia, o processo não é mais encarado como um fi m em si mesmo, como sua expressão predominante de ato de império, pelo qual o Estado faz cumprir as suas, reestruturando a “ordem” na esfera social. (GOMES NETO, 2005, p.57)

O direito ao processo justo advém do âmbito processual, o qual estabelece deveres para a organização estatal nas suas três funções – legislativa, executiva e judiciária. A efetivação do processo justo pelo Judiciário ocorre quando ao juiz são atribuídos os deveres de interpretação e aplicação das legislações de acordo com o direito fundamental ao processo justo.

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Referido direito tem por fi nalidade a obtenção de uma decisão justa, sendo exercida a pretensão à justiça e também a pretensão à tutela jurídica. Desse modo, no Estado Democrático de Direito, o processo é compreendido como o meio através do qual os direitos são tutelados no plano constitucional (MITIDIERO, 2011, p.25).

São titulares do direito ao processo justo as pessoas físicas e jurídicas, podendo propor ações com a fi nalidade de obterem a tutela jurisdicional, como também, aqueles que possuírem personalidade processual. Importante destacar que:

O direito ao processo justo goza de efi cácia vertical, horizontal e vertical com repercussão lateral. O mesmo se diga de seus elementos estruturantes. Ele obriga o Estado Constitucional a adotar condutas concretizadoras do ideal de protetividade que dele dimana (efi cácia vertical), o que inclusive pode ocasionar repercussão lateral sobre a esfera jurídica dos particulares (efi cácia vertical com repercussão lateral). Ainda, obriga os particulares, em seus processos privados tendentes a restrições e extinções de direitos, a observá-lo (efi cácia horizontal). (MITIDIERO, 2011, p.29).-

A constitucionalização do processo resulta, desse modo, em um processo justo, que compreende a efetividade dos direitos fundamentais característicos do âmbito processual e constitucional, a garantia do juiz natural, a proibição do juízo de exceção, a inadmissibilidade das provas obtidas através de meios ilícitos, a motivação obrigatória das decisões judiciais e a garantia do contraditório e ampla defesa. Ao mesmo tempo, assegura os direitos e garantias previstos na Constituição, buscando a justiça e efetividade.

Tanto processualmente quanto constitucionalmente, o processo justo não deve excluir a segurança jurídica, fundamento do Estado Democrático de Direito, que deve ser aplicável juntamente com os princípios da justiça e da segurança jurídica; o processo constitucionalizado determina, assim, a conciliação entre justiça, efetividade e segurança tanto na interpretação quanto na aplicabilidade das normas jurídicas.

O processo justo, “permite a convivência harmoniosa de todos os princípios e garantias constitucionais pertinentes ao acesso à justiça e prestação efetiva da adequada tutela aos direitos subjetivos materiais” (THEODORO JÚNIOR, 2009, p.36).

Com os novos elementos da jurisdição constitucional e a nova perspectiva do Processo, a sentença compreenderá o resultado da interpretação dos fatos, tendo por fundamento valores, princípios e regras jurídicas que não sigam a lógica produto do raciocínio matemático e silogístico. Juntamente com a adequação das normas aos fatos, está a criação do preceito legal conforme as especifi cidades trazidas pela Constituição, permitindo, através da valoração específi ca do caso concreto, a solução mais justa dentre as que são possíveis.

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6 CONCLUSÕES O fenômeno da expansão do Poder Judiciário foi marcado pelo advento do

neoconstitucionalismo, a partir do qual o Judiciário tornou-se um poder expressivo e com grande relevância ao receber a prerrogativa para decidir questões relativas aos direitos fundamentais.

A proteção anteriormente conferida aos direitos e garantias fundamentais ocorria mediante o controle do Poder Legislativo, que limitava a defesa a esses conteúdos do texto constitucional. Com a reconstitucionalização em alguns sistemas jurídicos, os direitos fundamentais passaram a ser protegidos pelo Judiciário contra o poder político majoritário.

As decisões jurídicas passaram a ter incidência sobre os âmbitos que não faziam parte de seu controle e com isso, tiveram início os estudos do fenômeno da judicialização das questões políticas e o ativismo judicial. O neoconstitucionalismo permitiu que o Judiciário utilizasse meios para harmonizar o equilíbrio social, sem, no entanto, limitar o exercício das garantias previstas na Constituição tanto em relação ao poder público quanto em relação aos indivíduos.

Dessa forma, os mandamentos constitucionais passaram a serem interpretados juntamente com os demais princípios do direito, podendo ser destacada a importante relação entre o direito constitucional e o direito processual civil.

Na nova relação entre Constituição e Processo, a função jurisdicional não sofreu limitações para o cumprimento das regras e princípios constitucionais. A partir desse momento, os direitos fundamentais também receberam proteção dos órgãos jurisdicionais capazes de cumprirem essa função sob o aspecto processual.

O Processo e suas normas procedimentais tiveram o aspecto tutelar atribuído pela ordem jurídica constitucional, passando a serem regulados pelos princípios da Lei Maior. Diante dessas transformações, confi gura-se a tutela jurisdicional efetiva e justa como aquela que está disponível às partes, respeitando aos mandamentos constitucionais. Com isso, o direito processual e o acesso à justiça passam a manter conexões com o plano constitucional, observado através da garantia de um processo justo em substituição à ideia do devido processo legal.

A constitucionalização do processo e as novas formas de interpretação jurídica resultam, desse modo, no processo justo, que tem por objetivo a efetividade dos direitos fundamentais característicos do âmbito processual e constitucional, a garantia do juiz natural, a proibição do juízo de exceção, a inadmissibilidade das provas obtidas através de meios ilícitos, a motivação obrigatória das decisões judiciais e a garantia do contraditório e ampla defesa. Ao mesmo tempo, assegura os direitos e garantias previstos na Constituição, buscando a justiça e efetividade.

Tanto processualmente quanto constitucionalmente, o processo justo não deve excluir a segurança jurídica, fundamento do Estado Democrático de Direito – deverá ser aplicado simultaneamente com os princípios da justiça e da segurança jurídica. O processo

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constitucionalizado determina a conciliação entre justiça, efetividade e segurança tanto na interpretação quanto na aplicabilidade das normas jurídicas, aspectos característicos da proteção às garantias e direitos fundamentais conferida pelo Estado Democrático de Direito.

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A exigência da representatividade ao amicus curiae: abertura à participação democrática e a possibilidade de atuação dos movimentos

sociais como amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade

Geisla Aparecida Van Haandel Mendes

RESUMOO presente estudo pretende examinar o requisito da representatividade exigido pelo § 2º,

do art. 7º, da Lei nº 9.868/99 para a intervenção do amicus curiae junto aos processos de controle concentrado de constitucionalidade, buscando aferir se tal condição atua em sentido oposto ou não à funcionalidade democrática do instituto. A partir da análise da representatividade se examinará a possibilidade de movimentos sociais intervirem como amicus curiae, no sentido de promover o diálogo social e a efetiva abertura à participação democrática na construção das decisões de controle de constitucionalidade.

Palavras-chave: Amicus curiae. Representatividade. Legitimidade democrática. Movimentos sociais. Controle de constitucionalidade. Diálogo social.

The exigency of the representativeness of the amicus curiae: Opening a democratic participation and the possibility

of action of social movements as amicus curiae in the concentrated constitutional control

ABSTRACTThe present paper intends to examen the requirement of representativeness demanded by

the § 2º, of article 7, of the nº 9.868/99 Law over the intervention of the amicus curiae within the concentrated constitutionality control lawsuits, trying to assess if such condition acts in opposite functionality , or not, to the institute. Starting with the analysis of representativeness it will then be seen if social movements can possibly intervene as amicus curiae, in a way to promote the social dialogue and the effective opening towards the democratic participation in the construction of the decisions around constitutional control.

Keywords: Amicus curiae. Representativeness. Democratic Legitimacy. Social Movements. Constitutional Control. Social Dialogue.

Geisla Aparecida Van Haandel Mendes é Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e Democracia das Faculdades Integradas do Brasil (UNIBRASIL). Especialista em Direitos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide Sevilha (ES) e em Direito do Trabalho pela UNIBRASIL. Professora de Hermenêutica Jurídica da Graduação em Direito da UNIBRASIL. Advogada.

Direito e Democracia v.13 n.1 p.138-157 jan./jun. 2012Canoas

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1 INTRODUÇÃOA doutrina e a jurisprudência, em sua maioria, demonstram concordância com a

designação de que a fi gura do amicus curiae funciona como instrumento de abertura à participação, de democratização das decisões do Poder Judiciário em sede das ações de controle de constitucionalidade e, portanto, de afi rmação da legitimidade democrática das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Notadamente a atuação do amicus curiae nas ações de controle de constitucionalidade está condicionada ao aceite do pedido de ingresso pelo Ministro-Relator da ação, mediante a demonstração da representatividade do postulante e da consideração da relevância da matéria, conforme estabelecem o § 2º do art. 7º da Lei nº 9.868/1999, o § 3º do art. 482 do CPC e o § 1º, art. 6º da lei nº 9.882/1999.

Questiona-se, pois, se a exigência da comprovação da representatividade do amicus curiae acaba ou não por restringir a participação da sociedade nestas ações constitucionais, de molde a reprimir e/ou inviabilizar o caráter democrático do instituto, na medida em que corresponderia a um limitador a admissão de instituições outras a atuar como “amigos da corte” em sentido oposto a sua funcionalidade democrática. Nesse sentido, buscar-se-á identifi car quem pode efetivamente agir como amicus curiae para levar, legitimamente, os clamores da sociedade ao Tribunal Constitucional.

Relacionado, ainda, à questão da representatividade, exigida ao pretenso amicus curiae, indaga-se sobre o possível manejo de tal instituto pelos movimentos sociais, partindo-se da premissa de que tais movimentos representam parte da sociedade civil organizada na busca e defesa de interesses de todos, de tal sorte que poderiam, potencialmente, promover um contato mais próximo do Judiciário com a realidade social, ainda que não possuam uma estrutura formal de órgão ou entidade. Nesse sentido, pretende-se examinar se os movimentos sociais brasileiros estariam aptos ou não a realizar com propriedade a missão inerente ao “amigo da corte” no intuito de promover o diálogo social e a efetiva abertura à participação democrática nas decisões a serem construídas nas ações de controle de constitucionalidade. Estes os questionamentos a que se propõe o presente estudo.

2 O AMICUS CURIAE E A INTERVENÇÃO DE TERCEIROS NAS AÇÕES DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADEAs ações de controle de constitucionalidade se apresentam como principais

mecanismos a serem instrumentalizados na defesa e na garantia da supremacia da Constituição, nos termos de um Estado Constitucional garantístico, conforme preceituado por J. J. Gomes Canotilho.1 A busca da garantia da supremacia da Constituição, mais do

1 Canotilho destaca que o constitucionalismo se apresenta como “técnica específi ca de limitação do poder com fi ns garantísticos”. (CANOTILHO, 2003, p.51).

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que preservar seu corpo normativo, pretende resguardar os preceitos fundamentais que a comunidade política pensa e sente como fundamentos essenciais que a identifi cam e caracterizam enquanto comunidade.2

A realização do controle ou da fi scalização da constitucionalidade dos demais atos infraconstitucionais parte da “consciência constitucional” (CLÈVE, 2000, p.33) presente no ordenamento, no sentido que a garantia dos preceitos que regem a comunidade é necessária para a própria integralidade do sistema e da ordem constitucional (CLÈVE, 2000, p.34).

Segundo a redação do caput do art. 102 da CF/88 compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição. A atuação da jurisdição constitucional brasileira se dá através de um sistema misto ou híbrido de controle de constitucionalidade, combinando um controle concentrado3 (em abstrato) e um controle difuso4 (em concreto) de constitucionalidade.

O controle concentrado de constitucionalidade objetiva o pronunciamento em abstrato quanto à validade ou não de uma lei ou ato normativo federal ou estadual, segundo dicção do art. 102, I, “a”, da Constituição Federal de 1988.

Os legitimados ativos à propositura das ações de (in)constitucionalidade, descritos taxativamente no rol do art. 103 da CF/88,5 provocam a jurisdição constitucional quanto à validade, permanência ou não, de uma lei no sistema jurídico, não subsistindo pretensões individuais a serem examinadas, mas tão somente o exame em abstrato do ato normativo impugnado.

Tais ações constitucionais possuem, pois, como fi nalidade o pronunciamento sobre a própria lei ou ato impugnado, subsistindo somente o exame em tese ou em abstrato do próprio ato tido por inconstitucional. Por esta razão a doutrina e jurisprudência costumam afi rmar que as ações de controle de constitucionalidade, embora possuam natureza jurisdicional, na verdade compreendem um “exercício atípico de jurisdição” (BARROSO, 2012, p.180), notadamente porque não existem partes envolvidas, nem litígio a ser solucionado em tais ações, pois não se dirigem a tutela de direitos subjetivos aplicáveis a situações concretas.

2 “se compreende a expressão – constituição da República – para exprimir a ideia de que a constituição se refere não apenas ao Estado, mas à própria comunidade política, ou seja, a res publica”. (CANOTILHO, 2003, p.88 – grifos do original).3 O controle concentrado de constitucionalidade abrange: a) ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, “a”); b) ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, “a”); c) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º); d) ação direta interventiva (art. 36, III); e) arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º).4 Art. 102, III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).5 Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

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Considerando suas características específicas, as ações de controle de constitucionalidade cuidam, segundo a doutrina, de processo objetivo, na medida em que não possuem partes e nem lide contenciosa com vistas a garantir ou proteger um direito ou bem da vida específi co, por essa razão, para Clèmerson Merlin Clève, “os princípios constitucionais do processo (leia-se do processo subjetivo) não podem ser aplicados ao processo objetivo sem apurada dose de cautela” (CLÈVE, 2000, p.143-145).

Todavia, segundo Álvaro Ricardo de Souza Cruz o processo concentrado de controle de constitucionalidade não pode ser visto como um “processo objetivo”, na medida em que, sob sua perspectiva, admitir um processo objetivo e, portanto, “não contraditório” implica em violação a própria concepção de democracia (CRUZ, 2004, p.371), bem como na consequente transformação do processo de controle de constitucionalidade em algo “asséptico, estéril, afastado do cotidiano” (CRUZ, 2004, p.384) da sociedade que o instituiu.

Explica o autor que a contraposição de argumentos é fundamental na construção de melhores respostas às pretensões, assegurada por um “fl uxo comunicativo de ideais” sob o infl uxo de um ideal de democracia participativa, de tal sorte que o “processo é necessariamente um procedimento subjetivo, sujeito ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV da CF/88), sem o que perde sua legitimidade democrática” (CRUZ, 2004, p.371). Não possibilitar o acesso ao contraditório e a “subjetivação” dos processos de controle concentrado de constitucionalidade corresponde, sob sua ótica, a negação do direito difuso afeto a todas as pessoas de “vivermos num regime político que permita/garanta o direito de argumentar e de participar” (CRUZ, 2004, p.372).

Notadamente, ainda que o controle de constitucionalidade sob a via do controle abstrato, seja visto como um processo objetivo, inclusive segundo reiterado posicionamento do Supremo Tribunal Federal,6 verifi ca-se uma tendência à abertura do processo de controle constitucional a exposição de argumentos por parte de outras pessoas, além dos legitimados à propositura da ação, a demonstrar maior fl uidez de comunicação no processo em verdadeira valorização ao princípio do contraditório, ainda que se fale em processo objetivo. É o que se verifi ca com a permissão de manifestação no processo de controle abstrato pelo amicus curiae, espécie de terceiro interveniente que vem trazer novos argumentos à ação constitucional, e também pela realização de audiências públicas com o objetivo de reunir informações técnicas, econômicas e sociais relacionadas com o fenômeno social objeto do processo em discussão, através da oitiva de pessoas com experiência e autoridade na matéria.

Registre-se que o caput do art. 7º da Lei nº 9.868/1999, que consigna o processamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e declaratória de constitucionalidade (ADC), de maneira geral não admite a intervenção de terceiros.7 Porém passa a aceitar

6 “O ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal faz instaurar processo objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio referente a situações concretas ou individuais”. (STF, RDA, 193:242, 1993, Rcl 397, rel. Min. Celso de Mello).7 Nem mesmo a assistência a qualquer das partes é admitida, veja-se a redação do art. 169, § 1º do Regimento Interno do STF.

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manifestações através da fi gura do amicus curiae e das audiências públicas nos parágrafos e artigos subsequentes como se pode observar da redação do § 2º, do art. 7º, da Lei nº 9.868/99,8 segundo o qual a critério do relator da ação, se possibilitará a manifestação de outros órgãos ou entidades, considerada a relevância da matéria e a representatividade dos requerentes. No mesmo sentido a redação do § 1º, do art. 9º e § 1º, do art. 20, ambos da Lei nº 9.868/99,9 bem como dos §§ 1º e 2º, do art. 6º da Lei nº 9.882/99,10 ao prescreverem a possibilidade de lançamento de outros e novos argumentos às ações de controle de constitucionalidade.

A atuação do amicus curiae como terceiro interveniente no controle abstrato de constitucionalidade é admitida sob uma perspectiva diversa das tradicionais fi guras de terceiros intervenientes previstos no processo civil (como a assistência, o litisconsórcio, a nomeação a autoria, a oposição, a denunciação da lide, o chamamento ao processo, o recurso do terceiro prejudicado, o concurso de credores e os embargos de terceiro), na medida em que não se justifi ca unicamente pelo interesse subjetivo próprio do requerente na demanda, mas, sobretudo, a partir da possibilidade de abertura procedimental ao debate com vistas a uma maior aproximação do STF com a sociedade. Para Gilmar Mendes a positivação da fi gura do amicus curiae constitui “providência que confere caráter pluralista ao processo objetivo de controle de constitucionalidade” (MENDES et al., 2008, p.1124), subsidiando a decisão com novos argumentos e alternativas outras para a melhor solução do processo.

Segundo Damares Medina, a intervenção do amicus curiae, em um processo no qual ele não é parte, pretende “oferecer à corte sua perspectiva acerca da questão constitucional controvertida, informações técnicas acerca de questões complexas cujo domínio ultrapasse o campo legal ou, ainda, defender os interesses dos grupos por ele representados, no caso de serem direta ou indiretamente, afetados pela decisão a ser tomada” (MEDINA, 2010, p.17).

Cassio Scarpinella Bueno compreende o amicus curiae como um “especial terceiro interessado”, cuja intervenção espontânea ou provocada objetiva aprimorar o debate judicial trazendo a lume os valores e questionamentos presentes na sociedade e no Estado dando maior pluralidade e legitimidade às decisões judiciais (BUENO, 2010, p.160-167).

8 Art. 7º, § 2º. O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fi xado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.9 Art. 9º, § 1º. Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insufi ciência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fi xar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.Art. 20, § 1º. Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insufi ciência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fi xar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. 10 Art. 6º, § 1º. Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a arguição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fi xar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.§ 2º. Poderão ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados no processo.

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No mesmo sentido, Gustavo Binenbojm aduz que o amicus curiae, mais do que um colaborador informal do juízo, integra a relação processual como “terceiro especial” (BINENBOJM, 2005, p.87).

Na visão de Edgard Silveira Bueno Filho a intervenção do amicus curiae possui a forma de assistência qualifi cada, na medida em que além de demonstrar interesse legítimo também deve ser comprovada a representatividade do interveniente (BUENO FILHO, 2002, p.88).

Michele Franco Rosa, por sua vez, afi rma que o amicus curiae não pode ser considerado como mero terceiro interveniente, segundo sua ótica, o amici possui natureza de auxiliar do juízo, na medida em que não precisa comprovar a principal característica presente nas demais formas de intervenção de terceiros, concernente à existência de interesse jurídico para ingressar no processo, visto que sua função cinge-se à busca da pluralização, aprimoramento e democratização das decisões judiciais nos processos de controle de constitucionalidade (ROSA, 2010, p.253 e 274).

Antonio do Passo Cabral ressalta que o amicus curiae possui características próprias que o individualiza perante as tradicionais formas de intervenção de terceiros, previstas no processo civil. Por tratar-se de intervenção atípica, caracteriza-se por ser um “terceiro sui generis ou terceiro especial, de natureza excepcional” (CABRAL, 2004, p.17).

Para Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, o amicus curiae somente é chamado de terceiro em razão de não ser parte, mas “por tudo e em tudo se diferencia dos terceiros tradicionais”, na medida em que “representa um canal para que o juiz tenha ciência dos fatos, valores, interesses da sociedade ou de determinada categoria, a que a decisão inexoravelmente afetará” (WAMBIER; MEDINA, 2010, p.494).

O Supremo Tribunal Federal vem aceitando a atuação do amicus curiae como instrumento de pluralização e de legitimação do debate constitucional11 capaz de trazer à Corte uma diversidade maior de elementos e informações para a melhor resolução da controvérsia objeto da ação constitucional. Nesse sentido, salientou o Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI nº 2031, para o qual a admissão do amici confere maior legitimidade e efetividade às decisões do STF, ressaltando ainda, que tal intervenção,

[...] valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de informação e pelo acervo de experiências que esse mesmo amicus curiae poderá transmitir à Corte Constitucional, notadamente em um processo – como o de controle abstrato de constitucionalidade – cujas implicações políticas, sociais, econômicas, jurídicas e culturais são de irrecusável importância e inquestionável signifi cação.12

11 ADI 2.321.MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25.10.2000, Plenário, DJ de 10.6.2005. No mesmo sentido: ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25.8.2005, Plenário, DJE de 20.8.2010.12 ADI Nº 2130. Rel. Ministro Celso de Mello. Julg. 03.10.2001. DJ nº 217 de 14.12.2001.

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A atuação do amicus curiae, como se pode notar, advém da peculiar característica, presente nas ações de controle de constitucionalidade, de que seus efeitos geram uma grande onda refl exiva que atinge toda a sociedade.

Os temas articulados nas ações de controle abstrato não podem ser resolvidos apenas no âmbito da atuação restrita aos legitimados para proposição das referidas ações, pois sua universalidade exige um olhar não apenas contemplativo da sociedade, ao contrário permite proatividade no efetivo exercício democrático-participativo e, nesse sentido, a fi gura do amicus curiae possui especial importância, por autorizar esta participação.

Mais do que um terceiro interveniente, em razão de não compor as partes do processo ou de instrumento de veiculação de posicionamento pessoal, o proceder do amicus curiae possui como primado a demonstração de circunstâncias teóricas de interesse da sociedade, das vozes dos grupos sociais, de molde a contribuir para a formulação e justifi cação da decisão a ser proferida, visto que tais decisões refl exivamente trazem consequências que afetam parte ou integralidade da composição de um direito de todos.

Nesse sentido, representa um ósculo para o Tribunal Constitucional ao permitir a introdução da realidade do ser social à esfera jurídica. Notadamente, se espera da Corte Constitucional, ao examinar uma ação de controle abstrato de constitucionalidade, um agir pautado na proteção e efetividade dos direitos fundamentais. Sobressai, ainda, a preocupação com as ondas refl exivas que referidas decisões podem gerar ao ordenamento e a toda sociedade brasileira. Circunstancia que torna imperiosa uma maior aproximação com a sociedade potencialmente realizada pela atuação do amicus curiae.

A causa que impulsiona a intervenção do amicus curiae, na visão de Cassio Scarpinella Bueno, é a circunstância de ser “legítimo portador de um interesse institucional” (BUENO, 2010, p.161), compreendido como o interesse que não é apenas individual ou de um grupo específi co, mas que congrega interesses coletivos e até mesmo difusos, apresentando-se como “adequado portador das vozes da sociedade e do próprio Estado que, sem sua intervenção, não seriam ouvidas ou se o fossem o seriam de maneira insufi ciente pelo juiz” (BUENO, 2010, p.161).

Segundo a redação do § 2º, do art. 7º, da Lei nº 9.868/99 estão habilitados a intervir como amicus curiae, a critério do relator, outros órgãos ou entidades dotados de representatividade para tal desiderato. Para Cassio Scarpinella Bueno os atores sociais que podem efetivamente agir nesta qualidade e levar legitimamente os clamores da sociedade ao Tribunal Constitucional são os entes que demonstram o referido “interesse institucional” de molde a comprovar a representatividade exigida pela lei.

O amicus curiae se caracteriza por ser um terceiro interveniente, na medida em que não é parte do processo, porém com feições próprias e fi nalidade específi ca. Possibilita através de sua atuação que informações outras, novos argumentos, ângulos de visada diversos sobre o mesmo tema, valores e anseios da sociedade ou de grupos sociais que a compõe, sejam legitimamente levados, e com êxito, ao conhecimento do Tribunal, contribuindo para a construção de melhores decisões.

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3 A EXIGÊNCIA DA REPRESENTATIVIDADE PARA INTERVENÇÃO COMO AMICUS CURIAEConforme anteriormente aduzido, segundo a redação do § 2º, do art. 7º, da Lei

nº 9.868/99, somente poderão intervir como amicus curiae os órgãos ou entidades dotados de representatividade. Nesse sentido, a preocupação que se apresenta é a de que a exigência da comprovação desta representatividade constitua um fator de restrição e/ou limitação à efetiva participação da sociedade. Veja-se que, a justifi cativa referenciada pelo próprio Supremo Tribunal Federal para aceitar a atuação do amici, é no sentido de que sua intervenção funciona como “fator de legitimação social das decisões do Tribunal”13 por permitir uma maior participação da sociedade nos processos de controle de constitucionalidade.

Na doutrina e jurisprudência não se verifi ca de forma ampla uma preocupação nos moldes acima referenciados. Percebe-se que a maior preocupação, para além de eventual possibilidade de restrição, fi xa-se sobre as consequências que a exigência da representatividade possa causar, no sentido de se identifi car quem de fato pode conduzir, legitimamente, os clamores da sociedade ao Tribunal Constitucional. Qual ente ou pessoa possui a capacidade de se apresentar como legítimo portador de interesses que pertencem a toda a sociedade a serem defendidos e tutelados no âmbito judicial (BUENO, 2008, p.501) em um processo do qual não faz parte, mas cuja decisão gerará refl exos em face de todos, por vezes com efeitos maiores ou menores para determinados grupos sociais.

Daí a atenção em se estabelecer um referencial que possa se mostrar seguro a respeito do instituto. (BUENO, 2008, p.145) Nos moldes de tal referencial estará apto a ingressar como amicus curiae, órgão ou entidade (segundo redação do § 2º, do art. 7º, da Lei nº 9.868/99) dotado de interesse institucional que o legitime para promover o diálogo entre o Tribunal Constitucional e a sociedade, com vistas a atingir os fi ns a que se propõe comprovando, portanto, sua representatividade.

Cassio Scarpinella Bueno explica que a representatividade exigida pela lei, segundo seu entendimento, estará presente em “toda aquela pessoa, grupo de pessoas ou entidade, de direito público ou de direito privado, que conseguir demonstrar que tem um específi co interesse institucional na causa e, justamente em função disso, tem condições de contribuir para o debate da matéria, fornecendo elementos ou informações úteis e necessárias para o proferimento de melhor decisão jurisdicional” (BUENO, 2008, p.147).

Segundo o autor, meros interesses corporativos não são sufi cientes para comprovar a representatividade e autorizar a intervenção na qualidade de amicus curiae, é preciso que subsista interesse decorrente das fi nalidades institucionais do requerente confi gurando-se como legítimo representante de um grupo de pessoas ou de um grupo de interesses e não de interesse próprio como ocorre com as tradicionais fi guras de terceiros intervenientes (BUENO, 2008, p.147).

13 ADI 2130/SC. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=24&dataPublicacaoDj=02/02/2001&incidente=3727269&codCapitulo=6&numMateria=2&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.

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Para Gustavo Binenbojm o § 2º, do art. 7º, da Lei 9.868/99, permite que outros órgãos ou entidades, em face da relevância da matéria objeto da ação e por sua notória representatividade, apresentem sua manifestação no processo de controle de constitucionalidade. Segundo aduz, “na análise do binômio relevância-representatividade, deverá o relator levar em conta a magnitude dos efeitos da decisão a ser proferida nos setores diretamente afetados ou para a sociedade como um todo, bem como se o órgão ou entidade postulante congrega dentre seus afi liados porção signifi cativa (quantitativa ou qualitativamente) dos membros do(s) grupo(s) social(is) afetado(s)” (BINENBJOM, 2005, P. 83).

Antônio do Passo Cabral, em sentido diverso, afi rma ser desnecessária a exigência da representatividade, porquanto nesta situação não ocorre o fenômeno da substituição processual. Explica o autor, que pelo fato de não existir o risco de uma representação inadequada pela intervenção do amicus curiae, na medida em que este não age em nome próprio em defesa de direito alheio, é desnecessário o exame do requisito da representatividade, embora exista expressa previsão legal neste sentido (CABRAL, 2004, p.21).

Conforme se verifi ca a representatividade exigida pela lei busca identifi car no pretenso amicus curiae um interesse maior, que transcende interesses individuais ou corporativos, que capacite este agente a se apresentar como legítimo portador de interesses que pertencem a toda a sociedade ou a determinados grupos sociais. Em que pese à abalizada doutrina que defende a demonstração da representatividade, considera-se que a fi xação de um requisito absoluto, mas de defi nição fl uída, cuja signifi cação depende unicamente de entendimento do relator da demanda para deferir ou não o pedido da intervenção, acaba por desvirtuar o caráter democrático do instituto do amicus curiae. Observe-se que tal exigência importará, irremediavelmente, em restrição ao acesso à participação da sociedade nas ações de controle de constitucionalidade, quando na verdade deveria abrir passo a todos quantos fossem os interessados a participar, tendo em vista que a fi nalidade do instituto corresponde exatamente à abertura a participação democrática.

Em uma visão mais ampla, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, afi rmam que o relator poderá admitir como amicus curiae “qualquer pessoa física, jurídica, professor de direito, cientista, órgão ou entidade”, embora ressalvem a necessidade de ser demonstrada “respeitabilidade, reconhecimento científi co ou representatividade para opinar sobre a matéria objeto da questão constitucional” (NERY JUNIOR; NERY, 2006, p.670).

Edgard Silveira Bueno Filho pontua que “haverá sempre outras entidades de notória representatividade que, por isso, serão facilmente admitidas ao debate, dependendo apenas do tema discutido”. Segundo aduz, “é o caso das associações de magistrados, de advogados, de outros profi ssionais liberais, de empresários, de defensores de direitos humanos, de consumidores, do meio ambiente etc., quando o ato normativo questionado tiver relação com a atividade por eles desenvolvida” (BUENO FILHO, 2002, p.88).

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Como se pode verifi car das decisões do STF, tais considerações acerca dos interesses do postulante a amici são importantes para o deferimento de seu ingresso, como se observa da decisão do Ministro Joaquim Barbosa na ADI nº 3311 que indeferiu o ingresso do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal como amicus curiae, ao argumento de que a simples manifestação de interesse não é sufi ciente para ingressar no feito, sendo necessário, pois, a demonstração de que a entidade pode contribuir de forma relevante com o julgamento da ação.14 No mesmo processo, considerando preenchidos os requisitos do § 2º, art. 7º, da Lei nº 9868/99, o Ministro-Relator deferiu o ingresso de vários outros entes como amici, como o Estado de Sergipe, a Associação de defesa da saúde do fumante – ADESF, o Instituto brasileiro de defesa do consumidor – IDEC, o Partido Verde – PV, a Confederação nacional dos trabalhadores na saúde – CNTS,15 dentre outros.

Importa ressaltar que os legitimados à propositura da ação direta de constitucionalidade, a que se refere o art. 103 da CF/88 e o art. 2º da Lei nº 9.868/99, também possuem legitimidade para intervir como amicus curiae, desde que à vista da representatividade e da relevância da matéria, sejam merecedores de apresentar seus argumentos ao processo, conforme entendimento reiterado pelo Supremo Tribunal Federal.

Não se olvida da importância que o instituto do amicus curiae possui, mesmo a partir da exigência da comprovação da representatividade, pois não se nega a evolução que este instrumento já causou e tem causado no sentido de permitir a abertura do Supremo

14 O SINDICATO DOS MÉDICOS DO DISTRITO FEDERAL – SINDIMÉDICO requer sua admissão na presente ação direta de inconstitucionalidade, na qualidade de amicus curiae. A intervenção de terceiros no processo da ação direta de inconstitucionalidade é regra excepcional prevista no art. 7º, § 2º, da Lei 9.868/1999, que visa a permitir “que terceiros – desde que investidos de representatividade adequada – possam ser admitidos na relação processual, para efeito de manifestação sobre a questão de direito subjacente à própria controvérsia constitucional. – A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifi ca-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fi scalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae – tem por precípua fi nalidade pluralizar o debate constitucional.” (ADI 2.130-MC, rel. min. Celso de Mello, DJ 02.02.2001). Vê-se, portanto, que a admissão de terceiros na qualidade de amicus curiae traz ínsita a necessidade de que o interessado pluralize o debate constitucional, apresentando informações, documentos ou quaisquer elementos importantes para o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade. A mera manifestação de interesse em integrar o feito, sem o acréscimo de nenhum outro subsídio fático ou jurídico relevante para o julgamento da causa, não justifi ca a admissão do postulante como amicus curiae. Ademais, o SINDIMÉDICO não logrou demonstrar que detém experiência e autoridade em matéria de saúde social, uma vez que dentre as suas “prerrogativas”, elencadas no art. 2º de seu Estatuto, fi guram apenas disposições de caráter eminentemente coorporativas e de interesse próprio da categoria, como por exemplo: “(a) representar, perante autoridade administrativas e judiciárias os interesses gerais e individuais da categoria dos médicos, podendo promover ações de representação e substituição processual de toda a categoria, médicos sócios e não sócios, inclusive da defesa dos direitos difusos e dos direitos do consumidor; (b) celebrar convenções e acordos coletivos de trabalho e colaborar nas comissões de conciliação e tribunais de trabalho; (c)adotar medidas de utilidade e benefi cência para os seus associados de acordo com os regulamento que forem elaborados”, entre outros. Despacho Ministro-Relator Joaquim Barbosa, em 15.04.2005. ADI nº 3311/DF, DJ n.77 do dia 25.04.2005.15 ADI nº 3311/DF. Ministro-Relator Joaquim Barbosa. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=34&dataPublicacaoDj=21/02/2005&incidente=2246660&codCapitulo=6&numMateria=13&codMateria=2 Acesso em 19.02.2013

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Tribunal Federal a uma discussão mais ampla nas ações de controle concentrado e de sua potencialidade em promover uma aproximação do Tribunal com a sociedade.

Contudo, o desenvolvimento efetivo de um diálogo social através da intervenção do amicus curiae como fator de legitimação social das decisões, conforme afi rmado pelo próprio Supremo Tribunal Federal,16 pressupõe a efetiva e real abertura do processo de fi scalização abstrata a toda a sociedade, de tal sorte que o estabelecimento de um requisito a ser cumprido consigna sentido oposto à funcionalidade democrática do instituto.

Pontue-se que, outras disposições legais, que tratam sobre o amicus curiae, como ocorre com a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, com a intervenção da União Federal e de intervenção de entidades ou terceiros desinteressados nos processos administrativos,17 nada mencionam sobre o requisito da representatividade exigida pela Lei nº 9.868/99. Segundo o caput, do art. 31, da Lei nº 6.385/76, “nos processos judiciais que tenham por objeto matéria incluída na competência da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, será esta sempre intimada para, querendo, oferecer parecer ou prestar esclarecimentos”, autorizando a intervenção da CVM como amicus curiae sem qualquer outro requisito que não versar sobre matéria de sua competência.18 O parágrafo único do art. 5º da Lei nº 9.469/97, por sua vez, também prevê a atuação da União Federal como amicus curiae independente da demonstração de interesse19 (ou da representatividade aqui tratada), ao estabelecer que as “pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja decisão possa ter refl exos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fi ns de deslocamento de competência, serão consideradas partes”. O art. 31 da Lei nº 9.784/99 ao estabelecer que “quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada”, também previu a possibilidade de intervenção de entidades ou terceiros desinteressados nos processos administrativos.20

A presença de um interesse que transcende ao individual, designado na melhor alusão como “interesse institucional”, que substancialmente abrange um interesse mais amplo que

16 A exemplo, as decisões monocráticas: ADI 2.130-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 02.02.2001; ADI nº 3311/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ n.77 do dia 25.04.2005. ADI 3.998/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ n.60 do dia 04.04.2008.17 “As normas que permitem a intervenção da CVM, do Cade e da União Federal e ainda no processo administrativo federal, fazem-no desconsiderando o interesse jurídico, o que também aponta para o reconhecimento da condição de amicus curiae nestas modalidades de intervenção”. (CABRAL, 2004, p.24).18 “a intervenção da CVM como amicus curiae dar-se-á toda vez que, mesmo em processos de caráter individual, houver discussão judicial de matérias que, no âmbito administrativo, sujeitam-se à fi scalização da entidade”. (CABRAL, 2004, p.24).19 “a intervenção da União Federal como amicus curiae poderá ocorrer independentemente da demonstração de interesse jurídico, quando da decisão puder ter efeitos de natureza econômica, ainda que refl exos, mediatos”. (CABRAL, 2004, p.24-25).20 “No campo da intervenção do amicus em processos administrativos, prevista de forma genérica pela Lei 9.784/1999, o art. 31 afi rma que será cabível a manifestação quando a matéria debatida no processo ‘envolver assunto de interesse geral’.” (CABRAL, 2004, p.25).

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o da parte ou de um terceiro interveniente tradicional, demonstra o interesse de participar do processo de controle de constitucionalidade, porém não impõe a demonstração de um requisito absoluto, que se não verifi cado, sob a ótica do relator, impede a participação. O fator que autoriza a intervenção do amicus curiae ou que o qualifi ca, na acepção de Eduardo Cambi e Kleber R. Damasceno, “são os possíveis refl exos que uma dada decisão judicial, em razão das questões discutidas, poderá gerar no grupo social, servindo como precedente a orientar o julgamento, pelo Poder Judiciário, de casos presentes e futuros” (CAMBI; DAMASCENO, 2011, p.28-29).

Considerando-se a fi nalidade do instituto, segundo a doutrina e a jurisprudência do próprio STF, no sentido de ampliar e/ou pluralizar o debate constitucional e de conferir maior legitimidade democrática às suas decisões, com mais razão o instituto do amicus curiae deve ser estendido ao maior número de pessoas possíveis, com interesse em se manifestar no processo, como representantes da sociedade e/ou de grupos sociais no sentido de contribuir para a melhor resolução da lide.

4 MOVIMENTOS SOCIAIS E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA. POSSIBILIDADE DE ATUAÇÃO COMO AMICUS CURIAE NAS AÇÕES DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADEConsiderando-se que as ações de controle de constitucionalidade estão relacionadas

a assuntos de interesse e relevância para toda a sociedade, visto que seus efeitos repercutem em face de todos e, portanto, são importantes para todo o ordenamento jurídico e para toda a sociedade brasileira, a abertura à participação democrática se mostra de imperiosa importância. Resta o questionamento se outros entes não abrangidos pela expressão “órgãos ou entidades dotados de representatividade”, conforme descrito no § 2º do art. 7º da Lei nº 9.868/1999, estariam aptos ou não a realizar com propriedade a missão inerente ao “amigo da corte”, tais como os movimentos sociais brasileiros.

A contraposição de argumentos, de notória e fundamental importância na construção de melhores respostas às pretensões, sobretudo quando se está diante de decisões que emanam projeções refl exivas a toda a sociedade, que interferem na evolução civilizatória e na sua dinâmica construtiva, com vistas a uma compreensão mais consentânea com a realidade dos fatos sociais e do que se espera como atitude dos poderes públicos, propugna uma maior participação da sociedade na construção de tais decisões, o instituto do amicus curiae, nesse aspecto, possui a potencialidade necessária para cumprir esse papel.

A exposição de outras informações pelo ingresso dos “amigos da corte” na demanda, objetivando a não restrição do processo de controle de constitucionalidade à perspectiva particular de uma plêiade isolada de julgadores restritos ao conteúdo formal dos limites ínsitos da petição inicial, que parte do rol de poucos legitimados para a motivação meritória, contribui para uma arquitetura mais plural e democrática das

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decisões da Corte Constitucional, mas é preciso mais avançar para que a pluralização realmente aconteça e o sentido democrático se faça presente.

Nesse sentido, o instituto do amicus curiae, ainda que sob a égide do requisito da representatividade do postulante, reiteradamente utilizado como referencial para o (in)deferimento da intervenção, pode ser manejado por outros entes, como os movimentos sociais, com o fi m de trazer a realidade da vida à realidade dos autos.

O agir dos movimentos sociais parte da confi guração de valores expressos pela comunidade que o compõe, cujas ações são conduzidas pelo projeto político e social que o movimento visa atingir a partir da práxis social, buscando penetrar nas estruturas do Estado organizado. Notadamente, a sociedade civil e o Estado não são instituições estanques e separadas. O Estado somente existe em função da sociedade instituída pelos homens21, que estrutura seu modo de vida e organização social através daquele. Nas palavras de Ilse Scherer-Warren “os dois se interpenetram em suas dinâmicas próprias” (SCHERER-WARREN, 1996, p.53), de tal sorte que os clamores e as ações desenvolvidas diretamente pela sociedade civil22 não podem ser desconsideradas ou simplesmente ignoradas.

Segundo, Ilse Scherer-Warren existem alguns pré-requisitos que compõe a formação de um movimento social, como: a) “o reconhecimento coletivo de um direito que leva a formação de uma identidade social e política” – pode-se dizer que corresponde ao pensamento comum de que possuem um direito, extensível a todos, e que buscam ser reconhecido e/ou concretizado; b) “o desenvolvimento de uma sociabilidade política”– representado por um projeto coletivo a ser implementado, pelo qual as pessoas congregam-se em torno de uma causa, constituindo-se em verdadeiros atores sociais e políticos que atuam e constroem a realidade, e c) “a construção de um projeto de transformação”– correspondente ao objetivo comum a ser atingido e a perspectiva de participar da construção de uma nova realidade, de transformar as relações sociais (SCHERER-WARREN, 1996, p.69-72).

Os vários movimentos sociais urbanos e rurais (movimento ecológico, movimento feminista, movimento afrodescendente, movimento dos sem-terra, movimento dos sem-teto, movimento das mulheres camponesas, movimento de bairros, movimento estudantil, dentre outros), em suas diversas formas de manifestação, contribuem para o desenvolvimento democrático do país. Tal contribuição não se apresenta unicamente pela busca de implementação de políticas públicas adequadas e necessárias segundo a ótica do movimento, mas também, como se propõe, pela possibilidade de atuarem no âmbito do Judiciário quando discutidas questões importantes, de índole constitucional,

21 Desde a perspectiva contratualista de formalização de um pacto social entre os homens através do qual se institucionaliza o Estado como o ente dotado do poder de manter a paz, o respeito e a convivência harmônica, o Estado assume a organização estrutural e jurídica da sociedade, porém voltada ao homem como fi m primeiro e último de toda estruturação social. [Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. Trad. Rosina D’Angina. São Paulo: Martin Claret, 2012 (1651); LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Vozes, 2006 (1689); ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Leme/SP: EDIJUR, edição 2010 (1762)].22 “a sociedade civil é a representação de vários níveis de como os interesses e os valores da cidadania se organizam em cada sociedade para encaminhamento de suas ações em prol de políticas sociais e públicas, protestos sociais, manifestações simbólicas e pressões políticas”. (SCHERER-WARREN, 1996, p.110).

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que eventualmente afetem os objetivos do próprio movimento, que tragam refl exos sobre determinado direito reconhecido coletivamente e que levou a formação da consciência coletiva para a criação do próprio movimento.

A atuação dos movimentos sociais como amicus curiae parte, pois, da premissa de que tais movimentos representam parte da sociedade civil23, organizada na busca e defesa de interesses desta mesma sociedade, com vistas a promover um contato mais próximo do Judiciário com a realidade e realizar um efetivo diálogo social ao par de um envolvimento coletivo nas questões importantes para o país, máxime quando se questiona o implemento, respeito e observação de normas constitucionais.

A contribuição ativa para a construção de melhores decisões pela apresentação ao Tribunal de outros elementos, fatores diversos, questionamentos e circunstâncias muitas vezes vistas somente na realidade do dia a dia, certamente traz maiores chances de que a matéria posta a julgamento seja melhor elucidada e compreendida pelos julgadores.

Conforme ensina Joaquín Herrera Flores, o direito está diretamente relacionado aos contextos sociais, econômicos e culturais, através dos quais as pessoas buscam tornar factíveis condições de vida com dignidade e, deste modo, a participação do processo democrático através dos vários instrumentos possíveis buscam o cumprimento de tais necessidades humanas (FLORES, 2011, p.14-15).24

Como protagonistas da realidade há que se reconhecer a representatividade dos movimentos sociais para atuação como amicus curiae, ainda que não possuam estatutos com a declaração clara de seus fi ns e objetivos, mas a partir de suas características formativas, do reconhecimento coletivo de luta por determinado direito, do congraçamento em torno de uma causa e de busca de transformação da realidade social, há que se perceber “o que a rua grita” (WARAT, 2010, p.52-53).25

23 “Nas sociedades globalizadas, multiculturais e complexas, as identidades tendem a ser cada vez mais plurais e as lutas pela cidadania incluem, frequentemente (sic), múltiplas dimensões do self: de gênero, étnica, de classe, regional, mas também dimensões de afi nidades ou de opções políticas e de valores: pela igualdade, pela liberdade, pela paz, pelo ecologicamente correto, pela sustentabilidade social e ambiental, pelo respeito à diversidade e às diferenças culturais, etc.”. (SCHERER-WARREN, 1996, p.117). 24 “Lo que hace universales a los derechos no radica, pues, en la adaptación a una ideología determinada que los coloque como ideales más allá de los contextos sociales, económicos y culturales, sino el ser ese marco que permita a todos ir creando las condiciones que hagan factibles sus particulares concepciones de la dignidad. Por esa razón, el derecho, el pensamiento y la práctica jurídicos no deben considerarse como categorías previas ni a la acción política ni a las prácticas económicas. Las plurales y diferenciadas luchas por la dignidad humana constituyen la razón y la consecuencia de la lucha por la democracia y por la justicia. No estamos ante privilegios, meras declaraciones de buenas intenciones o postulados metafísicos de una naturaleza humana aislada de las situaciones vitales. Por el contrario, el derecho, visto de los presupuestos de la “crítica jurídica” debe constituirse en la afi rmación de la lucha del ser humano por ver cumplimentados sus deseos y necesidades en los contextos vitales en que está situado”. (FLORES, 2011, p.14-15).25 Segundo Warat, um racionalismo exacerbado: “Contamina todo o corpo social. O seu maior sintoma se manifesta como perda da sensibilidade, em mim, no meu vínculo com os outros e no modo de perceber o mundo, na frieza da fi cção de verdade e na fuga alienante que proporciona às abstrações e os anseios modernos de universalidade que não nos deixam perceber o que a rua grita, como mostra esse velho fi lme de Enrique Muiño e Angel Magaña, de 1948: A rua grita. A rua grita e não é escutada pelos juízes, advogados, teóricos do Direito, professores, médicos, políticos, etc., instituições onde o clamor da rua não chega bloqueada pela razão técnico-instrumental. [...] Teremos que reaprender a escutar a rua enquanto produtora do novo. A inovação como diferença que nos permite escapar das zonas cristalizadas de nossa cultura, dos lugares comuns que aprisionam em seu vazio. O racionalismo que barbariza.” WARAT, 2010, p.52-53. (grifos acrescentados).

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Do exame de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o deferimento e indeferimento ao pedido de ingresso como amicus curiae, verifi cou-se que o exame da representatividade, em grande parte, se circunscreve a análise do estatuto social26 apresentado pelo pretenso amici e das fi nalidades instituídas pela entidade,27 embora também seja observado pelo relator da ação em julgamento se o interesse do requerente é coletivo e não só individual,28 se existe compatibilidade de interesses do requerente com a matéria objeto da demanda,29 se são apresentados novos elementos que não constam do

26 “DECISÃO (Petição Avulsa STF n.46140/2008). AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE ADMISSÃO NA QUALIDADE DE AMICUS CURIAE: DEFERIMENTO. 1. Junte-se, quando do retorno dos autos da Procuradoria-Geral da República. 2. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil requer seja admitido na presente ação na qualidade de ‘amicus curiae’ (Petição Avulsa STF n.46140/2008). 3. Argumenta ser entidade interessada, porque o tema “afeta, mais especifi camente, os advogados, que se veem em desvantagem visual quando, representando alguém, litigam contra o Ministério Público” (Petição Avulsa STF n.46140/2008). Pede “seu ingresso no feito aderindo integralmente às razões expostas na exordial” (Petição Avulsa STF n.46140/2008). 4. O peticionário apresenta os documentos necessários à comprovação dos requisitos necessários para o seu ingresso na ação na qualidade de amicus curiae, como pretendido. 5. Defi ro o pedido. À Secretaria para fazer constar dos autos a entidade na condição aqui postulada. Publique-se. Brasília, 9 de abril de 2008.” Ministra CÁRMEN LÚCIA. ADI 3962. (Grifos acrescentados). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=71&dataPublicacaoDj=22/04/2008&incidente=2559670&codCapitulo=6&numMateria=52&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.“Despacho: A Associação Alagoana de Magistrados de Alagoas (ALMAGIS) e a Associação do Ministério Público de Alagoas (AMPAL) requerem sua admissão na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade na qualidade de amici curiae. A relevância da matéria é patente, porquanto no presente processo são discutidos temas sensíveis, tais como a possibilidade de lei estadual criar varas especializadas em delitos praticados por organizações criminosas, a legitimidade de um colegiado de magistrados de primeiro grau de jurisdição, também instituído por diploma legal estadual, a constitucionalidade de procedimentos sigilosos criminais, a possibilidade de fi xação de mandatos para os juízes titulares de Vara Criminal, dentre outros. A representatividade dos requerentes é comprovada através dos respectivos estatutos acostados aos autos. Além disso, as associações postulantes buscam a proteção dos interesses de categorias diretamente interessadas no deslinde do caso, quais sejam, a magistratura e o Ministério Público. Ademais, na sessão do dia 22 de abril de 2009, no julgamento da ADI-AgR nº 4.071 (Rel. Min. Menezes Direito, DJ de 15.10.2009), o Plenário deste Supremo Tribunal Federal decidiu que os pedidos de ingresso dos amici curiae poderão ser formulados até a inclusão do processo em pauta para julgamento, o que revela a tempestividade deste pedido. Ex positis, admito o ingresso dos requerentes como amici curiae, na forma do art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99. (...)”. Ministro-Relator Luiz Fux. ADI 4414. (Grifos acrescentados) Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=61&dataPublicacaoDj=31/03/2011&incidente=3886018&codCapitulo=6&numMateria=41&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.27 Neste sentido, a conclusão de Thais Catib de Laurentiis, em estudo monográfi co sobre a matéria, para a qual, “De acordo com as decisões encontradas, o principal método utilizado pelos Ministros para demonstrar a ‘representatividade dos postulantes’ é pela análise do Estatuto Social do peticionário (amicus em potencial). Por via deste, os Ministros retiram a fi nalidade da Associação ou Instituição que pede a intervenção no processo. Também procuram encontrar as qualidades e regulamentação destas para justifi car suas conclusões”. LAURENTIIS, Thais Catib de. A caracterização do amicus curiae à luz do Supremo Tribunal Federal. São Paulo, 2007. 88 f. Monografi a apresentada à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público, p.36.28 “Helder Rodrigues da Silveira requereu, às fl s. 344-392, ingresso no feito na condição de amicus curiae. Não assiste razão ao pleito, uma vez que o requerente, sendo candidato ao concurso, tem interesse concreto no feito. Ausente, portanto, o requisito de representatividade inerente à intervenção prevista no art. 7º, § 2º da Lei 9.868, de 10.11.199, o qual, aliás, é explícito ao admitir somente a manifestação de outros “órgãos ou entidades”, como medida excepcional aos processos objetivos de controle de constitucionalidade. Indefi ro, portanto, o ingresso do requerente na presente ação direta de inconstitucionalidade.” (Grifos acrescentados) Ministro-Relator Gilmar Mendes. ADI 3580. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=80&dataPublicacaoDj=25/04/2012&incidente=2322514&codCapitulo=6&numMateria=56&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.29 “A Federação Brasileira das Cooperativas dos Anestesiologistas – FEBRACAN requer sua admissão no feito na qualidade de amicus curiae [fl s. 503/ 549]. A pertinência do tema a ser julgado por este Tribunal com as atribuições institucionais da requerente legitima a sua atuação. (...) Ex positis, admito o ingresso da FEBRACAN no feito, na qualidade de amicus curiae , na forma do artigo 7º da Lei n.9.868/99. (Grifos acrescentados). Ministro-Relator Luiz Fux. RE 598085 / Julgamento: 21/02/2013. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%28amicus+e+curiae%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/adrfafd Acesso em: 05.03.2013.

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processo30 e se não ocorre sobreposição de interesses entre o amicus e a parte envolvida na ação.31

Importa ressaltar, contudo, que embora na maioria dos casos a representatividade dos requerentes seja examinada através da verifi cação da fi nalidade institucional do pretenso amici, constante dos respectivos estatutos, além dos outros apontamentos acima referidos, no caso da ADPF nº 186,32 de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que examinou a constitucionalidade dos atos da Universidade de Brasília – UNB para utilizar o critério racial na seleção de candidatos para ingresso na universidade (sistema de cotas), admitiu o ingresso de movimentos como: o Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro – MPMB, o Movimento Negro Unifi cado – MNU, a Educação e cidadania de Afrodescendentes e Carentes – EDUCAFRO e o Movimento contra o Desvirtuamento do Espírito da Política de Ações Afi rmativas nas Universidades Federais, por considerar que tais entes atenderam aos requisitos necessários para participar na qualidade de amigos da Corte.

No pedido de ingresso como amici, o Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro – MPMB, afi rmou tratar-se da primeira associação de mestiços (pardos) do país atuando desde 2001. O Movimento Negro Unifi cado – MNU, por sua vez, sustentou que é um dos movimentos sociais com mais sólida atuação no combate ao racismo e que, em seu espírito de formação e em sua experiência, congrega diversas organizações afro-brasileiras. A Educação e cidadania de Afrodescendentes e Carentes – EDUCAFRO, afi rmou possuir a missão de promover a inclusão da população, pobre em geral e negra em especial, nas universidades públicas e particulares por meio da concessão de estudo, através da

30 “(...) A mera manifestação de interesse em integrar o feito, sem o acréscimo de nenhum outro subsídio fático ou jurídico relevante para o julgamento da causa, não justifi ca a admissão do postulante como amicus curiae. Ademais, o SINDIMÉDICO não logrou demonstrar que detém experiência e autoridade em matéria de saúde social, uma vez que dentre as suas “prerrogativas”, elencadas no art. 2º de seu Estatuto, fi guram apenas disposições de caráter eminentemente coorporativas e de interesse próprio da categoria, como por exemplo”. (Grifos acrescentados) Ministro-Relator Joaquim Barbosa, em 15.04.2005. ADI nº 3311/DF, DJ n.77 do dia 25.04.2005. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=34&dataPublicacaoDj=21/02/2005&incidente=2246660&codCapitulo=6&numMateria=13&codMateria=2 Acesso em 19.02.2013.31 “Petição/STF nº 73.642/2011 (eletrônica) DECISÃO PROCESSO OBJETIVO – INTERVENÇÃO DE TERCEIRO – REPRESENTATIVIDADE – SOBREPOSIÇÃO. 1. A Assessoria prestou as seguintes informações: A mencionada ação direta versa a possível inconstitucionalidade da Resolução n° 135, de 13 de julho de 2011, do Conselho Nacional de Justiça, a qual “dispõe sobre a uniformização de normas relativas ao procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados, acerca dos ritos e das penalidades, e dá outras providências”. A Associação Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES requer seja admitida na qualidade de terceiro, no processo em referência. Tece considerações quanto ao mérito e apresenta cópias do instrumento de mandato, do estatuto social e da ata de posse da Diretoria, dela constando o nome do subscritor da procuração. Aduz ter interesse na matéria por caber-lhe defender os direitos dos magistrados estaduais e o fortalecimento das Justiças dos Estados da Federação. O processo foi apresentado em mesa para julgamento em 5 de setembro de 2011. 2. Observem a ordem natural das coisas, a organicidade do Direito. Os magistrados brasileiros estão representados nesta ação direta de inconstitucionalidade pela Associação maior, ou seja, a Associação dos Magistrados Brasileiros. Admitir outras associações de magistrados não trará o objetivo da participação, que é o esclarecimento da matéria. Haveria, em última análise, sobreposição a ocasionar a complexidade da tramitação do processo. 3. Indefi ro a participação da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES.” (Grifos acrescentados). Ministro- Relator Marco Aurélio. ADI4638. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=178&dataPublicacaoDj=16/09/2011&incidente=4125637&codCapitulo=6&numMateria=136&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.32 Decisão monocrática na ADPF 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDiarioProcesso.asp?numDj=119&dataPublicacaoDj=30/06/2010&incidente=2691269&codCapitulo=6&numMateria=101&codMateria=2 Acesso em: 05.03.2013.

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dedicação de seus voluntários em forma de mutirão e dos funcionários que atuam nos setores de trabalho de sua sede nacional.33

Também solicitou o ingresso como amicus curiae o Movimento contra o Desvirtuamento do Espírito da Política de Ações Afirmativas nas Universidades Federais, sob o argumento de que atua nacionalmente na luta contra as ilegalidades/inconstitucionalidades contidas nas resoluções editadas nas universidades públicas para implementação do programa de ações afi rmativas no ensino superior, em razão do que podem acostar informações de extrema importância para o julgamento.34

Tais decisões demonstram o reconhecimento de que o ingresso de movimentos sociais diretamente envolvidos na questão discutida na ação constitucional é importante no sentido de trazer aportes a proporcionar a mais adequada resolução do litígio constitucional, por trazerem aos autos toda a experiência adquirida ao longo da luta pelos valores e princípios que o movimento defende. A representatividade, embora neste estudo se considere que não deva ser tratada como requisito absoluto, se mostra patente pela atuação dos referidos movimentos o que certamente autoriza e demonstra a capacidade de apresentarem em juízo o posicionamento e os pedidos do grupo social que representam.

Frise-se, contudo, que junto à mesma ADPF nº 186, restou indeferido o pedido do Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Brasília – DCE-UnB, representando o movimento estudantil, especifi camente dos estudantes da Universidade de Brasília, sem maiores explicações.35

Avançamos, mas é preciso mais avançar.

O aprofundamento da participação cidadã está na raiz do conceito de democracia, cujo fl orescimento, crescimento e manutenção, dependem diretamente da construção social coletiva. Como propugna Joaquín Herrera Flores “La democracia no se otorga, la democracia se conquista” (FLORES, s.n., p.89) , e esta conquista se dá ao longo da existência, no cotidiano, no evolver social, a democracia,

[…] se conquista luchando día a día construyendo las condiciones materiales que nos van a permitir disfrutar de las libertades formales ya conseguidas. Es preciso, pues, “distribuir” entre la ciudadanía las posibilidades que éstas nos garantizan. En otros términos, hay que conseguir distribuir el poder político lo máximo posible para que en conjunto todas y todos, no sólo los que parten ya de condiciones materiales adecuadas, podamos disfrutar de la libertad y del estado de derecho. (FLORES, s.n., p.89)

33 Informações constantes da decisão monocrática proferida nos autos da ADPF nº 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, publicada no DJ nº 119 de 30.06.2010. 34 Informações constantes da decisão monocrática proferida nos autos da ADPF nº 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski publicada no DJ nº 149 de 13.08.2010.35 Informações constantes da decisão monocrática proferida nos autos da ADPF nº 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, publicada no DJ nº 119 de 30.06.2010.

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À vista da fi nalidade democrático-participativa do instituto do amicus curiae, compreende-se que o exame do pedido de ingresso nas ações constitucionais deve ser aferido caso a caso,36 verifi cando-se as especifi cidades de cada ação. A segurança não está na criação de um critério absoluto que se demonstrado possibilitará o ingresso na demanda, condição, como já aduzido anteriormente, pode acabar por limitar o acesso de outros entes interessados em participar. Mas sim no exame da potencialidade do requerente em acrescentar elementos da realidade social que o mundo dos autos, a mais das vezes, não teria conhecimento. Está em permitir que o cidadão participe da democracia que ele mesmo instituiu. Mostra-se presente na possibilidade de múltiplas dimensões do ambiente social, presentes na sociedade complexa e multicultural em que vivemos, se fazerem ouvir. Apresenta-se pela possibilidade de diversas manifestações de valores e de opções políticas, seja pela liberdade, pela igualdade, pela diversidade, etc., sejam consideradas como fazendo parte do todo e por isso são dignas de respeito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAISA importância do sistema de controle concentrado de constitucionalidade está em

resguardar os preceitos fundamentais da comunidade que o instituiu. Por tratar-se de processo objetivo, em que não há partes nem pretensão subjetiva a ser satisfeita, mas o exame em abstrato da (in)constitucionalidade de determinado dispositivo legal, em um primeiro momento, o processo de controle concentrado veda a intervenção de terceiros interessados em participar da demanda, como se verifi ca da leitura do caput, do art. 7º, da Lei nº 9.868/99.

Demonstrando uma tendência à abertura do processo constitucional à maior participação, jurisprudência e legislação passaram a admitir a intervenção do amicus curiae como um terceiro interveniente especial, que atua não em razão de interesse próprio, mas em face de um interesse maior, de caráter plural e democrático, no sentido de dar impulso a uma aproximação do Tribunal Constitucional com a sociedade, de promover o aprimoramento do debate judicial e assim conferir legitimidade democrática às decisões do Tribunal.

No entanto, segundo previsão do § 2º, do art. 7º, da Lei nº 9.868/99, a intervenção do amicus curiae esta condicionada a demonstração da representatividade, considerada pela doutrina e jurisprudência, como a comprovação de que o pretenso amici possui interesse institucional para atuar na demanda constitucional, no sentido de que sua pretensão transcende o âmbito individual sendo capaz de congregar interesses coletivos e até mesmo difusos.

36 Neste sentido, Cassio Scarpinella Bueno, aduz que a representatividade não pode ser aferida em abstrato, conforme se verifi ca: “O que nos parece pertinente ser afi rmado à guisa de conclusão deste item é a impossibilidade de, em abstrato, isto é, sem confrontar o específi co objeto da ação direta de inconstitucionalidade com a razão institucional de ser e de agir, concretamente, o amicus curiae, verifi car em que condições se mostram presentes os requisitos autorizadores do art. 7º, § 2º, da Lei n.9.868/99, em específi co para as preocupações aqui mais presentes, o requisito da representatividade daquele que pretende ingressar no processo e, de alguma forma, contribuir ativamente para o proferimento de melhor julgamento, acrescentando fatos, circunstâncias, elementos, indagações e preocupações para a matéria que está posta para julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. (BUENO, 2008, p.157).

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O (in)deferimento pelo Supremo Tribunal Federal do ingresso do requerente a amicus tem se pautado, a mais das vezes, na verifi cação da comprovação de tal requisito, através do exame das fi nalidades institucionais constantes dos estatutos sociais apresentados, como também do interesse coletivo e não individual do requerente, da compatibilidade de interesses com a matéria objeto da demanda, da apresentação de novos elementos ao processo e da não ocorrência de sobreposição de interesses.

À vista da fi nalidade democrático-participativa do instituto do amicus curiae, compreende-se que a fi xação de um requisito absoluto, mas de defi nição fl uída, acaba por desvirtuar o caráter democrático do instituto, na medida em que tal exigência importa, irremediavelmente, em restrição ao acesso à participação da sociedade nas ações de controle de constitucionalidade, quando na verdade deveria abrir passo a todos quantos fossem os interessados a participar, tendo em vista que a fi nalidade do instituto corresponde exatamente à abertura a participação democrática.

Nesse sentido, os movimentos sociais também possuem condições de intervir como amicus curiae, pois sua atuação parte da premissa de que representam parte da sociedade civil organizada na busca e defesa de interesses de todos ou do grupo social a que representam, com vistas a promover um contato mais próximo do Judiciário com a realidade e realizar um efetivo diálogo social ao par de um envolvimento coletivo nas questões importantes para o país, máxime quando se questiona o implemento, respeito e observação de normas constitucionais em ações cujos resultados importarão em uma onda refl exiva contra todos. Avanços na democratização das decisões em sede de controle de constitucionalidade já são sentidos, veja-se as inúmeras decisões pelo deferimento do ingresso de entidades como amicus curiae, mas ainda é preciso mais avançar a fi m que a fi nalidade democrática do instituto realmente seja alcançada.

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O ativismo judicial por meio de súmulas vinculantes: uma análise acerca dos paradoxos da separação de poderes

na atualidadeMichael Procopio Ribeiro Alves Avelar

RESUMOO Supremo Tribunal Federal tem demonstrando certo protagonismo no cenário político

nacional, em virtude da judicialização de vários temas relevantes para a sociedade e do ativismo de seus ministros. Nesse contexto, a Emenda Constitucional 45/04 instituiu as súmulas vinculantes, ampliando o poder da Corte. O presente trabalho busca demonstrar que o ativismo judicial pode ser perpetrado por meio das súmulas vinculantes e que, assim, o STF pode utilizar-se desse instrumento para exercer o poder legislativo, desrespeitando o princípio da separação de poderes.

Palavras-chave: STF. Separação de poderes. Ativismo judicial. Súmulas vinculantes.

Judicial activism through “súmulas vinculantes”: An analyses about paradoxes of separation of powers and its present-day

ABSTRACTSupremo Tribunal Federal (Brazilian Federal Supreme Court) has been prominent in the

national political scenery, because of judicialization of plenty of important issues and its judges’ activism. In this context, Court’s power was increased up by the Constitutional Amendment 45/04, which established Brazil’s legal institute called “súmulas vinculantes”. This work aims to demonstrate that judicial activism can be perpetrated by the “súmulas vinculantes” and, because of it, STF can use this instrument to exercise legislative power, what disrespects the principle of separation of powers.

Keywords: STF. Separation of powers. Judicial activism. “Súmulas vinculantes”.

1 DO ATIVISMO JUDICIAL

1.1 Da separação de poderes ao ativismo judicialO Estado é o poder soberano, que emana de um povo, sobre determinado território,

com fi nalidades determinadas, o qual comporta três funções estatais básicas: a executiva, a legislativa e a jurisdicional.

Nesse contexto, o postulado da separação de funções ou de poderes preconiza que cada uma dessas funções deve incumbir a um centro de poder diferente. Assim, as

Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar é Bacharel em Direito pela Universidade Paulista e Analista Judiciário no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Direito e Democracia v.13 n.1 p.158-170 jan./jun. 2012Canoas

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funções executiva, legislativa e jurisdicional devem ser exercidas, respectivamente, pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário. Esse princípio associou-se ao conceito de Estado de Direito, chegando ao status de direito fundamental do homem (BONAVIDES, 2002), estando consagrado no artigo 2º da Constituição de 1988.

Com a transformação desse postulado, tanto no direito brasileiro quanto no comparado, fala-se em fl exibilização da separação de poderes, visualizando-se como inadequada a separação rígida nos moldes propostos por Montesquieu, como preleciona o Professor André Tavares (TAVARES, 2009). Na visão contemporânea, a divisão de poderes tem sido compreendida a partir de dois pontos essenciais; a necessidade de contenção dos poderes da maioria, limitando-se o poder político para proteção da minoria, e a crise da função legislativa (VALLE et al., 2009). Nessa conjuntura, surge o ativismo judicial.

O ativismo judicial é uma postura que o Judiciário pode assumir em relação aos Poderes Executivo e Legislativo, mormente no que tange à interpretação da Constituição. Segundo sua proposta, os juízes, além de exigirem o cumprimento formal da lei, devem decidir com base em interpretações extraídas dos princípios do Direito, notadamente os constitucionais. Expande-se o conteúdo da Constituição, modifi cando o alcance de suas normas com vistas a atingir os objetivos que ela prevê. Com essa postura, a atuação jurisdicional interfere em decisões políticas do governo, analisando-as sob a ótica dos preceitos extraídos do direito positivo. É realizada uma releitura dos atos governamentais sob a égide dos valores advindos da Constituição. Os juízes podem, inclusive, passar a ditar políticas públicas. Tem-se, assim, uma atitude mais audaciosa dos juízes devido à ilação de princípios constitucionais abstratos, tais como a dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade de expressão, etc. (OLIVEIRA, 2008). Sobre o tema, o festejado constitucionalista estadunidense Ronald Dworkin assim esclarece:

O programa do ativismo judicial sustenta que os tribunais devem aceitar a orientação das chamadas cláusulas constitucionais vagas (…). Devem desenvolver princípios de legalidade, igualdade e assim por diante, revê-los de tempos em tempos à luz do que parece ser a visão moral recente da Suprema Corte, e julgar os atos do Congresso, dos Estados e do presidente de acordo com isso. (DWORKIN apud OLIVEIRA, 2008)

O ativismo representa a avocação de funções mais amplas pelos tribunais, que passam a interferir nas decisões políticas fundamentais do Estado. Desse modo, os programas de governo e as leis infraconstitucionais passam a ser vistas através das lentes da interpretação que o Judiciário dá aos preceitos previstos na Constituição, ainda que abstratos ou implícitos. É uma posição diametralmente oposta ao modelo da autorrestrição ou da moderação judicial, a qual preconiza que o Judiciário se abstenha de avaliar a posição do Legislativo e do Executivo quando se trata de questões controversas do ponto de vista moral ou político. Segundo a ideologia da autorrestrição, a avaliação jurisdicional é feita no âmbito formal, analisando-se, por exemplo, a observância do processo legislativo, mas

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não a decisão política contida em determinada lei. Os magistrados, sob esse ponto de vista, tendem a proferir decisões sobre atos do governo com base em regras objetivas.

Cumpre ressaltar que o modelo de ativismo judicial está intrinsecamente ligado à judicialização, que consiste na tomada de decisões de alta relevância, do ponto de vista político-social, pelo Judiciário. Com a judicialização, a competência para resolver assuntos que repercutem amplamente na sociedade vai sendo deixada sob a responsabilidade dos juízes, ao invés de serem decididos pela Administração Pública ou regulados pela legislação ordinária. Analisando este fenômeno no Brasil, o professor Luis Roberto Barroso aponta como suas causas o processo de redemocratização do país, a constitucionalização abrangente e o sistema judicial de controle de constitucionalidade (BARROSO, 2009). E, ainda valendo-se dos ensinamentos de Barroso, cabe salientar que, apesar da ligação entre a judicialização e o ativismo, há diferenças entre eles. A judicialização não é uma decisão nem uma forma de atuação dos juízes, tendo em vista que a sua competência não é por eles defi nida, mas pela legislação. O ativismo, por sua vez, é uma postura que eles podem ou não adotar.

O ativismo, portanto, tem na judicialização seu catalisador. À medida que se aumenta o leque de assuntos sob a tutela jurisdicional, mais fácil se torna a intervenção do Judiciário nos rumos políticos do país, exercendo um papel de protagonista no cenário político.

Em breve síntese, a crítica aponta que o ativismo judicial abalaria o equilíbrio entre os poderes, por representar uma ingerência do Judiciário em tarefas originariamente afetas ao Legislativo e ao Executivo, tirando dos centros de comando democraticamente eleitos as decisões que mais afetam o corpo social. Seria então uma postura que torna os juízes mais poderosos, entregando-lhes grande parcela da gestão do Estado, sem que tenham recebido essa legitimidade por meio do sufrágio. Seria, segundo Oscar Vilhena Vieira, uma ruptura do postulado da separação dos poderes que exporia o próprio Judiciário e o fragilizaria ante a responsabilização pelas suas opções políticas (VIEIRA, 2008).

Traz-se à colação, em oposição a tais críticas, a posição de Tiago Neiva Santos, que vê no ativismo judicial “um movimento que, advindo de um efetivo pluralismo democrático de acesso ao judiciário e de uma crescente judicialização das questões postas na sociedades, veio para reforçar as bases democráticas da formação da vontade social expressa pelo Estado” (SANTOS, 2007). Sílvio Dobrowolski vai mais longe ao descrevê-lo como indispensável no estado contemporâneo, em virtude da coletivização dos direitos e da dispersão de interesses. Faz, no entanto, importante ressalva, de que devem sempre ser observadas “as normas legisladas e a separação dos poderes” (DOBROWOLSKI, 1995).

1.2 Do ativismo do STF O Supremo Tribunal Federal tem decidido importantes questões políticas e, assim,

obtido amplo espaço na mídia. A esse respeito, como nota Vieira, cumpre mencionar que esse protagonismo do Judiciário não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Pelo

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contrário, o avanço dos juízes no cenário político e o aumento de suas atribuições é um fenômeno que vem ocorrendo em vários países (VIEIRA, 2008).

Conquanto se trate de uma situação presente em diversos ordenamentos jurídicos, o ativismo judicial da Corte Maior brasileira apresenta peculiaridades. Isso deriva das próprias atribuições do STF que abrangem a competência recursal, analisando recursos em matéria constitucional; a competência originária, de julgar determinadas ações quando o polo passivo for ocupado por determinadas autoridades, no chamado foro privilegiado, e, por fi m, o mister de efetuar o controle concentrado de constitucionalidade. Vieira denomina esse fenômeno de “Supremocracia”. Primeiro, pela autoridade da Corte Excelsa em relação aos demais órgãos jurisdicionais, que ganha vulto com a criação de instrumentos para vinculá-los, tais como a reclamação constitucional. Segundo, em virtude do aumento dessa autoridade em detrimento dos demais poderes (VIEIRA, 2008).

Nesse contexto de fortalecimento da Suprema Corte brasileira, foi-lhe dada competência para editar súmulas vinculantes, as quais são de observância obrigatória pelo próprio Judiciário e pelo Poder Executivo. Torna-se, assim, de clara importância verifi car se o ativismo judicial do STF pode ser perpetrado e até mesmo potencializado por meio da utilização desse instrumento jurisdicional.

2 DAS SÚMULAS VINCULANTES

2.1 Das súmulas vinculantes, dos precedentes no Common Law e da criação do DireitoAs súmulas da jurisprudência dominante com efeito vinculante foram introduzidas

no ordenamento jurídico, após longo percalço no Congresso Nacional, pela Emenda Constitucional (E.C.) nº 45 de 2004. Só podem ser editadas pelo Supremo Tribunal Federal, desde que atendidos os requisitos previstos na C.F. (Constituição Federal) e na Lei nº 11.417 de 19 de dezembro de 2006. O enunciado pode ser aprovado no caso de existirem reiteradas decisões da Corte Maior sobre matéria constitucional, sobre a qual haja, entre os órgãos judiciários ou entre estes e a Administração Pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre uma mesma questão. Deve ser, ainda, aprovado por maioria de dois terços dos ministros do STF.

O objeto para formulação de súmula vinculante é a validade, a interpretação e a efi cácia de normas determinadas. Pode-se tratar de questões atinentes à interpretação de normas constitucionais ou destas em confronto com diplomas normativos infraconstitucionais. Sua inspiração remonta aos precedentes, utilizados no sistema do Common Law. O Common Law, um dos grandes modelos jurídicos do Ocidente, tem origem anglossaxã, sendo o modelo que se estrutura sobre as decisões judiciais, tendo, pois, caráter judicialista. As decisões de casos particulares formam os precedentes, denominados stare decisis, termo derivado da expressão stare decisis et quieta non movere (mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido). Os precedentes têm valor

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normativo, constituindo fonte do direito e vinculando a forma pela qual os demais órgãos jurisdicionais devem julgar. Assim, a primeira decisão sobre determinado tema, chamada leading case, serve de paradigma para os próximos casos.

Por sua vez, a família do Civil Law é o modelo codifi cado continental, centralizado em sua fonte formal mediata, que é a lei. Trata-se de um sistema positivista, em que se busca estabelecer normas gerais e abstratas, de cujas premissas, por meio de procedimentos lógico-científi cos, se obtém conclusões para aplicação nos casos específi cos. Tal é o ordenamento jurídico doméstico, dentre outros de tradição romano-germânica.

Após essa sucinta digressão acerca das duas famílias do direito, conclui-se que a criação das súmulas vinculantes, no direito brasileiro, inseriu um instituto forjado no sistema do Common Law em um ordenamento nitidamente romanista (CARVALHO, 2009).

Desse modo, enfraquece-se a ideia de que a criação das normas jurídicas é tarefa original e privativamente atribuída ao Poder Legislativo, em sua típica função legiferante, e de que ao Judiciário incumbiria apenas a aplicação do direito posto nos casos concretos, com vistas a obter a pacifi cação social. Mesmo porque, como preleciona Kelsen, a produção normativa se completa com a atuação jurisdicional, de modo que ao Judiciário também compete a função criadora do direito. A decisão judicial seria, assim, a continuação do processo de criação jurídica, defi nindo a norma jurídica individual. Tal função criativa seria mais notável ao se atribuir a competência aos magistrados de editar normas gerais. Daí mencionar o grande mestre erradicado nos Estados Unidos a chamada descentralização da função legislativa, ao identifi car a atuação do Judiciário em concorrência com o Legislativo (KELSEN, 2009), o que abarcaria a criação de súmulas vinculantes.

Deve-se recordar, ainda, que a produção do Direito pelo Judiciário já vem sendo aceita pela doutrina, destacando-se no sistema de precedentes, pelo qual as decisões anteriores de determinado tribunal têm força cogente. André Ramos Tavares, por exemplo, defende que o Judiciário atue infl uindo na formação do ordenamento jurídico, inclusive por meio das súmulas vinculantes. Defende o mestre, entretanto, que as súmulas vinculantes não possuem o mesmo patamar da lei, tendo em vista não poderem destoar dela (TAVARES, 2009).

As súmulas vinculantes se tornam, por evidente, verdadeiras fontes do direito, por serem precedentes que orientam, de forma obrigatória, as decisões posteriores. Não obstante, desde que dentro das diretrizes estabelecidas pela Constituição, é mister reconhecer referida fonte como legítima, dada a evolução do conceito de tripartição dos poderes.

2.2 Críticas às súmulas vinculantesComo instituto polêmico e inovador, as súmulas vinculantes tornaram-se alvo de

debate no meio jurídico, tendo sido elencados aspectos positivos e negativos. Faz-se, aqui, uma pequena enumeração das críticas mais consistentes e das respostas correlatas.

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A primeira crítica que se faz às súmulas vinculantes é a possibilidade de se causar o “engessamento” do Judiciário, tornando os órgãos julgadores hierarquicamente abaixo do STF invariavelmente vinculados ao pensamento deste. De tal maneira, restaria tolhida a liberdade funcional dos magistrados, a qual representa, em última análise, uma garantia do cidadão de obter uma prestação jurisdicional imparcial.

Como exemplos de críticos, pode-se citar a ilustre ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, para quem as súmulas vinculantes representam efetiva reforma constitucional só passível de mudança por meio de emendas (ROCHA, 1997), e o ex-ministro do STF. Eros Grau, o qual afi rma que: “nenhuma razão ou pretexto se presta a justifi car essa manifestação do totalitarismo, que também nenhuma lógica pode sustentar e que, afi nal, há de agravar ainda mais a crise do direito ofi cial, em nada contribuindo à restauração de sua efi cácia.” (GRAU apud MORAES, 2010).

Assumindo a defesa do instituto em estudo, Alexandre de Moraes (MORAES, 2010) e Gilmar Ferreira Mendes (MENDES et al., 2009) apontam a possibilidade de revisão e cancelamento das súmulas como forma de se acompanhar a transformação do direito. Mendes ainda salienta que, no procedimento de revisão, torna-se mais fácil analisar o argumento de superação do enunciado do que nos vários recursos distribuídos diariamente.

Quanto à independência dos magistrados, Pedro Lenza aponta haver um choque de princípios, do qual deve prevalecer a segurança jurídica e a igualdade substancial ou formal sobre o preceito da liberdade do juiz (LENZA, 2010). André Tavares dá ênfase à unidade do direito, explicando que as súmulas podem evitar decisões diversas para casos análogos, o que manteria o bom funcionamento do Judiciário (TAVARES, 2009).

É de se lembrar, ainda, que apesar de serem resultado de interpretação de normas, os enunciados também precisam ser interpretados. Além do mais, é necessário que se verifi que em quais situações devem ser aplicados, operação denominada, no sistema dos precedentes, de distinguishing. Isso deixaria uma parcela de liberdade ao julgador, sem lhe tolher totalmente a independência para atuar.

Outra objeção apresentada é a falta de legitimidade do Judiciário para a criação do direito. A esse respeito, hodiernamente, a doutrina tem apontado para uma relação de harmonia e colaboração entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, de modo que o Professor Inocêncio Mártires Coelho fala em fl exibilização do princípio da separação de poderes (MENDES et al., 2009). Na defesa do instituto, André Ramos Tavares aponta três argumentos a favor da legitimidade, dizendo que a própria Constituição admite tal forma de atuar do Judiciário, que a capacitação técnica é forma de legitimação do Judiciário e que a legitimidade democrática não advém apenas da representatividade eletiva (TAVARES, 2009).

O maior argumento contra o instituto das súmulas vinculantes é ser ele instrumento de totalitarismo do Judiciário, o qual pode extrapolar sua função típica e imiscuir-se na competência do Legislativo, ao estipular normas gerais que alcançam

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e vinculam o Executivo. Ter-se-ia, então, ativismo por parte do Pretório Excelso, ao editar enunciados de caráter geral em matéria constitucional, o que será analisado a seguir.

3 DO ATIVISMO JUDICIAL E DAS SÚMULAS VINCULANTES

3.1 Da possibilidade do ativismo judicial por meio das súmulas vinculantes As súmulas vinculantes consubstanciam um entendimento do STF que deve ser

observado, obrigatoriamente, pelos demais órgãos jurisdicionais e pela Administração Pública. De plano, pode-se verifi car que a forma pela qual o Judiciário, por meio desse instrumento, pode imiscuir-se em função que não lhe é originalmente afeta é a edição de normas gerais, invadindo a esfera funcional do Legislativo. Com a edição de enunciados que vinculam o Judiciário e a Administração, o STF cria regras gerais sobre matéria constitucional, o que parece extrapolar de sua função típica. Nesse âmbito, há a lição do preclaro constitucionalista José Afonso da Silva, que entende existir essa usurpação da tarefa legiferante pelos juízes:

Os assentos eram, pois, as súmulas vinculantes de outrora, com a mesma força de lei, como uma forma de interpretação ofi cial, impositiva, tal como as interpretações autênticas e, nesse sentido, subversivas dos princípios do direito público, já que interpretação ofi cial obrigatória só é legítima quando feita pelo Poder Legislativo. Apesar disso, foram elas acolhidas no art. 103-A introduzido pela EC-45/2004. (SILVA, 2007)

Não destoa desse entendimento a ministra Cármen Lúcia, a qual, mesmo antes da aprovação da Emenda 45/2004, consignou seu pensamento de que as súmulas vinculantes transformariam a Corte Maior em autora de uma legislação paralela, que só poderia ser alterada por emenda constitucional (ROCHA, 1997).

Conforme já citado, Tavares manifesta-se de modo oposto, argumentando que, por estar o Judiciário vinculando à legislação, a súmula tem caráter infralegal, mesmo que dotada de efeito vinculante. Explica o respeitado mestre que o enunciado apenas consubstancia uma das interpretações possíveis do direito posto, excluindo as demais (TAVARES, 2009).

A incumbência de interpretação da Constituição Federal e de análise da conformação das normas inferiores com o Texto Magno pertence, de fato, ao Supremo Tribunal Federal. No entanto, consigne-se que, a título de interpretação, pode haver a criação de normas gerais, decidindo-se extra legem, acrescentando-se ao ordenamento jurídico verdadeiras novas leis no sentido material. Caso isso ocorra, ter-se-á uma ingerência na

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função legislativa, confi gurando de modo inequívoco o fenômeno denominado ativismo judicial. Isso porque a tarefa de promulgar diplomas normativos de caráter geral é função constitucionalmente atribuída às Casas Legislativas.

O próprio Ministro Gilmar Mendes, favorável à adoção das súmulas vinculantes, admite essa possibilidade:

Ao se analisar detidamente a jurisprudência do Tribunal, no entanto, é possível verifi car que, em muitos casos, a Corte não atenta para os limites, sempre imprecisos, entre a interpretação conforme delimitada negativamente pelos sentidos literais do texto e a decisão interpretativa modifi cativa desses sentidos originais postos pelo legislador.

No recente julgamento conjunto das ADIs 1.105 e 1.127, ambas de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o Tribunal, ao conferir interpretação conforme a Constituição a vários dispositivos do Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/94), acabou adicionando-lhes novo conteúdo normativo, convolando a decisão em verdadeira interpretação corretiva de lei. (MENDES et al., 2010)

Há ativismo também quando a Suprema Corte interpreta os princípios constitucionais de modo a abarcar situações não previstas na Constituição. Portanto, partindo da interpretação, pode a Corte criar regras partindo de uma visão subjetiva de preceitos genéricos, tais como a isonomia e a moralidade.

Portanto, se o Supremo Tribunal se utilizar das súmulas vinculantes para fi ns de inovar o ordenamento jurídico, excedendo a interpretação e acrescentando regramentos não impostos pelo legislador, haverá uma extrapolação de suas funções. É inegável, assim, a possibilidade de ativismo judicial por meio da edição de súmulas com efeito vinculante, que ocorrerá ou não dependendo do conteúdo que lhes servirem de objeto.

3.2 Das súmulas vinculantes permeadas de ativismo judicialAnalisando-se as súmulas vinculantes editadas pelo Pretório Excelso, podem-se

extrair duas amostras de ativismo judicial, a que recebeu o nº 11, referente ao uso de algemas, e a nº 13, que trata do nepotismo. A Súmula Vinculante nº 11 foi aprovada pela Corte Maior em 13 de agosto de 2008, com o seguinte enunciado:

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justifi cada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. (BRASIL, 2008)

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A linha que tomou a Corte Maior para aprovação do enunciado foi, como ponto de partida, uma releitura do artigo 1º, inciso III, e do artigo 5º, inciso XLIX, da Magna Carta, que tratam da dignidade da pessoa humana e do respeito à integridade física e moral dos presos. Por analogia, a Ministra Cármen Lúcia, relatora do habeas corpus 89.429-1, fez menção, ao artigo 234 e seu parágrafo primeiro, do Código de Processo Penal Militar, Decreto-Lei 1.002, de 21 de outubro de 1969, que tratam do emprego da força e do uso de algemas.

Verifi ca-se que, in casu, decisões sobre casos concretos, em que se analisou o uso da algema, foram levadas em conta para edição de um enunciado com status de norma geral, regulando a matéria com um texto cuja natureza é de lei em sentido material. Foi elaborado um rol exaustivo de situações em que se permite sua utilização: de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros.

Há uma regra contida no texto sumular que deixa explícito seu caráter de lei. Trata-se da disposição de que, se ocorrer uma das hipóteses excepcionais e for necessário lançar mão das algemas, a excepcionalidade deve ser justifi cada por escrito. E mais: no caso de não haver essa fundamentação, para a qual se exige a forma escrita, haverá a responsabilização administrativa, civil e penal do agente ou da autoridade, além da responsabilidade civil do Estado. Há ainda outra consequência, a nulidade da prisão ou do ato processual correlato.

Deve-se lembrar que não se trata, aqui, de interpretar a Constituição ou de efetuar o controle de constitucionalidade de normas, mas de efetiva atuação legislativa, notadamente quanto à exigência de justifi cativa com forma preestabelecida (escrita). Fica claro que o Judiciário editou norma, aplicável a todos de forma genérica, sem que houvesse manifestação do Congresso Nacional, a quem compete tal atividade.

A questão da nulidade da prisão ou do ato processual a que se relaciona a prisão mostra-se mais próxima da função jurisdicional, ao prever uma situação que pode, sob a égide da Constituição Cidadã, tornar eivado o ato processual ou tornar o encarceramento ilegal. Entretanto, ao estipular os casos em que algemar é licito ou é ilícito, bem como o procedimento de justifi car o ato, o Supremo Tribunal Federal agiu de forma a completar o direito posto, extrapolando a sua função de interpretá-lo.

Oportuno mencionar que, dos debates para aprovação da súmula sub examine, depreende-se que o eminente Ministro Cezar Peluso, preocupado com a possibilidade de descumprimento do texto a ser sumulado, que não previa consequências, aventou a possibilidade de se estabelecer uma sanção para tais casos. Ora, apesar de estar contido na função jurisdicional o poder de se impor multa em caso de descumprimento, verbi gratia as astreintes do processo civil, essa imposição é feita para os litigantes, para pessoas determinadas, não para qualquer um que, futuramente, descumpra a decisão judicial.

Deve-se ressalvar, por relevante, que a crítica não concerne ao mérito da questão, no tocante à legalidade ou não do uso de algemas e à necessidade de regras claras a respeito. O cerne da problemática é a legitimidade para proceder a tal controle, a competência

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para elaborar um texto normativo que impeça os abusos, pois, não é demais repisar, essa tarefa incumbe ao Poder Legislativo.

Ante o brevemente exposto, é forçoso concluir que houve atuação jurisdicional, na súmula vinculante em tela, além do que incumbe ao Judiciário, tendo-se um típico exemplo de ativismo judicial perpetrado pelo órgão de cúpula de tal poder.

Quanto à Súmula Vinculante nº 13, foi aprovada no dia 20 de agosto de 2008, com o texto que se traz à colação:

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afi nidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefi a ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confi ança ou, ainda, de função gratifi cada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. (BRASIL, 2008)

No início dos debates de sua aprovação, o Ministro Ricardo Lewandowski apresentou a seguinte proposta de redação:

A proibição do nepotismo na Administração Pública, direta e indireta, em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, independe de lei, decorrendo diretamente dos princípios contidos no artigo 37, caput, da Constituição Federal.

Com base em decisões anteriores do STF (proferidas na ação direta de inconstitucionalidade nº 1.521-4, no mandado de segurança 23.780-5, na medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade 12-6, nessa própria ação e no recurso extraordinário 579.951-4), apontou-se que o nepotismo contraria a Magna Carta, notadamente os princípios previstos em seu artigo 37. Desse modo, em sua proposta original acima transcrita, o enunciado representava uma exegese dos princípios constitucionais da Administração Pública, sem inovar no sistema jurídico doméstico.

No entanto, na redação aprovada, além de se cogitar da inconstitucionalidade da prática do nepotismo, foram criados parâmetros, numa atividade legiferante, ao se prever que se considera ilegítima a nomeação que recaia sobre cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afi nidade, até o terceiro grau. Defi nindo-se o grau de parentesco, o Supremo Tribunal traçou as diretrizes, impôs regras gerais específi cas e, com isso, excedeu aos seus poderes atribuídos pela Lei Política da nação. Em que pese a importância da matéria e a plausibilidade do dispositivo em estudo, a edição da Súmula Vinculante nº 13 ilustra o que se chama hodiernamente de ativismo judicial.

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Para fi nalizar o estudo da súmula em tela, traz-se à colação a conveniente conclusão de Eduardo Appio sobre o assunto:

O STF passa a aceitar a incumbência de regular os mais importantes temas da agenda política do país, exercendo verdadeira atividade legislativa (positiva), convertendo-se, doravante, na Corte Constitucional mais ativista do mundo ocidental e principal Casa Legislativa do país. O resultado da súmula, muito embora correto do ponto de vista da ética política, é consequência do uso indevido de um instrumento normativo que deveria estar reservado para os casos de revisão da atividade política dos demais Poderes da República. Em uma democracia, os fi ns – mesmo que nobres – nunca justifi cam os meios. (APPIO, 2008)

Portanto, tal enunciado também exemplifi ca o ativismo judicial materializado em súmulas vinculantes.

4 CONCLUSÃOO atual protagonismo do Supremo Tribunal Federal tem como base o ativismo

judicial de seus membros e a crescente judicialização no plano político do país. Incrementando essa primazia do órgão de cúpula do Judiciário, a Emenda Constitucional 45/2004 criou as súmulas vinculantes, mecanismo criado para dar maior efetividade à jurisprudência pacífi ca do Pretório Excelso que pode ser também veículo de ativismo judicial, com a criação de normas gerais com força cogente. Tornam-se, assim, regras ditadas não pelo Legislativo, mas uma legislação paralela emanada de um tribunal.

Ainda que se argumente que doutrina já apregoa a fl exibilização da separação de poderes, a súmula vinculante que sirva de veículo para o ativismo representa um poder desmedido, que pode abalar o equilíbrio entre os Poderes. Não há mecanismo que sirva de contenção a esse instituto, que pode inaugurar um governo de juízes (VALLE et al., 2009).

Cumpre frisar que a súmula vinculante, por si só, não representa uma usurpação da função legislativa pelo Judiciário, mas, caso seus preceitos tenham sido elaborados de forma ativista, podem tolher a atividade dos representantes do povo de manifestar sua vontade por meio das leis. Cabe, portanto, aos ministros do STF a missão utilizar esse instituto com vistas a dar efetividade às suas decisões e celeridade à prestação jurisdicional, sem sucumbir à tentação de substituir ou criar novas disposições com força de lei.

Caso contrário, sacrifi ca-se a segurança jurídica, tão cara à sociedade brasileira já descrente do Poder Público. O país fi ca sujeito, nesta hipótese, ao arbítrio dos juízes, os quais, legislando e julgando, ferem o princípio da separação de poderes e, desse modo, violam a Constituição que deveriam guardar. Os cidadãos perdem, assim, a garantia, conquistada a alto preço, de viverem em um Estado Democrático de Direito.

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