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    1As Marionetes do Diabo: As representaes de Sat no corpo na Idade Moderna.

    Jos Lucas Cordeiro Fernandes (UFC) *

    [email protected]

    Resumo: Devido a uma srie de discursos o Diabo se tornava forte, se inserido em nossa

    mentalidade, e atravs disso se inserindo em nossos corpos, dominando os nossos

    sentidos e criando um medo que assolava a populao medieval e renascentista, onde

    atravs de um olhar, de humores errados o Diabo poderia possuir seu corpo, criando

    cordas que nos guiavam para o mal, controlando os corpos, assolando os mesmos com

    doenas, possuindo e tomando total controle sobre as mentes e os corpos. Como sefomentou tais discursos que povoaram o imaginrio renascentista com esta presena

    diablica? Quais foram os discursos mdicos que comprovaram essa diabolizao do

    corpo? A proposta do trabalho analisar estes questionamentos e a insero do diabo no

    corpo e nos sentidos, analisando os discursos mdicos e teolgicos, compreendendo a

    cristalizao do medo do Diabo sobre o corpo.

    Palavras-chave: Corpo; Diabo; Idade Moderna.

    Vitorioso na lia do paraso terrestre, Sat despojou Ado de seu domnio e

    atribuiu-se o poder e o imprio do mundo que estava destinado ao homem

    desde seu nascimento, do qual usa o ttulo desde essa usurpao. E

    incessantemente ele o persegue por tentao, no deixando sua alma

    tranqila enquanto ela est nos limites do imprio que ele conquistou e

    usurpou de ns. Ele at mesmo invade seu prprio corpo algumas vezes, de

    modo que, como antes do pecado, incorporou-se na serpente, agora se

    incorpora dentro do homem.

    Brulle 1

    * Graduando em Histria pela UFC. O presente trabalho orientado pelo Ms. Pedro Airton Queiroz,professor efetivo da disciplina de Histria Medieval da UFC.1 P. de Brulle, Trait des anges nergumnes, Paris, 1599, cap. 2. In: DELUMEAU, Jean. Histria do

    medo no Ocidente (1300 1800). So Paulo, SP: Companhia de bolso, 2009. p.372.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    O mundo fora criado como um paraso, onde o homem e a mulher viviam em

    harmonia com Deus, at que Sat possuindo a serpente convence Eva a comer o fruto

    proibido, esta que convence Ado a fazer o mesmo, decretando o fim do paraso

    terrestre, e o incio dos pecados e de um mundo que regido pelo Diabo, o prncipe

    deste mundo.

    Este novo mundo era aberto s tentaes diablicas, pois Lcifer poderia

    interferir nas coisas do mundo, j que a queda do homem foi uma ascenso do poder de

    Lcifer, pois agora ele poderia tentar a humanidade, apesar de que ele, como querubim

    de Deus sofreu a sua prpria queda. O paraso terrestre era controlado e assegurado por

    Deus, j o mundo fora do den era livre, ou seja, o pecado original foi o smbolo da

    permisso de Deus para as tentaes do Diabo sobre ns, como uma forma de nostestar2. Logo, podemos ver que a funo do Diabo nos levar a tentao, fazer ns

    infligirmos ordem, ceder aos pecados, entregar as nossas almas para o inferno, nos

    afastando de Deus, para isso ele cria o corpo como sua ferramenta de corrupo.

    Mas antes de compreendermos a criao do corpo pelo Diabo temos que

    compreender, mesmo que de forma sucinta, a prpria inveno do Sat, esta que vai

    perpassar por vrios perodos histricos, resistindo at os dias atuais. As grandes

    influncias no imaginrio da populao da Idade Moderna advm do perodo medieval,logo, a imagem do demnio moderno uma continuidade desse personagem que cresce

    to violentamente na Idade Mdia. Jacob Burckhardt traz uma ideia muito equivocada

    sobre a mentalidade medieval e do dito renascimento, ele obscurece a importncia da

    Idade Mdia e sua influencia para os moldes renascentistas, alm do fato de mostrar que

    houve toda uma ascenso e uma mudana na mentalidade. Vemos na obra de Jean

    Delumeau, Histria do Medo no Ocidente, um grande elemento de crtica a ideia de

    renascimento, pois na verdade, o mais correto seria uma continuidade do medievo. Asinfluncias medievais na mentalidade moderna um grande exemplo de como o

    medievo ainda se mantm dentro das estruturas imagticas modernas, representando

    2O Diabo age com a permisso de Deus, para tentar o nosso livre arbtrio nos levando sempre para o mal.

    Mas os telogos identificavam isso como uma permisso pela queda do homem, j que Lcifer foi o

    primeiro a usar sua fora de escolha para o mal, j que Deus o havia criado no bem. Ou seja, o Diabo est

    com a permisso de Deus para nos tentar, ns assim como ele, criados no bem, e assim como ele o

    nosso livre arbtrio que nos leva para o mal.

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    claramente uma continuidade e no uma brusca ruptura, ao oposto do que cita

    Burckhardt. Sat grande exemplo para percebermos essa progresso da mentalidade

    medieval, pois os medos das aes sobrenaturais existentes na Idade Mdia vo

    continuar existindo.

    Imagem I

    Cernunnus, o deus cornudo celta, figura incorporada a iconografia do Diabo. Detalhe do caldeiro de

    Gundestrup, sculo I ou II a.C.

    Sat uma figura construda historicamente, onde observamos suas primeiras

    representaes imagticas no sculo VI, mas ele uma figura muito mais antiga, j que

    observamos citaes sobre o mesmo nas obras de Clemente, Justino, Tertuliano e outros

    j no perodo da antiguidade. Lcifer e seus demnios passam para a Idade Mdia

    realizando uma srie de apropriaes. Os deuses de culturas contrrias ao cristianismo

    sero demonizados, os representantes divinos de outras culturas se tornaram os

    representantes profanos do cristianismo, se tornando os servos do Diabo e o prprio um

    mosaico de vrias culturas. Cernunnos (ver imagem I), deus celta, conhecido como o

    deus chifrudo vai ser de grande influncia na imagem do Diabo, lhe emprestando os

    chifres e algumas caractersticas animalescas, assim como P (ver imagem II), um deus

    muito conhecido da mitologia grega3. Loki, deus nrdico tambm ter muita influncia

    3Luther Link comenta que a fora de P na imagtica do Diabo no foi to grande quanto se comenta, jque existem inmeras representaes medievais que no utilizam tal figura grega. J Russel demonstra a

    importncia da figura de P na imagtica do Diabo. Ambos esto certos, pois de certa forma existe e noexiste uma tradio imagtica do Diabo, pois identificamos vrias representaes, diferente do que ocorre

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    e semelhana com o antagonista cristo, principalmente no momento de cristianizao

    dos reinos Vikings. Estes so grandes exemplos de como a imagem de Lcifer vai se

    modificar com essas apropriaes, mas existiram inmeras outras, assim como muitos

    se tornaram demnios, como: Leviat, Moloc, Asmodeus, Baal e etc. Um caso

    interessante de modificao que essas apropriaes faziam o de Bes:

    [...] era considerado uma divindade menor no panteo dos deuses egpcios,

    porm seus dolos foram encontrados em mais casas do que qualquer outro

    deus. Bes no era uma deidade exclusiva do Egito. Sua figura pde ser

    encontrada na Mesopotmia, Cartago e Fencia. Sua caracterizao e seus

    atributos sempre foram feios. Sua face assustadora no foi, contudo,

    associada a promover ou estar relacionada com a concepo de mal entre os

    egpcios. Na verdade, Bes era um deus de proteo contra maus espritos.

    (ALMEIDA, 2008, P.28)

    O nvel de adorao de Bes fez com que houvesse um foco em mudar a sua

    imagem e torna - l maligna, ele simplesmente adquiriu um funo totalmente oposta a

    que tinha no Egito, antes protegia contra os maus espritos agora ela ingressava ao

    panteo que outrora combatia.

    Imagem II

    com Jesus (que tende a ser representado de maneira semelhante), mas tambm observamos algunspadres nesse estudo, como a representao do Diabo pequeno e negro da baixa Idade Mdia. Ou seja,

    podemos observar a dificuldade que perceber a imagem do Diabo nas pinturas e na tradio escrita,deixando clara a existncia de vrias influncias e tipos nessa representao diablica.

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    P e o bode, sculo I a.C., estatueta de Herculano: uma fonte clssica para os chifres, a barba, nariz

    achatado, orelhas pontudas e parte inferior do corpo peluda do Diabo. Museo Nazionale, Npoles.

    (LINK, 1998, p. 54)

    Essas inmeras mudanas na imagem do Diabo, o tornou o monstro horrendo

    como comumente representado, mas essa influencia imagtica propiciou uma maior

    cristalizao dele, permitindo uma penetrao em vrias culturas, substituindo e se

    tornando o exemplo de mal, alimentando um medo do Diabo e dos seus servos, que

    apesar das suas diferenas, persiste at hoje. Quando algo ganha mais divulgao, tende

    a se tornar maior e mais poderoso, o que no foi diferente com o prncipe das trevas,

    pois essa mudana e aumento da representao de Lcifer s aumentaram e muito seupoder. Os telogos, pintores, juristas, mdicos e literatos vo se preocupar com o Diabo,

    aumentando a presena do mesmo em diversos discursos, logo, quando algo muito

    presente nos discursos das camadas que regem a sociedade, ele tende a se tornar o

    pensamento da sociedade, uma fomentao do imaginrio atravs do discurso4. Nessa

    penetrao no imaginrio que o Diabo passa a penetrar nos corpos.

    Michael Psellos (1018 1078), conselheiro influente da tribuna imperial e

    grande lder do renascimento na universidade do sculo XI e grande professor de

    filosofia. Ele trazia os moldes da hierarquia demonaca, mostrando claramente como no

    inferno h uma organizao, um corpo profano voltado para nos atormentar. O posto

    mais alto era os leliouria, da esfera do ar rarefeito alm da lua. Depois os aeria,

    demnios do ar abaixo da lua; o chthonia, que habitavam a terra; o hydrara ou enalia,

    que vive na gua; o hypochthonia, que vive sobre a terra; e mais abaixo, os misophaes,

    aqueles que so fotos fbicos e cegos, nos mais profundo do inferno.5 Estas castas

    existiam em todos os lugares com o intuito de acabar e destruir os planos de Deus.

    Os demnios mais altos agem diretamente sobre os sentidos humanos e

    indiretamente sobre o intelecto; usando sua ao imaginativa,

    phantastikos, provocam imagens em nossas mentes. Os demnios mais

    3Ver: BACZKO, Bronislaw. Aimaginao social. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.4Ver: RUSSEL, Jeffrey Burton. Lcifer: o Diabo na Idade Mdia. Editora Masdra, 2003. p. 37-38.5Nome usado para representar o Diabo antes da queda, j que continha o sufixo El, que significa divino,nome comum na linguagem do bogomilismo.

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    baixos tm mentes como a dos animais. Estes espritos [...] precipitam-se

    cruelmente sobre ns, causando doenas e acidentes fatais, e nos possuindo.

    por isso que as pessoas possudas freqentemente exibem um

    comportamento animal. (RUSSEL, 2003, p. 38)

    Outra ao do Sat sobre corpo observada e trabalhada pelos textos herticos

    do Bogomilismo, heresia do sculo X, por volta de 950, fundada na Bulgria por

    Bogomil. A diabologia era o pensamento central de Bogomil, pois ela era uma heresia

    de cunho dualista, ou seja, da existncia de duas foras conflitantes, o bem e o mal,

    sendo essa maldade representada por Sat. Eles apresentam Satanael 6como criador do

    universo que vivemos, o Deus Criador do Antigo Testamento, e uma entidade

    perversa o bastante, pois, para criar este mundo material com sua grosseria, misria e

    sofrimento, deve ser m. (RUSSEL, 2003, p.42). A criao do mundo material teria

    sido obra de Satanael, este que apontado como o filho mais velho de Deus, o segundo

    seria Jesus Cristo. Essa criao total, Ado seria criao do Diabo, esta que aborreceu

    Sat pelos seus defeitos, por isso ele pede auxlio ao seu inimigo, Deus, para ajudar a

    criar a humanidade, em troca ele permitiria a entrada de Deus nesse mundo e a diviso

    do poder. Vemos que a criao do mundo material em si j ruim por afastar a alma do

    caminho correto, por isso, criao do Diabo, assim como corpo: [...] a alma humana,

    uma criao do verdadeiro bom Deus, aprisionada no corpo humano que uma

    criao de Satabael, o falso deus, que enganou Deus, que o ajudou e agora mantm a

    alma prisioneira em um corpo repugnante e sujo. (RUSSEL, 2003, p.42). O

    bogomilismo mesmo sendo uma heresia ir influenciar alguns textos, assim como, a

    prpria experincia da Bogomil j vem de textos anteriores, ou seja, tal heresia serve

    para mostrar como era vista a figura do Diabo sobre o corpo e como os processos

    histricos perpetuaram esses discursos, j que a prpria existncia de uma heresia comesse dogma prova isso.

    O bogomilismo tambm comentava acerca da fora dos demnios sobre os

    corpos e as mentes. Para eles os demnios agiam sobre a ordem do Diabo, e atacavam

    com cautela devido ao medo do exorcismo ou da derrota, por isso eles se escondem to

    bem dentro do indivduo. Enquanto esto nos corpos os demnios vo iniciar a

    corrupo dos mesmos, vo torn-los doentes, vo agredi-los, e usaram os corpos para

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    provocar desastres e at a morte do possudo, Russel comenta que uma morte que os

    demnios adoravam praticar era jogando os corpos em um abismo, ou quando os

    possuam, ou quando assumia uma forma fsica capaz de empurrar o ser humano para a

    morte. Mas a corrupo do corpo no se compara a corrupo da alma, pois eles foram

    o possudo a pecarem, eles causam o pecado, assim como so atrados por ele. O

    humanista Hans Sachs faz uma afirmao em volta dessa mesma ideia: Saco de vcios,

    o corpo masculino, podia ser facilmente invadido pelo demnio quando o indivduo

    bebia em excesso, o que levava uma horda de diabos a a se desencadearem.

    (MUCHEMBLED, 2001, p. 118). O pecado seja ele qual for era sempre apresentado

    como uma aproximao do Diabo a condenao das almas pelos pecados cometidos

    pelo corpo, comprovando que a criao do mesmo por Lcifer era para us-lo comouma ferramenta de tentao das virtudes humanas. (ver imagem III)

    Imagem III

    Hieronymus Boschsobre os tormentos infernais. Alma de um viciado sendo atormentada no inferno.

    A possesso maior prova da influncia do Diabo sobre o corpo humano, a

    entrada do diabo poderia ser para nos testar, ou j atrado pelos nossos pecados ou at

    por no ter f ou pelo simples azar de engolir um demnio que estava no alimento, ou

    em uma tentativa do demnio de impedir o homem de se aproximar de Deus, ou seja, o

    demnio poderia possuir os corpos de vrias formas e control-los. O Martelo das

    Feiticeiras, de Del Rio relata da seguinte forma a confisso de um padre possudo:

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    Estou privado do uso da razo unicamente quando quero dedicar-me

    orao ou visitar lugares santos [...]. [Ento o demnio] dispe de todos os

    meus membros e rgos meu pescoo, minha lngua, meus pulmes para

    falar e gritar quando lhe apraz. Ouo, sem dvida, as palavras, mas no

    posso absolutamente resistir; e quando ardentemente eu gostaria de

    entregar-me a alguma orao, ele me assalta mais violentamente, soltando

    minha lngua com mais fora. (DELUMEAU, 2009, p. 359-360).

    A possesso era temida e muito vista na Idade Moderna, Andr Celichius,

    escrevia em 1595 sobre os casos de possesso: Quase em toda parte, perto ou longe de

    ns e to considervel que se fica surpreso e afligido, e essa talvez a verdadeira praga

    pela qual nosso Egito e todo o mundo caduco que o habita esto condenados a perecer.(DELUMEAU, 2009, p. 362). Lutero tambm comentava sobre as possesses:

    Somos corpos e sujeitos ao Diabo, e estrangeiros, hspedes, no mundo no

    qual o Diabo o prncipe e o deus. O po que comemos, a bebida que

    bebemos, as roupas que usamos, ainda mais o ar que respiramos e tudo que

    pertence nossa vida na carne portanto seu imprio.(DELUMEAU, 2009,

    p. 372).

    A afirmao de Lutero serve para observamos alguns elementos. Primeiro, oDiabo est em todo lugar que se liga ao material, tudo que material a ele pertence.

    Segundo, o corpo do Diabo e tudo que fazemos que seja puramente carnal , por

    conseguinte, elemento do Diabo.

    A porta para invaso dos demnios so os prprios pecados, assim como a

    entrada de doenas pela atrao de humores estranhos no corpo do ser humano, logo o

    pecado era um humor errado e um atrativo para as doenas7. A teoria dos humores, de

    Hipcrates, assim como os estudos de Eduardo Galeno, serviro de grande inspirao

    para os mdicos da Idade Moderna, estes que souberam muito bem associ-los as foras

    diablicas. Se o corpo era um envoltrio de humores, como esses poderiam ser

    alterados? Poderia ocorrer naturalmente, como atravs de muito trabalho, ou at

    pensamentos negativos e impuros poderiam alterar o humor. Eles poderiam ser

    mudados por foras alheias, poderiam ser contaminados por humores de outras pessoas

    7Na bblia vemos vrias passagens que se comenta que a causa das doenas so os demnios, como por

    exemplo: Mateus 17: 14-20 ou Mateus 10: 5-8.

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    ou do ambiente. O [...] princpio do contgio, ele foi, a nosso ver, o vetor principal de

    uma viso mgica do corpo, cuja parte sombria foi a de contribuir para dar crdito s

    teses demonolgicas e para desencadear perseguies em massa s feiticeiras.

    (MUCHEMBLED, 2001, p. 95). Em mundo onde a cincia mdica evolua, mas no

    possua um conhecimento fsico e matemtico avanado, estas no propiciaram uma

    quebra dos mitos diablicos, mas sim um aumento. O ar contaminado, era devido s

    foras diablicas, como comenta Ambroise Par, esse ar estava cada vez mais associado

    ao Sab, as bruxas e as foras luciferinas, possibilitando uma diabolizao dos sentidos.

    Os demnios usavam todos os nossos sentidos, atravs da possesso podiam

    mudar nossa viso, nos fazer ouvir coisas. Usam truques ilusrios, mexendo com a

    mente e os sentidos para nos enganar, nos matar. Os sentidos humanos eram brinquedosdos demnios que tinham toda a capacidade de manipul-los para o mal e para os

    pecados. Dentre todos os sentidos, sem dvida, o olfato foi o mais diabolizado, j que

    tinha o aparato dos mdicos e da Igreja. O ar pestilento continha uma malignidade

    oculta e indizvel, como cita Ambroise Par em 1568. Logo, para ele, um conhecido

    cirurgio, o ar da peste no era mais putrefato, como para Hipcrates e Galeno, mas sim

    venenoso, por isso que os mdicos da peste (ver imagem IV) usavam as mscaras com

    aqueles longos bicos, cheios de aromas, para impedir a entrada desses gases venenosos.

    Imagem IV

    Paul Frst, Der Doctor Schnabel von Rom, 1656.

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    Outra porta de entrada do Diabo em nosso corpo era a prtica sexual. O sexo era

    pregado pela Igreja como uma prtica voltada apenas para a multiplicao dos homens,

    e que deveria ser feita apenas aps o casamento. O sexo desregrado ou com propsitos

    voltados para o prazer era um grave pecado que poderia ser um atrativo para os

    demnios, tanto que era comum dizer que as feiticeiras do Sab praticavam sexo para

    atrair o Diabo, assim como faziam como ele, beijando o seu nus (gesto smbolo de

    devoo a Lcifer). No De planctu ecclesia de 1330 se afirmava: no h nenhuma

    imundice para qual a luxria no conduza, ou como Vilm Flusser comenta em sua

    Histria do Diabo:O maior dos pecados a luxria, pois ela leva a todos os outros.

    (FERNANDES, 2012, p.3). A luxria o maior pecado de todos, o maior pecado docorpo, por isso, to prximo a Lcifer, este que atravs da leitura do Enoque, livro

    retirado da bblia teve como o motivo de sua queda a luxria e no o orgulho 8, como

    comumente ns vemos.

    O Diabo durante toda a Idade Moderna esta intimamente ligada s prticas

    culturais associadas ao corpo. Vimos fontes teolgicas e mdicas e como essas se

    juntaram para fomentar um discurso imagtico sobre Lcifer, permitindo que as

    doenas, os vcios, as prticas sexuais, a vaidade, e praticamente tudo que material ecorporal entrasse no domnio do Diabo. Ele em cada fase histrica se alterou e mudou

    com o intuito de permanecer, e a Igreja que possibilitou isso, acabando com os cultos

    agrrios, lutando contra a reforma protestante, e acusando o Diabo como o responsvel

    por heresias e pedras no caminho da Igreja. Hoje ele no mais resiste, ele cresce com a

    divulgao de quadrinhos, filmes, com o aumento da Igreja Satnica. O corpo ainda lhe

    pertence (mesmo que de forma bem menor e diferente), pois vemos diariamente na

    televiso espetculos de sua expulso, espetculos de cura com a sada do encostodiablico. Nesses estudos sobre o Diabo, vendo sua carreira dentro das sociedades, s

    me fez perceber que ele passa por crises e pices, mas que as suas representaes e

    fora que ele adquiriu o tornaram eterno.

    8Ver: LINK, Luther. O Diabo: Uma mscara sem rosto. Companhia das letras, 1998. p.33-37.

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