deus cartitas est
TRANSCRIPT
CARTA ENCIacuteCLICA
DEUS CARITAS EST
DO SUMO PONTIacuteFICE
BENTO XVI
AOS BISPOS
AOS PRESBIacuteTEROS E AOS DIAacuteCONOS
AgraveS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIEacuteIS LEIGOS
SOBRE O AMOR CRISTAtildeO
INTRODUCcedilAtildeO
1 laquo Deus eacute amor e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele raquo (1 Jo 4 16)
Estas palavras da I Carta de Joatildeo exprimem com singular clareza o centro da feacute cristatilde a
imagem cristatilde de Deus e tambeacutem a consequente imagem do homem e do seu caminho Aleacutem
disso no mesmo versiacuteculo Joatildeo oferece-nos por assim dizer uma foacutermula sinteacutetica da
existecircncia cristatilde laquo Noacutes conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem raquo
Noacutes cremos no amor de Deus mdash deste modo pode o cristatildeo exprimir a opccedilatildeo fundamental da
sua vida Ao iniacutecio do ser cristatildeo natildeo haacute uma decisatildeo eacutetica ou uma grande ideia mas o
encontro com um acontecimento com uma Pessoa que daacute agrave vida um novo horizonte e desta
forma o rumo decisivo No seu Evangelho Joatildeo tinha expressado este acontecimento com as
palavras seguintes laquo Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho uacutenico para que
todo o que nEle crer () tenha a vida eterna raquo (3 16) Com a centralidade do amor a feacute cristatilde
acolheu o nuacutecleo da feacute de Israel e ao mesmo tempo deu a este nuacutecleo uma nova profundidade
e amplitude O crente israelita de facto reza todos os dias com as palavras do Livro do
Deuteronoacutemio nas quais sabe que estaacute contido o centro da sua existecircncia laquo Escuta oacute Israel O
Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor Amaraacutes ao Senhor teu Deus com todo o teu coraccedilatildeo
com toda a tua alma e com todas as tuas forccedilas raquo (6 4-5) Jesus uniu mdash fazendo deles um
uacutenico preceito mdash o mandamento do amor a Deus com o do amor ao proacuteximo contido no Livro
do Leviacutetico laquo Amaraacutes o teu proacuteximo como a ti mesmo raquo (19 18 cf Mc 12 29-31) Dado que
Deus foi o primeiro a amar-nos (cf 1 Jo 4 10) agora o amor jaacute natildeo eacute apenas um laquo
mandamento raquo mas eacute a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro
Num mundo em que ao nome de Deus se associa agraves vezes a vinganccedila ou mesmo o dever do
oacutedio e da violecircncia esta eacute uma mensagem de grande actualidade e de significado muito
concreto Por isso na minha primeira Enciacuteclica desejo falar do amor com que Deus nos
cumula e que deve ser comunicado aos outros por noacutes Estatildeo assim indicadas as duas grandes
partes que compotildeem esta Carta profundamente conexas entre elas A primeira teraacute uma iacutendole
mais especulativa pois desejo mdash ao iniacutecio do meu Pontificado mdash especificar nela alguns
dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem
juntamente com o nexo intriacutenseco daquele Amor com a realidade do amor humano A segunda
parte teraacute um caraacutecter mais concreto porque trataraacute da praacutetica eclesial do mandamento do
amor ao proacuteximo O argumento aparece demasiado amplo uma longa explanaccedilatildeo poreacutem natildeo
entra no objectivo da presente Enciacuteclica O meu desejo eacute insistir sobre alguns elementos
fundamentais para deste modo suscitar no mundo um renovado dinamismo de empenhamento
na resposta humana ao amor divino
I PARTE
A UNIDADE DO AMOR
NA CRIACcedilAtildeO
E NA HISTOacuteRIA DA SALVACcedilAtildeO
Um problema de linguagem
2 O amor de Deus por noacutes eacute questatildeo fundamental para a vida e coloca questotildees decisivas
sobre quem eacute Deus e quem somos noacutes A tal propoacutesito o primeiro obstaacuteculo que encontramos
eacute um problema de linguagem O termo laquo amor raquo tornou-se hoje uma das palavras mais usadas
e mesmo abusadas agrave qual associamos significados completamente diferentes Embora o tema
desta Enciacuteclica se concentre sobre a questatildeo da compreensatildeo e da praacutetica do amor na Sagrada
Escritura e na Tradiccedilatildeo da Igreja natildeo podemos prescindir pura e simplesmente do significado
que esta palavra tem nas vaacuterias culturas e na linguagem actual
Em primeiro lugar recordemos o vasto campo semacircntico da palavra laquo amor raquo fala-se de amor
da paacutetria amor agrave profissatildeo amor entre amigos amor ao trabalho amor entre pais e filhos
entre irmatildeos e familiares amor ao proacuteximo e amor a Deus Em toda esta gama de significados
poreacutem o amor entre o homem e a mulher no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e
se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistiacutevel sobressai como
arqueacutetipo de amor por excelecircncia de tal modo que comparados com ele agrave primeira vista
todos os demais tipos de amor se ofuscam Surge entatildeo a questatildeo todas estas formas de amor
no fim de contas unificam-se sendo o amor apesar de toda a diversidade das suas
manifestaccedilotildees em uacuteltima instacircncia um soacute ou ao contraacuterio utilizamos uma mesma palavra
para indicar realidades totalmente diferentes
laquo Eros raquo e laquo agape raquo ndash diferenccedila e unidade
3 Ao amor entre homem e mulher que natildeo nasce da inteligecircncia e da vontade mas de certa
forma impotildee-se ao ser humano a Greacutecia antiga deu o nome de eros Diga-se desde jaacute que o
Antigo Testamento grego usa soacute duas vezes a palavra eros enquanto o Novo Testamento
nunca a usa das trecircs palavras gregas relacionadas com o amor mdash eros philia (amor de
amizade) e agape mdash os escritos neo-testamentaacuterios privilegiam a uacuteltima que na linguagem
grega era quase posta de lado Quanto ao amor de amizade (philia) este eacute retomado com um
significado mais profundo no Evangelho de Joatildeo para exprimir a relaccedilatildeo entre Jesus e os seus
disciacutepulos A marginalizaccedilatildeo da palavra eros juntamente com a nova visatildeo do amor que se
exprime atraveacutes da palavra agape denota sem duacutevida na novidade do cristianismo algo de
essencial e proacuteprio relativamente agrave compreensatildeo do amor Na criacutetica ao cristianismo que se foi
desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo esta novidade foi avaliada
de forma absolutamente negativa Segundo Friedrich Nietzsche o cristianismo teria dado
veneno a beber ao eros que embora natildeo tivesse morrido daiacute teria recebido o impulso para
degenerar em viacutecio [1] Este filoacutesofo alematildeo exprimia assim uma sensaccedilatildeo muito
generalizada com os seus mandamentos e proibiccedilotildees a Igreja natildeo nos torna porventura
amarga a coisa mais bela da vida Porventura natildeo assinala ela proibiccedilotildees precisamente onde a
alegria preparada para noacutes pelo Criador nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir
algo do Divino
4 Mas seraacute mesmo assim O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros Vejamos o
mundo preacute-cristatildeo Os gregos mdash aliaacutes de forma anaacuteloga a outras culturas mdash viram no eros
sobretudo o inebriamento a subjugaccedilatildeo da razatildeo por parte duma laquo loucura divina raquo que
arranca o homem das limitaccedilotildees da sua existecircncia e neste estado de transtorno por uma forccedila
divina faz-lhe experimentar a mais alta beatitude Deste modo todas as outras forccedilas quer no
ceacuteu quer na terra resultam de importacircncia secundaacuteria laquo Omnia vincit amor mdash o amor tudo
vence raquo afirma Virgiacutelio nas Bucoacutelicas e acrescenta laquo et nos cedamus amori mdash rendamo-nos
tambeacutem noacutes ao amor raquo [2] Nas religiotildees esta posiccedilatildeo traduziu-se nos cultos da fertilidade aos
quais pertence a prostituiccedilatildeo laquo sagrada raquo que prosperava em muitos templos O eros foi pois
celebrado como forccedila divina como comunhatildeo com o Divino
A esta forma de religiatildeo que contrasta como uma fortiacutessima tentaccedilatildeo com a feacute no uacutenico Deus
o Antigo Testamento opocircs-se com a maior firmeza combatendo-a como perversatildeo da
religiosidade Ao fazecirc-lo poreacutem natildeo rejeitou de modo algum o eros enquanto tal mas
declarou guerra agrave sua subversatildeo devastadora porque a falsa divinizaccedilatildeo do eros como aiacute se
verifica priva-o da sua dignidade desumaniza-o De facto no templo as prostitutas que
devem dar o inebriamento do Divino natildeo satildeo tratadas como seres humanos e pessoas mas
servem apenas como instrumentos para suscitar a laquo loucura divina raquo na realidade natildeo satildeo
deusas mas pessoas humanas de quem se abusa Por isso o eros inebriante e descontrolado
natildeo eacute subida laquo ecircxtase raquo ateacute ao Divino mas queda degradaccedilatildeo do homem Fica assim claro
que o eros necessita de disciplina de purificaccedilatildeo para dar ao homem natildeo o prazer de um
instante mas uma certa amostra do veacutertice da existecircncia daquela beatitude para que tende
todo o nosso ser
5 Dois dados resultam claramente desta raacutepida visatildeo sobre a concepccedilatildeo do eros na histoacuteria e
na actualidade O primeiro eacute que entre o amor e o Divino existe qualquer relaccedilatildeo o amor
promete infinito eternidade mdash uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da
nossa existecircncia E o segundo eacute que o caminho para tal meta natildeo consiste em deixar-se
simplesmente subjugar pelo instinto Satildeo necessaacuterias purificaccedilotildees e amadurecimentos que
passam tambeacutem pela estrada da renuacutencia Isto natildeo eacute rejeiccedilatildeo do eros natildeo eacute o seu laquo
envenenamento raquo mas a cura em ordem agrave sua verdadeira grandeza
Isto depende primariamente da constituiccedilatildeo do ser humano que eacute composto de corpo e alma
O homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em iacutentima
unidade o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado quando se consegue
esta unificaccedilatildeo Se o homem aspira a ser somente espiacuterito e quer rejeitar a carne como uma
heranccedila apenas animalesca entatildeo espiacuterito e corpo perdem a sua dignidade E se ele por outro
lado renega o espiacuterito e consequentemente considera a mateacuteria o corpo como realidade
exclusiva perde igualmente a sua grandeza O epicurista Gassendi gracejando
cumprimentava Descartes com a saudaccedilatildeo laquo Oacute Alma raquo E Descartes replicava dizendo laquo Oacute
Carne raquo [3] Mas nem o espiacuterito ama sozinho nem o corpo eacute o homem a pessoa que ama
como criatura unitaacuteria de que fazem parte o corpo e a alma Somente quando ambos se
fundem verdadeiramente numa unidade eacute que o homem se torna plenamente ele proacuteprio Soacute
deste modo eacute que o amor mdash o eros mdash pode amadurecer ateacute agrave sua verdadeira grandeza
Hoje natildeo eacute raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversaacuterio da
corporeidade a realidade eacute que sempre houve tendecircncias neste sentido Mas o modo de exaltar
o corpo a que assistimos hoje eacute enganador O eros degradado a puro laquo sexo raquo torna-se
mercadoria torna-se simplesmente uma laquo coisa raquo que se pode comprar e vender antes o
proacuteprio homem torna-se mercadoria Na realidade para o homem isto natildeo constitui
propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a
sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito
Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que
a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos
diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da
liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando
como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode
bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre
considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram
mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros
quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por
isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos
6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve
ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma
primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros
do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje
predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez
previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste
contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras
distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que
exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra
eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo
termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a
concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de
procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente
descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia
Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a
imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia
estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o
Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que
ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade
mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a
totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de
outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute
laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como
ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e
precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de
Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc
17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes
(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho
pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na
terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor
que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e
da existecircncia humana em geral
7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos
agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se
os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma
certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de
tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia
e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se
pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais
eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor
fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente
contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees
afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor
concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que
procura o proacuteprio interesse
No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao
ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo
ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo
amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo
esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais
da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel
mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash
amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro
Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica
realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o
eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de
felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas
sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais
dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape
caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem
tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se
sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom
Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm
rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo
beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo
trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)
Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo
indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o
dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na
pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e
desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a
interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor
mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher
de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis
viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a
Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente
desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9
22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada
permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do
seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da
tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris
infirmantium negotiis urgetur raquo [5]
8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees
atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees
caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se
separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma
redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo
paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas
aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe
ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em
dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem
A novidade da feacute biacuteblica
9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo
da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si
mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro
e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo
Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus
que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos
se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo
Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia
de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um
deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta
proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida
precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora
o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no
auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser
objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash
mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico
Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo
entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar
precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado
sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]
Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com
arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do
noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se
alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas
ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A
histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a
Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a
estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico
Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na
verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei
eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de
Deus raquo (Sal 7372 2528)
10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E
natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas
tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no
amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo
adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se
revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute
Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo
desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem
sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo
homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus
contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se
veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio
homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor
O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um
lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute
absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash
o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um
verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo
purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do
Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no
sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o
homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde
como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a
essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho
originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano
anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash
permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se
une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)
11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda
essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da
criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio
Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita
apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os
assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher
Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e
carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees
semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o
homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas
como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre
anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na
narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja
incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a
sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo
completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma
profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua
mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)
Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria
natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher
soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo
menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o
homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo
e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
na resposta humana ao amor divino
I PARTE
A UNIDADE DO AMOR
NA CRIACcedilAtildeO
E NA HISTOacuteRIA DA SALVACcedilAtildeO
Um problema de linguagem
2 O amor de Deus por noacutes eacute questatildeo fundamental para a vida e coloca questotildees decisivas
sobre quem eacute Deus e quem somos noacutes A tal propoacutesito o primeiro obstaacuteculo que encontramos
eacute um problema de linguagem O termo laquo amor raquo tornou-se hoje uma das palavras mais usadas
e mesmo abusadas agrave qual associamos significados completamente diferentes Embora o tema
desta Enciacuteclica se concentre sobre a questatildeo da compreensatildeo e da praacutetica do amor na Sagrada
Escritura e na Tradiccedilatildeo da Igreja natildeo podemos prescindir pura e simplesmente do significado
que esta palavra tem nas vaacuterias culturas e na linguagem actual
Em primeiro lugar recordemos o vasto campo semacircntico da palavra laquo amor raquo fala-se de amor
da paacutetria amor agrave profissatildeo amor entre amigos amor ao trabalho amor entre pais e filhos
entre irmatildeos e familiares amor ao proacuteximo e amor a Deus Em toda esta gama de significados
poreacutem o amor entre o homem e a mulher no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e
se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistiacutevel sobressai como
arqueacutetipo de amor por excelecircncia de tal modo que comparados com ele agrave primeira vista
todos os demais tipos de amor se ofuscam Surge entatildeo a questatildeo todas estas formas de amor
no fim de contas unificam-se sendo o amor apesar de toda a diversidade das suas
manifestaccedilotildees em uacuteltima instacircncia um soacute ou ao contraacuterio utilizamos uma mesma palavra
para indicar realidades totalmente diferentes
laquo Eros raquo e laquo agape raquo ndash diferenccedila e unidade
3 Ao amor entre homem e mulher que natildeo nasce da inteligecircncia e da vontade mas de certa
forma impotildee-se ao ser humano a Greacutecia antiga deu o nome de eros Diga-se desde jaacute que o
Antigo Testamento grego usa soacute duas vezes a palavra eros enquanto o Novo Testamento
nunca a usa das trecircs palavras gregas relacionadas com o amor mdash eros philia (amor de
amizade) e agape mdash os escritos neo-testamentaacuterios privilegiam a uacuteltima que na linguagem
grega era quase posta de lado Quanto ao amor de amizade (philia) este eacute retomado com um
significado mais profundo no Evangelho de Joatildeo para exprimir a relaccedilatildeo entre Jesus e os seus
disciacutepulos A marginalizaccedilatildeo da palavra eros juntamente com a nova visatildeo do amor que se
exprime atraveacutes da palavra agape denota sem duacutevida na novidade do cristianismo algo de
essencial e proacuteprio relativamente agrave compreensatildeo do amor Na criacutetica ao cristianismo que se foi
desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo esta novidade foi avaliada
de forma absolutamente negativa Segundo Friedrich Nietzsche o cristianismo teria dado
veneno a beber ao eros que embora natildeo tivesse morrido daiacute teria recebido o impulso para
degenerar em viacutecio [1] Este filoacutesofo alematildeo exprimia assim uma sensaccedilatildeo muito
generalizada com os seus mandamentos e proibiccedilotildees a Igreja natildeo nos torna porventura
amarga a coisa mais bela da vida Porventura natildeo assinala ela proibiccedilotildees precisamente onde a
alegria preparada para noacutes pelo Criador nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir
algo do Divino
4 Mas seraacute mesmo assim O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros Vejamos o
mundo preacute-cristatildeo Os gregos mdash aliaacutes de forma anaacuteloga a outras culturas mdash viram no eros
sobretudo o inebriamento a subjugaccedilatildeo da razatildeo por parte duma laquo loucura divina raquo que
arranca o homem das limitaccedilotildees da sua existecircncia e neste estado de transtorno por uma forccedila
divina faz-lhe experimentar a mais alta beatitude Deste modo todas as outras forccedilas quer no
ceacuteu quer na terra resultam de importacircncia secundaacuteria laquo Omnia vincit amor mdash o amor tudo
vence raquo afirma Virgiacutelio nas Bucoacutelicas e acrescenta laquo et nos cedamus amori mdash rendamo-nos
tambeacutem noacutes ao amor raquo [2] Nas religiotildees esta posiccedilatildeo traduziu-se nos cultos da fertilidade aos
quais pertence a prostituiccedilatildeo laquo sagrada raquo que prosperava em muitos templos O eros foi pois
celebrado como forccedila divina como comunhatildeo com o Divino
A esta forma de religiatildeo que contrasta como uma fortiacutessima tentaccedilatildeo com a feacute no uacutenico Deus
o Antigo Testamento opocircs-se com a maior firmeza combatendo-a como perversatildeo da
religiosidade Ao fazecirc-lo poreacutem natildeo rejeitou de modo algum o eros enquanto tal mas
declarou guerra agrave sua subversatildeo devastadora porque a falsa divinizaccedilatildeo do eros como aiacute se
verifica priva-o da sua dignidade desumaniza-o De facto no templo as prostitutas que
devem dar o inebriamento do Divino natildeo satildeo tratadas como seres humanos e pessoas mas
servem apenas como instrumentos para suscitar a laquo loucura divina raquo na realidade natildeo satildeo
deusas mas pessoas humanas de quem se abusa Por isso o eros inebriante e descontrolado
natildeo eacute subida laquo ecircxtase raquo ateacute ao Divino mas queda degradaccedilatildeo do homem Fica assim claro
que o eros necessita de disciplina de purificaccedilatildeo para dar ao homem natildeo o prazer de um
instante mas uma certa amostra do veacutertice da existecircncia daquela beatitude para que tende
todo o nosso ser
5 Dois dados resultam claramente desta raacutepida visatildeo sobre a concepccedilatildeo do eros na histoacuteria e
na actualidade O primeiro eacute que entre o amor e o Divino existe qualquer relaccedilatildeo o amor
promete infinito eternidade mdash uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da
nossa existecircncia E o segundo eacute que o caminho para tal meta natildeo consiste em deixar-se
simplesmente subjugar pelo instinto Satildeo necessaacuterias purificaccedilotildees e amadurecimentos que
passam tambeacutem pela estrada da renuacutencia Isto natildeo eacute rejeiccedilatildeo do eros natildeo eacute o seu laquo
envenenamento raquo mas a cura em ordem agrave sua verdadeira grandeza
Isto depende primariamente da constituiccedilatildeo do ser humano que eacute composto de corpo e alma
O homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em iacutentima
unidade o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado quando se consegue
esta unificaccedilatildeo Se o homem aspira a ser somente espiacuterito e quer rejeitar a carne como uma
heranccedila apenas animalesca entatildeo espiacuterito e corpo perdem a sua dignidade E se ele por outro
lado renega o espiacuterito e consequentemente considera a mateacuteria o corpo como realidade
exclusiva perde igualmente a sua grandeza O epicurista Gassendi gracejando
cumprimentava Descartes com a saudaccedilatildeo laquo Oacute Alma raquo E Descartes replicava dizendo laquo Oacute
Carne raquo [3] Mas nem o espiacuterito ama sozinho nem o corpo eacute o homem a pessoa que ama
como criatura unitaacuteria de que fazem parte o corpo e a alma Somente quando ambos se
fundem verdadeiramente numa unidade eacute que o homem se torna plenamente ele proacuteprio Soacute
deste modo eacute que o amor mdash o eros mdash pode amadurecer ateacute agrave sua verdadeira grandeza
Hoje natildeo eacute raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversaacuterio da
corporeidade a realidade eacute que sempre houve tendecircncias neste sentido Mas o modo de exaltar
o corpo a que assistimos hoje eacute enganador O eros degradado a puro laquo sexo raquo torna-se
mercadoria torna-se simplesmente uma laquo coisa raquo que se pode comprar e vender antes o
proacuteprio homem torna-se mercadoria Na realidade para o homem isto natildeo constitui
propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a
sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito
Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que
a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos
diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da
liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando
como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode
bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre
considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram
mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros
quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por
isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos
6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve
ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma
primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros
do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje
predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez
previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste
contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras
distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que
exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra
eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo
termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a
concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de
procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente
descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia
Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a
imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia
estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o
Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que
ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade
mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a
totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de
outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute
laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como
ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e
precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de
Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc
17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes
(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho
pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na
terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor
que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e
da existecircncia humana em geral
7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos
agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se
os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma
certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de
tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia
e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se
pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais
eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor
fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente
contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees
afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor
concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que
procura o proacuteprio interesse
No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao
ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo
ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo
amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo
esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais
da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel
mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash
amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro
Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica
realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o
eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de
felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas
sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais
dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape
caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem
tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se
sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom
Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm
rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo
beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo
trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)
Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo
indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o
dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na
pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e
desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a
interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor
mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher
de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis
viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a
Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente
desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9
22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada
permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do
seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da
tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris
infirmantium negotiis urgetur raquo [5]
8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees
atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees
caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se
separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma
redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo
paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas
aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe
ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em
dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem
A novidade da feacute biacuteblica
9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo
da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si
mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro
e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo
Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus
que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos
se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo
Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia
de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um
deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta
proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida
precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora
o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no
auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser
objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash
mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico
Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo
entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar
precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado
sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]
Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com
arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do
noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se
alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas
ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A
histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a
Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a
estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico
Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na
verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei
eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de
Deus raquo (Sal 7372 2528)
10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E
natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas
tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no
amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo
adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se
revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute
Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo
desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem
sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo
homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus
contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se
veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio
homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor
O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um
lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute
absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash
o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um
verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo
purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do
Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no
sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o
homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde
como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a
essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho
originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano
anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash
permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se
une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)
11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda
essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da
criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio
Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita
apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os
assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher
Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e
carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees
semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o
homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas
como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre
anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na
narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja
incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a
sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo
completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma
profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua
mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)
Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria
natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher
soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo
menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o
homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo
e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
4 Mas seraacute mesmo assim O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros Vejamos o
mundo preacute-cristatildeo Os gregos mdash aliaacutes de forma anaacuteloga a outras culturas mdash viram no eros
sobretudo o inebriamento a subjugaccedilatildeo da razatildeo por parte duma laquo loucura divina raquo que
arranca o homem das limitaccedilotildees da sua existecircncia e neste estado de transtorno por uma forccedila
divina faz-lhe experimentar a mais alta beatitude Deste modo todas as outras forccedilas quer no
ceacuteu quer na terra resultam de importacircncia secundaacuteria laquo Omnia vincit amor mdash o amor tudo
vence raquo afirma Virgiacutelio nas Bucoacutelicas e acrescenta laquo et nos cedamus amori mdash rendamo-nos
tambeacutem noacutes ao amor raquo [2] Nas religiotildees esta posiccedilatildeo traduziu-se nos cultos da fertilidade aos
quais pertence a prostituiccedilatildeo laquo sagrada raquo que prosperava em muitos templos O eros foi pois
celebrado como forccedila divina como comunhatildeo com o Divino
A esta forma de religiatildeo que contrasta como uma fortiacutessima tentaccedilatildeo com a feacute no uacutenico Deus
o Antigo Testamento opocircs-se com a maior firmeza combatendo-a como perversatildeo da
religiosidade Ao fazecirc-lo poreacutem natildeo rejeitou de modo algum o eros enquanto tal mas
declarou guerra agrave sua subversatildeo devastadora porque a falsa divinizaccedilatildeo do eros como aiacute se
verifica priva-o da sua dignidade desumaniza-o De facto no templo as prostitutas que
devem dar o inebriamento do Divino natildeo satildeo tratadas como seres humanos e pessoas mas
servem apenas como instrumentos para suscitar a laquo loucura divina raquo na realidade natildeo satildeo
deusas mas pessoas humanas de quem se abusa Por isso o eros inebriante e descontrolado
natildeo eacute subida laquo ecircxtase raquo ateacute ao Divino mas queda degradaccedilatildeo do homem Fica assim claro
que o eros necessita de disciplina de purificaccedilatildeo para dar ao homem natildeo o prazer de um
instante mas uma certa amostra do veacutertice da existecircncia daquela beatitude para que tende
todo o nosso ser
5 Dois dados resultam claramente desta raacutepida visatildeo sobre a concepccedilatildeo do eros na histoacuteria e
na actualidade O primeiro eacute que entre o amor e o Divino existe qualquer relaccedilatildeo o amor
promete infinito eternidade mdash uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da
nossa existecircncia E o segundo eacute que o caminho para tal meta natildeo consiste em deixar-se
simplesmente subjugar pelo instinto Satildeo necessaacuterias purificaccedilotildees e amadurecimentos que
passam tambeacutem pela estrada da renuacutencia Isto natildeo eacute rejeiccedilatildeo do eros natildeo eacute o seu laquo
envenenamento raquo mas a cura em ordem agrave sua verdadeira grandeza
Isto depende primariamente da constituiccedilatildeo do ser humano que eacute composto de corpo e alma
O homem torna-se realmente ele mesmo quando corpo e alma se encontram em iacutentima
unidade o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado quando se consegue
esta unificaccedilatildeo Se o homem aspira a ser somente espiacuterito e quer rejeitar a carne como uma
heranccedila apenas animalesca entatildeo espiacuterito e corpo perdem a sua dignidade E se ele por outro
lado renega o espiacuterito e consequentemente considera a mateacuteria o corpo como realidade
exclusiva perde igualmente a sua grandeza O epicurista Gassendi gracejando
cumprimentava Descartes com a saudaccedilatildeo laquo Oacute Alma raquo E Descartes replicava dizendo laquo Oacute
Carne raquo [3] Mas nem o espiacuterito ama sozinho nem o corpo eacute o homem a pessoa que ama
como criatura unitaacuteria de que fazem parte o corpo e a alma Somente quando ambos se
fundem verdadeiramente numa unidade eacute que o homem se torna plenamente ele proacuteprio Soacute
deste modo eacute que o amor mdash o eros mdash pode amadurecer ateacute agrave sua verdadeira grandeza
Hoje natildeo eacute raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversaacuterio da
corporeidade a realidade eacute que sempre houve tendecircncias neste sentido Mas o modo de exaltar
o corpo a que assistimos hoje eacute enganador O eros degradado a puro laquo sexo raquo torna-se
mercadoria torna-se simplesmente uma laquo coisa raquo que se pode comprar e vender antes o
proacuteprio homem torna-se mercadoria Na realidade para o homem isto natildeo constitui
propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a
sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito
Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que
a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos
diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da
liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando
como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode
bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre
considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram
mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros
quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por
isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos
6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve
ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma
primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros
do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje
predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez
previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste
contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras
distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que
exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra
eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo
termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a
concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de
procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente
descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia
Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a
imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia
estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o
Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que
ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade
mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a
totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de
outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute
laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como
ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e
precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de
Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc
17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes
(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho
pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na
terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor
que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e
da existecircncia humana em geral
7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos
agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se
os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma
certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de
tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia
e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se
pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais
eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor
fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente
contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees
afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor
concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que
procura o proacuteprio interesse
No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao
ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo
ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo
amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo
esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais
da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel
mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash
amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro
Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica
realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o
eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de
felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas
sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais
dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape
caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem
tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se
sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom
Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm
rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo
beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo
trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)
Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo
indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o
dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na
pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e
desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a
interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor
mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher
de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis
viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a
Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente
desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9
22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada
permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do
seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da
tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris
infirmantium negotiis urgetur raquo [5]
8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees
atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees
caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se
separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma
redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo
paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas
aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe
ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em
dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem
A novidade da feacute biacuteblica
9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo
da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si
mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro
e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo
Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus
que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos
se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo
Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia
de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um
deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta
proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida
precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora
o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no
auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser
objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash
mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico
Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo
entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar
precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado
sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]
Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com
arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do
noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se
alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas
ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A
histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a
Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a
estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico
Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na
verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei
eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de
Deus raquo (Sal 7372 2528)
10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E
natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas
tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no
amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo
adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se
revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute
Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo
desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem
sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo
homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus
contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se
veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio
homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor
O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um
lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute
absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash
o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um
verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo
purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do
Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no
sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o
homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde
como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a
essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho
originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano
anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash
permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se
une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)
11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda
essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da
criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio
Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita
apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os
assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher
Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e
carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees
semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o
homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas
como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre
anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na
narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja
incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a
sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo
completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma
profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua
mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)
Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria
natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher
soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo
menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o
homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo
e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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propriamente uma grande afirmaccedilatildeo do seu corpo Pelo contraacuterio agora considera o corpo e a
sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito
Uma parte aliaacutes que ele natildeo vecirc como um acircmbito da sua liberdade mas antes como algo que
a seu modo procura tornar simultaneamente agradaacutevel e inoacutecuo Na verdade encontramo-nos
diante duma degradaccedilatildeo do corpo humano que deixa de estar integrado no conjunto da
liberdade da nossa existecircncia deixa de ser expressatildeo viva da totalidade do nosso ser acabando
como que relegado para o campo puramente bioloacutegico A aparente exaltaccedilatildeo do corpo pode
bem depressa converter-se em oacutedio agrave corporeidade Ao contraacuterio a feacute cristatilde sempre
considerou o homem como um ser uni-dual em que espiacuterito e mateacuteria se compenetram
mutuamente experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza Sim o eros
quer-nos elevar laquo em ecircxtase raquo para o Divino conduzir-nos para aleacutem de noacutes proacuteprios mas por
isso mesmo requer um caminho de ascese renuacutencias purificaccedilotildees e saneamentos
6 Concretamente como se deve configurar este caminho de ascese e purificaccedilatildeo Como deve
ser vivido o amor para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina Uma
primeira indicaccedilatildeo importante podemos encontraacute-la no Cacircntico dos Cacircnticos um dos livros
do Antigo Testamento bem conhecido dos miacutesticos Segundo a interpretaccedilatildeo hoje
predominante as poesias contidas neste livro satildeo originalmente cacircnticos de amor talvez
previstos para uma festa israelita de nuacutepcias na qual deviam exaltar o amor conjugal Neste
contexto eacute muito elucidativo o facto de ao longo do livro se encontrarem duas palavras
distintas para designar o laquo amor raquo Primeiro aparece a palavra laquo dodim raquo um plural que
exprime o amor ainda inseguro numa situaccedilatildeo de procura indeterminada Depois esta palavra
eacute substituiacuteda por laquo ahabagrave raquo que na versatildeo grega do Antigo Testamento eacute traduzida pelo
termo de som semelhante laquo agape raquo que se tornou como vimos o termo caracteriacutestico para a
concepccedilatildeo biacuteblica do amor Em contraposiccedilatildeo ao amor indeterminado e ainda em fase de
procura este vocaacutebulo exprime a experiecircncia do amor que agora se torna verdadeiramente
descoberta do outro superando assim o caraacutecter egoiacutesta que antes claramente prevalecia
Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro Jaacute natildeo se busca a si proacuteprio natildeo busca a
imersatildeo no inebriamento da felicidade procura ao inveacutes o bem do amado torna-se renuacutencia
estaacute disposto ao sacrifiacutecio antes procura-o
Faz parte da evoluccedilatildeo do amor para niacuteveis mais altos para as suas iacutentimas purificaccedilotildees que
ele procure agora o caraacutecter definitivo e isto num duplo sentido no sentido da exclusividade
mdash laquo apenas esta uacutenica pessoa raquo mdash e no sentido de ser laquo para sempre raquo O amor compreende a
totalidade da existecircncia em toda a sua dimensatildeo inclusive a temporal Nem poderia ser de
outro modo porque a sua promessa visa o definitivo o amor visa a eternidade Sim o amor eacute
laquo ecircxtase raquo ecircxtase natildeo no sentido de um instante de inebriamento mas como caminho como
ecircxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertaccedilatildeo no dom de si e
precisamente dessa forma para o reencontro de si mesmo mais ainda para a descoberta de
Deus laquo Quem procurar salvaguardar a vida perdecirc-la-aacute e quem a perder conservaacute-la-aacute raquo (Lc
17 33) mdash disse Jesus afirmaccedilatildeo esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes
(cf Mt 10 39 16 25 Mc 8 35 Lc 9 24 Jo 12 25) Assim descreve Jesus o seu caminho
pessoal que O conduz atraveacutes da cruz agrave ressurreiccedilatildeo o caminho do gratildeo de trigo que cai na
terra e morre e assim daacute muito fruto Partindo do centro do seu sacrifiacutecio pessoal e do amor
que aiacute alcanccedila a sua plenitude Ele com tais palavras descreve tambeacutem a essecircncia do amor e
da existecircncia humana em geral
7 Inicialmente mais filosoacuteficas as nossas reflexotildees sobre a essecircncia do amor conduziram-nos
agora pela sua dinacircmica interior agrave feacute biacuteblica Ao princiacutepio colocou-se o problema de saber se
os vaacuterios ou melhor opostos significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma
certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de
tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia
e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se
pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais
eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor
fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente
contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees
afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor
concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que
procura o proacuteprio interesse
No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao
ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo
ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo
amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo
esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais
da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel
mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash
amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro
Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica
realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o
eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de
felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas
sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais
dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape
caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem
tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se
sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom
Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm
rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo
beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo
trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)
Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo
indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o
dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na
pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e
desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a
interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor
mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher
de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis
viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a
Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente
desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9
22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada
permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do
seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da
tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris
infirmantium negotiis urgetur raquo [5]
8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees
atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees
caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se
separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma
redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo
paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas
aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe
ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em
dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem
A novidade da feacute biacuteblica
9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo
da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si
mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro
e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo
Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus
que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos
se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo
Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia
de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um
deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta
proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida
precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora
o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no
auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser
objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash
mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico
Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo
entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar
precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado
sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]
Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com
arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do
noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se
alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas
ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A
histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a
Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a
estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico
Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na
verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei
eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de
Deus raquo (Sal 7372 2528)
10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E
natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas
tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no
amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo
adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se
revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute
Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo
desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem
sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo
homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus
contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se
veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio
homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor
O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um
lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute
absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash
o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um
verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo
purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do
Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no
sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o
homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde
como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a
essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho
originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano
anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash
permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se
une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)
11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda
essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da
criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio
Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita
apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os
assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher
Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e
carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees
semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o
homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas
como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre
anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na
narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja
incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a
sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo
completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma
profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua
mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)
Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria
natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher
soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo
menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o
homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo
e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro Mas acima de
tudo surgiu a questatildeo seguinte se a mensagem sobre o amor que nos eacute anunciada pela Biacuteblia
e pela Tradiccedilatildeo da Igreja teria algo a ver com a experiecircncia humana comum do amor ou se
pelo contraacuterio se opusesse a ela A este respeito fomos dar com duas palavras fundamentais
eros como termo para significar o amor laquo mundano raquo e agape como expressatildeo do amor
fundado sobre a feacute e por ela plasmado As duas concepccedilotildees aparecem frequentemente
contrapostas como amor laquo ascendente raquo e amor laquo descendente raquo Existem outras classificaccedilotildees
afins como por exemplo a distinccedilatildeo entre amor possessivo e amor oblativo (amor
concupiscentiaelig ndash amor benevolentiaelig) agrave qual agraves vezes se acrescenta ainda o amor que
procura o proacuteprio interesse
No debate filosoacutefico e teoloacutegico estas distinccedilotildees foram muitas vezes radicalizadas ateacute ao
ponto de as colocar em contraposiccedilatildeo tipicamente cristatildeo seria o amor descendente oblativo
ou seja a agape ao inveacutes a cultura natildeo cristatilde especialmente a grega caracterizar-se-ia pelo
amor ascendente ambicioso e possessivo ou seja pelo eros Se se quisesse levar ao extremo
esta antiacutetese a essecircncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaccedilotildees baacutesicas e vitais
da existecircncia humana e constituiria um mundo independente considerado talvez admiraacutevel
mas decididamente separado do conjunto da existecircncia humana Na realidade eros e agape mdash
amor ascendente e amor descendente mdash nunca se deixam separar completamente um do outro
Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade embora em distintas dimensotildees na uacutenica
realidade do amor tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral Embora o
eros seja inicialmente sobretudo ambicioso ascendente mdash fascinaccedilatildeo pela grande promessa de
felicidade mdash depois agrave medida que se aproxima do outro far-se-aacute cada vez menos perguntas
sobre si proacuteprio procuraraacute sempre mais a felicidade do outro preocupar-se-aacute cada vez mais
dele doar-se-aacute e desejaraacute laquo existir para raquo o outro Assim se insere nele o momento da agape
caso contraacuterio o eros decai e perde mesmo a sua proacutepria natureza Por outro lado o homem
tambeacutem natildeo pode viver exclusivamente no amor oblativo descendente Natildeo pode limitar-se
sempre a dar deve tambeacutem receber Quem quer dar amor deve ele mesmo recebecirc-lo em dom
Certamente o homem pode mdash como nos diz o Senhor mdash tornar-se uma fonte donde correm
rios de aacutegua viva (cf Jo 7 37-38) mas para se tornar semelhante fonte deve ele mesmo
beber incessantemente da fonte primeira e originaacuteria que eacute Jesus Cristo de cujo coraccedilatildeo
trespassado brota o amor de Deus (cf Jo 19 34)
Os Padres viram simbolizada de vaacuterias maneiras na narraccedilatildeo da escada de Jacob esta conexatildeo
indivisiacutevel entre subida e descida entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o
dom recebido Naquele texto biacuteblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu assente na
pedra que lhe servia de travesseiro uma escada que chegava ateacute ao ceacuteu pela qual subiam e
desciam os anjos de Deus (cf Gn 28 12 Jo 1 51) Particularmente interessante eacute a
interpretaccedilatildeo que daacute o Papa Gregoacuterio Magno desta visatildeo na sua Regra pastoral O bom pastor
mdash diz ele mdash deve estar radicado na contemplaccedilatildeo De facto soacute assim lhe seraacute possiacutevel acolher
de tal modo no seu iacutentimo as necessidades dos outros que estas se tornem suas laquo per pietatis
viscera in se infirmitatem caeligterorum transferat raquo [4] Neste contexto Satildeo Gregoacuterio alude a
Satildeo Paulo que foi arrebatado para as alturas ateacute aos maiores misteacuterios de Deus e precisamente
desta forma quando desce eacute capaz de fazer-se tudo para todos (cf 2 Cor 12 2-4 1 Cor 9
22) Aleacutem disso indica o exemplo de Moiseacutes que repetidamente entra na tenda sagrada
permanecendo em diaacutelogo com Deus para poder assim a partir de Deus estar agrave disposiccedilatildeo do
seu povo laquo Dentro [da tenda] arrebatado ateacute agraves alturas mediante a contemplaccedilatildeo fora [da
tenda] deixa-se encalccedilar pelo peso dos que sofrem Intus in contemplationem rapitur foris
infirmantium negotiis urgetur raquo [5]
8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees
atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees
caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se
separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma
redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo
paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas
aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe
ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em
dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem
A novidade da feacute biacuteblica
9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo
da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si
mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro
e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo
Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus
que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos
se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo
Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia
de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um
deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta
proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida
precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora
o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no
auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser
objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash
mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico
Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo
entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar
precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado
sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]
Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com
arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do
noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se
alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas
ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A
histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a
Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a
estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico
Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na
verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei
eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de
Deus raquo (Sal 7372 2528)
10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E
natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas
tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no
amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo
adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se
revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute
Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo
desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem
sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo
homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus
contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se
veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio
homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor
O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um
lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute
absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash
o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um
verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo
purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do
Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no
sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o
homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde
como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a
essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho
originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano
anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash
permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se
une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)
11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda
essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da
criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio
Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita
apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os
assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher
Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e
carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees
semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o
homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas
como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre
anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na
narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja
incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a
sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo
completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma
profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua
mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)
Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria
natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher
soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo
menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o
homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo
e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
8 Encontramos assim uma primeira resposta ainda bastante geneacuterica para as duas questotildees
atraacutes expostas no fundo o laquo amor raquo eacute uma uacutenica realidade embora com distintas dimensotildees
caso a caso pode uma ou outra dimensatildeo sobressair mais Mas quando as duas dimensotildees se
separam completamente uma da outra surge uma caricatura ou de qualquer modo uma forma
redutiva do amor E vimos sinteticamente tambeacutem que a feacute biacuteblica natildeo constroacutei um mundo
paralelo ou um mundo contraposto agravequele fenoacutemeno humano originaacuterio que eacute o amor mas
aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purificaacute-la desvendando-lhe
ao mesmo tempo novas dimensotildees Esta novidade da feacute biacuteblica manifesta-se sobretudo em
dois pontos que merecem ser sublinhados a imagem de Deus e a imagem do homem
A novidade da feacute biacuteblica
9 Antes de mais nada temos a nova imagem de Deus Nas culturas que circundam o mundo
da Biacuteblia a imagem de deus e dos deuses permanece tudo somado pouco clara e em si
mesma contraditoacuteria No itineraacuterio da feacute biacuteblica ao inveacutes vai-se tornando cada vez mais claro
e uniacutevoco aquilo que a oraccedilatildeo fundamental de Israel o Shema resume nestas palavras laquo
Escuta oacute Israel O Senhor nosso Deus eacute o uacutenico Senhor raquo (Dt 6 4) Existe um uacutenico Deus
que eacute o Criador do ceacuteu e da terra e por isso eacute tambeacutem o Deus de todos os homens Dois factos
se singularizam neste esclarecimento que verdadeiramente todos os outros deuses natildeo satildeo
Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus eacute criada por Ele Certamente a ideia
de uma criaccedilatildeo existe tambeacutem alhures mas soacute aqui aparece perfeitamente claro que natildeo um
deus qualquer mas o uacutenico Deus verdadeiro Ele mesmo eacute o autor de toda a realidade esta
proveacutem da forccedila da sua Palavra criadora Isto significa que esta sua criatura Lhe eacute querida
precisamente porque foi desejada por Ele mesmo foi laquo feita raquo por Ele E assim aparece agora
o segundo elemento importante este Deus ama o homem A forccedila divina que Aristoacuteteles no
auge da filosofia grega procurou individuar mediante a reflexatildeo eacute certamente para cada ser
objecto do desejo e do amor mdash como realidade amada esta divindade move o mundo [6] mdash
mas ela mesma natildeo necessita de nada e natildeo ama eacute somente amada Ao contraacuterio o uacutenico
Deus em que Israel crecirc ama pessoalmente Aleacutem disso o seu amor eacute um amor de eleiccedilatildeo
entre todos os povos Ele escolhe Israel e ama-o mdash mas com a finalidade de curar
precisamente deste modo a humanidade inteira Ele ama e este seu amor pode ser qualificado
sem duacutevida como eros que no entanto eacute totalmente agape tambeacutem [7]
Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixatildeo de Deus pelo seu povo com
arrojadas imagens eroacuteticas A relaccedilatildeo de Deus com Israel eacute ilustrada atraveacutes das metaacuteforas do
noivado e do matrimoacutenio consequentemente a idolatria eacute adulteacuterio e prostituiccedilatildeo Assim se
alude concretamente mdash como vimos mdash aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros mas
ao mesmo tempo eacute descrita tambeacutem a relaccedilatildeo de fidelidade entre Israel e o seu Deus A
histoacuteria de amor de Deus com Israel consiste na sua profundidade no facto de que Ele daacute a
Torah isto eacute abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a
estrada do verdadeiro humanismo Por seu lado o homem vivendo na fidelidade ao uacutenico
Deus sente-se a si proacuteprio como aquele que eacute amado por Deus e descobre a alegria na
verdade na justiccedila mdash a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial laquo Quem terei
eu nos ceacuteus Aleacutem de Voacutes nada mais anseio sobre a terra () O meu bem eacute estar perto de
Deus raquo (Sal 7372 2528)
10 O eros de Deus pelo homem mdash como dissemos mdash eacute ao mesmo tempo totalmente agape E
natildeo soacute porque eacute dado de maneira totalmente gratuita sem meacuterito algum precedente mas
tambeacutem porque eacute amor que perdoa Sobretudo Oseias mostra-nos a dimensatildeo da agape no
amor de Deus pelo homem que supera largamente o aspecto da gratuidade Israel cometeu laquo
adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se
revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute
Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo
desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem
sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo
homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus
contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se
veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio
homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor
O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um
lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute
absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash
o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um
verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo
purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do
Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no
sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o
homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde
como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a
essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho
originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano
anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash
permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se
une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)
11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda
essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da
criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio
Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita
apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os
assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher
Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e
carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees
semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o
homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas
como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre
anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na
narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja
incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a
sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo
completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma
profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua
mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)
Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria
natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher
soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo
menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o
homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo
e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
adulteacuterio raquo rompeu a Alianccedila Deus deveria julgaacute-lo e repudiaacute-lo Mas precisamente aqui se
revela que Deus eacute Deus e natildeo homem laquo Como te abandonarei oacute Efraim Entregar-te-ei oacute
Israel O meu coraccedilatildeo daacute voltas dentro de mim comove-se a minha compaixatildeo Natildeo
desafogarei o furor da minha coacutelera natildeo destruirei Efraim porque sou Deus e natildeo um homem
sou Santo no meio de ti raquo (Os 11 8-9) O amor apaixonado de Deus pelo seu povo mdash pelo
homem mdash eacute ao mesmo tempo um amor que perdoa E eacute tatildeo grande que chega a virar Deus
contra Si proacuteprio o seu amor contra a sua justiccedila Nisto o cristatildeo vecirc jaacute esboccedilar-se
veladamente o misteacuterio da Cruz Deus ama tanto o homem que tendo-Se feito Ele proacuteprio
homem segue-o ateacute agrave morte e deste modo reconcilia justiccedila e amor
O aspecto filosoacutefico e histoacuterico-religioso saliente nesta visatildeo da Biacuteblia eacute o facto de por um
lado nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafiacutesica de Deus Deus eacute
absolutamente a fonte originaacuteria de todo o ser mas este princiacutepio criador de todas as coisas mdash
o Logos a razatildeo primordial mdash eacute ao mesmo tempo um amante com toda a paixatildeo de um
verdadeiro amor Deste modo o eros eacute enobrecido ao maacuteximo mas simultaneamente tatildeo
purificado que se funde com a agape Daqui podemos compreender por que a recepccedilatildeo do
Cacircntico dos Cacircnticos no cacircnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no
sentido de que aqueles cacircnticos de amor no fundo descreviam a relaccedilatildeo de Deus com o
homem e do homem com Deus E assim o referido livro tornou-se tanto na literatura cristatilde
como na judaica uma fonte de conhecimento e de experiecircncia miacutestica em que se exprime a
essecircncia da feacute biacuteblica na verdade existe uma unificaccedilatildeo do homem com Deus mdash o sonho
originaacuterio do homem mdash mas esta unificaccedilatildeo natildeo eacute confundir-se um afundar no oceano
anoacutenimo do Divino eacute unidade que cria amor na qual ambos mdash Deus e o homem mdash
permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa soacute laquo Aquele poreacutem que se
une ao Senhor constitui com Ele um soacute espiacuterito raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 6 17)
11 Como vimos a primeira novidade da feacute biacuteblica consiste na imagem de Deus a segunda
essencialmente ligada a ela encontramo-la na imagem do homem A narraccedilatildeo biacuteblica da
criaccedilatildeo fala da solidatildeo do primeiro homem Adatildeo querendo Deus pocircr a seu lado um auxiacutelio
Dentre todas as criaturas nenhuma pocircde ser para o homem aquela ajuda de que necessita
apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves integrando-os
assim no contexto da sua vida Entatildeo de uma costela do homem Deus plasma a mulher
Agora Adatildeo encontra a ajuda de que necessita laquo Esta eacute realmente osso dos meus ossos e
carne da minha carne raquo (Gn 2 23) Na base desta narraccedilatildeo eacute possiacutevel entrever concepccedilotildees
semelhantes agraves que aparecem por exemplo no mito referido por Platatildeo segundo o qual o
homem originariamente era esfeacuterico porque completo em si mesmo e auto-suficiente Mas
como puniccedilatildeo pela sua soberba foi dividido ao meio por Zeus de tal modo que agora sempre
anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade [8] Na
narraccedilatildeo biacuteblica natildeo se fala de puniccedilatildeo poreacutem a ideia de que o homem de algum modo esteja
incompleto constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a
sua totalidade isto eacute a ideia de que soacute na comunhatildeo com o outro sexo possa tornar-se laquo
completo raquo estaacute sem duacutevida presente E deste modo a narraccedilatildeo biacuteblica conclui com uma
profecia sobre Adatildeo laquo Por este motivo o homem deixaraacute o pai e a matildee para se unir agrave sua
mulher e os dois seratildeo uma soacute carne raquo (Gn 2 24)
Aqui haacute dois aspectos importantes primeiro o eros estaacute de certo modo enraizado na proacutepria
natureza do homem Adatildeo anda agrave procura e laquo deixa o pai e a matildee raquo para encontrar a mulher
soacute no seu conjunto eacute que representam a totalidade humana tornam-se laquo uma soacute carne raquo Natildeo
menos importante eacute o segundo aspecto numa orientaccedilatildeo baseada na criaccedilatildeo o eros impele o
homem ao matrimoacutenio a uma ligaccedilatildeo caracterizada pela unicidade e para sempre deste modo
e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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e somente assim eacute que se realiza a sua finalidade iacutentima Agrave imagem do Deus monoteiacutesta
corresponde o matrimoacutenio monogacircmico O matrimoacutenio baseado num amor exclusivo e
definitivo torna-se o iacutecone do relacionamento de Deus com o seu povo e vice-versa o modo
de Deus amar torna-se a medida do amor humano Esta estreita ligaccedilatildeo entre eros e
matrimoacutenio na Biacuteblia quase natildeo encontra paralelos literaacuterios fora da mesma
Jesus Cristo ndash o amor encarnado de Deus
12 Apesar de termos falado ateacute agora prevalentemente do Antigo Testamento jaacute se deixou
clara a iacutentima compenetraccedilatildeo dos dois Testamentos como uacutenica Escritura da feacute cristatilde A
verdadeira novidade do Novo Testamento natildeo reside em novas ideias mas na proacutepria figura
de Cristo que daacute carne e sangue aos conceitos mdash um incriacutevel realismo Jaacute no Antigo
Testamento a novidade biacuteblica natildeo consistia simplesmente em noccedilotildees abstratas mas na acccedilatildeo
imprevisiacutevel e de certa forma inaudita de Deus Esta acccedilatildeo de Deus ganha agora a sua forma
dramaacutetica devido ao facto de que em Jesus Cristo o proacuteprio Deus vai atraacutes da laquo ovelha
perdida raquo a humanidade sofredora e transviada Quando Jesus fala nas suas paraacutebolas do
pastor que vai atraacutes da ovelha perdida da mulher que procura a dracma do pai que sai ao
encontro do filho proacutedigo e o abraccedila natildeo se trata apenas de palavras mas constituem a
explicaccedilatildeo do seu proacuteprio ser e agir Na sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus
contra Si proacuteprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvaacute-lo mdash o amor na
sua forma mais radical O olhar fixo no lado trespassado de Cristo de que fala Joatildeo (cf 19
37) compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Enciacuteclica laquo Deus eacute amor raquo (1
Jo 4 8) Eacute laacute que esta verdade pode ser contemplada E comeccedilando de laacute pretende-se agora
definir em que consiste o amor A partir daquele olhar o cristatildeo encontra o caminho do seu
viver e amar
13 Jesus deu a este acto de oferta uma presenccedila duradoura atraveacutes da instituiccedilatildeo da Eucaristia
durante a Uacuteltima Ceia Antecipa a sua morte e ressurreiccedilatildeo entregando-Se jaacute naquela hora aos
seus disciacutepulos no patildeo e no vinho a Si proacuteprio ao seu corpo e sangue como novo manaacute (cf
Jo 6 31-33) Se o mundo antigo tinha sonhado que no fundo o verdadeiro alimento do
homem mdash aquilo de que este vive enquanto homem mdash era o Logos a sabedoria eterna agora
este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para noacutes mdash como amor A Eucaristia arrasta-
nos no acto oblativo de Jesus Natildeo eacute soacute de modo estaacutetico que recebemos o Logos encarnado
mas ficamos envolvidos na dinacircmica da sua doaccedilatildeo A imagem do matrimoacutenio entre Deus e
Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebiacutevel o que era um estar na
presenccedila de Deus torna-se agora atraveacutes da participaccedilatildeo na doaccedilatildeo de Jesus comunhatildeo no seu
corpo e sangue torna-se uniatildeo A laquo miacutestica raquo do Sacramento que se funda no abaixamento de
Deus ateacute noacutes eacute de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer miacutestica
elevaccedilatildeo do homem poderia realizar
14 Temos agora de prestar atenccedilatildeo a outro aspecto a laquo miacutestica raquo do Sacramento tem um
caraacutecter social porque na comunhatildeo sacramental eu fico unido ao Senhor como todos os
demais comungantes laquo Uma vez que haacute um soacute patildeo noacutes embora sendo muitos formamos um
soacute corpo porque todos participamos do mesmo patildeo raquo mdash diz Satildeo Paulo (1 Cor 10 17) A
uniatildeo com Cristo eacute ao mesmo tempo uniatildeo com todos os outros aos quais Ele Se entrega Eu
natildeo posso ter Cristo soacute para mim posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se
tornaram ou tornaratildeo Seus A comunhatildeo tira-me para fora de mim mesmo projectando-me
para Ele e deste modo tambeacutem para a uniatildeo com todos os cristatildeos Tornamo-nos laquo um soacute
corpo raquo fundidos todos numa uacutenica existecircncia O amor a Deus e o amor ao proacuteximo estatildeo
agora verdadeiramente juntos o Deus encarnado atrai-nos todos a Si Assim se compreende
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
por que o termo agape se tenha tornado tambeacutem um nome da Eucaristia nesta a agape de
Deus vem corporalmente a noacutes para continuar a sua acccedilatildeo em noacutes e atraveacutes de noacutes Soacute a partir
desta fundamentaccedilatildeo cristoloacutegico-sacramental eacute que se pode entender correctamente o
ensinamento de Jesus sobre o amor A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao
duplo mandamento do amor a Deus e ao proacuteximo a derivaccedilatildeo de toda a vida de feacute da
centralidade deste preceito natildeo eacute uma simples moral que possa depois subsistir
autonomamente ao lado da feacute em Cristo e da sua re-actualizaccedilatildeo no Sacramento feacute culto e
ethos compenetram-se mutuamente como uma uacutenica realidade que se configura no encontro
com a agape de Deus Aqui a habitual contraposiccedilatildeo entre culto e eacutetica simplesmente
desaparece No proacuteprio laquo culto raquo na comunhatildeo eucariacutestica estaacute contido o ser amado e o amar
por sua vez os outros Uma Eucaristia que natildeo se traduza em amor concretamente vivido eacute
em si mesma fragmentaacuteria Por outro lado mdash como adiante havemos de considerar de modo
mais detalhado mdash o laquo mandamento raquo do amor soacute se torna possiacutevel porque natildeo eacute mera
exigecircncia o amor pode ser laquo mandado raquo porque antes nos eacute dado
15 Eacute a partir deste princiacutepio que devem ser entendidas tambeacutem as grandes paraacutebolas de Jesus
O rico avarento (cf Lc 16 19-31) implora do lugar do supliacutecio que os seus irmatildeos sejam
informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava
necessidade Jesus recolhe por assim dizer aquele grito de socorro e repete-o para nos
acautelar e reconduzir ao bom caminho A paraacutebola do bom Samaritano (cf Lc 10 25-37) leva
a dois esclarecimentos importantes Enquanto o conceito de laquo proacuteximo raquo ateacute entatildeo se referia
essencialmente aos concidadatildeos e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de
Israel ou seja agrave comunidade solidaacuteria de um paiacutes e de um povo agora este limite eacute abolido
Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudaacute-lo eacute o meu proacuteximo O conceito de
proacuteximo fica universalizado sem deixar todavia de ser concreto Apesar da sua extensatildeo a
todos os homens natildeo se reduz agrave expressatildeo de um amor geneacuterico e abstracto em si mesmo
pouco comprometedor mas requer o meu empenho praacutetico aqui e agora Continua a ser tarefa
da Igreja interpretar sempre de novo esta ligaccedilatildeo entre distante e proacuteximo na vida praacutetica dos
seus membros Eacute preciso enfim recordar de modo particular a grande paraacutebola do Juiacutezo final
(cf Mt 25 31-46) onde o amor se torna o criteacuterio para a decisatildeo definitiva sobre o valor ou a
inutilidade duma vida humana Jesus identifica-Se com os necessitados famintos sedentos
forasteiros nus enfermos encarcerados laquo Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos
mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo (Mt 25 40) Amor a Deus e amor ao proacuteximo
fundem-se num todo no mais pequenino encontramos o proacuteprio Jesus e em Jesus
encontramos Deus
Amor a Deus e amor ao proacuteximo
16 Depois de termos reflectido sobre a essecircncia do amor e o seu significado na feacute biacuteblica
resta uma dupla pergunta a propoacutesito do nosso comportamento A primeira eacute realmente
possiacutevel amar a Deus mesmo sem O ver E a outra o amor pode ser mandado Contra o
duplo mandamento do amor existe uma dupla objecccedilatildeo que se faz sentir nestas perguntas
ningueacutem jamais viu a Deus mdash como poderemos amaacute-Lo Mais o amor natildeo pode ser
mandado eacute em definitivo um sentimento que pode existir ou natildeo mas natildeo pode ser criado
pela vontade A Escritura parece dar o seu aval agrave primeira objecccedilatildeo quando afirma laquo Se
algueacutem disser Eu amo a Deus mas odiar a seu irmatildeo eacute mentiroso pois quem natildeo ama a seu
irmatildeo ao qual vecirc como pode amar a Deus que natildeo vecirc raquo (1 Jo 4 20) Este texto poreacutem natildeo
exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossiacutevel pelo contraacuterio em todo o
contexto da I Carta de Joatildeo agora citada tal amor eacute explicitamente requerido Nela se destaca
o nexo indivisiacutevel entre o amor a Deus e o amor ao proacuteximo um exige tatildeo estreitamente o
outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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outro que a afirmaccedilatildeo do amor a Deus se torna uma mentira se o homem se fechar ao proacuteximo
ou inclusive o odiar O citado versiacuteculo joanino deve antes ser interpretado no sentido de
que o amor ao proacuteximo eacute uma estrada para encontrar tambeacutem a Deus e que o fechar os olhos
diante do proacuteximo torna cegos tambeacutem diante de Deus
17 Com efeito ningueacutem jamais viu a Deus tal como Ele eacute em Si mesmo E contudo Deus
natildeo nos eacute totalmente invisiacutevel natildeo se deixou ficar pura e simplesmente inacessiacutevel a noacutes
Deus amou-nos primeiro mdash diz a Carta de Joatildeo citada (cf 4 10) mdash e este amor de Deus
apareceu no meio de noacutes fez-se visiacutevel quando Ele laquo enviou o seu Filho unigeacutenito ao mundo
para que por Ele vivamos raquo (1 Jo 4 9) Deus fez-Se visiacutevel em Jesus podemos ver o Pai (cf
Jo 14 9) Existe com efeito uma muacuteltipla visibilidade de Deus Na histoacuteria de amor que a
Biacuteblia nos narra Ele vem ao nosso encontro procura conquistar-nos mdash ateacute agrave Uacuteltima Ceia ateacute
ao Coraccedilatildeo trespassado na cruz ateacute agraves apariccedilotildees do Ressuscitado e agraves grandes obras pelas
quais Ele atraveacutes da acccedilatildeo dos Apoacutestolos guiou o caminho da Igreja nascente Tambeacutem na
sucessiva histoacuteria da Igreja o Senhor natildeo esteve ausente incessantemente vem ao nosso
encontro atraveacutes de homens nos quais Ele Se revela atraveacutes da sua Palavra nos Sacramentos
especialmente na Eucaristia Na liturgia da Igreja na sua oraccedilatildeo na comunidade viva dos
crentes noacutes experimentamos o amor de Deus sentimos a sua presenccedila e aprendemos deste
modo tambeacutem a reconhececirc-la na nossa vida quotidiana Ele amou-nos primeiro e continua a
ser o primeiro a amar-nos por isso tambeacutem noacutes podemos responder com o amor Deus natildeo
nos ordena um sentimento que natildeo possamos suscitar em noacutes proacuteprios Ele ama-nos faz-nos
ver e experimentar o seu amor e desta laquo antecipaccedilatildeo raquo de Deus pode como resposta
despontar tambeacutem em noacutes o amor
No desenrolar deste encontro revela-se com clareza que o amor natildeo eacute apenas um sentimento
Os sentimentos vatildeo e vecircm O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial mas natildeo eacute
a totalidade do amor Ao iniacutecio falaacutemos do processo das purificaccedilotildees e amadurecimentos
pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo se torna amor no significado cabal da
palavra Eacute proacuteprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e
incluir por assim dizer o homem na sua totalidade O encontro com as manifestaccedilotildees visiacuteveis
do amor de Deus pode suscitar em noacutes o sentimento da alegria que nasce da experiecircncia de
ser amados Tal encontro poreacutem chama em causa tambeacutem a nossa vontade e o nosso
intelecto O reconhecimento do Deus vivo eacute um caminho para o amor e o sim da nossa
vontade agrave dEle une intelecto vontade e sentimento no acto globalizante do amor Mas isto eacute
um processo que permanece continuamente em caminho o amor nunca estaacute laquo concluiacutedo raquo e
completado transforma-se ao longo da vida amadurece e por isso mesmo permanece fiel a si
proacuteprio Idem velle atque idem nolle [9] mdash querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa eacute
segundo os antigos o autecircntico conteuacutedo do amor um tornar-se semelhante ao outro que leva
agrave uniatildeo do querer e do pensar A histoacuteria do amor entre Deus e o homem consiste
precisamente no facto de que esta comunhatildeo de vontade cresce em comunhatildeo de pensamento
e de sentimento e assim o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais a
vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impotildeem de fora os
mandamentos mas eacute a minha proacutepria vontade baseada na experiecircncia de que realmente Deus
eacute mais iacutentimo a mim mesmo de quanto o seja eu proacuteprio [10] Cresce entatildeo o abandono em
Deus e Deus torna-Se a nossa alegria (cf Sal 7372 23-28)
18 Revela-se assim como possiacutevel o amor ao proacuteximo no sentido enunciado por Jesus na
Biacuteblia Consiste precisamente no facto de que eu amo em Deus e com Deus a pessoa que natildeo
me agrada ou que nem conheccedilo sequer Isto soacute eacute possiacutevel realizar-se a partir do encontro
iacutentimo com Deus um encontro que se tornou comunhatildeo de vontade chegando mesmo a tocar
o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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o sentimento Entatildeo aprendo a ver aquela pessoa jaacute natildeo somente com os meus olhos e
sentimentos mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo O seu amigo eacute meu amigo Para aleacutem
do aspecto exterior do outro dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de amor de
atenccedilatildeo que eu natildeo lhe faccedilo chegar somente atraveacutes das organizaccedilotildees que disso se ocupam
aceitando-o talvez por necessidade poliacutetica Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao
outro muito mais do que as coisas externamente necessaacuterias posso dar-lhe o olhar de amor de
que ele precisa Aqui se vecirc a interacccedilatildeo que eacute necessaacuteria entre o amor a Deus e o amor ao
proacuteximo de que fala com tanta insistecircncia a I Carta de Joatildeo Se na minha vida falta
totalmente o contacto com Deus posso ver no outro sempre e apenas o outro e natildeo consigo
reconhecer nele a imagem divina Mas se na minha vida negligencio completamente a atenccedilatildeo
ao outro importando-me apenas com ser laquo piedoso raquo e cumprir os meus laquo deveres religiosos raquo
entatildeo definha tambeacutem a relaccedilatildeo com Deus Neste caso trata-se duma relaccedilatildeo laquo correcta raquo mas
sem amor Soacute a minha disponibilidade para ir ao encontro do proacuteximo e demonstrar-lhe amor eacute
que me torna sensiacutevel tambeacutem diante de Deus Soacute o serviccedilo ao proacuteximo eacute que abre os meus
olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama Os Santos mdash
pensemos por exemplo na Beata Teresa de Calcutaacute mdash hauriram a sua capacidade de amar o
proacuteximo de modo sempre renovado do seu encontro com o Senhor eucariacutestico e vice-versa
este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no serviccedilo deles aos outros
Amor a Deus e amor ao proacuteximo satildeo inseparaacuteveis constituem um uacutenico mandamento Mas
ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro Deste modo jaacute natildeo se
trata de um laquo mandamento raquo que do exterior nos impotildee o impossiacutevel mas de uma experiecircncia
do amor proporcionada do interior um amor que por sua natureza deve ser ulteriormente
comunicado aos outros O amor cresce atraveacutes do amor O amor eacute laquo divino raquo porque vem de
Deus e nos une a Deus e atraveacutes deste processo unificador transforma-nos em um Noacutes que
supera as nossas divisotildees e nos faz ser um soacute ateacute que no fim Deus seja laquo tudo em todos raquo (1
Cor 15 28)
II PARTE
CARITAS ndash A PRAacuteTICA DO AMOR
PELA IGREJA
ENQUANTO laquo COMUNIDADE DE AMOR raquo
A caridade da Igreja como manifestaccedilatildeo do amor trinitaacuterio
19 laquo Se vecircs a caridade vecircs a Trindade raquo mdash escrevia Santo Agostinho [11] Ao longo das
reflexotildees anteriores pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf Jo 19 37 Zc 12 10)
reconhecendo o desiacutegnio do Pai que movido pelo amor (cf Jo 3 16) enviou o Filho unigeacutenito
ao mundo para redimir o homem Quando morreu na cruz Jesus mdash como indica o evangelista
mdash laquo entregou o Espiacuterito raquo (cf Jo 19 30) preluacutedio daquele dom do Espiacuterito Santo que Ele
havia de realizar depois da ressurreiccedilatildeo (cf Jo 20 22) Desde modo se actuaria a promessa
dos laquo rios de aacutegua viva raquo que graccedilas agrave efusatildeo do Espiacuterito haviam de emanar do coraccedilatildeo dos
crentes (cf Jo 7 38-39) De facto o Espiacuterito eacute aquela forccedila interior que harmoniza seus
coraccedilotildees com o coraccedilatildeo de Cristo e leva-os a amar os irmatildeos como Ele os amou quando Se
inclinou para lavar os peacutes dos disciacutepulos (cf Jo 13 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida
por todos (cf Jo 13 1 15 13)
O Espiacuterito eacute tambeacutem forccedila que transforma o coraccedilatildeo da comunidade eclesial para ser no
mundo testemunha do amor do Pai que quer fazer da humanidade uma uacutenica famiacutelia em seu
Filho Toda a actividade da Igreja eacute manifestaccedilatildeo dum amor que procura o bem integral do
homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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homem procura a sua evangelizaccedilatildeo por meio da Palavra e dos Sacramentos empreendimento
este muitas vezes heroacuteico nas suas realizaccedilotildees histoacutericas e procura a sua promoccedilatildeo nos vaacuterios
acircmbitos da vida e da actividade humana Portanto eacute amor o serviccedilo que a Igreja exerce para
acorrer constantemente aos sofrimentos e agraves necessidades mesmo materiais dos homens Eacute
sobre este aspecto sobre este serviccedilo da caridade que desejo deter-me nesta segunda parte da
Enciacuteclica
A caridade como dever da Igreja
20 O amor do proacuteximo radicado no amor de Deus eacute um dever antes de mais para cada um
dos fieacuteis mas eacute-o tambeacutem para a comunidade eclesial inteira e isto a todos os seus niacuteveis
desde a comunidade local passando pela Igreja particular ateacute agrave Igreja universal na sua
globalidade A Igreja tambeacutem enquanto comunidade deve praticar o amor Consequecircncia disto
eacute que o amor tem necessidade tambeacutem de organizaccedilatildeo enquanto pressuposto para um serviccedilo
comunitaacuterio ordenado A consciecircncia de tal dever teve relevacircncia constitutiva na Igreja desde
os seus iniacutecios laquo Todos os crentes viviam unidos e possuiacuteam tudo em comum Vendiam terras
e outros bens e distribuiacuteam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um raquo
(Act 2 44-45) Lucas conta-nos isto no quadro duma espeacutecie de definiccedilatildeo da Igreja entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesatildeo ao laquo ensino dos Apoacutestolos raquo agrave laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) agrave laquo fracccedilatildeo do patildeo raquo e agraves laquo oraccedilotildees raquo (cf Act 2 42) O elemento da laquo comunhatildeo raquo
(koinonia) que aqui ao iniacutecio natildeo eacute especificado aparece depois concretizado nos versiacuteculos
anteriormente citados consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum
pelo que no seu meio jaacute natildeo subsiste a diferenccedila entre ricos e pobres (cf tambeacutem Act 4 32-
37) Com o crescimento da Igreja esta forma radical de comunhatildeo material mdash verdade se diga
mdash natildeo pocircde ser mantida Mas o nuacutecleo essencial ficou no seio da comunidade dos crentes natildeo
deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algueacutem os bens necessaacuterios para
uma vida condigna
21 Um passo decisivo na difiacutecil busca de soluccedilotildees para realizar este princiacutepio eclesial
fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o iniacutecio do ofiacutecio
diaconal (cf Act 6 5-6) De facto na Igreja primitiva tinha-se gerado na distribuiccedilatildeo
quotidiana agraves viuacutevas uma disparidade entre a parte de liacutengua hebraica e a de liacutengua grega Os
Apoacutestolos a quem estavam confiados antes de mais a laquo oraccedilatildeo raquo (Eucaristia e Liturgia) e o laquo
serviccedilo da Palavra raquo sentiram-se excessivamente carregados pelo laquo serviccedilo das mesas raquo
decidiram por isso reservar para eles o ministeacuterio principal e criar para a outra mansatildeo
tambeacutem ela necessaacuteria na Igreja um organismo de sete pessoas Mas este grupo natildeo devia
realizar um serviccedilo meramente teacutecnico de distribuiccedilatildeo deviam ser homens laquo cheios do
Espiacuterito Santo e de sabedoria raquo (cf Act 6 1-6) Quer dizer que o serviccedilo social que tinham de
cumprir era concreto sem duacutevida alguma mas ao mesmo tempo era tambeacutem um serviccedilo
espiritual tratava-se na verdade de um ofiacutecio verdadeiramente espiritual que realizava um
dever essencial da Igreja o do amor bem ordenado ao proacuteximo Com a formaccedilatildeo deste
organismo dos Sete a laquo diaconia raquo mdash o serviccedilo do amor ao proacuteximo exercido
comunitariamente e de modo ordenado mdash ficara instaurada na estrutura fundamental da
proacutepria Igreja
22 Com o passar dos anos e a progressiva difusatildeo da Igreja a praacutetica da caridade confirmou-
se como um dos seus acircmbitos essenciais juntamente com a administraccedilatildeo dos Sacramentos e
o anuacutencio da Palavra praticar o amor para com as viuacutevas e os oacuterfatildeos os presos os doentes e
necessitados de qualquer geacutenero pertence tanto agrave sua essecircncia como o serviccedilo dos
Sacramentos e o anuacutencio do Evangelho A Igreja natildeo pode descurar o serviccedilo da caridade tal
como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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como natildeo pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra Para o demonstrar bastam alguns
exemplos O maacutertir Justino (dagger por 155) no contexto da celebraccedilatildeo dominical dos cristatildeos
descreve tambeacutem a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal As
pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades cada uma o que quer
o Bispo serve-se disso para sustentar os oacuterfatildeos as viuacutevas e aqueles que por doenccedila ou outros
motivos passam necessidade e tambeacutem os presos e os forasteiros [12] O grande escritor
cristatildeo Tertuliano (dagger depois de 220) conta como a solicitude dos cristatildeos pelos necessitados de
qualquer geacutenero suscitava a admiraccedilatildeo dos pagatildeos [13] E quando Inaacutecio de Antioquia (dagger por
117) designa a Igreja de Roma como aquela que laquo preside agrave caridade (agape) raquo [14] pode-se
supor que ele quisesse com tal definiccedilatildeo exprimir de qualquer modo tambeacutem a sua actividade
caritativa concreta
23 Neste contexto pode revelar-se uacutetil uma referecircncia agraves estruturas juriacutedicas primitivas que
tinham a ver com o serviccedilo da caridade na Igreja A meados do seacuteculo IV ganha forma no
Egipto a chamada laquo diaconia raquo que eacute nos diversos mosteiros a instituiccedilatildeo responsaacutevel pelo
conjunto das actividades assistenciais pelo serviccedilo precisamente da caridade A partir destes
iniacutecios desenvolve-se ateacute ao seacuteculo VI no Egipto uma corporaccedilatildeo com plena capacidade
juriacutedica agrave qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuiccedilatildeo
puacuteblica No Egipto natildeo soacute cada mosteiro mas tambeacutem cada diocese acabou por ter a sua
diaconia mdash uma instituiccedilatildeo que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente O Papa
Gregoacuterio Magno (dagger 604) fala da diaconia de Naacutepoles Relativamente a Roma as diaconias satildeo
documentadas a partir dos seacuteculos VII e VIII mas naturalmente jaacute antes e logo desde os
primoacuterdios a actividade assistencial aos pobres e doentes segundo os princiacutepios da vida cristatilde
expostos nos Actos dos Apoacutestolos era parte essencial da Igreja de Roma Este dever encontra
uma sua viva expressatildeo na figura do diaacutecono Lourenccedilo (dagger 258) A dramaacutetica descriccedilatildeo do seu
martiacuterio era jaacute conhecida por Santo Ambroacutesio (dagger 397) e no seu nuacutecleo mostra-nos
seguramente a figura autecircntica do Santo Apoacutes a prisatildeo dos seus irmatildeos na feacute e do Papa a ele
como responsaacutevel pelo cuidado dos pobres de Roma fora concedido mais algum tempo de
liberdade para recolher os tesouros da Igreja e entregaacute-los agraves autoridades civis Lourenccedilo
distribuiu o dinheiro disponiacutevel pelos pobres e depois apresentou estes agraves autoridades como
sendo o verdadeiro tesouro da Igreja [15] Independentemente da credibilidade histoacuterica que se
queira atribuir a tais particulares Lourenccedilo ficou presente na memoacuteria da Igreja como grande
expoente da caridade eclesial
24 Uma alusatildeo merece a figura do imperador Juliano o Apoacutestata (dagger 363) porque demonstra
uma vez mais quatildeo essencial era para a Igreja dos primeiros seacuteculos a caridade organizada e
praticada Crianccedila de seis anos Juliano assistira ao assassiacutenio de seu pai de seu irmatildeo e
doutros familiares pelas guardas do palaacutecio imperial esta brutalidade atribuiu-a ele mdash com
razatildeo ou sem ela mdash ao imperador Constacircncio que se fazia passar por um grande cristatildeo Em
consequecircncia disso a feacute cristatilde acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas Feito
imperador decide restaurar o paganismo a antiga religiatildeo romana mas ao mesmo tempo
reformaacute-lo para se tornar realmente a forccedila propulsora do impeacuterio Para isso inspirou-se
largamente no cristianismo Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes Estes
deviam promover o amor a Deus e ao proacuteximo Numa das suas cartas [16] escrevera que o
uacutenico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja Por isso
considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir a par do sistema de caridade
da Igreja uma actividade equivalente na sua religiatildeo Os laquo Galileus raquo mdash dizia ele mdash tinham
conquistado assim a sua popularidade Havia que imitaacute-los senatildeo mesmo superaacute-los Deste
modo o imperador confirmava que a caridade era uma caracteriacutestica decisiva da comunidade
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
cristatilde da Igreja
25 Chegados aqui registemos dois dados essenciais tirados das reflexotildees feitas
a) A natureza iacutentima da Igreja exprime-se num triacuteplice dever anuacutencio da Palavra de Deus
(kerygma-martyria) celebraccedilatildeo dos Sacramentos (leiturgia) serviccedilo da caridade (diakonia)
Satildeo deveres que se reclamam mutuamente natildeo podendo um ser separado dos outros Para a
Igreja a caridade natildeo eacute uma espeacutecie de actividade de assistecircncia social que se poderia mesmo
deixar a outros mas pertence agrave sua natureza eacute expressatildeo irrenunciaacutevel da sua proacutepria
essecircncia [17]
b) A Igreja eacute a famiacutelia de Deus no mundo Nesta famiacutelia natildeo deve haver ningueacutem que sofra
por falta do necessaacuterio Ao mesmo tempo poreacutem a caritas-agape estende-se para aleacutem das
fronteiras da Igreja a paraacutebola do bom Samaritano permanece como criteacuterio de medida
impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado laquo por acaso raquo
(cf Lc 10 31) seja ele quem for Mas ressalvada esta universalidade do mandamento do
amor existe tambeacutem uma exigecircncia especificamente eclesial mdash precisamente a exigecircncia de
que na proacutepria Igreja enquanto famiacutelia nenhum membro sofra porque passa necessidade
Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gaacutelatas laquo Portanto enquanto temos tempo
pratiquemos o bem para com todos mas principalmente para com os irmatildeos na feacute raquo (6 10)
Justiccedila e caridade
26 Desde o Oitocentos vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma
objecccedilatildeo explanada depois com insistecircncia sobretudo pelo pensamento marxista Os pobres
mdash diz-se mdash natildeo teriam necessidade de obras de caridade mas de justiccedila As obras de caridade
mdash as esmolas mdash seriam na realidade para os ricos uma forma de subtraiacuterem-se agrave instauraccedilatildeo
da justiccedila e tranquilizarem a consciecircncia mantendo as suas posiccedilotildees e defraudando os pobres
nos seus direitos Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manutenccedilatildeo
das condiccedilotildees existentes seria necessaacuterio criar uma ordem justa na qual todos receberiam a
sua respectiva parte de bens da terra e por conseguinte jaacute natildeo teriam necessidade das obras de
caridade Algo de verdade existe mdash devemos reconhececirc-lo mdash nesta argumentaccedilatildeo mas haacute
tambeacutem e natildeo pouco de errado Eacute verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a
prossecuccedilatildeo da justiccedila e que a finalidade de uma justa ordem social eacute garantir a cada um no
respeito do princiacutepio da subsidiariedade a proacutepria parte nos bens comuns Isto mesmo sempre
o tecircm sublinhado a doutrina cristatilde sobre o Estado e a doutrina social da Igreja Do ponto de
vista histoacuterico a questatildeo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situaccedilatildeo com a
formaccedilatildeo da sociedade industrial no Oitocentos A apariccedilatildeo da induacutestria moderna dissolveu as
antigas estruturas sociais e provocou com a massa dos assalariados uma mudanccedila radical na
composiccedilatildeo da sociedade no seio da qual a relaccedilatildeo entre capital e trabalho se tornou a questatildeo
decisiva mdash questatildeo que sob esta forma era desconhecida antes As estruturas de produccedilatildeo e o
capital tornaram-se o novo poder que colocado nas matildeos de poucos comportava para as
massas operaacuterias uma privaccedilatildeo de direitos contra a qual era preciso revoltar-se
27 Forccediloso eacute admitir que os representantes da Igreja soacute lentamente se foram dando conta de
que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade Natildeo faltaram
pioneiros um deles por exemplo foi o Bispo Ketteler de Moguacutencia (dagger 1877) Como resposta
agraves necessidades concretas surgiram tambeacutem ciacuterculos associaccedilotildees uniotildees federaccedilotildees e
sobretudo novas congregaccedilotildees religiosas que no Oitocentos desceram em campo contra a
pobreza as doenccedilas e as situaccedilotildees de carecircncia no sector educativo Em 1891 entrou em cena o
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
magisteacuterio pontifiacutecio com a Enciacuteclica Rerum novarum de Leatildeo XIII Seguiu-se-lhe a Enciacuteclica
de Pio XI Quadragesimo anno em 1931 O Beato Papa Joatildeo XXIII publicou em 1961 a
Enciacuteclica Mater et Magistra enquanto Paulo VI na Enciacuteclica Populorum progressio (1967) e
na Carta Apostoacutelica Octogesima adveniens (1971) analisou com afinco a problemaacutetica social
que entretanto se tinha agravado sobretudo na Ameacuterica Latina O meu grande predecessor
Joatildeo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Enciacuteclicas sociais Laborem exercens (1981)
Sollicitudo rei socialis (1987) e por uacuteltimo Centesimus annus (1991) Deste modo ao
enfrentar situaccedilotildees e problemas sempre novos foi-se desenvolvendo uma doutrina social
catoacutelica que em 2004 foi apresentada de modo orgacircnico no Compecircndio da doutrina social da
Igreja redigido pelo Pontifiacutecio Conselho laquo Justiccedila e Paz raquo O marxismo tinha indicado na
revoluccedilatildeo mundial e na sua preparaccedilatildeo a panaceia para a problemaacutetica social atraveacutes da
revoluccedilatildeo e consequente colectivizaccedilatildeo dos meios de produccedilatildeo mdash asseverava-se em tal
doutrina mdash devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor Este
sonho desvaneceu-se Na difiacutecil situaccedilatildeo em que hoje nos encontramos por causa tambeacutem da
globalizaccedilatildeo da economia a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicaccedilatildeo fundamental
que propotildee vaacutelidas orientaccedilotildees muito para aleacutem das fronteiras eclesiais tais orientaccedilotildees mdash
face ao progresso em acto mdash devem ser analisadas em diaacutelogo com todos aqueles que se
preocupam seriamente do homem e do seu mundo
28 Para definir com maior cuidado a relaccedilatildeo entre o necessaacuterio empenho em prol da justiccedila e
o serviccedilo da caridade eacute preciso anotar duas situaccedilotildees de facto que satildeo fundamentais
a) A justa ordem da sociedade e do Estado eacute dever central da poliacutetica Um Estado que natildeo se
regesse segundo a justiccedila reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrotildees como disse Agostinho
uma vez laquo Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia raquo [18] Pertence agrave
estrutura fundamental do cristianismo a distinccedilatildeo entre o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus (cf
Mt 22 21) isto eacute a distinccedilatildeo entre Estado e Igreja ou como diz o Conciacutelio Vaticano II a
autonomia das realidades temporais [19] O Estado natildeo pode impor a religiatildeo mas deve
garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religiotildees por sua vez a
Igreja como expressatildeo social da feacute cristatilde tem a sua independecircncia e vive assente na feacute a sua
forma comunitaacuteria que o Estado deve respeitar As duas esferas satildeo distintas mas sempre em
reciacuteproca relaccedilatildeo
A justiccedila eacute o objectivo e consequentemente tambeacutem a medida intriacutenseca de toda a poliacutetica A
poliacutetica eacute mais do que uma simples teacutecnica para a definiccedilatildeo dos ordenamentos puacuteblicos a sua
origem e o seu objectivo estatildeo precisamente na justiccedila e esta eacute de natureza eacutetica Assim o
Estado defronta-se inevitavelmente com a questatildeo como realizar a justiccedila aqui e agora Mas
esta pergunta pressupotildee outra mais radical o que eacute a justiccedila Isto eacute um problema que diz
respeito agrave razatildeo praacutetica mas para poder operar rectamente a razatildeo deve ser continuamente
purificada porque a sua cegueira eacutetica derivada da prevalecircncia do interesse e do poder que a
deslumbram eacute um perigo nunca totalmente eliminado
Neste ponto poliacutetica e feacute tocam-se A feacute tem sem duacutevida a sua natureza especiacutefica de
encontro com o Deus vivo mdash um encontro que nos abre novos horizontes muito para aleacutem do
acircmbito proacuteprio da razatildeo Ao mesmo tempo poreacutem ela serve de forccedila purificadora para a
proacutepria razatildeo Partindo da perspectiva de Deus liberta-a de suas cegueiras e
consequentemente ajuda-a a ser mais ela mesma A feacute consente agrave razatildeo de realizar melhor a
sua missatildeo e ver mais claramente o que lhe eacute proacuteprio Eacute aqui que se coloca a doutrina social
catoacutelica esta natildeo pretende conferir agrave Igreja poder sobre o Estado nem quer impor agravequeles
que natildeo compartilham a feacute perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
Deseja simplesmente contribuir para a purificaccedilatildeo da razatildeo e prestar a proacutepria ajuda para fazer
com que aquilo que eacute justo possa aqui e agora ser reconhecido e depois tambeacutem realizado
A doutrina social da Igreja discorre a partir da razatildeo e do direito natural isto eacute a partir daquilo
que eacute conforme agrave natureza de todo o ser humano E sabe que natildeo eacute tarefa da Igreja fazer ela
proacutepria valer politicamente esta doutrina quer servir a formaccedilatildeo da consciecircncia na poliacutetica e
ajudar a crescer a percepccedilatildeo das verdadeiras exigecircncias da justiccedila e simultaneamente a
disponibilidade para agir com base nas mesmas ainda que tal colidisse com situaccedilotildees de
interesse pessoal Isto significa que a construccedilatildeo de um ordenamento social e estatal justo
pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete eacute um dever fundamental que deve enfrentar
de novo cada geraccedilatildeo Tratando-se de uma tarefa poliacutetica natildeo pode ser encargo imediato da
Igreja Mas como ao mesmo tempo eacute uma tarefa humana primaacuteria a Igreja tem o dever de
oferecer por meio da purificaccedilatildeo da razatildeo e atraveacutes da formaccedilatildeo eacutetica a sua contribuiccedilatildeo
especiacutefica para que as exigecircncias da justiccedila se tornem compreensiacuteveis e politicamente
realizaacuteveis
A Igreja natildeo pode nem deve tomar nas suas proacuteprias matildeos a batalha poliacutetica para realizar a
sociedade mais justa possiacutevel Natildeo pode nem deve colocar-se no lugar do Estado Mas
tambeacutem natildeo pode nem deve ficar agrave margem na luta pela justiccedila Deve inserir-se nela pela via
da argumentaccedilatildeo racional e deve despertar as forccedilas espirituais sem as quais a justiccedila que
sempre requer renuacutencias tambeacutem natildeo poderaacute afirmar-se nem prosperar A sociedade justa natildeo
pode ser obra da Igreja deve ser realizada pela poliacutetica Mas toca agrave Igreja e profundamente o
empenhar-se pela justiccedila trabalhando para a abertura da inteligecircncia e da vontade agraves
exigecircncias do bem
b) O amor mdash caritas mdash seraacute sempre necessaacuterio mesmo na sociedade mais justa Natildeo haacute
qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supeacuterfluo o serviccedilo do amor Quem quer
desfazer-se do amor prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem Sempre haveraacute
sofrimento que necessita de consolaccedilatildeo e ajuda Haveraacute sempre solidatildeo Existiratildeo sempre
tambeacutem situaccedilotildees de necessidade material para as quais eacute indispensaacutevel uma ajuda na linha de
um amor concreto ao proacuteximo [20] Um Estado que queira prover a tudo e tudo accedilambarque
torna-se no fim de contas uma instacircncia burocraacutetica que natildeo pode assegurar o essencial de que
o homem sofredor mdash todo o homem mdash tem necessidade a amorosa dedicaccedilatildeo pessoal Natildeo
precisamos de um Estado que regule e domine tudo mas de um Estado que generosamente
reconheccedila e apoie segundo o princiacutepio de subsidiariedade as iniciativas que nascem das
diversas forccedilas sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de
ajuda A Igreja eacute uma destas forccedilas vivas nela pulsa a dinacircmica do amor suscitado pelo
Espiacuterito de Cristo Este amor natildeo oferece aos homens apenas uma ajuda material mas tambeacutem
refrigeacuterio e cuidado para a alma mdash ajuda esta muitas vezes mais necessaacuteria que o apoio
material A afirmaccedilatildeo de que as estruturas justas tornariam supeacuterfluas as obras de caridade
esconde de facto uma concepccedilatildeo materialista do homem o preconceito segundo o qual o
homem viveria laquo soacute de patildeo raquo (Mt 4 4 cf Dt 8 3) mdash convicccedilatildeo que humilha o homem e
ignora precisamente aquilo que eacute mais especificamente humano
29 Deste modo podemos determinar agora mais concretamente na vida da Igreja a relaccedilatildeo
entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade por um lado e a
actividade caritativa organizada por outro Viu-se que a formaccedilatildeo de estruturas justas natildeo eacute
imediatamente um dever da Igreja mas pertence agrave esfera da poliacutetica isto eacute ao acircmbito da razatildeo
auto-responsaacutevel Nisto o dever da Igreja eacute mediato enquanto lhe compete contribuir para a
purificaccedilatildeo da razatildeo e o despertar das forccedilas morais sem as quais natildeo se constroem estruturas
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
justas nem estas permanecem operativas por muito tempo
Entretanto o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade eacute proacuteprio dos fieacuteis
leigos Estes como cidadatildeos do Estado satildeo chamados a participar pessoalmente na vida
puacuteblica Natildeo podem pois abdicar laquo da muacuteltipla e variada acccedilatildeo econoacutemica social legislativa
administrativa e cultural destinada a promover orgacircnica e institucionalmente o bem comum raquo
[21] Por conseguinte eacute missatildeo dos fieacuteis leigos configurar rectamente a vida social respeitando
a sua legiacutetima autonomia e cooperando segundo a respectiva competecircncia e sob proacutepria
responsabilidade com os outros cidadatildeos [22] Embora as manifestaccedilotildees especiacuteficas da
caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado no entanto a verdade
eacute que a caridade deve animar a existecircncia inteira dos fieacuteis leigos e consequentemente tambeacutem
a sua actividade poliacutetica vivida como laquo caridade social raquo [23]
Caso diverso satildeo as organizaccedilotildees caritativas da Igreja que constituem um seu opus proprium
um dever que lhe eacute congeacutenito no qual ela natildeo se limita a colaborar colateralmente mas actua
como sujeito directamente responsaacutevel realizando o que corresponde agrave sua natureza A Igreja
nunca poderaacute ser dispensada da praacutetica da caridade enquanto actividade organizada dos
crentes como aliaacutes nunca haveraacute uma situaccedilatildeo onde natildeo seja precisa a caridade de cada um
dos indiviacuteduos cristatildeos porque o homem aleacutem da justiccedila tem e teraacute sempre necessidade do
amor
As muacuteltiplas estruturas de serviccedilo caritativo
no actual contexto social
30 Antes ainda de tentar uma definiccedilatildeo do perfil especiacutefico das actividades eclesiais ao
serviccedilo do homem quero considerar a situaccedilatildeo geral do empenho pela justiccedila e o amor no
mundo actual
a) Os meios de comunicaccedilatildeo de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno
aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos Se agraves vezes este laquo
estar juntos raquo suscita incompreensotildees e tensotildees o facto poreacutem de agora se chegar de forma
muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um
apelo a partilhar a sua situaccedilatildeo e as suas dificuldades Cada dia vamo-nos tornando
conscientes de quanto se sofre no mundo apesar dos grandes progressos em campo cientiacutefico
e teacutecnico por causa de uma miseacuteria multiforme tanto material como espiritual Por isso este
nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o proacuteximo necessitado
Sublinhou-o jaacute o Conciacutelio Vaticano II com palavras muito claras laquo No nosso tempo em que
os meios de comunicaccedilatildeo satildeo mais raacutepidos em que quase se venceu a distacircncia entre os
homens () a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens raquo
[24]
Por outro lado mdash e trata-se de um aspecto provocatoacuterio e ao mesmo tempo encorajador do
processo de globalizaccedilatildeo mdash o presente potildee agrave nossa disposiccedilatildeo inumeraacuteveis instrumentos para
prestar ajuda humanitaacuteria aos irmatildeos necessitados natildeo sendo os menos notaacuteveis entre eles os
sistemas modernos para a distribuiccedilatildeo de alimento e vestuaacuterio e tambeacutem para a oferta de
habitaccedilatildeo e acolhimento Superando as fronteiras das comunidades nacionais a solicitude pelo
proacuteximo tende assim a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro Justamente o pocircs em
relevo o Conciacutelio Vaticano II laquo Entre os sinais do nosso tempo eacute digno de especial menccedilatildeo o
crescente e inelutaacutevel sentido de solidariedade entre todos os povos raquo [25] Os entes do Estado
e as associaccedilotildees humanitaacuterias apadrinham iniciativas com tal finalidade fazendo-o na maior
parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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parte dos casos atraveacutes de subsiacutedios ou descontos fiscais os primeiros e pondo agrave disposiccedilatildeo
verbas consideraacuteveis as segundas E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil
supera significativamente a dos indiviacuteduos
b) Nesta situaccedilatildeo nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaboraccedilatildeo entre as
estruturas estatais e as eclesiais que se revelaram frutuosas As estruturas eclesiais com a
transparecircncia da sua acccedilatildeo e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor poderatildeo animar de
maneira cristatilde tambeacutem as estruturas civis favorecendo uma reciacuteproca coordenaccedilatildeo que natildeo
deixaraacute de potenciar a eficaacutecia do serviccedilo caritativo [26] Neste contexto formaram-se
tambeacutem muitas organizaccedilotildees com fins caritativos ou filantroacutepicos que procuram face aos
problemas sociais e poliacuteticos existentes alcanccedilar soluccedilotildees satisfatoacuterias sob o aspecto
humanitaacuterio Um fenoacutemeno importante do nosso tempo eacute a apariccedilatildeo e difusatildeo de diversas
formas de voluntariado que se ocupam duma pluralidade de serviccedilos [27] Desejo aqui deixar
uma palavra de particular apreccedilo e gratidatildeo a todos aqueles que participam de diversas
formas nestas actividades Tal empenho generalizado constitui para os jovens uma escola de
vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem natildeo simplesmente qualquer
coisa mas darem-se a si proacuteprios Agrave anti-cultura da morte que se exprime por exemplo na
droga contrapotildee-se deste modo o amor que natildeo procura o proacuteprio interesse mas que
precisamente na disponibilidade a laquo perder-se a si mesmo raquo pelo outro (cf Lc 17 33 e
paralelos) se revela como cultura da vida
Na Igreja Catoacutelica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais tambeacutem apareceram novas
formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado Satildeo formas nas quais
se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligaccedilatildeo entre evangelizaccedilatildeo e obras de
caridade Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joatildeo
Paulo II escreveu na sua Enciacuteclica Sollicitudo rei socialis [28] quando declarou a
disponibilidade da Igreja Catoacutelica para colaborar com as organizaccedilotildees caritativas destas
Igrejas e Comunidades uma vez que todos noacutes somos movidos pela mesma motivaccedilatildeo
fundamental e temos diante dos olhos idecircntico objectivo um verdadeiro humanismo que
reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajudaacute-lo a levar uma vida conforme a esta
dignidade Depois a Enciacuteclica Ut unum sint voltou a sublinhar que para o progresso rumo a
um mundo melhor eacute necessaacuteria a voz comum dos cristatildeos o seu empenho em laquo fazer triunfar
o respeito pelos direitos e necessidades de todos especialmente dos pobres humilhados e
desprotegidos raquo [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter
encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas
O perfil especiacutefico da actividade caritativa da Igreja
31 O aumento de organizaccedilotildees diversificadas que se dedicam ao homem em suas vaacuterias
necessidades explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao proacuteximo ter
sido inscrito pelo Criador na proacutepria natureza do homem Mas o referido aumento eacute efeito
tambeacutem da presenccedila no mundo do cristianismo que natildeo cessa de despertar e tornar eficaz
este imperativo muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histoacuteria A reforma
do paganismo tentada pelo imperador Juliano o Apoacutestata eacute apenas um exemplo incipiente de
tal eficaacutecia Neste sentido a forccedila do cristianismo propaga-se muito para aleacutem das fronteiras
da feacute cristatilde Por isso eacute muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o
seu esplendor e natildeo se dissolva na organizaccedilatildeo assistencial comum tornando-se uma simples
variante da mesma Mas entatildeo quais satildeo os elementos constitutivos que formam a essecircncia da
caridade cristatilde e eclesial
a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
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a) Segundo o modelo oferecido pela paraacutebola do bom Samaritano a caridade cristatilde eacute em
primeiro lugar simplesmente a resposta agravequilo que numa determinada situaccedilatildeo constitui a
necessidade imediata os famintos devem ser saciados os nus vestidos os doentes tratados
para se curarem os presos visitados etc As organizaccedilotildees caritativas da Igreja a comeccedilar pela
Caacuteritas (diocesana nacional e internacional) devem fazer o possiacutevel para colocar agrave disposiccedilatildeo
os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas
Relativamente ao serviccedilo que as pessoas realizam em favor dos doentes requer-se antes de
mais a competecircncia profissional os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam
fazer a coisa justa de modo justo assumindo tambeacutem o compromisso de continuar o
tratamento A competecircncia profissional eacute uma primeira e fundamental necessidade mas por si
soacute natildeo basta Eacute que se trata de seres humanos e estes necessitam sempre de algo mais que um
tratamento apenas tecnicamente correcto tecircm necessidade de humanidade precisam da
atenccedilatildeo do coraccedilatildeo Todos os que trabalham nas instituiccedilotildees caritativas da Igreja devem
distinguir-se pelo facto de que natildeo se limitam a executar habilidosamente a acccedilatildeo conveniente
naquele momento mas dedicam-se ao outro com as atenccedilotildees sugeridas pelo coraccedilatildeo de modo
que ele sinta a sua riqueza de humanidade Por isso para tais agentes aleacutem da preparaccedilatildeo
profissional requer-se tambeacutem e sobretudo a laquo formaccedilatildeo do coraccedilatildeo raquo eacute preciso levaacute-los
agravequele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu iacutentimo ao outro de
tal modo que para eles o amor do proacuteximo jaacute natildeo seja um mandamento por assim dizer
imposto de fora mas uma consequecircncia resultante da sua feacute que se torna operativa pelo amor
(cf Gal 5 6)
b) A actividade caritativa cristatilde deve ser independente de partidos e ideologias Natildeo eacute um
meio para mudar o mundo de maneira ideoloacutegica nem estaacute ao serviccedilo de estrateacutegias
mundanas mas eacute actualizaccedilatildeo aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem
necessidade O tempo moderno sobretudo a partir do Oitocentos aparece dominado por
diversas variantes duma filosofia do progresso cuja forma mais radical eacute o marxismo Uma
parte da estrateacutegia marxista eacute a teoria do empobrecimento esta defende que numa situaccedilatildeo de
poder injusto quem ajuda o homem com iniciativas de caridade coloca-se de facto ao serviccedilo
daquele sistema de injusticcedila fazendo-o resultar pelo menos ateacute certo ponto suportaacutevel Deste
modo fica refreado o potencial revolucionaacuterio e consequentemente bloqueada a reviravolta
para um mundo melhor Por isso se contesta e ataca a caridade como sistema de conservaccedilatildeo
do status quo Na realidade esta eacute uma filosofia desumana O homem que vive no presente eacute
sacrificado ao moloch do futuro mdash um futuro cuja efectiva realizaccedilatildeo permanece pelo menos
duvidosa Na verdade a humanizaccedilatildeo do mundo natildeo pode ser promovida renunciando de
momento a comportar-se de modo humano Soacute se contribui para um mundo melhor fazendo o
bem agora e pessoalmente com paixatildeo e em todo o lado onde for possiacutevel independentemente
de estrateacutegias e programas de partido O programa do cristatildeo mdash o programa do bom
Samaritano o programa de Jesus mdash eacute laquo um coraccedilatildeo que vecirc raquo Este coraccedilatildeo vecirc onde haacute
necessidade de amor e actua em consequecircncia Obviamente quando a actividade caritativa egrave
assumida pela Igreja como iniciativa comunitaacuteria agrave espontaneidade do indiviacuteduo haacute que
acrescentar tambeacutem a programaccedilatildeo a previdecircncia a colaboraccedilatildeo com outras instituiccedilotildees
idecircnticas
c) Aleacutem disso a caridade natildeo deve ser um meio em funccedilatildeo daquilo que hoje eacute indicado como
proselitismo O amor eacute gratuito natildeo eacute realizado para alcanccedilar outros fins [30] Isto poreacutem
natildeo significa que a acccedilatildeo caritativa deva por assim dizer deixar Deus e Cristo de lado
Sempre estaacute em jogo o homem todo Muitas vezes eacute precisamente a ausecircncia de Deus a raiz
mais profunda do sofrimento Quem realiza a caridade em nome da Igreja nunca procuraraacute
impor aos outros a feacute da Igreja Sabe que o amor na sua pureza e gratuidade eacute o melhor
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar O cristatildeo sabe
quando eacute tempo de falar de Deus e quando eacute justo natildeo o fazer deixando falar somente o amor
Sabe que Deus eacute amor (cf 1 Jo 4 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que
nada mais se faz a natildeo ser amar Sabe mdash voltando agraves questotildees anteriores mdash que o vilipecircndio
do amor eacute vilipecircndio de Deus e do homem eacute a tentativa de prescindir de Deus
Consequentemente a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor Eacute
dever das organizaccedilotildees caritativas da Igreja reforccedilar de tal modo esta consciecircncia em seus
membros que estes atraveacutes do seu agir mdash como tambeacutem do seu falar do seu silecircncio do seu
exemplo mdash se tornem testemunhas crediacuteveis de Cristo
Os responsaacuteveis da acccedilatildeo caritativa da Igreja
32 Por uacuteltimo devemos ainda fixar a nossa atenccedilatildeo sobre os responsaacuteveis pela acccedilatildeo
caritativa da Igreja a que jaacute aludimos Das reflexotildees feitas anteriormente resulta claramente
que o verdadeiro sujeito das vaacuterias organizaccedilotildees catoacutelicas que realizam um serviccedilo de caridade
eacute a proacutepria Igreja mdash e isto a todos os niacuteveis a comeccedilar das paroacutequias passando pelas Igrejas
particulares ateacute chegar agrave Igreja universal Por isso foi muito oportuna a instituiccedilatildeo do
Pontifiacutecio Conselho Cor Unum feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI como instacircncia
da Santa Seacute responsaacutevel pela orientaccedilatildeo e coordenaccedilatildeo entre as organizaccedilotildees e as actividades
caritativas promovidas pela Igreja Catoacutelica Depois eacute cocircnsono agrave estrutura episcopal da Igreja
o facto de nas Igrejas particulares caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apoacutestolos a
primeira responsabilidade pela realizaccedilatildeo mesmo actualmente do programa indicado nos
Actos dos Apoacutestolos (cf 2 42-44) a Igreja enquanto famiacutelia de Deus deve ser hoje como
ontem um espaccedilo de ajuda reciacuteproca e simultaneamente um espaccedilo de disponibilidade para
servir mesmo aqueles que fora dela tecircm necessidade de ajuda No rito de Ordenaccedilatildeo
Episcopal o acto verdadeiro e proacuteprio de consagraccedilatildeo eacute precedido por algumas perguntas ao
candidato nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofiacutecio e satildeo-lhe lembrados os
deveres do seu futuro ministeacuterio Neste contexto o Ordenando promete expressamente que
seraacute em nome do Senhor bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de
conforto e ajuda [31] O Coacutedigo de Direito Canoacutenico nos cacircnones relativos ao ministeacuterio
episcopal natildeo trata explicitamente da caridade como acircmbito especiacutefico da actividade
episcopal falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras
de apostolado no respeito da iacutendole proacutepria de cada uma [32] Recentemente poreacutem o
Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos aprofundou de forma mais concreta o dever
da caridade como tarefa intriacutenseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese [33]
sublinhando que a praacutetica da caridade eacute um acto da Igreja enquanto tal e que tambeacutem ela tal
como o serviccedilo da Palavra e dos Sacramentos faz parte da essecircncia da sua missatildeo originaacuteria
[34]
33 No que diz respeito aos colaboradores que realizam a niacutevel praacutetico o trabalho caritativo
na Igreja foi dito jaacute o essencial eles natildeo se devem inspirar nas ideologias do melhoramento
do mundo mas deixarem-se guiar pela feacute que actua pelo amor (cf Gal 5 6) Por isso devem
ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo pessoas cujo coraccedilatildeo Cristo
conquistou com o seu amor nele despertando o amor ao proacuteximo O criteacuterio inspirador da sua
acccedilatildeo deveria ser a afirmaccedilatildeo presente na II Carta aos Coriacutentios laquo O amor de Cristo nos
constrange raquo (5 14) A consciecircncia de que nEle o proacuteprio Deus Se entregou por noacutes ateacute agrave
morte deve induzir-nos a viver natildeo mais para noacutes mesmos mas para Ele e com Ele para os
outros Quem ama Cristo ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expressatildeo e
instrumento do amor que dEle dimana O colaborador de qualquer organizaccedilatildeo caritativa
catoacutelica quer trabalhar com a Igreja e consequentemente com o Bispo para que o amor de
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
Deus se espalhe no mundo Com a sua participaccedilatildeo na praacutetica eclesial do amor quer ser
testemunha de Deus e de Cristo e por isso mesmo quer fazer bem aos homens gratuitamente
34 A abertura interior agrave dimensatildeo catoacutelica da Igreja natildeo poderaacute deixar de predispor o
colaborador a sintonizar-se com as outras organizaccedilotildees que estatildeo ao serviccedilo das vaacuterias formas
de necessidade mas isso deveraacute verificar-se no respeito do perfil especiacutefico do serviccedilo
requerido por Cristo aos seus disciacutepulos No seu hino agrave caridade (cf 1 Cor 13) Satildeo Paulo
ensina-nos que a caridade eacute sempre algo mais do que mera actividade laquo Ainda que distribua
todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado se natildeo tiver
caridade de nada me aproveita raquo (v 3) Este hino deve ser a Magna Carta de todo o serviccedilo
eclesial nele se encontram resumidas todas as reflexotildees que fiz sobre o amor ao longo desta
Carta Enciacuteclica A acccedilatildeo praacutetica resulta insuficiente se natildeo for palpaacutevel nela o amor pelo
homem um amor que se nutre do encontro com Cristo A iacutentima participaccedilatildeo pessoal nas
necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo para que o
dom natildeo humilhe o outro devo natildeo apenas dar-lhe qualquer coisa minha mas dar-me a mim
mesmo devo estar presente no dom como pessoa
35 Este modo justo de servir torna humilde o agente Este natildeo assume uma posiccedilatildeo de
superioridade face ao outro por mais miseraacutevel que possa ser de momento a sua situaccedilatildeo
Cristo ocupou o uacuteltimo lugar no mundo mdash a cruz mdash e precisamente com esta humildade
radical nos redimiu e ajuda sem cessar Quem se acha em condiccedilotildees de ajudar haacute-de
reconhecer que precisamente deste modo eacute ajudado ele proacuteprio tambeacutem natildeo eacute meacuterito seu
nem tiacutetulo de gloacuteria o facto de poder ajudar Esta tarefa eacute graccedila Quanto mais algueacutem trabalhar
pelos outros tanto melhor compreenderaacute e assumiraacute como proacutepria esta palavra de Cristo laquo
Somos servos inuacuteteis raquo (Lc 17 10) Na realidade ele reconhece que age natildeo em virtude de
uma superioridade ou uma maior eficiecircncia pessoal mas porque o Senhor lhe concedeu este
dom Agraves vezes a excessiva vastidatildeo das necessidades e as limitaccedilotildees do proacuteprio agir poderatildeo
expocirc-lo agrave tentaccedilatildeo do desacircnimo Mas eacute precisamente entatildeo que lhe serve de ajuda saber que
em uacuteltima instacircncia ele natildeo passa de um instrumento nas matildeos do Senhor libertar-se-aacute assim
da presunccedilatildeo de dever realizar pessoalmente e sozinho o necessaacuterio melhoramento do
mundo Com humildade faraacute o que lhe for possiacutevel realizar e com humildade confiaraacute o resto
ao Senhor Eacute Deus quem governa o mundo natildeo noacutes Prestamos-Lhe apenas o nosso serviccedilo
por quanto podemos e ateacute onde Ele nos daacute a forccedila Mas fazer tudo o que nos for possiacutevel e
com a forccedila de que dispomos tal eacute o dever que manteacutem o servo bom de Cristo sempre em
movimento laquo O amor de Cristo nos constrange raquo (2 Cor 5 14)
36 A experiecircncia da incomensurabilidade das necessidades pode por um lado fazer-nos cair
na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus
pelos vistos natildeo consegue a soluccedilatildeo universal de todo o problema Por outro lado aquela
pode tornar-se uma tentaccedilatildeo para a ineacutercia a partir da impressatildeo de que seja como for nunca
se levaria nada a termo Nesta situaccedilatildeo o contacto vivo com Cristo eacute a ajuda decisiva para
prosseguir pela justa estrada nem cair numa soberba que despreza o homem e na realidade
nada constroacutei antes ateacute destroacutei nem abandonar-se agrave resignaccedilatildeo que impediria de deixar-se
guiar pelo amor e deste modo servir o homem A oraccedilatildeo como meio para haurir
continuamente forccedila de Cristo torna-se aqui uma urgecircncia inteiramente concreta Quem reza
natildeo desperdiccedila o seu tempo mesmo quando a situaccedilatildeo apresenta todas as caracteriacutesticas duma
emergecircncia e parece impelir unicamente para a acccedilatildeo A piedade natildeo afrouxa a luta contra a
pobreza ou mesmo contra a miseacuteria do proacuteximo A Beata Teresa de Calcutaacute eacute um exemplo
evidentiacutessimo do facto que o tempo dedicado a Deus na oraccedilatildeo natildeo soacute natildeo lesa a eficaacutecia nem
a operosidade do amor ao proacuteximo mas eacute realmente a sua fonte inexauriacutevel Na sua carta para
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
a Quaresma de 1996 esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos laquo Noacutes precisamos
desta uniatildeo iacutentima com Deus na nossa vida quotidiana E como poderemos obtecirc-la Atraveacutes da
oraccedilatildeo raquo
37 Chegou o momento de reafirmar a importacircncia da oraccedilatildeo face ao activismo e ao
secularismo que ameaccedila muitos cristatildeos empenhados no trabalho caritativo Obviamente o
cristatildeo que reza natildeo pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu
procura antes o encontro com o Pai de Jesus Cristo pedindo-Lhe que esteja presente com o
conforto do seu Espiacuterito nele e na sua obra A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono
agrave sua vontade impedem a degradaccedilatildeo do homem salvam-no da prisatildeo de doutrinas fanaacuteticas e
terroristas Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz
de Deus acusando-O de permitir a miseacuteria sem sentir compaixatildeo pelas suas criaturas Mas
quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem sobre
quem poderaacute contar quando a acccedilatildeo humana se demonstrar impotente
38 Eacute certo que Job pocircde lamentar-se com Deus pelo sofrimento incompreensiacutevel e
aparentemente injustificado presente no mundo Assim se exprime ele na sua dor laquo Oh Se
pudesse encontraacute-Lo e chegar ateacute ao seu proacuteprio trono () Saberia o que Ele iria responder-
me e ouviria o que Ele teria para me dizer Oporia Ele contra mim o seu grande poder ()
Por isso a sua presenccedila me atemoriza contemplo-O e tremo diante dEle Deus enervou o meu
coraccedilatildeo o Omnipotente encheu-me de terror raquo (23 35-6 15-16) Muitas vezes natildeo nos eacute
concedido saber o motivo pelo qual Deus reteacutem o seu braccedilo em vez de intervir Aliaacutes Ele natildeo
nos impede sequer de gritar como Jesus na cruz laquo Meu Deus meu Deus porque Me
abandonaste raquo (Mt 27 46) Num diaacutelogo orante havemos de lanccedilar-Lhe em rosto esta
pergunta laquo Ateacute quando esperaraacutes Senhor Tu que eacutes santo e verdadeiro raquo (Ap 6 10) Santo
Agostinho daacute a este nosso sofrimento a resposta da feacute laquo Si comprehendis non est Deus ndash se O
compreendesses natildeo seria Deus raquo [35] O nosso protesto natildeo quer desafiar a Deus nem
insinuar nEle a presenccedila de erro fraqueza ou indiferenccedila Para o crente natildeo eacute possiacutevel pensar
que Ele seja impotente ou entatildeo que laquo esteja a dormir raquo (cf 1 Re 18 27) Antes a verdade eacute
que ateacute mesmo o nosso clamor constitui como na boca de Jesus na cruz o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa feacute no seu poder soberano Na realidade os cristatildeos
continuam a crer natildeo obstante todas as incompreensotildees e confusotildees do mundo circunstante laquo
na bondade de Deus e no seu amor pelos homens raquo (Tt 3 4) Apesar de estarem imersos como
os outros homens na complexidade dramaacutetica das vicissitudes da histoacuteria eles permanecem
inabalaacuteveis na certeza de que Deus eacute Pai e nos ama ainda que o seu silecircncio seja
incompreensiacutevel para noacutes
39 A feacute a esperanccedila e a caridade caminham juntas A esperanccedila manifesta-se praticamente
nas virtudes da paciecircncia que natildeo esmorece no bem nem sequer diante de um aparente
insucesso e da humildade que aceita o misteacuterio de Deus e confia nEle mesmo na escuridatildeo
A feacute mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por noacutes e assim gera em noacutes a certeza
vitoriosa de que isto eacute mesmo verdade Deus eacute amor Deste modo ela transforma a nossa
impaciecircncia e as nossas duacutevidas em esperanccedila segura de que Deus tem o mundo nas suas matildeos
e que natildeo obstante todas as trevas Ele vence como revela de forma esplendorosa o
Apocalipse no final com as suas imagens impressionantes A feacute que toma consciecircncia do
amor de Deus revelado no coraccedilatildeo trespassado de Jesus na cruz suscita por sua vez o amor
Aquele amor divino eacute a luz mdash fundamentalmente a uacutenica mdash que ilumina incessantemente um
mundo agraves escuras e nos daacute a coragem de viver e agir O amor eacute possiacutevel e noacutes somos capazes
de o praticar porque criados agrave imagem de Deus Viver o amor e deste modo fazer entrar a luz
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
de Deus no mundo tal eacute o convite que vos queria deixar com a presente Enciacuteclica
CONCLUSAtildeO
40 Por fim olhemos os Santos aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade Penso
de modo especial em Martinho de Tours (dagger 397) primeiro soldado depois monge e Bispo
como se fosse um iacutecone ele mostra o valor insubstituiacutevel do testemunho individual da
caridade Agraves portas de Amiens Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre
durante a noite aparece-lhe num sonho o proacuteprio Jesus trazendo vestido aquele manto para
confirmar a perene validade da sentenccedila evangeacutelica laquo Estava nu e destes-Me de vestir ()
Sempre que fizestes isto a um destes meus irmatildeos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes raquo
(Mt 25 3640) [36] Mas na histoacuteria da Igreja quantos outros testemunhos de caridade podem
ser citados Em particular todo o movimento monaacutestico logo desde os seus iniacutecios com Santo
Antatildeo Abade (dagger 356) exprime um imenso serviccedilo de caridade para com o proacuteximo No
encontro laquo face a face raquo com aquele Deus que eacute Amor o monge sente a impelente exigecircncia
de transformar toda a sua vida em serviccedilo do proacuteximo aleacutem do de Deus naturalmente Assim
se explicam as grandes estruturas de acolhimento internamento e tratamento que surgiram ao
lado dos mosteiros De igual modo se explicam as extraordinaacuterias iniciativas de promoccedilatildeo
humana e de formaccedilatildeo cristatilde destinadas primariamente aos mais pobres de que se ocuparam
primeiro as ordens monaacutesticas e mendicantes e depois os vaacuterios institutos religiosos
masculinos e femininos ao longo de toda a histoacuteria da Igreja Figuras de Santos como
Francisco de Assis Inaacutecio de Loyola Joatildeo de Deus Camilo de Leacutellis Vicente de Paulo Luiacutesa
de Marillac Joseacute B Cottolengo Joatildeo Bosco Luiacutes Orione Teresa de Calcutaacute mdash para citar
apenas alguns nomes mdash permanecem modelos insignes de caridade social para todos os
homens de boa vontade Os Santos satildeo os verdadeiros portadores de luz dentro da histoacuteria
porque satildeo homens e mulheres de feacute esperanccedila e caridade
41 Entre os Santos sobressai Maria Matildee do Senhor e espelho de toda a santidade No
Evangelho de Lucas encontramo-La empenhada num serviccedilo de caridade agrave prima Isabel junto
da qual permanece laquo cerca de trecircs meses raquo (1 56) assistindo-a na uacuteltima fase da gravidez laquo
Magnificat anima mea Dominum ndash A minha alma engrandece o Senhor raquo (Lc 1 46) disse Ela
por ocasiatildeo de tal visita exprimindo assim todo o programa da sua vida natildeo colocar-Se a Si
mesma ao centro mas dar espaccedilo ao Deus que encontra tanto na oraccedilatildeo como no serviccedilo ao
proacuteximo mdash soacute entatildeo o mundo se torna bom Maria eacute grande precisamente porque natildeo quer
fazer-Se grande a Si mesma mas engrandecer a Deus Ela eacute humilde natildeo deseja ser mais nada
senatildeo a serva do Senhor (cf Lc 1 3848) Sabe que contribui para a salvaccedilatildeo do mundo natildeo
realizando uma sua obra mas apenas colocando-Se totalmente agrave disposiccedilatildeo das iniciativas de
Deus Eacute uma mulher de esperanccedila soacute porque crecirc nas promessas de Deus e espera a salvaccedilatildeo
de Israel eacute que o Anjo pode vir ter com Ela e chamaacute-La para o serviccedilo decisivo de tais
promessas Eacute uma mulher de feacute laquo Feliz de Ti que acreditaste raquo diz-lhe Isabel (cf Lc 1 45) O
Magnificat mdash um retrato por assim dizer da sua alma mdash eacute inteiramente tecido com fios da
Sagrada Escritura com fios tirados da Palavra de Deus Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus dela sai e a ela volta com naturalidade
Fala e pensa com a Palavra de Deus esta torna-se palavra dEla e a sua palavra nasce da
Palavra de Deus Aleacutem disso fica assim patente que os seus pensamentos estatildeo em sintonia
com os de Deus que o dEla eacute um querer juntamente com Deus Vivendo intimamente
permeada pela Palavra de Deus Ela pocircde tornar-Se matildee da Palavra encarnada Enfim Maria eacute
uma mulher que ama E como poderia ser de outro modo Enquanto crente que na feacute pensa
com os pensamentos de Deus e quer com a vontade de Deus Ela natildeo pode ser senatildeo uma
mulher que ama Isto mesmo o intuiacutemos noacutes nos gestos silenciosos que nos referem os relatos
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
evangeacutelicos da infacircncia Vemo-lo na delicadeza com que em Canaacute Se daacute conta da
necessidade em que se acham os esposos e apresenta-a a Jesus Vemo-lo na humildade com
que Ela aceita ser transcurada no periacuteodo da vida puacuteblica de Jesus sabendo que o Filho deve
fundar uma nova famiacutelia e que a hora da Matildee chegaraacute apenas no momento da cruz que seraacute a
verdadeira hora de Jesus (cf Jo 2 4 13 1) Entatildeo quando os disciacutepulos tiverem fugido Maria
permaneceraacute junto da cruz (cf Jo 19 25-27) mais tarde na hora de Pentecostes seratildeo eles a
juntar-se ao redor dEla agrave espera do Espiacuterito Santo (cf Act 1 14)
42 Agrave vida dos Santos natildeo pertence somente a sua biografia terrena mas tambeacutem o seu viver e
agir em Deus depois da morte Nos Santos torna-se oacutebvio como quem caminha para Deus natildeo
se afasta dos homens antes pelo contraacuterio torna-se-lhes verdadeiramente vizinho Em
ningueacutem vemos melhor isto do que em Maria A palavra do Crucificado ao disciacutepulo mdash a
Joatildeo e atraveacutes dele a todos os disciacutepulos de Jesus laquo Eis aiacute a tua matildee raquo (Jo 19 27) mdash torna-se
sempre de novo verdadeira no decurso das geraccedilotildees Maria tornou-Se realmente Matildee de todos
os crentes Agrave sua bondade materna e bem assim agrave sua pureza e beleza virginal recorrem os
homens de todos os tempos e lugares do mundo nas suas necessidades e esperanccedilas nas suas
alegrias e sofrimentos nos seus momentos de solidatildeo mas tambeacutem na partilha comunitaacuteria e
sempre experimentam o benefiacutecio da sua bondade o amor inexauriacutevel que Ela exala do fundo
do seu coraccedilatildeo Os testemunhos de gratidatildeo tributados a Ela em todos os continentes e
culturas satildeo o reconhecimento daquele amor puro que natildeo se busca a si proacuteprio mas quer
simplesmente o bem A devoccedilatildeo dos fieacuteis mostra ao mesmo tempo a infaliacutevel intuiccedilatildeo de
como um tal amor eacute possiacutevel eacute-o graccedilas agrave mais iacutentima uniatildeo com Deus em virtude da qual se
fica totalmente permeado por Ele mdash condiccedilatildeo esta que permite a quem bebeu na fonte do
amor de Deus tornar-se ele proacuteprio uma fonte laquo da qual jorram rios de aacutegua viva raquo (Jo 7 38)
Maria Virgem e Matildee mostra-nos o que eacute o amor e donde este tem a sua origem e recebe
incessantemente a sua forccedila A Ela confiamos a Igreja a sua missatildeo ao serviccedilo do amor
Santa Maria Matildee de Deus
Voacutes destes ao mundo a luz verdadeira
Jesus vosso Filho ndash Filho de Deus
Entregastes-Vos completamente
ao chamamento de Deus
e assim Vos tornastes fonte
da bondade que brota dEle
Mostrai-nos Jesus
Guiai-nos para Ele
Ensinai-nos a conhececirc-Lo e a amaacute-Lo
para podermos tambeacutem noacutes
tornar-nos capazes de verdadeiro amor
e de ser fontes de aacutegua viva
no meio de um mundo sequioso
Dado em Roma junto de Satildeo Pedro no dia 25 de Dezembro mdash solenidade do Natal do
Senhor mdash de 2005 primeiro ano de Pontificado
BENEDICTUS PP XVI
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
[1] Cf Jenseits von Gut und Boumlse IV 168
[2] X 69
[3] Cf R Descartes Œuvres editado por V Cousin vol 12 Paris 1824 pp 95ss
[4] II 5 SCh 381 196
[5] Ibid 198
[6] Cf Metafiacutesica XII 7
[7] Cf Pseudo-Dioniacutesio Areopagita que no seu tratado Sobre os nomes divinos IV 12-14
PG 3 709-713 chama Deus ao mesmo tempo eros e agape
[8] Cf O banquete XIV-XV 189c-192d
[9] Saluacutestio De coniuratione Catilinaelig XX 4
[10] Cf Santo Agostinho Confissotildees III 6 11 CCL 27 32
[11] De Trinitate VIII 8 12 CCL 50 287
[12] Cf I Apologia 67 PG 6 429
[13] Cf Apologeticum 39 7 PL 1 468
[14] Ep ad Rom Inscr PG 5 801
[15] Cf Santo Ambroacutesio De Officiis ministrorum II 28 PL 16 141
[16] Cf Ep 83 J Bidez LEmpereur Julien Œuvres complegravetes (Paris2 1960) t I 2
a p 145
[17] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 194
[18] De Civitate Dei IV 4 CCL 47 102
[19] Cf Const past sobre a Igreja no mundo contemporacircneo Gaudium et spes 36
[20] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 197
[21] Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988) 42
AAS 81 (1989) 472
[22] Cf Congregaccedilatildeo para a Doutrina da Feacute Nota doutrinal sobre algumas questotildees relativas
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana
agrave participaccedilatildeo e comportamento dos catoacutelicos na vida poliacutetica (24 de Novembro de 2002) 1
LOssservatore Romano (ed portuguesa de 25 de Janeiro de 2003) 42
[23] Catecismo da Igreja Catoacutelica 1939
[24] Decr sobre o apostolado dos leigos Apostolicam actuositatem 8
[25] Ibid 14
[26] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 195
[27] Cf Joatildeo Paulo II Exort ap poacutes-sinodal Christifideles laici (30 de Dezembro de 1988)
41 AAS 81 (1989) 470-472
[28] Cf n 32 AAS 80 (1988) 556
[29] N 43 AAS 87 (1995) 946
[30] Cf Congregaccedilatildeo dos Bispos Directoacuterio para o ministeacuterio pastoral dos Bispos
Apostolorum Successores (22 de Fevereiro de 2004) 196
[31] Cf Pontifical Romano Ordenaccedilatildeo do Bispo 40
[32] Cf cacircn 394 Coacutedigo dos Cacircnones das Igrejas Orientais cacircn 203
[33] Cf Apostolorum Successores nn 193-198
[34] Cf ibid 194
[35] Sermo 52 16 PL 38 360
[36] Cf Sulpiacutecio Severo Vita Sancti Martini 3 1-3 SCh 133 256-258
copy Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana