descartes. objeções e respostas

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  • 8/9/2019 DESCARTES. Objees e Respostas

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    SEGUNDAS OBJEES 1RECO LHIDA S PELO R. P . ME RSEN NEDA BOCA DE DIVERSOS TELOGOS E FILSOFOS

    Senhor,Visto que, para confundir os novosgigantes do sculo 2 , que ousam atacar0 Autor de todas as coisas, empreendestes firmar-lhe o trono demonstrando sua existncia, e que vossointento parece to bem conduzido, queas pessoas de bem podem esperar quedoravante no haver quem, depois deler atentamente vossas Meditaes,no confesse haver uma divindadeeterna de que dependem todas as coisas, julgamos oportuno vos advertir, esolicitar, ao mesmo tempo, que difun-dais ainda sobre certas passagens, queassinalaremos mais abaixo, uma talluz, que nada reste em toda a vossaobra que no seja, se possvel, muiclara e mui manifestamente demonstrado. Pois, j que desde muitos anos,

    por contnuas meditaes, exercitastesde tal modo vosso esprito que as coisas que se afiguram a outrem obscurase incertas podem parecer-vos mais claras, e que as concebeis, talvez, por um asimples inspeo do esprito, sem vos1 O confronto do prprio texto das Objees comas Respostas indispensvel. Particularmente porque mostra bem como preciso ler as Meditaes.Os contraditores no levam em conta a ordem dasrazes; no souberam ler a obra tal como se l umlivro de Matemtica. De sorte que, embora no sejadestituda de sentido, a maioria dos argumentos noatinge o que Descartes'quis dizer.2 Trata-se dos l ibertinos. Os telogos tomaram asrio as intenes apologticas de Descartes e criticaram a obra do ponto de vista da ortodoxia .

    aperceberdes da obscuridade que osoutros nelas encontram, convm quesejais advertido daquelas que precisamser mais clara e mais amplamenteexplicadas e demonstradas; e, quandonos tiverdes satisfeito nisso, no cremos que algum mais possa negar queas razes, cuja deduo comeastespara a glria de Deus e a utilidade pblica, no devem ser tomadas pordemonstraes.Primeiramente, haveis de recordar-vos que no foi atualmen te e em verdade, mas apenas por uma fico do esprito, que rejeitastes, tanto quanto vosfoi possvel, as ideias de todos os corpos, como coisas simuladas ou fantasmas enganadores, para concluir quesois somente uma coisa pensante; demedo que talvez, assim sendo, vsconsidereis que se possa concluir quede fato e sem fico3 no sois nadamais seno um esprito, ou uma coisaque pensa; foi s o que achamos dignode observao no tocante s vossasduas primeiras Meditaes, onde mostrais claramente ser certo ao menosque vs, que pensais, sois algo. Masdetenhamo-nos um pouco nesse ponto.At a sabeis que sois uma coisa pensante, mas no conheceis ainda o que essa coisa pensante. E como sabeis queno um corpo que, por seus diversosmovimentos e choques, efetua essa3 O grifo do comentador. (N. dos T.)

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    156 D E S C A R T E Sao que denominamos pensamento?Pois, embora acrediteis haverdes rejeitado todas as espcies de corpos, podiaacontecer que vos engansseis, notendo rejeitado a vs prprio, que soisum corpo. Pois, como provais que umcorpo no pode pensar? Ou que movimentos corporais no so o prpriopensamento? E por que o sistema todode vosso corpo, que credes haver rejeitado, ou partes dele, as do crebro, porexemplo, no podem concorrer paraformar esses movimentos que chamamos pensamentos? Eu sou, dizeis, umacoisa pensante; mas como sabeis queno sois, outrossim, um movimentocorpreo, ou um corpo movido?

    Segundamente*, da ideia de um sersoberano, que, sustentais, vs mesmono podeis produzir, ousais concluir aexistncia de um soberano ser, dequem somente pode proceder a ideiaque se acha em vosso esprito. Masencontramos em ns prprios um fundamento suficiente, em que basta estarmos apoiados para poder formar essaideia, embora no haja nenhum soberano ser, ou no saibamos se existealgum e sua existncia no nos venhamesmo ao pensamento; pois no vejoque, tendo a faculdade de pensar,tenho em mim algum grau de perfeio? E no vejo tambm que outros,alm de mim, possuem grau semelhante? E isso me serve de base parapensar em qualquer nmero que seja epara juntar tambm um grau de perfeio ao outro, at o infinito; da mesmamaneira que, mesmo se houvesse nomundo um nico grau de calor ou deluz, poderia, no obstante, junt-los esupor sempre outros novos at o infinito. Por que, analogamente, no poderiaacrescentar a qualquer grau de ser que* Esta segunda objeo, destinada a mostrar que aprimeira prova a posteriori no probante , particularmente confusa.

    percebo existir em mim outro grauqualquer, e, de todos os graus capazesde serem adicionados, constituir aideia de um ser perfeito? M as, dizeis, oefeito no pode apresentar nenhumgrau de perfeio, ou de realidade, queno tenha estado anteriormente na suacausa. Mas (alm de verificarmostodos os dias que as moscas e inmeros outros animais, assim como asplantas, so produzidos pelo sol, pelachuva e pela terra, nos quais no hnenhuma vida, como h nesses animais, vida que mais nobre do quequalquer outro grau puramente corpreo, de onde resulta que o efeito cobra,de sua causa, alguma realidade, que noentanto no existia na causa) 5 ; mas,digo eu, essa ideia nada mais que umente de razo , que no mais nobre doque vosso esprito, que a concebe 6 .Alm disso, como sabeis que esta ideiajamais se vos ofereceria ao esprito, setivsseis passado toda a vida numdeserto, e nunca em companhia de pessoas sapientes? E no se poderia alegar que a hauristes dos pensamentosque vos haviam ocorrido anteriormente, dos ensinamentos dos livros,dos discursos e conversaes de vossosamigos, etc., e no de vosso exclusivoesprito, ou de um soberano ser existen te 7? Portanto, cumpre provar maisclaramente que essa ideia no poderiaestar em vs, se no houvesse nenhum5 A gerao espontnea apresentada como umfato da experincia. A respeito desta certeza naaberrao, caracterstica do esprito "pr-experi-mental", cf. a Formation de I "Esprit Scientifique, deBachelard.6 A objeo no leva em conta a distino feitaentre realidade formal e realidade objetiva da ideia.7 Passagem tpica: esses argumentos mostram oquanto os contraditores no souberam elevar-se aoplano da Metafsica como cincia rigorosa, conforme Descartes a compreende: in terpretando asMeditaes como um "ensaio" (na acepo moderna) e no como um tratado cientfico, eles opemfatos extrados da experincia corrente a verdadesque se situam ao nvel do encadeamento das razes.

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    OBJEES E RESPOSTAS 157soberano ser; e ento seremos os primeiros a nos render a vosso raciocnio,e dar-nos-emos todos as mos. Ora,que tal ideia procede dessas noesantecipadas, patenteia-se, parece,assaz claramente do fato de os canadenses, os hures e os outros homensselvagens no possurem neles talideia, a qual podeis at formar doconhecimento que tendes das coisascorporais; de sorte que vossa ideianada mais representa seno essemundo corporal, que abrange todas asperfeies que podereis imaginar; desorte que no podeis concluir outracoisa, exceto que h um ente corpreomuito perfeito; a no ser que junteisalgo mais, que eleve vosso esprito aoconhecimento das coisas espirituais ouincorpreas. Ainda aqui possvelafirmar que a ideia de um anjo podeexistir em vs, tanto quanto a de umser mais perfeito, sem que haja necessidade, para tanto, de que seja formadaem vs por um anjo realmente existente , embora o anjo seja mais perfeito doque vs. Mas no tendes a ideia deDeus, assim como a de um nmero oua de uma linha infinita; e, ainda quepudsseis t-la, este nmero inteiramente impossvel. Adicionai a isto quea ideia de unidade e simplicidade deuma nica perfeio que envolva econtenha todas as outras constitui-seunicamente pela operao do entendimento que raciocina, assim como seconstituem as unidades universais, queno esto nas coisas, mas somente noentendimento, como visvel pela unidade genrica, transcendental, etc.

    Em terceiro lugar, como ainda noestais certo da existncia de Deus edizeis, no entanto, que no podeis estarseguro de coisa alguma, ou conhecercoisa alguma clara e distintamente, seprimeiro no conheceis certa e claramente que Deus existe, segue-se que

    no sabeis ainda que sois uma coisapensante, porquanto, segundo vs, talconhecimento depende do conhecimento claro de um Deus existente, queainda no demonstrastes, nos lugaresonde conclus que conheceis claramente o que sois. Adicionai a isso queum ateu conhece clara e distintamenteque os trs ngulos de um tringuloso iguais a dois retos, embora estejamuito longe de crer na existncia deDeus , posto que a negou completam ente: porqu e, diz ele, se D eus existisse, haveria um soberano ser e um soberano bem, isto , um infinito; ora, oque infinito, em todo gnero deperfeio, exclui toda outra coisa queseja no somente toda espcie de ser ede bem m as, outrossim, tod a espcie deno-ser e de mal; no entanto, h muitos seres e muitos bens, assim comomuitos no-seres e muitos males; obje-o qual julgamos ser oportuno quevs respondais, de modo que aos mpios nada mais reste a objetar, e quepossa servir de pretexto sua impiedade.Em quarto lugar, negais que Deuspossa mentir ou enganar; conquanto seencontrem escolsticos que sustentamo contrrio, como Gabriel, Arimi-

    nensis e alguns outros, os quais pensam que Deus mente, falando absolutamente, isto , que ele significa algoaos homens contra sua inteno, e contra o que decretou e resolveu, comoquando, sem acrescentar condio, dizaos ninivitas por seu profeta: Aindaquarenta dias, e Nnive ser subvertida, e ao dizer muitas outras coisasque no aconteceram, porque no pretendeu que tais palavras correspondessem sua inteno ou a seu decreto. Por que se empederniu e cegou oFara, e, se ps nos profetas um esprito de mentira, como podeis afirmarque no podemos ser enganados por

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    158 D E S C A R T E Sele? No pode Deus comportar-se comos homens como um mdico com seusdoentes, e um pai com seus filhos, quetanto um como outro enganam toamide, mas sempre com prudncia eutilidade? Pois se Deus nos mostrassea verdade inteira e nua, que olho ou,antes, que esprito possuiria bastantefora para suport-la 8?Ainda que, a bem dizer, no sejanecessrio supor um Deus enganador,para que sejais decepcionados nas coisas que pensais conhecer clara e distintamente, visto que a causa dessadecepo pode estar em vs, emboranem sequer o sonheis. Pois como sabeis que vossa natureza no tal queela se engana sempre, ou ao menoscom muita frequncia? E onde vosinformaram que, no tocante s coisasque pensais conhecer clara e distintamente, certo que nunca estivestesenganado, e que no o podeis estar?Pois quantas vezes verificamos que aspessoas se enganam em coisas quepensavam ver mais claramente do queo sol! Portanto, esse princpio doconhecimento claro e distinto deve serexplicado to clara e distintamenteque, doravante, ningum dotado deesprito razovel possa ficar decepcionado nas coisas que julgar conhecerclara e distintam ente 9; de outro modo,ainda no vemos nada que possamosresponder com certeza sobre a verdadede qualquer coisa.

    Em quinto lugar, se a vontade nuncapode falhar, ou no peca de maneiraalguma, quando segue e se deixa conduzir pelas luzes claras e distintas do8 Oposio embaraosa para o autor doDeus cartesiano ao Deus antropomrfico dasEscrituras.9 O princpio de clareza e distino ele mesmoclaro e distinto? Ou ento no designa ele senouma certeza psicolgica e subjetiva, no passando,por conseguinte , como dir Leibniz , de "uma marcade certeza obscura e sujeita ao capricho doshomens"?

    espirito que a governa e, se, ao contrrio, expe-se ao perigo, quando persegue e abrange os conhecimentos obscuros e confusos do entendimento.notai que da parece possvel inferirque os turcos e os outros infiis no sno pecam quando n o abraam a religio crist e catlica mas at mesmopecam quando a abraam, pois noconhecem sua verdade nem clara nemdistintamente. Ainda mais, se for verdadeira essa regra que estabeleceis.no ser dado vontade abrangerseno pouqussimas coisas, visto queno conhecemos quase nada com aclareza e distino que exigis, paraconstituir uma certeza que no estejasujeita a nenhuma dvida. Tomai.pois, cuidado, se vos apraz, para que.pretendendo firmar o partido da verdade, no proveis mais do que o necessrio, e para que, em vez de apoi-lo, no0 derrubeis.

    Em sexto lugar, nas vossas respostass objees precedentes, parece quedeixastes de tirar a devida conclusodo seguinte argumento: O que entendemos pertencer clara e distintamente natureza, ou essncia, ou formaimutvel e verdadeira de qualquercoisa, pode ser dito ou afirmado comverdade desta coisa; mas (depois deobservar assaz cuidadosamente o que Deus) entendemos clara e distintamente que pertence sua verdadeira eimutvel natureza, que ele existe'*0.1 O silogismo das Primeiras Respostas ao qual sealude o seguinte: o que concebemos clara e distintamente pertencer natureza de uma coisa, podemos afirmar com verdade desta coisa; ora, concebemos clara e distintamente que pertence naturezade Deus existir; logo, Deus existe. As PrimeirasRespostas concedem que "a dificuldade da menorno pequena": 1. devido distino que fazemosentre essncia e existncia "em todas as outras coisa s" ; 2." devido ao fato de que a ideia de Deus precisa corresponder a uma "natureza verdadeira eimutvel" e de que eu devo poder verificar que elano foi forjada pelo meu entendimento. Descartesresponde a essas duas dificuldades prejudiciais aofim das Primeiras Respostas.

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    OBJEES E RESPOSTAS 159Cumpriria concluir: logo (aps observar assaz cuidadosamente o que Deus), podemos dizer ou afirmar comverdade que pertence natureza deDeus que ele exista. Da no decorreque Deus existe de fato, mas somenteque deve existir, caso sua n ature za sejapossvel, ou no repugne em nada; isto, que a natureza ou a essncia deDeus inconcebvel sem existncia, detal sorte que, se esta essncia , eleexiste realmente. Isso se relaciona como argumento que outros propem daseguinte forma: se no implica 11 queDeus seja, certo que ele existe; ora,no implica que ele exista; portanto,etc. Mas o que est em discusso amenor, a saber, que no implica queele existe, cuja verdade alguns de nossos adversrios pem em dvida e outros negam. Demais, esta clusula devosso raciocnio (aps termos assazclaramente reconhecido e observado oque Deus) suposta como verdadeira, no que nem todo mundo estainda de acordo, j que vs prprioconfessais que no compreendeis oinfinito seno imperfeitamente; omesmo se deve dizer de todos os seusoutros atributos: pois, sendo tudo oque em Deus inteiramente infinito,qual o esprito capaz de compreender amenor coisa que seja em Deus, se nomui imperfeitamente? Como podeis,portanto, ter observado bastante clarae distintamente o que Deus?Em stimo lugar, no encontramos' ' Implica = implica contradio (como em qualquer outra parte). Nesta acepo, o termo serempregado tanto nesta passagem como nas Respostas.

    uma s palavra em vossas Meditaessobre a imortalidade da alma humana,que, no entanto, deveis principalmenteprovar, dando-lhe mui exata demonstrao para confundir essas pessoasindignas da imortalidade, pois anegam, e talvez, a detestem. Mas, almdisso, tememos que no haveis aindaprovado suficientemente a distinoque existe entre a alma e o corpo dohomem, como j notamos na primeirade nossas observaes, qual acrescentamos que no parece seguir-se,dessa distino da alma com o corpo,que ela seja incorruptvel ou imortal;pois quem sabe se sua natureza no limitada pela durao da vida corporal, e se Deus no mediu de tal maneira suas foras e sua existncia, que elafinde com o corpo?Eis, Senhor, as coisas a que desejamos que forneais maior luz para quea leitura de vossas mui sutis, e, comoestimamos, mui verdadeiras Meditaes seja proveitosa a todo mundo.Da por que seria muito til, se, ao fimde vossas solues, aps terdes primeiramente adiantado algumas definies,postulados e axiomas, concluirdes otodo, segundo o mtodo dos gemetras, em que sois to bem versado 1 2 ,para que de uma s vez, e como de ums relance, vossos leitores possamencontrar com o que se satisfazer, epara que preenchais seus espritos como conhecimento da divindade.1 2 Na realidade, "o mtodo dos gemetras" (aexpresso tem aqui o sentido que lhe atribuem Spinoza e Pascal) aqui invocado no o que Descartespratica , pois ele sempre fez reservas sobre a exposio sinttica euclidiana.

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    RESPOSTAS DO AUTOR S S E GU N D A S OU E E S

    RECOLHIDAS DE MUITOS TELOGOS E FILSOFOSPELO R. P. M ER SE NN E 1 3Senhores,Foi com muita satisfao que li asvossas observaes sobre o meu pequeno tratado da Filosofia primeira; poisderam-me a conhecer a benevolnciaque tivestes para comigo, a vossa piedade para com Deus e o cuidado que

    tomais para o avano de sua glria; es posso me regozijar, no apenas porque julgastes minhas razes dignas devossa censura, mas tambm porquenada adiantais contra elas que no meparea poder responder bastante comodamente.Em primeiro lugar, vs me advertispara que eu me recorde: Que no foiatualmente e em verdade, mas apenaspor um a fico do esprito, que rejeiteias ideias ou os fantasmas dos corpos,para concluir que sou uma coisa pensante, de m edo que talvez eu considereque da se segue que eu no sou senouma coisa que pensa. Mas j mostrei,na minha Meditao Segunda, que melembrava suficientemente disso, vistohaver colocado a essas palavras: M astambm pode acontecer que essas mes-' 3 Observar-se- nesse texto como e por que o dilogo entre Descartes e os contraditares impossvel; a diferena entre eles no a de uma doutrinapara outra, mas de um pensamento retrico paraum pensamento matemtico, da dialtica para origor.

    mas coisas que suponho no existiremde modo algum, porque me so desconhecidas, no difiram efetivamente demim que conheo: nada sei a respeito,no discuto agora sobre isso, etc.,pelas quais pretendi expressamenteadvertir o leitor de que, naquele ponto,no procurava ainda saber se o espritoera diferente do corpo1 4 , mas examinava somente aquelas de suas propriedades de que posso ter claro e seguroconhecimento. E, posto que o observeia muitas vezes, no posso admitir semdistino o que acrescentais em seguida: Que no sei, no entanto, o que uma coisa que pensa. Pois, emboraconfesse que no sabia ainda se essacoisa pensante no era diferente docorpo, ou se o era, no confesso comisso que no a conhecia de modoalgum, pois quem jamais conheceu detal maneira alguma coisa que soubessenada haver nela exceto aquilo mesmoque conhecia1 6? Mas pensamos co-1 4 No se tratava de provar "naquele lugar" a distino real entre a alma e o corpo; de resto, nosabemos ainda se h corpos. Como os telogos noprestaram ateno ordem das razes, a primeiraobjeo deles no tem qualquer alcance .1 * Ter certeza de que conheo uma coisa comocompleta no significa ter certeza de que conheocompletamente uma coisa. Quando concebo algoclara e distintamente, negando a seu respeito tudo omais, no estou certo por isso "que Deus nada psa mais nessa coisa alm do que o meu entendimentoconhece". (Quartas Respostas.)

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    162 DESCAR.TESnhecer tanto melhor uma coisa quantomais particularidades dela conhecemos ; assim, temos mais conhecimentodaqueles com quem conversamostodos os dias do que daqueles de ques conhecemos o nome ou o rosto; etodavia no julgamos que esses nossejam inteiramente desconhecidos;nesse sentido penso ter suficientementedemonstrado que o esprito, considerado sem as coisas que se costumamatribuir ao corpo, mais conhecidoque o corpo considerado sem o esprito . E tudo o que pretendia provarnessa Meditao Segunda.

    Mas bem vejo o que pretendeisdizer, a saber, que, havendo eu escritoapenas seis Meditaes sobre a Filosofia primeira, os leitores se espantarode que, nas duas primeiras, no conclua nada mais seno o que acabo dedeclarar nesse instante, e pr isso hode ach-las demasiado estreis e indignas de terem sido trazidas luz 1 6 . Aisso respondo somente no temer queaqueles que houverem lido com discernimento o restante do que escrevi tenham ocasio de suspeitar que eu hajamalogrado no trato da matria; masque me pareceu muito razovel que ascoisas que exigem particular ateno, edevem ser consideradas separadamentedas outras, fossem postas em Meditaes separadas1 7 .Eis por que, no conhecendo nada1 6 "Isto poderia ser dito em quatro palavras e estaramos todos de acordo . Se eu devesse gastar tantaspalavras e tempo para aprender uma coisa de topouca importncia, teria dificuldade de me resignara isso", o que Descartes faz dizer a seu adversriono dilogo La Recherche de la Vrit. Kant ter dedefender-se da mesma censura e far muitas vezesobservar que preciso distinguir entre o tema dafinitude de nosso conhecimento, lugar-comum daMetafsica, e a demonstrao e determinao precisa dos limites de nosso conhecimento.1 7 Cf. Cartas, a Mersenne, de 24 de dezembro de1640, sobre a diferena essencial entre a ordem dasmatrias e a ordem das razes: "No intento absolutamente dizer em um mesmo lugar tudo quantopertence a uma matria, porque me seria impossvelprov-lo efetiv am ente..."

    mais til para alcanar um firme e seguro conhecimento das coisas do queacostumar-se, antes de estabeleceralgo, a duvidar de tudo e principalmente das coisas corporais, emborahouvesse visto h longo tempo muitoslivros escritos pelos cticos e acadmicos sobre a matria e no fosse semcerto fastio que ruminava um alimentoto comum, no pude todavia dispen-sar-me de lhe conceder uma Meditaointeira; e gostaria que os leitoresempregassem no apenas o poucotempo necessrio para l-la, mas alguns meses, ou ao menos algumassemanas, em considerar as coisas deque ela trata, antes de passar alm;pois assim no duvido que aufiramlucro bem melhor da leitura do restante .Ademais, por no termos tido atagora quaisquer ideias das coisas pertencentes ao esprito que no fossemmuito confusas e misturadas s ideiasdas coisas sensveis, e por ter sido estaa primeira e principal razo pela qualno se pde entender assaz claramentenenhuma das coisas que se diziam deDeus e da alma, pensei que no fariapouco se mostrasse como preciso distinguir as propriedades ou qualidadesdo esprito das propriedades ou qualidades do corpo, e como precisoreconhec-las; pois, embora muitos jtenham dito que, para bem entender ascoisas imateriais ou metafsicas, necessrio distanciar o nosso espritodos sentidos, no obstante ningum,que eu saiba, mostrou ainda por quemeio possvel realiz-lo. Ora, overdadeiro, e a meu juzo, o nico meiopara isso est contido na minha Meditao Segunda 1 8 ; mas de tal ordem1 8 Este "nico meio" "o mtodo de segregao"(Guroult, t. I, 69): no posso me conceber clara edistintamente seno excluindo tudo de mim salvo opensamento (distino real), no posso conceber asfaculdades no intelectuais de meu esprito semincluir nelas o pensamento (distino modal).

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    OBJEES E RESPOSTAS 163que no basta t-lo encarado uma vez,cumpre examin-lo amide e consider-lo durante muito tempo, a fim deque o hbito de confundir as coisasintelectuais com as corporais, que seenraizou em ns no curso de toda anossa vida, possa ser expungido porum hbito contrrio, o de distingui-las,adquirido pelo exerccio de algunsdias. E isso me pareceu uma causabastante justa para que no versasseoutra matria na Meditao S egunda.Perguntais aqui como demonstroque o corpo no pode pen sar; mas per-doai-me se respondo que ainda no deilugar a tal questo, tendo apenascomeado a trat-la na MeditaoSexta, pelas seguintes palavras: suficiente que eu possa clara e distintamente conceber uma coisa sem outra,para ser certo que uma distinta oudiferente da outra, etc. E pouco depois:Ainda que eu tenha um corpo que meseja mui estreitamente ligado, no entanto, porque, de um lado, possuo umaideia clara e distinta de mim prprio,na medida em que sou apenas umacoisa que pensa, e no extensa, e que,de outro, possuo uma ideia clara e distinta do corpo, na medida em que apenas uma coisa extensa, e que nopensa, certo que eu, isto , meu esp-rito, ou minha alma, pela qual sou oque sou, inteira e verdadeiramentedistinta de meu corpo, e que pode serou existir sem ele. Ao que fcil adicionar: Tudo o que pode pensar esp-rito, ou se chama esprito. Mas como ocorpo e o esprito so realmente distintos, nenhum corpo esprito. Logo , nenhum corpo pode pensar. E certamentenada vejo nisso que possais negar; poisnegareis vs que basta concebermosclaramente uma coisa sem outra, parasabermos que so realmente distintas?Dai-nos, portanto, algum signo maiscerto da d istino real, se que se pode

    dar algum. Pois, o que direis vs? Queessas coisas so realmente distintas,podendo cada qual existir sem a outra?Mas eu tornaria a perguntar-vos deonde sabeis que uma coisa pode existirsem a outra. Pois, para que isso constitua um signo de distino, necessrioque seja conhecido.Alegareis talvez que os sentidos vo-lo fazem conhecer, por que vedes umacoisa na ausncia de outra, ou porquea tocais, etc. Mas a f dos sentidos mais incerta que a do entendimento; epode acontecer de muitas maneiras queuma s e mesma coisa se apresente anossos sentidos sob diversas formas,ou em diversos lugares e maneiras,sendo assim tomada por duas. E enfim,se vos recorda is d o que foi dito da c eraao termo da Meditao Segunda, sabeis que os corpos mesmos no sopropriamente conhecidos pelos sentidos, mas s pelo entendimento; de talmodo que sentir uma coisa sem umaoutra nada seno ter a ideia de umacoisa, e entender que essa ideia no amesma que a ideia de uma outra: ora,isso s cognoscvel pelo fato de queuma coisa concebida sem a outra; oque no pode ser certamente conhecido, se no se tem a ideia clara e distinta dessas duas coisas: e assim essesigno de real distino deve reduzir-seao meu para tornar-se certo.

    Porque, se h os que negam haverideias distintas do esprito e do corpo,nada posso fazer, exceto pedir-lhes queconsiderem assaz atentamente as coisas contidas nessa M editao S egunda,e notem que a opinio, por eles adota-da, de que as partes do crebro concorrem com o esprito para formar nossospensamentos no se baseia em nenhuma razo positiva, mas apenas em quejamais experimentaram ter existidosem corp o, e que com m uita frequnciaforam impedidos por ele em suas

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    166 D E S C A R T E Scoisa que nos eleve at o conhecimentodo ser imaterial ou espiritual, o melhorque posso fazer remeter-vos minhaMeditao Segunda, a fim de ao menossaberdes que ela no totalmente intil; pois o que poderia fazer eu aquicom um ou dois perodos, se nada consegui adiantar com um longo discursopreparado unicamente para tal assunto , e ao qual me parece no haver dispensado menos diligncia do que aqualquer outro escrito por mim publicado?E ainda que esta Meditao hajatratado somente do esprito humano,nem po r isso me nos til pa ra explicara diferena que h entre a natureza divina e a das coisas materiais. Pois, narealidade, quero confessar aqui francamente que a ideia que tem os, por exemplo, do entendimento divino no meparece diferir da que temos de nossoprprio entendimento, seno apenascomo a ideia de um nmero infinito difere da do nmero binrio ou do ternr io ; e acontece o mesmo com todos osatributos de Deus, de que reconhecemo s em ns algum vestgio.Mas, alm disso, concebemos emDeus uma imensidade, simplicidade,ou unidade absoluta, que abrange econtm todos os seus outros atributos,e da qual no encontramos em ns, oualhures, nenhum exemplo; mas ela (assim com o j disse antes) como que amarca do obreiro impressa em suaobra. E, por seu intermdio, sabemosque nenhuma das coisas que concebemos estar em Deus e em ns, e queconsideramos nele por partes e comose fossem distintas, por causa da fraqueza de nosso entendimento, e queexperimentamos como tais em ns,no convm a Deus e a ns na formadenominada unvoca nas Escolas.Assim tambm sabemos que, das muitas coisas particulares que no tmfim, cujas ideias possumos, tais como

    as de um conhecimento sem fim, deuma potncia, de um nmero, de umcomprimento, etc., que tambm sosem fim, h algumas que se achamcontidas formalmente na ideia quetemos de Deus, como o conhecimentoe a potncia, e outras que a se encontram apenas eminentemente, como onmero e o comprimento 2 2 ; o que porcerto no seria assim, se tal ideia nofosse outra coisa em ns seno umafico.E ela no seria tampouco concebidato exatamente da mesma maneira portodo o mundo; pois notvel quetodos os metafsicos concordem unanimemente na descrio dos atributos deDeus (ao menos dos que a simplesrazo humana pode conhecer), de talsorte que no h coisa fsica nem sensvel, nada de que tenhamos uma ideiato expressa e to palpvel, a respeitode cuja natureza no haja entre os filsofos maior diversidade de opinies,do que se verifica no tocante deDeus .E, indubitavelmente, os homens jamais poderiam distanciar-se do verdadeiro conhecimento desta natureza divina, se quisessem somente voltar aateno para a ideia que tm do sersoberanamente perfeito 2 3 . Mas aque-22 Sobre a recusa de conceder "verdadeira extenso" a Deus e a "toda substncia que no corpo",cf.Cartas, a Morus, de 5 de fevereiro de 1649. "Euafirmo que no h extenso a no ser nas coisas quecaem sob a imaginao, como dotadas de partesdistintas umas das outras, e que so de uma grandeza e de uma figura determinadas, embora chamemos tambm outras coisas extensas, mas somentepor analogia."2 3 Cf. Cartas, a Mersenne, de julho de 1641: "crvel que ele no tenha conseguido compreender,como afirma, o que eu entendo pela ideia deDeus. . . visto que no entendo por ela outra coisaexceto o que ele prprio deve necessariamente tercompreendido quando vos escreveu que no aentendia de modo al g u m ?. .. De qualquer maneiraque concebamos (Deus), temos uma ideia dele,posto que nada poderamos exprimir por nossaspalavras, quando entendemos o que dizemos, semque da mesmo seja certo que temos em ns a ideiada coisa que significada por nossas p alavras".

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    OBJEES E RESPOSTAS 167les que misturam a esta algumas outrasideias compem por tal meio um Deusquimrico em cuja natureza existemcoisas que se contrariam; e, aps t-loassim com posto, no de espantar queneguem que tal Deus, que lhes representado por uma falsa ideia, existe.Assim, quando vs falais aqui de umser corporal mui perfeito, se tomais adenominao mui perfeito de modoabsoluto, de maneira que entendais queo corpo um ser onde se encontramtodas as perfeies, dizeis coisas que secontrariam 2 4 , posto que a natureza docorpo encerra muitas imperfeies, porexemplo, a que o corpo seja divisvelem partes, que cada uma de suas partes no seja a ou tra, e ou tras semelhantes; pois algo evidente por si queconstitui maior perfeio no poder serdividido do que poder s-lo. Pois seentendeis apenas o que mui perfeitono gnero do corpo, isto no demodo algum o verdadeiro Deus.O que acrescentais da ideia de umanjo, o qual mais perfeito do que ns,a saber, que no necessrio que tenhasido posta em ns por um anjo, estoufacilmente de acordo; pois eu prpriodeclarei, na Meditao Terceira, queela pode compor-se das ideias quetemos de Deus e do homem. E isso nome de forma alguma, con trrio.Quanto aos que negam possuir em sia ideia de Deus e em seu lugar forjamalgum dolo , etc., esses, digo eu, negamo nome e concedem a coisa. Pois certamente no penso que tal ideia seja damesma natureza que as imagens dascoisas materiais pintadas na fantasia;mas, ao contrrio, creio que ela s2 4 "O ser corporal mui perfeito" uma expressocontraditria se referirmos "corporal" sua definio cartesiana (extenso divisvel); mas no, secompreendermos apenas por corporal uma "substncia sensvel", como procedera os telogos. Asprprias palavras no tm o mesmo sentido. "Nose define bem o corpo como uma substncia sensvel." (A M orus, 5 de fevereiro de 1649.)

    pode ser concebida pelo exclusivoentendimento e que, de fato, no outra coisa seno aquilo que ele nosfaz conhecer, seja pela primeira, sejapela segunda, seja pela terceira de suasoperaes. E pretendo manter que, dosimples fato de alguma perfeio, queest acima de mim, tornar-se o objetode meu entendimento, de qualquerforma que se lhe apresente porexemplo, do simples fato de eu perceber que nunca posso, enumerando,chegar ao maior de todos os nmeros,e da eu conhecer que existe algo, emmatria de nmeros, que ultrapassaminhas foras , posso concluir necessariamente no que existe na verdade um nmero infinito, nem tampoucoque sua existncia implica contradio, como dizeis, mas que este poderque tenho de compreender que h sempre alguma coisa a mais a conceber nomaior dos nmeros, que eu jamaisposso conceber, no provm de mimmesmo, e que eu o recebi de algumoutro ser que mais perfeito do quesou.

    E importa muito pouco que se d onome de ideia a esse conceito de umnmero indefinido, ou que no lhodem. Mas, para entender qual esseente mais perfeito do que eu e saber seno esse mesmo nmero, cujo fimno posso encontrar, que realmenteexistente e infinito, ou se outra coisaqualquer, cumpre considerar todas asoutras perfeies, as quais, alm dopoder de me dar esta ideia, podem existir na mesma coisa em que existe estepoder; e assim verificamos que estacoisa De us.Enfim, quando Deus dito inconcebvel, por isso se entende uma plena einteira concepo, que compreende eabrange perfeitamente tudo quanto hnele, e no essa concepo medocre eimperfeita que h em ns, a qual noentanto basta para conhecer que ele

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    168 DESCARTESexiste. E nada provais contra mim,dizendo que a ideia da unidade detodas as perfeies que h em D eus formada da mesma maneira que a unidade genrica e a dos outros universais. Mas, no obstante, ela muitodiferente; pois denota uma particular epositiva perfeio em Deus, ao passoque a unidade genrica nada acrescenta de real natureza de cadaindivduo.Em terceiro lugar, onde afirmei quenada podemos saber de certo, se noconhecermos primeiramente que Deusexiste, afirmei, em termos expressos,que falava apenas da cincia dessasconcluses, cuja lembrana nos poderetornar ao esprito, quando no maispensamos nas razes de onde as tiramos2 5 . Pois o conhecimento dos primeiros princpios ou axiomas no costuma ser chamado cincia pelosdialticos. Mas, quando percebemosque somos coisas pensantes, trata-se deuma primeira noo que no extradade nenhum silogismo; e quando algum diz: Penso, logo sou, ou existo,ele no conclui sua existncia de seupensamento como pela fora de algumsilogismo, mas como uma coisa conhecida por si; ele a v por simples inspe-o do esprito. Como se evidencia dofato de que, se a deduzisse por meio dosilogismo, deveria antes conhecer estapremissa maior: Tudo o que pensa ouexiste. Mas, ao contrrio, esta lhe

    2 5 A Meditao Quinta fala da cincia das verdades mediatas. Esta que garantida por Deus, desorte que no devo efetuar de novo a demonstraopara obter novamente a certeza. A questo dessagarantia no se coloca , portanto, para os per se notaconhecidos intuitivamente. Por isso poder Descartes escrever, nas Quartas Respostas, referindo-se aesta passagem: "Fiz ver bastante claramente...que no incidi na falta que se chama circulo", assegurando atravs de Deus as coisas conhecidasclara e distintivamente e a existncia de Deus atravs do pensamento claro e distinto. Pois distingui"as coisas que concebemos de fato mui claramentedas que nos recordamos haver outrora concebidomui claramente".

    ensinada por ele sentir em si prprioque no pode se dar que ele pense, casono exista. Pois prprio de nossoesprito formar as proposies geraispelo conhecimento das particulares.Ora, que um ateu possa conhecerclaramente que os trs ngulos de umtringulo so iguais a dois retos, no onego2 6 ; mas sustento apenas que noconhece isso por uma cincia verdadeira e certa, porque todo conhecimento que se pode tornar duvidosono deve ser denominado cincia, euma vez que se supe tratar-se de umateu, no pode ele ter certeza de noser enganado nas coisas que lhe parecem muito evidentes, como j foi mostrado mais acima; e, embora essa dvida talvez no lhe ocorra aopensamento, pode no entanto ocorrer -lhe, se a examinar, ou se lhe for proposta por outrem; e nunca estar forado perigo de conceb-la, caso noreconhea primeiramente um Deus.E no importa que talvez julguehaver demonstraes para provar queDeus no existe; pois, como essas pretensas demonstraes so falsas, sempre possvel dar-lhe a conhecer asua falsidade; e lev-lo, ento, a mudarde opinio. O que na verdade no ser

    difcil, se por todas as razes ele apresentar somente a que acrescentais aqui,a saber, que o infinito em todo gnerode perfeio exclui toda outra espciede ser, etc.Pois, primeiramente, se se lhe pergunta de onde ficou sabendo que estaexcluso de todos os outros seres pertence natureza do infinito, nada terpara responder pertinentemente, postoque, .pelo nome infinito, no se costu-2 * N o se trata agora das garantias de minha cincia, mas das prprias verdades.. Descartes nonegou que um ateu pudesse ser matemtico, masque pudesse manter a certeza de que as verdadesevidentes so verdadeiras.

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    OBJEES E RESPOSTAS 169ma entender aquilo que exclui a existncia das coisas finitas, e que ele nadapode saber da natureza de uma coisaque ele pensa no ser absolutamentenada, e por conseguinte no ter nenhuma natureza, exceto a que est contidana simples e ordinria significao donome dessa coisa2 7 .Ademais, para que serviria o infinitopoder desse infinito imaginrio, se nopudesse jamais criar algo? E enfim,por experimentarmos haver em nsmesmos certo poder de pensar, concebemos facilmente que tal poder possaexistir em algum mais, e at maior doque em ns; mas, ainda que pensemosque aquele cresce ao infinito, notememos por isso que o nosso se tornemenor. O mesmo sucede com todos osoutros atributos de Deus, inclusive odo poder de produzir alguns efeitosfora de si, desde que suponhamos quenada h em ns sem que esteja submetido vontade de Deus; portanto, possvel entend-lo como totalmenteinfinito sem qualquer excluso das coisas criad as28.Em quarto lugar, quando digo queDeus no pode mentir, nem ser enganador, penso convir com todos os telogos que alguma vez existiram e hode existir no futuro. E tudo quanto alegais em contrrio no possui maisfora do que se, tendo negado queDeus se encoleriza, ou que esteja sujeito s outras paixes da alma, me obje-tardes as passagens da Escritura onde2 7 Passamos agora prova da no existncia deDeus alegada pelos telogos. Em primeiro lugar, adefinio do infinito fabricada sob medida e tantomais arbitrariamente quanto o ateu se limita a tornar explcito um nome, porquanto recusa a colocaruma essncia.2 8 Em segundo lugar, no se pode dizer que o infinito seja exclusivo da pluralidade das coisas criadas. Notar-se- o carter spinozista do raciocniodo ateu. A pluralidade existe, diz ele, logo o infinitono existe. O infinito existe, logo preciso que apluralidade seja ilusria, dir Spinoza. As concluses so inversas, mas a incompatibilidade amesma.

    parece que lhe so atribudas algumaspaixes humanas.Pois todos conhecem suficientemente a distino que h entre essasmaneiras de falar de Deus, de que aEscritura se serve comumente, que seacomodam capacidade do vulgo econtm de fato alguma verdade, masapenas na medida em que esta se relaciona aos homens, e as que expressamuma verdade mais simples e mais purae que no muda de natureza, emborano se lhes relacione de modoalgum 29; destas que cada qual deveusar ao filosofar e foi delas que precisei utilizar-me principalmente nas minhas Meditaes, visto que mesmo aeu no supunha ainda que algumhomem me fosse conhecido, e no meconsiderava tampouco composto decorpo e esprito, mas um espritosomente.De onde se torna evidente que nofalei nesse ponto da mentira que seexprime por palavras, mas apenas damalcia interna e formal contida noengano: se bem que, no entanto, essaspalavras que citais do profeta: Aindaquarenta dias, e Nnive ser subvertida, no constituam mesmo uma mentira verbal, porm uma simples ameaa, cuja ocorrncia dependia de umacondio; e quando dito que Deusempederniu o corao do Fara, oualgo semelhante, no cumpre pensarque o tenha feito positivamente, masapenas negativamente, a saber, nodando ao Fara uma graa eficaz paraque se convertesse.No desejaria, apesar de tudo, con

    denar aqueles que afirmam que Deuspode proferir por seus profetas algumamentira verbal, tais como o so aquelas de que se servem os mdicos quan-2 * Distin o, que ser retomada por Spinoza, entrea linguagem antropomrfica das Escrituras e a verdade filosfica qu e ela reveste.

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    170 D E S C A R T E Sdo iludem seus doentes para cur-los,isto , que fosse isenta de toda malciaque se encontra com umente no engano.Mas , bem ao contrrio, vemos s vezesque somos realmente enganados poreste instinto natural que nos foi dadopor Deus, como quando um hidrpicosente sede; pois ento realmente incitado a beber pela natureza que lhe foiconcedida por Deus para a conservao do corpo, se bem que, no obstante , essa natureza o engane, pois que obeber lhe deve ser prejudicial; masexpliquei, na minha Meditao Sexta,como isso compatvel com a vontadee a verdade de De us.

    Mas nas coisas que no podemassim explicar-se, a saber, nos nossosjuzos muito claros e muito exatos, osquais, se fossem falsos, no seriamcorrigveis por outros mais claros, nemmediante qualquer outra faculdadenatural, sustento ousadamente que nopodemos ser enganados. Pois, sendoDeus o soberano ser, cumpre que sejanecessariamente tambm o soberanobem e a soberana verdade, e, portanto,repugna que venha dele qualquer coisaque tenda positivamente para a falsidade. Mas, como em ns nada podehaver de real que ele no nos tenhadado (como foi demonstrado na provade sua existncia), e como temos emns uma faculdade real para conhecero verdadeiro e distingui-lo do falso(como possvel provar pelo simplesfato de possuirmos em ns as ideias doverdadeiro e do falso), se esta faculdade no tendesse ao verdadeiro, aomenos quando dela nos servimos comose deve (isto , quando damos nossoconsenso apenas s coisas que concebemos clara e distintamente, pois nose pode supor outro bom uso dessafaculdade), no seria sem razo queDeus, que no-la concedeu, seria, tidopor enganador.

    E assim vedes que, depois de seconhecer que Deus existe, mistersupor que seja enganador, se quisermos pr em dvida as coisas que concebemos clara e distintamente; e, comoisso no se pode sequer supor, deve-senecessariamente admitir tais coisascomo mui verdadeiras e mui certas 3 0 .Mas , posto que observo a esta alturaque ainda vos deteis nas dvidas quepropus na minha Primeira Meditao eque pensei hayer solucionado assazexatamente nas seguintes, explicareiaqui de novo o fundamento em que meparece possvel apoiar toda a certezahumana.Primeiramente, to logo pensamosclaramente qualquer verdade somosnaturalmente levados a crer nela. E, setal crena for to forte que jamais possamos alimentar qualquer razo deduvidar daquilo que acreditamos destaforma, nada mais h que procurar:temos, no tocante a isso, toda a certezaque se poss a razoavelmente desejar.Pois, o que nos importa, se talvezalgum fingir que mesmo aquilo, decuja verdade nos sentimos to fortemente persuadidos, parece falso aosolhos de D eus ou dos anjos, e que , portanto, em termos absolutos, falso?Por que devemos ficar inquietos comessa falsidade absoluta, se no cremosnela de modo algum e se dela notemos a menor suspeita? Pois pressupomos uma crena ou uma persuasoto firme que no possa ser suprimida;a qual, por conseguinte, em tudo omesmo que uma perfeitssima certeza.Mas realmente dubitvel que tenhamos qualquer certeza dessa natureza,ou qualquer persuaso firme e imutvel.E, por certo, patente que no se3 0 O papel "redutor" da dvida aqui claramenteexpresso.

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    OBJEES E RESPOSTAS 171possa t-la das coisas obscuras e confusas, por pouca obscuridade ou confuso que nelas observemos; pois talobscuridade, qualquer que seja, causa assaz suficiente para nos fazerduvidar dessas coisas. Tampouco podemos t-la das coisas percebidas apenas pelos sentidos, no importa a clareza que ocorra em sua percepo,porque m uitas vezes j notam os que nosentido pode haver erro, como quandoum hidrpico sente sede, ou a neve parece amarela a quem sofre de ictercia;pois este ltimo n o a v menos clara edistintamente desta forma do que ns aquem ela parece bra nca. Res ta, portanto , que, se podemos t-la, somentedas coisas que o esprito concebe clarae distintamente.

    Ora, entre tais coisas, algumas hto claras e ao mesmo tempo to simples que nos impossvel pensar nelassem que as julguemos verdade iras: porexemplo, que existo quando penso, queas coisas que foram alguma vez feitasno podem no ter sido feitas e outrassemelhantes, das quais manifesto quepossumos perfeita certeza.Pois no podemos duvidar dessascoisas sem pensar nelas; mas nopodemos jamais pens-las sem acreditar que sejam verdadeiras, como acabode dizer; logo, no podemos duvidardelas sem as crermos verdadeiras, isto, nunc a podemos duvidar de la s 3 1 .E de nada serve alegar que verificamos muitas vezes que pessoas seenganavam em coisas que pensavamver mais claramente que o sol. Poisnunca vimos, ns nem ningum, queisso tenha acontecido aos que tiraramto-s do entendimento toda a clarezade suas percepes, mas antes aos que3 ' Uma vez que atingi a certeza, sabendo que satisfiz a suas condies, no mais posso duvidar dianteda evidncia: a dvida j no seria seno um artifcio sem qualquer sentido.

    a tomaram dos sentidos ou de algumfalso preconceito. De nada vale, outrossim, que algum suponha que taiscoisas parecem falsas a Deus ou aosanjos, porque a evidncia de nossa percepo no permitir que ouamos aquem o tenha suposto e nos queirapersuad i r3 2 .H outras coisas que nosso entendimento tambm concebe muito claramente, quando observamos de perto asrazes de que depende seu conhecimento; e, por isso, no podemos,ento, duvidar dele. Mas, dado quepodemos esquecer as razes, e noentanto recordar as concluses daextradas, pergunta-se se possvel teruma firme e imutvel persuaso sobreessas concluses, ao passo que noslembramos de que foram deduzidas deprincpios mui evidentes; pois estalembrana deve pressupor-se para quepossam chamar-se concluses. E eurespondo que s podem t-la os queconhecem de tal modo Deus a pontode saberem que no pode acontecerque a faculdade de entender, que lhesfoi dad a po r ele, tenha por objeto o utracoisa se no a verdade; mas que os outros no a tm. E isso foi to claramente explicado ao fim da MeditaoQuinta que no penso dever aquiacrescentar-lhe algo.Em quinto lugar, surpreendo-me deque negueis que a vontade corre o perigo de falhar, quando persegue e envolve os conhecimentos obscuros e confusos do entendimento. Pois, o que quepode torn-la certa, se o que ela segueno claramente conhecido? E qualfoi o filsofo, ou o telogo, ou o simples homem no uso da razo, que nohaja algum a vez confessado q ue o peri-3 2 Os telogos interpretaram a certeza como umestado psicolgico entre outros. Para Descartes, otermo mais determinado: pensamento de um objeto tal que, devido ao prprio fato de eu pens-lo,no posso duvidar de sua verdade.

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    172 D E S C A R T E Sgo de falhar a que nos expomos tan tomenor quanto mais clara a coisa queconcebemos antes de lhe dar nossoconsenso? E que pecam os que, semconhecimento de causa, pronunciamalgum julgamen to? Ora, nenhum a concepo dita obscura ou confusa, ex-ceto porque nela est contido algo queno conhecido.Portanto, aquilo que objetais notocante f que se deve abraar, notem maior fora contra mim do quecontra todos os que alguma vez cultivaram a razo humana; e, a bem dizer,no tem fora alguma contra ningum.Pois, embora se diga que a f tem porobjeto coisas obscuras, no obstanteaquilo pelo qual cremos nela no obscuro; mais claro do que qualquerluz natural. Tanto mais quanto cumpredistinguir entre a matria, ou a coisa qual concedemos nossa crena, e arazo formal que move nossa vontadea conced-la. Pois s nessa razo formal que queremos que haja clareza eevidncia.Quanto matria, ningum jamaisnegou que pode ser obscura, e atmesmo a prpria obscuridade; pois,quando julgo que a obscuridade deveser subtrada de nossos pensamentospara poder dar-lhes nosso consentimento sem nenhum perigo de falhar, a obscuridade mesma que me serve dematria para formar um juzo claro edistinto.Alm disso, cabe notar que a clarezaou a evidncia pela qual nossa vontadepode ser incitada a crer de duas espcies: uma que parte da luz natural, eoutra que provm d a graa divina.Ora, conquanto se afirme comu-mente que a f pertence s coisas obscuras, todavia isso se refere apenas sua matria e no razo formal pelaqual cremos; pois, ao contrrio, estarazo formal consiste em certa luz

    interior, pela qual, tendo Deus nosaclarado sobrenaturalmente, possumos confiana certa de que as coisaspropo stas nossa crena foram por elereveladas, e de que inteiramenteimpossvel que ele seja mentiroso e nosengane: e isso mais seguro do quequalquer outra luz natural, e amideat mais evidente, por cauda da luz dag r a a 3 3 .E por certo os turcos e os outrosinfiis, quando no abraam a religiocrist, no pecam por no quereremdar f s coisas obscuras, como sendoobscuras; mas pecam, ou porque resistem graa divina que os adverteinteriormente, ou porque, pecando emoutras coisas, tornam-se indignosdessa graa. E direi atrevidamente queum infiel que, destitudo de toda graasobrenatural e totalmente ignorante deque as coisas que ns outros cristosacreditamos foram reveladas porDeus , e, no obstante, atrado por alguns falsos raciocnios, se entregasse crena dessas mesmas coisas que lhefossem obscuras, no seria por issofiel, mas antes pecaria porque no seserviria com o se deve de sua ra z o.E penso que jamais qualquer telogo ortodoxo alimentou outros sentimentos a esse respeito; e tambm aqueles que lerem minhas Meditaes notero motivo de crer que eu no hajaconhecido esta luz sobrenatural, porquanto, na Quarta, em que busqueicuidadosamente a causa do erro ou falsidade, declarei, em palavras expressas, que ela dispe o interior de nossopensamento a querer, e que, no entanto , no diminui de modo algum aliberdade.3 3 A graa mesma uma luz (sobrenatural e nomais natural) que ilumina nossa vontade. Esta passagem mostra quanto importa distinguir entre aconcepo clara e distinta das coisas e a reduoreal a coisas claras e distintas.

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    174 D E S C A R T E Scebemos clara e distintamente deverpertencer-lhe, e assim no supus nadaque repugne ao pensamento ou ao conceito humano; ou ento, supondes alguma outra possibilidade de parte doprprio objeto, a qual, se no concordacom a precedente, nunca pode serconhecida pelo entendimento humano;e, portanto, no possui maior forapara nos obrigar a negar a natureza deDeus ou sua existncia do que paraderrubar todas as outras coisas quecaem sob o conhecimento dos homens3 5 . Pois, pela mesma raz o que senega que a natureza de Deus possvel, ainda que no se encontre qualquer impossibilidade da parte do conceito ou do pensamento, mas que, aocontrrio, todas as coisas contidasneste conceito da natureza divinasejam de tal modo conexas entre si quenos parea haver contradio em afirmar a existncia de alguma que nopertena natureza de Deus, poder-se- negar tambm que seja possvelque os trs ngulos de um triangulosejam iguais a dois retos, ou que aquele que pensa atualmente existe; e commaior razo ainda se poder denegarque haja algo de verdadeiro em todasas coisas que percebemos pelos sentidos ; e assim todo o conhecimento humano ser derrubado, mas no o sercom qualquer razo ou fundamento.

    E pelo que toca a esse argumentoque comparais com o meu, a saber: Seno implica que Deus seja, certo queele existe; mas no implica de modoalgum; logo, etc., materialmente verdadeiro, mas formalmente constituium sofisma. Pois, na premissa maior, otermo implica concerne ao conceito dacausa pela qual Deus pode ser, e, na3 5 "Ns no podemos ter nenhum conhecimentodas coisas a no ser pelas ideias que concebemos aseu respeito e, por conseguinte, no devemos julg-las a no ser segundo estas ideias e at pensar quetudo quanto repugna estas ideias absolutamenteimpossvel e implica contradio." (Cartas, aGibieuf, 19 de janeiro de 1642.)

    menor, concerne apenas ao conceito daexistncia e da natureza de Deus,como se manifesta do fato de que, senegarmos a maior, dever-se- prov-laassim:Se Deus no existe ainda, implicaque existe, porque no se poderia consignar causa suficiente para produzi-lo ; mas no implica que existe, comofoi acordado na menor; logo, etc.E se negarmos a menor, dever-se-prov-la assim:No implica, de modo algum, estacoisa em cujo conceito formal nada hque encerre contradio; mas, no conceito formal da existncia ou da natureza divina, nada h que encerrecontradio; logo, etc. E assim a palavra implica tom ada em dois sentidosdiversos.Pois pode acontecer que no se conceba na prpria coisa nad a que im peaque ela possa existir, e no entanto seconceba algo da parte de sua causaque impea que seja produzida.Ora, ainda que concebamos Deus smui imperfeitamente, isso no impedea certeza de que sua natureza possvel, ou que ela no implica de modoalgum; nem, outrossim, que no possamos assegurar com verdade que a examinamos assaz cuidadosamente e aconhecemos assaz claramente (a saber,tanto quanto basta para conhecer queela possvel, e tambm que lhe pertence a existncia necessria). Poistod a a impo ssibilidade, ou, se me permitido servir-me aqui do termo daEscola, toda a implicao consistesomente em nosso conceito ou pensamento, que no pode conjuntar asideias que se contrariam umas soutras 3 6 ; e no p ode consistir em qu al-3 6 "No h contradio nas coisas, mas apenasnas ideias, porque so nossas ideias somente quejulgamos de maneira tal que se opem entre si. Ora,as coisas no se opem entre si porque todas podemexistir. . . Sucede o contrrio com as ideias, porquenelas julgamos coisas diferentes que, separadamente, no se contradizem, mas que ns julgamosde modo que as tornamos uma s. Assim nasce acontradio." (Col. com Burman, V, 161.)

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    OBJEES E RESPOSTAS 175quer coisa que esteja fora do entendimento, porque, pelo prprio fato deuma coisa estar fora do entendimento,se torna manifesto que ela no implicade modo algum, m as que possvel.Ora, a impossibilidade com que nosdeparamos em nossos pensamentosprovm apenas de serem eles confusose obscuros, e no pode haver nenhumaimpossibilidade nos que so claros edistintos; por conseguinte, a fim depodermos estar seguros de que conhecemos bastante a natureza de Deuspara sabermos que no h qualquerrepugnncia em que ela exista, suficiente que entendamos clara e distintamente todas as coisas que percebemoshaver nela, embora tais coisas sejamapenas em pequeno nmero em relaos que no percebemos, posto queestas tambm estejam nela; e que comisso notemos que a existncia necessria uma das coisas que percebemos, assim , existir em D eus .Em stimo lugar, j dei a razo, noresumo de minhas Meditaes, pelaqual nada disse aqui sobre a imortalidade da alma3 7 ; j mostrei tambmmais acima como provara suficientemente a distino que h entre o esprito e tod a espcie de corp o.Quanto ao que acrescentais, que dadistino da alma com o corpo no sesegue que ela seja imortal, porque, apesar disso, se pode dizer que Deus afezde tal natureza que sua durao findacom a da vida do corpo, confesso quenada tenho a responder; pois no alimento tanta presuno a ponto de tentar determinar, pela fora do raciocnio humano, algo que dependeapenas da pura vontade de Deus.O conhecimento natural nos ensinaque o esprito diferente do corpo, eque uma substncia; e tambm que o3 7 No resumo, nota Descartes que as Meditaespermitem estabelecei que a morte da alma nodecorre da corrupo do corpo; mas uma demonstrao da imortalidade da alma exigiria "a explicao de toda a Fsica".

    corpo hu m ano, na medida em que difere dos outros corpos, compe-se somente de certa configurao de membros, e outros acidentes semelhant e s

    3 8; e, enfim, que a morte do corpo depende somente de alguma diviso ou mudana de figura. Ora,no temos nenhum argumento, ouqualquer exemplo, que nos persuada deque a morte ou o aniquilamento deuma substncia tal como o espritodeva decorrer de uma causa to ligeiracomo o uma mudana de figura, queno seno um modo, e ainda ummodo, no do esprito, mas do corpo,que realmente distinto do esprito. Eno dispomos mesmo de qualquerargumento nem exemplo que nos possaconvencer de que h substncias sujeitas ao aniquilamento. O que basta paraconcluir que o esprito, ou a alma dohomem, na medida em que isso podeser conhecido pela Filosofia natural,

    imortal.Mas caso se pergunte se Deus, porseu absoluto poder, no determinoutalvez que as almas humanas cessemde existir, ao mesmo tempo que sodestrudos os corpos a que esto unidas, s a Deus compete respond-lo. Ecomo agora ele nos revelou que issonunca ocorrer, no deve subsistir arespeito nenhum a dvida.De resto, devo agradecer-vos muitopor vos terdes dignado to obsequiosamente, e com tanta franqueza, adver-tir-me no s das coisas que vos pareceram dignas de explicao mastambm das dificuldades que me podiam ser opostas pelos ateus, ou poralguns aborrecedores e maldizentes.Pois, ainda que no veja nada, entreas coisas que me propusestes, que nohouvesse de antemo rejeitado ou

    3 8 A substncia extensa indestrutvel, mas no assubstncias corporais particulares; os corpos noso verdadeiras substncias, como os espritos, masapenas especificaes da extenso. E isso to verdade no tocante ao corpo humano (enformado poruma alma) como em relao mquina (do animal),apesar da diferena existente entre ambos.

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    176 D E S C A R T E Sexplicado em minhas Meditaes como, por exemplo, o que alegaisquanto s moscas produzidas pelo sol,quanto aos canadenses, aos ninivitas,aos turcos e outras coisas parecidas,no pode vir ao esprito de quem,seguindo a ordem dessas Meditaes,colocar parte por algum tempo tudoo que haja recebido dos sentidos paracuidar do que lhe dita a mais pura e srazo; da por que pensava j ter rejeitado todas essas coisas , ainda, digo,que assim seja, julgo, no entanto, quetais objees sero muito teis a meudesgnio, posto que no espero contarcom muitos leitores dispostos a dedicar tanta ateno s coisas que escrevi,a ponto de, chegando ao fim, se recordarem de tudo quanto leram anteriormente; e os que o no fizerem cairofacilmente em dificuldades, s quais,como vero em seguida, eu teria satisfeito por essa resposta, ou ao menosaproveitaro o ensejo de examinarmais cuidadosamente a verdade.No que concerne ao conselho queme dais, de dispor minhas razessegundo o mtodo dos gemetras, afim de que de uma s vez os leitorespossam compreend-las, dir-vos-eiaqui de que forma j tentei precedentemente segui-lo, e como procurareifaz-lo ainda posteriormente.No mod o de escrever dos gemetras,distingo duas coisas, a saber, a ordeme a man eira de dem onstrar.A ordem consiste apenas em que ascoisas propostas primeiro devem serconhecidas sem a ajuda das seguintes,e que as seguintes devem ser dispostasde tal forma que sejam demonstradass pelas coisas que as precedem. E certamente empenhei-me, tanto quantopude, em seguir esta ordem em minhasMeditaes. E foi o que me levou a notratar na Segunda da distino entre oesprito e o corpo, mas apenas na

    Sexta, e a om itir m uitas coisas em todoesse tratado, porque pressupunham aexplicao de muitas outras .A maneira de demonstrar dupla:uma se faz pela anlise ou resolu o 3 9 , e a outra pela sntese oucomposio.A anlise mo stra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente descoberta e revela como osefeitos dependem das causas; de sorteque, se o leitor quiser segui-la e lanarcuidadosamente os olhos sobre tudo oque contm, no entender menosperfeitamente a coisa assim demonstrada e no a tornar menos sua doque se ele prprio a houvesse descoberto.Mas tal espcie de demonstraono capaz de convencer os leitoresteimosos ou pouco atentos: pois se sedeixa escapar, sem reparar, a menordas coisas que ela prope, a necessidade de suas concluses no surgir demodo algum; e no se costuma expressar nela mui amplamente as coisas queso bastante cla ras por si me smas, embora sejam comumente as que cumpretomar mais em co nt a 4 0 .A sntese, ao contrrio, por umcaminho todo d iverso, e como que examinando as causas por seus efeitos(embora a prova que contm sejaamide tambm dos efeitos pelas caus a s ) 4 1 , demonstra, na verdade, claramente o que est contido em suasconcluses, e serve-se de uma longa3 9 Cumpre distinguir a Anlise como disciplina(que, no Discurso, era posta ao mesmo nvel que aLgica e a lgebra) e "a anlise ou re soluo": esta parte da soluo que consiste, segundo os gregos,suposto que o problema esteja resolvido e reduzidoa contento de certas condies simples, em confrontar essas condies com as dos dados.4 0 A anlise oferece o risco de tornar o leitor desatento ordem e, em Metafsica, lev-lo a esquecerque se trata de demonstraes. Consulte-se a respeito o prefcio de Louis Mayer, aos Princpios daFilosofia de Descartes de Spinoza (Spinoza, Pliade, pgs. 205-207).

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    OBJEES E RESPOSTAS 177srie de definies, postulados, axiomas, teoremas e problemas, para que,caso lhe neguem algumas consequncias, mostre como elas se contm nosantecedentes, de modo a arrancar oconsentimento do leitor, por mais obstinado e opinitico que seja; mas nod , com o a outra , inteira satisfao aosespritos dos que desejam aprender,porque no ensina o mtodo pelo quala coisa foi de scoberta.Os antigos gemetras costumavamutilizar-se apenas dessa sntese em seusescritos, no porque ignorassem inteiramente a analise, mas, em meu parecer, porque lhe atribuam tal posioque a reservavam para eles prprios,como um segredo de importncia.Quanto a mim, segui somente a viaanaltica em minhas Meditaes, porque me parece ser a mais verdadeira ea mais prpria ao ensino; mas, quanto sntese, que sem dvida a que desejais aqui de mim, ainda que no tocantes coisas tratadas na Geometria elapossa ser utilmente colocada aps aanlise, no convm, todavia, to bems matrias que pertencem Metafsic a 4 2 . Pois h essa diferena, que asprimeiras noes supostas para demonstrar as proposies geomtricas,estando de acordo com os sentidos,so facilmente aceitas por cada qual;eis por que no apresenta qualquer4 ' A diferena entre anlise e sntese , portanto,na realidade, uma diferena na maneira de demonstrar, isto , na maneira pela qual a demonstrao seimpe ao esprito do leitor. Ela no concerne ordem. "A anlise" nota Buillemin, " uma construo puramente intelectual e algbrica", ao passoque a sntese "se apresenta imaginao antes deaclarar a inteligncia". (Maths. Meta., pgs.165-166.) O autor acrescenta que, na acepomoderna do termo "sntese", a Matemtica cartesiana merece ser denominada "sinttica".4 2 Em Metafsica, a sntese oferece uma desvantagem suplementar em relao anlise: no s aordem da descoberta no mais ser respeitada, masainda ser difcil afastar os prejuzos nascidos dainconvenincia das no es metafsicas aos sentidos.

    dificuldade, exceto a de tirar bem asconsequncias, o que pode ser feito porpessoas de toda espcie, mesmo pelasmenos atentas, desde que se recordemapenas das coisas precedentes; e fcilobrig-las a se recordarem, distinguindo tantas proposies diversasquantas coisas haja a observar na dificuldade proposta, a fim de que se detenham separadamente em cada uma, eque se lhes possam citar em seguida,para adverti-las daquelas em quedevem pensar. Mas, ao contrrio, noatinente s questes que pertencem Metafsica, a principal dificuldade conceber clara e distintamente as noes primeiras. Pois, ainda que por suanatureza no sejam menos claras,sendo mesmo muitas vezes mais clarasdo que as consideradas pelos gemetras, no obstante, posto que parecemno acordar com muitos prejuzos querecebemos atravs dos sentidos, e aosquais nos habituamos desde a infncia,so perfeitamente compreendidadasapenas pelos que so muito atentos ese empenham em apartar, tanto quantopodem, o esprito do comrcio dos sent idos; eis por que, se as propusssemostotalmente ss, seriam facilmente negadas por aqueles cujo esprito propenso contradio.

    Esta foi a causa pela qual preferiescrever meditaes e no disputas ouquestes, como fazem os filsofos, outeoremas ou problemas, como os gem e t r a s 4 3 , a fim de testemunhar comisso que as escrevi to-somente para osque quiserem dar-se ao trabalho demeditar seriamente comigo e considerar as coisas com ateno. Pois, pelofato mesm o de que algum se prepa re a4 3 A "meditao" dessarte um gnero intermedirio entre dialtica e retrica, de um lado, e apresentao sinttica euclidiana, de outro. No umgnero autobiogrfico, porm uma gnese analticados elementos imitada do mtodo algbrico.

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    178 DESCARTESfim de impugnar a verdade, ele se tornamenos capaz de compreend-la, porquanto desvia o esprito da considerao das razes que o persuadem delapara aplic-lo busca das que adestroem.Mas, no obstante, para testemunhar o quanto condescendo com vosso

    conselho, procurarei aqui imitar a sntese dos gemetras e efetuarei um resumo das principais razes que usei parademonstrar a existncia de Deus e adistino que h entre o esprito e ocorpo humano: o que no servirpouco, talvez, para aliviar a atenodos leitores.

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    RA Z E SQ UE PROVAM A EXISTNCIA D E DEUSE A DISTINO Q UE H ENTRE O ESPRITOE O CORPO HUM ANO

    D I S P O S T A S D E U M A F O R M A G E O M T R I C ADefinies

    I. Pelo nome de pensamento, compreendo tudo quanto est de tal modoem ns que somos imediatamente seusconhecedores. Assim, todas as operaes da vontade, do entendimento, daimaginao e dos sentidos so pensamentos. Mas acrescentei imediatamente, para excluir as coisas que seguem e dependem de nossospensamentos: por exemplo, o movimento voluntrio tem, verdadeiramente, a vontade como princpio, masele prprio, no entanto, no umpensamento.II. Pelo nome de ideia, entendo estaforma de cada um de nossos pensamentos por cuja percepo imediatatemos conhecimento desses mesmospensamentos. De tal modo que nadaposso exprimir por palavras, ao compreender o que digo, sem que damesmo seja certo que possuo em mima ideia da coisa que significada porminhas palavras. E assim no dou onome de ideia s simples imagens queso pintadas na fantasia; ao contrrio,no lhes dou aqui esse nome, na medida em que se encontram na fantasiacorporal, isto , na medida em que sopintadas em algumas partes do crebro, mas somente na medida em que

    enformam o prprio esprito, que seaplica a esta parte do crebro.III. Pela realidade objetiva de umaideia, entendo a entidade ou o ser dacoisa representada pela ideia, na medida em que tal entidade est na ideia; e,da mesma maneira, pode-se dizer umaperfeio objetiva, ou um artifcioobjetivo, etc. Pois, tudo quanto concebemos como estando nos objetos dasideias, tudo isso est objetivamente, oupor representaes, nas prpriasi d e i a s 4 4 .IV. A s mesm as coisas so d itasestarem formalmente nos objetos dasideias, quando esto neles tais como asconcebemos; e so ditas estarem neleseminentemente, quando, na verdade,no esto a, como tais, mas so tograndes, que podem suprir essa carncia com a excelncia delas 4 5 .4 4 A realidade objetiva de uma ideia seu contedo na medida em que dotado de valor representativo. Cumpre no confundi-la, pois, com seu valorobjetivo, ao qual ela no permite, por si s,prejulgar.4 5 Se considerarm os que a ideia de Deu s, enquantoideia, forosamente inferior quele de quem ela cpia , Deus ser denominado causa eminente destaideia . Se considerarmos que no pode haver na realidade objetiva da ideia do perfeito, enquanto ideiado perfeito, nada que seja menos perfeito do que oprprio ser perfeito, Deus pode ento ser denominado causa formal de sua ideia.

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    OBJE ES E RES POS TAS 181semelhantes; e que assim exercitemessa clareza do entendimento que lhesfoi dada pela natureza, mas que aspercepes dos sentidos acostumarama perturbar e obscurecer, que a exercitem, digo eu, totalmente pura e libertade seus prejuzos; pois , por este m eio, averdade dos axiomas seguintes lhesser fortemente evidente.Em quarto lugar, que examinem asideias dessas naturezas que contm emsi um conjunto de muitos atributos,como a natureza do tringulo, a doquadrado ou de qualquer outra figura;bem como a natureza do esprito, anatureza do corpo e, acima de todas, anatureza de Deus ou de um ser soberanamente perfeito. E que tomem nota deque se pode assegurar, com verdade,que existem em si prprias todas essascoisas que concebemos claramenteestarem a contidas 4 7 . Por exemplo,porque na natureza do tringulo retil-neo est contido que seus trs ngulosso iguais a dois retos, e porque nanatureza do corpo ou de uma coisaextensa a divisibilidade acha-se compreendida (pois no concebemos acoisa extensa to pequena que no possamos dividi-la ao menos pelo pensamento), certo dizer que os trs ngulos de todo tringulo retilneo soiguais a dois retos, e que todo corpo divisvel.Em quinto lugar, postulo que sedetenham longamente em contemplar anatureza do ser soberanamente perfeito ; e, entre outras coisas, que considerem que, nas ideias de todas as outrasnaturezas, a existncia possvel encon-tra-se de fato contida, mas que, naideia de Deus, no s a existncia pos-* ' a premissa maior da prova a priori que aquipostulada. Nas Meditaes, ela era demonstradapela primeira prova: "Aquilo mesmo que tomei hpouco por uma regra, a saber, que as coisas queconcebemos mui clara e mui distintamente sotodas verdadeiras, s fica assegurado porque Deus ou existe e porque um ser p er fe it o ... "

    svel est contida, mas alm disso aneces sria. P ois, da s, e sem q ualquerraciocnio, conhecero que Deus existe ; e no lhes ser menos claro e evidente, sem outra prova, que lhes manifesto que dois um nmero par, etrs um nmero mpar, e coisas semel h a n t e s 4 8 . Pois h coisas que soassim conhecidas sem provas poralguns, enquanto outros s as entendem por um longo discurso e raciocnio.Em sexto lugar, que, considerandocom cuidado todos os exemplos de quefalei nas minhas Meditaes, de umaclara e distinta percepo, e todos cujapercepo obscura e confusa, habi-tuem-se a distinguir as coisas claramente conhecidas das obscuras; poisisso se aprende melhor por exemplosdo que por regras, e penso que dissono se pode dar um exemplo, sem queeu j no o haja aflorado um pouco.

    Em stimo lugar, postulo que os leitores, levando em conta que nuncareconheceram qualquer falsidade nascoisas que conceberam claramente eque, ao contrrio, nunca encontraram,seno por acaso, qualquer verdade nascoisas que conceberam apenas comobscuridade, considerem que seria algointeiramente desarrazoado se, por alguns prejuzos dos sentidos, ou poralgumas suposies feitas vontade, efundadas em algo obscuro e desconhecido, pusessem em dvida as coisasque o entendimento concebe clara edistintamente. Mediante isso, admitiro facilmente os seguintes axiomas4 8 O conhecimento da necessidade da existncia deDeus , portanto , comparvel ao das verdades matemticas conhecidas sem prova. "O pensamento ltimo de Descartes , pois, no cabe dvidas, que oargumento ontolgico no comporta prova e que elereside inteiramente na percepo direta de uma relao necessria inclusa em uma essncia imediatamente apreendida pela intuio; mas que nem porisso deixa de permanecer totalmente comparvel sverdades matemticas, pelo menos quelas que soindemonstrveis." (Guroult, op . cit.. I, pg. 352.)

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    OBJEES E RESPOSTAS 191razes, mas, dissimulando-as como sefossem de pouco valor ou apresentan-do-as defeituosas e imperfeitas, aproveitais a ocasio para me fazer vriasobjees que as pessoas pouco versadas em Filosofia costumam opor sminhas concluses ou a outras que selhes assemelham ou mesmo que nadatm em comum com elas, as quais, ouso afastadas do tema, ou j foram nodevido lugar refutadas e resolvidas,no necessrio que eu responda acada uma de vossas perguntas, pois deoutra maneira seria preciso repetir cemvezes as mesmas coisas que escreviacima. Mas, satisfarei apenas em poucas palavras quelas que me parecempoder deter pessoas um pouco entendidas. E quanto queles que no se prendem tanto fora das razes quanto multido das palavras, no fao tantocaso de sua aprovao que queira perder o tempo em discursos inteis paraconquist-la.

    Primeiramente, portanto, notariaaqui que no se acredita em vs quando adiantais, to audazmente e semqualquer prova, que o esprito cresce ese enfraquece com o corpo; pois dofato de no agir to perfeitamente nocorpo de uma criana quanto no de umhomem perfeito e de muitas vezes suasaes poderem ser impedidas pelovinho e por outras coisas corpreas,segue-se somente que, enquanto estunido ao corpo, dele se serve como deum instrumento para fazer estas espcies de operaes com as quais seocupa ordinariamente, mas no que ocorpo o torne mais ou menos perfeitodo que ele em si; a consequnciaque tirais da no melhor do que se,do fato de um arteso no trabalharbem todas as vezes que se serve de ummau utenslio, infersseis que ele tirasua percia e a cincia de sua arte dabondade de seu instrumento 6 3 .6 3 Descartes aqui levado a apresentar com todo origor a tese da separao entre a alma e o corpo.

    507. Cumpre tambm notar queno parece, carne, que saibais de alguma forma o que usar de razo,posto que, para provar que a informao e a f de meus sentidos no medevem ser suspeitas, dizeis que, "embora sem me servir do olho, tenha meparecido algumas vezes que sentiacoisa que no se pode sentir sem ele,no experimentei, entretanto, sempre amesma falsidade"; como se no houvesse fundamento suficiente para duvidar de alguma coisa, no fato de termosnela alguma vez reconhecido erro 6 4 , ecomo se pudesse acontecer que, todasas vezes que nos enganamos, pudssemos nos aperceber disso; visto que,ao contrrio, o erro consiste apenas nofato de ele no se revelar como tal.Enfim, uma vez que me pedis frequentemente razes quando vs mesmosn o tendes nenhuma e, entretanto, cabea vs t-las, sou obrigado a vos advertir de que, para bem filosofar, no hnecessidade de provar que todas aquelas coisas, que no recebemos comoverdadeiras, so falsas, porque sua verdade no nos conhecida; mas somente necessrio cuidar muito seriamente de nada receber como verdadeiro que no possamos demonstrarser tal 6 B. E assim, quando percebo quesou uma substncia pensante e formo6 4 Ao fim de contas, dizia pouco mais ou menosGassendi, os sentidos nem sempre nos enganam:por que duvidar deles sistematicamente? Observao que implicava a negao de um conhecimentode entendimento puro e a impossibilidade de pensarem imagem. Em compensao, a recusa cartesianado provvel e a sistematizao da dvida pressupem a possibilidade de uma cincia rigorosa quedispensa a imaginao: a Metafsica.6 5 Cf. a polmica de Pascal contra o Pe. Noel, queo censurava por no haver refutado a tese da "matria sutil": "(Eles) pensam j ter feito muito quandocolheram os outros na impotncia de mostrar queela no existe, privando-se eles prprios de todo opoder de lhes mostrar que ela existe. Mas ns noencontramos maior razo em negar sua existnciaporque no se pode prov-la, quanto em crer nelapelo nico motivo de no se poder mostrar que elan o existe". (Pliade, pg. 373)

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    O B J E E S E R E S P O S T A S 195za, visto que um n o se demons t ra semo u t r o 7 2 . E n o vejo o que pode is desejar de mais, no que se refere a isto, ano ser que se vos diga qual o odor equal o sabor do esprito humano, oude que sal, enxofre e mercrio elecomposto; pois quereis que, como poruma espcie de operao qumica, aexemplo do vinho, ns o passemospelo alambique, a fim de saber o queentra na composio de sua essnc i a 7 3 . O que certamente digno devs, carne, e de todos aqueles que,nada concebendo seno mui confusamente, no sabem o que se deve pesquisar de cada coisa. Mas, quanto amim, jamais pensei que, para tornaruma substncia manifesta, fosse necessria outra coisa alm de descobrir-lheos diversos atributos; de sorte que,quanto mais atributos conhecemos dealguma substncia, mais perfeitamentetambm conhecemos-lhe a natureza; e,do mesmo modo, podemos distinguirmui diversos atributos na cera: um queela branca, outro que dura, outroque, de dura, torna-se lquida, etc.; domesmo modo, h tantos atributos noesprito: um que ele tem a virtude deconhecer a brancu ra da cera, outro que7 2 Cf. Meditao Segunda, 16. Gassendi: "Novejo de onde podeis inferir que se possa conhecerclaramente algo de vosso esprito, exceto que elee x i s t e . . . "7 3 Para Gassendi, a expresso "um a coisa pensante" no me faz conhecer nada do todo. "Se algumvos pedisse que lhe dsseis um conhecimento dovinho mais exato e mais pronunciado, pensareis t-lo satisfeito ao dizer que o vinho uma coisa lquida que se espreme da uva, que ora branca, orarosada, etc., mas no tentareis descobrir e manifestar o interior de sua substncia, mostrando comoessa substncia composta de ag ua rd en tes ... e demuitas partes misturadas numa justa proporo?"O conhecimento do eu estaria, portanto, na medidade uma anlise qumica; ora, trata-se do conhecimento certo de mim mesmo enquanto p ensante.

    tem a virtude de conhecer-lhe a dureza,outro que pode conhecer a modificao dessa dureza ou a liquefao, etc.,pois algum pode conhecer a durezasem por isso conhecer a brancura,como o caso de um cego de nascenae assim por diante. Donde se v claramente que no h coisa alguma de quese conheam tantos atributos quantoos de nosso esprito, pois, na medidaem que os conhecemos nas outras coisas, podemos contar tantos outros noesprito, pelo fato de que ele os conhece; e, portanto, sua natureza maisconhecida do que a de qualquer outrac o i s a 7 4 .515. Enfim, vs me argis aqui depassagem pelo fato de que, nada tendoadmitido em mim a no ser o esprito,eu fale todavia da cerca que vejo e quetoco, o que no entanto no se podefazer sem olhos ou sem mos; mas deveis haver notado que adverti expressamente que no se tratav a aqui da visoou do tato, que se fazem por intermdio dos rgos corpreos, massomente do pensamento de ver e detocar, que no necessita desses rgos,como experimentamos todas as noitesem nossos sonhos 7 5 ; e certamente vso notastes muito bem, mas quisestesapenas mostrar quantos absurdos einjustas cavilaes so capazes deinventar aqueles que no se empenhamtanto em bem conceber uma coisaquanto em impugn-la e contradiz-la.7 4 Doutrina antiescolstica e antiempirista do primado do conhecimento espiritual sobre o corporal.Cf. Regras, VII: "N ada pode ser conhecido antes dainteligncia, pois pela inteligncia que as coisasso cognoscveis e no inversamente".7 5 Mais uma vez Gassendi desconhece que se tratado pensamento enquanto ato universal que se desenrola necessariamente atravs de qualquer conhecimento, seja ou no este conhecimento garantidoobjetivamente.

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    198 D E S C A R T E Ssubstncia no tem realidade algumaque no haja tomado das ideias dosacidentes segundo os quais ou maneira dos quais ela concebida, mostraisclaramente que no tendes ideia alguma da substncia que seja distinta,pois esta no pode jamais ser concebida maneira dos acidentes, nemtomar-lhes de emprstimo sua realidade; mas, ao contrrio, os acidentes socomumente concebidos pelos filsofoscomo substncias, a saber, quando elesos concebem como reais; pois no sepode atribuir aos acidentes realidadealguma (isto , entidade alguma maisdo que modal) que no seja tomada ideia da substncia 8 1 .Enfim, onde dizeis que no formamos a ideia de Deus seno sobre aquilo que aprendemos e ouvimos dosoutros, atribuindo-lhe, a exemplodeles, as mesmas perfeies que vimosos outros atriburem-lhe, eu desejariaque tivsseis tambm acrescentado deonde , pois, que esses primeiroshomens, de quem aprendemos e ouvimos essas coisas, obtiveram essame sma ideia de De us. Pois , se a obtiveram de si mesmos, por que no poderamos ns obt-la de ns mesmos?Porque, se Deus lhas revelou, Deusexiste consequentemente.E, quando acrescentais que aqueleque chama uma coisa infinita d a umacoisa que no compreende um nomeque tampouco entende, no fazeis adistino entre a inteleco conformeao alcance de nosso esprito, tal comocada um reconhece suficientemente emsi mesmo ter do infinito, e a concepointeira e perfeita das coisa s, isto , quecompreende tudo o qu h de inteligvel nela s, que de tal ordem que ningum a teve jamais no s do infinito8 1 Acerca da definio da substncia, cf. Princpios, I, 51. Acerca da necessidade de distinguir sempre os modos na substncia e a prpria substncia,cf. Princpios, 1,64.

    como tambm talvez de qualquer outracoisa que exista no mundo, por pequena que seja; e n o verdade que conc ebemos o infinito pela negao do finito , visto que, ao contrrio, todalimitao contm em si a negao doinfinito8 2 .552. No verdade tambm que aideia que nos representa todas asperfeies que atribumos a Deus notem mais realidade objetiva do que tmas coisas finitas. Pois confessais, vsmesmo, que todas essas perfeies soampliadas por nosso esprito, a fim deque possam ser atribudas a De us; pensais, portanto, que as coisas assimampliadas no so maiores do que asque no o foram; e de onde nos podevir essa faculdade de ampliar todas asperfeies criadas, isto , de conceberalgo de maior e de mais perfeito do queelas so, se no do simples fato de quetemos em ns a ideia de uma coisamaior, a saber, do prprio Deus? E,enfim, no verdade tambm queDeus seria pouca coisa se no fossemaior do que o concebemos; pois concebemos que ele infinito e nada podehaver de maior do que o infinito. Masconfundis inteleco com imaginaoe supondes que imaginamos Deuscomo algum grande e poderoso gigante , como o faria aquele que, jamaistendo visto um elefante, o imaginassesemelhante a um ouo de altura e delargura desmesuradas, o que concordoconvosco ser muito impertinente 8 3 .8 2 Sobre a Meditao Terceira, 15. Gassendinega a positividade da ideia de infinito. Ora, paraDescartes, "esta ideia evidentemente positiva,visto ser ideia do infinito apenas porque encerra arealidade (objetiva) do infinito; pretender extra-lado finito surge ento como imediatamente absurdo,pois seria querer tirar a realidade objetiva infinitade uma realidade finita". (Guroult, op. cit., 1,190.)8 3 Como no caso dos dois sis, tudo se baseia narecusa de Gassendi de distinguir inteleco e imaginao. Por conseguinte, no pode ele ter ideia positiva do infinito. A posio de Gassendi nesteponto bastante prxima da de Kant.

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    OBJEES E RESPOSTAS 203Ih anca de D eus, dizeis que Deus tem,pois, a forma de um hom em e emseguida relacionais todas as coisas nasquais a natureza humana diferente dadivina, sois nisto mais sutil do que se,para negar que quaisquer quadros deApeles tenham sido feitos semelhana de Alexandre, disssseis queAlexandre se assemelha, portanto, aum quadro e, todavia, que os quadrosso com postos de m adeira e de cores eno de carne como Alexandre? Poisno da essncia de uma imagem serem tudo semelhante coisa de que ela imagem, mas basta que se lhe assemelhe em alguma coisa. E mui evidente que essa virtude admirvel e muiperfeita de pensar que concebemosexistir em Deus representada poraquela que existe em ns, ainda quemuito menos perfeita. E, quando preferis comparar a criao de Deus com aoperao de um arquiteto a faz-locom a gerao de um pai, vs o fazeissem nenhuma razo; pois, emboraessas trs maneiras de agir sejam totalmente diferentes, a distncia no togrande entre a produo natural e a divina quanto entre a artificial e amesma produo divina. Mas no penseis nem que digo que h a mesmarelao entre Deus e ns que a queexiste entre o pai e seus filhos; nem que verdadeiro tambm que jamais hajaqualquer relao entre o operrio e sua

    535. I. J expliquei suficientementequal a ideia que temos do nada ecomo participamos do no-ser, chamando esta ideia de negativa e dizendoque isso nada significa seno que nosomos o soberano ser e que nos faltammuitas coisas; mas vs sempre procurais dificuldades onde no as h de

    obra, como parece quando um pintorfaz um quadro que se lhe assemelha.534. Mas, com quo pouca fidelidade apresentais minhas palavrasquando fingis que eu disse que noconcebo essa semelhana que tenhocom Deus na medida em que conheoser uma coisa incompleta e dependente, visto que, ao contrrio, s disseisso para mostrar a diferena existenteentre Deus e ns, de medo que se acreditasse que eu queria igualar os homens a Deus e as criaturas ao criador!Pois , nesse mesmo lugar, disse que noconcebia somente que eu era nissomuito inferior a Deus, e que aspirava,no entanto, a essas maiores coisas queeu no possua, mas tambm que essascoisas maiores a que eu aspiravaencontravam-se em Deus atualmente ede maneira infinita, s quais no entanto encontrava em m im alguma coisa desemelhante, j que ousava de algummodo aspirar a elas.

    Enfim, quando dizeis que h motivode espantar porque todo o resto doshomens no tem os mesmos pensamentos de Deus que eu tenho, j queele imprimiu neles sua ideia do mesmomodo que em mim, como se vosespantsseis do fato de que, tendo todomundo a noo do tringulo, cada um,entretanto, no notasse a mesma quantidade de propriedades, e que haja talvez mesmo alguns que lhe atribuamfalsamente m uitas coisas.

    modo algum. E, quando dizeis queentre as obras de Deus vejo algumasque no esto inteiramente acabadas,inventais uma coisa que no escreviem parte alguma e em que jamais pensei; mas apenas disse que se certas coisas fossem consideradas, no comofazendo parte de todo este Universo,

    D A S C O I S A S Q U E F O R A M O B J E T A D A SC O N T R A A M E D I T A O Q U A R T A

  • 8/9/2019 DESCARTES. Objees e Respostas

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    204 D E S C A R T E Smas como totalidades destacadas ecoisas singulares, ento elas poderiamparecer imperfeitas. Tudo o que dizeisem seguida a respeito da causa finalpode ser relacionado causa eficiente 9 6 ; assim, do uso admirvel de cadaparte nas plantas e nos animais, etc., justo admirar a mo de Deus que asfez e conhecer e glorificar o artesopela inspeo de suas obras, mas nopara adivinhar para que fim foramcriadas todas as coisas. E, ainda queem matria de Moral, onde amidepermitido utilizar conjeturas, seja algumas vezes piedoso e til considerar ofim que Deus se props para a condutado Universo, certamente na Fsica,onde todas as coisas devem ser apoiadas em slidas razes, uma coisainteiramente ridcula. E no se podesupor que haja alguns fins mais fceisde descobrir do que outros; pois estotodos igualmente escondidos no abismo imperscrutvel de sua sabedo ria9 7 .E no deveis tambm supor que nohaja homem algum que possa compreender as outras causas; pois no hnenhuma que no seja muito mais fcilde conhecer do que aquela do fim queDeus se props na criao do Universo; e mesmo aquelas que aduzis paraservir de exemplo da dificuldade queh em conhec-las, so to notriasque h poucas pessoas que no se per-9 6 " de temer que rejeiteis o principal argumentopelo qual a sabedoria de Deus, sua potncia, providncia e at existncia podem ser provadas porrazo natural." Gassendi , assim, levado a defender o uso da finalidade em Anatomia e Fisiologiacontra o mecanicismo.9 7 "Nem todo mundo to feliz a ponto de tercomo vs, desde o nascimento, esta ideia de Deusto perfeita e to clara" que o dispense "de pesquisar qual o fim que Deus se props, ao criar todas ascoisas". O reconhecimento da necessidade da teleo-Iogia seria, assim, como que uma confisso demodstia. Para Descartes, a condenao da teleolo-gia constitui simplesmente o corolrio da Fsicamecanicista.

    suadam de bem conhec-las9 8 . Enfim,j que me perguntais to engenhosamente quais ideias considero que meuesprito teria recebido de Deus e de s