desafios para a pesquisa o campo tema movimento hiphop

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    DESAFIOS PARA A PESQUISA: O CAMPO-TEMA MOVIMENTO HIP-HOP

    CHALLENGES FOR RESEARCH: THE FIELD-THEME HIP-HOP MOVEMENT

    Jaileila de Arajo Menezes e Mnica Rodrigues Costa

    Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil

    RESUMO

    Com a reviso bibliogrca sobre metodologia de pesquisa, observamos, em geral, a ausncia de abordagenssobre o processo de abertura do campo de investigao. Recuperando nosso prprio processo, trazemos aquicontribuies sobre a aproximao de um tema de investigao, dos atores sociais em interao (pesquisadorase jovens) e dos procedimentos que (re)elaboramos, utilizamos e descartamos, para ns de garantir a viabilidadee efetividade da pesquisa, nesse tempo de encontrar o campo-tema de investigao, conviver com ele e dele sedespedir. Abordamos as contribuies das perspectivas ps-estruturalista, construcionista e etnogrca sobre oprocesso de construo do conhecimento, que tm em comum a recusa ao posicionamento transcendental dascondies de sujeito e objeto e a adoo de uma postura desreicante, desnaturalizante e desessencializadoracom relao verdade. As contribuies do artigo indicam a necessria reexo terica sobre os procedimentosmetodolgicos adotados, em consonncia com as especicidades dos atores sociais investigados.

    Palavras-chave:pesquisa qualitativa; atores sociais; movimento hip-hop.

    ABSTRACT

    Through the review of literature on research methodology, we observed the general lack of approaches about theprocess of opening the research eld. Recovering our own process, we bring contributions here on the approachto a subject of research, social actors in interaction (and young researchers) and procedures that we (re) make,use, and discard, in order to ensure the viability and effectiveness of the research, to nd the theme-eld research,live with it and say goodbye. We discuss the contributions of poststructuralist perspective, constructionist andethnographic on the process of knowledge construction which have in common the rejection of the transcendental

    position of subject and object and adopting a posture desreicante, denaturing and desessencializadora about thetruth. The contribution of the article indicates the necessary theoretical reection on the methodological proceduresin line with the specicities of social actors investigated.

    Keywords: qualitative research; social actors; hip-hop movement.

    Introduo

    O presente artigo aborda o processo de abertura docampo da pesquisa que tem como propsito investigar aao poltica, cultural e subjetiva do movimento hip-hopde uma cidade brasileira. Esse movimento social temcomo uma de suas peculiaridades a expresso artstica,que um elemento de engajamento social de jovensque, em geral, encontram-se na faixa etria de 15 a 30anos, moram na periferia da cidade, so identicadoscomo populao de baixa renda e esto em situao designicativa vulnerabilidade social.

    Como h tendncia nos debates sobre movi-mentos sociais de valorizar os ganhos materiais epolticos (formulao e implantao de polticas p-blicas, dentre outros), os quais so demarcados pela

    investigao da nalidade das lutas sociais, optamospor focalizar tambm os ganhos simblicos que omovimento hip-hop capaz de acionar na vida dosjovens, reposicionando-os socialmente, por meio deuma articulao entre as dimenses pblica e privada,

    que perpassam suas existncias.Coerentemente com essa postura investigativa

    e para ns de abranger todas essas dimenses, esta-belecemos um triplo vis: 1) subjetivo, que investigaas repercusses da cultura-movimento hip-hop noprocesso de subjetivao dos jovens como instauraode uma esttica e tica que os orienta; 2) poltico, queindaga a dimenso de conito e antagonismo que essaidentidade coletiva produz por meio da arte e de seusposicionamentos em relao realidade dos jovensparticipantes e de sua capacidade de mobilizar a comu-

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    nidade; 3) cultural, que investiga os posicionamentospoltico-culturais do hip-hop como identidade coletiva,em meio s tenses da sociedade de consumo.

    Esse trip investigativo tratado a partir dasperspectivas ps-estruturalista, construcionista e etno-grca. Para os interesses deste texto, vale uma reexosobre a construo do conhecimento e o processo de

    pesquisa inspirado por tais perspectivas, que tm emcomum a recusa ao posicionamento transcendental dascondies de sujeito e objeto e a adoo de uma posturadesreicante, desnaturalizante e desessencializadoracom relao verdade.

    A interao entre o ps-estruturalismo e o cons-trucionismo social conduziu valorizao e ao acolhi-mento de elementos no previstos, como, por exemplo,a ateno aos marcadores sociais que delimitaram o es-pao de encontro entre pesquisadoras e jovens. Ao longodeste artigo, cujo foco o processo de fazer pesquisa,empreendemos reexes considerando, em especial,

    a relao que estabelecemos com os atores sociais emquesto: jovens do movimento hip-hop da cidade pes-quisada. Vale ressaltar que adotamos o termo atoressociais inspiradas na denio de Ranci (2005) de queesse termo no indica funo neutra de informante disposio do pesquisador, mas sim de quem desenvolvepapel ativo no prprio curso da investigao.

    Recuperando nosso prprio processo, trazemoscontribuies sobre a aproximao de um tema deinvestigao, dos atores sociais em interao (pesqui-sadoras e jovens) e dos procedimentos que (re)elabo-ramos, utilizamos e descartamos, para ns de garantira viabilidade e efetividade da pesquisa, no tempo deencontrar o campo-tema de investigao, conviver comele e dele se despedir. Segue-se ento a narrativa dessesencontros e desencontros.

    Cenrios da abertura do campo

    de pesquisa

    Cena um: cultura Hip-hop, por uma nova

    linguagem poltica

    Ohip-hop surgiu nos Estados Unidos, em NovaYork, nos bairros pobres de maioria negra e latina.Sua criao misturou o dub jamaicano com o funk,soul,jazz, e transformou essas tradies em um estilomusical e em um comportamento cultural, que agrupaexpresses corporais e artsticas diversas. As ruas eramos espaos de encontro, de trocas, de demarcao deterritrios e tambm das festas, nas quais se desen-volveram asblock parties, que transformaram-se emmomentos de lazer e reexo nos quais a dana, o gratee o rap tornaram-se expresses de uma nova conscincia

    poltica (Silva, 1999, pp. 27-28). No Brasil, sua fontede desenvolvimento foram os bailes black, e, com achegada do movimento black power, a valorizao donegro ganhou novas dimenses.

    A partir da imerso no campo-tema, identica-mos a diversidade de modos de dizer sobre as origense o desenvolvimento dos elementos. Atribumos tal

    diversidade ao fato de que se trata de uma experinciasocial coletiva, com parco registro por parte dos atoresenvolvidos diretamente na cena, o que gera mltiplasverses. Em meio a essa diversidade, nossa opo foicontar a histria a partir dos traos relevantes paranossos informantes.

    Rap signica ritmo e poesia, um canto faladoque surgiu na Jamaica, por disc-jqueis (DJs) quetocam trechos de msica negra e improvisam poesias. utilizado como expresso juvenil e como protesto,especialmente a partir de seu encontro com a luta pelosdireitos civis e polticos dos negros. Esse elemento, a

    partir dos anos 1970, passou a ser tocado nas rdios, eexpandiu seu raio de atuao. Sua expanso ocorreu,sobretudo, a partir de sua apropriao pela indstriacultural, especialmente nos EUA, a qual promoveu umavertente do rap vinculada ao consumo (bens materiaise simblicos), que no se alinhou dimenso polticada segunda gerao do rap norte-americano (luta pelosdireitos civis dos negros) (Silva, 1999). Na produodo rap nacional brasileiro, encontramos diversidadediscursiva, que abrange diferentes posicionamentos, taiscomo: poltico, gospel, gangsta e comercial.

    A partir da dana de rua e nela o funk, desenvol-veram-se vrios estilos de dana popping, lockingeb. boying (Noronha, 2007) no hip-hop, o qual seconvencionou chamar break. No incio dos anos 1970,a dana agiu como alternativa de combate aos ndicesde violncia urbana e criminalidade, principalmenteentre os jovens, que frequentemente se organizavam emgangues. Analisando a situao de vida dessa juventude,Afrika Bambaataa, um dos DJs pioneiros no Bronx, pro-ps reduzir a violncia entre as gangues, que passariama resolver suas diferenas por meio da dana.

    A nfase no corpo inovou a linguagem poltica,

    assim como ampliou, pelo vis das expresses gestu-ais, as modalidades de ao poltica. manifestaoda linguagem corporal, outras vieram se agregar e dardensidade ao posicionamento poltico.

    O grate teve incio com o estilo tags, letras semarredondamentos e angulosas, que evoluram para umtipo de expresso artstica (grandes e coloridas pinturas)que utiliza os muros e paredes da cidade para dar vazoao cotidiano dos jovens, o qual marcado por insatisfa-o com as condies de vida a que esto expostos. Ograte foi largamente utilizado para demarcar territrio

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    e demonstrar a presena da gangue (Andrade, 1999) oupela emoo e adrenalina de executar algo proibido ouilegal, no caso da pichao.

    A reunio desses elementos e de seus estilos deuorigem cultura hip-hop, gria que signica mexer oquadril, que entrou no Brasil em meados dos anos 1980,sendo seu primeiro registro de 1988, em So Paulo, com

    uma coletnea intitulada Hip-hop Cultura de Rua. NoNordeste, o hip-hop iniciou-se em ns dos anos 1980,e sua losoa aos poucos foi compreendida e incorpo-rada pelos jovens urbanos e pobres, que constroem suaidentidade como um estilo cultural de rua e que expressao cotidiano das periferias.

    Outro elemento a considerar que o hip-hop temsuas origens ligadas aos grandes centros urbanos, espe-cicamente, s periferias. Nesses locais, as condiesde vida comumente so precrias, h poucos espaosdestinados ao lazer e a apresentaes culturais, e aperspectiva de futuro raramente promissora. Apesar

    dessas circunstncias, pesquisas tm indicado (Alves,2005; Duarte, 1999; Herschmann, 1997; Lodi & Jobime Souza, 2005) que os jovens das periferias encontramno hip-hop formas de se expressar, de demonstrar suasangstias e suas indignaes. A arte que eles produzemconstitui um instrumento para denunciar e contestar,opor-se e resistir aos condicionantes da desigualdadesocial expressos nas formas de vida da cidade e doacesso a ela, ao tempo em que constroem alternativas.

    Nesse caso, falamos de uma capital de um estadonordestino, a qual apresenta muitos elementos conuen-tes para o assentamento do hip-hop. Essa metrpoleconta com 94 bairros muitos constitudos a partirde ocupaes agrupados em seis regies poltico-administrativas (RPA), nas quais se situam 66 ZonasEspeciais de Interesse Social (ZEIS), que resultam deuma histria de luta pelo direito cidade. Em sntese,trata-se de uma cidade com um signicativo cinturoperifrico, local, por excelncia, de origem de muitosdos jovens integrantes desse movimento.

    Nesse cinturo perifrico, destaca-se uma popula-o predominantemente jovem, na faixa etria de 15 a30 anos, cujo ndice de mortalidade, segundo o Mapa

    da violncia IV, publicado pela Unesco (2003), temaumentado sobremaneira nos ltimos anos e revelado,no caso dessa cidade, crescimento dos bitos por causasexternas, com maior ocorrncia para os homicdios.

    As peculiaridades do campo-tema de investigaodescrito acima nos desaou a encontrar caminhos me-todolgicos que bem se anassem com os objetivos dapesquisa e simultaneamente possibilitassem uma formade aproximao progressiva e efetiva com os atores so-ciais. Para isso, optamos por articular as perspectivas doconstrucionismo, da etnograa e do ps-estruturalismo,conforme mostra a prxima cena.

    Cena dois: suportes tericos e aportes

    metodolgicos

    Nossos suportes tericos e aportes metodolgicosforam delineados a partir do campo da investigaosocial, que guarda historicamente uma estreita relaocom a pesquisa qualitativa, sendo esta entendida aquicomo um movimento reformista que surgiu no incio

    dos anos 1970, no meio acadmico. Tal movimento tevepor base os trabalhos de campo empreendidos pelasdisciplinas de Antropologia e Sociologia, que comea-ram a ter seus mtodos de registro e interpretao deinformaes aceitos em diversos campos das cinciashumanas, e pela Psicologia, em particular, sua vertentehumanista, por meio da crtica aos testes e experimen-tao de hipteses estatsticas (Schwandt, 2006).

    A investigao qualitativa ganhou contornointelectual e poltico, dada a rede de interesses que seconstituiu para sua sustentao e seu desenvolvimen-to: peridicos, associaes acadmicas, conferncias,editores, grupo de acadmicos, polticos e prossionaisenvolvidos com o feminismo, o ps-modernismo e ops-estruturalismo. Assim, melhor entendermos ainvestigao qualitativa como um terreno ou uma are-na para a crtica cientca social do que como um tipoespecco de teoria social, metodologia ou losoa(Schwandt, 2006, p.194).

    Cientes de que nossos(as) colegas investigadores(as)desenvolvem pesquisa qualitativa pelos mais diferentesmotivos, em nosso caso, a opo por ela diz respeitos possibilidades para experimentao de metodologias

    empricas e estratgias textuais inspiradas pelo pensa-mento ps-estruturalista (ou ps-marxista), construcio-nista e etnogrco.

    A articulao entre essas perspectivas terico-me-todolgicas se d pelo fato de que nosso campo-tema:tem forte apelo s expresses polticas nas relaessociais em que os jovens esto (ou no) implicados;valoriza o contexto da interanimao dialgica e oposicionamento de cada um que est envolvido pes-quisadoras e jovens no processo de fazer pesquisa;e considera os movimentos de aproximao entre osatores sociais, seus universos e o entendimento de seus

    modos de vida.O ps-estruturalismo ou ps-marxismo constituiu

    a contra-argumentao das teses bsicas do marxismo,especialmente no sentido de demonstrar o papel dapoltica nas relaes econmicas (Burity, 2008). Busca,portanto, dar visibilidade poltica e aos deslocamentosque o marxismo provoca na ordem social, por meio dasprticas articulatrias e antagonsticas das identidades,constituindo o sistema poltico possvel num determi-nado momento.

    A postura do ps-estruturalismo est pautada napositivao dos dissensos, do conito e do antagonismo

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    presentes nas prticas articulatrias que organizam econstituem as relaes sociais. Ela valoriza o podercomo objetividade social, que articula foras polticaspara instaurar hegemonias provisrias, que sempreresultam em alguma forma de excluso.

    Esses argumentos tm pontos de intercesso ouse conectam com a postura construcionista de investi-

    gao, que tem o relativismo como princpio, cultivao estranhamento de o que familiar e socialmenteinstitudo e defende o engajamento tico-poltico dainvestigao cientca, preocupado com as consequ-ncias da produo do conhecimento que se reetemno grau de compromisso com a transformao social(Spink, 2004).

    Tal perspectiva se evidencia na adoo do posicio-namento no qual conhecimento algo que as pessoas fa-zem juntas, via prticas sociais. Desse modo, no existemobjetos naturais e o conhecimento no representa a reali-dade, porque ela tomada como resultado das produes

    sociais que se institucionalizaram (Spink, 2004).O construcionismo advoga certo grau de cultura-

    lismo e ceticismo perante o que institudo em acordossociais, ou seja, que sociedade, usos e consequncias soquestes que balizam ou circunscrevem o relativismodessa perspectiva. Esse relativismo gera certa insegu-rana, que desconcertante para os que preferem carapegados tradio, porm, necessria para nos man-ter em permanente estado de alerta na tarefa de produzirconhecimento. Isso convoca a tica comprometida comos efeitos dessa produo. A tica funciona como limiteentre o relativismo e a insegurana, medida que nos fazolhar para as consequncias de nossas investigaes.

    Desse mesmo ponto de vista, podemos acionar aetnograa, uma vez que, para um trabalho deste porte, necessrio manter nveis de estranhamento acerca dacultura de determinada comunidade, balizados pela nos-sa prpria cultura. Essa orientao nos leva a questionarnossas matrizes culturais, nossa socializao e, portanto,garante uma dose de relativismo, pois admite o olharparcial e subjetivo do pesquisador (Geertz, 2005).

    Cardoso (1986) chama a ateno para o cuidadocom a ao poltica presente na pesquisa. A ideia de

    contribuio para a tomada de conscincia da situaopelo grupo precisa considerar o lugar de onde o pes-quisador fala. Desse modo, tornam-se claros os limites,interesses que atravessam o discurso do pesquisador,sugerindo o estranhamento como elemento fundamentalpara entender o outro, quando o movimento de apro-ximao ocorre.

    Ainda, Geertz (2005) nos convida a contextu-alizar socialmente os indicadores da realidade, paracompreender seus signicados, com apoio na tradu-o, que implica a reformulao de categorias, quefavorece a ultrapassagem dos limites desses contextos

    originais, a m de encontrar semelhanas e diferenascom outros contextos.

    A etnograa possibilita, sobretudo, na perspectivageertziana, o estudo interpretativo da cultura, nessecaso, em particular, permite apreender os modos deser o ethos do movimento hip-hop. Segundo Ge-ertz (2005, p. 29), o estudo interpretativo da cultura

    representa um esforo para aceitar a diversidade entreas vrias maneiras que seres humanos tm de construirsuas vidas no processo de viv-las.

    No campo acadmico, autores e correntes depensamento que defendem a diversidade (dos modosde ser, de viver, de pensar e de estar no mundo), assimcomo seus oponentes (que defendem a unidade), de-lineiam premissas metodolgicas e procedimentos depesquisa. Uma delas a etnograa do pensamento dizque aderir diversidade mais do que uma simplesposio intelectual, constitui um modo de estar nomundo, apresenta-se como uma variedade da experin-

    cia intelectual, um modo de habitar o universo. No setrata de uma simples tarefa tcnica, mas sim do trabalhocom uma estrutura cultural que dene a maior partede nossas vidas (Geertz, 2007, p. 232).

    A partir dessa exposio acerca das perspecti-vas terico-metodolgicas que utilizamos em nossainvestigao, possvel armar suas conuncias nasseguintes premissas: 1) entender os grupos humanoscomo uma rede de relaes sociais que extrapola aesfera intelectual e adentra o campo moral, polticoe afetivo; 2) entender o interesse na linguagem comoforma de compreender o viver no mundo; 3) entenderas posies de sujeito atualizadas a partir dos ritos depassagem, do pertencimento etrio-geracional, tnico-racial, credo-religioso, da condio de gnero, dentreoutros marcadores sociais.

    Considerando que o contato com o campo da pes-quisa tem incio no momento da escolha daquilo que sequer investigar, superamos a referncia de campo comrelao a um lugar determinado, circunscrito, e iniciamosuma imerso em todas as formas de discursividade exis-tentes sobre o tema (matrias de jornais, revistas, CDs,referncias bibliogrcas, dentre outros). A entrada no

    campo-tema conduziu-nos na construo dos procedi-mentos de investigao que sero agora detalhados.

    Cena trs: construindo procedimentos

    O campo de pesquisa a que nos referimos no um lugar delimitado, um espao geogrco, mas umaesfera na qual ocorrem as interaes sociais, os dilogos,a busca por aproximao.

    Campo o campo do tema, o campo-tema; no olugar onde o tema pode ser visto como se fosse umanimal no zoolgico mas so as redes de causalidadeintersubjetiva que se interconectam em vozes, lugares

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    e momentos diferentes, que no so necessariamenteconhecidos uns dos outros. No se trata de uma arenagentil onde cada um fala por vez; ao contrrio, umtumultuado conituoso de argumentos parciais, deartefatos e materialidades. (Spink, 2003, p. 36)

    Nossa interao inicial com o campo de pesquisafoi orientada por questes relativas a: 1) o perl dos

    jovens vinculados cultura hip-hop; 2) quantos e quaisgrupos existem na cidade pesquisada; 3) os lugares emque costumeiramente circulam; 4) como se formam osgrupos; e 5) que tipo de atividades e eventos organizamou deles participam.

    Essas informaes serviram de base para mapear omovimento hip-hop na cidade pesquisada, procedimen-to metodolgico adotado inicialmente para organizar esistematizar os grupos e sujeitos que nos foi possvelacessar. Usamos o termo possvel por entender quedar conta da innidade de grupos existentes na cidade uma tarefa herclea, porque eles se alastram, fundem-seou se separam com surpreendente agilidade, o que tornadifcil precisar a informao.

    O mapeamento deu visibilidade circunscriogeogrca do movimento, o que, nesse caso, em par-ticular, relevante, dada a reexo que ela possibilitaacerca do trnsito desses jovens na cidade, de suacapacidade de atrao e acerca dos tipos de grupos demaior ou menor incidncia, conforme seus elementos.

    Para realizar o mapeamento dos grupos de hip-hop, o princpio que nos guiou foi a abertura para adiversidade, em consonncia com a perspectiva constru-cionista de investigao inspirada em Potter e Wheterell(1987), que incentivam a utilizao de tcnicas quepermitem ampliar o espectro das informaes, a m deresultarem em mais troca e valorizao da conversaoinformal. Nesse caso, utilizamos quatro estratgias.

    A primeira foi localizar grupos de hip-hop nacidade, recorrendo a informantes privilegiados por suaexpresso na cena hip-hop local. Para isso, adotamoso referenciamento de informantes, ou seja, uma pessoanos indicava outra e assim sucessivamente.

    A segunda estratgia diz respeito ao cuidado coma diviso da cidade em regies poltico-administrativas

    (RPAs), para ns de contemplar, no levantamento dosgrupos, todas as suas reas (centro e periferia), pois ohip-hop se dissemina, constri diversas teias de sociabi-lidade, e as possibilidades de intercmbio entre elas soprprias do ser jovem, nas cidades contemporneas.

    Com o decorrer do processo e o progressivo con-tato com os grupos, construmos uma sistematizao dasinformaes, que se baseou em articular hip-hopper,grupo, bairro, RPA e os elementos: rap,break, grateeMC/DJ. Esse procedimento possibilitou relacionar oquantitativo, a diversidade de grupos (recorte de gneroe vinculao religiosa), a localizao de lideranas, a

    distribuio de grupos por bairro e RPAs e os elementosque agregam maior nmero de jovens.

    A terceira estratgia consistiu em acompanharas atividades desenvolvidas pelos diversos grupos,para ultrapassar os limites do quantitativo e iniciar oprocesso de aproximao propriamente dita dos atoressociais e captar sua dinmica. Essa estratgia bem ex-

    pressou nossa entrada em campo, porque possibilitouestabelecer o dilogo e dar visibilidade pesquisa emcurso junto aos jovens.

    Nesse momento, experienciamos um estranha-mento de mo dupla. Para ns, entrar nesse campo deinvestigao exigia disponibilidade para participar dasdiversas atividades em lugares e horrios inusitados,com pouca ou nenhuma informao, o que parecia umteste para nossa aceitao por parte dos jovens.

    Por outro lado, tambm causamos estranhamentono outro, sendo esse outro, em geral, jovem do sexomasculino, pobre e morador da periferia. Esse estranha-

    mento foi explicitado sob forma de advertncia, dadapor uma gura de referncia da cena hip-hop local:Vou logo dizendo que no todo mundo que vai sentar

    com vocs no, viu, porque o movimento formado

    por negros, homens, e vocs so brancas, mulheres de

    classe mdia!.A ltima estratgia para o mapeamento foi a cria-

    o de uma comunidade no Orkut culturahiphop2007, para favorecer a ampliao de nossos contatos,expandir a divulgao da pesquisa junto aos grupos eter acesso em tempo real agenda ampla dos eventos.Essa ideia tem a ver com o estatuto de grande interessee motivao que a comunicao virtual ocupa entre osjovens, independentemente de classe social.

    Conforme mencionamos, para acompanhar asatividades, utilizamos a observao e o dirio de campo,que possibilitou registrar as conversas informais e ojogo de linguagem verbal e gestual das relaes entreos atores sociais participantes. Entendemos que aorelatar, ao conversar, ao buscar mais detalhes, tambmformamos parte do campo; parte do processo e de seuseventos no tempo (Spink, 2003, p. 25).

    O fato de estarmos presentes nos eventos possibi-

    litou nossa insero na comunidade hip-hop, bem comoconhecer os ambientes por onde circulam seus sujeitose suas experincias. A observao atenta e pacientetrouxe importantes informaes a respeito da dinmicae dos modos de vida (Estrella, 2006, p. 117) de talgrupo de jovens. A atitude de observadoras favoreceuo surgimento de oportunidades para a realizao dasconversas informais.

    A informalidade da situao permitiu certo des-compromisso com linguagens ligadas a determinadassituaes sociais que circunscrevem as performancesdos atores em interao. Isso quer dizer que o in-

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    formante ca livre para usar outras narrativas, semregras formais e preestabelecidas. Nesse sentido, elepode acionar outros repertrios interpretativos, quedicilmente utilizaria numa situao de entrevista, porexemplo. Na conversa informal, possvel rompercom a circularidade dos repertrios e produzir outrossentidos (Menegon, 2004).

    Apesar das diculdades de registro que com-prometeram a composio de um dirio de campodisciplinado e rico em detalhes, avaliamos comopositivo o procedimento das conversas informais, porele proporcionar outra forma de registro, quase umamemria do cotidiano prprio do movimento hip-hop:seus gestos, seus passos, suas melodias, suas faces eestilos, necessidades e conitos. A experincia comesse tipo de registro tambm nos fez ver que vivelutiliz-lo como fonte de informao para os procedi-mentos de anlise.

    Como direcionamento mnimo para uma aborda-

    gem ao campo de investigao e de modo a qualicar oregistro no dirio de campo, desenvolvemos um roteirode observao, tomando por base os quatro elementosconstituintes do movimento. O conjunto desses pro-cedimentos para a abertura do campo de investigaonos permitiu alcanar uma compreenso inicial sobreo movimento hip-hop na cidade pesquisada.

    Os resultados preliminares da pesquisa A arte napoltica: um estudo do movimento hip-hop na cidadede Recife (Costa & Menezes, 2007)1aproximam-sedos resultados de estudos sobre juventude e movimentohip-hop que georreferenciam a concentrao dos gruposmapeados no cinturo perifrico da cidade. Acoplados aessa localizao geogrca encontramos ainda marca-dores sociais como: o pertencimento s classes menosfavorecidas economicamente, o que repercute na di-culdade de acesso a bens e servios, logo, excluso deampla circulao na cidade; vulnerabilidade violncia,tanto na condio de vtimas (violncia policial) quantoem sua autoria (entrada no mundo do crime); e dicul-dade de se manter em contexto educativo escolar.

    Com relao ao mapeamento, conseguimosobter, at sua ltima atualizao (dezembro de 2008),

    cinquenta grupos pertencentes ao movimento, comdestaque para a existncia de duas organizaes: aAssociao Metropolitana de Hip-hop e a Rede deResistncia Solidria. Ambas congregam vrios grupose possibilitam qualicar potenciais criativos, por meioda cultura hip-hop, inserindo esses grupos em espaossociais estratgicos.

    Poucos grupos so compostos apenas por mulhe-res, e h grupos com cunho religioso, principalmenteevanglico. Para muitos autores, como Weller (2005),a atuao do gnero feminino no movimento hip-hopvem se tornando bastante signicativa, embora o

    movimento hip-hop ainda tenha caractersticas hege-monicamente masculinas e, muitas vezes, at sexistase homofbicas. Sobre os grupos de hip-hopgospel,observamos o compromisso com a evangelizao, pormeio das letras de rap.

    Outro aspecto relevante observado que as ex-perincias vividas nas comunidades perifricas so a

    matria-prima para as letras do rap e para os gratesespalhados por toda a cidade. Tais comunidades tam-bm tm sido alvo da ao poltico-cultural de grandeparte das posses ou crews, que uma denominaocomumente utilizada para designar espaos nos bairrosque propiciam apoio mtuo, lugar de encontro e docompartilhar. As posses consolidaram-se no contextodo movimento hip-hop como uma espcie de famliaforjada pela qual os jovens passaram a discutir os seusprprios problemas e a promover alternativas no planoda arte (Silva, 1999, p.27).

    As posses articulam aes coletivas, voltadas

    para a ao poltica e o exerccio da cidadania, espe-cialmente junto ao segmento infanto-juvenil. Nessesespaos, seus integrantes desenvolvem, por meio doensino e da aprendizagem coletiva, contedos paraalm da educao formal, pautados em suas vivncias(Magro, 2002).

    Cena quatro: pesquisando com jovens relaes

    difceis?

    A inspirao para esta seo veio aps a leiturado texto Relaes Difceis a interao entre pesqui-

    sadores e atores sociais, escrito por Constanzo Ranci(2005) e trabalhado por ns na atividade de orientaoem grupo com as alunas de Iniciao Cientca. Logona abertura do texto h a ideia de que a relao como ator social constitui assunto inevitvel na pesquisa,por duplo motivo: de um lado parte do objeto deestudo do pesquisador e, de outro, enquanto sujeitodiscursivo, age tambm como mdium entre o pes-quisador e a realidade social mais ampla que ele estinvestigando (Ranci, 2005, p.44).

    O autor chama a ateno para o fato de que, nareexo e na prtica metodolgica tradicionais, o ator

    social geralmente visto como elemento perturbador,sobre o qual devem incidir procedimentos para o con-trole de sua inuncia. A proposta de Ranci conduza pensar a pesquisa social como jogo relacional, emque pesquisador e ator social esto implicados, dado oprocesso de pesquisa ser de natureza interativa.

    Isso no novidade para a investigao social,contudo, ao assumir essa postura, estamos mais aten-tos s intempries provocadas pelos atores sociaisna construo da problemtica da pesquisa e de seudesenvolvimento.

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    A adoo da observao participante como proce-dimento metodolgico foi o cenrio por excelncia parareduo da distncia entre pesquisador e atores sociais,pois, ao mesmo tempo em que nos fez incorporar novoselementos para a reexo, tornou-nos visveis aos atoressociais, promovendo mtua inuncia.

    Ranci chama ateno para a impossibilidade de

    submeter a relao a um controle completo e exaustivo.Com isso, estamos sujeitos no processo a incidentes eresultados imprevistos em geral, rejeitados pelos in-vestigadores , que aqui so cuidadosamente abordados,dada sua contribuio valiosa ao processo de formaodas pesquisadoras e aos destinos desta investigao.

    Alguns dos obstculos vivenciados por ns narelao com os atores sociais so aqui abordados emepisdios, e todos os nomes so ctcios, para garantiro anonimato dos jovens, em consonncia com as orien-taes ticas da pesquisa com seres humanos.

    A recusa do encontro Um dos eventos organiza-

    do por lideranas da cena hip-hop local, com o apoio daprefeitura da cidade investigada, foi a Terceira Jornadade MCs, cujo tema era Direitos da juventude. Reali-zado toda tera-feira do ms de outubro de 2007, reuniavrios MCsda cidade para uma batalha. Na batalhanal, conhecemos Bocage, um jovem j referenciadopor outros e que nos chamou ateno pelo estilo ame-ricanizado hip-hopper de se vestir (casaco de mangacomprida com capuz, cala larga e tnis). Alm disso,ele tinha um estilo agressivo de rimar e provocativopara a plateia. Por reunir esses elementos, consideramosque ele seria um bom informante, e envidamos esforospara uma conversa. No total, foram pelo menos cincotentativas frustradas, at nossa desistncia, tendo emvista sua recusa explcita a nos encontrar. A negativado jovem nos conduziu a reetir sobre algo at entoinquestionvel para as pesquisadoras: o valor e interesseda pesquisa para os atores sociais.

    Expresses da desconana: quem so essas

    Outras e o que querem de mim? A primeira personali-dade do hip-hop que procuramos nos deu uma mostrade o que teramos de enfrentar. Apesar de no contatotelefnico termos utilizado uma pessoa conhecida para

    mediar o encontro, isso no foi suciente para ameni-zar o clima de desconana e a posio defensiva. Oencontro foi marcado na praa do terminal de nibus,lugar em que tudo acontece, entrada e sada do bairro,comrcio, rudos de todos os tipos. Nossa gravao coucomprometida e vivenciamos uma distncia intrans-ponvel entre ns, at porque o hip-hopper em questodemarcou enfaticamente a diferena racial. Sobroudessa experincia o registro de quebra no processo in-terativo, o que nos fez colocar em pauta a inuncia doator social sobre as pesquisadoras, e serviu de alerta para

    as temticas correlatas que, a partir de ento, passamosa considerar, como a questo racial.

    Havia muitos becos no meio do caminho. A ter-ceira pessoa de referncia que procuramos nos colocoutambm como desao o lugar de encontro, ou seja, umdos altos que compem a cidade, marcado por ruas es-treitas, sem saneamento, onde andar pelos becos exigia

    justamente o que no tnhamos: intimidade com o lugare com seus moradores. A sensao era de estarmossendo testadas no territrio alheio. Esse no foi o nicoobstculo, pois ainda tivemos de superar a desconanado jovem, e isso s cou claro medida que a conversaavanava e tnhamos oportunidade de falar dos projetossociais com os quais estivemos e estvamos naquelemomento envolvidas. Credenciais do passado nos pro-porcionaram essa aproximao no presente.

    Academia e arroz com feijo. Com Jorge, um dospoucos jovens do movimento com terceiro grau comple-to, o desao no foi geogrco, mas sim de manejar a

    conversa de modo a considerar seu posicionamento aca-dmico, reconhecendo e explorando seu potencial crtico-reexivo com relao ao prprio movimento. A friezainicial tambm pde ser vencida ao longo da conversa,que se estendeu para um momento mais descontrado dealmoo (um novo teste de disponibilidade?).

    O que podemos esperar de vocs?Fomos infor-madas sobre um tipo de ao denominada Mutiro deGrate, que costuma ocorrer no ltimo domingo decada ms em comunidades (posses) que se dispem aorganizar o evento. Decidimos participar para ampliarnossos contatos, ao mesmo tempo em que mergulhva-mos num outro ambiente o da ao poltico-cultural.Em um dos mutires, localizamos um ator social chavepara o entendimento da ao poltica nas comunidades,um jovem empenhado em modicar a realidade de outrose que estava enfrentando diculdades bastante objetivasde manter o trabalho social da posse. Aps algumas idasao local, tal foi nossa surpresa com o tipo de demandaexposta, pois houve um claro pedido de ajuda nanceira,por meio da doao de sacos de cimento ou telhas paraa reforma da casa utilizada para as atividades. De nossaparte, coube lidar com a situao esclarecendo nossa

    condio de pesquisadoras e oferecer outros tipos deapoio, tal como colaborar na formulao de projetos paracaptao de recursos em agncias pblicas.

    O que eu quero de voc... Este episdio trata datentativa de estabelecer um grau de intimidade maisestreito, na medida de o quanto a pesquisadora posta prova esteja disposta a experimentar. J falamos dapredominncia de jovens do sexo masculino no movi-mento e do sexo feminino na conduo da pesquisa.Esse foi o cenrio para diversas situaes de assdioe convites intimidade, o que nos fez reetir sobre

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    Menezes, J. A. & Costa, M. R. Desaos para a pesquisa: o campo-tema movimento hip-hop

    relaes de gnero, que mais um dos temas corre-latos e merecedores de tratamento cuidadoso. Dado ovolume inusitado de demandas afetivas to presentes eque comumente no so objeto de reexo no campoda pesquisa cientca, as situaes geraram embarao.Como fruto dessa situao, emergiu a necessidade demanejar as demandas afetivas, que podem se congurar

    como moeda de troca de informaes.Anal, do que podemos nos prevenir em pes-

    quisa? O principal aprendizado que s conhecemoso caminho, caminhando, e as solues aos obstculosso to imprevistas quanto eles. O cuidado possvel da ordem da manuteno do jogo relacional, ou seja,criar um sistema de relaes no qual ambos os sujeitosatuem num jogo de acordo-diferenciao, em relaocom o outro e no qual ambos utilizam estrategicamentesuas diferenas de identidade (Ranci, 2005, p.62).

    Consideraes fnais

    A ao de abertura do campo de pesquisa reper-cutiu positivamente em nossa postura investigativa, quese sintonizou com o movimento hip-hop. Acreditamosque conseguimos superar os extremos controle oudefesa das posies geralmente assumidas pelos(as)pesquisadores(as).

    O fato de termos construdo uma propostainterdisciplinar de pesquisa, mais pautada em umagrande rea de investigao do que propriamente nasespecicidades individualmente confortveis do saber

    psicolgico ou do campo do Servio Social, colaboroupara o manejo dos encontros e desencontros, obstculos,superaes e negociaes coletivas.

    Retomando o objetivo do texto de reetir sobreo processo de fazer pesquisa, especialmente sobre aabertura do campo-tema de investigao, ca para nsque todos os contornos terico-metodolgicos foramconstrudos em funo da especicidade dos atoressociais em tela. A juventude hip-hop da cidade pesqui-sada, que ocupa o cinturo perifrico, vive em meio amltiplas limitaes de suas possibilidades no agora,elabora projetos de vida em que o prprio hip-hop gura

    como um futuro melhor e experimenta diversas tensesno campo das relaes sociais.

    Fizemos, sobretudo, esforo por entender aspossibilidades de ser jovem na contemporaneidade,favorecer o encontro entre semelhantes e diferentese, nos cenrios abertos (quatro cenas), aprender a, empesquisa, transformar os desaos e riscos em oportu-nidades de aprendizagem.

    Ler, observar, conversar, mapear e acompanhar,presencial ou virtualmente, foram procedimentos adota-dos durante o processo de aproximao do campo-tema,o que nos permitiu acesso ao ethos desses jovens e o

    acolhimento de temas transversais (gnero, etnia- raa,pobreza etc.), que foram emergindo nas relaes di-fceis com eles.

    Compreendemos serem quase naturais as atitudesreativas de desconana e recusa na relao com aspesquisadoras, uma vez que esses jovens encontram-senuma posio de desigualdade social e so marcados,

    em suas histrias, por diversas situaes de preconceitoe discriminao.

    Sobre as implicaes ticas da pesquisa, chama-nos a ateno a preocupao com prever os riscose benefcios da investigao para os atores sociais.Invertendo essa lgica, propomos reetir sobre riscose benefcios do ponto de vista do prprio investigador,destacando toda a riqueza que a proximidade propor-cionou e a necessidade de manejo, no necessariamentedos riscos, mas dos aspectos delicados (busca por esta-belecer maior intimidade) que emergiram entre homense mulheres no contexto da pesquisa.

    H, nessas circunstncias, algo que comumentemantemos no mbito privado, sem considerar o quantoele mobiliza afetivamente os pesquisadores e repercute noprocesso de pesquisa, em termos de estratgias, procedi-mentos e alternativas para se manter no jogo relacional.

    Para alm das repercusses oriundas das relaesentre atores sociais, outro tipo de jogo relacional nosdesaa no contexto da produo acadmica e, por essemotivo, no poderamos deixar de abord-lo: a auto-ria coletiva. Na tradio literria, o autor valorizadoconforme sua capacidade de produzir um estilo e serimediatamente identicado por ele, que um modo deenunciar as coisas um vocabulrio, uma retrica, umpadro de argumentao que esteja de tal maneira ligadoa essa identidade que parea provir dela, assim como umcomentrio provm de uma mente (Geertz, 2005, p. 20).

    Nesse caso, o desao primordial foi sair do campodo hiperautoral, para poder falar em nome de duas, vi-vendo o desao da complexidade das negociaes entreo eu e o outro, o que nos levou ao campo da produo eautoria coletivas. Emerge, portanto, em nossos textos,um modo de enunciar interativo e relacional, que resultaem um novo padro argumentativo.

    Esse padro argumentativo coletivo, embora sejaformalmente incentivado pelas agncias nanciado-ras de pesquisa, no consegue ser objetivado, dada apermanncia do modelo autoral clssico. Em termosprticos, os instrumentos de reconhecimento da autoria(formulrios para submisso de projetos de pesquisa,currculo Lattes com hierarquia de autor e coautor epublicaes cientcas que seguem essa mesma dife-renciao autoral) ainda privilegiam o individual, emdetrimento de um processo marcado pela coproduoe corresponsabilidade, em que qualquer das duas pes-quisadoras capaz de assinar a obra.

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    Vigora a lgica distintiva, que parece funcionarbem em alguns campos da produo do conhecimento,mas que se mostra insuciente para o tipo de reexodialgica no campo das cincias humanas. De nossaparte, isso signica um enorme desao, objeto de re-exo no grupo de estudos e pesquisas que integramos,composto por diversas vozes discursivas (Psicologia,

    Servio Social e Histria), empenhadas na produointerdisciplinarmente orientada.

    Nota

    1 Costa, M. R. & Menezes, J. A.A arte na poltica: um estudodo movimento hip hop da cidade do Recife . Projeto de pes-quisa, UFPE, 2007-2008.

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    Recebido em: 24/04/2009Reviso em: 05/03/2010Aceite nal em: 28/03/2010

    Jaileila de Arajo Menezes Doutora pelo Instituto dePsicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Professora adjunta I na UFPE onde desenvolve atividadesnos Departamentos de Psicologia dos Centros de Educao

    (Graduao) e Filosoa e Cincias Humanas (Mestrado).Endereo: Rua Paraguassu, 62, apt. 102/A. Zumbi da Torre.

    Recife/PE, Brasil. CEP 50.711-020.Email: [email protected]

    Mnica Rodrigues Costa Doutora pela UniversidadeFederal de Pernambuco. Professora Adjunta I na UFPE ondedesenvolve atividades no Departamento de Servio Social no

    Centro de Cincias Sociais Aplicadas. Endereo: Rua PedraFina, 40, Iputinga, Recife/PE, Brasil. CEP 50.670-520.

    Email: [email protected]

    Como citar:

    Menezes, J. A. & Costa, M. R. (2010). Desaos para apesquisa: o campo-tema movimento hip-hop.Psicologia& Sociedade, 22(3), 457-465.