depressão e envelhecimento na contemporaneidade

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Depressão e Envelhecimento na contemporaneidade Delia Catullo Goldfarb Natália Alves Barbieri Maria Elvira M. Gotter Maíra Humberto Peixeiro RESUMO: O presente texto reproduz os trabalhos apresentados em mesa redonda sobre depressão e envelhecimento na contemporaneidade no III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia, realizado em novembro de 2010 em São Paulo. Estes trabalhos são resultado de reflexões precedentes em um grupo de estudos e de discussão de casos clínicos composto por psicanalistas. A depressão é uma figura psicopatológica de presença maciça nos dias de hoje. Na velhice o acúmulo de perdas e a aproximação da morte podem produzir um estado de tristeza, fundo depressivo que caracteriza um momento de recolhimento em que ocorrem os processos de luto. Em alguns sujeitos o que se verifica é a instalação de um episódio depressivo que indica a paralisação destes processos elaborativos e a progressão de um esvaziamento do sentido para a vida, restando, neste contexto, apenas a espera pela morte. Neste trabalho serão discutidos aspectos que concernem a vivência destas duas modalidades de enfrentamento da entrada na velhice, levando-se em conta as maneiras como a cultura pode favorecer a ocorrência destes percursos distintos do envelhecer, e como ela os aloja atualmente em um movimento de desconsideração da subjetividade: desanimo da velhice ou problema neuroquímico? Serão apresentadas hipóteses para a produção da depressão como psicopatologia no envelhecimento e reflexões sobre observações clínicas que derivam destes quadros clínicos, tais como: a crise da percepção da entrada na velhice, o corpo hipocondríaco, a paralisia do tempo, a vivência do desamparo. Palavras-chave: depressão, envelhecimento, cultura, corpo, tempo ABSTRACT: This text reproduces the works presented at a ”discussion table” about depression and aging in contemporanity in the “III Congresso Ibero-americano de Psicogerontologia”, realized on November 2010, in São Paulo. These pieces of work are 54

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Depressão e Envelhecimento Na Contemporaneidade

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  • Depresso e Envelhecimento na contemporaneidade Delia Catullo Goldfarb Natlia Alves Barbieri

    Maria Elvira M. Gotter Mara Humberto Peixeiro

    RESUMO: O presente texto reproduz os trabalhos apresentados em mesa redonda sobre

    depresso e envelhecimento na contemporaneidade no III Congresso Ibero-americano de

    Psicogerontologia, realizado em novembro de 2010 em So Paulo. Estes trabalhos so

    resultado de reflexes precedentes em um grupo de estudos e de discusso de casos clnicos

    composto por psicanalistas. A depresso uma figura psicopatolgica de presena macia

    nos dias de hoje. Na velhice o acmulo de perdas e a aproximao da morte podem

    produzir um estado de tristeza, fundo depressivo que caracteriza um momento de

    recolhimento em que ocorrem os processos de luto. Em alguns sujeitos o que se verifica a

    instalao de um episdio depressivo que indica a paralisao destes processos elaborativos

    e a progresso de um esvaziamento do sentido para a vida, restando, neste contexto, apenas

    a espera pela morte. Neste trabalho sero discutidos aspectos que concernem a vivncia

    destas duas modalidades de enfrentamento da entrada na velhice, levando-se em conta as

    maneiras como a cultura pode favorecer a ocorrncia destes percursos distintos do

    envelhecer, e como ela os aloja atualmente em um movimento de desconsiderao da

    subjetividade: desanimo da velhice ou problema neuroqumico? Sero apresentadas

    hipteses para a produo da depresso como psicopatologia no envelhecimento e reflexes

    sobre observaes clnicas que derivam destes quadros clnicos, tais como: a crise da

    percepo da entrada na velhice, o corpo hipocondraco, a paralisia do tempo, a vivncia do

    desamparo.

    Palavras-chave: depresso, envelhecimento, cultura, corpo, tempo

    ABSTRACT: This text reproduces the works presented at a discussion table about

    depression and aging in contemporanity in the III Congresso Ibero-americano de

    Psicogerontologia, realized on November 2010, in So Paulo. These pieces of work are

    54

  • results of precedents debates in a study and clinic discussion group, composed by

    psychoanalysts. Nowadays the depression has an intensive presence as a

    psychopatologique figure. In old age, the accumulation of losses and the proximity of death

    can produce a state of sadness; a depressive found that characterizes a moment of retiring

    when the mourning process occurs. At some people, we can verify the installation of

    depressive episodes that indicates the paralyzation of this elaboration process and the

    progression of an emptiness of lifes sense, being left, in this context, only the death

    expectation. In this text, aspects related to these two modalities of confronting the entrance

    in old age will be discussed, considering the ways how culture can collaborate with the

    occurrence of these two distinct trajectories of oldness, and how culture lodges it in these

    days, in a movement of desconsideration of subjectivity: discouragement of old age or

    neurochemical problem. Hypotheses for the production of depression as a psychopathology

    at oldness and reflections over clinic observations from these kinds of cases will be

    presented, such as: crisis of entrance in old age perception; the hypocondriaque body, the

    paralyzation of time, helpless.

    Keywords: depression, oldness, culture, body, time

    Introduo por Delia Catullo Goldfarb

    Nos dois congressos Ibero-americano de Psicogerontologia, realizados em Buenos

    Aires (2005) e Montevidu (2007), nos chamou a ateno os poucos trabalhos apresentados

    sobre depresso. Este um dado curioso, j que na clnica psicogerontolgica este um dos

    quadros que se apresenta com maior freqncia.

    Comeamos a nos perguntar: que depresso essa? Ainda existe depresso moda

    antiga ou ela no mais identificada como tal? Conversando sobre isso em uma reunio da

    Ger-Aes (Centro de Pesquisas e Aes em Gerontologia) decidimos fazer superviso de

    nossos casos clnicos de idosos com depresso, juntamente com estudos tericos sobre o

    tema. Assim surgiu o grupo de pesquisa sobre depresso, dentro do qual decidimos trazer

    aqui nossas primeiras concluses na esperana de que em 2011, no IV Congresso Ibero-

    americano de Psicogerontologia em Havana, Cuba, detenhamos outras contribuies

    Quando a OMS relata que 120 milhes de pessoas sofrem de depresso, nos

    perguntamos se este dado se refere mesmo depresso. Esta pergunta nos levou a outra: o

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  • que depresso nos nossos dias quando muitas crianas so diagnosticadas com depresso

    e so medicadas por isso? Haveria uma confuso sobre o diagnstico? Estaramos

    medicalizando e patologizando a tristeza?

    Um de nossos guias e primeiras leituras foram os trabalhos de Luis Hornstein (2002,

    2006), que situa a questo da depresso nos tempos atuais, na ps-modernidade,

    especialmente como uma questo complexa, multicausal que exige solues cada vez mais

    multidimensionais. Ele diz que uma pessoa deprimida apresenta perda de energia,

    sentimentos de culpa, mudanas em atividades vegetativas como o sonho ou a alimentao,

    mas fundamentalmente apresenta uma viso pessimista do mundo e de si mesmo a ponto de

    se considerar a encarnao do fracasso.

    Hornstein (2006) diz que o deprimido um agoniado em busca de estmulo e

    expressa esse peso, essa agonia, de diversas maneiras: na temporalidade (no tenho

    futuro); na motivao (no tenho foras) e no valor (no valho nada). O impressionante

    disto notarmos que as duas primeiras frases so exatamente aquelas que caracterizam o

    discurso de idosos, mesmo entre aqueles no to deprimidos. Por outro lado quando algum

    fala: No valho nada e acredita realmente nisso, est se referindo perda do Eu que

    caracteriza os estados depressivos.

    Na clnica vemos que h diferentes graus ou modalidades de se dizer a mesma coisa,

    e a estamos diante da questo das intensidades que Freud trabalhou to bem. Sustento a

    existncia de um fundo depressivo no envelhecimento que tem a ver com a realidade, mas

    que pode no se constituir em depresso entendida como patologia, se os diversos fatores

    em jogo no comparecerem com suficiente fora e quantidade para constituir este quadro.

    Dentro de um critrio de realidade, a conscincia da finitude marca que realmente

    existe pouco futuro pela frente, a maior parte da vida j foi vivida e o que resta pode ser

    muito bom, mas sempre ser pouco. O cansao pode realmente tomar conta da existncia,

    h um declnio corporal e com ele uma necessidade de muito investimento no bem estar

    fsico. H um maior cansao ante a maioria dos estmulos da vida, uma fragilidade que no

    necessariamente se transforma em doena, mas junto a isso h uma perda do valor social.

    Evidentemente que aos 30 anos tambm se pode viver uma situao de

    vulnerabilidade, mas sempre est presente uma possibilidade de futuro, j para o velho o

    futuro encurtado no uma possibilidade e sim uma certeza. Aos 85 ou 90 anos o tempo

    56

  • que resta pode ser muito bom, mas ser curto. Exatamente por isso, o velho deve fazer um

    luto antecipado pela prpria vida que ainda possui, mas que sabe condenada. Este um dos

    lutos de mais difcil elaborao porque no existe um depois, mas mesmo assim no um

    luto impossvel. Neste sentido, as religies ajudam dando essa esperana de futuro para

    uma vida melhor.

    Na depresso uma perda de objeto se transforma em uma perda do eu, e o eu poder

    enfrentar o futuro quando tiver projetos valorizados e aceitos socialmente. Mas se a

    valorizao social uma razo necessria ela no em si suficiente. A valorizao social o

    mnimo necessrio. Se ideal de algum alto demais, jamais haver absolutamente nada

    que favorea uma elaborao, pois os objetos no sero considerados substituveis, e a

    sublimao, portanto, ser impossvel. Por outro lado, a cultura contribui com a formao

    dos ideais, ajudando ou no a fazer todo um processo secundrio que permite a elaborao

    das perdas e a garantia de subsistncia do eu.

    Pergunto-me at onde o eu pode agentar fazer projetos de futuro se no h futuro?

    At onde pode confiar que quando enfraquecido e doente pode ser cuidado por uma cultura

    que no s no o valoriza quanto o submete a atos de verdadeira marginalizao, quando

    no de terror econmico como algumas aposentadorias?

    Embora esta seja uma mesa de gerontlogas e psicanalistas, queremos ressaltar o

    fato da complexidade que envolve a depresso, que pode resultar de algum fator ocorrido

    na histria infantil que se v reativada por um acontecimento atual, onde um sistema de

    valores culturais determinante como a bioqumica. Neste sentido, sabemos que os

    recursos bioqumicos podem aliviar os sintomas depressivos, mas sabemos tambm que

    no vo solucionar a histria infantil nem os fatores negativos da realidade atual.

    Concordamos com Luis Hornstein, que a ideologia reducionista que serve para desacreditar

    nas questes subjetivas como motivadoras do sofrimento humano.

    Na sociedade ps-moderna, ningum mais morre de amor (isso era prprio do

    romantismo) e ningum mais pode sofrer quando abandonado. A exigncia como diz a

    cano de Paulo Vanzolini: Um homem de moral no fica no cho, nem quer que mulher

    venha lhe dar a mo, reconhece a queda e no desanima, levanta e sacode a poeira e d a

    volta por cima. O sofrimento nesta sociedade no estaria to ligada ao abandono, pobreza,

    violncia, desemprego, terror de estado, crises econmicas, mas a um determinado tipo de

    57

  • estrutura molecular biolgica. O trabalho interdisciplinar, respeitando as idiossincrasias e

    especificaes de cada abordagem, mais do que um desejo deveria ser uma obrigao.

    Para terminar e antes de abrir para os trabalhos das minhas colegas, reproduzo aqui

    um pargrafo de Luis Hornstein (2006):

    Ni en el cuerpo, ni en la mente hay dos personas que padezcan lo mismo.

    En el caso de la depresin cada individuo es nico como los copos de

    nieve. Cada depresin, si bien comparte con las otras ciertos ejes,

    manifiesta una complejidad imposible de cercenar. Y uno quiere acotar el

    campo, por las buenas o por las malas. Las clasificaciones psiquitricas

    tranquilizan: bipolar/unipolar; grave/leve; exgena/ endgena;

    breve/prolongada. El listado puede ser, y de hecho ha sido extendido de

    manera interminable, proceso cuya utilidad ha sido limitada para el

    tratamiento. Querer describir el padecimiento depresivo de manera

    unvoca nos condena a reducir la vivencia individual a un ncleo de

    sntomas supuestamente invariantes. El profesional esta angustiado y

    fuerza una univocidad o una bivocidad que el padecimiento depresivo no

    suele tener. Suponer que la depresin no es ms que algo qumico es

    como suponer que el talento o la criminalidad son exclusivamente

    qumicos. Estoy deprimido, pero no es ms que algo qumico es una

    frase equivalente a Soy un asesino, pero no es ms que algo qumico, o

    Soy inteligente, pero no es ms que algo qumico. Me conmueven las

    sonatas de Mozart, pero no es mas que algo qumico. Todo en una

    persona es meramente algo qumico, si se quiere pensar en esos trminos.

    El sol brilla, lo cual tambin es meramente qumico, as como es algo

    qumico que las rocas sean duras o que el mar sea salado (p.16, 2006).

    A escuta da depresso no envelhecimento por Natlia Alves Barbieri

    A depresso algo que vislumbramos constantemente na clnica e curioso como

    no se costuma falar da mesma quando se trata do envelhecimento nem mesmo na

    gerontologia ou na geriatria. Mais do isso, a depresso no s NO falada, como tambm

    sequer identificada como algo a ser tratada.

    58

  • Em meu trabalho como idosos em situao de fragilidade, temos observado como

    certas patologias so consideradas normais na velhice o normal entendido como

    algo intrnseco ao contexto do envelhecimento e justamente por este motivo no desperta

    nem nos profissionais nem nos cuidadores a disponibilidade para encamparem algum

    tratamento. Um idoso quieto, com sono ou triste considerado dentro da normalidade,

    independente de como esta pessoa costumava ser em outro momento da vida. comum

    ouvir por parte dos profissionais e de alguns familiares algumas frases como a seguinte:

    Ele no est deprimido, quando se fica velho a gente fica mais triste, no tem o que fazer,

    normal... assim mesmo.

    curioso como estas patologias no so encaradas como passveis de cura ou

    tratamento mesmo sendo estas possveis e recomendadas. A tese defendida por Goldfarb

    (2004) a de que a depresso no tratada na velhice pode encaminhar para um quadro

    demencial, argumento que em si justificaria uma necessidade de interveno. O discurso

    biomdico, que informa todas as outras reas da sade, inclusive a gerontologia, de alguma

    forma contribuiu para que a velhice fosse sendo construda como doena. No entanto, ao

    contrrio do que se podia esperar, percebemos que algumas doenas na velhice no so

    tratadas como doena (como a depresso e a incontinncia urinria). Por que ser que isso

    acontece? Uma das hipteses que podemos levantar, entende que a medicina (e outras reas

    da sade) abriu mo da velhice fragilizada e/ou mal-sucedida por esta expor a sua

    impossibilidade de interveno teraputica. A velhice representando a mortalidade do

    humano seria considerada o calcanhar de Aquiles da medicina. A partir da psicanlise,

    nossa referncia de trabalho, partimos da considerao que nem velhice nem

    envelhecimento so doenas, mesmo que imponha uma maior fragilidade, e que o

    envelhecimento um processo no linear que ocorre durante toda a vida.

    Em algum momento deste processo vital, o sujeito se percebe velho ou envelhecido.

    Isto implica em dizer que o envelhecimento no a mesma coisa que a velhice. Neste

    sentido, a definio cronolgica que marca a entrada na velhice, como a da OMS e da

    legislao brasileira, tm fins apenas para conveno social, no conseguindo abarcar a

    subjetividade individual ou mesmo grupal.

    Isto fica claro quando perguntarmos para as pessoas quando elas ficam velhas: cada

    um falar alguma coisa. O tempo kairtico o nome que damos ao tempo vivido

    59

  • internamente e que vivido diferentemente para cada um de ns diz do modo como

    lidamos com a temporalidade e marcar com sua singularidade o modo como cada um ir

    lidar com o seu processo de envelhecimento. E exatamente na articulao do tempo

    kairtico com o tempo cronolgico que se d a percepo da velhice.

    Alguns psicanalistas consideram a entrada na velhice como um momento marcado

    por algum acontecimento, alguma perda importante para o sujeito que evidenciaria sem

    nenhuma dvida a proximidade da finitude. Este aspecto extremamente relevante: no

    jovem a morte aparece como risco e na velhice aparece como certeza. Algumas perdas

    podem ser importantes, mas nem sempre desencadeiam um processo de crise onde se

    inviabiliza os projetos de futuro.

    Esta rdua experincia costuma ser sinalizada por algum acontecimento no corpo

    (uma doena, uma dificuldade antes inexistente), por algum comentrio sobre a velhice que

    no vemos em ns, por alguma perda importante (a morte de algum ente querido, o fim de

    um trabalho, uma separao amorosa) ou ainda pela mudana de papel exercido na famlia.

    Seguindo este raciocnio, a velhice apareceria quando os ganhos passam a superar as

    perdas e quando alguma perda especfica evidencia a proximidade com a finitude (Messy,

    1992). Podemos chamar este momento tambm como CRISE. Ou envelhescncia, como

    chamou Berlinck (2000) para este momento de reviso, extremamente necessria, das

    possibilidades reais de projetos neste momento da vida.

    Por crise podemos entender vrias sentidos: perturbao, limpeza, desembaraar,

    purificar, depurar o que vale ou no, separao, ruptura, deciso, juzo, descontinuidade,

    algo que acontece repentina e abruptamente, estado de dvida, tenso, conflito, dficit,

    falta. Ns, latino-americanos, parecemos viver na poltica, na economia e nas relaes

    sociais uma situao de crise eterna...

    Diante de todos estes sentidos, definirei crise como um momento de desorganizao

    que impe necessariamente uma nova situao para o sujeito, tornando impossvel retornar

    ao que se era antes. Isto o mesmo que Canguilhem (2007) diz sobre a doena: no se volta

    a um estado anterior, a doena impe um desequilbrio entre o organismo e o meio, e a

    superao desta situao cria uma nova relao e nunca a mesma que existia antes. H uma

    mudana de uma ordem para outra.

    60

  • A crise, portanto, implica num RISCO SUBJETIVO, podendo significar para a

    pessoa: OPORTUNIDADE ou ESTAGNAO. Oportunidade de rever e readaptar

    projetos diante da nova condio que se estabelece. Estagnao porque pode gerar uma

    perturbao, um desequilbrio tal que a pessoa no consegue mais se reorganizar. Como se

    dispor diante da crise? Como lidar ou enfrentar crises?

    Podemos dizer que esta crise pode ser vivida na velhice na forma da depresso; ou

    que a depresso pode ser encarada como uma crise que o sujeito se encontra diante da

    perspectiva da finitude, onde se torna imperativo refazer as perspectivas diante da nova

    situao que se instaura. Depresso, que, se acompanhada pode trazer novas perspectivas

    para o sujeito que poder realizar o luto da perda daquilo que se era ou se tinha

    principalmente o luto da pretenso de achar que podemos fazer tudo e seguir em frente

    diante das novas possibilidades.

    Freud (1915) escreveu um texto chamado Luto e melancolia, onde tentou

    diferenciar o luto normal diante de uma perda de algum, de uma pessoa, de um projeto

    de uma perda impossvel de ser elaborada porque o sujeito tem sua vida comprometida por

    um jeito de lidar com as coisas que dificulta a elaborao. Para Freud o luto normal seria o

    mesmo que a depresso, j o luto patolgico seria a melancolia, que estaria ligada

    constituio do sujeito, a um modo dele lidar com as coisas. A melancolia estaria

    relacionada estruturao do eu, uma neurose narcsica localizada entre a psicose e a

    neurose.

    J a depresso constitutiva do psiquismo e caracteriza o ser humano. O tempo todo

    estamos fazemos lutos inconscientes por coisas que perdemos, mesmo que no

    identifiquemos este processo, como por exemplo, quando terminamos de ler um livro que

    estamos entretidos e no queremos que aquela sensao acabe.

    A depresso uma forma do humano se proteger (se recolhendo) do contato com a

    realidade quando esta frustrante e ameaadora (e ela sempre frustrante em diversas

    situaes). um momento onde o humano se afasta de sua relao com a realidade em

    busca de condies para suport-la. um momento de reorganizao para um posterior

    retorno e enfrentamento da nova situao (Berlinck, 2000b). A depresso, sobre este ponto

    de vista, extremamente importante para a manuteno da vida.

    61

  • Se pensarmos que a exigncia do mundo contemporneo a atividade, a eficincia,

    o pragmatismo, a produo, o consumo, a boa aparncia, a juventude como modelo, um

    tempo sem rituais, podemos entender um pouco porque a depresso assume este lugar de

    epidemia. Na verdade o que se espera com estas exigncias que no haja espao para se

    deprimir, mas justamente a depresso que mais aparece (Berlinck, 2000b). No

    envelhecimento esta situao ainda mais impactante.

    O discurso social diz: proibido sofrer; proibido envelhecer, e principalmente:

    proibido sofrer por envelhecer. O processo de envelhecimento em si j algo solitrio. Em

    nosso pas isto se amplia, pois ainda so restritos os lugares de pertinncia velhice. No

    h lugares nem espaos coletivos para se compartilhar com o outro o que se vive.

    A grande dificuldade do luto que necessariamente temos que nos deparar com o

    sofrimento, pois estar vivo significa estar sujeito s frustraes, a perder, a fracassar, a

    desiluso, mas tambm a encontrar, esperanar e conviver e ganhar. O sofrimento s no

    pode ser algo insuportvel, de forma a impossibilitar a elaborao. Para ter luto preciso

    ter tempo para transformar a dor da perda em lembranas que podem fazer parte da histria.

    Aceitar o luto aceitar a perda e toda a perda remete sempre morte.

    A impossibilidade de fazer este luto, de reconhecer a perda, faz com que o sujeito

    permanea no vazio. E isso pode encaminhar o sujeito para um desligamento, para um

    desinvestimento das coisas, das pessoas e de si mesmo (Goldfarb, 2004). desligar-se para

    no PERDER a vida e isto pode encaminhar-se para um processo de demncia. Demncia

    aqui entendida como ausncia ou impossibilidade do trabalho de luto.

    Frei Tito, um frei dominicano que foi preso e torturado ao participar do movimento

    estudantil na poca da ditadura no Brasil, tambm retratado no livro e filme do Frei Betto

    (Batismo de sangue), depois de solto e exilado na Frana, comeou a relatar perseguies

    do Sr. Fleury, o coordenador das torturas que sofreu. Ficar longe de seu pas no era

    entendido por ele como uma forma de proteo; estar longe era o equivalente a abandonar o

    barco. Alguns dias depois de ser encontrado enforcado no parque do convento, Tito

    escreveu: prefervel morrer que perder a vida.

    Penso que na demncia ocorre justamente um movimento contrrio, como se

    dissesse: prefervel perder a vida a morrer. Parece que o luto pela perda da vida no

    62

  • pode ocorrer e a pessoa se envereda numa vida sem vida, sem memria, sem passado, sem

    futuro e sem sentido.

    Para Frei Tito, o sentido de viver s existia se a vida pudesse ser vivida plenamente

    o que tinha se tornado impossvel pela ditadura. Obviamente nem todos que foram

    torturados enlouqueceram, apesar de carregarem consigo diversas e srias seqelas pelo

    resto da vida. Na demncia h um desligar-se diante da impossibilidade de futuro e de

    projetos. Isto evidente nas instituies asilares para idosos: nestes lugares observamos

    uma rpida perda de lucidez entre aqueles que entram lcidos e com a expectativa de

    continuarem mantendo sua autonomia na instituio (grande parte de moradores destas

    instituies escolhem esta opo porque no querem dar trabalho para os filhos ou porque

    no querem viver mais isoladamente). Uma parcela grande entra em processo demencial e

    acredito que isto acontea principalmente pela: falta de perspectiva de vida e de futuro nas

    instituies, o no lidar e falar sobre as mortes dos outros moradores, a rotina medicalizante

    e o processo de hospitalizao da moradia (Barbieri, 2008).

    O maior trabalho na velhice, portanto, o do luto antecipado de um objeto ainda

    no perdido a prpria vida (Goldfarb, 2004). Luto nem sempre possvel diante da perda

    do objeto real e tambm do ideal e das perdas das perspectivas de futuro que so colocadas.

    Mas o desejo de sobreviver que sustenta este trabalho. E no trabalho analtico, a idia

    sustentar para o sujeito a pergunta sobre que futuro possvel naquele momento. A

    sustentao da pergunta supe que existe ali um sujeito desejante.

    H, portanto, muito trabalho envolvido neste processo: manuteno da prpria

    identidade; medo da fragmentao frente ao envelhecimento do corpo; sustentar a prpria

    integridade diante do esfacelamento da rede social; flexibilidade frente s mudanas do

    envelhecer ou deixar de ser.

    Na clnica, poder reconhecer as perdas na velhice validar que o sujeito existe. Em

    geral costumamos amenizar todas as perdas: no pensa nisso no, vamos mudar de

    assunto, o que isso? Voc est to nova ainda, bola pra frente. Acontece que, se h

    uma perda h um processo natural de luto que precisa ser feito. E neste processo de luto,

    durante certo perodo o mundo se torna pobre e vazio, at que o sujeito incorpora para si

    parte daquilo que perdeu e se abre para se relacionar com o mundo novamente (Freud,

    1915).

    63

  • Em muitos casos encontramos idosos com depresso, mas achamos que isso

    NORMAL, onde no se h nada o que fazer. Tambm achamos normal que o idoso tenha

    incontinncia urinria, que durma muito, que repita sempre a mesma coisa, e que deixe de

    sair de casa para fazer as atividades que fazia antes. A interveno que no coloca o idoso

    no lugar de dependente, mas, ao contrrio, possibilita a escuta do desejo, do medo da morte,

    da dependncia, das perdas, o que pode tornar possvel este trabalho de luto

    extremamente necessrio.

    A sabedoria ou a velhice saudvel no necessariamente o envelhecimento ativo,

    to defendido pelos especialistas da geriatria e da gerontologia, ou o acmulo de

    experincias, mas sim a possibilidade de ser flexvel diante das questes e mudanas

    impostas pela vida. Ou como diria Canguilhem sobre a sade: conseguir se adaptar (ter

    plasticidade) diante das novas situaes impostas.

    Para haver perspectiva de futuro necessrio que o passado encontre novos

    significados, de tal forma que este processo no se d solitariamente, mas exige a presena

    do outro como interlocutor daquilo que se vive. Numa sociedade que tende a ignorar o

    envelhecimento, valid-lo significa legitimar a existncia do sujeito que briga para se

    manter sujeito mesmo na velhice.

    A manifestao de episdios depressivos na velhice: O corpo, as ideias hipocondracas

    e o desamparo por Maria Elvira Gotter

    Esta reflexo fruto da observao e da escuta diferenciada na clnica de pacientes

    idosos que demandam atendimento psicolgico por questes relacionadas perda de

    desejo, perda de ao, desalento, vazio existencial, tristeza, sentimento de solido, dentre

    outras. Porm, pude constatar que, no obstante a existncia de uma inibio corporal,

    relacional e psquica, no todos os pacientes se encontravam com depresso, mas sim em

    processo de luto e procuraram a terapia para elaborar situaes relacionadas tomada de

    conscincia, por um lado, da entrada na velhice com suas perdas que os confronta

    angstia de castrao e, por outro lado, da prpria finitude que os confronta angstia de

    morte.

    Freud assinala em Luto e Melancolia (1927), que o luto um processo psquico

    lento e doloroso resultante do desinvestimento de um quantum de energia que era dirigida

    64

  • ao objeto amado: pessoa, pais, liberdade, ideal etc. e no final do processo o eu fica livre de

    inibies, para investir em novos objetos de desejo. Nesses casos esses idosos estariam

    elaborando um luto por diversas perdas: por um corpo jovem, objeto narcisicamente

    investido, pela perda dos papis sociais, pela perda do trabalho e a difcil entrada na

    aposentadoria, pela perda de laos afetivos, pela morte de seres queridos, dentre outras.

    Esses trabalhos de luto se tornam necessrios para dar lugar vivncia e aceitao da perda

    e, desse modo, simbolizar a ausncia do objeto perdido. Nesse sentido podemos falar de

    depressividade (Fdida 2002), que a capacidade do sujeito para entrar em contato

    consigo mesmo quando acontece a perda e a transformao decorrente dessa experincia.

    Porm, algumas vezes, acontece que essa vivncia da perda no existe, h uma

    dificuldade na elaborao do luto, a pessoa se apega lembrana do objeto perdido e, deste

    modo, o sujeito sucumbe a um srio episdio depressivo. Neste sentido podemos falar de

    um luto patolgico em que a libido apresenta dificuldade de desligar-se do objeto causa de

    satisfao. (Kehl, 2009).

    A Sra. Maria (nome fictcio) de 64 anos procura atendimento psicolgico por

    depresso decorrente da morte do esposo, acontecida quatro anos atrs, e do

    desmoronamento familiar que determinou sua sada de casa; ela no consegue elaborar um

    luto diante dessas perdas. Durante o tempo de atendimento se percebe um desejo constante

    de voltar situao anterior, onde os objetos perdidos tanto o esposo, como a famlia e a

    prpria casa lhe outorgavam uma posio que lhe garantia uma identidade: a de mulher

    amada, dona de casa e me devotada, que lhe proporcionava um sentimento de

    permanncia, de unidade e continuidade. A paciente no consegue colocar outros objetos

    no circuito das satisfaes pulsionais; a morte do esposo e o desmoronamento familiar lhe

    provocaram um cmbio radical de posio: passou de uma atitude ativa para uma atitude

    passiva que se manifesta pela falta de desejo, pelo vazio existencial, a sensao de

    desamparo, a carncia de simbolizao e sobretudo o sentimento de menos valia: eu j no

    sirvo para fazer nada, eu estou impossibilitada de realizar qualquer atividade, eu me sinto

    mal porque s levo problemas para os outros. Tudo isto determina, para ela, um lugar sem

    sentido, uma posio que caracteriza um episdio depressivo. Ela no consegue sonhar,

    nem metaforizar; como se a vida no tivesse mais significado e a levasse a uma posio

    de passividade. Dessa forma, o sujeito confrontado com sua impotncia perante a vida e, a

    65

  • cada perda, a angstia de castrao se renova. Parece no existir nenhuma expectativa de

    investir em novos objetos. Acontece uma inrcia que dificulta a mudana e leva a pessoa ao

    vazio existencial, que se exprime na clnica como um grande vazio de significaes e uma

    falta de metforas que impede a emergncia de novos sentidos. Segundo Fdida (2002), a

    depresso se apresenta como um impedimento dos movimentos da vida psquica e da vida

    externa, uma abolio de qualquer devaneio ou desejo. Uma violncia do vazio parece

    dominar o pensamento, a ao e a linguagem (p.105).

    O sujeito depressivo se queixa de incapacidade radical (Chemama, 2007). Os

    pacientes que atravessam um episdio depressivo se queixam de angstia, de vazio,

    ansiedade, irritabilidade, insnia, inapetncia. Na realidade o que eles manifestam uma

    inapetncia de desejo e, consequentemente, de vida. Um paciente diz que fica sentado na

    poltrona o dia todo, no sente vontade de sair desse lugar em que deixa a vida passar. Essa

    imobilidade operaria como uma forma de inibir a passagem do tempo e expressa a

    dificuldade de se colocar numa posio de sujeito desejante. A estagnao no tempo (Kehl,

    2009) se manifesta por meio da carncia de lembranas importantes do passado e da falta

    de fantasias que se projetem na perspectiva de um futuro.

    Assim como existe uma estagnao no que diz respeito ao tempo, podemos observar

    tambm uma extrema fixidez corporal, o que resulta num corpo impedido de atuar, de agir.

    A lentido extremada do depressivo, que se manifesta no corpo, estaria relacionada ao

    tempo psquico da depresso, um tempo prprio que parece congelado, estagnado, porm

    ligado a uma violenta inquietao interna de medo do aniquilamento. A pessoa cr que a

    perda total e clama para que os outros assumam alguma atitude perante sua impotncia

    (Chemama, 2007). Esse clamor no vem sempre pela palavra, mas tambm por expresses

    corporais como, por exemplo, a voz montona, o rosto sem expresso, o caminhar

    arrastado, o olhar vazio, a mobilidade diminuda, em suma, uma rigidez corporal total. Um

    corpo que fala quando as palavras parecem no ter mais sentido. Quando a comunicao

    verbal com o outro quase no acontece, o corpo aparece como mediador entre a dor de

    existir e o mundo. Para Fdida (2002), a experincia do estado deprimido poderia caber

    numa nica sensao: aquela quase fsica, de aniquilamento.

    O sujeito que atravessa um episodio depressivo tem uma imagem desvalorizada de

    si, que est relacionada a sua imagem ideal de si mesmo. Alguns pacientes se queixam da

    66

  • imagem irreconhecvel, de velhos decrpitos que lhes a pontada pelo espelho causando-

    lhes certa estranheza. No poucas vezes, so pacientes que do um grande valor

    aparncia, esttica e aos valores da juventude. Podemos observar que h uma no-

    aceitao da imagem de si, eles valorizam a imagem idealizada da juventude em detrimento

    da imagem irreconhecvel, estranha, da velhice que lhes apontada pelo outro: o espelho.

    Eles temem essa imagem refletida no espelho com a qual no conseguem se integrar.

    Nesses pacientes, o sentimento de estima de si est desvalorizado, pela tomada de

    conscincia do envelhecimento, especialmente atravs do corpo, como tambm pelos ideais

    que representam juventude.

    Muitas vezes no h uma aceitao do lugar que lhe assinala a sociedade e se

    manifesta por meio de um sentimento de desamparo. O idoso no ocupa mais o lugar que

    lhe era outorgado pela famlia ou pela sociedade, o outro j no mais lhe assinala o seu

    lugar e no pode ser nomeado desde esse lugar e isto lhe provoca uma sensao de vazio,

    um sentimento desvalorizado de estima de si. O sentimento de estima de si (Hornstein,

    2002) a forma como o sujeito se valoriza positiva ou negativamente segundo um sistema

    de ideais.

    A Sra. Marta (nome fictcio), de 73, anos foi encaminhada pelo mdico com o qual

    estava realizando um tratamento farmacolgico para depresso. Na primeira entrevista ela

    diz que sempre foi uma pessoa dedicada ao trabalho. Trabalhou muitos anos na rea da

    sade, fez mestrado e doutorado, se aposentou e agora no sabe o que fazer da sua vida, j

    que o trabalho era tudo para ela. H uma dificuldade de aceitar a perda de um objeto

    libidinalmente investido, para poder escolher um novo objeto. Ela vivencia essa perda

    como uma ameaa sua integridade, sente a imagem de si como profissional, na velhice,

    desvalorizada e isso lhe provoca uma grande frustrao. A falta de reconhecimento a coloca

    na condio de desamparo, de falta de prestgio em definitivo, de falta de amor. Isto

    acontece quando ela volta ao local de trabalho e as pessoas com as quais trabalhava no lhe

    prestam mais ateno. A vivncia dessa situao se exprime tambm no corpo por meio de

    tonturas, perda de equilbrio e um grande medo de vir a ter Mal de Parkinson, sintomas que

    so trabalhados durante a terapia e, na medida em que consegue signific-los, ela comea a

    se interessar em realizar um trabalho nas comunidades carentes. Dessa maneira estabelece

    novos vnculos e surgem novos projetos que a colocam novamente no trnsito do desejo.

    67

  • Em O futuro de uma iluso (1928), Freud nos diz que a libido segue o caminho das

    necessidades narcsicas e investe naqueles objetos que asseguram a sua satisfao. Perante

    a perda de objetos investidos h uma excitao frustrada e a libido insatisfeita se manifesta

    em angstia e revela o desamparo do sujeito. Segundo Freud no O Mal-Estar na Civilizao

    (1929-30), so trs as fontes do sofrimento humano: o prprio corpo que est condenado ao

    declnio e ao aniquilamento, as ameaas do mundo exterior e, por ltimo, a relao com as

    outras pessoas. Estas formas de ameaas, especialmente o corpo e a relao com as pessoas,

    so sentidas de uma forma mais contundente na velhice e destacam a posio do sujeito na

    sua condio de desamparo. A ameaa do corpo em declnio se manifesta pela fragilidade,

    sobretudo em idades mais avanadas em que se exprime atravs do medo da dependncia,

    alm do sofrimento provocado em alguns casos pela dor e a conscincia da finitude. A falta

    de vnculos afetivos causa um sentimento de desamparo expressado pelo sentimento de

    solido, da ausncia de amor e da falta de proteo do outro. Sendo assim, o homem

    confrontado precariedade de sua existncia e, perante essa insegurana e a falta de

    sustentao proveniente do outro, o idoso poder sucumbir a um srio episdio depressivo.

    Sabemos que desde a mais terna infncia, o beb vivncia o desamparo. Esta

    condio originria a base da constituio do sujeito. Ele precisa da ajuda do outro, da

    me ou substituto da me, que lhe dar a proteo necessria para sua sobrevivncia. Esse

    primeiro momento de desamparo originrio deixar um trao indelvel no psiquismo e ser

    re-editado a cada vivncia de perda, acompanhado da grande angstia que aparece nos

    momentos em que o idoso sente de forma inexorvel, como por exemplo a solido, a

    fragilidade corporal, a perda dos seres queridos, e mostra de maneira inegvel a dor de

    existir do ser humano. Dessa forma ele confrontado constantemente com a condio

    originria de desamparo que se manifesta na falta de garantia no que diz respeito sua

    existncia e ao seu futuro.

    Ora, se pensarmos que o individuo cada vez mais vive numa cultura contempornea

    auto-centralizada, egocntrica na qual o idoso tem poucas oportunidades de estabelecer

    novos vnculos ou fortalecer os j existentes, inferimos que o idoso na condio de

    fragilidade poder sucumbir a um episdio depressivo pela falta de apoio, de amor, em

    suma, da escassez de trocas relacionais, ou seja, pela falta de dilogo com seu entorno.

    Dessa forma a sociedade contribui para a recluso do idoso. Sendo assim, o idoso se isola

    68

  • porque acontece um duplo encerramento: por um lado o idoso se fecha cada vez mais no

    seu mundo porque no encontra estmulos externos e, por outro lado, a sociedade no se

    comunica mais com o idoso o que tambm provoca o seu retraimento. Um paciente me diz

    que ele no sabe como conviver com a solido, que tudo seria muito mais fcil se ele

    morasse com um dos seus filhos ou pudesse compartilhar mais tempo junto a eles, porm

    ele no pode incomod-los porque os filhos tm suas famlias e esto muito ocupados com

    seus trabalhos e suas atividades.

    Podemos afirmar que na velhice que se apresenta com maior impiedade o

    sentimento de desamparo, especialmente quando falamos da velhice fragilizada. Nessa

    situao de fragilidade, o sentimento de desamparo surge com toda sua fora levando

    muitas vezes o idoso a um estado de vazio, de fixidez, de insegurana. Nesse sentido, a

    depresso (Chemama, 2007) seria uma forma acentuada, quase patolgica, de desamparo.

    Os idosos que atravessam um episdio depressivo se queixam de um mal-estar

    fsico que muitas vezes no conseguem explicar e, outras vezes, se mostram preocupados

    por acreditarem que podem ter alguma doena o que, em ambos os casos, lhes causa uma

    grande angstia. Acometidos por essas idias hipocondracas, eles procuram por

    diagnsticos mdicos de diversos especialistas, que possam prever alguma doena, no

    poucas vezes consideradas fatais por eles. Muitas vezes, segundo Peruchn (1992), as

    queixas somticas que apresentam os idosos poderiam ser consideradas hipocondracas pela

    maneira exagerada em que as exprimem.

    Esse estado de angstia decorrente de uma grande quantidade de libido desligada

    que no encontra um representante psquico. Na medida em que a pessoa envelhece, as

    perdas se acentuam e, a libido retirada dos objetos no encontra outros objetos substitutos

    para ser investida novamente. O sujeito , cada vez mais, acometido pelo excesso de

    excitaes desligadas, de modo que a libido permanece flutuante e provoca uma angstia

    difusa, somtica, estancando-se no nvel de um rgo, de uma parte do corpo, ou no eu, e se

    manifesta por meio de inmeras queixas hipocondracas. Sendo assim, o idoso retira a

    libido do mundo exterior h uma falta de interesse pelos objetos do mundo exterior e se

    concentra nas queixas que o perturbam (Peruchn, 1992).

    Um paciente diz: Continuamente estou no pronto socorro porque tenho palpitaes,

    tenho medo de ter um ataque cardaco. Outro reclama de dor de cabea e acredita estar

    69

  • com presso alta; ainda outro paciente queixa-se da cabea pesada, do medo de um derrame

    ou da iminncia de um ataque do corao. Observamos que existe um grande medo de que

    os sintomas deflagrem alguma doena grave que possa lev-los morte.

    Quando nos referimos ao corpo, comum pensar no corpo biolgico, anatmico, o

    corpo como uma realidade objetiva. Porm, quando falamos de corpo na psicanlise,

    falamos do corpo a partir de outro sentido, de um corpo submetido linguagem, um corpo

    investido libidinalmente, um corpo ergeno revestido de significaes que suporte das

    emoes, da nossa realidade psquica, onde se inscrevem as vivncias das relaes

    libidinais, afetivas, e que atua como memria inconsciente de todas essas experincias.

    Na hipocondria, o sofrimento se apresenta por meio de uma representao

    imaginria do corpo, ela ocupa um lugar intermedirio entre a doena orgnica manifesta e

    os processos psicopatolgicos. O sujeito manifestaria de uma forma deslocada, as dores do

    seu prprio drama (Volich, 2005). As desagradveis percepes corporais hipocondracas

    do idoso pareceriam estar intimamente relacionadas conscincia da finitude; como se

    cada sintoma ou doena imaginria confrontassem o indivduo com a possibilidade de vir a

    morrer, o que provoca uma grande angstia. Essa angstia hipocondraca seria um sinal de

    alarme, de perigo, relacionado ao medo de aniquilamento, que estaria vinculado, em ltima

    instncia, dificuldade de lidar com a morte. Essa dificuldade estaria relacionada perda

    de um objeto muito precioso, no caso a prpria vida, o que produz uma grande comoo

    afetiva. Desta maneira importante efetuar um trabalho de luto difcil de ser realizado j

    que se trata de um luto antecipado pela prpria vida, entretanto torna-se necessrio um

    trabalho elaborativo para no sucumbir ao medo do fim da vida e, por conseguinte, a um

    grave episdio depressivo.

    Podemos concluir que alguns idosos tm dificuldades de realizar um desligamento

    saudvel dos investimentos e manter as relaes objetais necessrias para no sucumbir a

    um grave episdio depressivo. Por isto, se torna importante que o idoso construa novos

    laos afetivos, reafirme os vnculos familiares, muitas vezes alquebrados, realize novas

    atividades para recuperar a capacidade de sonhar, de criar e de reconhecer que existe uma

    possibilidade de futuro, por meio de projetos passveis de serem realizados o que determina

    a re-elaborao do prprio projeto de vida.

    70

  • Dessa forma, para poder levar adiante o seu projeto de vida e que seu desejo no

    vacile perante a perda, o idoso precisa se adequar nova realidade, aceitando as mudanas

    por meio de um difcil trabalho psquico de elaborao das perdas e de construo dessa

    nova realidade.

    Entretanto, sabemos que a elaborao das perdas, a sustentao dos laos afetivos e

    o ajustamento a nova realidade no sempre sero alcanados. Por um lado, depender dos

    recursos que a pessoa tem para enfrentar a perda e, por outro pela complexidade do prprio

    entorno em que o idoso pode estar inserido. Dessa forma, ele ser confrontado

    constantemente com a situao originria de desamparo que se manifesta na falta de

    garantia no que diz respeito sua vida e ao seu futuro e que poder lev-lo a um episdio

    depressivo.

    Paralisia do tempo e vazio no envelhecimento por Mara Humberto Peixeiro

    No processo de estudos e superviso sobre a depresso, percorrido pelo grupo que

    hoje forma esta mesa, nos deparamos com a questo do tempo. Tempo parado, tempo que

    no passa, tempo sem histria, tempo vazio. Qual o tempo da depresso?

    Em meio s discusses, imagens tais como os residentes de ILPIs sentados em

    sofs, em frente televiso, em corredores, em quartos, esperando o tempo passar, ou

    melhor, no esperando nada, nos inquietaram. Seres aparentemente fora do tempo mirando

    o vazio. Que perigo to intenso os apavorou, fazendo com que se refugiassem neste intenso

    nada? No resolvem fechar os olhos, mas tampouco os abrem. O que os afugentou?

    Joel Birman (1995) anuncia uma psicopatologia da velhice, fundada na

    impossibilidade da temporalizao. O velhos, impedidos de construrem um sentido para o

    seu presente, ressignificando seu passado, no poderiam projetar um futuro. A ausncia de

    perspectiva de futuro, a impossibilidade de projetar-se neste futuro, de antever sua imagem

    em um tempo que ainda est por vir, esvaziaria o presente, deixando o sujeito submetido a

    um passado que ele no pode mudar. A proximidade da morte, neste contexto, se

    apresentaria de maneira a extirpar do sujeito qualquer possibilidade de redimensionamento

    da vida que resta a partir da nova constatao, a morte se apresenta em sua face hedionda,

    terrvel. O ser engessado nesta condio passaria a apresentar o que o autor chama de

    estilos clnicos para confrontar a impossibilidade de temporalizao. Estes estilos so: a

    mania, uma tentativa de burlar, atravs de uma imagem caricata, exagerada de jovialidade,

    71

  • a presena da morte; a parania, tentativa de responsabilizar o outro, o mundo, por ter

    retirado o que era seu de direito, o que ele merecia; e por fim, a depresso. A depresso

    teria um carter melanclico, pois somente as faltas e as perdas ocupariam a cena, j que o

    trabalho de luto no poderia ser realizado. O trabalho do luto um processo que se inscreve

    no tempo, pressupe a retirada do investimento, um a um, dos traos do objeto perdido,

    transformando, como descreve Goldfarb (2004), a dor da perda em lembrana. Este

    trabalho s tem sentido se existe um futuro aberto para novos investimentos pulsionais.

    Quando a cultura no oferece espao para estes investimentos, o sujeito se volta para o

    passado, para suas faltas e perdas e l permanece. O tempo pra.

    Mas de que tempo estamos falando? O tempo para a psicanlise tem caractersticas

    prprias. Em seu texto Uma nota sobre o bloco mgico (1925), Freud toma este objeto, o

    bloco mgico, que conhecemos como lousa mgica, objeto que consiste em uma superfcie

    de cera coberta por uma fina pelcula plstica, onde ao pressionar um objeto com ponta, tal

    como uma caneta sem tinta, escrevemos, desenhamos, inscrevemos um trao que

    permanece visvel at que a pelcula plstica seja levantada. Freud compara a pelcula ao

    plo perceptivo do aparelho e a cera ao sistema pr-consciente e inconsciente, onde

    diversos traos, apesar de no estarem presentes ao plo de percepo, permanecem em um

    infinito campo de inscrio, onde nada se perde. Cada trao proporcionado pelos

    acontecimentos da vida est l colocado. Tomando esta idia, temos que o psiquismo um

    emaranhado de marcas, traos, inscries, estabelecidos fundamentalmente a partir da

    nossa relao com o mundo, com os objetos em que investimos nossa libido: pessoas,

    lugares, trabalhos, projetos, ideologias, entre outros. Estas inscries s so ativadas

    quando associadas entre si, s ganham corpo quando articuladas no campo simblico, no

    campo da linguagem, a outras representaes. Sylvie Le Poulichet (2006), autora francesa

    que se debruou sobre a questo do tempo em psicanlise, lembra da idia freudiana do

    aprs coup, ou depois do golpe, descrevendo o que chama de tempo identificante. Ela

    define este tempo como:

    ... o encontro por sobreposio de traos de um acontecimento passado e

    de um acontecimento presente e seus efeitos no corpo. necessrio um

    acontecimento novo para que o acontecimento antigo ressoe e aceda

    presena. Ele j estava l, mas no entanto ele chega de repente. um j l

    72

  • que toma corpo somente depois do golpe (aprs coup) traduo livre (p.

    23)

    Este o fundamento da teoria do trauma freudiano, que prope que um

    acontecimento s se torna traumtico em um segundo momento, aprs coup, quando reativa

    um acontecimento anterior, que quando ocorrido, devido imaturidade sexual da criana,

    no tinha sentido. Quando o sentido sexual atribudo vivncia, a sim, existe um excesso

    pulsional que no pode ser metabolizado, constituindo o trauma.

    O que essencial nesta formulao para o tema que pretendo desenvolver nesta

    apresentao, que os traos s ganham presena, quando se identificam entre si, no

    sentido no de se assemelharem, ou de se tornarem como o outro, mas no sentido de se

    atriburem reciprocamente identidade. Neste momento ocorre o que a autora descreve como

    uma exploso de presena, tal como um raio, e tem lugar uma espcie de abolio do

    tempo, ao mesmo tempo em que ocorre uma afirmao potente do mesmo. preciso que

    haja uma fissura na trama do tempo para que se presentifique o acontecimento. Ela

    acrescenta: No se trata mais de reencontrar a memria, mas de ser encontrado por ela, l

    onde no esperamos (p.23).

    Sermos encontrados pela memria traz a idia de uma histria que est l apesar de

    ns, e a de traos de memria que buscam caminhos para se fazerem presentes. O

    fenmeno do aprs coup remete potencializao de uma vivncia atual a partir da

    capacidade que ela tem para atrair uma lembrana. A vivncia atual ganha novas cores ao

    mesmo tempo em que a memria atrada se presentifica. Podemos pensar que este o

    processo de subjetivao da prpria histria, histria que vai sendo construda por estes

    traos de vivncias passadas e presentes que ao se encontrarem abrem campo para projetos

    futuros.

    A reminiscncia no envelhecimento, tal como Delia Goldfarb (1998) a concebe, o

    discurso da memria, discurso que se repete na tentativa de afirmar uma histria, histria

    que singulariza o sujeito e que o assegura de sua prpria identidade. Eu sou aquele de

    quem vos falo, apesar de no parecer, j que a imagem que tinha de mim mesmo se perdeu

    em algum espelho do passado. Alm disto, o exerccio da reminiscncia, esta repetio da

    prpria histria, uma tentativa de elaborar uma perda, mesmo que em perspectiva,

    trabalho de luto pela vida que est mais prxima do fim.

    73

  • A experincia clnica nos mostra que os elementos que insistem em retornar no

    discurso reminiscente (que no cessa), so aqueles que de alguma forma no conseguiram

    se integrar ao circuito associativo e permaneceram fora do jogo simblico, so as memrias

    que no encontraram caminho para o presente, perdas no elaboradas, lutos no

    trabalhados. Um casamento de 30 anos em que dor e sofrimento foram protagonistas

    durante a maior parte do tempo, um filho que saiu de casa sem se despedir, uma me que se

    ausentou muito antes de morrer, um desentendimento mudo com o pai, entre outros. Como

    se para poder morrer, no sentido de se saber mais prximo do fim, fosse necessrio se

    ressubjetivar, integrando as lacunas, construindo sentidos, retificando o passado e

    reconstruindo um presente para o futuro. A capacidade de fantasiar, como tentativa de

    construir sentidos imaginrios, mesmo que provisrios para as vivncias parte essencial

    deste processo.

    Mas este processo de apoderamento da memria s acontece se algum se dispe a

    escutar o passado que se reencontra com o presente como, por exemplo, na cena analtica.

    Ou quando este passado ganha outros significados, tomando outras formas, na medida em

    que compartilhado com a famlia, amigos, netos, grupos. Em ambos os casos o exerccio

    de historizao est sendo realizado e o trabalho de luto pela prpria vida, trabalho que

    sempre parcial, realizado homeopaticamente e onde no h desfecho final, permanece

    ocorrendo. O luto, segundo Freud, trabalho pulsional de desinvestimento dos objetos

    perdidos e reinvestimento em novos objetos vai sendo realizado. A depressividade que

    caracteriza este trabalho acompanha o sujeito neste processo em um movimento de

    recolhimento para a recriao destes objetos de investimento, recolhimento necessrio que

    se alterna com aberturas para o mundo. O movimento de fechar -se e abrir-se no deixa

    dvidas sobre a passagem do tempo, enquanto h movimento, o tempo no deixa de passar.

    Quando no existe campo de escuta, quando no existe espao para compartilhar

    estes traos de memria que buscam lugar no presente, um passado engessado, quase

    delirante acaba por invadir o sujeito. A repetio que no produz elaborao faz o sujeito

    submergir neste mar recordaes sem lastro na realidade compartilhada do momento atual.

    O fantasiar sozinho, sempre remetido ao si mesmo, aliena o sujeito, o afasta, o exclui.

    Chega-se ao ponto em que a prpria atividade da fantasia sucumbe, a palavra ganha

    estatuto de coisa, perde seu carter simblico, repete-se apenas por repetir, no se quer

    74

  • dizer nada. ento que a memria perde a capacidade de achar caminhos que a

    presentifiquem, o fio do passado e do presente rompido, o subjetivar-se constante se

    interrompe. Estamos frente ao vazio.

    O vazio remete ao no movimento, inexistncia de objeto, ao trabalho que cessa,

    paralisia do tempo. a morte que se apresenta antes do tempo, em sua forma psquica. Este

    vazio absoluto dificilmente encontrado na clnica, j que mesmo nos estados demenciais

    mais avanados difcil no apostar em alguma vida psquica, pois uma palavra plena, um

    gesto endereado, um olhar vivo ainda podem nos surpreender e nos certificar de que o

    sujeito est ali. De qualquer forma, podemos falar em um esvaziamento do sujeito, sujeito

    que desiste de realizar os trabalhos de luto, que desiste de tentar recolocar em circulao os

    elementos fora do jogo associativo, que desiste de sua histria. Enfim, um sujeito que

    parece no desejar mais estar presente, nem de corpo nem de alma, ao menos frente s

    possibilidades que a vida lhe apresenta.

    Para Lacan (Peres, 2003) o desejo se funda na falta. Neste sentido ele atribui ao luto

    um lugar essencial na constituio do sujeito. A relao com o objeto nunca satisfaz

    plenamente, a iluso de satisfao plena, aquela de uma suposta primeira experincia de

    prazer do beb com o seio, a primeira mamada, mtica. Supe-se um objeto que

    proporcionou prazer pleno e atrs deste suposto objeto que o sujeito vai estar durante toda

    a sua vida, deslizando de objeto em objeto, em busca daquele que o satisfar. Este o

    movimento do desejo, e justamente esta diferena, esta defasagem, este descompasso

    entre o que almejado e o que encontrado que vai produzir o movimento do sujeito, sua

    busca, marcando o tempo no desejo. preciso esperar, a promessa do encontro com este

    objeto cria a perspectiva do futuro, a referncia perceptiva do passado mtico busca

    identificaes no presente, articulando passado, presente e futuro. possvel perder o

    objeto investido e, apesar da dor, realizar o trabalho do luto, supondo a existncia de outros

    objetos passveis de investimento e satisfao pulsional. As idas e vindas do objeto,

    investimento e desinvestimento, ganhos e perdas colocados em uma dimenso temporal,

    vo permitir a simbolizao. preciso que o objeto se ausente para ser simbolizado, desde

    que ele tenha permanecido o tempo necessrio para ser reconhecido e investido.

    Lembro-me de uma cena da clnica em que um paciente deprimido me disse que sua

    vida se assemelhava ao brao de um violo sem as marcaes de casas, sem a diferena da

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  • distncia que localizam os acordes. Tocasse onde tocasse, o mesmo som era emitido, em

    uma repetio terrvel, pois infinita.

    Que campo do desejo se abre para um sujeito que sempre que apia seus dedos no

    brao do violo, onde quer que seja, o mesmo som emitido. Retomando as cenas de

    instituies de longa permanncia, muitas das quais se autodenominam Casas de repouso,

    que diferenas, que descompassos podem surgir em ambientes em que no so priorizadas

    as singularidades dos que ali se encontram, em que as atividades oferecidas, so

    compulsrias, determinadas de maneira a facilitar a rotina dos cuidadores que l trabalham,

    e no a priorizar as necessidades, e indo alm, os desejos de cada residente. Ser que ele

    quer assistir televiso, ou participar da jardinagem? Ser que ela quer se deitar, ou se

    arrumar? Ser que ele quer sair, ou ficar? Ser que eles querem repousar, ou ainda viver? O

    descanso compulsrio antes da morte, a antecipa. Quando s o que resta esperar por ela,

    como j se estivesse morto. A inexistncia de conselhos gestores, assemblias, em que os

    idosos possam opinar sobre o funcionamento institucional, reivindicarem seus desejos,

    criarem campo para seu futuro, j que sua vida tem lugar a partir de ento neste ambiente,

    revela em que ponto estamos com relao ao lugar ocupado pela velhice na cultura. E neste

    sentido este cenrio no se restringe somente s instituies.

    Na nossa cultura atual, podemos considerar que grande parte das sadas encontradas

    para alojar a velhice a clivam, a idealizando ou a mortificando, em ambos os casos,

    anestesiando a singularidade. O velho o resto indesejvel, imagem de um corpo que se

    deteriora e se aproxima da morte, futuro do qual no queremos ter notcia. A velhice s

    tolervel quando higienizada, em uma assepsia que a torna jovem, ativa, agradvel de ver,

    ou a esconde em instituies onde o sujeito desaparece e vo com ele os perigos de uma

    identificao com estes aspectos abominveis da velhice. Este processo de dessubjetivao

    coloca o velho em um lugar de passividade, submetido ao outro, tal como uma criana, o

    que antecipa um estado demencial.

    Nessa condio, que objetos o mundo oferece ao idoso para serem investidos? Que

    trabalho do tempo possvel realizar? Para que atravessar processos de luto, se no restam

    objetos para novos investimentos? Ou ainda, como dar sentido ao luto, se na velhice,

    muitas vezes, as perdas no so consideradas, pois elas ficam no lugar de um destino, e no

    de uma possibilidade? Na medida em que as perdas no so reconhecidas em sua dimenso

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  • de intensa dor, j que como se parte do eu tambm tivesse sido perdido, no h espao

    para um trabalho do luto. O sujeito fica ento lanado solido do no reconhecimento de

    sua dor, mesmo sentindo-se dilacerado. Entra ento em um tempo que pra, em que o

    trabalho de historizao do eu, de subjetivao, se paralisa. Por impossibilidade de

    reconhecimento simblico, as perdas ficam de fora do jogo simblico. Algo que sentido

    pelo sujeito, permanece sem sentido para o mundo, e ele entra em um estado de suspenso.

    A depresso, epidemia dos nossos tempos, faz parte de uma nova configurao

    subjetiva que se apia na impossibilidade de construir um sentido para a vida, na sensao

    de ser incapaz de enfrentar a luta pela existncia, tal como aponta a psicanalista, Urania

    Tourinho Peres (2003). O sentido, aquele que construdo e desconstrudo em um

    movimento constante durante toda a vida e que nos permite vislumbrar, mesmo que de

    maneira transitria, um objetivo no futuro, nos impulsiona. Na velhice o horizonte de futuro

    se estreita inevitavelmente e as perdas so numerosas. Acreditar-se capaz de lutar pela

    existncia, por continuar a construir sentido para a vida pode ser tarefa rdua.

    Os aspectos culturais e a constituio de cada sujeito concorrem para determinar a

    maneira como cada um vai atravessar, na velhice, este momento de confrontao das

    perdas, entre as quais, em perspectiva, a da prpria vida. Por um lado, pode-se entrar em

    um estado de depressividade, onde o trabalho dos lutos vai sendo realizado e, apesar da dor,

    o sujeito permanece presente, realizando seu constante subjetivar-se. A articulao entre o

    passado, o presente e o futuro se mantm sustentada, o tempo no pra e o vazio, no se

    instala. O movimento de historizao de si tem continuidade. Por outro lado, pode-se

    deprimir de maneira a adentrar o vazio simblico, em que o tempo pra, o fio que articula

    passado, presente e futuro se rompe e o sujeito parece ficar suspenso de si mesmo. No se

    confronta a perda, ela recusada, colocada de fora. Sabe-se que perdeu e no se sabe ao

    mesmo tempo. O psiquismo fica rompido, dois lados que no se comunicam e o eu, em

    meio a tamanho dilaceramento, se ausenta; passa a olhar o vazio e se refugia no no tempo.

    A memria, assim, no pode mais buscar caminho para o presente; ela no encontra mais o

    sujeito que, deste modo, fica condenado, como os zumbis, a viver uma eternidade de cores

    plidas, entregue a uma quase morte monotnica e infinita.

    Referncias

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    Data de recebimento: 05/11/2009. Data de aceite: 15/12/2009.

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    Delia Catullo Goldfarb - Psicloga e psicanalista com mestrado pela PUC-SP e doutorado em psicologia pela USP-SP. Tem especializao em Gerontologia pela SBGG e FLACSO. Alm de atuar em clnica particular consultora do PNUD, assessora em polticas pblicas e criadora do curso Psicogerontologia: fundamentos e perspectivas na COGEAE/PUC-SP. membro fundador da Rede Ibero-americana de Psicogerontologia, da Associao Nacional de Gerontologia e da Ger-Aes: Centro de Pesquisas e Aes em Gerontologia. Tem publicado os livros "Corpo, tempo e envelhecimento" e "Demncias" pela editora Casa do Psiclogo, alm de diversos artigos no Brasil e no exterior. E-mail: [email protected] Maria Elvira M. Gotter - Psicanalista; Especializaes em Gerontologia e Sexualidade Humana FM-USP. Docente convidada do curso Psicogerontologia: fundamentos e perspectivas COGEAE-PUC-SP. Membro da Rede Ibero-americana de Psicogerontologia. Coordena grupos de Cinema-Reflexo. Membro da diretoria da Ger-Aes: Centro de Pesquisas e Aes em Gerontologia. E-mail: [email protected] Mara Humberto Peixeiro - Psicloga, psicanalista (Instituto Sedes Sapientiae), acompanhante teraputica, Master Recherche en Psychanalyse (Universit Paris 7 Frana), docente da Faculdade de Psicologia So Marcos, coordenadora de grupo de estudos na rea da clnica do envelhecimento e acompanhamento teraputico, membro da Ger-aes: Centro de Pesquisas e Aes em Gerontologia. E-mail: [email protected] Natlia Alves Barbieri - Psicloga, psicanalista e mestre em Cincias da Sade pela UNIFESP/Escola Paulista de Medicina. Atua como psicloga clnica, acompanhante teraputica, alm de coordenar grupo de estudos e superviso sobre acompanhamento teraputico no envelhecimento pesquisadora da Rede Ibero-americana de Psicogerontologia e do grupo do CNPq Corpo, dor e doena. Membro da diretoria da Ger-Aes: Centro de Pesquisas e Aes em Gerontologia. E-mail: [email protected]

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