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Departamento de Ciências Sociais Aplicadas 2Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e UrbanoCurso de Ciências Econômicas com ênfase em Economia Empresarial

Ano II l Nº 3 l Semestral l Janeiro de 2000 l Salvador, BA

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3RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

R348 RDE – Revista de Desenvolvimento Econômico / UNIFACS.Departamento de Ciências Sociais Aplicadas 2. Ano 2, n.3 (Janeiro, 2000). – Salvador: DCSA2 / UNIFACS, 2000.

1v.: il. 21x29,5 cm

ISSN 1516-1684

1. Economia. I. UNIFACS – Universidade Salvador.

CDD 330

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4 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

Ano II l Nº 3 l Janeiro de 2000 l Salvador, BA

EXPEDIENTE:Revista de Desenvolvimento Econômico

Ano II ¤ Nº 03 ¤ Janeiro de 2000 ¤ Salvador – Ba

A Revista de Desenvolvimento Econômico é uma PublicaçãoSemestral do Departamento de Ciências Sociais Aplicadas 2,do seu Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Re-gional (composto pelo Doutorado em Planejamento Territoriale Desenvolvimento Regional e pelo Mestrado em Análise Re-gional) e do Curso de Ciências Econômicas com ênfase em Eco-nomia Empresarial da UNIFACS – Universidade Salvador.

UNIFACS – UNIVERSIDADE SALVADOR

REITOR Prof. Manoel Joaquim F. de Barros Sobrinho

VICE-REITORGuilherme Marback Neto

PRÓ- REITOR DE GRADUAÇÃOMaria das Graças Fraga Maia

PRÓ- REITOR COMUNITÁRIOSérgio Augusto Gomes V. Viana

PRÓ- REITOR ADMINISTRATIVOVerônica de Menezes Fahél

DEP. DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS 2Prof. Noélio D. Spinola

CONSELHO EDITORIALProf. Fernando C. Pedrão

Prof. José Alberto Bandeira RamosProf. Noélio D. Spinola

Prof. Pedro de Almeida VasconcelosProfa. Regina Celeste de Almeida Souza

Prof. Rosembergue ValverdeProf. Rossine Cerqueira Cruz

Prof. Sylvio Carlos Bandeira de Mello e SilvaProf. Victor Gradim

EDITORProf. Noelio D. Spinola

REVISÃONúcleo de Revisão, Tradução e Editoração da UNIFACS

SECRETARIAProfa. Tatiana Spinola

CAPA E EDITORAÇÃO GRÁFICAAntônio Caldas

FOTOLITOS E IMPRESSÃOP&A Gráfica e Editora

TIRAGEM: 1.000 exemplares

Os artigos publicados podem ser reproduzidos para atividadessem fins lucrativos, mediante autorização da UNIFACS – Univer-sidade Salvador.

As contribuições para a Revista devem ser encaminhadas à REVISTADE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, digitadas em Word. Envi-ar disquete com texto e uma cópia impressa, no máximo com 30 laudasde 20 linhas cada, aproximadamente 30.000 caracteres. Deverá in-cluir resumo.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:Alameda das Espatódias, 915 – Caminho das Árvores, Salvador, Bahia

CEP.: 41827-900Tel.: (71) 340-3600 / 3657 / 3609

E-MAIL: [email protected]

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Departamento de CiênciasSociais Aplicadas 2Programa de Pós-Graduação emDesenvolvimento Regional e UrbanoCurso de Economia Empresarial

EDITORIALEDITORIAL

O terceiro número da Revista de Desenvolvimento Econômicoestá sendo editado em janeiro de 2000 com nova periodicidade semestralestabelecida para este mês e o de julho, de cada ano.

Esta nova edição surge graças ao patrocínio exclusivo do Instituto dePesquisas Aplicadas da UNIFACS.

Cadastrada no IBICT - Instituto Brasileiro de Informação em Ciênciae Tecnologia (ISSN), parte a RDE para consolidar-se como uma publicaçãoacadêmica, ampliando a partir do próximo número o corpo editorial, comuma maior participação de colaboradores externos aos quadros daUNIFACS e promovendo a sua indexação em outros organismosespecializados na sua área de conhecimento. Além disso, programa-se adivulgação dos seus artigos na Internet (homepage da UNIFACS) amplian-do desta forma o atendimento ao seu público-alvo.

Neste número a RDE veicula nove artigos e um estudo de caso, além deuma resenha, todos relacionados à temática do desenvolvimento regional.Dentre estes destaca-se um trabalho inédito de Ignácio Rangel, um dosmais conceituados economistas brasileiros, elaborado em 1963 e resgatadopelo Prof. Fernando Cardoso Pedrão que o analisa no artigo intitulado“Planejamento e crítica a contribuição de Ignácio Rangel”.

Assinala-se, também, a publicação de dois artigos vinculados a área deturismo, elaborados pelas doutorandas Carolina de Andrade Spinola eAnailde Almeida, esta última aluna do Programa de Pós-Graduação emDesenvolvimento Regional, no doutorado que a UNIFACS promove emconvênio com a Universidade de Barcelona.

O professor Luiz Marques examina questões relacionadas com o fede-ralismo fiscal e as finanças públicas no Brasil dos anos 90 e o professor JoséAlberto Bandeira Ramos apresenta uma leitura crítica de um documentohistórico: uma carta de 1781 dirigida por José da Silva Lisboa, o Viscondede Cairú a Domingos Vandelli, diretor do Real Jardim Botânico de Lisboa.Nesta leitura o professor Ramos ressalta as particularidades da sociedadeescravista da Bahia.

O professor Rossine Cruz apresenta um artigo com uma revisão deliteratura comentando os marcos teóricos para a reflexão sobre as desigual-dades regionais. O professor Pedro Vasconcelos, por sua vez, busca enten-der a organização e o funcionamento do espaço da cidade de Salvador noperíodo colonial em seu artigo “Os agentes modeladores de Salvador noperíodo colonial”; o professor Vitor de Athayde Couto procura contribuirpara o entendimento e a formulação de políticas sociais no Brasil com oartigo “A privatização do Welfare State e o terceiro setor”. O processorecente de favelização em Salvador é analisado através do estudo de caso doCalabar pela Profa. Regina Celeste Souza e Dante Giudice.

Concluindo o elenco de contribuições e como um bom início do Progra-ma de Pós-Graduação, no âmbito do Mestrado em Análise Regional (reco-mendado pela CAPES) também divulga-se uma resenha elaborada pelamestranda Lídia Santana abordando uma temática urbana.

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5RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

SUMÁRIOSUMÁRIO

PLANEJAMENTO E CRÍTICA: A CONTRIBUIÇÃO DE INÁCIO RANGEL

PROF. FERNANDO PEDRÃO

BREVES NOTAS COM VISTA A UM PLANEJAMENTO DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

PARA A BAHIA

PROF. INÁCIO M. RANGEL

O FEDERALISMO FISCAL E AS FINANÇAS PÚBLICAS NO BRASIL NOS ANOS 90PROF. LUIZ MARQUES E PROF. REGINALDO SOUZA SANTOS

O PRODETUR E A DESCENTRALIZAÇÃO DO TURISMO BAIANO

PROFª CAROLINA SPINOLA

O TABULEIRO DA BAIANA TEM, CULTURA

PROFª ANAILDE ALMEIDA

MARCOS TEÓRICOS PARA A REFLEXÃO SOBRE AS DESIGUALDADES REGIONAIS.UMA BREVE REVISÃO DA LITERATURA

PROF. ROSSINE CERQUEIRA CRUZ

OS AGENTES MODELADORES DE SALVADOR NO PERÍODO COLONIAL

PROF. PEDRO DE ALMEIDA VASCONCELOS

A PRIVATIZAÇÃO DO WELFARE STATE E O TERCEIRO SETOR

PROF. VITOR DE ATHAYDE COUTO

PARTICULARIDADES DA SOCIEDADE ESCRAVISTA DA BAHIA: UMA LEITURA DE JOSÉ

DA SILVA LISBOA. COMUNICAÇÃO AO IV CONGRESSO DE HISTÓRIA DA BAHIA

PROF. JOSÉ ALBERTO BANDEIRA RAMOS

ESTUDO DE CASO

O PROCESSO RECENTE DE FAVELIZAÇÃO EM SALVADOR: O EXEMPLO DO CALABAR

DANTE SEVERO GIUDICE E PROFª REGINA CELESTE DE ALMEIDA SOUZA

RESENHA

RONCAYOLO, MARCEL. AS FUNÇÕES DA CIDADE.MESTRANDA LÍDIA SANTANA

613

23364854

677482

89

94

ARTIGOS

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6 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

PLANEJAMENTO E CRÍTICA:A CONTRIBUIÇÃO DE IGNÁCIO RANGEL

Planeje ou não, a sociedadeeconômica hoje enfrenta um proble-ma fundamental, relativo a sua capa-cidade de identificar políticas econô-micas significativas e de executá-las.Trata-se da capacidade de perceberquais políticas são mais apropriadase de quais modos podem ser postasem prática. Certamente, a capacidadedos Estados nacionais de realizarempolíticas econômicas decaiu juntocom a concentração do capital queparece, mas não é a mesma coisa, quesuas formas globalizadas de funcio-namento. 1 A leitura retrospectiva dosproblemas teóricos e práticos do pla-nejamento nas décadas de 1950 e1960 refere-se a outro momento da for-mação do capital, cujo conhecimentoentretanto é necessário para situar ocontexto das políticas econômicasposteriores. Há ou não, continuidadeentre o tratamento lógico da composi-ção das políticas públicas e o trata-mento lógico de cada política públicaem particular? Qual o significado dapulverização de decisões para o de-sempenho dos sistemas produtivos,que devem combinar decisões de in-vestimento em infra-estrutura e emempreendimentos produtivos?2

A questão do planejamento giraem torno de um modo racional siste-mático de tratar dos recursos huma-nos e físicos, em função do interessepúblico. Toda a atividade de planejarsempre se apoiou na representaçãosocial da esfera pública, exigindosempre opções, no relativo a atuali-zar historicamente o interesse públi-

co e a fortalecê-lo, ou a rigidificá-lo eenfraquecê-lo. Há um componente téc-nico, um componente ideológico e umcomponente ético, no modo como setratam as esferas pública e a privada.Como um de seus aspectos mais difí-ceis, o planejamento obriga a expli-citar posições no relativo a temas taiscomo a distribuição da renda, as polí-ticas de educação e saúde e principal-mente, no relativo às oportunidadesdas pessoas.

As experiências com planejamen-to compreendem as dos países soci-alistas e de diversos países não soci-alistas, desde os nórdicos aos saxões,passando por franceses, italianos eespecialmente da Índia.3 Acumulou-se uma ampla e complexa experiên-cia de planejamento nos países lati-no-americanos entre 1946 e 1976,com variados matizes de um país aoutro, com um grande número de do-cumentos de planejamento e experi-ências muito desiguais com a execu-ção dos planos. Apresentam-se aqui

comentários à contribuição de umpensador brasileiro nesse campo, si-tuando-a no contexto do debate so-bre planejamento nos países ociden-tais.

Tais colocações tornam necessá-ria uma referência às matrizes concei-tuais do planejamento. A separaçãoentre as experiências ocidentais e associalistas é artificial e posterior aosfatos. Basta ver como os “ocidentais”absorveram as técnicas de insumo-produto e de projetos multi-propósitodesenvolvidas na esfera socialista.Oficialmente, também foram ignora-das as técnicas desenvolvidas no na-zismo e no fascismo, apesar de estarhoje claro que alí se criaram as atuaisestruturas dos complexos industriaise de uso estratégico dos setores deconstrução civil. No entanto, essa se-paração intencional influenciou o dis-curso do planejamento na AméricaLatina, inclusive na CEPAL, apesarde que os governos nacionais sofre-ram influências dos regimes autoritá-

1 Uma revisão recente desse problema encontra-se em Paul Krugman, The age of diminishedexpectations (1998), que trata dessa perda de capacidade de realizar políticas no centro hegemônicoda economia mundial.

2 A colocação dessa questão envolve a necessidade de uma revisão do significado de mercado, queobriga a examinar as condições de monopólio e de oligopólios e os aspectos de concentração depoder das mega- empresas. Com essa finalidade, é oportuno o trabalho de Rubert Kuttner (1999).

3 Algumas dessas experiências têm que ser, necessariamente, citadas. Os dois primeiros planosqüinqüenais da Índia mobilizaram um contingente numeroso de intelectuais europeus e se tornaramuma referência mundial. A Tennesse Vallay Authority, do New Deal de Roosevelt exerceu influênciano Brasil. A Casa per il Mezzogiorno foi uma experiência amplamente discutida nas universidades.Finalmente, o Plano Monnet foi a origem do planejamento moderno baseado em infra-estrutura. Cadauma dessas tentativas de planejamento desenvolveu abordagens próprias, com pouco intercâmbiode experiência. Entretanto, as experiências de planejamento nacional foram as que exerceram maiorinfluência indireta, através da participação de órgãos internacionais.

Fernando PedrãoDocente Livre pela UFBA. Professor do Pro-grama de Pós-Graduação em Desenvolvi-mento Regional e Urbano da UNIFACS.

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7RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

rios, que ainda precisam ser esclare-cidas.4

O texto que se apresenta agora, daautoria do economista Ignacio Rangel,escrito em visita à Bahia em 1963,5 queficou inédito até o presente, é um tes-temunho do fim de um período de in-tensa atividade de política públicaestadual, quando a Bahia se projetoucomo um Estado pioneiro do planeja-mento no Brasil, numa linha de tra-balho então identificada com o BancoNacional de Desenvolvimento Econô-mico (BNDE). Surgiu como contra-ponto, na perspectiva estadual, doPlano Trienal de DesenvolvimentoEconômico e Social, surgido na épo-ca, de autoria do economista CelsoFurtado. Nele, há dois aspectos prin-cipais a considerar: o contexto de suasobservações sobre as possibilidadese limitações do planejamento estadu-al, e as referências em que se apoia,que constituem o quadro de compre-ensão da época, dos problemas depolítica econômica para o desenvol-vimento econômico e social.

O contexto histórico do debate doplanejamento, nesse caso, compreen-de referências da Bahia e da situaçãointernacional dessa discussão. Noperíodo de atividade do Instituto deEconomia e Finanças da Bahia (IEFB)6

e da Comissão de Planejamento Eco-nômico da Bahia (CPE)7 , entre 1955 a1963, o economista Ignacio Rangelteve uma intensa presença na Bahia,principalmente no meio acadêmico doIEFB, onde participou de seminários,fez conferências e, principalmente,funcionou como representante de umdebate em curso no Rio de Janeiro, quedeu na criação do Instituto Superiorde Estudos Brasileiros (ISEB). Em di-versas oportunidades, Rangel veio aSalvador, valendo-se da mobilidadeque lhe dava sua posição de econo-mista do BNDE, já num momento emque aquela instituição se distanciavade linhas de trabalho que assumirana década anterior.

O documento tem o mérito de re-velar o sentido de finalidade e o perfiltécnico do planejamento para leitoresmais recentes, ou menos familiariza-dos com a visão multissetorial e a lon-go prazo, que prevaleceu naqueles es-forços de racionalização da políticaeconômica. Quem pretendia planejaro que? Seria simplesmente o modo dea classe média tratar a coisa pública,ou seria uma necessidade da reprodu-ção do sistema produtivo, que incor-porava uma tecnologia de governo?Sobre qual composição de forças seapoiava a modernização do aparelho

estadual de Estado, e como seria elamobilizada para criar uma políticaeconômica própria? Tácita ou explici-tamente, se reconhecia que o planeja-mento alterava o balanço social de for-ças e a composição do bloco de poder.8

Esse questionamento também valepor sua visão institucional. Com fre-qüência, vêem-se hoje “novas” pro-postas de abordagem institucional.Igualmente, costuma-se identificar oplanejamento do período de 1950 a1964 com uma visão “industrialista”,atribuindo esse “industrialismo” àleitura cepalina9 do planejamento. Épreciso registrar que o esforço de pla-nejamento do Brasil, iniciado sob ainspiração do Estado Novo, antecedeua montagem da análise da CEPAL, quese deu entre 1948 e 1950, quando me-nos dos trabalhos de consultoria daCEPAL, que começaram por volta de1954. Também, é preciso reconhecerque o debate sobre planejamento noBrasil, na época, contemplava aspec-tos de complexidade da economianacional antes não considerados, bemcomo reconhecia os problemas opera-cionais da política econômica, em seucontexto externo e interno.

Em 1963, tinham-se esgotado asmargens de autonomia econômica epolítica para prosseguir no rumo daspolíticas de desenvolvimento lança-das entre 1950 e 1954, que tinhamsido transformadas em políticas deobras públicas no período de 1955 a1959. O planejamento não era maisum estilo de governo, senão uma téc-nica administrativa. Por isso, o gover-no pôde aplicar, em 1967, em plenogoverno autoritário, reformas prepa-radas no período Goulart, especial-mente a reforma tributária. No planoestadual, o planejamento tornara-seuma política defensiva da economiatradicional exportadora, contrastan-do com o caráter propositivo inova-dor do período 1960-1961. No entan-to, o agravamento dos problemas doEstado da Bahia exigia intervençõeslocais promotoras de crescimento,sentido que foi dado aos empreendi-mentos de pólos de crescimento, es-pecialmente do Centro Industrial deAratu e do de Feira de Santana.

4 No Brasil houve uma inegável influência do integralismo nas políticas públicas, tal como do fascismono peronismo. As reações contra o nacionalismo após a Segunda Guerra Mundial carregavam essamarca de confronto entre a influência norte-americana e a dos países autoritários.

5 Breves notas com vista a um plano de desenvolvimento econômico para a Bahia, Ignacio Rangel, fev.,1963

6 O Instituto de Economia e Finanças da Bahia era uma sociedade civil criada em 1937 por um grupo deeconomistas baianos, que manteve uma sede com uma biblioteca e manteve uma revista, dirigida porDaniel Quintino da Cunha. Em 1955, foi ativado por Rômulo Almeida, que o instalou, primeiro emdependências da Escola de Enfermagem da UFBA e depois ocupando o quarto andar do prédio daFaculdade de Ciências Econômicas da UFBA. Entre 1955 e 1963, recebeu importantes contribuições deAnibal Villela, John Friedmann e Armando Mendes. De 1960 a 1962, foi dirigido por Manoel Pinto deAguiar. Produziu quantiosa documentação de pesquisa, apoiando o ensino de economia. Suas operaçõesficaram praticamente encerradas em 1963.

7 A Comissão de Planejamento Econômico da Bahia foi fundada em 1955 por Rômulo Almeida naadministração de Antonio Balbino de Carvalho. Em 1959 elaborou o Plano de Desenvolvimento Econômicoe Social da Bahia 1960-1963 (PLANDEB), que não foi aprovado pela Assembléia Estadual, mas que setornou o referencial das políticas econômicas da Bahia até a década de 1980. O PLANDEB foi o primeiroplano de desenvolvimento estadual a compreender políticas específicas de modernização da agricultura(sistema FUNDAGRO) e de industrialização ( proposta de criação do Centro Industrial de Aratu e doCentro Industrial do Subaé)

8 Destaca-se a falta de conhecimento de Gramsci em toda essa experiência, assim como a escassez dereferências à experiência de sociologia política na própria América Latina. Mariategui só veio a serconsiderado já na década de 60.

9 Refere-se às análises e propostas de política da Comissão Econômica para a América Latina dasNações Unidas (CEPAL) liderada pelo economista argentino Raul Prebisch, que em 1949 publicou oEstudo Econômico da América Latina, que veiculou, por primeira vez, a chamada teoria dos termos deintercâmbio desiguais, ou teoria centro-periferia.

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8 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

Nesse sentido, ainda, é oportunolembrar que a reforma tributária, rea-lizada em 1967, supostamente sob ainfluência de idéias de economistascomo W.W. Rostow e Nicholas Kaldor,foi elaborada em 1963. Por último, queas tentativas de estabelecer um refe-rencial de balança de pagamentosinter-regional, auspiciada por RômuloAlmeida,10 apontava para criar ele-mentos objetivos de discussão do con-flito de interesses entre as regiões ri-cas e as pobres.

Ignacio Rangel tornara-se conhe-cido de um público amplo, mais am-plo que o político partidário, com trêstrabalhos, que foram uma Introduçãoao planejamento econômico, recursos oci-osos na capacidade nacional e a Reformaagrária no Brasil. Procurava uma linharealista de argumentação e freqüente-mente era acusado de preferir o gostoda polêmica à vitória de seus argu-mentos. Na verdade, Rangel, com suaargúcia e sentido crítico, exerceu umainfluência profunda que só começoua ser apreciada avançada a décadade 70, quando o regime autoritárioacusava os efeitos de contradições dapolítica mundial, quando tornara-seclaro que o Brasil esgotara sua capa-cidade de gerar e captar poupança apreços compatíveis com sua capaci-dade de pagamento.

Na verdade, já se tornara claro,com as experiências de planejamentonacional nos países latino-america-nos, que se precisava de novas colo-cações sobre o financiamento dos pla-nos de desenvolvimento, que consti-tuíam, de qualquer modo, um esforçoadicional ao do financiamento reque-rido para sustentar a capacidadeoperacional da economia nacional.Por isso, precisava-se de nova leiturado capital financeiro, tanto como seprecisava reconhecer que o Estadoperdera poder, não por ineficiência,mas por deixar de representar os inte-resses do bloco de poder associado aocapital internacional.

Então Rangel tornou-se precursor.Primeiro, porque desde inícios da dé-cada de 60 dissociava claramente in-teresse público de interesse estatal.Segundo, porque demandava maior

realismo da política monetária e finan-ceira, que precisava atualizar-se, fren-te à concentração do capital financei-ro e ao deslocamento do poder inter-nacional na direção de novas associ-ações entre as grandes potências e asinstituições de crédito e financiamen-to. Na década 80, assistiu-se depoi-mentos de “resgate” da contribuiçãode Rangel, por parte de economistasintegrados às estruturas de poderpúblico a que Rangel se opunha.

O texto sobre planejamento tem aespecial virtude de mostrar, clara-mente, a distinção entre os elementosessenciais do planejamento com ati-vidade da sociedade representada nointeresse público e seus elementos cir-cunstanciais, relativos ao momento eao lugar em que ele é realizado. A sus-tentação do crescimento obtido pelaBahia – referia-se, então, ao cresci-mento de 1956 a 1963 – afigurava-secomo um problema essencial, que an-tecipou situação semelhante, a partirde 1985, que retornou na década de1990. A rigor, o problema consistiriaem superar as tendências ao vazamen-to da formação de capital, um tema játocado em trabalhos do IEFB, no rela-tivo à produção cacaueira. Para isso,advertia Rangel, seria preciso encon-trar modos de articular os ganhos deprodutividade do setor primário comos da industrialização. Isso poderiaacontecer mediante o aparecimentode indústrias que se inserissem no sis-tema produtivo nacional, ou com in-dústrias exclusivamente voltadaspara exportação. A proposta do pla-nejamento baiano combinava essesdois objetivos, mas tornou-se claro seresse um objetivo superior à capacida-de de realização do governo estadual.

A questão dos recursos ociosos éparte das peculiaridades da compo-sição do capital e com as estratégiasde formação da taxa de lucro. O siste-ma produtivo, portanto, tende a fun-cionar com certas margens de ociosi-dade. Rangel propunha trabalharcom elas, para usá-las como umsubstitutivo de formação nova de ca-pital. Para isso, entretanto, seria pre-ciso alterar as condições de formaçãoda taxa de lucro, ou seja, ma política

desse tipo teria que situar-se ao níveldo financiamento do desenvolvimen-to (Oyarzún, 1957), jamais podendoaparecer como uma política industri-al, ou como um programa especial.Rangel estimava ser possível mobili-zar margens de capacidade ociosa,mediante políticas econômicas estra-tégicas. Tais objetivos, entretanto, sópoderiam ser concebidos em circuns-tâncias em que o Estado se dispuses-se a interferir na composição do capi-tal, mais que nas taxas de crescimen-to. Isso de atuar na composição domercado interno em algo que realmen-te jamais se fez no Brasil.

A formação de mercado internoregional, indicada pela expansão darenda disponível e pela distribuiçãoda renda, é o outro lado dessa ques-tão. Reconhecidamente, a expansãodo mercado interno era a principaldificuldade do desenvolvimento dasregiões exportadoras como a Bahia,cuja formação de renda vazava parao exterior através da concentração docomércio.11 O crescimento das expor-tações ou os incrementos do produtointerno bruto não significam necessa-riamente que haja uma crescente for-mação de capital, ou que aumente arenda disponível. A expansão do mer-cado interno significa, de fato, queaumenta a capacidade de compra dosdiversos grupos de renda, que assimestimula a diversificação da produ-ção. A mobilidade social e a urbani-zação seriam outros aspectos dessamesma questão. Nada mais apropri-ado de dizer sobre a história econô-mica recente da Bahia.

Os questionamentos de Rangel aoplanejamento referem-se a duas ques-tões centrais, respectivamente, de es-clarecer quem são os participantes doprocesso de planejamento e de esta-belecer qual o campo da economia queele efetivamente atinge. A primeiradessas questões, por sua vez, deve servista em dois níveis: no da definiçãoda estruturação social em que se rea-

10 Ver textos sobre esse tema na revista Econômica,nº. 1 e 2, de 1956.

11 Nessa época houve uma renovação dos estu-dos de distribuição, registrada em FernandoPedrão(1961). Buenos Aires.

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9RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

liza o planejamento e no da estruturagovernamental que planeja. A estrutu-ração social é o fundamento da capa-cidade de planejar, que estabelece ascondições de mobilização social.

Havia, portanto, uma questão re-lativa à capacidade do setor públicoestadual, de visualizar seu papel nocontexto nacional que, em todo caso,compreendia a relação entre o planointernacional e o local. É uma ques-tão complexa, que se apresenta (a) nostermos de uma compreensão do qua-dro internacional; (b) das inter-rela-ções entre o quadro estadual e o naci-onal e (c) de qualidade técnica e ex-pressão social da gestão estadual.Para que o planejamento estadual sejasignificativo, precisa de uma compre-ensão adequada do quadro interna-cional, que não pode ser simplesmen-te um aspecto de uma visão nacionalpré- estabelecida, senão uma análiseprópria, que deve ser parte da forma-ção da visão nacional do quadro in-ternacional. Depende, portanto, deuma análise própria, a ser desenvol-vida como apoio do planejamento.

As inter-relações entre o nível na-cional e o estadual são a parte maiscomplexa do problema, porque envol-vem as composições e os conflitos deinteresse organizados nessas duasesferas, junto com as pressões de am-pliação dos espaços de poder conse-qüentes da subordinação da esferaestadual à federal. O planejamentoestadual terá que ser, portanto, atua-lizado em relação com as condiçõesambientes da política econômica na-cional, em termos de seus objetivos e

de suas características técnicas eorganizacionais. O planejamento es-tadual tem que se adaptar às condi-ções gerais da política nacional e deverefletir as peculiaridades do Estado,isto é, deve diferenciar-se do quadrogeral, com um estilo de trabalho ade-quado para refletir a formação socio-cultural regional.

O contexto teórico do debate so-bre planejamento leva a uma revisãono plano internacional, especialmen-te, em sua influência na América La-tina. É revelador que o referencial teó-rico do planejamento na América La-tina, principalmente transmitido pelaCEPAL, ignorasse quase completa-mente a experiência soviética e seapresentasse como uma alternativabaseada em autores keynesianos, taiscomo Harrod, Kaldor, Joan Robinson,assim como não levasse em conta aliteratura socialista ocidental. Auto-res tais como Maurice Dobb e CharlesBettelheim não foram considerados,apesar de que a CEPAL tomou conhe-cimento da obra de Paul Baran e dePaul Sweezy e que, por volta da déca-da de 1960, já havia um conhecimen-to significativo da corrente marxista.

Para esclarecer quem são os su-jeitos e os objetos do planejamento, épreciso oferecer uma explicação dasociedade em que se planeja. Entre oscríticos do planejamento estatal dadécada de 1950, tornou-se lugar-co-mum apontar a falta de uma análisede classes, ou ainda, de um tratamen-to adequado dos aspectos sociocul-turais da formação dos países. Essascríticas ao economicismo são válidas,

mas não atingem os setores que parti-ciparam de modo crítico do planeja-mento econômico e social nacional. Asobservações de Rangel, nesse sentido,convergem com as de José MedinaEchevarria12 , Pedro Vuskovic,13 Mar-shall Wolfe14 e outros, que refletemuma visão sócio-histórica dessa ati-vidade, diferente do mecanicismo doplanejamento econômico burocratiza-do. Representam, também, certas exi-gências de conhecimento do pensa-mento teórico sobre o planejamento,em que se incluem autores como KarlManheim15 W. Arthur Lewis,16 JanTinbergen 17 e Charles Bettelheim.18

Por trás da discussão crítica doplanejamento do período 1950-1960,houve uma questão relativa à compre-ensão das sociedades latino-america-nas,19 que instigou novos esforçospara conhecer a realidade social lati-no-americana e revelou graves carên-cias do conhecimento dessa realida-de. Como colocou Prebisch em 1970,os latino-americanos sabiam muitopouco de sua realidade e isso os leva-va a uma atitude dependente, tenden-do à subalternidade, no tratamento deseus próprios problemas. Durante osmeses de abril a dezembro daqueleano, Prebisch reuniu uma numerosaequipe, com o objetivo de elaborar umestudo sobre a América Latina, desti-nado a substituir o famoso Estudo eco-nômico da América Latina, de 1949, re-gistrando o maior conhecimento daregião, acumulado entre 1948 e 1970.

O trabalho trouxe para a discus-são do desenvolvimento um conheci-mento da pluralidade latino-america-na que se obtivera naqueles vinte edois anos de análises nacionais e deregiões, entretanto apenas arranhavaa complexidade social do continente.As principais mudanças estavam naincorporação do conhecimento dasexperiências do Brasil e dos países donorte da América Latina, contrastan-do com o Estudo de 49, que foi feitopraticamente sobre a experiência dospaíses do Cone Sul. As críticas deKaldor à teoria centro-periferia, base-ada em termos de intercâmbio desi-guais, aponta, justamente, para com-parações com países tropicais - Cei-

12 Destacam-se suas contribuições ao Estudo da Bolívia (1958) em Subemprego, problema estrutural(1970)

13 Destacam-se seus textos em Discusiones sobre planificación (1965).

14 Há vários ensaios de Marshall Wolfe que foram reunidos em volume intitulado Desenvolvimento paraque e para quem (1976).

15 Ver, especialmente, Ideologia e utopia.

16 Destacam-se Development planning, the essentials of economic policy (19666) e Economic developmentwith unlimited supply of labour (1963).

17 Tinbergen foi mais conhecido por sua contribuição econométrica. Aqui, no entanto, é citado por seuPolítica económica (1961).

18 Refere-se especialmente a Problemas teóricos e práticos da planificação (1961).

19 Cabe aí destacar um conjunto de trabalhos realizados pelo Instituto de Economia da UniversidadeNacional da República do Uruguai entre 1970 e 1972 e trabalhos de Jorge Graciarena e de OswaldoSunkel, que desembocaram nos debates sobre estilos de desenvolvimento e sobre a formação declasses sociais nos países latino-americanos.

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lão, Malasia - em que essa variávelmostrava um comportamento clara-mente diferente do da Argentina, Chi-le e Uruguai.

A questão do conhecimento daAmérica Latina foi reaberta no inícioda década de 70, quando a reavalia-ção das experiências dos países lati-no-americanos mostrava a necessida-de de reunir os elementos sociocultu-rais e os econômicos, superando a di-visão que de fato se instalara entre aabordagem culturalista veículada pe-los trabalhos da União Pan-america-na20 e a abordagem econômica repre-sentada pela CEPAL. Já na década de70, tornara-se evidente que essa bifur-cação disciplinar estava apenas nasuperfície do problema, cuja essênciaera a inadequação da abordagemfuncionalista do lado de sociólogos -influenciados por Talcott Parsons,Donald Pierson e outros - e da abor-dagem positivista do lado dos econo-mistas, representada pelo marginalis-mo neoclássico.

A crítica metodológica formou-sedesde a década de 1960, resultandono reconhecimento, desconfortávelpara os economistas, das limitaçõesdas análises disciplinares, para da-rem conta dos problemas do planeja-mento. A insatisfação com a economianeoclássica foi sucedida por igual in-satisfação com a análise keynesiana,que tinha origens em pensadores su-ecos como Myrdal e Lindahl, mas queprocurava caminhos próprios parauma análise de corte histórico.

Essa divisão, portanto, foi umaconseqüência das posições doutriná-rias subjacentes no debate do plane-jamento. Jamais houve de fato para ospensadores de origem marxista e his-tórica em geral, como Rangel no Bra-sil, Noyola Vazquez no México, Cuevano Equador, Anibal Pinto no Chile.Uma revisão histórica objetiva da li-teratura latino-americana sobre pla-nejamento revela uma profunda dife-rença, já esboçada desde a década de1950, entre as análises desenvolvidascom clareza doutrinária e as que sim-plesmente repetiram padrões operati-vos, sem questionar criticamente ofundamento teórico. Nesse sentido, é

de inestimável valia o depoimento deDarcy Ribeiro (1997) sobre o ladosocioantropológico da leitura daAmérica Latina.

As críticas de Ignacio Rangel aoPlano Trienal apontaram, justamen-te, para sua incapacidade de refletir acontradição fundamental entre umcrescimento baseado em concentraçãode renda e a necessidade de expandiro mercado para empregar a popula-ção em idade de trabalhar e para am-pliar a demanda interna. Textos pos-teriores de Celso Furtado (1972 e 1978)indiretamente deram razão às críticasde Rangel, de 1963.

A definição do campo de interes-se do planejamento é uma conseqü-ência desse esclarecimento. Ao reco-nhecer que o planejamento precisacompreender as sociedades com quetrabalha, coloca-se que seu objeto nãopode ser exclusivamente técnico, se-não que ele trata com a formação soci-al em seu sentido mais amplo. Há umproblema técnico fundamental, rela-tivo ao controle das intervenções nosistema de preços e há um problemasocial, relativo aos efeitos das políti-cas econômicas na participação dosgrupos sociais nos resultados da pro-dução.21 O planejamento simplesmen-te explicita problemas que as políti-cas econômicas suscitam de todosmodos.

Mas há uma diferença fundamen-tal entre os propósitos e as possibili-dades do planejamento. A visão críti-ca do planejamento, em que se inseriaIgnacio Rangel, voltou-se para o pro-cesso social de tomada de decisões,que se refere às condições de diálogocom as esferas de inclusão e os espa-ços de exclusão. Noutras palavras, épreciso explicar quem planeja e quemé planejado. É uma questão de gru-pos sociais concretos e não de insti-tuições abstratas.

Por isso, tornou-se evidente a ne-cessidade de penetrar no problema daformação de classes. A formação declasses no Brasil tem um perfil regio-nal que acompanha a concentraçãode trabalho livre - o autônomo e o as-salariado - por oposição aos espaçosde permanência das oligarquias e das

formas tradicionais de controle patri-monial. A questão agrária é oposta ecomplementar da industrialização daeconomia nacional e da formação deum mercado de trabalho unificado. Aquestão agrária não é um problemarural, mas se coloca ao nível do fun-cionamento do sistema produtivo na-cional. O tratamento dado por Rangelà questão agrária, justamente, mos-trou essa interseção dos movimentosda produção industrial e os da for-mação de valor no campo, com a con-seqüência de que a estrutura fundiá-ria se torna parte do jogo de forças daacumulação do capital industrial.

Desse modo, questiona-se o alcan-ce das políticas econômicas e sociaisque são elaboradas no contexto doplanejamento. Realmente, há proble-mas práticos e operativos, que deter-minaram que os ministérios de pla-nejamento e as secretarias de plane-jamento passassem de órgãos espe-ciais das presidências da república aministérios de orçamento e encarre-gados da gestão do equilíbrio macro-econômico, incapazes de exercer suasfunções iniciais de elaboração de pla-nos e de coordenação de sua execu-ção. Todo esse processo foi prejudica-do por uma separação entre a experi-ência prática de elaborar planos e pro-gramas de desenvolvimento e o tra-balho teórico com as técnicas e os ins-trumentos do planejamento. A expe-riência prática foi, principalmente, defuncionários que quase nunca eramacadêmicos, enquanto o trabalho teó-rico não foi realimentado pelo conhe-cimento do desempenho dos progra-mas e projetos. Surgiram conseqüên-cias negativas que são conhecidas atéo presente, com a perda irreparávelda memória institucional da experi-ência da política econômica.

Por isso, a discussão de uma pro-posta específica de planejamento vem

20 Depois convertida em Organização dos EstadosAmericanos (OEA).

21 Observa-se que essa questão social foi, poste-riormente reduzida aos termos de políticas espe-cíficas de educação e de saúde, como se essesdois campos de interesse estivessem separa-dos da distribuição da renda e da participação nocrescimento da renda.

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a ser o modo de questionar os modosde administrar os interesses públicos,por ende de expor as estratégias depoder. Conseqüentemente, na prática,o planejamento enfrentou os conflitosde interesse entre a esfera privada e aesfera pública (Habermas, 1978) e ascontradições entre a racionalidadeestatal e os interesses representadospelo Estado (Habermas, 1986). Emcada uma delas, enfrentou conflitosentre interesses localmente organiza-dos e interesses internacionalmenteorganizados, tendo-se visto, desdemeados da década de 80, que os inte-resses internacionais prevaleceram demodo quase irrestrito.

O planejamento estadual refleteduplamente essa tensão entre a esfe-ra política e a econômica, porque tra-balha com restrições externas e comas restrições do equilíbrio nacional depoder. As tendências da concentraçãodo capital têm levado a uma corres-pondente concentração do poder dedecisão nos governos centrais, querestringem as margens de autonomiade decisão e de criatividade dos esta-dos. As principais margens de liber-dade dos estados têm estado, justa-mente, em torno de alterações do pa-drão de localização de indústrias. Daí,a importância e a popularidade dateoria dos pólos de crescimento, queexplora essas margens de autonomiade decisão estadual.

A experiência do Estado da Bahiaentre 1955 e 1963 foi, justamente, deum processo de trabalho que funcio-nava como proponente de medidasinovadoras, portanto, que assumia opapel de representar uma racionali-dade mais igualitária e moderna quea prevalecente. Os antecedentes des-ta sociedade pós-escravista represen-tavam uma dificuldade especialmen-te difícil de transpor, especialmente norelativo à modernização do interior.Não surpreende, portanto, que o pro-cesso se apoiasse mais em iniciativasde industrialização.

O planejamento, portanto, revelaa linha de tensão entre a necessidadede uma unidade de critério de deci-são e a pluralidade de interesses en-volvida nos diversos campos das po-líticas econômicas e sociais. A capa-cidade de planejar depende em últi-

ma análise da representatividade dogoverno e não de um problema técni-co, que afinal é subordinado do ante-rior. Assim, junto com as margens deopção do que se escolhe fazer, há umaquestão oposta, relativa ao que não sepode deixar de fazer. A política eco-nômica está constituída em parte poredecisões que não podem ser evitadase em parte por decisões escolhidas. Agrande questão consiste em adminis-trar as margens de autonomia de de-cisão para alcançar resultados técni-ca e socialmente consistentes e ampli-ar a capacidade da sociedade paracriar e realizar políticas econômicassignificativas.

O problema técnico consiste narelação ente o aumento do uso de de-terminados materiais e seus preçosrelativos no sistema produtivo, admi-tindo que são inevitáveis as defasa-gens no ajuste da oferta desses pro-dutos. Por extensão, significa que osincrementos de investimento em de-terminadas linhas de produção são,também, pressões, no sentido dedesequilíbrios do sistema de produ-ção. O problema social compreende oaspecto de eqüidade e os efeitos res-tritivos do mercado dos movimentosnegativos da distribuição, que surgemda tendência ao aumento da densi-dade de capital dos novos investimen-tos. O argumento da substituição domercado interno pelas exportaçõescontém uma falácia insuperável, dadoque a generalização do problema deestreitamento da demanda internaanula as opções de vendas ao exterior.O bloqueio externo, nesse caso, surgeda perda de capacidade para partici-par das trocas internacionais, antesmesmo de quaisquer movimentos fi-nanceiros adversos. Noutras pala-vras, significa que um perfil regressi-vo de distribuição converte-se em blo-queio progressivamente crescente dosistema de produção.

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IPA - Instituto dePesquisas Aplicadas da UNIFACS

A instituição

O IPA é uma sociedade sem fins lucra-tivos vinculada programaticamente àUNIFACS – Universidade Salvador,uma instituição de ensino superiorbaiana que mantém em funcionamen-to 21 cursos de graduação universitá-ria, quatro mestrados e dois doutora-dos, além de uma pós-graduação lato-sensu.

Objetivos

O IPA atua na área de pesquisa e ex-tensão, executando os mais diversosserviços técnicos. Assim, através dosseus quadros, o IPA está apto a reali-zar os seguintes trabalhos:

• Pesquisa

• Planejamento, programas e proje-tos

• Estudos e análises

• Consultoria• Treinamento

O IPA constitui-se em um centro deintegração da Universidade com as em-presas, as instituições públicas e priva-das, procurando associar as atividadesacadêmicas aos esforços que são pro-movidos pela sociedade na busca denovos patamares de desenvolvimentoeconômico e social.

Áreas de atuação

O IPA atua nas áreas que são objeto doscursos superiores e da Pós-Graduaçãoda UNIFACS, constituindo-se em cam-po de atividades e estágios para os seus

professores e alunos. Os cursos de gradu-ação são os seguintes:

1. Administração de Empresas;

2. Arquitetura e Urbanismo;3. Ciência da Computação (Análise de

Sistemas);

4. Ciência da Computação (Suporte);

5. Ciências Contábeis;

6. Ciências Econômicas (Economia Em-presarial);

7. Ciências Sociais (Consultoria, Plane-jamento e Pesquisa Sócio-Econômica);

8. Comércio Exterior;

9. Comunicação Social (Publicidade ePropaganda);

10. Comunicação Social (Relações Públi-cas);

11. Direito;

12. Educação Artística (Computação Grá-fica);

13. Engenharia Civil;

14. Engenharia Elétrica;15. Engenharia Mecânica;

16. Engenharia Química;

17. Hotelaria;

18. Letras (Tradução);19. Matemática;

20. Psicologia;

21. Turismo.

Os mestrados são os seguintes:

1. Análise Regional (recomendado pelaCAPES);

2. Rede de Computadores;

3. Regulação da Indústria de Energia;

4. Administração.

E os cursos de Doutorado são:

1. Planejamento Territorial e Desen-volvimento Regional (em convêniocom a Universidade de Barcelona,Espanha);

2. Administração Pública (em convê-nio com a Universidade Complu-tense de Madrid, Espanha.

O IPA atua integrado com o Centro deEstudos do Desenvolvimento Regio-nal – CEDRE, da UNIFACS, operandonas seguintes áreas temáticas de pes-quisa:

1. Desenvolvimento Sócio-EconômicoRegional;

2. Desenvolvimento de Organizações;

3. Tecnologia da Educação;

4. Processos de Comunicação e Cultu-ra;

5. Turismo.

Localização

IPA - Instituto de Pesquisas Aplicadas

Rua das Violetas, 42 - PitubaSalvador - Bahia - BrasilCEP: 41.810-800Tel: (55-71) 452-6422Fax: (55-71) 452-1557E-Mail: [email protected]

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1 – Introdução

A economia baiana, depoisde um longo período de estagnação,caracterizado por ínfimo incrementode sua renda per capita e por umimobilismo social aparentementeinvencível, parece haver entrado, pormeados do passado decênio, em umperíodo de grande dinamismo econô-mico e de grande fluidez social, pro-pícios ao aparecimento de novas re-lações de produção e de novos esque-mas de divisão social do trabalho,mais concordes com o novo balançoregional das forças produtivas.

Contrariamente, portanto, aos es-quemas anteriores de planejamentoelaborados para a Bahia, a exemplodo Plandeb e da programação daSudene, no que interessa a este Esta-do, os quais antes de tudo, visavam asuscitar precisamente esse estado decoisas, nosso objetivo presente deveser, partindo da nova realidade,aprofundar os êxitos obtidos, assegu-rar-lhes continuidade e resolver osnovos problemas suscitados pelo de-senvolvimento em marcha.

Uma vez rompidos o imobilismosocial e a estagnação econômica, a pró-pria vida suscita um elenco de proble-mas que é o material básico sobre o qualdeve trabalhar o programador. A esteincumbe definir a etiologia do proces-so começado, determinar sua duraçãoe perspectivas de continuidade e to-mar posição perante os problemas em

processo de formulação e solução.A ausência de problemática – que

era, afinal, a essência da anterior pro-blemática do desenvolvimento baiano– condicionou na consciência dosquadros políticos e técnicos da Bahiae na própria opinião uma atitude ge-ral hostil a uma correta formulaçãodos problemas, porque refletem umestado de coisas que não mais existe.O primeiro trabalho, assim, consistea fazer subir à luz da consciência so-cial e técnica a nova realidade, paraque esta, entrando em conflito comaquela atitude geral, suscite uma ou-tra atitude que tenha olhos para veros problemas realmente em causa.

Essa mudança de atitude exigedos quadros técnicos e políticos umcomportamento realmente científico,vale dizer, humilde em relação aosfatos. O programador – tanto no níveltécnico, como no político – guarda,por certo, considerável margem dearbítrio em suas decisões, mas é ób-vio que esse arbítrio somente se refereà escolha entre as diferentes soluçõesobjetivamente possíveis para os pro-blemas em pauta, não aos problemasem si mesmos. Estes são dados da vidareal e, relativamente a eles, não temosoutra opção senão pesquisá-los comtoda objetividade, para conhecê-los.

Não é fácil essa atitude, tantomais quanto ela se choca com rotinasestabelecidas e com teorias que, bemou mal, refletindo um estado de coi-sas pretérito, condicionaram a forma-ção de novos quadros e levaram os

mais antigos a uma elevada medidade comprometimento pessoal. Talvezcontribua para suscitar o indispen-sável desprendimento metodológico,para induzir a decisão de rever ospontos de vista mais solidamente ar-raigados, o confronto cronológico dasteorias e hábitos de trabalho a aban-donar sem piedade, com o comporta-mento objetivo da economia baiana: éque aquelas teorias e aqueles hábitossurgiram precisamente no momentoem que a economia baiana abando-nava o seu imobilismo e a sua estag-nação, de modo que bem podemosdefini-los como uma das formas dereação do corpo social ao antigo esta-do de coisas.

Esta primeira tomada de cons-ciência – necessariamente equivoca-da, porque se fez a partir do conheci-mento de um estado real de coisas que,precisamente, começava a desapare-cer, mas que não podia ser apreendi-do pelo espírito senão através do es-tudo de dados relativos à situaçãopretérita, do tempo em que a mudan-

Ignácio M. RangelRenomado economista e planejador.

BREVES NOTAS COM VISTA A UMPLANO DE DESENVOLVIMENTO

ECONÔMICO PARA A BAHIA

... a economiabaiana

abandonou oseu

imobilismo ea sua

estagnação ...

(1)

(1) Texto inédito. Elaborado em 1963 por solicitação da CPE/Bahia.

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ça ainda não se havia evidenciado –essa primeira tomada de consciênciadesempenhou um importante papelhistórico, ao induzir no corpo socialuma atitude militante em favor damudança real, convertendo-se, assim,numa força objetiva de mudança.

Isso não obstante, urge abando-nar a atitude estabelecida porque, re-fletindo fatos que não mais corres-pondem à realidade presente, impe-de uma posição científica em relaçãoà realidade e torna impossível oplanejamento econômico, salvo comosimples enumeração dos desejos docorpo social, mas que não corres-pondem obrigatoriamente às neces-sidades verdadeiras do sistema.

2 – Os indícios objetivos demudança de tendência

O ponto de partida do planeja-mento do desenvolvimento da econo-mia baiana – e da economia nordesti-na como um todo – deve ser, assim, atomada de consciência metódica dosfatos que indiciam a histórica mudan-ça de trend, ou tendência, acima alu-dida. Essa decisiva mudança se de-nuncia por fatos ineditamente mensu-ráveis e por outros que o são menos,no presente estágio de informação,mas que podem, desde já, ser percebi-dos por critérios qualitativos – semque isso dispense um sério esforçoulterior de documentação e respeito.Entre os sintomas preliminarmentequantificáveis, vamos encontrar osdados revelados pelo último CensoDemográfico (1960) e os dados sinté-ticos da contabilidade social relati-vos ao decênio anterior, divulgadospelo Plano Trienal de Desenvolvimen-to Econômico e Social . Examinemospreviamente esses dados, para a se-guir discutir alguns indícios concomi-tantes, ainda não quantificáveis.

I – os dados demográficos: segun-do os dados já divulgados do últimoCenso Demográfico, a Bahia foi, nopassado decênio, palco de importan-tes movimentos populacionais, resu-midos no quadro I, em anexo, osquais exprimem basicamente:

a) um intenso processo de aden-samento de populações nos quadrosurbanos e quase urbanos (incremen-to de 66,6 % da população urbana, paraum crescimento de apenas 9,3% dapopulação rural, no decênio 1950/60);

b) intensas migrações internas(entre as diversas zonas do Estado),denunciando a presença de um enér-gico processo de colonização internade novas áreas, cabendo destacar oExtremo Sul, cuja população mais quedobrou no decênio e, no outro lado, aChapada Diamantina, cuja popula-ção diminuiu, em termos absolutos;

c) considerável emigração paraoutras regiões do País – talvez 10 a 12por mil habitantes por ano, absorven-do cerca de 1/3 de incremento vegeta-tivo, seguramente superior ao nacio-nal, que foi de 3,1% ao ano.’

Os resultados divulgados são in-completos, com a conspícua ausênciade informações sobre “população pre-sente”, segundo a origem. Mas é mui-to provável que os dados acima, so-bre as emigrações líquidas, não digamtudo. Deve ter havido também umaintensa permuta de populações, refle-tindo o trânsito do sentido geral doNorte para o Sul do País, o que, se con-firmado, implicaria na definição decertos problemas econômicos e soci-ais, e medindo a crescente integraçãoda Bahia na economia nacional.

Entretanto, o defeito fundamentaldos dados demográficos disponíveisestá em que não nos permitem dataros movimentos migratórios. Essa fa-lha é parcialmente coberta pelas in-formações econômicas que discutire-mos adiante. Essas permitem situar,para todo o Nordeste – salvo para oMaranhão e para a Bahia – o ano de1955 como aquele que assistiu a mu-dança da tendência geral. Para essesdois estados, o “ano da mudança”parece ter sido o de 1956. Ora, seriade estranhar que os movimentosdemográficos não guardassem umaestreita correlação com os movimen-tos de renda, de modo que podemosformular a hipótese de trabalho de queas migrações, tanto as internas (doquadro rural para o urbano e asinterzonais) como as externas (emi-

gração e imigração interestaduais) te-nham sido crescentes e continuemcrescentes ainda.

Confirmada essa hipótese, ceterisparibus, o movimento da renda percapita que a seguir discutiremos seriaainda maior que o indicado, cujo cál-culo assenta no suposto simplificadorde que o incremento demográfico semanteve constante, em termos geomé-tricos, durante todo o decênio. Se, aocontrário, esse incremento foi decres-cente por efeito de maior emigraçãolíquida, a variação da renda per capita,constantes as demais circunstânciasque discutiremos em lugar próprio,terá sido maior do que a aparente.

As informações demográficas dis-poníveis nos permitem inferir precio-sas indicações de prioridade econô-mica e de problemática sociológica, asaber:

O novo Plano de Desenvolvimen-to deve ter em consideração os pro-blemas implícitos:

a) na crescente urbanização;b) na intensificação dos fluxos

de migração intra-estaduais;c) na crescente emigração.

II – Os dados econômicos: segun-do os dados disponíveis da contabili-dade social, aumentou no último de-cênio a participação da Bahia na ren-da nacional, passando de 4,4% em

Asinformaçõesdemográficas

disponíveis nospermitem inferir

preciosasindicações de

prioridadeeconômica e deproblemáticasociológica...

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1950 a 4,7% em 1960, isso depois dehaver declinado, no meio do período,a 4,2%. Segue-se que, se retivermosapenas as informações relativas aosegundo lustro, registrou-se um im-portante melhoramento da posiçãorelativa da Bahia, cuja participaçãona renda nacional passou de 4,2% a4,7%, no qüinqüênio, movimento tan-to mais importante quanto a rendanacional, no período, esteve crescen-do à razão de 6% a 7% ao ano. Istoqualifica a Bahia como uma das regi-ões de mais rápido desenvolvimentoeconômico do Brasil, sem paralelopossível com as economias nacionaisde dimensões comparáveis a ela daAmérica Latina – a exemplo dos paí-ses centro-americanos – com os quaisera outrora de hábito de compará-la.

Entretanto, os movimento da ren-da regional não esgotam a matéria,considerando que, como acima vimos,a Bahia comportou-se como uma áreade intensa emigração para outros es-tados da Federação, perdendo cercade 1/3 do seu incremento vegetativoprovável no passado decênio e, pos-sivelmente, mais do que isso, no se-gundo lustro, do qual nos ocupamosagora. A comparação em termos derenda per capita revela resultados re-gionais ainda mais brilhantes, haven-do partido do índice 53,1% em 1947(Plandeb, parte geral, p.5) a 55,7% em1960 (média nacional igual a 100),segundo dados do Plano Trienal re-cém publicado (Síntese, p. 84, quadroXXVI), depois de haver descido, em1956, ao nível de 47,5%.

O Plano Trienal consigna os se-guintes índices para o último decê-nio, relativamente à renda per capitanacional:

a renda per capita baiana elevou-se a uma taxa anual, no último quadriênio dopassado decênio, de mais de 7% - índice que não admite comparação no con-tinente americano e que supera o do Mercado Comum Europeu (4%), e secompara bem com o de países socialistas como a União Soviética. Pouquís-simos países do mundo podem orgulhar-se de tais índices.

Se compararmos a evolução da renda per capita baiana com a de São Paulo,o Estado líder da Federação e cujo desenvolvimento excepcional era costumeexplicar-se parcialmente como fruto de “expoliação” levada a efeito de diver-sos modos, contra a economia baiana, teremos, segundo os dados do PlanoTrienal:

1950 1955 1956 1957 1958 1959 196949,7 48,6 47,5 48,8 50,2 51,7 55,7

Se retivermos apenas os dadoscorrespondentes ao segundo lustro dodecênio, temos que a renda per capitada Bahia passou de 48,6% a 55,7%.Conservando apenas os dados do pe-ríodo 1956/60, passou de 47,5% a55,7%. Ora, considerando que a ren-da nacional per capita esteve evoluin-do à taxa anual de mais de 3% ao ano,

Trata-se de um movimento relati-vo ainda mais vivo do que se toma-mos a media nacional para termo decomparação, visto como o enérgicodesenvolvimento paulista é parcial-mente absorvido por efeito de sua ex-cepcional expansão demográfica, emcorrentes imigratórias, parcialmenteoriginárias da Bahia. Somente pelaHospedaria de Imigrantes da capitalpaulista passaram, no decênio, maisde duzentos mil baianos.

III – Informações não mensuráveis: os dados econômicos supra não po-dem ser aceitos diretamente sem críti-ca. Esses dados, dos quais tanto abu-samos antes para o efeito de demons-trar a perda de substância da econo-mia baiana, podem induzir um erro,se não os criticarmos à luz de certascircunstâncias, nem sempre quantita-tivamente determináveis.

A primeira dessas circunstânciasa reter está no suposto estatísticosimplificador de que o crescimentodemográfico, tanto do País, como decada uma de suas regiões, manteve-se constante, em termos geométricos,durante todo o decênio. Retirado estesuposto, teríamos, plausivamente, ummovimento relativo mais enérgico queo indicado, porque a emigraçãobaiana para o resto do País, inclusivepara São Paulo, foi provavelmentecrescente. Não é possível, entretanto,mensurar a importância desse movi-mento relativo. Sabemos apenas quefoi no último lustro do decênio que

entraram em atividade as vias inter-nas transparentes que, em conseqü-ência de certas mudanças nas relaçõesde produção baiana, se tornou maisintenso o processo de formação desuperpopulação rural que, com o de-senvolvimento da indústria de base,no Centro-Sul, tournou-se maior ademanda de mão-de-obra e que, como surto rodoviário, abriu-se realmen-te a “fronteira econômica ocidental”(Maranhão, Goiás, etc.).

Em segundo lugar, temos um fatonotório, também, mas não mensurável,de profundas mudanças nas relaçõesde produção baiana. No quadro rural,foram introduzidas novas técnicas deprodução e de transporte, aprofun-dando-se a tendência à proletarizaçãodas massas trabalhadoras e à mer-cantilização de toda a produção. Noquadro urbano, teve início um enérgi-co processo de transferência, para forada família, de certas atividades pro-dutivas ou de poupança de mão-de-obra doméstica pelo emprego de equi-pamento mecanizado (o fogão a gás, ageladeira e a máquina de lavar, a ilu-minação elétrica, etc.). O efeito líquidode todo esse processo é a passagem departe da atividade produtiva, dos qua-dros da economia natural (auto-con-sumo), para os quadros da economiade mercado e monetária. Noutros ter-mos, parte da anterior produção queescapava à contabilidade social, pas-sa para novas condições nas quaisaquela a registra, dando origem a umaumento aparente de renda.

1950 1955 1956 1960Renda per capita de São Paulo 100 100 100 100Renda per capita da Bahia 26,4 25,9 26,6 31,3

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Esse mesmo movimento é comum,se bem que com diversa intensidade,ao País como um todo, de modo queseu efeito final seria mais um descon-to da taxa admitida de incremento darenda nacional do que do incrementorelativo da renda baiana em compa-ração com aquela. A diminuição rela-tiva da renda per capita do Estado deGoiás, por exemplo, pode explicar-sepela circunstância de que o desenvol-vimento dessa unidade da Federaçãose faz, em parte, nos quadros de ummovimento em sentido inverso, isto é,de aumento relativo da parte repre-sentada, no produto total, pela pro-dução natural, em detrimento da pro-dução para o mercado (democratiza-ção da propriedade territorial, com oconseqüente aparecimento de nume-rosas pequenas explorações agrícolasrelativamente “fechadas”, isto é, vol-tadas para o auto-consumo).

Uma terceira circunstância a con-siderar seria a influência do petróleoe na economia baiana. Trata-se de umaatividade altamente mecanizada, queagrega relativamente pouco valor naBahia e que pode, assim, falsear osdados da contabilidade social, se nãotomamos certas cautelas no modo decontabilizar.

Entretanto, basta considerar quea evolução que ora estudamos na eco-nomia baiana não é privativa dela. Éum fato comum a toda a economianordestina, desde o Maranhão àBahia, sendo de notar que essas duasunidades foram, aparentemente, retar-datárias, relativamente às restantes,no processo de recuperação.

Estamos, visivelmente, em presen-ça de um movimento profundo, queinteressa à economia nordestinacomo tal, e que não pode ser mini-mizado. Embora sua significação realnão seja rigorosamente a indicadapelos dados resumidos à renda regio-nal e a renda per capita, esses dadossão essencialmente válidos, de modoque nosso dever é determinar a etiolo-gia do movimento, ao invés de per-dermos tempo, sob a inspiração doshábitos adquiridos e de idéias arrai-gadas, com a negação do fato eviden-te de que a Bahia, juntamente com

todo o Nordeste, entrou em processode vigorosa liquidação do seu atrasorelativo e absoluto.

3 – Causação do surto dedesenvolvimento daBahia

Constatado o surto de desenvol-vimento experimentado pela econo-mia baiana a partir de 1956 e que, emsua forma mais sintética se exprimepor uma taxa de incremento anual darenda per capita da ordem de 7% - umadas mais elevadas de todo o mundo,chega o momento de determinar aetiologia desse movimento. Noutrostermos, como se explica que a econo-mia baiana, numa época em que eravoz corrente que estava em processode perda de substância, estivesse defato em processo de tão enérgica recu-peração.

A resposta mais simples a essapergunta é a emigração. Com efeito,são tão arraigados os preconceitos li-gados à idéia de estagnação da eco-nomia baiana (a nordestina) que, con-frontadas com o fato do desenvolvi-mento econômico, não só a opiniãoleiga, mas também a opinião técnicase voltam à procura de argumentosque provem que esse desenvolvimen-to não é verdadeiro, mas uma simplesilusão, causada pelo despovoamentoda região. Considerando que era no-tório que uma parte da população emcondições de trabalhar estava desem-pregada, isto é, não contribuía para aprodução, é óbvio que a retirada departe desse excedente diminuiria odenominador da razão, sem afetar onumerador (renda/população).

Essa explicação simplista se des-faz ante os seguintes fatos:

a) não obstante a emigração, apopulação esteve crescente, no decê-nio, ao ritmo de 2,17% ao ano – ritmosuperior à média mundial ;

b) não obstante a redução dopeso da Bahia no balanço demográ-fico nacional, aumentou o seu pesono balanço econômico.

A segunda explicação correntesitua a causa essencial do desenvol-vimento nas entradas de capitais,para o financiamento de obras públi-cas ou de indústrias e serviços debase, com recursos da União ou pri-vados, além dos investimentos estran-geiros. Um dos cacoetes mais notóri-os do pensamento econômico nordes-tino é este, que consiste em atribuirefeitos quase milagrosos às entradasde capitais.

Para reduzir essa causa a suasverdadeiras dimensões, basta consi-derar que a Bahia – como todo o Nor-deste – comporta-se provavelmentecomo o exportador líquido de capitais(do mesmo modo como é exportadorlíquido de mão-de-obra), pelo menosno que tange aos movimentos da pou-pança privada. Sem medo de errar,podemos afirmar que o desenvolvi-mento econômico da Bahia se fez ape-sar das saídas líquidas de capitais(pelo que interessa à criação de novacapacidade produtiva) e por causadas saídas líquidas de capitais (peloque toca ao processo de formação dedemanda, via fluxo de pagamento efatores).

As novas indústrias, os novosserviços de base e as obras públicasfeitas no Nordeste e na Bahia, desdemuito antes de ter início o processode recuperação, interessam, por cer-to, a esse processo, mas não como efei-to da entrada líquida de capital, quefoi de fato muito pequena, senão ne-gativa, e sim por sua influência sobrea função regional de produção. Asestradas, os serviços de eletricidade,as instalações da Petrobras, etc. pre-pararam o caminho para a criação denovas oportunidades de inversão,capazes de absorver capital local e deempregar mão-de-obra regional, masforam esses investimentos – acresci-dos da saída de recursos e de mão-de-

... a Bahiaaumentou o seupeso no balanço

econômico...

”“

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obra – que, em última instância pude-ram em marcha a economia regional.

A causação do presente surto dedesenvolvimento é, portanto, exóge-na, em relação à Bahia. Deve-se à in-fluência multiforme do resto da eco-nomia nacional sobre a economiabaiana, especialmente sobre as se-guintes formas:

a) a União Federal, ao inverterseus próprios recursos ou ao assumira responsabilidade por investimentosestrangeiros na região, causou umaprofunda mudança na função regio-nal de produção;

b) o resto da Federação, ao ofe-recer oportunidades de inversão paraos excedentes da poupança regional,induziu uma maior utilização para opotencial produtivo já existente naregião, elevando a renda regional e,mais que proporcionalmente a esta, apoupança regional, graças ao que, nãoobstante os aumentos dos investimen-tos locais e da fuga de capitais paraoutras regiões, o dinheiro continuamais barato na Bahia do que no Cen-tro-Sul;

c) o resto da Federação, ao ofe-recer oportunidade de emprego paraos excedentes de mão-de-obra daBahia, tanto no quadro urbano, comono rural e tanto no Centro-Sul, comonas novas províncias do Oeste e doNorte, reduziu esse excedente, sane-ando o mercado de mão-de-obra, in-duzindo investimentos poupadoresde mão-de-obra, tanto no quadro daempresa, como no quadro da família,e lançando um desafio ao latifundiá-rio baiano, em conseqüência do quala agricultura está gradativamentepassando dos moldes feudais para osmoldes capitalistas;

d) ao se expandir, o mercadonacional cria demanda para produ-tos da Bahia, tanto os aqui produzi-dos, como os recebidos do Exterior emcontrapartida de suas exportações.

Trata-se, pois, de um fenômeno derelação, somente explicável pelo fatode ser a Bahia parte inseparável daFederação brasileira, inconcebível,nas presentes condições do mercadomundial, se ela constituísse uma pe-quena nação independente. Não é um

fenômeno simples, suscetível de serapreendido diretamente pelo bom sen-so popular, mas um fenômeno extre-mamente complexo, que não deve serjulgado pelos seus detalhes, mas peloseu resultado final. Ora, esse resulta-do final se exprime pelo fato de que arenda per capita da Bahia está crescen-do a ritmo sete vezes maior que os dosoutros países da América Latina

(Plano Trienal (Síntese), p. 23) epelas mudanças nas relações de pro-dução que, aos olhos do especialista,significam que, dependendo do queaconteça na economia nacional comoum todo, prenunciam desenvolvimen-to ainda maior no futuro.

4 – Perspectivas decontinuidade do surtode desenvolvimento:A continuidade do presente surto

de desenvolvimento não pode ser con-siderada como assegurada. Ao con-trário, como fenômeno de relação como resto do País, esse desenvolvimentodepende de que prossiga também aexpansão de toda a economia nacio-nal e de que essa expansão assumaformas propícias ao crescimento daeconomia baiana, como até agora. Poroutro lado, depende de que a econo-mia baiana tenha a capacidade de le-var a suas últimas conseqüências asmudanças já iniciadas em suas rela-ções de produção e de provocar ain-da outras mudanças.

Quanto à primeira condição decontinuidade e eventual elevação doritmo do desenvolvimento, pouco háa dizer aqui. Trata-se de um problemaindivisivelmente nacional em relaçãoao qual a Bahia se deve comportarcomo todas as demais unidades daFederação, como todas as classes estrata sociais, e como todos os cida-dãos: subordinar seus próprios inte-resses aos interesses gerais do País,pois é do desenvolvimento econômi-co nacional que tudo depende. Nãose trata de uma palavra de ordem va-zia e demagógica, mas de um impera-tivo vital, que a Bahia compreenderáem toda sua extensão quando apre-

ender os fatos relacionados ao seupróprio desenvolvimento. A experiên-cia demonstra que uma determinadaregião pode, durante certo lapso detempo, ser prejudicada nos quadrosde um desenvolvimento não planifi-cado da economia nacional, ou de umdesenvolvimento só parcialmente pla-nificado. Entretanto, enquanto persis-tir a mobilidade de fatores, isto é, en-quanto os imperativos da unidadenacional predominarem sobre osexclusivismos regionais, esses sacri-fícios serão transitórios, porque o de-senvolvimento da economia nacionalserá uno. E, mesmo nos períodos dedecadência relativa, a unidade naci-onal terá o sentido concreto de que osnaturais da região decadente poderãomudar-se para aquelas que se estejamno momento beneficiando mais dodesenvolvimento nacional, como ci-dadãos da mesma Pátria e com osmesmo direitos – o que não acontece-ria se os exclusivismos regionais pre-dominassem e se a unidade se rom-pesse ou se debilitasse.

Quanto à segunda condição, aocontrário, nos quadros políticos e ju-rídicos em que está organizada daFederação brasileira, como resposta asua peculiar estrutura sócio-econô-mica, é um problema essencialmenteregional, estadual e, por vezes local.A experiência demonstra que as mu-danças nas relações de produção,dentro de quadros institucionais elás-ticos, como são os nossos, podem terinício e avançar muito, em certas áre-as do País, enquanto noutras persis-tem antigas relações de produção.

No sertão árido da Bahia, porexemplo, a escravidão entrou em de-cadência, sendo substituída pelas re-lações feudais na agricultura, enquan-to no Recôncavo ela permanecia soli-damente estabelecida. O Rio Grandedo Sul quase não conheceu a escravi-dão e o Ceará, através de leis munici-pais, coroadas por uma lei provinci-al, aboliu a escravidão antes que oImpério o fizesse.

Hodiernamente, temos vários ti-pos de relação de produção na agri-cultura brasileira, desde relações ti-picamente feudais a relações capita-

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listas, de puro salariato, passando porformas pequeno-produtoras de mer-cadorias, cujos arquétipos se encon-tram no Vale do Itajaí, em SantaCatarina e na região da Serra, do RioGrande do Sul, no próprio Nordeste,onde coincidiram condições ecológi-cas e sóciopolíticas, isso também sedá. Finalmente, em Goiás, sem queisso escandalize a sociedade brasilei-ra como um todo, a reforma agrária,no sentido convencional do termo, istoé, no sentido de parcelamento do solopara a criação de agricultura semina-tural e pequeno-produtora de merca-dorias, está em marcha, com a distri-buição, pelo Governo, de milhões dehectares de terras.

Ora, o presente surto de desenvol-vimento da Bahia conflita abertamen-te com a estrutura agrária herdada ecom os seus reflexos sobre a econo-mia urbana. Uma ecologia peculiar,hostil à formação da pequena propri-edade, porque incapaz de dar supor-te, com a técnica atualmente ao nos-so alcance, à policultura típica dessetipo de exploração, dificultou o pro-cesso de superação de formas feudaisde ocupação de terra. Como regra ge-ral, a pequena exploração campone-sa, onde aparecia, ou era arrasadaperiodicamente pela seca (na área do

Polígono) e não se podia impor comoforma independente de exploração dosolo e afirmando-se politicamentecomo fator de renovação da estrutu-ra, ou, nas áreas úmidas, depois deuns poucos anos de prosperidade,entrava em decadência, por efeito daerosão ou da laterização dos solos.

Essas mesmas terras, entretanto,se mostravam muito propícias a ou-tro tipo de exploração – a lavouramonoculturista, ecologicamente ajus-tada, como a cana-de-açúcar nomassapê de Santo Amaro, necessari-amente mercantil, porque exigia a ven-da de quase todo o produto e a com-pra dos bens e serviços necessáriosao consumo e ao investimento. Emcertas condições essa lavoura exigeuma grande exploração, somente pos-sível como empreendimento capitalis-ta, ao passo que noutros – como é ocaso do fumo e da agricultura horti-granjeira – é perfeitamente compatí-vel com a pequena unidade. Nos doiscasos, porém, será sempre uma ativi-dade mercantil, altamente dependen-te da estabilidade do mercado, no quetange aos preços e às quantidades.

Esta é a causa real pela qual oNordeste permaneceu à margem dodesenvolvimento nacional, pelo me-nos em termos relativos, e até recente-

mente. Essa situação mudou quando,em conseqüência do aparecimento denovos meios de transporte (rodovias)e de inovações tecnológicas, como aintrodução de culturas resistentes àseca, ou capazes de prosperar em ter-ras antes consideradas sáfaras ou, emgeral, mais ajustadas ecologicamen-te, a agricultura regional teve passolivre para uma produção crescente-mente especializada. A produtivida-de do trabalho agrícola aumenta ver-ticalmente, e este é um fato decisivopara a caracterização da presente pro-blemática econômica da Bahia.

Com efeito, o aumento da produ-tividade do trabalho agrícola, em con-seqüência da especialização e da in-trodução de inovações tecnológicasfacultadas por essa especialização,resulta, por um lado, na tendência àformação de excedentes agrícolas e,por outro, na formação de excedentesde mão-de-obra, no quadro rural, osquais, pela transferência para o qua-dro urbano, dão origem ao desempre-go urbano. Na origem da crise da eco-nomia baiana, que persiste, nãoobstante o seu excepcional surto dedesenvolvimento, vamos encontrar,não uma manifestação de debilidadeou de impotência, mas uma manifes-tação de vigor.

TABELA 1Bahia – População e números absolutos e crescimento em números relativos – 1950/1960

CRESCIMENTO PERCENTUALTAXA DE

CRESCIMENTOZONASFISIOGRÁFICAS

POPULAÇÃODE 1960

Total Urbano RuralÁreas de

emigraçãoÁreas deimigração

DENSIDADEDEMOGRÁFICA

Habitante por Km2

(1960)

1 Recôncavoa) exclusive Salvadorb) apenas Salvador

1.251.574 36,619,357,2

60,451,764,0

1,04,1

- 38,4

-1,78

-

3,16-

4,63

118,85--

2 Litoral Norte 200.620 20,8 49,6 9,5 1,91 - 21,253 Feira de Santana 440.865 17,4 87,2 4,7 - 5,62 23,674 Cacaueira 783.549 32,6 86,9 11,7 - 2,87 27,525 Extremo Sul 268.755 106,7 244,8 90,4 - 7,53 9,986 Jequié 336.565 14,3 57,5 3,2 1,35 - 22,447 Vitória da Conquista 454.228 28,9 119,4 12,5 - 2,57 14,708 Serra Geral 376.027 6,9 51,9 1,2 0,67 - 9,459 Nordeste 500.409 17,1 57,3 1,7 1,49 - 11,1110 Senhor do Bonfim 125.439 5,2 68,9 -7,6 0,51 - 6,9211 Chapada Diamantina 368.832 14,6 38,2 -10,0 1,37 - 6,8612 Enc. Chap. Diamantina 274.730 -0,6 38,2 8,5 -0,06 - 11,8513 Sertão do São Francisco 70.209 28,5 384,6 -10,0 - 2,54 3,7814 Bx. Médio S. Francisco 244,041 19,2 31,8 14,7 1,77 - 2,8915 Médio São Francisco 157.814 22,1 42,7 18,2 2,02 - 3,6316 Barreiras 136.948 10,9 30,3 7,5 1,04 - 1,46

ESTADO 5.990.605 23,9 66,6 9,3 2,17 -

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Planejar o desenvolvimento daBahia é, basicamente:

a) encontrar mercado para aprodução agrícola excedente, atual oupotencial;

b) assegurar emprego à mão deobra tornada excedente no quadrorural e convertida, ou em processo deconverter-se, em desemprego urbanoou em emigração;

c) assegurar aplicação para aspoupanças resultantes do aumentovertical da produtividade do trabalhoagrícola e nas condições de um baixonível de remuneração do trabalhador,determinado precisamente pela exis-tência do excedente de mão-de-obra.

Somente oferecendo soluçõessatisfatórias para esses problemasserá possível assegurar continuida-de ao desenvolvimento econômico daBahia. A emigração, a expansão domercado nacional e a fuga de capitaispara o resto do País ofereceram, noperíodo transcurso, algum mercadopara a produção agrícola adicional;algum emprego para a mão-de-obrasobrante; finalmente, alguma aplica-ção para as poupanças geradas noprocesso. A isso se deve o surto obser-vado de desenvolvimento da econo-mia baiana, a qual, sem chegar a utili-zar satisfatoriamente o seu potencialprodutivo – muito longe disso – ex-pandiu, entretanto, sua produção econservou-se acima do ponto crítico,abaixo do qual seria a depressão eco-nômica.

Ora, mesmo que houvesse a certe-za de que esses fluxos continuarão –

e não pode haver essa certeza -, aindaassim seria mister buscar formas maisativas de utilização do imenso poten-cial ocioso que esse estado de coisasdefine.

5 – O esquemafundamental de “fontese usos”

O setor agrícola, em conseqüên-cia da passagem escalonada do modode produção feudal (caracterizadopela parceria agrícola ou pecuária)para a produção simples de merca-dorias ou, no essencial, para a produ-ção capitalista (caracterizada pelosalariato) é a área da economia baianaonde se estão registrando as mais for-tes taxas de aumento da produtivida-de do trabalho. É esta, portanto, a fon-te principal de recursos, cuja destina-ção econômica é um dos objetivos cen-trais do planejamento.

Parte de aumento da produtivida-de toma a forma de recursos financei-ros livres para aplicar e à origem das“poupanças”, no sentido lato, queestão servindo para financiar as imo-bilizações na própria agropecuária,na indústria, nos serviços, no interiorda própria casa de família e fora daBahia, como exportação de capital.Essa parte corresponde ao aumentoda produtividade que se cristalizoucomo produção agrícola adicional epara a qual foi possível encontrarmercado.

Uma segunda parcela dos frutostoma a forma de produção atual oupotencial que não encontra mercado eque poderia dar origem a um adicio-nal de recursos financeiros livres, casose resolva o problema do mercado –donde a necessidade de incluir no pla-no de desenvolvimento um programaespecial de busca e organização demercados, diretamente, pelo Governoda Bahia, ou com a ajuda da União.

Uma terceira parcela do aumentoda produtividade agrícola toma a for-ma de mão-de-obra sobrante, que nãoencontra aplicação no setor agrícola eemigra para as cidades da região emquantidade muito superior às neces-

sidades das indústrias e serviços aíestabelecidos, disfarça-se como funci-onalismo público desnecessário ousob várias formas, que vão, desde oquase-emprego ao desemprego aberto.Assegurar utilização satisfatória eessa mão-de-obra e também um dosobjetivos compulsórios do plano dedesenvolvimento econômico da Bahia.

Finalmente, parte do aumento daprodutividade do trabalho dá origemàs correntes migratórias para fora daregião e poderá ser retida no caso dese resolverem os problemas relaciona-dos com sua utilização interna.

A mão-de-obra sobrante e a pou-pança gerada afinal no próprio setoragrícola, aplicam-se, em parte, produ-tivamente, fora do setor agrícola, as-sumindo as formas de indústria e ser-viços que engrossam as fonte de ri-queza da região. Entretanto, em ter-mos líquidos, essas indústrias e ser-viços, juntamente com as imobiliza-ções no interior da casa de família ecom outras imobilizações improduti-vas constituem não a fonte, mas o lu-gar de uso dos recursos livres daeconomia baiana. Noutros termos,além da poupança gerada pelo traba-lho urbano, essas imobilizações em-pregam os recursos liberados pelo se-tor agrícola. No esquema geral de fon-tes e usos, essas atividades compor-tam-se, em termos líquidos, como usos.

Esse esquema geral de fontes e usospermite ver claramente que a econo-mia baiana não padece de falta de re-cursos, visto como uma parcela enor-me dos excedentes oriundos do au-mento da produtividade do trabalho,essencialmente no setor agrícola, per-dem-se (produção sem escoamento oumão-de-obra sobrante) ou emigram(transferência de recursos financeirose de mão-de-obra para fora da região).

Planejar odesenvolvimento

da Bahia éencontrar mercado

para a produçãoagrícola

excedente...

...a economiabaiana não padece

de falta derecursos...”

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A redução dessas perdas e desses va-zamentos, que aproveitam a outras re-giões do País, mas não à Bahia, deveser o objetivo central, a direção do es-forço principal de toda a atividade pla-nificada do Poder Público.

Para isso, será mister, dada a atu-al distribuição da renda, intensificaras imobilizações, mesmo que não se-jam diretamente produtivas. Uma se-gunda preocupação deve ser a de dar-lhes destinação produtiva, condicio-nando assim um aumento futuro daprodutividade do trabalho. Compreen-de-se, porém, que a primeira preocu-pação deve ser a de assegurar a máxi-ma utilização possível ao potencialprodutivo já disponível e que, comovimos, perde-se ou “vaza” para forada região. É do lado dos usos que estáo elo débil da economia baiana, não,como tem sido, implícita ou explicita-mente, o suposto do programadorbaiano, até agora, ao lado das fontes.

Um planejamento com essa inten-ção suscita graves problemas práticose teóricos, cuja solução o pensamentoeconômico brasileiro mal começa aaflorar. Entretanto, essas dificuldadesnão devem servir de pretexto à recusaem trabalhar na direção correta, vistocomo é uma conquista essencial dopensamento econômico moderno –tanto aquele que tem em Keynes suainspiração, como a que tem em Marx– que a poupança não pode ser maiornem menor do que é investimento,consideradas as entradas líquidas derecursos. Noutros termos, a poupan-ça baiana é igual aos investimentosfeitos na Bahia, menos as entradas lí-quidas de capitais, ou mais as saídaslíquidas, se for o caso.

Ora, a poupança baiana é a única

forma hábil que pode assumir o au-mento da produtividade do trabalhona Bahia, dada a presente distribui-ção da renda, que condiciona a mag-nitude do consumo, como alternativaa perder-se. Quer isso dizer que redu-ziremos as perdas da economia baia-na sempre que aumentarmos os inves-timentos totais (imobilizações inter-nas, mesmo que improdutivas ou nointerior da casa de família, isto é, tec-nicamente, como consumo, mais assaídas líquidas de capitais) ou sem-pre que, dado o montante desses in-vestimentos, possamos aumentar aparcela financiada com poupançabaiana, reduzindo as entradas brutasde capital. Segue-se que o custo socialde um incremento da poupança as-sim obtido é nulo.

Daí podemos deduzir dois critéri-os básicos de prioridade, válidos en-quanto persistir a presente situação,isto é, enquanto a economia baiana nãoestiver utilizando satisfatoriamente osfrutos do aumento da produtividadedo seu próprio trabalho:

a) na seleção de projetos de apli-cação de recursos, urge dar preferên-cia àqueles que, em termos líquidos,representam a esperança de um es-quema financeiro capaz de asseguraro aumento das imobilizações finan-ciáveis com recursos locais;

b) como corolário do primeiro cri-tério, temos que dar preferência, dadoo montante dos investimentos, aosprojetos que permitam uma maiorparticipação da poupança baiana nofinanciamento das imobilizações.

Em resumo, o problema dos usosé inseparável do problema das fon-

tes. A rigor, trata-se do verso e reversoda mesma moeda.

6 – Problemas de formaçãoe uso dos recursos

Do que acima ficou dito, infere-se que a poupança se gera no momen-to em que se decidem sua captação eutilização. Nesse momento, o poten-cial ocioso é posto em evidência, sus-citando-se recursos novos e, portan-to, reduzindo-se as perdas e vaza-mentos. Mas, como já foi advertido,não se creia que se trate de uma ope-ração, simples, e sim de um problemaextremamente complexo, mas que émister resolver, sob pena de esvaziar-mos de todo conteúdo a programação.Esta deve ser entendida, precisamen-te, como um sistema de medidas des-tinadas a resolver esse problema. Nomomento presente, na Bahia, a solu-ção desse problema exige, entre ou-tras coisas, que os quadros programa-dores existentes empreendam suaprópria reeducação, tarefa agora pos-sível, em vista de seu nível de prepa-ração já relativamente elevado. Trata-se, simplesmente, de fazer com queeles se proponham a resolver esse pro-blema com a mesma seriedade com aqual se aplicaram, até agora, À absor-ção de esquemas simplificados que,por motivos pedagógicos, o supri-miam. Chegou o momento de a Bahiacomeçar a cobrar dividendos do capi-tal investido em todos estes anos naformação pessoal.

O sentido de suficiência, muitocomum nos quadros de recente for-mação, e o comprometimento pessoal

É do ladodos usos que está

o elo débilda economia

baiana...

...temos quedar preferência aos

projetos quepermitam uma

maior participaçãoda poupança

baiana...

Chegou omomento de a

Bahia começar acobrar dividendos

do capitalinvestido...

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21RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

dos quadros mais velhos dos esque-mas congelados de pensamento cons-tituem sérias dificuldades a vencer,mas que é, absolutamente, necessáriovencer. Sem isso, o programador se-ria, não um desbravador de novoscaminhos à sociedade baiana, não umespecialista que justifica a sua exis-tência pela capacidade de descobrirrecursos onde os olhos leigos não osvêem, mas um mero racionalizadordos preconceitos populares, previa-mente ordenados sob a forma de “in-tuição política”.

Esse problema não poderá ser re-solvido de uma só vez, mas sim poraproximações sucessivas. Aquilo quea economia baiana, no quadro da eco-nomia brasileira, sem programa, nemmétodo, sem que seus programadoressequer disso tivessem claro conheci-mento, realizou parcialmente, como oprova o surto de desenvolvimento ca-racterizado no início deste trabalho,pode também ser feito ordenadamen-te, com um conhecimento de causacada vez mais lúcido.

O potencial ocioso – fonte últimados novos recursos a mobilizar – exis-te, em forma bruta, como terra suscetí-vel de um rápido aumento da produ-ção, pela simples retenção de umaparte do excedente de mão-de-obra;como instalações, nas indústrias e nosserviços, também suscetíveis de gerarum adicional de produto, pelo empre-go de parte da mão-de-obra que sobraou migra, nas indústrias e serviços;finalmente, como essa mão-de-obrasobrante. Entretanto, para que essepotencial ocioso possa dar origem auma poupança adicional, a primeiracondição é que se defina uma deman-da adicional, a qual, dado o atual es-quema de distribuição da renda, nãopode ser senão demanda de imobili-zações, pelo menos em sua parte de-cisiva.

Ora, à medida que se acumulacapacidade ociosa nas diversas ativi-dades produtivas, declina também ademanda de imobilizações. O surto dedesenvolvimento observado nos últi-mos anos significa que essa deman-da, na empresa e na casa de família,somada à demanda de capital fora da

Bahia, esteve relativamente ativa. Paraelevar o ritmo de desenvolvimento,caso essa demanda se mantenha, oupara sustentar o nível presente, casoela decline, como parece plausível,será mister definir novos itens de de-manda de imobilizações. Esses novositens devem estar, predominantemen-te, na área do setor público, para aexpansão dos serviços insuficientes,para suscitar novos serviços e paracriar certas indústrias que, que porsuas dimensões ou especificações,encontram-se, em nossas circunstân-cias concretas, fora da área do inte-resse privado imediato, mas que re-presentam, não obstante, uma condi-ção de desenvolvimento, inclusivepara a iniciativa privada.

Tal demanda do setor público,entretanto, existe apenas como neces-sidade daqueles serviços ou indústri-as. Para que essa necessidade dê ori-gem a demanda efetiva urge satisfa-zer suas condições financeiras, istoé, urge que o Estado tenha acesso auma parcela maior da poupança ge-rada pela economia. Resolvido esseproblema, isto é, tornada efetiva a de-manda, a poupança social se amplia-rá, pelo emprego de fatores ociosos,desde que, direta ou indiretamente,essa demanda possa ser satisfeita pelosuprimento de bens ou serviços su-pridos pela economia. Noutros ter-mos, satisfeita esta condição, o aumen-to da absorção de recursos por partedo Estado não reduzirá a disponibili-dade de recursos para a empresa pri-vada. Ora, na medida em que a Bahiase comporta como exportadora bruta

de capital, essa condição pode serdada a priori, porque, na medida emque a demanda de capital não possaser atendida diretamente pelo supri-mento de fatores regionais, terá o efei-to de reduzir o montante das saídasde capital.

É óbvio, entretanto, que, na medi-da em que a demanda adicional derecursos para imobilização seja aten-dida através da redução da saída bru-ta de capitais, deixará inalterada apoupança regional e seus efeitosmacroeconômicos se farão sentir forada região (isto é, o aumento da taxade imobilização não afetará regional-mente o nível de consumo, ou seja, nãohaverá efeito multiplicador de renda).Conseqüentemente, é indispensáveltomar medidas que façam com que,em última instância, a demanda regi-onal de fatores reflua para o interior,isto é, que as imobilizações em causa:

a) façam-se diretamente à custado emprego de mão-de-obra, de bensou de serviços regionais;

b) façam-se à custa da importa-ção de fatores, na medida do possí-vel, vinculada à exportação de pro-dutos da região.

No nível do projetamento especí-fico, é possível, no processo de seleçãoda técnica do projeto, tomar providên-cias no sentido de orientar a deman-da de fatores, seja para o interior daeconomia, seja para aquelas áreas docomércio externo em relação às quaisse configure uma expectativa de au-mento das compras de produtosbaianos, como efeito das importaçõesbaianas.

7 – O mercado interno devalores

Vimos que, em razão mesmo dovolume dos seus recursos ociosos,comporta-se a economia baiana comouma área de capital barata, o qual éparcialmente captado e transferidopara fora da região. Em primeiro lu-gar, é preciso ter presente que essasaída de capital, longe de debilitar aregião, a fortalece porque induz ummelhoramento do índice de utilização

Para elevar oritmo de

desenvolvimento,será mister definir

novos itens dedemanda de

imobilizações.”

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do seu próprio potencial produtivo.Este fato foi apontado, no início destetrabalho, como uma das causas dorecente desenvolvimento da econo-mia baiana. Entretanto, se for possí-vel configurar e efetivar, no interior daeconomia estadual, uma demandaadicional, na medida em que essanova demanda se satisfaça à custa daredução do fluxo de saída do capital,resultará na criação, na Bahia, denovo potencial produtivo e, na medi-da em que resulte no aumento líquidoda poupança regional, determinará aimediata elevação regional do nívelda renda, pela melhor utilização dopotencial ocioso. Em qualquer hipó-tese, conseqüentemente, conviriainstrumentalizar essa demanda adi-cional interna, cujo item decisivo se-ria o financiamento dos empreendi-mentos do setor público.

Sob forma simplificada, essa ope-ração se traduziria na entrega, aoempresário baiano detentor de capa-cidade ociosa e, portanto, em condi-ções de suscitar um adicional de pro-duto, de um título de crédito do Esta-do. Sob essa forma, o aspecto monetá-rio da operação ficaria reduzido à es-crituração do crédito do supridor defatores contra o Governo ou contra aentidade beneficiária do crédito. Con-seqüentemente, a operação será possí-vel, desde que o credor em perspectivadisponha de capacidade ociosa - e odevedor em perspectiva, possa assu-mir o encargo de pagamento futuro.

Entretanto, é raro que o detentorde capacidade ociosa possa suprirdiretamente o produto em cuja com-pra se deva traduzir afinal o esforçode formação de capital (p.ex. a entre-ga de gado a crédito para auxiliar naformação do capital de giro de ummatadouro frigorífico). Em geral, aformação de capital se traduz na com-pra de mão-de-obra (que não podesuprir-se a si mesma a crédito) e debens e serviços que não são direta-mente aqueles para os quais a econo-mia dispõe de capacidade ociosa.Nesse caso, será mister que o detentorde capacidade ociosa venda o pro-duto adicional a resultar da utiliza-ção desta, inclusive para fora da re-

gião e do País, para que sua poupan-ça se realize, isto é, assuma forma mo-netária, como moeda corrente ou cré-dito bancário. Será então, necessárioque o Estado coopere com o empresá-rio na realização do seu produto, istoé, na venda deste, convertendo, assima poupança, da forma natural a for-ma monetária.

Segue-se que, nas condições con-cretas de uma economia baiana, noprocesso de organizar a oferta adicio-nal de recursos monetários livres, oGoverno deve preparar-se para assis-tir o vendedor no escoamento de suaprodução, associando-se, se possível,com ele. A Bahia tem alguma experi-ência dessa operação (CASEMDA,Instituto do cacau, Cooperativa doscacauicultores, etc....). Trata-se, sim-plesmente, de disciplinar e aprofun-dar essa experiência.

De posse desse instrumento, istoé, qualificado o Governo (diretamenteou através de organismos de capita-lismo de Estado) como comerciantevendedor, será possível planificar umavirtual vinculação da venda com acompra. Noutros termos, através deuma operação como a exemplificada,chegaremos ao esquema simplificado

supra, no qual o detentor da capaci-dade ociosa, supre a crédito os fatoresnos quais se deve traduzir o investi-mento e sua poupança assumirá a for-ma de um crédito contra a instituiçãoinvestidora ou contra o Governo.

Na prática cotidiana, a operaçãopode tornar-se muito mais complexae a habilidade do economista consis-tirá em reduzí-la ao esquema simpli-ficado. Quanto ao crédito, pode assu-mir a forma de um simples depósitobancário a prazo, a uma obrigação ouuma ação da instituição investidora,ou ainda de um título de dívida dopoder público.

Parece óbvio que devemos partirdas formas mais simples às mais com-plexas. Quando for possível restau-rar o instituto dos depósitos a prazo –o que exigirá a reformar da atual le-gislação relativa a juros (Lei de Usu-ra) – o problema da organização domercado de capitais para uso do Po-der Público se nos afigurará uma ope-ração muito menos misteriosa do queparece ser, no presente momento.

Nesta ordem de considerações sesegurariam as obrigações emitidaspelas entidades investidoras sob aégide do Governo e as letras de curtoprazo do Tesouro. Com o tempo, serápossível a substituição dessas formasde captação de recursos que, no ba-lanço do Governo ou da entidade de-vedora se escrituram como exigibili-dade, por outras formas, que se escri-turam na conta de capital, comoinexigibilidade.

O pouco êxito que teve o progra-mador baiano neste particular, nãoobstante ter sido ele um, dos pionei-ros nesse campo, em todo Brasil, soba inspiração de Rômulo Almeida, pa-rece-me dever-se ao fato de ter tenta-do começar precisamente pelas for-mas mais complexas e definitivas decaptação de recursos, isto é, pela emis-são de ações das empresas de econo-mia mista.

São estas as observações que nomomento me ocorrem e que ofereço aosresponsáveis pela programação dodesenvolvimento econômico da Bahia,na esperança de que lhes sejam de al-guma utilidade.

Quando forpossível restaurar o

instituto dosdepósitos a prazo ,

o problema daorganização do

mercado de capitaispara uso do PoderPúblico será umaoperação muito

menos misteriosado que parece

ser...

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23RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

IntroduçãoEste artigo realiza uma análise a

respeito da questão federativa do Bra-sil, pela ótica da descentralização fis-cal (receitas e despesas públicas), du-rante a década de noventa, objetivan-do levantar subsídios que possam for-mar o entendimento dos principaisproblemas fiscais enfrentados pelaUnião, estados e municípios nos últi-mos anos.

1 – O Estado Federal e suascaracterísticasPara se iniciar a discussão a res-

peito do federalismo fiscal e as prin-cipais questões relativas às finançaspúblicas do Brasil, nos últimos anos,é necessário uma breve discussão arespeito do tema forma de Estado. Se-gundo Silva (1996) a forma de Esta-do, em sentido estrutural, diz respei-to à repartição do poder político emfunção do território. O Estado seriaconstituído de quatro elementos,quais sejam, o (i) povo situado em seu(ii) território, a (iii) soberania nacio-nal, e uma (iv) ordenação jurídico-institucional capaz de regulamentaras relações sociais existentes e aindapor vir. O Estado nacional pode serconstituído unitariamente, ou de for-ma federativa, mediante a união deentidades políticas autônomas, masnão soberanas.

Assim o Estado seria uma insti-tuição “macro” e basilar da estrutura

política de um povo situado em umdeterminado espaço, povo este pos-suidor de soberania, e ordenado poruma regulação institucional. Em ter-mos genéricos, em um Estado consti-tuído sob a forma unitária não se apre-sentaria qualquer forma de repartiçãode poderes políticos e capacidadedecisória e legislativa, entre as enti-dades estatais, havendo, sim, umadesconcentração autárquica de ativi-dades administrativas, estando todasas entidades subordinadas ao gover-no central. Em contraponto pode-seafirmar que, em um Estado estrutura-do sob a forma federativa, a sua prin-cipal característica é representada jus-tamente pela repartição de competên-cias e poder político, de forma vertica-lizada, entre os dois níveis estatais, osoberano e o autônomo. Assim, o Esta-do organizado federativamente é ca-racterizado pela coexistência de uma

dupla autonomia territorial de poderpolítico, um governo central, federal, ediversos governos subnacionais.1

As principais características dosistema (federativo) são: divisãoterritorial do Estado em diversassubunidades; sistema bicameral: re-presentação das subunidades feder-adas junto ao Governo Federal atra-vés de uma segunda Câmara Legisla-tiva (Senado); poderes Executivo,Legislativo e Judiciário presentes nosdois níveis federais; existência de umaCorte Suprema de Justiça, responsá-vel pela regulação dos conflitos fede-rativos; definição das competências(administrativas e fiscais) e jurisdi-ções das esferas federativas, com cadanível de governo apresentando aomenos uma área de ação em que éautônomo; autonomia de cada entefederativo para constituir seus gover-nos2 (Soares, 1998).

O FEDERALISMO FISCAL E AS FINANÇASPÚBLICAS NO BRASIL DOS ANOS

NOVENTA.*Luiz Marques de Andrade Filho

Mestre em Administração pela UFBA. Professor do Curso de Eco-nomia da UNIFACS.

Reginaldo Souza SantosDoutor em Economia pela UNICAMP.

(*) Este artigo é um subproduto da dissertação de Mestrado Descentralização fiscal noBrasil e impactos no equilíbrio orçamentário subnacional, apresentada ao Núcleode Pós-graduação em Administração da UFBA. Os autores agradecem as sugestões doProf. Dr. Nelson Oliveira e do Prof. Dr. Josaphat Marinho.

1 O termo subnacional, apesar de ser um neologismo e de ser criticado pela área jurídica,é de uso comum e generalizado na área da administração pública e economia, quandosão tratados problemas federativos e fiscais. Isto se deve ao fato de que, em umafederação, as unidades autônomas acabam por se subordinar às políticas monetárias,cambiais e, principalmente, fiscais adotadas pelo governo central, este sim unicamentesoberano. Este é o sentido do termo utilizado neste artigo.

2 Há também uma terceira configuração, a Confederação, que corresponde à União deEstados Nacionais (Soares, 1998). Importante frisar que este artigo parte da concepçãodo Estado referente aos seus aspectos e estrutura formal, entendendo-se, porém, queesta estrutura é definida pelo respectivo processo histórico e social; desta forma, asdisputas entre classes e extratos da sociedade tendem a definir a estrutura formal doEstado, pois essas disputas formam o processo político e de evolução histórica dasociedade. Este foco da questão, portanto, não é discutido aqui.

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Como foi exposto, a principalespecificidade de um Estado consti-tuído sob a forma federativa é a exis-tência de entidades políticas que re-partem o poder administrativo elegislativo. Ao lado de uma entidadecentral soberana, coexistem inúmerasoutras entidades estatais detentorasde autonomia, a elas cabendo compe-tências administrativas e legislativaspróprias, exclusivas, privativas e con-correntes ao lado do governo federalcentral.3

O Estado federal, por natureza, seconfigura de forma descentralizada(em maior ou menor grau), em queapenas a União – pessoa jurídica deDireito Público interno que congregatodas as demais – possui soberania e“status” de representante do Estadonacional perante as entidades, querinternas, quer externas, restando aosestados subnacionais a posse de au-tonomia, que significa a existência decapacidades legislativa e administra-tiva próprias, determinadas na ordemconstitucional (Silva, 1996).

A República Federativa do Brasilse constitui através da união indisso-lúvel dos estados, municípios e doDistrito Federal, sendo inclusive umadas cláusulas pétreas da Constitui-ção, não cabendo sobre ela nenhumapossibilidade de modificação (Cons-tituição Federal de 1988, Art. 60, § 4o).A formação federativa do Estado bra-sileiro foi expressamente assumidapela Constituição de 1889, quando daproclamação da República, sendo queo federalismo no Brasil se apresentoude forma mais ou menos acentuadaem função dos regimes políticos aosquais o país esteve submetido ao lon-go da República, ficando claro que osperíodos de regimes autoritários fo-ram mais centralizados, enquanto osperíodos democráticos se caracteriza-ram por uma maior descentralizaçãode poderes (Costa, 1996).4

2 – O federalismo fiscal eos mecanismos detransferências dereceitasUma das principais característi-

cas de um Estado federativo é a exis-

tência do federalismo fiscal. SegundoMello Jr. (1997), o federalismo fiscalse refere à descentralização das ativi-dades fiscais do Estado em seus vári-os níveis e à divisão dos direitos e res-ponsabilidades entre receitas e des-pesas. Para Affonso (1995), o federa-lismo fiscal se relaciona diretamenteao pacto federativo, entendendo estecomo um complexo sistema de trocas,baseado em sua maior monta nos fun-dos públicos, responsável pela solda-gem dos interesses regionais implan-tados pelas forças centrífugas da fe-deração.

Melo (1996a) entende que o fede-ralismo fiscal se resume à forma dedescentralização de receitas e compe-tências tributárias e administrativasentre os três níveis de governo, objeti-vando a provisão de bens públicoscom maior eficiência. Já Aguirre eMoraes (1997) entendem que a ques-tão básica do tema se resume ao pro-cesso de descentralização fiscal.

Pode-se entender,então, o federalismo fis-cal como um processode divisão e de transfe-rências intergoverna-mentais e inter-regio-nais de receitas tributá-rias e de competênciasadministrativas, queobjetivam uma maioreficiência do setor pú-blico e também a dimi-nuição das desigualda-des regionais, ao pro-porcionar, através dadescentralização fiscale administrativa, umamaior efetividade doEstado na prestação deserviços à população.

Para atingir essesobjetivos, o federalismofiscal possui na ação defundos públicos – quevisam à redistribuiçãoda riqueza entre as es-feras estatais (federal,estadual e municipal) eas regiões do país – asua mais clara caracte-rística. A redistribuição

de receitas e competências visam adois objetivos: primeiro, melhorar aefetividade do Estado na prestação deserviços e segundo, em federações comdisparidades econômicas e regionais,como o Brasil, otimizar a distribuiçãode renda fiscal entre as regiões. Sobesta perspectiva, o federalismo fiscalpossuiria duas bases a sustentá-lo,quais sejam, (i) a possibilidade deaumentar o nível de governança doEstado, pois descentralização melho-ra a capacidade alocativa de benspúblicos e (ii) redistribuição melhorda renda fiscal entre regiões hetero-gêneas economicamente.5

Existe uma série de argumentosfavoráveis à descentralização. O pri-meiro corresponde ao fato de haver umtamanho ótimo de fornecimento do bempúblico determinado pelo tamanho dacomunidade a ser servida. Um outrorefere-se à existência de congestiona-mentos que ocorreriam se a provisãofosse executada de forma centralizada.

3 Pelo ponto de vista jurídico, esta polaridade entre Estadofederativo e unitário já passa a sofrer questionamentos emfunção do surgimento de uma nova tipologia estatal, o Esta-do regional, como foi observado na Itália e na Espanha, apartir das suas Constituições de 1947 e 1978, respectiva-mente. Segundo Marinho: �não se devem acentuar, em de-masia, certas definições ou caracterizações das formas deEstado, diante das transformações que experimentam nomundo contemporâneo... destarte, o Estado unitário de hojejá não tem o perfil descrito� (2000, p. 4). Ver também Ma-chado Horta (1999).

4 Deve-se ressaltar que não existe uma correlação diretaentre maior descentralização e maior grau de democraciapolítica dado que, mesmo havendo descentralização admi-nistrativa e fiscal, o poder de decisão pode permanecer emmãos de uma classe oligárquica regionalmente, o que im-pediria a real participação popular no processo político; ou,em outra situação, quando a descentralização é utilizadapara legitimar um poder autoritário. Como exemplo desteúltimo fenômeno, tem-se o processo vivido no Brasil duran-te a ditadura militar dos anos setenta, quando houve umacentralização fiscal e financeira acompanhada de um iníciode um processo de descentralização de receitas tributári-as, através dos fundos de participação, método utilizadopelo regime para legitimar seu poder através do domíniodos interesses das oligarquias regionais. Assim, apesar dacaracterística pendular observada no Brasil, não se devegeneralizar que maior descentralização sempre implicamaior participação popular e vice-versa.

5 Entende-se governança como a forma pela qual o Estado,a partir das suas condições de governabilidade, exerceseu poder na administração eficiente dos recursos e comeficácia na satisfação das necessidades dos cidadãos.Governança poderia ser entendida também como as for-mas de cooperação e coordenação entre o Estado e asociedade (Melo, 1996b). Uma analogia interessante é con-siderar a governabilidade como um conjunto de �inputs� deum sistema governamental e a governança como o conjun-to de �outputs�.

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Um terceiro argumento é o da existên-cia de diferenças de preferência entreas localidades, que determinariam di-ferenças no tipo de serviço a ser forne-cido. Ainda, discrepâncias de rendaentre coletividades podem estabelecerdemandas distintas por serviços pú-blicos que sugerem uma maior adequa-ção do suprimento descentralizado àsnecessidades de cada comunidade(Aguirre & Moraes, 1997, p. 123).

O segundo objetivo do federalis-mo fiscal, a redistribuição espacial eintergovernamental de recursos, se-gue a meta da equalização da receitafiscal, pelo fato de a capacidade parase gerar a base imputável e o respecti-vo “quantum” de arrecadação tendera ser desigual regionalmente (Lage-mann, 1995), principalmente em umpaís com as graves diferenças sócio-econômicas como o Brasil, ainda al-tamente concentrado em termos eco-nômicos.

Por essa ótica, o federalismo fis-cal segue critérios de racionalidadeeconômica ao objetivar a minimizaçãodas desigualdades regionais, viaequalização das receitas fiscais, e amaximização da ação alocativa dosetor público, mediante a descen-tralização de recursos aos estados/DF e municípios. Cabe salientar queno Brasil o processo de federalismofiscal engloba, em termos de transfe-rências de receitas, (i) as chamadastransferências compulsórias, ou cons-titucionais, (ii) as transferenciasinfra-constitucionais e (iii) as trans-ferências não compulsórias ou volun-tárias. Estas últimas referem-se a pro-gramas e convênios do governo fede-ral para estados, Distrito Federal emunicípios, e também dos estadospara municípios, além das verbas or-çamentárias abertas para negociação.Tais transferências possuem objetivoespecífico e, apesar da sua distribui-ção não ser vinculada, a aplicação deseus recursos assim é.

As transferências infraconstitu-cionais se referem a programas espe-cíficos, regulados por leis editadasapós a Constituição, baseadas emnormas gerais da Carta Magna. Nes-te caso, as transferências são compul-

sórias, enquanto a efetivação do gasto permanece vinculada ao programa quea transferência atende (os exemplos mais claros se referem ao FUNDEF, FundoNacional para Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização doMagistério, e às transferências das verbas do Sistema Único de Saúde).

Por fim, na efetivação das transferências compulsórias, não há qualquerdiscricionariedade do poder público: elas decorrem do mandamento legal, ouseja, a Constituição Federal. Nelas, porém, a aplicação dos recursos por parteda entidade recebedora é totalmente livre (a partir da Constituição de 1988),não cabendo nenhuma vinculação na aplicação do gasto, somente na efetivaçãoda transferência.

Quadro 1Tipologia referente às transferências de receita no Brasil

TIPOEXECUÇÃO DA

TRANSFERÊNCIAEXECUÇÃODO GASTO

Constitucional Tributária Compulsória Livre (*)

Infra-constitucional(para programas específicos) Compulsória Vinculada

Negociada Livre Vinculada

Fonte: Elaboração própria.

Nota: (*) Com exceção do Fundo para o Desenvolvimento das Regiões Norte, Nordeste eCentro-Oeste, cujos valores são utilizados como fonte de financiamento para os ban-cos de desenvolvimento regional

Apesar da compulsoriedade para a efetivação da transferências constituci-onais tributárias, é facultada à União a possibilidade de retenção desses valoresem função de inadimplência das entidades recebedoras dessas receitas peranteórgãos do governo federal6 (Parágrafo Único do Art. 160 da Constituição Fede-ral de 1988). Os Quadros 2 e 3 expõem, respectivamente, a estrutura de impostospróprios e a estrutura de transferências tributárias compulsórias relativas àsentidades que compõem a federação brasileira, a partir de 1988.

Quadro 2Estrutura dos impostos próprios dos componentes da federação

brasileira, a partir da constituição federal de 1988(*)

UNIÃO ESTADOS/ DF MUNICÍPIOSImposto de renda (IR) Imposto sobre circulação de

mercadorias e serviços (ICMS)Imposto predial e territorialurbano (IPTU)

Imposto sobre produtosindustrializados (IPI)

Imposto sobre a propriedade deveículos automotores (IPVA)

Imposto sobre serviços (ISS)

Imposto de importação (II) Imposto transmissão “causamortis” ou doações (ITCM)

Imposto transmissão “intervivos” (ITIV)

Imposto de exportação (IE) — —

Imposto sobre operações, decrédito, câmbio, seguros ourelativos a títulos ou valoresmobiliários (IOF)

— —

Imposto territorial rural (ITR) — —

Imposto sobre grandes fortunas(não regulamentado)

— —

Fonte: Constituição Federal de 1988, Art. 153, 155 e 156.

(*) Nota: considerando a Emenda Constitucional no 3/93.

6 Este foi o embasamento legal utilizado pelo governo federal para o bloqueio do repassede verbas compulsórias para o estado de Minas Gerais, em janeiro de 1999, em virtudeda inadimplência deste Estado para com o Tesouro Nacional.

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3 – O processo brasileirode descentralizaçãofiscal a partir dos anossessenta: breve análisehistóricaA partir de 1964, e a implantação

do regime autoritário, passa a ocorrerum processo de centralização fiscalno país. Desta forma, foi restrito o po-der dos estados de legislar sobre oICM (recém-criado imposto, tipo IVA),de modo que tal imposto se tornasseapenas arrecadador e não utilizadocomo mecanismo de política regional.No entanto, apesar do centralismopolítico e administrativo, pela primei-ra vez é institucionalizada uma siste-mática de transferências de receitastributárias da União para estados, DFe municípios, com a criação do FPE eFPM, Fundo de Participação dos Es-tados e Fundo de Participação dosMunicípios, pelo Código TributárioNacional de 1966, ambos formadospor parte da arrecadação federal doIR e do IPI.

Em 1968, os percentuais destina-dos do IR e IPI, ao FPE e FPM foramreduzidos de 10% para 5%, respecti-vamente (Varsano, 1996). Além disso,

foram criados mecanismos de vincu-lação de gastos referentes às receitasdestes fundos (Santos & Ribeiro,1993). Reduziu-se, portanto, o valorabsoluto dos fundos de participação,então recém-criados, como tambémvincularam-se os gastos subnacionaisprovenientes desses fundos às políti-cas sociais do governo federal. Era agarantia, mediante uma drástica re-dução da autonomia dos estados, deque as entidades subnacionais nãointerfeririam na política de desenvol-vimento adotada pela União. Nessesentido, no período de 1967 a 1973, aadministração das finanças estadu-ais e municipais passou a ser subor-dinada ao planejamento advindo dogoverno federal, em uma espécie derestrição da autonomia subnacional,dado que a Constituição vigente (de1967) permitia a intervenção da áreafederal em assuntos financeiros dosestados no caso da adoção, por estes,de programas ou medidas não corre-lacionadas com as metas da União(Lago, 1990).

Não obstante, a centralização pas-sou a ser combatida ainda na décadade setenta. Mediante a Emenda Cons-titucional no 5/75, os percentuais do

FPE e FPM são elevados a partir de1976 e, em 1982, eles já atingem 10,5%do total da arrecadação do IR e IPI res-pectivamente (Varsano, 1996). Em1985, pela Emenda Constitucional no

23/83, os percentuais já eram da or-dem de 16% quanto ao FPE e 14% parao FPM, bem como iniciou-se um pro-cesso de desvinculação do gasto origi-nado das receitas destes fundos.

A redefinição dessas transferênci-as diz respeito à eliminação dasvinculações relativas às formas de apli-cação de recursos dos fundos de parti-cipação. Essa medida foi determinadapela constatação do viés alocativo quetais exigências acarretaram nos pro-gramas de investimento em nívelsubnacional...Desde então, os gover-nos subnacionais passaram a dispor demaior autonomia para definir as áreasde aplicação dos recursos de transfe-rências. Contudo, a União não abriumão de manter fortes controles sobreas transferências negociadas, bem comode utilizá-las como instrumento de con-trole político (Barrera & Roarelli, 1995,p. 133).

A década de oitenta marca umponto de inflexão no desenvolvimen-to econômico brasileiro. A fase de

Quadro 3Estrutura de repartição compulsória de receitas tributárias entre os três níveis de governo,

a partir da constituição federal de 1988

Fonte: Constituição Federal de 1988, Art. 157, 158 e 159.

Nota: R = nível estatal recebedor da transferência.

UNIÃO ESTADOS/ DF MUNICÍPIOS - 21,5% IR + 21,5% IPI (FPE) à R - 3,0% IR + 3,0% IPI (FD/N0-NE-CO) à R - 10,0% IPI ( IPI-EXPORTAÇÃO, IPI-X) à R – 25,0% IPI-à R - IR retido na fonte sobre rendimentos pagos pelo Estado, suas Autarquias e Fundações à R - 20,0% de novo imposto instituído através do Art. 154-I (compet. residual da União) à R - 30,0% IOF-Ouro à R - 22,5% IR + 22,5% IPI (FPM) à R - 50,0% ITR à R- IR retido na fonte sobre rendimentos pagos pelo Município, suas Autarquias e Fundações à R - 70,0% IOF-Ouro à R

- 50,0% IPVA à R- 25,0% ICMS à R

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“substituição de importações” capi-taneada pelo Estado, que se iniciaraem meados da década de trinta, che-ga ao seu esgotamento com a crise dadívida externa em 1982, quando a ele-vação da taxa de juros dos títulos pú-blicos norte-americanos (a partir de1979) fez minimizar a oferta de capi-tais externos, paralelamente a um au-mento generalizado das taxas de ju-ros internacionais, afetando o balan-ço de pagamentos dos países que op-taram, como estratégia de financia-mento, nos anos anteriores, pela cap-tação de crédito externo, entre osquais o Brasil.

As medidas de ajuste adotadaspelo governo federal em 1982 e logoapós a assinatura do acordo com oFMI, em janeiro de 1983, causaramuma forte recessão enquanto os níveisde inflação continuaram ascendentes.Paralelamente aos graves problemasfinanceiros do Estado brasileiro, que

não tinha mais condições de mantero processo de indução ao desenvolvi-mento econômico, a redemocrati-zação trouxe à tona a questão da au-tonomia subnacional. Este fenômenoficou claramente exposto quando dasdiscussões e votações na AssembléiaNacional Constituinte.

A Constituição Federal de 1988representa um momento de forte rea-ção contra a centralização do regimeanterior, quando os governos subna-cionais reivindicaram para si (pelaação de seus representantes no Con-gresso) uma maior participação fiscal.Os percentuais do IR e IPI destinadosaos fundos de participação foram au-mentados para 21,5% e 22,5%, quan-to ao FPE e FPM respectivamente –sendo que do total do FPE, 85% pas-sou a ser destinado aos estados dasregiões Norte, Nordeste e Centro-Oes-te (Lei no 062/89), o que demonstra ocaráter distributivo deste fundo, sen-

7 O FE, Fundo Especial, era formado por2% da arrecadação federal do IR e do IPI,mas com administração totalmente discri-cionária por parte do governo federal.

do ele fundamental para a adminis-tração financeira de diversas entida-des da federação (o mesmo quanto aoFPM em relação a boa parte dos mu-nicípios interioranos).

Foi criado também o Fundo deDesenvolvimento dos Estados dasRegiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste com 3% da arrecadação federaldo IR e IPI, em substituição ao FE7 ;além do chamado IPI-Exportação com10,0% da receita do IPI, com destinoaos estados exportadores de produ-tos industrializados, cabendo a cadaestado a obrigatoriedade de repassar25% da receita deste fundo aos muni-cípios. Estes receberam um maior qui-nhão em virtude também, da amplia-ção de 20% para 25% da parcela doICMS a ser recebido dos estados.

Gráfico 1Participação % do FPE e FPM sobre o IR e IPI, período 1967/ 1998.

0,0%

5,0%

10,0%

15,0%

20,0%

25,0%

1967

/68

1976

1978

1980

1982

1988

1990

1992

1994

1996

1998

FPM

FPE

A União perde alguns de seusimpostos, como os impostos únicossobre minerais, energia elétrica, lubri-ficantes e combustíveis e serviços decomunicação e transportes, sendo queos três últimos passam a contar naincidência do ICMS, alargando a base

Fonte: Programa de Estabilidade Fiscal, 1998.

de cálculo deste tributo estadual (San-tos & Ribeiro, 1993). Desta forma, apartir de 1988, o Brasil se torna alta-mente descentralizado em termos fis-cais, cabendo aos estados e municí-pios uma considerável parcela da re-ceita tributária líqüida.

4 – Impactos daConstituição Federal de1988 na estrutura fiscalbrasileiraA Constituição Federal de 1988 foi

discutida e promulgada à época da

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28 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

redemocratização do país, quando asociedade civil clamava por uma me-nor centralização das atribuições ad-ministrativas, havendo, portanto,grande espaço para a implantação depropostas que privilegiassem a des-centralização administrativa e fiscal.Aos governos militares, centralizado-res, passou a ser contraposta a idéiade maior autonomia subnacional, emum momento de forte ideologizaçãopopular na criação de um regime de-mocrático. Vale ressaltar que pela óti-ca de maior descentralização e auto-nomia, os municípios foram, pela pri-meira vez na ordem constitucional, re-conhecidos explicitamente como in-tegrantes da federação brasileira (vernota de rodapé n. 4).

De fato, a partir de 1988, o sistema

Tabela 1Participação relativa própria das três esferas de

governo na arrecadação tributária bruta.Brasil, período 1980-1998

fiscal brasileiro tornou-se mais descen-tralizado, principalmente em virtudedo incremento no volume dos fundosconstitucionais de participação.

Um breve exame nas Tabelas 1, 2,e 3, com dados relativos aos anos de1980, 1988, 1993, e 1998, demonstraque a federação brasileira não somen-te se descentralizou em termos decompetência para arrecadação pró-pria, mas, principalmente, em termosde transferências da União para osdemais estados subnacionais. Nota-se que a participação da União na ar-recadação própria bruta foi seqüen-cialmente declinante no período, ocor-rendo o inverso com a arrecadaçãoprópria bruta dos subgovernos (sen-do a arrecadação tributária bruta aarrecadação total antes da execução

das transferências compulsórias, e aarrecadação tributária líqüida a arre-cadação após a ocorrência das trans-ferências compulsórias). Ao se verifi-car a Tabela 2 percebe-se que o mes-mo fenômeno (redução da participa-ção relativa da União sobre o total)ocorreu quanto à receita líqüida dis-ponível – quando se passa a conside-rar o efeito do saldo líqüido das trans-ferências para as diversas entidades– porém em maior intensidade. Estefenômeno pode ser exemplificado atra-vés da Tabela 3, em que coloca-se ladoa lado, a partir das informações ex-traídas das Tabelas 1 e 2, o percentualde participação na arrecadação bru-ta, e o percentual de participação nareceita líquida disponível, por nívelde governo e ano de análise.

ANOSENTIDADE

1980 1988 1993 1998VAR %

98/80

UNIÃO 75,0% 71,0% 68,0% 64,0% -14,67%ESTADOS/ DF 22,0% 26,0% 27,0% 34,0% 54,55%

MUNICÍPIOS 3,0% 3,0% 5,0% 2,0% -33,33%

TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% --

Fonte paras as tabelas 1 e 2: Anos de 1980, 1988 e 1993: Affonso, ob. cit. Ano de 1998, diversos: Secretaria da Receita Federal,Banco Central do Brasil e, quanto aos tributos municipais, estimativa pela média histórica.

Tabela 2Participação relativa das três esferas de governo na receita líqüida disponível.

Brasil, período 1980-1998.

ANOSENTIDADE

1980 1988 1993 1998VAR %

98/80

UNIÃO 69,0% 62,0% 58,0% 49,0% -28,99%ESTADOS/ DF 22,0% 27,0% 26,0% 33,0% 50,00%MUNICÍPIOS 9,0% 11,0% 16,0% 18,0%- 100,00%

TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% —

Em termos de receita líqüida dis-ponível, considerando os efeitos dastransferências intergovernamentais, àUnião couberam, respectivamente,69%, 62%, 58% e 49%, aos estados eDF couberam 22%, 27%, 26% e 33%,enquanto, para os municípios, foramalocados 9%, 11%, 16% e 18%. Essesnúmeros demonstram o grau dedescentralização de recursos entre osníveis de governo (em maior montapara os municípios), dado que, àUnião, em todo o período analisado,coube menor volume de recursos doque o efetivamente por ela arrecada-do, ocorrendo o inverso em relação àsdemais entidades subnacionais, pelofato de, para elas, terem sido destina-dos maiores volumes de recursos queos efetivamente por elas arrecadados.

Saliente-se que o Art. 161 da Cons-tituição Federal determina que é re-servada à Lei Complementar a defini-ção dos critérios para a repartição dosfundos constitucionais, objetivando apromoção do equilíbrio sócio-econô-mico entre estados e municípios.

Entende-se, assim, que o pensa-mento a sustentar todo o processo defederalismo fiscal presente na Cons-tituição de 1988, é a idéia da redistri-buição espacial e intergovernamentalde recursos a fim de equalizar a recei-ta fiscal, pelo fato de a capacidade de

1980 1988 1993 1998ENTIDADE

B L B L B L B L

UNIÃO 75,0% 69,0% 71,0% 62,0% 68,0% 58,0% 64,0% 49,0%ESTADOS/ DF 22,0% 22,0% 26,0% 27,0% 27,0% 26,0% 34,0% 33,0%MUNICÍPIOS 3,0% 9,0% 3,0% 11,0% 5,0% 16,0% 2,0% 18,0%-

TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Tabela 3Participação relativa própria na arrecadação tributária bruta e participação

relativa na receita líqüida disponível. Brasil, período 1980-1998

Fonte: Tabelas 1 e 2.Nota: B = Participação relativa própria na arrecadação tributária bruta e L = Participaçãorelativa na receita líqüida disponível.

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29RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

arrecadação entre entidades subna-cionais ser desigual regionalmente,em função dos desequilíbrios do de-senvolvimento econômico regional.Neste sentido, dados apurados apósa promulgação da Constituição de1988 indicam que a descentralizaçãode receitas foi acompanhada de umalto gasto público efetuado pelos go-vernos subnacionais, conforme de-monstra a Tabela 4, que dá a dimen-são de gastos por categoria econômicae grupos de despesa.

Nota-se que, na média, no perío-do imediatamente seguinte à promul-gação da Constituição, entre 1990 e1992, os governos subnacionais foramresponsáveis por 67,10% do consumocorrente consolidado dos três níveisde governo, por 19,60% do gasto comprevidência e assistência social (rela-tivas aos seus funcionários) e 19,00%do gasto com juros e encargos da dí-vida. Mais importante, os estados emunicípios responderam por 80,00%

Tabela 4Participação relativa nos gastos públicos, nos três níveis de governo,

apenas administração direta. Brasil, média 1990-1992

CATEG. ECON. GRUPOS DE DESPESA

Entidade GastosCorrentes

Form. BrutaDe Capital Fixo

Previdênciae Ass. Social

Juros e Encargosda Dívida

UNIÃO 32,90% 20,00% 80,40% 81,00%ESTADOS/ DF 42,10% 42,00% 16,40% 15,30%

MUNICÍPIOS 25,00% 38,00% 3,20% 3,70%

TOTAL 100,00% 100,00% 100,00% 100,00%

Fonte: Affonso, 1995.

da formação bruta de capital fixo (ape-nas administração direta). Como osdados acima demonstram uma visão“estanque” da questão, é interessan-te observar os números da Tabela 5,que mostra a evolução dos gastos so-ciais (saúde, educação, habitação, sa-neamento básico e assistência social)

Tabela 5Gastos sociais efetuados pelas três esferas de governo

Brasil, evolução 1980-1992, em milhões de USD

ENTIDADE 1980%

sobre ototal

1992%

sobre ototal

Var %1992/ 1980

UNIÃO 45,0 65,89% 45,0 57,03% 0,00%

ESTADOS/ DF 16,1 23,57% 20,9 26,49% 29,81%

MUNICÍPIOS 7,2 10,54% 13,0 16,48% 80,56%

TOTAL 68,3 100,00% 78,9 100,00% 15,52%

Fonte: Médici, 1995.

16,00%

58,00%62,00%69,00%

22,00% 26,00%27,00%

11,00%9,00%

0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

80,00%

1980 1988 1993

UNIÃO ESTADOS/ DF MUNICÍPIOS

Gráfico 2Evolução dos gastos sociais efetuados pelas três esferas de governo,

em percentual sobre o total. Período, 1980 e 1992.

das três esferas de governo, entre 1980e 1992). Demonstra-se claramente que,entre os dois períodos, 1980 a 1992, ogasto social da União permaneceu omesmo em termos absolutos (variaçãode 0,00%) e decresceu em termos rela-tivos sobre o total dos gastos da fede-ração, de 65,89% para 57,03% sobre ototal. Enquanto isto, o gasto de esta-dos, Distrito Federal e municípioscresceu respectivamente, 29,81% e80,56%, representando uma partici-pação relativa, em conjunto sobre ototal, de 34,11% em 1980 e 42,97% em1992 (somatório de estados e municí-pios sobre o total).

Mesmo considerando a base re-primida dessas entidades, no primei-ro ano de análise sobre a qual as va-riações tornam-se mais consideráveis,fica claro que as entidades subna-cionais efetivamente responderam

por um incremento no gasto ao aten-dimento das demandas sociais, en-quanto que o gasto da União perma-neceu constante.

A descentralização foi a principalcaracterística do sistema tributárioadotado em 1988, não apenas no au-mento das transferências federais paraas esferas subnacionais, mas tambémem relação à capacidade de despesa. Aatual Constituição colocou os gover-nos subnacionais brasileiros muitopróximos da média dos países indus-trializados federativos (Souza, 1997, p.132).

Fonte: Tabela 5.

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30 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

Além disso, o esgotamento finan-ceiro da União, a partir do início dadécada de oitenta, propiciou um im-pacto negativo na capacidade dos es-tados subnacionais em se financiaremdireta e indiretamente junto aos ór-gãos do governo federal: “como a ca-pacidade financeira da União se de-teriorou a partir de 1982, o processode endividamento dos subgovernostornou-se crítico” (Santos Filho, 1996,p. 26).

Assim, a descentralização fiscal nãoveio sozinha; ela foi acompanhada deum aumento do peso referente às amor-tizações e pagamentos de juros sobre adívida interna, além de um maior gas-to social por parte dos subgovernos.Santos Filho (1996) identifica na cen-tralização fiscal e financeira por parteda União, a partir de meados da déca-da de sessenta até 1988, a causa dodesequilíbrio subnacional que, pres-sionado por maiores demandas por umalado e por menor capacidade fiscal poroutro, levou estas entidades à práticado endividamento junto à União e aosseus agentes financeiros. Quando adescentralização fiscal se tornou fato,o desequilíbrio fiscal e os compromis-sos de gastos sociais dos estadossubnacionais já se faziam cristalizados(Andrade Filho, 1999, p. 32).

A partir de 1988, a descentraliza-ção fiscal, implantada passou a ocor-rer pari-passu ao fenômeno caracteri-zado pela restrição do gasto federal,devido ao aumento das despesas rí-gidas da União (não comprimíveis).Um argumento utilizado para estarestrição, a partir da Constituição de1988, seria o aumento do volume dastransferências compulsórias a esta-dos, Distrito Federal e municípios,além da vinculação do gasto em edu-cação (Constituição Federal de 1998,art. 212), e do incremento dos gastosprevidenciários.

Entende-se, portanto, que a des-centralização fiscal a partir de 1988possuiu um caráter duplo: pelo ladoda receita, ela foi função da pressãosubnacional por maior participaçãono bolo tributário da federação (comojá exposto). Pelo lado da despesa, noentanto, ela decorreu de uma espécie

de relaxamento de gasto por parte daUnião, em virtude de sua restrição or-çamentária a partir dos gastos incom-primíveis especificados pela Carta de1988, e pela sua incessante política decontrole inflacionário – visando aocontrole sobre a pressão no nível depreços, através do gerenciamentomacroeconômico e pela adoção de po-líticas fiscais contracionistas.

Nesse contexto, a distribuição dereceita tributária da União para esta-dos e municípios passou a ser com-batida pelo governo federal, a partirde meados da década de noventa,mediante a implantação de mecanis-mos institucionais que visavam a umamaior concentração de recursos noscofres federais, como a CPMF (que,por ter sido criada como contribuiçãonão é alcançada pelos Arts. 154-I e157-II da Constituição, não sendocompartilhada com as demais entida-des da federação) e o FEF, Fundo deEstabilização Fiscal, a partir de 1994,que retém com a União parte da recei-ta tributária federal (do IR) passívelde transferências. O FEF foi criado em1994 através de Emenda Constitucio-nal, sendo originalmente denomina-do Fundo Social de Emergência. Oobjetivo desse fundo é reter uma par-cela da receita tributária arrecadadapela União, livrando-a da base de cál-culo para as transferências constitu-cionais compulsórias, flexibilizandoparte da receita do governo federal.

Outro mecanismo que não objeti-va a centralização fiscal junto à União,mas acaba por impactar no volumede transferências compulsórias paraestados e municípios, é o FUNDEF(Fundo de desenvolvimento do ensi-no fundamental e valorização do ma-gistério). Este fundo foi criado atra-vés da Emenda Constitucional no 14/96, e regulamentado pela Lei no 9.424/96, sendo implantado em 1o de janei-ro de 1998 em todos os estados, excetopara o estado do Pará, implantadoopcionalmente em 1997, mediante LeiEstadual (Boletim FUNDEF, 1998). Oobjetivo do FUNDEF é financiar pro-jetos e programas relacionados aoensino fundamental, sendo formadopelos seguintes destaques: 15% do

FPE, FPM e IPI-Exportação; 15% doressarcimento devido aos estados/DFno âmbito da Lei Complementar no

87/96, Lei Kandir8 ; 15% do ICMS es-tadual, e complemento da União quan-do não se atingir o valor mínimo poraluno/ano (Boletim FUNDEF, 1998).

O FEF representa uma diminui-ção de recursos federais a serem trans-feridos para estados e municípios, sig-nificando uma retenção da União, emdetrimento destes últimos. Em 1998,o FEF representou mensalmente, emmédia, 14,5% da arrecadação líquidado IR, sendo composto por 5,6% daarrecadação líqüida deste impostonas seguintes rubricas: Imposto deRenda de Pessoa Física, Imposto deRenda de Pessoa Jurídica e Impostode Renda Retido na Fonte e por 100,0%da arrecadação líqüida da rubricaImposto de Renda Retido na Fontedos Funcionários da União (Demons-trativo TCU, 1998).

Já o FUNDEF – apesar de dimi-nuir o valor do FPM, FPE, IPI-Expor-tação, e do ressarcimento da LeiKandir, nessas fontes de receita – aca-ba por retornar aos estados e municí-pios, vinculado a programas e proje-tos de ensino fundamental. O valordo FEF é abatido antes do cálculo dareceita tributária líqüida da União,disponível para as transferências,enquanto o do FUNDEF é destacadoapós o cálculo do valor dos fundosconstitucionais compulsórios, comodemonstra o Quadro 4, na página se-guinte.

8 A Lei Kandir (Lei Complementar no 87 de13 de setembro de 1996), regulamen-tando o Inciso X, alínea a, do Art. 155 daConstituição Federal, isentou da incidên-cia de ICMS as exportações de produ-tos semi-elaborados, como também asimportações de bem de capital destina-dos ao ativo imobilizado das empresas.Em virtude da perda de receita para osestados, o Anexo da mesma lei estabe-leceu limites e critérios para o cálculo doressarcimento mensal, por parte do Te-souro Nacional. Tal ressarcimento, por-tanto, pode ser também conceituadocomo uma transferência da União paraos estados, de caráter compensatório.A metodologia de cálculo do ressarcimen-to foi estabelecida pela Portaria Intermi-nisterial no 213 MF/MPO de 02 de se-tembro de 1997.

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31RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

Quadro 4Cálculo dos fundos constitucionais compulsórios, a partir da

incidência do FEF e do FUNDEF

CÁLCULO DA RECEITA LÍQÜIDA (BASE PARA TRANSFERÊNCIAS COMPULSÓRIAS)

IRPF + IRPJ + IRRFONTE + IRRFONTE PELA UNIÃO + MULTA E JUROS SOBRE IR +IPI + MULTA E JUROS SOBRE IPI = RECEITA BRUTA (A)PIN + PROTERRA + INCENTIVOS FISCAIS + RESTITUIÇÕES + FEF = DEDUÇÕES (B)(A – B) = RECEITA LÍQUIDA (C)

CÁLCULO DAS TRANSFERÊNCIAS COMPULSÓRIAS FEDERAIS

22,5% X (C) = FPM BRUTOFPM BRUTO X 15,0% = PARCELA PARA O FUNDEF (D)FPM BRUTO – (D) = FPM LÍQÜIDO21,5% X (C) = FPE BRUTOFPE BRUTO X 15,0% = PARCELA PARA O FUNDEF (E)FPE BRUTO – (E) = FPE LÍQÜIDO10,0% X (C, APENAS RELATIVO AO IPI) = IPI-EXPORTAÇÃO BRUTOIPI-EXPORTAÇÃO BRUTO X 15,0% = PARCELA PARA O FUNDEF (F)IPI-EXPORTAÇÃO BRUTO – (F) = IPI-EXPORTAÇÃO LÍQÜIDO3,0% X (C) = FD/NONECO, 3,0% assim compostos: 1,8% FNE; 0,6% FNO, e 0,6% FCO.Não há destaque para o FUNDEF a partir de recursos de origem do FD/NONECO.

Fonte: Demonstrativo TCU, 1998.

5 – Os déficits e o processode endividamento dosestados brasileiros nadécada de noventa

As décadas de oitenta e noventaassistiram a uma modificação na for-mação estrutural da dívida pública noBrasil, mediante a substituição deendividamento externo por endivida-mento interno. O endividamento ex-terno fora fartamente utilizado pelogoverno federal (administração dire-ta e estatais) – cujos passos foram se-guidos por estados e municípios, combase na Lei no 4.131 e na Resolução63 – desde final da década de sessen-ta até início da década de oitenta.

Tal dívida financiou os pesadosinvestimentos em infra-estrutura doperíodo e teve seu fluxo constrangido,primeiramente, quando da crise exter-na do início da década de 80, iniciadaa partir da política monetária contra-cionista do governo Reagan, nos EUA,que fez aumentar as taxas de juros in-ternacionais e, em um segundo mo-mento, quando da decretação da mo-ratória brasileira durante o governoSarney. O endividamento interno, en-tão, tornou-se a opção disponível paraque as entidades públicas buscassemos recursos financeiros necessáriospara a cobertura de seus déficits.

Além da modificação da fontebásica de financiamento, as duas úl-timas décadas assistiram a um cres-cente processo de endividamento dosetor público, não só da União comotambém de estados e municípios. En-quanto em meados da década de ses-senta a dívida das entidades subna-cionais representava 20% de sua re-ceita consolidada, em dezembro de1998 esta relação já era de 231%, ouseja, a dívida, apenas da administra-ção direta estadual, equivalia a 2,31vezes a receita líqüida real9 do con-junto dos estados (STN, 1999).

Por causa de sucessivos proble-mas de solvência, já na década de 80,o governo federal optou por honrar, emesmo refinanciar, parte da dívida deestados e municípios no exterior. OsAvisos MF 09 e MF 30 autorizavamao Tesouro Nacional, através do Ban-co do Brasil, honrar compromissos

externos assumidos pelos estadossubnacionais, que deveriam ser pos-teriormente renegociados (Santos Fi-lho, 1996). Em 1987, é editada a Lei no

7.614, regulamentada pelo Voto CMN340/87, que refinanciou os estadospelo prazo de quatro anos, com de-zoito meses de carência para paga-mento de principal e juros, com en-cargos de TR + 10% ao ano. O VotoCMN 548/87 do mesmo ano abriuuma linha de crédito da União paraque os estados saneassem seus ban-cos estaduais, pelo prazo de quinzeanos, com base na Over-Selic.

Em 1989, foi editada a Lei no 7.976que refinanciava, pelo prazo de 20 anos,com 5 de carência para pagamento deprincipal, com correção cambial e ju-ros equivalentes à LIBOR mais 13/16aa, o saldo devedor dos empréstimos-ponte concedidos ao amparo dos Avi-sos MF 30/83 e sucedâneos, cujos re-cursos se destinavam ao refinancia-mento total ou parcial da dívida exter-na garantida pela União (STN, 1999,p. 5).

Em 1993, é editada a Lei no 8.727,de 05 de novembro, que estabeleceudiretrizes para a consolidação e oreescalonamento, pela União, de dí-vidas internas das administraçõesdireta e indireta dos estados, do Dis-trito Federal e dos municípios, comórgãos ou entidades controlados di-reta ou indiretamente pela União.

A Lei no 7.976 refinanciou parte dadívida externa1 0 de responsabilidadede estados e municípios, enquanto quea Lei no 8.727 refinanciou parte dadívida interna junto à rede bancáriafederal. A dívida interna mobiliáriados estados passou, então, a ser obje-to de assunção e refinanciamento por

9 Receita Líqüida Real é dada pela receita realizada nos dozes meses anteriores ao mêsde análise, excluídas as receitas originadas de operações de crédito, de alienação deativos, de transferências voluntárias ou doações para atender a despesas de capital e,no caso dos estados, o valor referente às suas transferências constitucionais efetuadaspara os municípios (ver Art. 4o, § 1o da Resolução no 69 do Senado Federal, de 14 dedezembro de 1995).

10 Ressaltem-se também os demais acordos de reestruturação da dívida externa brasilei-ra: Bond Exchange Agreement (BEA); Brazil Investment Bond Exchange Agreement(BIB); Dívidas de Médio e Longo Prazos (DMLP), Acordo Brasil-França e Acordo doClube de Paris, cujas obrigações perante as entidades externas foram assumidas pelaUnião que se sub-rogou nos direitos creditórios sobre os devedores internos originaisque passaram, então, a ser obrigados, perante a União, se transformando em dívidainterna destas entidades frente ao Tesouro Nacional.

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parte da União mediante a Lei no

9.496 de 11 de setembro de 1997. Estalei autorizou o refinanciamento eassunção da dívida mobiliária esta-dual pela União, a ser paga em até360 prestações mensais e sucessivas,calculadas com base na Tabela Price,com juros calculados mensalmente, àtaxa mínima de seis por cento ao ano,sobre o saldo devedor previamenteatualizado e correção monetária cal-culada e debitada mensalmente combase na variação do IGP-DI da Fun-dação Getúlio Vargas.

Fica a União, no âmbito do Progra-ma de Apoio à Reestruturação e aoAjuste Fiscal dos Estados autorizada,até 31 de março de 1998 a: I - assumira dívida pública mobiliária dos Estadose do Distrito Federal, bem como, aoexclusivo critério do Poder ExecutivoFederal, outras obrigações decorren-tes de operações de crédito interno eexterno, ou de natureza contratual,relativas a despesas de investimentos,líquidas e certas, exigíveis até 31 dedezembro de 1994 (Art. 1º da Lei no

9.496/97).

A autorização legal para a reestru-turação da dívida mobiliária dos es-tados, através da assunção pela

União, conforme a Lei no 9.496/97, fezcom que o estoque da dívida mobi-liária dos estados começasse a ser re-duzido (com paralelo aumento do es-toque da dívida da União), já a partirde dezembro de 1997 com o fecha-mento do acordo de reestruturação dadívida com estados que aceitaram ascláusulas contratuais. A renegocia-ção1 1 veio em momento propício paraas administrações estaduais, pois oestoque da dívida passou a ser amor-tizado com juros mínimos de 6% aoano, mais IGP-DI, (em função da par-cela de amortização antecipada dadívida), enquanto no mercado a dívi-da seria rolada com base na Over-Selic(esta mais elevada que o IGP-DI, que éum índice de preços)1 2.

O Quadro 5 demonstra o estoqueda dívida dos estados em junho de1998, enquanto o Gráfico 3 ilustra ocrescimento da dívida líqüida do setorpúblico brasileiro no período de 1993a julho de 1998, em percentual do PIB.Enquanto o estoque de dívida das es-tatais apresentou um caráter clara-mente declinante, devido ao processode privatizações, a dívida do governofederal e dos estados e municípiosapresentou-se ascendente.

Quadro 5Dívida consolidada dos estados no Brasil, base junho de 1998

Fundada Flutuante--

Mobiliária União/STN Bancária Contratual AROTOTAL

R$ Milhões 23.542 98.625 13.637 3.331 68 139.203% 16,91% 70,85% 9,80% 2,39% 0,05% 100,00%

Fonte: Banco Central, 1998.

O Quadro 5 demonstra que o mai-or credor dos governos estaduais é aprópria União, representada pela Se-cretaria do Tesouro Nacional, com umvolume de 70,85% da dívida total emjunho/98. Em segundo lugar vem adívida mobiliária, com 16,91%, segui-dos da dívida bancária de longo pra-zo, contratual e ARO (bancária de

curto prazo), com 9,80%, 2,39% e0,05%, respectivamente, todos estesúltimos em poder do mercado.

Outro fenômeno ocorrido duran-te as décadas de setenta e oitenta, eque acabou por gerar um maiorendividamento estadual nos anosnoventa, refere-se ao financiamentodos estados a partir de empréstimos

tomados diretamente aos seus bancosestaduais. Esses empréstimos eramofertados às administrações fazendá-rias independentemente de qualquerdisciplina de mercado.

Como resultado da reforma tribu-tária de 1966, os estados foram autori-zados a contrair empréstimos de seusbancos comerciais, dos quais são acio-nistas majoritários. A partir de então,os estados usaram seus bancos comouma das principais fontes de recur-sos, em geral tomando empréstimos quenão eram pagos e, mais do que isso,recorrendo a recursos que os própriosbancos não tinham, o que obrigava oBanco Central a cobrir o déficit, jogan-do mais moeda no mercado, o que sig-nificava mais inflação e aumentoexponencial das dívidas estaduais(Souza, 1997, p. 138).

Não obstante, como observa Lima(1997), o endividamento via bancosestaduais funcionou como uma res-posta a partir de um desequilíbrioanterior, entre as receitas e os gastospúblicos. Assim, os bancos estaduais,fora de qualquer disciplina de crédi-to, passaram muitas vezes a finan-ciar o desequilíbrio fiscal de seus acio-nistas majoritários, gerando um pro-cesso cíclico de endividamento; “nãosão raros os casos de bancos estadu-ais que passaram de gestores do cai-xa estadual ao próprio caixa do esta-do, através de uma atuação compro-missada não com as demandas cole-tivas, mas com os interesses particu-lares e/ou políticos dos governos es-taduais” (Lima, 1997, p. 104).

O não pagamento desses créditos,em geral, implicou que os descom-passos financeiros dos bancos esta-duais fossem cobertos pelo BancoCentral, mediante empréstimos queimpactavam no nível da taxa deredesconto utilizada pelo BACEN nofinanciamento de bancos com proble-mas de caixa, ou diretamente via emis-são monetária, implicando inflação.Esses fatos, ocorridos em inúmerosestados, propiciaram que as adminis-trações diretas dos estados passas-sem a ser devedoras das suas insti-tuições financeiras, aumentando opassivo público pelo não pagamento

11 O Art. 3o, § 5o, da Lei no 9.496/97 estabelece que os estados não poderão emitir novostítulos enquanto sua dívida financeira for superior à sua receita líqüida real anual, excetonos casos previstos pelo Art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias,da Constituição Federal, ou seja, no lançamento de precatórios judiciais.

12 O financiamento pela Lei no 9.496/97 foi realizado com base no IGP-DI mais 6,0% aa ou7,5% aa, em função da primeira parcela de amortização efetuada pelos estados.

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de seus débitos, situação que passoua ser revertida mediante o processode ajuste e privatização do setor ban-cário estadual a partir de meados dosanos noventa.

Isto posto, o que se apreende é aestruturação da seguinte situação apartir de 1988: (i) incremento dadescentralização fiscal; (ii) incremen-to do gasto social e do gasto financei-ro por parte das entidades subnacio-nais e (iii) crescimento do endivida-mento público federal e subnacional.

A maior capacidade fiscal dos es-tados – pelo fato de a receita tributá-ria líqüida dessas entidades haver au-mentado a partir de 1988, em compa-ração ao período anterior – foi soma-da a uma maior responsabilidade pelogasto social, enquanto os estoques dassuas dívidas permaneceram crescen-tes.

Dessa forma, apesardo crescimento da capa-cidade fiscal – maiorbase de incidência doICMS e maior volume detransferências tributári-as compulsórias do go-verno federal – o so-matório dos resultadosprimários dos estados,considerando apenas aadministração direta, noperíodo 1994 a 1997,apresentou-se supera-vitário somente no anode 1994, na ordem de0,76% do PIB. Nos de-mais anos apuraram-sedéficits crescentes, em0,18%, 0,55% e 0,74% doPIB, em 1995, 1996 e 1997, respectiva-mente. Na média dos quatro anos, oresultado primário dos estados foi de-ficitário em 0,18% do PIB. No mesmoperíodo, os governos estaduais paga-ram de juros reais sobre o estoque desuas dívidas o equivalente a 1,64% doPIB. Em contraponto, a administraçãodireta do governo federal obteve umresultado primário médio superavi-tário em 0,97% do PIB, no mesmo pe-ríodo, só apresentando déficit primá-rio no ano de 1997, 0,27% do PIB. AUnião pagou, em média, de juros re-

ais no período, o equivalente a 1,86%do PIB.

Foi contra essa situação, com his-tórico e tendências de déficit dos go-vernos estaduais, que o governo fede-ral passou a trabalhar, objetivando oequilíbrio das contas públicas, paraobter o ajuste fiscal duradouro da fe-deração. É neste sentido que se devecompreender instrumentos legaiscomo a Lei no 9.496/97 que autorizoua assunção e refinanciamento da dí-vida mobiliária dos estados, dado queo texto da lei determina que, com aassinatura do contrato dos estadospara com a União, os primeiros deve-rão cumprir metas pré-estabelecidasde ajustamento financeiro e de con-trole de gastos, inclusive relativos aofuncionalismo público estadual, fatoque pode pôr em cheque a autonomia

subnacional dos entes federativos, porcondicionar um determinado progra-ma financeiro a metas estabelecidasexogenamente pelo governo federal.

Art. 2º O Programa de Reestruturaçãoe de Ajuste Fiscal, além dos objetivos es-pecíficos para cada Unidade da Federa-ção, conterá obrigatoriamente metas oucompromissos quanto a:

I - dívida financeira em relação à re-ceita líquida real - RLR;

II - resultado primário, entendido comoa diferença entre as receitas e despesasnão financeiras;

III - despesas com funcionalismo pú-blico;

IV - arrecadação de receitas próprias;V - privatização, permissão ou con-

cessão de serviços públicos, reforma ad-ministrativa e patrimonial;

VI - despesas de investimentos em re-lação à RLR (Art. 2º da Lei no 9.496/97).

Não obstante, além de todo o pro-cesso de ajuste fiscal liderado pelaUnião1 3, passam a vigorar novamen-te propostas de recentralização tribu-tária por parte do governo federal,mediante a extinção do ICMS estaduale sua transformação em um tributofederal. Os argumentos do Executivo,que embasam a proposta de extinção

do ICMS, são; (i) a eliminação da dis-cussão sobre origem e destinação dasmercadorias; (ii) o fim da guerra fis-cal entre os estados; (iii) a tendência auma maior harmonização tributáriacom os demais países que escolheramo IVA como tributação do consumo;(iv) a simplificação do sistema pelaadoção de uma alíquota única em

13 Ressalte-se a recém-sancionada Lei de Responsabilidade Fiscal que cria uma série derestrições ao aumento indiscriminado da despesa pública, e que é uma nova e relevantevariável no federalismo fiscal brasileiro, demandando maiores estudos sobre seus pos-síveis e reais impactos.

Quadro 6Resultados fiscais do governo federal e de estados e municípios, apenas administração

direta. Período de 1994 a 1997, em percentual sobre o BIP

Fonte: Programa de Estabilidade Fiscal, 1998.Nota: ( ) = Déficit e saldo negativo quanto às contas de juros e de correção monetária.

ITENS/ ANOS 1994 1995 1996 1997 MÉDIAGOVERNO FEDERAL

RES. NOMINAL (10,15) (2,38) (2,56) (2,64) (4,43)CORREÇÃO

MONETÁRIA(11,73) (0,64) (0,93) (0,87) (3,54)

RES. OPERACIONAL 1,58 (1,74) (1,63) (1,77) (0,89)JUROS (1,68) (2,26) (2,00) (1,50) (1,86)RES. PRIMÁRIO 3,26 0,52 0,37 (0,27) 0,97

ESTADOS E MUNICÍPIOSRES. NOMINAL (12,08) (3,57) (2,71) (3,04) (5,35)CORREÇÃO

MONETÁRIA(11,27) (1,20) (0,89) (0,77) (3,53)

RES. OPERACIONAL (0,81) (2,37) (1,82) (2,27) (1,82)JUROS (1,57) (2,19) (1,27) (1,53) (1,64)RES. PRIMÁRIO 0,76 (0,18) (0,55) (0,74) (0,18)

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toda a federação e, por fim, (v) o fatode que, em todos os países que utili-zam o IVA como tributação, ele é decompetência do governo federal oucentral (Apresentação do projeto dereforma tributária, 1998).

Nos artigos referentes às transfe-rências constitucionais compulsórias,nada é alterado, a não ser para que asdisposições sejam ajustadas aos im-postos extintos/criados. Por exemplo,o FPE e FPM mantêm seus respecti-vos percentuais, sendo que a arreca-dação proveniente do IPI é modifica-da com a arrecadação proveniente doImposto Seletivo, o mesmo ocorrendocom o Fundo de Desenvolvimento dasRegiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Também, o IPI-Exportação, fun-do composto por 10% da arrecadaçãodo IPI passa a ser composto por 10%da arrecadação do Imposto Seletivo.

O que se apreende na proposta doExecutivo é uma tendência a maiorcentralização, por parte da União, dacompetência sobre a legislação tribu-tária, dado que os estados perdem acapacidade de legislar sobre seu prin-cipal tributo, o ICMS, a ser extinto.Conforme o Art. 152, inciso III do Pro-jeto de Emenda Constitucional do Sis-tema Tributário, “compete exclusiva-mente à União legislar sobre o impos-to e editar os atos regulamentares ne-cessários”.

Observam-se três conseqüênciasneste movimento de extinção do ICMSestadual e criação do ICMS Federal:(i) efetivamente tende a haver umasimplificação do sistema tributário emvirtude da unificação das atuais vin-te e sete legislações sobre ICMS (as-sim, o objetivo de maior harmonizaçãotributária buscando convergênciacom nossos principais parceiros co-merciais, leia-se os países do MER-COSUL, deve ser conquistada); (ii) atendência é que se finalizem os con-flitos entre estados e regiões denomi-nados de “guerra fiscal”, mesmo ad-mitindo que parte dos favores e renún-cias fiscais efetuados pelos estados nopassado recente deverão ser adminis-trados nos próximos anos. (iii) o go-verno federal passará a ter maior con-trole da arrecadação tributária total

da federação, aumentando a tendên-cia à centralização tributária. Essesfenômenos demonstram que a auto-nomia subnacional no sentido de ge-ração e administração de receita fis-cal será afetada, paralela a uma cen-tralização de poder decisório (nãoobstante a simplificação do sistema).

6 – Considerações finaisA atual crise fiscal do Estado bra-

sileiro se refere mais ao incrementodos gastos públicos, em função daspressões sociais geradas pela desi-gualdade, do que à capacidade de ar-recadação da federação. Consideran-do que no total da arrecadaçãoestamos por volta de 30% do PIB, sen-do o país que mais arrecada na Amé-rica Latina, os problemas que aindaexistem se referem à incapacidadearrecadatória da grande maioria dospequenos municípios do interior e dosestados menos desenvolvidos (fato, noentanto, balanceado pela estrutura derepartição tributária do país, que pri-vilegia as regiões mais carentes), bemcomo à falta de eficiência na alocaçãodo gasto público.

Nesse sentido, o governo federal,objetivando aumentar sua parcela nareceita tributária líqüida da federação,vem agindo de forma centralizante,desde meados da década de noventa,através da criação de instrumentosinstitucionais de centralização tribu-tária como a CPMF e o FEF, culminan-do com o projeto de reforma tributáriaenviado ao Congresso em 1995 que,entre várias mudanças, prevê a extin-ção do ICMS estadual e a criação doIVA federal, a ser repartido com os es-tados como mais uma espécie de trans-ferência compulsória. Idéias centrali-zantes não são recentes no Brasil, elasse baseiam em uma maior capacida-de de coordenação macroeconômicapor parte do governo federal, a partirde um sistema fiscal mais centraliza-do, nas palavras de Mello Jr.: “de for-ma global, a estabilidade macroeco-nômica no Brasil possui a dificulda-de adicional de ser seguida em umcontexto fiscal de descentralização erelações complexas intra e inter go-

vernamentais” (1997, p. 21).Não obstante, a conseqüência bá-

sica que se pode esperar de umarecentralização fiscal se refere ao au-mento da dependência fiscal e finan-ceira dos subgovernos perante aUnião, consubstanciando uma perdade poder político e de autonomia.

Assim, uma situação de maiordescentralização fiscal, acompanha-da de um mais alto grau de autono-mia tributária, como ocorrida a partirde 1988, tende a ser substituída porum sistema federativo em que adesconcentração de atribuições admi-nistrativas (e mesmo de receita fiscal)é elevada, mas onde a capacidadedecisória dos governos subnacionaisé minada pela centralização de pode-res na União em legislar sobre o ICMSFederal, que aponta em ser o princi-pal tributo da federação.

Como pano de fundo de toda estasituação, insere-se a alta dependên-cia financeira das entidades subna-cionais perante o governo federal – esuas instituições financeiras – dadoo processo de endividamento internoque sofreu uma curva ascendente apartir do final da década de sessenta,e que veio tornar a federação brasilei-ra desequilibrada e totalmente envie-sada à política do governo central, si-tuação em que governadores e prefei-tos encontram-se no momento, dadoque a maior parte da dívida de esta-dos e municípios tem como credor opróprio governo federal.

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CEDRE � CENTRO DE ESTUDOS DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL

l NÚCLEO DE ESTUDOS DO DESENVOLVIMENTO LOCAL

l NÚCLEO DE ESTUDOS DO TURISMO

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O PRODETURE A DESCENTRALIZAÇÃO

DO TURISMO BAIANOCarolina Spinola

Professora Titular do curso de Turismo na UNIFACS e Doutorandaem Geografia pela Universidade de Barcelona.

ResumoPretende-se, neste artigo, fazer

uma breve avaliação da contribuiçãodo Prodetur – Programa de Desen-volvimento Turístico da Bahia para adesconcentração da atividade econô-mica do Estado através da diversifi-cação do produto turístico baiano, apartir da década de 90.

Para isso, procede-se, antes, a al-gumas considerações sobre o papel doturismo como fator de ordenação doterritório, a uma análise da metodo-logia utilizada na regionalização tu-rística da Bahia que serviu de basepara esse programa, passando pelaevolução do turismo estadual e termi-nando, por fim, com o esboço da reali-dade atual da atividade e com as con-seqüências positivas e negativas dasações do Prodetur para a desconcen-tração da atividade turística na Bahia.

O turismo como fator deordenação do território

A determinação dos locais ideaispara o desenvolvimento da atividadeturística segue uma lógica diferenteda observada em outros setores comoo industrial, por exemplo, muito maissusceptível à existência de variáveiseconômicas que garantam a suacompetitividade. De fato, esta carac-terística espacial do turismo já come-çara a ser discutida pelos geógrafosna década de 50, quando Christallerenunciou:

Se é possível para os lugares cen-trais leis exatas de localização, isso não

é possível para os lugares periféricoscom a mesma exatidão matemática. Omáximo que pode ser dito é que essesespaços que são os mais afastados daslocalidades centrais e também das aglo-merações industriais têm as mais favo-ráveis condições de localização para oslugares turísticos. Estes não se encon-tram no centro das regiões povoadas masna periferia. (Christaller, 1955, p.6).

Quando escreveu sobre o tema,em 1955 e posteriormente em 1963,Christaller analisava a expansão doturismo em direção às regiões perifé-ricas da Europa e a então emergenteatividade nos países subdesenvolvi-dos, a exemplo das ilhas do Caribe. Oturismo aparecia então “como o úni-co setor da economia que intrinseca-mente tem forças para combater a ten-dência à concentração” (Christaller,1955).

Segundo Mello e Silva (1996), istoconstituiria, portanto, uma tendêncianatural para a periferia das regiõesdensamente povoadas, já que, na mai-oria das vezes, o turista procura pai-sagens remotas e ambientes exóticos,muitas vezes idílicos.

Evidentemente, na década de 50,ainda se estava iniciando a era do tu-rismo de massas, denominada “erafordista”, que se caracterizava pelagrande quantidade de visitantes, de-mandando, de forma massiva, pou-cas destinações consolidadas, atravésde pacotes de viagens padronizados,elaborados por grandes operadoras(Vera et al., 1997).

Esse fato limitou, de certa forma,a compreensão de Christaller sobre ofenômeno, visto que se começou a ex-plorar, de forma intensiva, os desti-nos urbanos que, ainda hoje, se cons-tituem em um dos quatro entornosespaciais estruturantes do turismo,juntamente com as áreas litorâneas eos ambientes rurais e naturais (Veraet al., 1997).

Por outro lado, e como conseqüên-cia do exposto na obra de Christaller,poder-se-ia afirmar que o turismo tam-bém contribui para a determinação denovos lugares centrais, na medida emque vai ditando uma nova ordenaçãoe novas relações de polarização nosterritórios em que se instala.

Entretanto, hoje, a análise deChristaller é mais atual do que nun-ca. Com a crise do turismo fordista e amudança do perfil dos turistas, os flu-xos demandantes de áreas exóticas,afastadas, não saturadas e que pos-sam oferecer o contraponto à vida ro-tineira das populações urbanas, vêmcrescendo de forma vertiginosa. Issotorna possível que localidades antescompletamente periféricas e secundá-rias no contexto das relações funcio-nais nacionais ou regionais passem adesfrutar de um outro “status” e con-tar com um elemento dinamizador desua atividade econômica.

O turismo então pode ser um meiopara se atingir o desenvolvimento eco-nômico em regiões periféricas (Chris-taller, 1963). Essa conclusão é refor-çada por muitos outros estudiosos da

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matéria, se constituindo em um pon-to de convergência de inúmeras pes-quisas realizadas nos últimos anos,tendo como argumento básico o im-pacto da atividade na geração de di-visas, emprego, renda e na inclusãodas áreas-destino, antes negligencia-das, na dinâmica econômica global.

Também os planejadores do setor,geralmente órgãos e entidades do po-der público, endossam esse ponto devista, adotando o turismo como a re-denção de áreas atrasadas, onde ou-tras atividades econômicas fracassa-ram. Essa certeza gera muitos exces-sos e muitas medidas equivocadas,mas, em outros casos, serve como basepara a elaboração de programas dedesenvolvimento que podem, efetiva-mente, gerar conseqüências positivaspara as regiões abrangidas.

Parte-se, então para a determina-ção das áreas com interesse potencialpara a atividade, envolvendo um pro-cesso de regionalização do territórioque possibilite a maximização dosesforços de planejamento do Estadoe, posteriormente, dos esforços de pro-moção e comercialização destas des-tinações, agora compreendidas emunidades mais abrangentes, denomi-nadas de regiões turísticas.

Uma aproximação aoconceito de região turística

O turismo é uma prática social co-letiva, geradora de diversas manifes-tações de cunho econômico, sócio-cultural e espacial. “A prática turísti-ca implica em um deslocamento noespaço o que a faz, ao nosso entender,uma das atividades mais genuinamen-te territoriais” (Hiernaux, 1996, p.40).

O poder de transformação do es-paço atribuído ao turismo já é sobeja-mente conhecido através dos inúme-ros trabalhos publicados nesta área,tornando-o alvo obrigatório de políti-cas que regulem a sua dinâmica, in-clusive abordando a temática da suadistribuição territorial. Desta necessi-dade de planejamento operacional daatividade, surgem as chamadas re-giões turísticas, em âmbitos que va-riam do supranacional ao local, e queserão alvo desta análise.

Sabe-se que, em nenhum caso, aespecialização em algum tipo de ati-vidade produtiva tem como resulta-do a ocupação absoluta desse territó-rio por uma atividade. Nem as áreasagrícolas que abarcam grandes exten-sões de terras aptas para esse fim sãoabsolutamente homogêneas, porqueentre as partes férteis se intercalampequenas indústrias, algumas man-chas de terras áridas e outras áreasdestinadas à pecuária ou outras fina-lidades.

A geografia econômica, ao obser-var as formas de produção do solo,estabelece sua estrutura com base noselementos de interesse econômico pre-dominantes, chamando de região acada uma das partes que identifica.Essa aplicação do termo região nadescrição de atividades econômicasdescontínuas, notadamente no que serefere ao turismo, é contestada por al-guns autores como Boullón, que nãoacham aplicáveis o conceito às deli-mitações territoriais criadas pelos ór-gãos de planejamento:

Os atrativos turísticos são pon-tuais, sendo que em muitos casos abar-quem áreas extensas, como no casodos Parques Naturais e da franja lito-rânea. Mas, ainda sim, terminada aárea de influência de um atrativo seproduz um corte espacial até que seencontre o seguinte. Nestas áreas in-termediárias se encontram toda a sor-te de atividades não-turísticas. (...)Uma das condições que deve cumpriro planejamento regional é que as par-tes das quais se ocupa devem abarcar

todo o território do país, a segundaexigência é que cada região abarqueuma superfície que tenha proprieda-des iguais (indicadores econômicos esociais). Ao serem similares os indi-cadores, as regiões adquirem uma de-terminada identidade que conduz aqualificar seu espaço como homogê-neo e contínuo. (...) Visto que o espa-ço turístico é entrecortado, não se poderecorrer às técnicas de regionalizaçãopara proceder à sua delimitação pois,se as utilizasse, se cometeria o erro defazer figurar como turísticas grandessuperfícies que não o são. Isto implicaem que as regiões turísticas não exis-tem, existem os espaços turísticos(Boullón, 1990, p.57).

Embora concorde com o conceitometodológico de região1 e descrevacorretamente como se dá a distribui-ção espacial do fenômeno turístico ede outras atividades econômicas,Boullón desconsidera a utilização dotermo em função das descontinuida-des espaciais existentes, que nadamais são do que as chamadas áreasde transição, também previstas naconceituação das regiões. Como umaregião tem que ser uma área que apre-sente a concentração simultânea deuma determinada gama de caracterís-ticas pré-selecionadas pelo pesquisa-dor, é certo que esta coincidência defatores não acontecerá em toda a ex-tensão do território, existindo áreasque estariam fora da análise, preen-chendo o espaço entre as regiõesidentificadas.

A distribuição pontual da ativi-dade turística pressupõe a existênciade áreas não turísticas em seu entor-no, que seriam então as áreas de tran-sição. Apenas quando se trata de di-visões político-administrativas é quese deve pensar na regionalização detodo o território, pois seria inconcebí-vel a hipótese de se ter, por exemplo,municípios que não pertençam à pro-víncia, comarca ou estado algum.

Ao não aceitar a terminologia re-gião, Boullón propõe que se fale de

...o espaçoturístico é

entrecortado, não sepode recorrer às

técnicas deregionalização para

proceder à suadelimitação...

1 Região aqui entendida segundo a defini-ção de Vilá Valentí (1980) como sendouma porção de território que pode, emum sentido ou outro, ser delimitada combase em uma série de elementos co-muns.

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espaços turísticos, organizados hie-rarquicamente segundo a sua exten-são e grau de complexidade das plan-tas turísticas instaladas, de acordocom a seguinte divisão:

1 zona turística – é a unidademaior de análise e estruturaçãodo universo espacial turísticode um país ou estado. Sua su-perfície é variável, mas deve serimediatamente maior que amáxima que alcance um com-plexo turístico. Para que exis-ta, uma zona turística devecontar com um número míni-mo de dez atrativos turísticossuficientemente próximos;

2 área turística – são as partes emque se podem dividir as zonase, portanto, sua superfície émenor que a do todo que a con-tém. Deve estar dotada de atra-tivos turísticos contíguos, emum número mínimo de dez, e aexistência obrigatória de umcentro turístico;

3 centro turístico – todo conglo-merado urbano que conta, emseu próprio território ou den-tro do seu raio de influência,com atrativos turísticos de tipoe hierarquia suficientes paramotivar uma viagem. Asseme-lham-se aos pólos de desenvol-vimento na teoria de desenvol-vimento regional, devendo pos-suir uma ampla gama de equi-pamentos e serviços de apoiopara o funcionamento de todaa sua área de influência;

4 complexo turístico - definidocomo uma concentração deatrativos turísticos superior àexistente nos centros turísticose inferior à das zonas. São con-formações pouco freqüentesporque dependem da existên-cia de um ou mais atrativos damais alta hierarquia, que impli-cam , por si só, na permanên-cia do visitante por um perío-do superior aos três dias;

5 unidade turística – assenta-mento turístico que tem uma

concentração menor de equipa-mentos e que se volta para a ex-ploração intensiva de um ouvários atrativos localizadosum junto ao outro.

Boullón prossegue com a hierar-quização, passando a elementos demenor relevância para nossa análise,a exemplo dos núcleos, conjuntos,corredores, corredores de traslado ede estadia. De fato, toda essa divisão,feita de forma tão rigorosa, asseme-lha o planejamento do espaço turísti-co a um jogo de quebra-cabeças, parao qual se busca a arrumação perfeita,através da distribuição exata de todosos elementos existentes na análise.Apesar da sua complexidade, essaterminologia é muito utilizada nosplanos de organização do espaço tu-rístico.

Para Boullón, a única forma dedelimitar e categorizar o espaço turís-tico é através do método empírico, peloqual se pode observar a distribuiçãoterritorial dos atrativos turísticos edos equipamentos, a fim de detectaros agrupamentos e concentrações quesaltem à vista.

Neste ponto, ele concorda com osoutros teóricos consultados. ParaPearce (1988, p. 53) “as regiões turís-ticas normalmente se definem em fun-ção da associação espacial das atra-ções e instalações relativas, ou talvezem termos físicos (uma baía, uma

montanha, etc.), ou administrativos,onde o turismo forma parte de umaestratégia regional global”. Já paraLozato-Giotart (1987), a noção de re-gião turística “corresponde a umaárea com certa densidade de freqüên-cia turística e com uma imagem que acaracteriza”.

Vera acrescenta à discussão o ter-mo “zona geoturística” que, apesar deter uma denominação diferente, temsignificado coincidente com os enun-ciados anteriores “denominação dasáreas turísticas com característicasmais ou menos homogêneas e sobre-tudo com uma imagem que as identi-fica, normalmente com escala intra-estatal, (...) e um determinado grau defuncionalidade, sobretudo desde umaperspectiva de promoção” (Vera et al.,1997, p.60).

De tudo isso, depreende-se a exis-tência de pelo menos dois elementosobrigatórios na conceituação das regi-ões turísticas: 1) concentração de atra-tivos e equipamentos e 2) o comparti-lhamento de características homogê-neas que definam uma imagem coleti-va e comercialmente valorável.

Além das características acimaapontadas, também é freqüente, espe-cialmente em determinados contex-tos, o uso de unidades político-admi-nistrativas como âmbitos turísticos,obedecendo a razões de organizaçãoe planejamento, o que, segundo aspreocupações metodológicas de Boul-lón, se configuraria como um uso ina-dequado do termo região.

Evolução doturismo na Bahia

Assim como na Europa, no sécu-lo passado, as temporadas nas esta-ções de águas com propriedades me-dicinais se constituíram na primeiramodalidade de turismo praticada noEstado. Ela se desenvolveu muito ti-midamente, desde finais do séculopassado até meados deste século, ten-do o centro de suas atividades na ilhade Itaparica e nas cidades de Ilhéus,Olivença, Caldas do Cipó e Caldas doJorro, estas duas últimas localizadasem pleno sertão semi-árido.

...as regiõesturísticas

normalmente sedefinem em função

da associaçãoespacial das

atrações einstalaçõesrelativas...

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Na década de 50, o incremento dotransporte aéreo tornou mais fáceis osgrandes deslocamentos territoriais,fato que beneficiava o Estado, tendoem vista as grandes distâncias que oseparavam dos principais núcleosurbanos brasileiros, localizados nosul/sudeste do País. Nessa época sur-ge então, com pioneirismo, o PrimeiroPlano Diretor de Turismo de Salvador,elaborado pelo recém-criado Depar-tamento de Turismo da PrefeituraMunicipal, que tinha como objetivosolucionar as graves deficiências exis-tentes no setor2 , por exemplo, a au-sência de estradas e equipamentosque viabilizassem o desenvolvimen-to da atividade.

O asfaltamento da rodovia BR-116, conhecida como Rio-Bahia3 , em1963, foi outro fato relevante para ocrescimento do fluxo de visitantes noEstado. Aliado a isso, em 1968, foi cri-ada a Bahiatursa – Empresa de Turis-mo da Bahia - , responsável pela for-mulação das políticas setoriais e peladescentralização da atividade, atéentão restrita ao âmbito de Salvadore, em menor proporção, das estânciashidrominerais enumeradas anterior-mente.

A primeira iniciativa neste senti-do foi tomada no início da década de70, com a construção de hotéis degrande porte nas cidades considera-das prioritárias para o turismo doEstado, tendo sido beneficiadas, nes-te primeiro momento, a ilha de Itapa-rica e Juazeiro (1972)4 , Porto Seguro(1974), Barreiras e Cachoeira (1974).5

Mais tarde, foram contempladas ou-tras localidades de interesse turísti-co, por exemplo, Lençóis (principaldestinação da Chapada Diamantina),Jacobina, Valença, Ilhéus e PauloAfonso, esta última também localiza-da às margens do rio São Francisco,na altura em que seu curso forma umcanyon.

A essa época, o mercado internoera a prioridade. Ainda se tinha queconstruir a imagem da Bahia para oturista nacional e, com essa intenção,multiplicaram-se os esforços de pro-moção do Estado, sempre com Salva-dor como produto principal, com a

participação em feiras, eventos, jorna-das gastronômicas, dentre outrasações de natureza similar. Também seiniciaram os estudos econômicos e oacompanhamento estatístico do turis-mo na Bahia.

O primeiro grande boom do turis-mo baiano aconteceu ainda na déca-da de 70 ( de 1974 a 1979, aproxima-damente), como fruto do trabalho depromoção da destinação Bahia juntoaos mercados emissores do sul/su-deste do País e da “exportação” dosvalores culturais da terra, especial-mente através do binômio música/carnaval, que ainda hoje são respon-sáveis pela atração de boa parte dofluxo de turistas que procura o Esta-do. Salvador se firmou como a capitaldo Nordeste e, em função disso, maisinvestimentos foram realizados, comoa construção do Centro de Conven-ções da Bahia em 1979, inauguradocomo o maior equipamento desta na-tureza no norte/nordeste do Brasil, ecom o objetivo de diminuir os efeitosda sazonalidade sobre o movimentode turistas na baixa estação.

Mas a expansão da atividade serealizou em uma época economica-mente desfavorável para o País e, jáno início da década de 80, começa-vam a sentir-se indícios de retraçãonos indicadores conquistados emanos anteriores. Com o fim da era do“milagre econômico” e a redução dopoder aquisitivo da população, o flu-xo turístico na Bahia viu-se seriamen-te abalado, notadamente porque esta-va calcado no mercado interno. Para-lelamente, a Bahia começava a enfren-tar a concorrência de outras destina-ções emergentes no Nordeste, porexemplo, das cidades de Fortaleza,Maceió e Natal.

O trabalho de promoção que ha-via sido feito até então foi redirecio-nado e, com a melhoria da infra-es-trutura turística possibilitada pelosinvestimentos realizados na décadaanterior, passou-se a trabalhar o mer-cado internacional, criando-se oslogan que até hoje identifica o Esta-do em todas as ações oficiais de di-vulgação da destinação e já bastanteassimilado pelos empresários do se-tor: Land of Happiness ou Terra da Feli-cidade.

Entre 1979 e 1983, a Bahia parti-cipou de mais de cem eventos exter-nos e conquistou os primeiros vôosinternacionais diretos6 para Milão,Roma, Madri, Assunção, Paris e Lis-boa. Paralelamente, começou a inves-tir mais intensivamente na descentra-lização da atividade turística atravésda eleição de municípios-chave, compotencial para competir em escalaglobal com outras destinações.

O primeirogrande boom doturismo baiano

aconteceuainda na década

de 70...

2 A utilização do termo setor, neste momento, não se refere ainda a um segmento organi-zado da economia, tendo em vista o estágio embrionário do turismo na década de 50,deve-se muito mais à força do hábito.

3 A BR 116 juntamente com a BR 101 são os dois principais corredores rodoviários doPaís, interligando-o de norte a sul. Ambas as rodovias cortam o estado da Bahia nosentido longitudinal.

4 Juazeiro se localiza às margens do Rio São Francisco, maior rio do Estado, em plenaregião de caatinga e possui boas perspectivas para o turismo de esportes e o ecoturismo,embora até hoje ocupe uma posição secundária no cenário estadual. Sua posição estra-tégica no sistema de transportes brasileiro pode ter justificado essa escolha.

5 Porto Seguro é o maior balneário litorâneo do Estado, embora naquela época ainda nãotivesse maior destaque. Barreiras segue a mesma lógica de Juazeiro, também inseridaem uma região de beleza natural singular, embora muito pouco povoada até hoje. Cacho-eira é uma cidade histórica da Bahia, tombada pela UNESCO como patrimônio da huma-nidade.

6 Até o momento os portões de entrada de vôos internacionais no Brasil eram Rio deJaneiro e São Paulo, chegando-se à Bahia via conexões domésticas.

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O segundo boom do turismo baia-no aconteceu a partir de 1991, quan-do Salvador passou a ocupar o tercei-ro lugar entre as destinações brasilei-ras mais visitadas, atrás apenas doRio de Janeiro e de São Paulo, que con-tinuavam, em função da polarizaçãoeconômica que exercem em relação àsdemais capitais do País, concentran-do o maior número de eventos e devôos internacionais. A Bahia conquis-tou também o posto de principaldestinação brasileira para os cruzei-ros marítimos, com três portos incluí-dos no roteiro (Salvador, Ilhéus e Por-to Seguro).

O objetivo do planejamento turís-tico estadual migrou da ênfase na cap-tação (que continuava sendo bastan-te importante) para a ampliação dotempo de estadia dos turistas e o au-mento do gasto médio per capita, comuma preocupação já visivelmentefocada na importância econômica daatividade para a geração de empregoe de renda no Estado.

Neste momento, deixou-se de con-siderar apenas os municípios isola-damente e passou-se a trabalhar coma nova geografia do turismo, conside-rando-se conjunto de municípiosagrupados por regiões, levando-se emconta o apelo mais signficativo decada uma delas. Assim, no ano de1991, surgiu o Prodetur – Programade Desenvolvimento Turístico daBahia e as regiões turísticas do Esta-do.

De acordo com Mello e Silva “oturismo baiano passou a representar,desde 1991, com continuidade aténossos dias, uma das mais importan-tes estratégias de crescimento de todoo Estado, aproximando-se do queHirschaman chamou de um projetode impacto estruturante, ou seja, umprojeto que tenha efetivas e amplasrepercussões econômicas, sociais,políticas e sociais” ( Mello e Silva,1996, p. 134).

Entretanto, a posição do Brasil eda Bahia no contexto do turismo in-ternacional tem sido, ao longo do tem-po, bastante tímida, refletindo suanatureza residual e inexpressividadediante da dimensão e magnitude as-

sumidas pelos fluxos físico e monetá-rio decorrentes da movimentação deturistas em termos mundiais.

Confirmando esta desconfortávelposição, basta considerar-se que, em1996, segundo dados da OMT, o flu-xo internacional de turistas em visitaao Brasil situou-se em 2,7 milhões depessoas, representando 0,5% do totalmundial, enquanto a receita geradapor esse fluxo atingiu o montante deUS$ 2,5 bilhões, correspondendo a0,6% da receita total gerada pelo tu-rismo internacional no mundo.

Em 1996, conforme a OMT, o Bra-sil não figurou entre os 40 países maisvisitados por turistas internacionais,ficando entre a 37ª e a 40ª posiçãoquanto ao volume de ingressos. Em1980, o Brasil ocupou o 30º e o 12º lu-gares no que se refere ao número deturistas e aos ingressos gerados, res-pectivamente, e em 1985 figurou em 17ºlugar quanto aos ingressos gerados.

O advento do Plano Real e as me-didas de política econômica objeti-vando a estabilização da economiabrasileira delinearam um novo e difí-cil cenário para o turismo nacional elocal. Com a valorização da moedabrasileira frente ao dólar americano,ocorreu uma sensível perda do poderde compra dessa moeda no mercadointerno de bens e serviços, repercutin-do negativamente no volume de che-gadas e ingressos por turismo inter-nacional no Brasil e na Bahia (Bahia-tursa, 1998).

Nosso produto turístico tornou-se mais caro em relação às destinaçõesconcorrentes, o que levou à perda deatratividade e ao conseqüente desviode turistas para outros pólos recepto-res. Simultaneamente, as restriçõesinternas de crédito e o aperto deliquidez, aliadas a facilidades para ocrédito externo, tornou essas destina-ções concorrentes efetivas dos própri-os pólos turísticos nacionais, influin-do desfavoravelmente no turismo do-méstico e impedindo que o seu incre-mento fosse suficiente para compen-sar a queda ocorrida no fluxo inter-nacional.

Apesar da indiscutível vocaçãodo Estado para o desenvolvimento daatividade turística, a Bahia não esca-pou da crise vivida pelo setor em ter-mos nacionais, sofrendo uma forteretração entre os anos de 1987 e 1990.Neste último ano, registrou-se em Sal-vador o menor fluxo global do perío-do 1983/90 (959 mil turistas) e a me-nor taxa média geral de ocupação dahotelaria classificada do período1981/90 (42,7%), com a atividade tu-rística na capital baiana chegando ao“fundo do poço”.

Os principais motivos para talretração foram a comprovada falta deapoio governamental e o elevado pre-ço das passagens aéreas e da hospe-dagem (Bahiatursa, 1998).

Para reverter esse cenário, o Go-verno estadual (1991/98) desenvolveuum programa sustentado em três ân-coras básicas: o marketing turístico, oprograma de investimentos e o desen-volvimento do produto turístico.

Inicialmente, pretendia-se possi-bilitar a implementação de uma estra-tégia com o objetivo de retomar o cres-cimento do turismo baiano, consoli-dando uma nova imagem do “produ-to Bahia” junto aos principais emis-sores internacionais e nacionais, eassim captando e cativando a deman-da de um maior fluxo turístico pelosatrativos do Estado.

Após o êxito alcançado na suaimplementação (em 1995, o fluxo glo-bal em Salvador foi de 1.229 mil turis-tas e a taxa média de ocupação atin-giu 54,1%), redefiniu-se o direciona-

Nossoproduto turístico

tornou-se mais caroem relação àsdestinações

concorrentes, o quelevou à perda de

atratividade...

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mento da ação estratégica, buscando-se, através de um amplo e complexoconjunto de ações/investimentos, di-versificar o “produto Bahia” com umanova concepção de espa-ços/produtos, implemen-tada através do Prodetur,com o objetivo de elevar apermanência do turistano Estado, canalizando osbenefícios sócio-econômi-cos derivados do turismopara as suas regiões me-nos desenvolvidas, bus-cando, dentre outros obje-tivos:

- conquistar novossegmentos de mer-cado para o “pro-duto Bahia”;

- desenvolver o turis-mo ecológico, prin-cipalmente nos pó-los turísticos do in-terior;

- captar eventos téc-nicos, profissionais,feiras e festivais;

- atrair investimen-tos privados;

- promover a recupe-ração e adaptaçãodos produtos turís-ticos existentes;

- identificar limita-ções de infra-estru-tura ao desenvolvi-mento da atividade,propondo e promo-vendo soluções.

O trabalho de base de-senvolvido em 1991 começou a apre-sentar resultados concretos no desem-penho do turismo, já em 1992, quan-do o fluxo de turistas na Bahia alcan-çou 2 milhões (cerca de 50%, em Sal-vador). Em 1998, o fluxo turístico glo-bal da Bahia se situou em torno de3,32 milhões de turistas e a renda emUS$ 908 milhões. Em Salvador, o flu-xo global alcançou, em 1998, o pata-mar de 1,58 milhão de turistas, supe-rior ao fluxo observado em todo o pe-ríodo 1991/98, tendo marcado 1,23

TABELA 1Bahia - Fluxo global de turistas segundo residência permanente 1990/1998

Nº TURISTAS PART.%ANO

NACIONAIS ESTRANG. TOTAL NACIONAIS ESTRANG.1990 1.577.199 148.802 1.726.000 91,38 8,621991 1.824.064 159.936 1.984.000 91,94 8,061992 1.781.665 183.744 1.965.409 90,65 9,351993 2.139.963 210.000 2.349.963 91,06 8,941994 2.345.727 231.000 2.576.727 91,04 8,961995 2.327.598 254.100 2.581.698 90,16 9,841996 2.509.589 292.050 2.801.639 89,58 10,421997 2.849.220 340.050 3.189.270 89,34 10,661998 2.961.000 357.000 3.318.000 89,24 10,76

Fonte: Bahiatursa (1998).

TABELA 2Bahia - Receita turística global segundo residência permanente 1990 – 1998

RECEITA (EM US$ 1.000) PART.%ANO

NACIONAIS ESTRANG. TOTAL NACIONAIS ESTRANG.

1990 276.582 45.718 322.301 85,81 14,19

1991 267.953 53.304 321.257 83,41 16,59

1992 331.546 72.865 404.411 81,98 18,02

1993 56.143 112.354 468.497 76,02 23,98

1994 487.215 103.455 590.670 82,49 17,51

1995 726.554 143.256 869.810 83,53 16,47

1996 766.638 124.459 891.097 86,03 13,97

1997 745.934 110.652 856.586 87,08 12,92

1998 789.230 118.690 907.920 86,93 13,07

Fonte: Bahiatursa (1998).

milhão em 1995, 1,33 milhão em 1996e 1,52 milhão em 1997. A receita deri-vada desse fluxo proporcionou, em1998, um montante de US$ 504 mi-

lhões, contra cerca de US$ 483 milhõesem 1995, US$ 495 milhões em 1996 eUS$ 476 milhões em 1997.

O Prodetur e aregionalização turística daBahia

A descentralização da atividadeturística no Estado da Bahia seguiuuma tendência internacional de diver-sificação dos produtos turísticos ofe-recidos pelos países juntamente com oaproveitamento das áreas interiores,antes deixadas para um segundo pla-no em benefício das áreas costeirasdedicadas ao turismo de sol e praia.

Como foi observado por Mello eSilva (1996), até o final da década de70, Salvador aparecia quase como oúnico destino turístico do Estado. Eleobserva que, em 1964, no Guia turísti-co do Brasil, com 91 páginas de texto,constava sobre a Bahia quase umapágina sobre Salvador e 6 linhas so-bre Cipó. O Guia Quatro Rodas de1965 só apresentava 8 localidadesbaianas; hoje, são 53 citações.

Assim, como foi descrito anterior-mente, face às exigências internas, por

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42 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

alternativas de dinamização econô-mica de uma ampla área do Estadoantes ignorada pelo planejamento daatividade, e também à saturação dasprincipais destinações de sol e praia,junto com a necessidade de se aumen-tar o tempo médio de estadia dos visi-tantes, tomou impulso a descentra-lização do turismo baiano.

Através do Prodetur – Programade Desenvolvimento Turístico daBahia, executado pela Secretaria deCultura e Turismo7 , lançado em 1991,o Governo do Estado propunha-se acriar centros turísticos integrados aolongo do território estadual, localiza-dos em zonas que manifestassempotencial turístico, envolvendo aconstrução de 51 mil novas unidadeshabitacionais e aumentando a capa-cidade de acolhimento da Bahia paraum total de 4,4 milhões de turistas/ano8 , quando concluídos os projetos,em um horizonte temporal de 20 anos.Estimava-se um montante de US$ 3,4bilhões para a viabilização das obrase uma igual contrapartida de investi-mentos públicos em infra-estrutura.

7 No Brasil, a administração estadual está a cargo das chamadas Secretarias de Estado, dentre as quais, na Bahia, a Secretaria deCultura e Turismo é a encarregada do planejamento e promoção da atividade.

8 Em 1997, o Estado da Bahia registrou um total de 3,1 milhões de turistas.

TABELA 3Bahia – Regiões turísticas, zonas turísticas e municípios turísticos no

âmbito do Prodetur (1991)

Regiões Turísticas Zonas Turísticas Municípios TurísticosLitoral Norte Costa dos Coqueiros* Lauro de Freitas, Camaçari, Mata de

São João, ENTREGA ESPECIAL Rios,Esplanada, Conde e Jandaíra até oslimites com o Estado de Sergipe

Baía de Todos os Santos Baía de Todos os Santos Salvador, Vera Cruz, Itaparica, Jaguari-pe, Salinas da Margarida, Saubara,Santo Amaro, Cachoeira, São Félix, SãoFrancisco do Conde, Madre de Deus eMaragogipe.

Litoral do Baixo Sul Costa do Dendê* Valença, Taperoá, Cairú, Nilo Peçanha,Ituberá, Igrapiúna, Camamu e Maraú.

Litoral do Baixo Sul Costa do Cacau* Itacaré, Uruçuca, Ilhéus, Una e Canavi-eiras.

Litoral Extremo Sul Costa do Descobrimento Santa Cruz de Cabrália, Porto Seguro eBelmonte

Litoral Extremo Sul Costa das Baleias Prado, Alcobaça, Caravelas, Nova Viço-sa e Mucurí, até o Estado do EspíritoSanto

Chapada Diamantina Chapada Diamantina Lençóis, Andaraí, Mucugê, Palmeiras,Iraquara, Itaetê, Seabra, Rio de Contas,Érico Cardoso, Piatã e Abaíra.

TABELA 4Bahia - Zonas turísticas, centros turísticos, complexos turísticos, circuitos ecoturísticos e zonas

de interesse turístico no âmbito do Prodetur (1991)

Zonas TurísticasCentros Turísticos/

Circuitos EcoturísticosComplexos Turísticos/Zonas de

Interesse Turístico

Costa dos Coqueiros Forte-Sauípe Praia do Forte,Velho Nambu e SauípeBaía de Todos os Santos (*) Ponta de Meringote e Ponta de N.Sra de

GuadalupeCosta do Dendê (*) Ponta do Curral, Garapuá e CampinhosCosta do Cacau Itacaré-Ilhéus ItacarezinhoCosta do Descobrimento Porto Seguro- Caraíva Caraíva e Coroa VermelhaCosta das Baleias Ponta das Baleias –

AbrolhosPonta das Baleias

Chapada Diamantina Circuito Ecoturístico doDiamante

Morro do Pai Inácio, Lençóis, Parque Temá-tico da Lapa Doce, Parque Temático de Igatu

Chapada Diamantina Circuito Ecoturístico doOuro

Monte Tromba, Rio de Contas, Mato Grosso,Rio Brumado.

Fonte: Secretaria de Cultura e Turismo – Codetur (1993).

O Programa dividiu o Estado emcinco regiões turísticas: Litoral Nor-te, Baía de Todos os Santos, LitoralSul, Litoral Extremo Sul e ChapadaDiamantina. Nessas cinco regiões fo-ram definidas sete zonas turísticas,

quatro centro turísticos, doze comple-xos turísticos e, na Chapada Diaman-tina, foram planejados dois circuitosecoturísticos, com oito zonas de inte-resse turístico (ZIT), conforme de-monstrado nas tabelas a seguir:

Fonte: Secretaria de Cultura e Turismo – Codetur (1993).(*) As zonas turísticas da Baía de Todos os Santos e Costa do Dendê não têm centros turísticos previstos.

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43RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

As regiões elegidas para servir debase ao planejamento turístico do Es-tado foram delimitadas de acordo comaquelas duas premissas citadas ante-riormente, quais sejam:

a) concentração de atrativos e equi-pamentos;

b) compartilhamento de caracterís-ticas homogêneas que definamuma imagem valorável do pontode vista mercadológico.

Analisemos caso a caso:

a) Litoral Norte – os municípiosenglobados nesta região são todos li-torâneos e apresentam característicasfísicas, sociais, econômicas e culturaisbastante similares. É uma área, até hábem pouco tempo, isolada da açãoantrópica mais intensiva, pela suadeficiente ligação terrestre com o res-to do Estado. Em 1993, foi construídauma rodovia, denominada Linha Ver-de, que une Salvador à última praiado litoral norte e ao Estado de Sergipe,formando um corredor turístico ain-da pouco explorado. São praias vir-gens, onde predominam as dunas eporções de mata atlântica. Os coquei-ros são abundantes em toda a exten-são costeira, sendo a produção decoco a atividade econômica mais tra-dicional do local, através das planta-ções das grandes fazendas ali insta-ladas. A imagem das praias repletasde dunas e coqueiros ainda bastanteconservados marca a promoção des-ta região turística, cuja zona polariza-dora foi batizada como Costa dosCoqueiros.

b) Baía de Todos os Santos – estaregião turística engloba os municípi-os que rodeiam a baía e sua fronteirasul mais imediata, o denominadoRecôncavo Baiano. Trata-se de umaárea marcada por uma grande quan-tidade de ilhas, pela desembocadurade rios caudalosos e por um passadohistórico comum de grande importân-cia em termos nacionais. Pode-se di-zer, então, que às condições físicashomogêneas se unem também carac-terísticas histórico-culturais que per-mitiriam tomar entorno da baía de

Todos os Santos como um produtoisolado.

c) Litoral do Baixo Sul – abriga aszonas turísticas da Costa do Dendê eda Costa do Cacau, as duas princi-pais atividades econômicas da região.As plantações de dendê e cacau sãomarcantes na paisagem e determi-nantes de características singularesque conferem à área condições de abri-gar duas zonas turísticas diferencia-das comercialmente. As característi-cas físicas são homogêneas, desta-cando-se o grande grau de biodiver-sidade das matas secundárias e dasreservas de mata atlântica e a precipi-tação pluviométrica superior a 1800mm anuais.

d) Litoral Extremo Sul – está com-posto pelas zonas turísticas da Costado Descobrimento e da Costa dasBaleias. A primeira, assim denomina-da por ter sido nesse ponto do litoralque o Brasil foi descoberto; e a segun-da, por receber entre os meses de ju-lho e novembro cardumes de baleiasjubarte, atraídas por suas águas quen-tes e ricas em alimentos. Com um pas-sado histórico também de grande ape-lo, esta parte da costa abriga destina-ções turísticas de sucesso como PortoSeguro, principal centro dinamizadorda atividade na região e segunda lo-calidade mais visitada do Estado, e oarquipélago de Abrolhos, uma dasmelhores áreas para mergulho dopaís. O cenário natural também é di-ferente, já não apresentando a densavegetação existente nas áreas mais aonorte, marcado por uma ação antró-pica mais visível e pela presença deinúmeras falésias e recifes de corais.

e) Chapada Diamantina – das re-giões turísticas estabelecidas peloProdetur é a única que não está loca-lizada no litoral. Situa-se na regiãocentral do Estado, apresentando rele-vo montanhoso, canyons, cachoeiras,rios e uma vegetação de cerrado, comabundância de flores. Com um gran-de apelo ecológico, a Chapada Dia-mantina se destina a um outro tipo depúblico, menos massivo e mais cons-ciente das questões ambientais. Poresse motivo, o zoneamento da áreaacontecerá de forma distinta, no que

os planejadores do governo conven-cionaram chamar de Circuitos Ecotu-rísticos. Seriam dois, o do Diamante eo do Ouro, explorando o passado his-tórico da região, marcado pela explo-ração desses minerais.

Das características enumeradasacima, percebe-se a diversidade de“produtos turísticos” oferecida peloEstado da Bahia. A regionalização doterritório vai ao encontro dos concei-tos de região turística abordados,agrupando as diversas destinaçõesem conjuntos mais ou menos homogê-neos, do ponto de vista da paisagem,principalmente, das característicashistóricas, econômicas e culturais,além da disponibilidade da oferta deserviços, alvo da maior parte dos in-vestimentos realizados.

A determinação das grandes re-giões turísticas serviu de plataformapara as diferenciações internas, repre-sentadas pelas zonas turísticas e, numplano mais detalhado, pelos centrosturísticos e complexos turísticos.

Com base no perfil dos produtoscriados, torna-se evidente a orienta-ção da política de planejamento tu-rístico do Estado da Bahia para asseguintes vertentes:

a) progressiva formação de outrosnúcleos turísticos no Estado, re-duzindo a primazia da Capital;

b) orientação para investimentosprivados de grande porte, notada-mente nos centros turísticos dolitoral, visando à conquista mas-siva de turistas com alto poderaquisitivo, com maior participa-ção de turistas internacionais.

É importante salientar que a re-gionalização efetuada não esgota aspossibilidades turísticas do Estado.Em função dos objetivos desse pro-grama, foram deixadas de fora áreasmais isoladas e com menor concen-tração de atrativos e equipamentos,que deverão ser objeto de outros pro-gramas de fomento, mais pontuais ede menor porte, por exemplo, a cria-ção de parques temáticos, reservasnaturais e o incentivo às atividadesde turismo rural.

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Impacto do Prodetur nadesconcentração daatividade turística

Observando a evolução dos inves-timentos no setor turístico a partir daimplantação do Prodetur, ou seja, to-mando-se o período 1991/1998 comoreferência, podem-se perceber algu-mas modificações significativas nageografia do turismo baiano, que fi-carão evidentes através da análise dastabelas que se seguem.

Os investimentos privados anun-ciados no período totalizaram o mon-tante de US$ 4,7 bilhões, dos quaisUS$ 513,7 milhões já concluídos, US$422,8 milhões em execução e US$ 3,7bilhões projetados para um horizon-te temporal de aproximadamente 15anos, correspondendo a um total de35 mil novas unidades habitacionaisconstruídas.

Se comparamos esses resultadosparciais com as metas traçadas peloprograma, no início da década, perce-bemos que o montante do investimen-to privado superou em mais de US$ 1bilhão o previsto, e que já foram con-tratadas 68% do total de unidadeshabitacionais estimadas. Faltando ain-da mais de 10 anos para o término doprazo estipulado pelo Prodetur, pode-se dizer que, em termos quantitativos,o programa tem obtido respostas aci-ma das expectativas.

Quanto à distribuição espacialdos investimentos, predominam ossituados nas zonas turísticas da Cos-ta do Descobrimento (25,4%) e Costados Coqueiros (20,1%), onde se loca-lizarão os maiores complexos turísti-cos do programa, seguidas da Costado Cacau (17,6%), Costa das Baleias(11,9%), Costa do Dendê (9,6%),Chapada Diamantina (11,9%) e, porfim, a Baía de Todos os Santos (sem

considerarmos Salvador – 7,4%). Osinvestimentos na Capital se somadosaos de sua zona turística, alçariam aBaía de Todos os Santos para apenasa quarta posição.

A grande maioria dos investimen-tos privados (89%) foi dirigida para aconstrução de hotéis e pousadas, al-cançando os 98%, quando considera-mos outros meios de hospedagemcomo os albergues, campings, resorts,aparts/villages e os complexos turísti-cos programados no âmbito do Pro-detur.

Apenas na Chapada Diamantinase percebe alguma diversificação fun-cional dos investimentos com a exis-tência de algumas inversões privadasem infra-estrutura, a exemplo de pos-tos de informação turística e serviçosde transporte, todas realizadas pelomesmo grupo econômico e como su-porte à sua atividade principal.

TABELA 5Prodetur - Natureza dos investimentos provados por zona turística (1991-1998)

Costa dosCoqueiros

Baía de Todosos Santos*

Costa doDendê

Costa doCacau

Costa doDescobrimento

Costa dasBaleias

ChapadaDiamantinaNatureza/Zona

TurísticaQ % Q % Q % Q % Q % Q % Q %

Total

Hotéis/Pousadas 126 19,0 48 7,3 69 10,4 123 18,6 171 25,9 83 12,6 41 6,2 661Aparts/Villages 06 28,6 - 0,0 01 4,7 04 19,0 07 33,3 03 14,3 - 0,0 21Albergues 01 11,1 - 0,0 - 0,0 - 0,0 01 11,1 02 22,2 05 55,5 09Resorts/Spas 07 30,4 07 30,4 01 4,3 02 8,7 05 21,7 - 0,0 01 4,3 23Campings 02 28,6 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 05 71,4 07Marinas - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 -Parques - 0,0 - 0,0 - 0,0 01 25,0 01 25,0 - 0,0 02 50,0 04C. Convenções - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 01 100,0 - 0,0 - 0,0 01Restaurantes 05 100,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 05Comp.Turísticos 02 50,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 02 50,0 - 0,0 - 0,0 04Eq. De Apoio - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 03 100,0 03Transportes - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 - 0,0 02 100,0 02

Total 149 20,1 55 7,4 71 9,6 130 17,6 188 25,4 88 11,9 59 8,0 740

Fonte: SCT/Codetur(*) Sem Salvador

Desde o princípio, o Governo doEstado tem divulgado que, a despeitodos montantes investidos no Prodeture das dimensões dos complexos tu-rísticos programados, existe uma pre-ocupação com a capacidade de cargadas destinações, o que resultaria napreferência por empreendimentos debaixa densidade de ocupação, quedevem apresentar uma proporção de10 a 35 leitos por hectare. Mais do queuma preocupação ambiental, essa ori-

entação busca conseguir um diferen-cial em relação aos principais concor-rentes da Bahia em termos internaci-onais, como é o caso do México, queapresentam uma densidade de 100 a150 leitos por hectare.

O que se observa em relação aosinvestimentos anunciados em meiosde hospedagem é, de fato, uma maiorparticipação numérica dos empreen-dimentos de pequeno porte, que repre-sentam 69% do total, dos quais 38,6%

em empreendimentos com menos de10 unidades habitacionais e 30% en-tre 11 e 20 unidades habitacionais.Salvador é a localidade que apresentamaior quantidade de empreendimen-tos, com mais de 50 unidades habita-cionais, o que é justificado pelo seupapel de principal portão de entradado Estado, que concilia característicasde destinação de ócio e de negócioscom seu papel funcional de grandeurbe no contexto nacional. Se desconsi-

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derarmos a Capital nesta análise, ve-rifica-se que a participação desta ru-brica cai para menos de 10% do totaldas demais zonas turísticas.

No que pese ainda ao porte dosmeios de hospedagem, verificam-seduas realidades absolutamente dis-tintas: por um lado, a grande quanti-dade de pequenas pousadas, muitasdelas familiares, pertencentes a em-

presários locais e os grandes hotéis,resorts e complexos turísticos que,embora menos representativos quan-titativamente, se destacam pela gran-diosidade das suas instalações.

O Complexo Turístico de Por-to Sauípe, na Costa dos Coqueiros,abrigará sozinho mais de 7 mil uni-dades habitacionais, o que represen-ta uma proporção de 120 leitos por

hectare e, no sul do Estado, outro exem-plo, o Complexo Turístico de CoroaVermelha, na Costa do Descobrimen-to, tem programadas 3.300 unidadeshabitacionais em uma área que, esti-ma-se, seja de 40 a 50 hectares, signi-ficando uma relação de 66 a 82 leitospor hectare, o que, nos dois casos, éuma densidade bem acima do pro-posto inicialmente no Programa.

Os investimentos públicos no pe-ríodo totalizaram US$ 2,1 bilhões,montante inferior ao estimado para os20 anos de execução do programa,representando cerca 62% do total pre-visto. Quanto à sua localização, elesnão seguiram a mesma distribuiçãodos investimentos privados, concen-trando-se na Capital do Estado, quepassou por uma completa reestru-turação urbanística, com a restaura-ção do patrimônio histórico-artístico,recuperação de áreas degradadas eampliação de equipamentos impor-tantes como o Centro de Convençõese o Aeroporto Internacional Deputa-do Luis Eduardo Magalhães.

Dada a sua dimensão e importân-cia, a Capital da Bahia, Salvador, temque estar não só integrada nesse pro-jeto de desenvolvimento, como assu-mir uma condição de liderança doprocesso, buscando também diversi-ficar os seus sítios de vocação turísti-ca, constituindo zonas homogêneasde atração conforme as especificida-des de suas áreas de relevante inte-resse turístico, orientando-se emsintonia com as ações correlatas ema-nadas no âmbito estadual, visando amanter um adequado grau de afini-dade, coerência e integração com elas.

Em parte, a concentração dos in-vestimentos públicos em Salvador éjustificada pelo papel de principaldestinação e centro distribuidor dofluxo turístico do Estado que esta ci-dade exerce. Afinal, as recém-criadaszonas turísticas da Bahia, à exceçãodo caso isolado de Porto Seguro, ain-da não têm condições de atrair e man-ter um fluxo constante de visitantessem a participação da Capital. Poroutro lado, também influencia nesteresultado o montante de recursos des-tinado ao programa de saneamento

TABELA 6Prodetur - Investimentos privados em meios de hospedagem por número

de unidades habitacionais e zonas turísticas em UHS (1991-1998)

Até 10 De 11-20 De 21-30 De 31-50 Mais de 50 TotalZONA TURÍSTICA

Q % Q % Q % Q % Q % Q %

Costa dos Coqueiros 68 47,2 42 29,2 15 10,4 05 3,5 14 9,7 144 100Baía de Todos os Santos* 21 38,2 21 38,2 04 7,3 01 1,8 08 14,5 55 100Costa do Dendê 37 52,1 23 32,4 04 5,6 01 1,4 06 8,5 71 100Costa do Cacau 72 55,8 38 29,5 09 7,0 03 2,3 07 5,4 129 100Costa do Descobrimento 61 32,8 48 25,8 30 16,1 17 9,1 30 16,1 186 100Costa das Baleias 24 27,3 39 44,3 13 14,8 09 10,2 03 3,4 88 100Chapada Diamantina 16 30,8 17 32,7 05 9,6 11 21,1 03 5,8 52 100Salvador 04 10,0 04 10,0 04 10,0 11 27,5 17 42,5 40 100Outras 01 4,7 04 19,0 04 19,0 07 33,3 05 23,8 21 100

Total 304 38,6 236 30,0 88 11,2 65 8,3 93 11,8 786 100

Fonte: SCT/Codetur.(*) Sem Salvador

TABELA 7Prodetur - Montante de unidades habitacionais e investimentos privados

nas zonas turísticas (1991-1998) — (em US$ mil)

CONCLUÍDO EM EXECUÇÃO PROJETO GLOBALZONAS TURÍSTICAS

UH’S US$ UH’S US$ UH’S US$ UH’S US$

Costa Coqueiros 2.347 57.970 1.792 206.626 7.442 2.158.350 11.581 2.422.946Baía Todos Santos 3.210 202.306 421 94.000 1.156 137.150 4.787 433.456Costa do Dendê 913 14.098 - - 1.203 95.800 2.116 109.898Costa do Cacau 1.857 62.009 530 52.500 129 4.890 2.516 119.399Costa do Descob. 4.643 127.872 768 65.810 4.680 1.235.500 10.091 1.429.182Costa das Baleias 1.494 24.018 20 400 100 2.600 1.614 27.018Chapada Diamantina 677 16.335 79 1.983 565 121.093 1.321 139.411Outras 549 9.133 62 1.500 210 11.400 821 2.033

TOTAL GERAL 15.690 513.740 3.672 422.819 15.485 3.766.783 34.847 4.703.342

Fonte: SCT/Codetur(*) Incluindo Salvador

TABELA 8Prodetur - Montante de unidades habitacionais e investimentos privados

nas zonas turísticas (1991-1998) — (em %)

CONCLUÍDO EM EXECUÇÃO PROJETO GLOBALZONAS TURÍSTICAS

UH’S US$ UH’S US$ UH’S US$ UH’S US$

Costa Coqueiros 14,9 11,3 48,8 48,9 48,1 57,3 33,2 51,5Baía Todos Santos 20,4 39,4 11,7 22,2 7,5 3,6 13,7 9,2Costa do Dendê 5,8 2,7 - - 7,7 2,5 6,1 2,3Costa do Cacau 11,8 12,1 14,4 12,4 0,8 0,1 7,2 2,5Costa do Descob. 29,6 24,9 20,9 15,6 30,2 32,8 28,9 30,4Costa das Baleias 9,5 4,7 0,5 0,1 0,6 0,1 4,6 0,6Chapada Diamantina 4,3 3,2 2,1 0,5 3,6 3,2 3,8 2,9Outras 3,5 1,8 1,7 0,4 1,4 0,3 2,4 0,5

TOTAL GERAL 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: SCT/Codetur(*) Incluindo Salvador.

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Baía Azul que, além de Salvador, en-globa todos os municípios banhadospela baía de Todos os Santos.

Basicamente, os investimentospúblicos tiveram e ainda têm um ca-ráter infra-estrutural, concentrando-se em rubricas como saneamento bá-sico, transportes, sistemas aeropor-tuários, recuperação do patrimôniohistórico e energia elétrica.

Dentro da perspectiva geográficada descentralização da atividade tu-rística no Estado da Bahia, o Progra-ma executado pelo Governo Estadualparece ter dado um primeiro passo,embora muito ainda tenha que ser fei-to. Isto pode ser confirmado pelo de-sempenho recente de destinaçõescomo Porto Seguro, Ilhéus e ChapadaDiamantina, que começam a apresen-tar significativos incrementos quanti-tativos nos indicadores da atividade.

Para se ter uma idéia, segundo aBahiatursa, em 1997, a região LitoralSul, que engloba as zonas turísticasda Costa do Dendê, Costa do Cacau eCosta do Descobrimento, já possuía otriplo de leitos de Salvador e o dobrodos empregos gerados.

O exemplo mais espetacular é ode Porto Seguro, descoberto pelos tu-ristas apenas em 1973, quando só ti-nha um restaurante e um hotel, em1995 quase alcançava a Capital doEstado em número de leitos (9.184para Porto Seguro e 10.126 para Sal-vador). Desta forma, é bem possívelque o centro turístico do extremo sulsupere a Capital do Estado em poucotempo, indicando, de certa forma, umareversão da polarização no turismoda Bahia ou, como observa, Mello eSilva (1996) representando o queChristaller chama de “uma genuínaguinada rumo à periferia”.

Entretanto, após quase dez anosde execução, muito ainda se tem quequestionar o Prodetur, tendo em vistaa sua franca inclinação para o incen-tivo ao turismo de massa e as aindadesconhecidas conseqüências am-bientais dos investimentos realizadosno seu rastro. Mas, quanto a sua vali-dade como instrumento de descon-centração econômica, através dareinserção de megacomplexos, antes

TABELA 9Prodetur - Montante de investimentos públicos por zonas turísticas

(1991-1998) — (em US$ mil)

TOTALZONAS TURÍSTICAS CONCLUÍDOS EM EXECUÇÃO EM PROJETO

US$ %

Costa dos Coqueiros 73.311 3.022 95.179 171.512 8,1Baía de Todos os Santos * 296.274 668.983 114.967 1.080.224 51,2Costa do Dendê 55.209 11.633 30.251 97.093 4,6Costa do Cacau 86.815 34.399 89.010 210.224 10,0Costa do Descobrimento 45.930 77.721 107.759 231.410 10,9Costa das Baleias 42.281 5.014 52.486 99.781 4,7Chapada Diamantina 71.119 10.357 58.154 139.630 6,6Outras 51.462 26.504 1.424 79.390 3,8

TOTAL 722.401 837.633 549.230 2.109.264 100,0

TABELA 10Prodetur - Montante de investimentos públicos por natureza (1991-1998)

(em US$ mil)

Fonte:SCT/Codetur(*) Incluindo Salvador

TOTALNATUREZA CONCLUÍDOS EM EXECUÇÃO EM PROJETO

US$ %

Energia Elétrica 121.898 7.161 13.589 142.648 6,8Transportes 249.782 44.839 243.483 538.104 25,5Saneamento 192.021 567.907 122.379 882.307 41,8Rec. Patrimônio Histórico 68.915 37.521 55.904 162.340 7,7Sistemas Aeroportuários 25.207 130.000 7.500 162.707 7,7Recuperação Urbanística 27.646 18.214 35.156 81.016 3,8Limpeza Urbana 7.999 5.680 24.059 37.738 1,8Preservação Ambiental 460 8.597 2.900 11.957 0,6Outros 28.473 17.714 44.260 90.447 4,3

TOTAL 722.401 837.633 549.230 2.109.264 100,0

Fonte:SCT/Codetur(*) Incluindo Salvador

periféricas, na dinâmica da economiaestadual, ele de fato se constitui emum primeiro passo, embora esteja ge-rando um novo tipo de concentraçãoem torno dos megacomplexos turísti-cos que estão sendo construídos emáreas determinadas.

De fato, o que se percebe mais re-centemente é a criação de um novomodelo geográfico de turismo, marca-do por um outro tipo de concentra-ção: aquela que se verifica em tornodos núcleos turísticos estabelecidos,notadamente em torno dos complexosturísticos de maior porte, que come-çam a exercer um considerável poderde polarização sobre suas áreas ime-diatas de influência e a dividir entresi e com Salvador o fluxo turístico daBahia.

Para que haja uma completadesconcentração da atividade turísti-ca baiana, o planejamento estatal deveatuar de forma mais pulverizada, natotalidade dos municípios que dis-

põem de condições de explorar o tu-rismo. É claro que o capital semprevai procurar os centros mais dinâmi-cos e que os turistas internacionaisvão preferir percorrer distâncias me-nores e se hospedar em locais que ofe-reçam melhor estrutura e maior quan-tidade de atrativos, mas aí é que sequestiona um ponto fundamental naestratégia governamental: por quetanta ênfase na captação do turismointernacional e do grande capital?Será que essa é a melhor estratégiapara alcançar o objetivo que permeiatoda a política nacional de turismo queé o desenvolvimento local e a geraçãode emprego e renda?

A atuação do Estado com o Prode-tur tem enfatizado a captação de in-vestimentos e pode significar que ocontrole do processo não esteja tantonas suas mãos, mas nas dos grandesempreendimentos internacionais queestão sendo trazidos para a Bahia.Sente-se a falta do Estado como regu-

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47RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

lador da atividade, ditando normas aserem seguidas, que atendam aos ob-jetivos de sustentabilidade traçados,e monitorando o desempenho do tradeturístico.

Conclui-se, daí, que é inegável asua contribuição como instrumentode reordenamento econômico e espa-cial do território, devendo-se, entre-tanto, tomar precauções para que, alongo prazo, as conseqüências aindanão medidas desta desconcentração/concentração também não tornemhomogêneos os problemas inerentesàs áreas turísticas saturadas e desgas-tadas, que viveram intensamente osseus dez minutos de sucesso.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

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BOULLÓN, Roberto C. Planificación delespacio turístico. México:Trillas, 1990,245 p.

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CHRISTALLER, W. Some considerations oftourisme location in Europe: the periphe-ral regions – underdeveloped countries –recreation areas, 1963 Apud: MELLO ESILVA, Sylvio B. Geografia, turismo ecrescimento: o exemplo do Estado daBahia. In: Turismo e geografia – refle-xões teóricas e enfoques regionais. SãoPaulo: Hucitec, 1996, p. 122-144.

GOMES, Paulo C. da Costa. O conceito deregião e sua discussão. Geografia: Con-ceitos e Temas.Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 1995, p. 49-76.

GRIGG, David. Regions, models and clas-ses, models in geography, Londres: Me-thuen, 1967. Apud: COSTA GOMES,Paulo C. da. O Conceito de Região e suaDiscussão. In: Geografia: Conceitos eTemas.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1995, p. 49-76.

HIERNAUX, D. Elementos para umAnálisis Sociogeografico del Turismo.In: Turismo e Geografia. Reflexões Teóri-cas e Enfoques Regionais. São Paulo:Hucitec, 1996, p. 39-54.

JUILLARD, Etienne, La región: contribu-tions à une géographie générale desespaces régionaux, Paris:Ophrys, 1974.Apud: COSTA GOMES, Paulo C. da. OConceito de Região e sua Discussão. In:Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Ja-neiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 49-76.

LOZATO – GIOTART, J.P. Mediterranéeet tourisme. París: Masson, 1987, 215 p.Apud: VERA, J. Fernando (et al.).Análisis territorial del turismo. Barcelo-na: Ariel Geografía, 1997.

MELLO E SILVA, Sylvio B. Geografia, tu-rismo e crescimento: o exemplo do Es-tado da Bahia. In: Turismo e Geografia –Reflexões Teóricas e Enfoques Regionais.São Paulo: Hucitec, 1996, p. 122-144.

PEARCE, Douglas. Desarrollo turístico: suplanificación e ubicación geográficas.México: Trillas, 1988. 168 p.

VERA, J. Fernando (et al.). Análisis terri-torial del turismo. Barcelona: Ariel Geo-grafía, 1997, 443 p.

VILÁ VALENTÍ, Joan. El concepto de re-gión. In: La Región y la Geografia Espa-ñola, Valladolid; AGE, 1980, p. 13-29.

O que é o CEMPRE ?

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Ciências Contábeis

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CENTRO DE ESTUDOS

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48 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

O TABULEIRO DA BAIANA TEM,CULTURA.Anailde Almeida

Professora de Sociologia e Cultura Baiana da UNIFACS eDoutoranda em Planejamento Territorial e Desenvolvimento

Regional pela Universidade de Barcelona.

O QUE É QUEA BAHIA TEM?

Às vésperas de um novo milênioe do mundo globalizado, surge nomodus operandi baiano uma nova con-jugação: cultura e economia. Um fu-turo que já começou.

A cultura, historicamente viven-ciada como atividade de lazer e entre-tenimento, mais caracterizada comoatividade do ócio, surpreende a todosquando se configura como atividadeeminentemente econômica. Isto é, ge-radora de emprego e renda.

Os primeiros sinais dessa novaconjugação, cultura e economia, foramconhecidos quando o Ministro daCultura, Francisco Weffort, através depesquisas terceirizadas, investigou aposição da cultura no ranking da eco-nomia nacional. Em 1998, a Funda-

ção João Pinheiro, de MinasGerais, fez um mapa econômico

da atividade cultural no País, In-vestimentos culturais e a FundaçãoGetúlio Vargas, do Rio de Janeiro,Hábitos de consumo. Com objetivode levantar os indicadores econômi-cos da cultura, as pesquisas consta-taram, a produção cultural brasileiramovimenta quase 10 bilhões de dóla-res por ano. O equivalente a uma veze meia do que fatura, por exemplo, aindústria de cigarros. A cada milhãode reais investidos em cultura, sãogerados 168 novos empregos. Na in-dústria em geral, esta relação é de 1milhão para cada dez novos postosde trabalho. Pode parecer surpreen-dente, mas o artista brasileiro respon-de por 75% das vendas de discos2.

Na Bahia, de 1994 a 1998, foraminvestidos R$ 160 milhões no setorcultural, o que resultou na classifica-ção de segundo lugar entre os esta-dos do país a investir em cultura, per-dendo apenas para São Paulo. A situ-ação é relevante num estado conside-rado o sexto no orçamento nacional.A cultura da Bahia é um segmento queempregou 7,2% da mão de obra eco-

nomicamente ativa da Região Metro-politana de Salvador, tomando porbase o ano de 1977. O que representa

84.350 mil pessoas, muito próximodo contigente absorvido pela indús-

tria baiana de transformação,que emprega 8,3% da mão-de-

obra.A exemplo do Ministro da

Cultura, o Secretário de Cultu-ra e Turismo da Bahia fez tam-

bém uma investigação do PIB baiano,constatando que hoje a cultura con-tribui com 4,66% do produto internobruto, isto é, R$ 1,8 bilhões da econo-mia baiana3.

Em 1998, O Governo da Bahiaaplicou R$ 49 milhões em cultura, afir-mou o Secretário de Cultura PauloGaudenzi, verificando-se em 1999 umaumento desse investimento porqueo BID - Banco Interamericano de De-senvolvimento - ampliou o financia-mento do setor cultural. Ao que sedeve somar R$ 264,2 milhões de gas-tos na Bahia no consumo de produ-tos e atividades culturais por turistasde diferentes origens.

A Bahia é caracterizada pelo mo-delo industrial substitutivo de impor-tação, seu diferencial no panoramaeconômico nordestino. Identificadapor sua riqueza natural (agrícola, cafée cacau, fibras variadas e pecuária,assim como matérias primas indus-triais mineral e petrolífera), o que se

“No tabuleiro da baiana tem:vatapá, oi, caruru,munguzá, tem umbú pra ioiô,Se eu pedi você me dáo seu coração, seu amor de iaiá,No coração da baiana tem:sedução, oi, cangerê,ilusão, oi, Candomblé pra você,Juro por Deus, pelo Senhor do BonfimQuero você, baianinha,inteirinha pra mim...”

(Ary Barroso)1

1 No Tabuleiro da baiana, música de AriEvangelista Barroso, 1937.

2 Veja, São Paulo, p. 31, 22 jul. 1998.3 Jornal A Tarde, 13 dez. 1998.

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configura neste processo, vale ressal-tar, não só um modelo econômico epolítico, mas essencialmente culturalquando se consideram as estratégiaspolíticas que resultaram na criação doCIA- Centro Industrial de Aratu, nadécada de 60, e no Pólo Petroquímicode Camaçari, a partir da década de70. Decididamente, traçaram o perfildo desenvolvimento econômico daBahia, mas não se realizaram sem aconjugação cultural, pois a culturabaiana foi decisiva na produção in-dustrial ao tempo em que foi por elaintermediada.

Hoje, na dinâmica da globaliza-ção, percebemos, aquilo que foi paraa Bahia o marco de desenvolvimentorepresenta um modelo anacrônico nocenário da industrialização. Novosparadigmas do desenvolvimento eco-nômico e social fazem velhos os nos-sos modelos de produção industrial.Novamente nos deparamos com oEstado em crise, sem competitividadede um lado, defasado em suatecnologia industrial e, do outro, emretrocesso na qualidade de vida desua população. Os índices de pobre-za se revelam, então, assustadores.

Há urgência na geração de em-prego e renda. Os caminhos de hojesinalizam, impreterivelmente, paraum desenvolvimento auto-sustentá-vel.

É este cenário que faz vislumbrara luz do escuro túnel no fomento acultura. Todos os caminhos indicamque a retomada do crescimento regio-nal e a superação da crise não serámais pela dependência tecnológica daprodução, mas pelo incremento doseu potencial cultural e capacidadede preservação de sua identidade. Éeste o caminho capaz de conferir à

Bahia um novo desenho de desenvol-vimento na mais perfeita conjugação:cultura e economia.

Uma região que toma consciênciadesse profundo processo de mudan-ça buscará meios de fortalecer açõesde desenvolvimento da cultura comoestratégia de crescimento econômico,independente da indústria de trans-formação.

A dimensão cultural pode e devecontribuir para o desenvolvimento dacultura política. Neste sentido, não seconcebe mais a distância entre cultu-ra política e política cultural. Em umae outra é que se decide o modelo desociabilidade de uma região, de modoque ações e atores sociais sejam ele-mentos decisivos da possibilidade decrescer e viver o sonho de ser feliz.

O papel da ação regional será defundamental importância como exe-cutor e fomentador da cultura. Entre-tanto, esta ação local destacadamenterelevante não pode deixar de inserir-se no conjunto da realidade econô-mica da sociedade como um todo.

É imprescindível não perder aperspectiva de globalização e de de-senvolvimento sem abrir mão de suaidentidade cultural. A grande tendên-cia está sendo inaugurada com a cri-ação de redes, regiões que se articu-lam em rede de discussões e deintercambialidade cultural, através decomissões específicas permitindo aseus atores sociais a preservação desuas raízes culturais, a troca de expe-riências, de dificuldades, de soluçõese de crescimento econômico. De acon-tecimentos deste tipo já se tem notíciaem algumas regiões como Rio de Ja-neiro e, no caso especifico da Bahia, oPrograma Empreendedor Culturalparceria entre a Secretaria da Culturae Turismo do Estado e SEBRAE orga-niza uma Rede de Agentes e Produ-tores Culturais, uma ferramenta nabusca de capacitação profissional daatividade cultural, envolvendo artis-tas de todo mercado cultural baiano.O resultado desta intercambialidadetem sido reuniões mensais para dis-cussão dos empreendimentos, dasdificuldades, elaboração de projetos,trocas de serviços e planejamento es-

tratégico, por exemplo, a Região Me-tropolitana de Salvador, em estágiomais adiantado, já elaborou PlanoIntegrado de Desenvolvimento deAções Culturais para seus municípi-os, dando origem a negociação deparceria com instituições públicas eprivadas que desenvolvem ações cul-turais nas instâncias municipais, es-taduais e federais.

Iniciativas dessa dimensão pro-vocam a articulação da região que sevolta para a discussão de políticasculturais locais, preservando a demo-cratização da sociedade, com desta-que para aspectos humanos e cultu-rais e para suas raízes, respeitando aformação étnica. Essa democratiza-ção e participação ampla implica emcaráter suprapartidário, com ações eatores sociais acima das divisões po-líticas, assegurando, deste modo, odireito de expressão cultural de todaa população nas diferentes lingua-gens artísticas, preservando a rique-za e a diversidade da manifestaçãosociocultural.

O crescimento econômico de umaregião, para inserir-se com sucessonas questões nacionais e internacio-nais, deve partir do conhecimento evalorização de cada município, de suahistória, de sua cultura, construindouma participação ampla de cidada-nia e governo, isto é, Estado e Socie-dade.

Toda essa mudança nos cami-nhos da economia nacional surge dosriscos de se viver nos limites da capa-cidade de sustento da Terra, em que20% das pessoas consomem 80% dosrecursos mundiais.

É urgente o desenvolvimento denovos valores culturais e éticos nanecessidade de transformar estrutu-ras econômicas e reorientar novos es-tilos de vida4.

Resgatar, revalorizar, reestrutu-rar, redistribuir, reduzir e reciclar sãoprincípios básicos na ordem do dia-a-dia do mundo globalizado, em usono cotidiano de produtores e consu-

... a culturabaiana

foi decisivana produçãoindustrial...

4 Fórum Internacional de ONGs e Movi-mentos Sociais no âmbito do Fórum Glo-bal - ECO. 92, RJ, jun. 1992.

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50 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

midores em todas as áreas, da produ-ção eqüitativa à produção ecologica-mente sustentável. Da aplicabilidadedestes princípios depende a sustenta-bilidade entre os países e dentro dosmesmos. Investe-se nesta possibilida-de para reverter uma ordem econômi-ca, anacrônica, caracterizada pelaprodução e consumo que esgota e con-tamina os recursos naturais, patrimô-nio da humanidade. A diversidadecultural e de civilizações – os gruposétnicos, a mistura racial, cultural e abiodiversidade – é característicamarcante das Américas. Registra-se,porém, 500 anos em desenfreado pro-cesso de homogeneização e desapa-recimento de culturas. O resultado temsido o prejuízo do meio ambiente e daqualidade de vida, colocando em ris-co a existência da vida no planeta.

A luz vista no escuro túnel daqualidade de vida é a cultura, é a açãode preservar, resgatar e fomentar acultura. Se pensarmos em países comoo Brasil que não construíram um par-que industrial, que não investiram nodesenvolvimento social, econômico etecnológico, como poderiam agora,não mais que de repente, competir glo-balmente com a tecnologia de paísesdo primeiro mundo? Como poderi-am recuperar, com rapidez, o tempoperdido? Como recuperar gerações de

analfabetismo e os baixos índices deprofissionalização? A opção mais se-gura para estes países não seria odesenvolvimento a partir do seu po-tencial real? O Brasil destaca-se compossibilidades de imensurável potên-cia: sua CULTURA!

Mas, afinal, o que é mesmo que sechama cultura? Que fenômeno é esteem torno do qual se consolida todauma revolução social, turística, dedesenvolvimento, étnica e econômi-ca? Como dizer, com objetividade, oque é cultura? Conceituar CULTURAé tarefa difícil para estudiosos e téc-nicos, para quem administra e atépara quem faz CULTURA. Esta per-gunta surge inquietante nas entreli-nhas de números tão expressivos.

O que é cultura?

É difícil conceituar porque háuma grande diversidade de cultura naespécie humana. Quatro séc. a.C.,Confúcio inicia uma definição de cul-tura com esta afirmação: a naturezados homens é a mesma, os seus hábi-tos é que os mantêm separados.

Mas, o que é cultura? Nós vamosencontrar uma clareza, afirma Laraia5

no âmbito da antropologia, o homem,visivelmente um animal frágil, provi-do apenas de insignificante força físi-ca, dominou toda a natureza e setransformou no mais temível dos pre-dadores. O homem, sem asas, domi-nou os ares, sem guelras ou membra-nas próprias, conquistou os mares.Difere dos outros animais por ser oúnico que possui cultura.

Mas, o que é cultura? O homemtem a capacidade da comunicaçãooral e habilidade criativa para fabri-car instrumentos capazes de tornarmais eficiente o seu aparato biológi-co. A constatação dessas capacidadespermitem uma afirmação mais ampla:o homem é o único ser possuidor decultura (Laraia).

Houve tempo em que a compre-ensão de cultura esteve vinculada àsciências naturais, considerando-secultura um fenômeno natural, ou umaunidade psíquica da humanidade ou,

ainda, um determinismo geográficoque acreditava na ação mecânica dasforças naturais sobre a humanidadereceptiva. A continuidade da pesqui-sa provou que foram evidências er-radas.

A investigação histórica, como aantropológica, abriram caminhospara a diversidade cultural da huma-nidade, analisa Laraia (p.39-46):

• homem, como parte do reino ani-mal, participa do grande processoevolutivo em que muitas espécies su-cumbiram;

• sobreviveram as espécies rema-nescentes que foram capazes de supe-rar uma furiosa competição e supor-tar modificações climáticas radicais.

Então, a espécie humana sobre-viveu ! Venceu. Com o equipamentofísico, inclusive, muito pobre:

• incapaz de correr como um an-tílope, sem a força de um tigre, sem aacuidade visual da águia, sem as di-mensões físicas do elefante;

• o homem, ao contrário dessasespécies animais conta apenas comum instrumental orgânico extraordi-nário de adaptação. E, o mais curio-so, uma adaptação quase sem modifi-cação anatômica, a exemplo de al-guns répteis que perderam as escamase ganharam pernas em sucessivasgerações, para sobreviver e superar asdificuldades do solo ganharam loco-moção aérea.

Enquanto o homem é o único queobteve o mesmo resultado por outrocaminho, chegou ao meio de locomo-ção aérea por um caminho exterior aoseu corpo. O pássaro só conseguiuvoar ao evoluir fisicamente até conse-guir nascer com asas. Nós, homens, in-ventamos o aeroplano, o avião (p. 40).

Resumindo, isso acontece porqueo homem é herdeiro do processo cu-mulativo de conhecimento e experi-ência. O processo de mudança social,peculiar em toda sociedade, só ocorree se consolida em conseqüência dastransformações culturais operaciona-lizadas a partir da experiência incor-porada.

... 500 anosem desenfreado

processo dehomogeneização edesaparecimentode culturas tem

resultado emprejuízo do meio

ambiente e daqualidadede vida...”

5 Laraia, 1997.

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51RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

O que assegura ao homem suaexistência de vencedor é sua capaci-dade de ser solidário, socializado, oque o impede de “ transformar suasdescobertas em produto isolado de umgênio mas, no resultado do esforçoconjunto de toda comunidade”( p.46). Para conseguir esta proeza fan-tástica, construiu um patrimônio cul-tural.

O homem, socializado e solidá-rio, perpetua o modelo de sociabili-dade que garante a sua imortalidade,apesar da imutável precariedade davida, e construiu um patrimônio cul-tural da humanidade:

• “ comportamento decorrentedos seus padrões culturais;

• usa sua cultura como referên-cia e meio de adaptação em diferen-tes ambientes ecológicos;

• ao acumular experiências, pas-sou a depender de sua capacidade deaprendizagem mais que de sua forçagenética;

• é a capacidade de sua apren-dizagem artística ou profissional quedetermina o seu comportamento;

• preserva sua cultura como pro-cesso cumulativo da experiência his-tórica das gerações anteriores;

• a experiência de ser gente esti-mula a criatividade do indivíduo;

• é sua criatividade que garantea sobrevivência nas adversidades”(p. 50).

A partir da análise de Laraia eoutros antropólogos, é a experiênciahumana consolidada e incorporadana trajetória do existir. Um patrimônioda humanidade e uma lente de cap-

tação e registro de imagens, formas econteúdos. Se existem diferentes len-tes é porque diferentes são as formasde ver e conquistar o mundo. Isto édiversidade cultural!

TEM CULTURAREGIONAL

Os municípios de uma região, aodecidirem preservar, conservar, fo-mentar, produzir e difundir seus pro-dutos culturais é porque perceberamque sua importância é cada vez maisreconhecida como forma de cresci-mento. Toda mudança social é gesta-da nas cidades que têm em comum osmesmos problemas e possibilidades,isto é afinidades culturais. Quandosão bem administradas geram umproduto que tem sido bem sucedidono mercado moderno.

Esses produtos culturais, comsuas especificidades é que farão decada terra única e de sua gente únicano jeito de falar, produzir e viver suasrelações sociais e econômicas. Cultu-ra é, portanto, o saber fazer de umpovo absolutamente contextualizado,inserido e extraído das relações e desua socialização. Por exemplo, os ar-tistas de uma região apresentam es-petáculo de forma diferenciada deoutra região quando são comprome-tidos com suas raízes, seu povo, suastradições. É nesta especificidade quese resume a marca do sucesso.

As características dessa culturaúnica, das suas manifestações sóciocul-turais, é que exercerão força atrativasobre outras pessoas, gerando o fluxochamado turismo, fenômeno indiscutí-vel de desenvolvimento econômico.

Quando uma região toma comodesafio a questão do desenvolvimen-to do turismo, é bastante pertinente areflexão do que é cultura regional. Éimportante que esta reflexão seja ob-jetiva no sentido de identificar cami-nhos para o desenvolvimento econô-mico, tomando como fator básico acultura regional. Isto porque turismoe cultura guardam entre si uma rela-ção simbiótica. Cultura é representa-

ção simbólica de bens e valores queexercem poder e força ativadora dofluxo turístico, enquanto o turismo dásuporte e facilitação para difundir epromover os bens culturais. Eviden-cia-se, nesta simbiose, que o desen-volvimento humano passa, imprete-rivelmente, por sua cultura. A histó-ria de sua cultura é a referência de seuprocesso de civilização. O fluxo turís-tico depende da cultura da região, dasriquezas naturais, mas muito mais desua arte, de seus artistas, do calor dasrelações que se estabelecem, isto é cul-tura.

A cultura de um povo pode e deveser trabalhada, e difundida, no senti-do de promover desenvolvimento só-cio-econômico, o que implicará o co-nhecimento das áreas naturais, dasmanifestações socioculturais - culiná-ria, benzedeiras, rezadeiras; das artese seus artistas - músicos, artesões, en-fim, da consciência de sua ecologia.

Historicamente, o processo decrescimento econômico dos municípi-os traz em seu bojo o preço da exage-rada submissão ao modelo de socie-dade industrializada que, via de re-gra, deixam em segundo plano os va-lores culturais e seu próprio sentimen-to de humanidade. Neste sentido, valeinsistir no questionamento secular deMontaigne e Rousseau, séc. XVIII, aosmodernos antropólogos do século XX:em que modelo de sociabilidade ohomem garantiu sua felicidade? Quetipo de organização de sociedade erelações de produção tem assegura-do qualidade de vida? A expansãoeconômica, através do modelo de in-dustrialização tem contribuído paraque nível de qualidade de vida? É

O homem,socializado e

solidário, perpetuao modelo de

sociabilidade quegarante a sua

imortalidade...”

... em quemodelo de

sociabilidade ohomem

garantiu suafelicidade?”

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necessário preservar o direito de umpovo questionar qual é o seu própriodesejo de felicidade e desenvolvimen-to. É necessário assegurar os meios deinvestir nessa sua busca.

Pesquisas e mapeamentos cultu-rais, tem sido investimentos realiza-dos no mercado a exemplo do que járealizou os Estados de São Paulo eMinas Gerais em 1996 e 97 respecti-vamente. A Bahia também realizou oseu censo cultural através da Secreta-ria de Cultura e Turismo do Estado,de 1997 a 99, com o diferencial de sero único Estado a disponibilizar asinformações em banco de dados,acessados internacionalmente viaINTERNET, mapeando, além de todasas regiões, a capital-Salvador, que é omaior desafio em pesquisa nessa área.É esse conhecimento cultural dosmunicípios de uma região, sua pre-servação, produção e divulgação quevão ser fatores de crescimento, gera-dores de oportunidades e negócios equalidade de vida, além de assegu-rar desenvolvimento econômico.

No mundo atual, o conceito dedesenvolvimento sofre mudançascom muita freqüência porque desen-volvimento guarda uma noção detemporalidade. Não faz muito tempo,um município desenvolvido era o quetinha eletricidade, automóvel, telefo-ne, etc. Hoje, uma cidade pode ter ostrês recursos e ainda não ser conside-rada desenvolvida. Mudanças acele-radas e profundas têm marcado a ci-vilização moderna o que implica emprofunda mudança do contexto socio-cultural.

Os meios de comunicação demassa têm alterado a visão de mundoe o modus vivendi de cada gente e seusgrupos étnicos, estejam vivendo emmetrópole ou em bucólica cidade dointerior; seja um trabalhador indus-

trial, executivo ou agrícola, seja adul-to ou criança. Ninguém fica imune aesta mudança. Por exemplo, o progra-ma infantil que uma criança da zonasul paulista vê em luxuosa mansão éexatamente o mesmo que vê uma cri-ança da favela dos Alagados em Sal-vador. Diferente será o processo deassimilação de cada uma porque di-ferente é a sua cultura regional. Por-tanto, a cultura de cada um é que vaideterminar o uso de uma mesma in-formação. A cultura é que faz a dife-rença de uma mesma informação.

Não é necessário uma análisecomplexa para se perceber que mu-danças tão essenciais e profundas nacivilização humana irão refletir nosistema de relações humanas. Mudamas relações comunitárias, familiares,mudam as relações de produção e, éóbvio, sua economia.

TEMDESENVOLVIMENTOECONÔMICO NAPRODUÇÃO CULTURAL

Uma conjugação possível e mo-derna, uma equação que pode gerarmuitos números e garantir rentabili-dade econômica. Países como a Fran-ça e Inglaterra foram pioneiros na ar-ticulação de cultura e economia .

Se o Ministro da Cultura desper-tou o Brasil para estudo econômicoda cultura, ao afirmar, taxativo, cultu-ra é um bom negócio, criando nova es-tratégia de marketing cultural, naBahia a mensuração da cultura no PIBprovocou revolução no mercado deinvestimentos, atraindo investidoresno segmento cultural. O exemplo quesalta aos olhos do investidor é, priori-tariamente, a indústria do Carnaval.Pesquisas de mercado sinalizam paraa geração de U$ 100 milhões e cria-ção de 80 mil novos empregos em umsó evento de 5 a 6 dias.

A Bahia tem em suas regiões umpotencial muito rico e diversidade deprodutos culturais. Com base no diag-nóstico cultural, já armazenado embanco de dados, o Guia cultural daBahia6 produzido pela SCT através depesquisa do censo cultural, sinaliza

para a possibilidade de execução deuma política cultural ágil, desburo-cratizada, possibilitando uma visibi-lidade da população e de sua identi-dade através da participação demo-crática. Como a Bahia, outras regiõesempurrarão o Brasil para destacadolugar no ranking da globalização eco-nômica se desenvolver uma políticapública cultural que possibilite a ge-ração de emprego e renda. A promo-ção dos municípios através de produ-ção e venda de bens, serviços cultu-rais e uma infinidade de possibilida-des tem sido experimentada comoprodução, compra e organização deeventos, cobrança de ingressos, par-cerias com iniciativas públicas e pri-vadas de instrumentos de consumo eapoio à cultura. A revitalização doscentros urbanos tem casos muito bemsucedidos, por exemplo, cidades pio-neiras como São Luis de Maranhão,em 1976, e muitos municípios do Es-tado de São Paulo, São Sebastião eSantos, em 1976, seguido de outrosprojetos como o de Minas Gerais eRio de Janeiro- 1984, além de Belém,Curitiba e Florianópolis. Recentemen-te tem sido destaque nacional o proje-to de Salvador-Bahia com a restaura-ção e revitalização do Pelourinho, emvárias etapas desde 1992, agora emfase de conclusão. Integrando-se aoPatrimônio Cultural da Humanidade,o Pelourinho é um composto de vári-os espaços para manifestações de to-das linguagens, reunindo casarõescoloniais dos sec. XVIII e XIX, preser-vando esculturas, fontes antigas, síti-

Os meiosde comunicação

de massa têmalterado a visão

de mundo...”

... o Pelourinhoé um composto de

vários espaços paramanifestações

de todaslinguagens...

6 Secretaria da Cultura e Turismo do Es-tado, 1997-1999.

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os arqueológicos e toda linguagemhistórica através dos diferentes mu-seus. A preservação do passado empermanente dialética com o presentecultural da Bahia: espaços para a arteemergente e consagrada com o Thea-tro XVIII, Cinema de Arte Glauber Ro-cha, Galerias, Cafés e Ateliers, Ofici-nas, livrarias de acervo diversificado,ainda com o suporte de instituiçõesque desenvolvem ações culturais comoUNESCO, Instituto Hospitalidade/Odebrecht e FUNARTE, entre outras.

O Brasil segue apenas o exemplode outros países bem sucedidos quedescobriram em sua própria culturaum meio de geração de emprego e ren-da, inclusive com participação da po-pulação e diversos setores interessa-dos a exemplo da Itália – Bolonha1960, Espanha - Barcelona, França-Paris, Inglaterra- Londres, EUA -Baltimore, onde a cultura foi fator de-cisivo no fomento ao turismo e do lazer,diversificando a atividade econômica.Em todas estas experiências, a culturatem sido um instrumento de resgate daidentidade, do patrimônio da huma-nidade, histórico, artístico e arquite-tônico, bem como importante fonte ge-radora desenvolvimento econômico.Estas iniciativas têm sido exemplo decomo a valorização dos marcos sim-bólicos, o incremento e uso dos espa-ços de lazer, o incentivo à instalaçãode população e expansão residencialimplicam o desenvolvimento de dife-rentes setores da economia.

Nós, povos civilizados, não pode-mos mais cometer o engano de disso-ciar expansão econômica da qualida-de de vida e preservação cultural.

Às vésperas de um novo milênio,é imperativo pensarmos na trajetóriafutura do nosso desenvolvimento:

quais os caminhos e destinos que de-sejamos? É preciso decidir, agora, onosso destino.

No ano de 1999, a TV Bahia con-vidou Oscar Motomura7 para pensarum plano estratégico de desenvolvi-mento da cultura baiana cujo desafioé lançar a Bahia como o maior pólocultural do Brasil com dimensão in-ternacional. Neste trabalho, Motomu-ra cita entrevista de Domenico deMasi, sociólogo italiano que discute aquestão da cultura mundial. Afirmaser designer o marketing de seu país.A identidade cultural da Itália, expli-ca, não vem de suas marcas de sapa-tos, ou óculos, ou roupas das maisfamosas e sim de designer. É a pro-dução de designer que dá à Itália umaidentidade cultural em todo o mun-do. Um repórter brasileiro perguntou:e no Brasil, o que é capaz de projetarsua imagem em todo o mundo? Apósminutos de reflexão, disse enfático:felicidade. É esta a grande força ca-paz de projetar o Brasil no mundo.Completando: convivi com pessoas devários países, o Japão de ontem noauge de sua riqueza galgando a posi-ção de maior potência econômica domundo e não se via alegria nos olhosdo povo japonês. No Brasil, em meioà fome e todas as dificuldades quesabemos, ao se focar o rosto de umbrasileiro projeta-se o brilho nosolhos, a felicidade!

Urge pensar uma política concre-ta de desenvolvimento cultural paraque o desejo de desenvolvimento seconfigure no Brasil, sem excluir a feli-cidade dos brasileiros como argumen-ta de forma incisiva Milton Santos8:

“a noção de desenvolvimento com a qualse trabalha hoje é puramente ideológica,

não tem fundamento na busca do bemestar. Ela não nos diz como vai ser essebem estar, não nos diz quanto tempovamos esperar por isso, não nos indicaquais são os vetores que vão ser postosem ação para chegarmos a isso. Acenamde maneira vaga com a retomada do em-prego e do crescimento, mas não dizemmuito mais. E toda essa formidável pro-dução que existe hoje no Brasil e queimpede que o país se torne um vulcãoainda mais explosivo do que já é, tudoisso não é contabilizado como economia.”

BIBLIOGRAFIABAHIA. Assembléia Legislativa. Superin-

tendência de Apoio Parlamentar. Divi-são de Pesquisa. Bahia de todos os fa-tos: cenas da vida republicana - 1889/1991 . 2a. ed. Salvador: AssembléiaLegislativa, 1997.

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_________. Guia cultural da Bahia – ma-peamento cultural da Bahia, 16 vols.1997 – 1999.

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SANTOS, Milton. Entrevista de José CorrêaLeite, fev/mar/abr p. 32 – 39, 1999.

SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de his-tória da cultura brasileira. Rio de Ja-neiro: Civilização Brasileira, 1970.

7 TV BAHIA - Vídeo, Projeto Cidadão, 1999.8 Santos, 1999.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EMDESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANOCURSOS DE EXTENSÃO � 2º SEMESTRE 2001

1. O Pensamento econômico e social de Karl Marx � 2. Max Weber � Economia e sociedade3. Capitalismo, socialismo e democracia: Schumpeter e a destruição criativa4. A civilização material no pensamento de Fernand Braudel

Informações e Inscrições: (71) 340-3628 ou e-mail: [email protected]

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MARCOS TEÓRICOSPARA A REFLEXÃO SOBRE ASDESIGUALDADES REGIONAIS

� UMA BREVE REVISÃO DA LITERATURA

Rossine CruzDoutor em Economia pela UNICAMP e Professor do Programa de

Pós-Graduação em Planejamento Regional e Urbano da UNIFACS.

O interesse crescente sobreo tema das desigualdades regionaisvem estimulando o surgimento denovos campos de pesquisa, envolven-do tanto a Economia quanto outroscampos do conhecimento. Mas o ar-senal teórico de que dispomos na atu-alidade apresenta-se ainda insufici-ente, malgrado toda a reflexão regis-trada ao longo dos últimos cinqüentaanos, seja como resultado das políti-cas estruturantes adotadas pelos Es-tados nacionais, seja nos intensosdebates acadêmicos que a questão re-gional e urbana tem suscitado. Noâmbito da Teoria Econômica, a temá-tica já constava na agenda de preocu-pações dos clássicos, mas só seria con-siderada como tal a partir da décadade 50 deste século, com o surgimentode livros-textos e com a criação de dis-ciplinas regulares em currículos uni-versitários. Do mesmo modo, a Geo-grafia, a História e a Sociologia pas-saram a teorizar os espaços regionaise urbanos, fazendo surgir o novo cam-po das “Regional Sciences” ou “Ur-ban Sciences”.

Este texto apresenta os principaismarcos teóricos que contribuírampara a reflexão sobre as desigualda-des regionais, numa revisão da litera-tura pertinente. Sem querer discutiros detalhes - o que tornaria a leituraenfadonha -, mostro os possíveis es-

pectros e os limites, assumindo posi-cionamento crítico quanto a aspectosespecíficos. Na primeira seção, apre-sento as principais interpretaçõesmarxistas sobre as causas das desi-gualdades sociais explicitadas nosespaços urbanos e regionais. Em se-guida, discuto aspectos dos modelosde localização, das teorias dos pólosde crescimento e da base de exporta-ção, todas oriundas de uma mesmainspiração “mainstream”, apesar deroupagens schumpeterianas ou key-nesianas. Mostro a insuficiência desuas abordagens, principalmente noque tange aos seus pressupostos. Aseguir, faço uma apresentação sucin-ta da interpretação cepalina sobre arelação Centro versus Periferia, pas-sando pela discussão sobre as teoriasda dependência e do subdesenvolvi-mento. Na última seção, evidencio queas abordagens surgidas nos últimosquinze anos, apesar do avanço teóri-co e do estímulo ao debate, permane-cem limitadas ou equivocadas. E, fi-nalizando a seção, mostro que o Ins-trumental teórico disponível é insufi-ciente para proporcionar explicações“definitivas” acerca dos desequi-líbrios inter-regionais e as desigual-dades sociais, como supõem os eco-nomistas da tradição ortodoxa.

A interpretação marxista

Na teoria econômica, encontram-se referências esparsas sobre a ques-tão espacial desde os fisiocratas atéos clássicos, Smith, Ricardo e Marx.As implicações teóricas sobre o desen-volvimento econômico e sua manifes-tação espacial apresentavam-se comosecundárias nas análises clássicas. Aabstração do processo econômico,com o uso de categorias analíticas decaráter universal, levava a conclusõesaltamente abstratas, tanto no que serefere à organização da produçãoquanto do ponto de vista da distribui-ção. Derivam daí os primeiros mode-los de crescimento econômico, queintegram estudos mais amplos acer-ca da problemática do desenvolvi-mento, do funcionamento e do pro-cesso de transformação estrutural daseconomias nacionais.

De Ricardo derivou-se um mode-lo de crescimento econômico que ex-plica como o funcionamento do siste-ma econômico tende ao plano estaci-onário. Em Marx, a ênfase foi coloca-da na acumulação de capital, princi-palmente no modelo obtido a partirdo esquema de reprodução ampliada.Posteriormente, os esquemas neoclás-sicos passaram a destacar a condiçãode equilíbrio e a racionalidade micro-econômica dos agentes, orientando a

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ação econômica e política dos Esta-dos nacionais.

O legado marxiano para a análi-se regional e urbana foi bastante limi-tado: apenas alguns comentários deMarx em Formações econômicas pré-ca-pitalistas acerca do processo de urba-nização do campo como resultante doprocesso de acumulação capitalista;dois textos de Engels, A condição daclasse trabalhadora na Inglaterra e A ques-tão da habitação; e um trabalho conjun-to - A ideologia alemã (“o antagonismoentre a cidade e o campo começa coma transição da barbárie para a civili-zação”). Em que pese o crescimentoda base urbana dos movimentos re-volucionários e contestatórios, a par-tir de meados do Século XIX, houvepouca elaboração marxista de análi-ses dos processos de urbanização naEuropa.

Nas últimas décadas do séculoXIX, alguns autores passaram a estu-dar mais os “esboços” de Marx eEngels. O avanço do capitalismo in-dustrial em direção ao campo molda-va os processos de produção no cam-po de acordo com suas necessidadesde reprodução, provocando transfor-mações radicais tanto no campo quan-to nas cidades européias. Movimen-tos migratórios expressivos, perda depropriedade e proletarização eramsaldos que restavam para as popula-ções rurais. Nos anos 90, a questãoagrária seria central nas discussõespolíticas. Num contexto de intensosdebates por parte de sindicalistas eintelectuais socialistas, são editadosdois trabalhos sobre o tema, de gran-de repercussão: o pioneiro A questãoagrária, de Kautsky; e o de Lênin, Odesenvolvimento do capitalismo naRússia.

O trabalho de Lênin, como regis-tra seu subtítulo, analisa o processode formação de um mercado internopara o avanço do capital industrialna Rússia. Fruto de uma exaustivapesquisa que levava em conta o espa-ço próprio do capital na totalidadesócio-econômica russa, esta obra apre-ende toda a dinâmica sócio-econô-mica e identifica as principais tendên-cias históricas do movimento do ca-

pital naquele país, mostrando comoos espaços rural e urbano são trans-formados, como são destruídas ve-lhas barreiras medievais pelo capita-lismo e como isto provoca movimen-tos migratórios e modifica as relaçõesde trabalho, a propriedade da terra ea divisão social do trabalho, num pe-ríodo em que o capitalismo buscavaconsolidar-se como um modo de pro-dução dominante naquele país, prin-cipalmente a partir de 1860.

Outra grande contribuição dopensamento marxista para a interpre-tação das desigualdades regionaispode ser creditada à teoria do desen-volvimento desigual e combinado, deTrotsky, segundo a qual um país nãopode superar seu atraso passandopelas mesmas etapas já atravessadaspelos países adiantados. Os paísesda periferia capitalista, ao “conden-sarem” ou “saltarem” etapas, combi-nam aspectos de atraso com caracte-rísticas de estágios superiores de de-senvolvimento. Esse desenvolvimen-to desigual e combinado seria decor-rente da forma concreta de inserçãocapitalista e da dinâmica por ele em-preendida no território nacional.

Ao final da II Guerra, a agricultu-ra passaria cada vez mais a se trans-formar em empresa industrializada,pertencente a grandes organizações,produtoras de alimentos em grandes

quantidades, voltadas não só para osmercados locais mas também para ointernacional. Com isto, diminuía ouse eliminava a agricultura familiar emodificavam-se os requisitos urba-nos: alteravam-se as paisagens rurale urbana antes dedicadas à vida ru-ral familiar. Transformaram-se osprocessos de produção e famílias sedeslocaram para outras atividades oupara engrossar fileiras no “exércitoindustrial de reserva” para a indús-tria urbana e rural.

É no interesse renovado pelasquestões urbanas e regionais do pós-guerra que surgem trabalhos de abor-dagem crítica na perspectiva marxis-ta. No campo da Geografia e da Soci-ologia Urbana, os analistas ressaltamaspectos da predominância das rela-ções capitalistas, seja sobre o conflitode classes e suas conseqüências pro-cessuais, seja em relação à lógica deacumulação do capital.

Levados pelas transformaçõesurbanas dos anos 50 e 60, os marxis-tas buscaram entender as relaçõesentre a produção e a reproduçãosocial, que tinham na cidade seu es-paço apropriado, locus da produção erealização capitalista, e ambiente dereprodução da força de trabalho. Ma-nuel Castells, em A questão urbana(1976) e outros escritos, faria uma crí-tica à sociologia urbana convencional,apresentando um novo conceito de“urbano”, através da teoria do con-sumo coletivo, da política urbana, dosmovimentos sociais e da concepçãomarxista de Estado. O debate sobre ateoria do espaço e o papel do estadocapitalista, suscitado por esta obra,fez surgirem diversas interpretaçõese uma profusão de trabalhos sobre aquestão urbana e regional que nãocabe aqui serem reproduzidos1 .

A crítica marxista à EconomiaPolítica, ao mostrar que as desigual-dades sociais, explicitadas nos espa-ços urbanos e regionais, são provoca-das pela reprodução capitalista, sus-

... um paísnão pode superar

seu atrasopassando pelasmesmas etapasjá atravessadas

pelos paísesadiantados...”

1 Para maiores detalhes acerca do debate sobre a teoria do espaço, ver GOTTIDIENER(1993: 115-94). Ver também CASTELLS (1976), La cuestion urbana, México, Siglo XXI, 2ªed.; e CASTELLS (1975), Problemas de investigação em sociologia urbana, Lisboa,Editorial Presença.

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citava mudanças radicais no sistemapolítico e econômico vigente, inspi-rando o ideal revolucionário que con-cretamente havia culminado na Re-volução Russa e mais tarde na expan-são do Estado Soviético.

“Ortodoxias” teóricas

Aos economistas e teóricos bur-gueses restava a defesa dos princípi-os liberais da teoria smithiana ericardiana. Os pressupostos clássicosda livre concorrência, livre câmbio esoberania do consumidor passarama orientar a maioria das análisesinferidas de observações históricas. Atradição marginalista neoclássica de-senvolveria modelos explicativos,com funções contínuas baseadas emfatores de produção dados, em geralinaplicáveis à dimensão espacial con-creta. As teorias de localização de-senvolvidas no âmbito dessa tradiçãoconseguiram se estabelecer através deformalizações “elegantes”, abstrain-do descontinuidades da dinâmicaeconômica e social quando tratavamdas diferenças inter-regionais ouinter-setoriais.

No conjunto das teorias da loca-lização, o trabalho pioneiro que ten-tou sistematizar a análise espacial foide autoria de Johann-Heinrich VonThünen, escrito em 18262 - que se tor-nou referência quase obrigatória nosprimeiros livros-textos de economiaregional e urbana. Com os seus“anéis” ou “círculos” concêntricos,preocupava-se com a formação dospreços agrícolas, a renda dos agricul-tores e a influência da distância dascidades (centros de consumo), redu-zindo o rendimento do produtor. Seusresultados, todavia, estavam limita-dos pelos pressupostos de homoge-neidade da fertilidade do solo, dasoportunidades de acesso à cidade,dos preços, produtos e “fatores”, alémda presença de acidentes geográficose do sistema de transporte.

Aos escritos de Thünen segui-ram-se os de Weber, Losh e Isard, en-tre outros3 . A tradição marginalistaseria mantida com Weber, que anali-

saria a influência dos custos de trans-portes sobre a localização de firmas(industriais) individuais, introduzin-do a noção de “forças aglomerativas”e “triângulos de localização”. Paraele, a localização da firma industrialdepende do tripé: localização das fon-tes de matérias-primas (que são da-das e conhecidas); posição e tamanhodos centros de consumo; e oferta demão-de-obra (considerada ilimitada auma dada taxa de salário). Em suaanálise sobre a localização com o cus-to mínimo de transporte, acrescenta oconceito de “isodapana”, que consis-te de um “conjunto de todos os pon-tos que têm igual acréscimo de custode transporte em relação à localiza-ção em que esse custo é mínimo”(AZZONI, 1982:79).

Com a difusão das teorias margi-nalistas da localização, formou-seuma certa “ortodoxia”, a partir dosanos 40, que partia principalmentedos escritos de Lösch (1940) e Chris-taller4 . A teoria dos lugares centraisdesenvolvida por este seria revisitadapor Lõsch5 com uma roupagem de“teoria geral da localização”. Emambos, o espaço local ou regional éhomogeneizado, sujeito à abordagemmicroeconômica da maximização delucros e diminuição de custos. Emseus modelos, a produção urbana debens/serviços (que corresponde auma escala de produção que alcançaum ótimo representado por uma de-manda dividida num espaço homo-

gêneo) tende a se organizar em redescentrais concêntricas recobrindo oespaço. O conceito de centralidadeutilizado presume o centro urbanocomo o local de concentração dasoportunidades de emprego e das de-cisões econômicas. As decisões delocalização são tomadas mediante aopção entre o preço da terra (mais altoquanto mais perto do centro urbano)e os custos de transporte (mais altosquanto mais afastados).

A tradição teórica dos lugares cen-trais evoluiu para modelos policên-tricos que supõem uma rede de cida-des. A economia regional passou acompreender uma matriz funcionalde redes de comércio, de transporte ede administração que sustenta umconjunto de cidades. Nesta rede, ascidades maiores cumprem várias fun-ções, oferecendo uma base regularpara os outros lugares urbanos loca-lizados na região circunvizinha. As-

O conceitode centralidade

presume o centrourbano como o

local deconcentração dasoportunidades de

emprego...”

2 THÜNEN, J.H.Von. (1926) The isolatedstate. New York: Pergamon Press, 1966.Um resumo da formalização do modelode Von Thünen pode ser visto em AZZONI(1982:70-3).

3 As referências originais são: a) WEBER,A. (1909) Theory of location of indus-tries, 2ª ed. Chicago: University of Chi-cago Press, 1957; b) LÕSCH, A. (1940)The economics of location. New Haven:Yale University Press, 1954; c) ISARD,W. (1956) Location and space economy.A general theory relating to industriallocation, market areas, land use tradeand urban structure. Cambridge: MITPress. Outros autores que contribuírampara a Teoria da Localização poderiamser aqui apresentados, correndo-se orisco de alongar esta seção. Assim, re-meto o leitor interessado sobre o temapara as análises e formalizações resu-midas desses e de outros autores conti-das em RICHARDSON (1969) e AZZONI(1982). É ocioso discutir que, em quasetodos os modelos, em geral são manti-dos os pressupostos da concorrênciaperfeita, funções de produção com coe-ficientes técnicos fixos, racionalidade doconsumidor ou mesmo simetria de opor-tunidades de informação nos mercadosconsiderados.

4 CHRISTALLER, W. (1933) Central placein Southern Germany. Englewood Cliffs:N.J. Prentice-Hall, 1966.

5 LÕSCH, A. (1954) The economics oflocation. New Haven: Yale UniversityPress, 1954.

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sim, existiriam centros e sub-centroshierarquicamente relacionados. Nes-te contexto, o conjunto de atividadesde um lugar central depende de suaposição na rede urbana hierarquizadae, com isso, pode-se justificar o maiorou menor sucesso de uma cidade sobos auspícios do jogo da livre concor-rência! Na verdade, a idéia descritivapredominante nessa teoria é a de queas cidades centrais constituem nódu-los de uma grande rede de cidades euma “mão invisível” otimizadora farácom que centros mais importantes se-jam hierarquicamente superiores.

Este arcabouço teórico não con-templava a possibilidade de uma de-terminada cidade ofertar bens ou ser-viços considerados essenciais a par-tir da intervenção ou organização doEstado, fora do âmbito da concorrên-cia de mercado. Ironicamente, toda-via, seus modelos inspiraram estudose intervenções territoriais mais funcio-nalistas. Explicavam que certas cida-des eram relativamente melhor suce-didas por causa de seus ambienteseconômicos e culturais mais ativos ouporque seus cidadãos adotavam ati-tudes mais cooperativas ou “concer-tadas” para a solução de problemascomuns. A teoria da hierarquia doslugares centrais não considera queregiões e nações são espaços hetero-gêneos que possuem composição so-cial e riquezas diferentes; que os bair-ros, as cidades e os países não sãosemelhantes: são redes urbanas deterritórios heterogêneos. Seguindoseus pressupostos, pode-se justificarsituações particulares e estabelecerprevisões de que todas as cidadespoderão assim prosperar: nesse con-

texto, a hierarquia espacial é umaresultante e não uma causa.

A “ortodoxia” da hierarquia decidades, apesar de suas inconsistên-cias, tem permanecido e até predomi-nado em alguns ramos da geografia eda economia urbana e regional. Estu-dos e pesquisas interdisciplinares,com o apoio de economistas, historia-dores, sociólogos e geógrafos, enco-mendados por órgãos de planejamen-to, têm sido produzidos até os diasatuais. As análises descritivas de es-truturas regionais e urbanas têm ser-vido para o exercício de tentativas decompatibilidades teóricas. Em geral,são feitas categorizações sem análise,estabelecendo importâncias e atribu-tos (fetiches) espaciais, escondendo aconstatação principal de que o siste-ma social e econômico, espacialmen-te concentrado numa cidade, regiãoou país, é produto da interação de clas-ses e grupos sociais, do poder institu-cional concentrado e não da relaçãoentre “lugares”.

Os esforços de recuperação daseconomias combalidas após duasguerras mundiais aumentaram ateorização acerca das desigualdadesespaciais em busca de explicaçõesplausíveis acerca do fenômeno dosubdesenvolvimento e da pobrezadas nações. A tomada de consciênciado atraso econômico da maioria dahumanidade aumentou o debate po-lítico catalisado pela ONU e pelabipolaridade ideológica representadapelo confronto entre o mundo capita-lista e os novos países socialistas. Apartir de então, a abordagem regionalganhou novos contornos com a difu-são de novas teorias do desenvolvi-mento econômico de inspiração neo-clássica, schumpeteriana ou key-nesiana.

Uma teoria bastante difundida noimediato pós-guerra, conseguindomanter uma certa “ortodoxia” nosanos 60, foi a “teoria” das etapas dodesenvolvimento, de Rostow (1963),baseada na hipótese de que cada re-

gião ou país deveria necessariamen-te passar por etapas históricas seme-lhantes (Colin Clark, 1951): a cidadepré-industrial, industrial e pós-indus-trial. Nem todos os países consegui-am “decolar” no mesmo momento eritmo e isto implicava estágios dife-rentes de desenvolvimento e subde-senvolvimento entre os países. Paraproporcionar o desenvolvimento deregiões relativamente subdesenvolvi-das ou “em desenvolvimento”, os pro-dutos modernos, produzidos das áre-as mais desenvolvidas, deveriam segeneralizar. Sua produção e comer-cialização se deslocaria para os paí-ses menos desenvolvidos, estimulan-do seu crescimento (obedecendo à te-oria do ciclo do produto de Vernon,1966).

Alcançar a era pós-industrial,terciária, seria uma questão de tem-po, à medida que fossem adotadasreformas sociais e econômicas estru-turais. Com esta teoria, poder-se-iaexplicar o atraso de algumas regiõessimplesmente pela existência de “vi-cissitudes” do clima, das instituiçõespolíticas ou sociais ou de ideologiasconservadoras. Para se desenvolve-rem, os países atrasados deveriam tri-lhar os caminhos já percorridos pelospaíses adiantados importando o know-how daqueles, que proporcionariamas bases para as suas “decolagens”rumo ao desenvolvimento.

Uma outra ortodoxia foi alcan-çada por Françols Perroux6 , que,numa roupagem teórica schumpete-riana, chamava a atenção para o efei-to mais complexo da dominação, re-lacionando o processo social com oespaço físico. Para ele, o crescimentoeconômico é localizado e não disse-minado no espaço econômico regio-nal ou nacional. Existem pólos decrescimento que transmitem seus efei-tos de forma desequilibrada e difusapara o restante da economia. As“macrodecisões”, oriundas do Esta-do ou de qualquer unidade dominante,corroboram o pensamento de que as

... regiões enações são espaçosheterogêneos que

possuemcomposição social e

riquezasdiferentes...”

6 PERROUX, F. (1955) “0 conceito de Pólo de Crescimento” (Título original: “Note sur Ianotion de Pôlede Croissance”). In: SCHWARTZMAN, J. (1977:145-56).

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formas de dominação social, com orecurso da inovação tecnológica, sãoatributos essenciais das atividadesempresariais. Assim, o surgimento denovas indústrias cria nova atmosferafavorável ao crescimento e ao progres-so econômico, trazendo inovações, esuscita imitações, intensificando equalificando a concorrência, provo-cando mudanças jurídicas e políticasnas instituições. As noções de equilí-brio estático e circuito estacionário,utilizadas pela teoria econômica con-vencional, eram insuficientes, na vi-são de Perroux, para explicar o cres-cimento real de uma economia, já quetais modelos consideravam “a econo-mia de um período como réplica exa-ta do período anterior” onde os pro-dutos aumentariam numa dada pro-porção, desconsiderando-se as modi-ficações estruturais e tecnológicas e osurgimento de novas indústrias, de-corrente de inovações radicais.

O “complexo industrial” de Per-roux está baseado na adoção teóricade um regime não-concorrencial e nadefesa da aglomeração territorial, coma introdução do conceito de indústriamotriz e indústria movida. A indús-tria motriz tem a capacidade de indu-zir o aumento nas vendas (e comprasde matérias-primas e serviços) emoutra(s) indústria(s) - a indústria mo-vida - quando aumenta suas própri-as vendas (e suas compras de servi-ços produtivos). Com estes elemen-tos, o crescimento da economia naci-onal, para além da organização polí-tica e da combinação de fatores deprodução num determinado espaço epopulação, resulta da combinaçãodos conjuntos ativos (das indústriasmotrizes, dos pólos de indústrias e deatividades geograficamente aglome-radas) com os conjuntos relativamen-te passivos (de indústrias movidas eregiões dependentes dos pólos geo-graficamente aglomerados), onde osprimeiros conjuntos são responsáveispela transmissão aos últimos dos fe-nômenos de crescimento. Com estaconstrução, a concepção de cresci-mento de Perroux gira em torno doconceito de pólo de crescimento, istoé, pela irradiação, de forma assimé-

trica e irreversível, dos seus efeitospositivos.

A difusão dessa teoria nos meiosacadêmicos e políticos foi a base paraa adoção de políticas de desenvolvi-mento industrial e regional, tanto nospaíses desenvolvidos quanto nos pe-riféricos. Todavia seus resultados,como atestam vários estudos, foramdecepcionantes do ponto de vistaempírico. Um corolário imediato doconceito de pólo de crescimento é ainevitável concentração regional dasatividades econômicas. A adoção depolíticas industriais concentradoras,principalmente em países de indus-trialização retardatária, não logrouobter os resultados esperados, já queas unidades motrizes não consegui-am difundir inovações tecnológicas,pois, como no caso do Brasil, os cen-tros de decisão de P&D se localiza-vam ou fora do país ou na sua regiãomais desenvolvida. A generalidade dateoria de Perroux é tão grande quepoderia englobar todos os tipos demercados, de empresas, de famílias ede estados nos mercados nacionais einternacionais, implicando impossi-bilidade de determinação dos setores-chave ou de quantificação de um ta-manho ótimo do pólo7 .

A teoria da base de exportação8 ,ao refutar a teoria dos estágios de de-senvolvimento, afirma que o cresci-mento regional depende do cresci-mento de suas atividades de exporta-ção, atribuindo papel fundamental àdemanda externa. A inserção regio-nal no mercado externo implica pro-cessos de crescimento duradouros eauto-sustentados, com capacidade de

difusão dos resultados econômicospara outras regiões e setores da eco-nomia considerada, limitada pelascaracterísticas tecnológicas dos pro-dutos exportados. A expansão dosmercados depende da capacidadecompetitiva da economia, que depen-de dos seus recursos humanos, doconhecimento tecnológico, facilida-des de transporte etc. Trata-se de umateoria decorrente das formulações so-bre o multiplicador keynesiano do co-mércio exterior adaptada à análise delongo prazo.

A visão simplificada de certas ca-racterísticas do desenvolvimento his-tórico regional, dicotomizando a re-gião e o resto do mundo, obscurece asinter-relações regionais e setoriaisendógenas. Estes limites agudizam-se à medida que as economias anali-sadas tornam-se mais complexas, par-ticularmente no momento em que ocrescimento de certas regiões implicaem redução da participação das ex-portações no conjunto da atividadeeconômica geral.

Surgem novos modelos -interpretações alternativas

Um contraponto às teorias da basede exportação e dos pólos de cresci-mento foi apresentado por Hirsch-man9 , que entende ser a evolução dasdesigualdades regionais decorrenteda força de atuação ou dos diferentesimpactos que os efeitos de fluência ede polarização das regiões mais de-senvolvidas exercem sobre as menosdesenvolvidas. Com isso, contrapõe-

7 Para uma crítica mais detalhada do conceito de Perroux, ver BLAUG, Mark. (s.d.) “Ateoria da dominação econômica de Perroux: o caso da roupa do rei” (Título original: “ACase of emperor’s clothes: Perroux’s theory of economic domination”). In: SCHWARTZ-MAN, J. (1977:195-207).

8 Para maiores detalhes, ver os dois seguintes artigos publicados na coletânea organizadapor SCHWARTZMAN (1977): NORTH, Douglas C. (1955: 291-313) “Teoria da localizaçãoe crescimento econômico regional” (Título original: Location theory na regional economicgrowth); e NORTH, D.C. (1959: 333-43) “A agricultura no crescimento econômico regi-onal” (Título original: Agriculture in regional economic growth). Ver também TIEBOUT,Charles M. (1956: 315-23) As exportações e o crescimento econômico regional (TítuloOriginal: Exports and regional economic growth) e as réplica e tréplica às págs. 324-32.

9 HIRSCHMAN, Albert O. (1958) The strategy of economic development, New Haven: YaleUniversity Press. Ver também HIRSHMAN, A. O. (1983) “Confissões de um dissidente: aestratégia do desenvolvimento reconsiderada”, Rio de Janeiro, Pesquisa e PlanejamentoEconômico, 13 (1): abril.

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se ao pensamento neoclássico, quedefendia a hipótese de crescimentoequilibrado das regiões, dada a pro-vável existência de livre movimenta-ção dos fatores produtivos entre asmesmas. Para ele, a convergência dosníveis regionais de bem-estar não éautomática nem tampouco resultante“natural” do seu processo de desen-volvimento econômico.

Sua teoria da transmissão inter-regional e internacional do cresci-mento econômico baseia-se no con-ceito de interdependência setorial,oriundo dos esquemas teóricos deinput-output, isto é, no poder de enca-deamento (linkages) das produçõessetoriais e na sua relação com o de-senvolvimento econômico de um paísou região. Os backward effects represen-tam a capacidade de um setor ou in-dústria induzir um aumento da ofer-ta de produtos por ela insumidos. Jáos linkages para frente (forward effects)correspondem à capacidade de umaindústria ou setor induzir outros se-tores a usar em seu produto comoinsumo. Neste contexto, considerandoque as desigualdades regionais nãosão passageiras ou aleatórias, justifi-ca-se a necessidade da intervençãogovernamental, através da utilizaçãode instrumentos que favoreçam atransmissão dos efeitos de fluênciaem detrimento dos de polarização,desobstruindo-se os gargalos da pro-dução e possibilitando-se um cresci-mento adequado às necessidades dapopulação. De acordo com Hirschman(1958:42), “a alocação regional dosinvestimentos públicos é a maneiramais óbvia pela qual a política econô-mica influencia as taxas de crescimen-to das diversas regiões de um país”.

A insuficiência da análise e daprática econômica liberal já havia sidodemonstrada, não só pela emergên-cia da crise de 1929 mas também pe-las teorias de Keynes, Kalecki eSchumpeter, baseadas na análise dosciclos econômicos. De acordo comKeynes, o Estado deveria atuar compolíticas anticíclicas, em setores comotributação, oferta de dinheiro, expan-são e contração do crédito, controleda taxa de juros, realização de obras

públicas e expansão/redução do dé-ficit orçamentário, para garantir umnível mínimo de desemprego involun-tário, bem como um nível adequadode crescimento econômico. Assim, oEstado exerceria maior poder discri-cionário na economia, regulando ati-vidades privadas, indicando oportu-nidades, estabelecendo metas, puni-ções ou premiações, além de agir di-retamente como agente da produçãoonde o capital fosse insuficiente.

A aceitação que passou a ter a te-oria Keynesiana, principalmente de-pois de “adaptada” pela sínteseneoclássica, levou alguns autores aelaborarem modelos de desenvolvi-mento ou crescimento econômico como objetivo de contribuir para a com-preensão do funcionamento e proces-so de transformação estrutural daseconomias capitalistas. Em geral, osmodelos macroeconômicos de cresci-mento partem de uma função (homo-gênea de primeiro grau) de produçãoagregada na qual o produto real (Y) éuma função crescente, dependente doestoque de capital (K), da força de tra-balho (L) e do tempo (t). É importantenotar que os recursos naturais, sãoconsiderados em K. Isto é,

Y = f(K, L.t) = f(λK,λL,t) = λf(K,L,t),para todo λ > 0

O conhecido modelo de Harrod-Domar, que se utiliza destes princípi-os, baseia-se na existência de dois se-tores, um moderno e outro de subsis-tência. Trata-se de uma adaptação das

contribuições isoladas de Domar e deHarrod para a teoria do crescimentoeconômico, com base na teoria dos ci-clos, partindo da abordagem do equi-líbrio dinâmico de pleno emprego emostrando a tendência das economias“maduras” à estagnação. Harrod10

admitia que tanto a poupança quan-to o investimento ex-ante são propor-cionais ao crescimento do produto.Isto implica que, para o equilíbrio en-tre poupança e investimento, não hajasuperprodução ou subprodução. JáDomar11 preocupava-se com a deter-minação de uma taxa de crescimentodo produto e do investimento para amanutenção do pleno emprego. Omodelo Harrod-Domar mostra que oproduto nacional é limitado exclusi-vamente pelo estoque de capital, tra-tando de determinar as trajetórias doinvestimento e do produto dada a pro-pensão marginal a poupar. No casode economias subdesenvolvidas, omodelo admite que o problema eco-nômico seja o de criar oferta e que ademanda agregada se ajusta de modoa absorver a capacidade produtiva.

Outros modelos de crescimentomacroeconômico, em geral de inspi-ração neoclássica, foram aperfeiçoan-do formalizações ao longo dos anos60 e 7012 . Mas, a partir de meados dosanos 80, a literatura econômica viucrescer a quantidade de trabalhos que

... o Estadoexerceria

maior poderdiscricionário

naeconomia...

10 HARROD, R. F. (1948) Towards a dynamicmacroeconomics. Macmillian Press.

11 DOMAR, E.D. (1957) Essays in the teoryof economic growth. Oxford UniversityPress.

12 Uma boa apresentação de modelos decrescimento pode ser encontrada emPAZ, Pedro e RODRIGUEZ, Octávio(1970). Modelos de crescimento eco-nômico. Rio de Janeiro: Fórum/ILPES,1972. Ver também SUNKEL, Oswald &PAZ, Pedro (1970) EI subdesarrollo lati-noamericano y Ia teoria del desarrollo.México, Siglo XXI. Diversos manuais demacroeconomia tratam do assunto, po-rém, para uma explanação formalizadadeste e de outros modelos de cresci-mento macroeconômico, ver o capítulo IIIde SIMONSEN, M.H.(1993) Dinâmicamacroeconômica. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil. Ver também o capítulo IX dolivro de SIMONSEN, Mário H. & CYSNE,Rubens P.(1989) Macroeconomia. Rio deJaneiro: Ao Livro Técnico.

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tratavam de modelos de crescimento/desenvolvimento macroeconômico.Economistas neo-ricardianos, novoskeynesianos ou neo-schumpeterianospassaram a tratar como endógenas,portanto passíveis de formalizaçãomatemática, questões como expecta-tivas (racionais), externalidades, falhasde mercado ou mudanças tecnológicas.Creio, contudo, ser dispensável a apre-sentação dos mesmos neste momen-to, para não fugir ao objetivo destaseção, que é apenas dar uma visão pa-norâmica da teoria13 .

A visão centro versusperiferia

A solução para os problemas dosubdesenvolvimento requeriam mui-to mais do que a simples adoção deum receituário dos países desenvol-vidos, como queira Rostow. Aliás, ocrescente comércio internacional jámostrava que a especialização primá-rio-exportadora dos países periféricosrepresentava um processo crescentede deterioração dos termos de troca ede transferência do progresso técnicopara o exterior. Isto foi demonstradopioneiramente pela CEPAL, órgão daONU criado em 1948. Em 1949, Pre-bish14 denunciaria os resultados dadinâmica centro versus periferia im-postos pela hegemonia americana,que combinava elevada produtivida-de e protecionismo seletivo.

“O que dava importância ao novodocumento era seu tom de denúncia desituação intolerável a que eram conde-nados os países exportadores de produ-tos primários. (...) O comércio exterioré bom, não porque permite maximizarvantagens comparativas, mas porquenos fornece meios de pagamento paraimportar equipamentos, diversificar asestruturas produtivas, assimilar técni-cas modernas. O sistema tradicional dedivisão internacional do trabalho operaimplacavelmente no sentido de criarservidões para os países da periferia”(FURTADO, 1985:62-3).

A teoria do subdesenvolvimen-to, de Celso Furtado15 , baseada naanálise do processo histórico brasilei-

ro e latino-americano, viria mostrarque se trata de um fenômeno própriodo desenvolvimento do capitalismoemergente da Segunda Revolução In-dustrial. Nos países desenvolvidos, oprogresso tecnológico seria a fonte dodesenvolvimento que levaria à acu-mulação de capital, enquanto nospaíses subdesenvolvidos o elementodinâmico seria o perfil de demanda,determinado pela desigual e concen-trada distribuição da renda, que pos-sibilitaria a produção e o consumodiversificados, mas dificultaria o pro-cesso de difusão tecnológica que tor-naria impossível um desenvolvimen-to auto-sustentado da economia local(GOLDENSTEIN, 1994:34).

A CEPAL preconizava que a es-

tratégia de desenvolvimento dos paí-ses latino-americanos deveria ser ba-seada num processo de industrializa-ção sob pena de, ao estimular expor-tações, reproduzir continuamente asassimetrias entre o bloco periférico eos países centrais. A industrializaçãoperiférica absorveria o excedente nãoempregado nas atividades primárias,reduzindo pressões sobre salários epreços do setor exportador, enquantosubstituiria produtos da pauta deimportações. A substituição de im-portações não deveria se limitar à pro-dução doméstica de artigos de consu-mo, pois isto elevaria as pressões so-bre as contas externas. Era necessáriaa extensão à produção de máquinas eequipamentos, bens de capital, parapropiciar a internalização do progres-so técnico e o desenvolvimento local.

O debate ideológico e acadêmicosobre os problemas do desenvolvi-mento e subdesenvolvimento suscitouuma outra vertente da teoria da de-pendência que, resumidamente, ex-plicava a causa do subdesenvolvi-mento pela riqueza dos países cen-trais, que se alimentavam da misériados países pobres. O subdesenvolvi-mento era uma característica estrutu-ral do sistema econômico mundial.Mas, para estes teóricos, o motivo dosubdesenvolvimento estaria limitadoàs relações de troca. Quase que exclu-indo a análise das forças produtivase das relações de produção, estes teó-

Aindustrialização

periféricaabsorveria o

excedente nãoempregado nas

atividadesprimárias...”

13 O leitor interessado nessa literatura poderá consultar, entre outros, ROMER, P.(1994)“The origins of endogenous growth”, Journal of Economic Perspectives, 1(8):3-22; SIEBERT,Horst. (1991) “A schumpeterian model of growth in the world economy: some notes on anew paradigm in internacional economics”, Weltwirtschaftliches Archiv. Review of WorldEconomics, 4(127): 800-12; ROMER, Paul. (1990) “On endogenous growth”, Journal ofPolitical Economy, 5(98), Parte 2; LUCAS, Robert. (1988) “On the mechanics of economicdevelopment”, Journal of Monetary Economics, 22(1):3-42, jul.; e LUCAS, Robert. (1987)Modelos de ciclos econômicos. Madrid: Alianza Editorial. Para uma visão crítica, ver ostextos de: STIGLITZ, Joseph. (1994) “Economic growth revisited”, Industrial and CorporateChange, 3(1):65-110; e PASINETTI, Luigi L. (1993) Structural economic dynamics: atheory of economic consequences of human learning. Cambridge: Cambridge UniversityPress.

14 PREBISH, Raul (1949). “EI desarrolo econômico de Ia América Latina y algunos de susprincipales problemas”, in: GURRIERI, A. (org) (1982) La obra de Prebish en Ia CEPAL.México: Fondo de Cultura Econômica, vol. 1. Ver também RODRIGUES, Octávio (1981)Teoria do subdesenvolvimento da CEPAL. Rio de Janeiro: Forense/Universitária.

15 Ver FURTADO, Celso. (1966) Teoria e política do desenvolvimento econômico. SãoPaulo: Cia Editora Nacional. Ver também do mesmo autor e editora, o clássico editado em1964, Desenvolvimento e subdesenvolvimento.

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ricos adotaram uma abordagem ape-nas circulacionista16 .

A visão centro x periferia daCEPAL e os desdobramentos da teo-ria da dependência, contudo, influen-ciariam a difusão de um ambiente pró-industrialização nas economias lati-no-americanas, que em diversos grausiniciaram processos de substituiçãode importações. Para a CEPAL, a po-lítica deliberada e correta de indus-trialização reverteria o quadro de sub-desenvolvimento, possibilitando oacesso dos países latino-americanosao progresso técnico, elevando pro-gressivamente o nível de renda e di-minuindo as desigualdades internas.Antes de haver uma identificação como ideário teórico cepalino, a proposi-ção de ações dos Estados nacionaispassa a ser incorporada pelos indus-triais, engrossando seus argumentospolíticos favoráveis à adoção de me-didas de incentivo e proteção às in-dústrias nacionais.

A Economia Política da CEPAL,na visão de Cardoso de Mello (1985),residia na geração de um processo dedesenvolvimento para dentro, no quala nação passaria a comandar a indus-trialização, substituindo a variáveldemanda externa pela formação domercado interno como motor da eco-nomia. Ironicamente, porém, ao lon-go dos anos 50-70, alguns países eregiões periféricas se industrializa-ram, com o ingresso maciço de capi-tais oriundos dos países centrais. Ofato de a periferia ter se industrializa-do, contudo, não significaria nem ahomogeneização do espaço econômi-co, como queria a ortodoxia econômi-

ca de inspiração neoclássica, nemtampouco a banalização da produçãode acordo com o modelo Clark-Ros-tow-Vernon. Tampouco a industria-lização trouxera a liberdade nacionalou a solução para a pobreza e misériados países periféricos, como aponta-va a perspectiva cepalina.

A radicalização pelos teóricosmarxistas da problemática levantadapela CEPAL não traria qualquer avan-ço para a interpretação da realidadelatino-americana. Observando as in-consistências da teoria da dependên-cia e os desdobramentos históricosdos anos 60, F. H. Cardoso e E. Faleto17

apresentaram outra versão para a pro-blemática da relação centro-periferia:a dinâmica social era determinada porfatores históricos internos, em primeirainstância; e, em última instância, porfatores externos, a partir do estabeleci-mento do Estado Nacional. A novasituação de subdesenvolvimento sig-nificava integração com o mercadointernacional. Os fluxos de investi-mentos diretos, oriundos das econo-mias centrais, apesar de vinculados adecisões externas, repercutiriam noreinvestimento local, solidarizando osinvestimentos industriais estrangei-ros com a expansão econômica domercado interno.

A nova teoria da dependência,assim, buscaria superar a dicotomi-zação desenvolvimento versus subde-senvolvimento, para colocar a ques-tão da dependência em outro pata-mar: o desenvolvimento industrial

periférico, dependente, seria requisi-to para o crescimento econômico dospaíses centrais. Todavia, como ressal-ta Cardoso de Mello (1985:25-6), a ten-tativa de ampliação da visão cepalinavê-se frustrada porque

“(...) seria indispensável fazer acrítica da Economia Política da CEPALpelas raízes (...) basicamente, do cri-tério cepalino de periodização his-tórica (...), que é reproduzido toman-do em conta ‘fatores sociais e políticos’(...) e das explicações cepalinaspara a ‘passagem econômica’ deuma etapa a outra, de um períodoa outro. Teria sido preciso, enfim, quenão se localizasse o equívoco do pensa-mento da CEPAL na abstração doscondicionantes sociais e políticos, in-ternos e externos, do processo econô-mico, mas que se pensasse, até as últi-mas conseqüências, a História latino-americana como formação e desenvol-vimento de um certo capitalismo”(grifos do autor).

O formalismo da análise cepali-na, mantido na análise de Cardoso eFaleto, dificulta o entendimento dasraízes históricas do específico tipo decapitalismo que se instala em cada umdos países periféricos: entendimentodas formas peculiares de suas rela-ções sociais básicas, reinvenção dotrabalho servil ou escravo, introduçãodo trabalho assalariado e a complexi-dade do desenvolvimento das forçasprodutivas (CARDOSO DE MELLO,1985).

O intenso movimento de reestru-turação produtiva, em gestação des-

... aindustrialização

não trouxe aliberdade nacionalou a solução para a

pobreza...

16 Para contrapor-se à tese ricardiana das vantagens comparativas, desenvolvem a teoriada “deterioração dos termos de troca”, para provar que a troca desigual , estabelecidadesde a origem dos países subdesenvolvidos, impediria o crescimento da acumulaçãoperiférica e, por outro lado, o crescimento da competição entre os países centrais seencarregaria de impor “barreiras à entrada” ao clube dos desenvolvidos. Os mercadosoligopolisados dos países centrais, juntamente com a organização de seus sindicatos,impediriam que os ganhos de produtividade decorrentes das inovações tecnológicasfossem repassados para os preços de seus produtos. De uma forma geral, concebiamque a tecnologia incorporada aos equipamentos utilizados nos países subdesenvolvidosnão é independente das relações sociais prevalecentes nos países de acumulaçãoavançada constituindo fator de concentração de renda. Para maiores detalhes, verAMIN, Samir (1973), O desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1976; e (1973) L’imperalisme et le developpement inégal. Paris: Minuit. Ver tambémEMMANUEL, Arghiri. (1969) L’echange inégal: essai sur les antagonismes dans lesrapports economiques internationaux. Paris: Maspero. Ver também BARAN, Paul A.(1957) “The political economy of growth”. New York: Monthly Review Press; e SWEEZY,Paul. (1967) Teoria do desenvolvimento capitalista. Rio de Janeiro: Zahar.

17 CARDOSO, Fernando H. & FALETTO, Enzo. (1969) Dependência e desenvolvimento naAmérica Latina. Rio de Janeiro: Zahar.

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de o pós-guerra mas intensificado apartir dos anos 80, revolucionaria opapel das instituições e modificariaos paradigmas da produção capita-lista. Uma nova divisão internacionaldo trabalho estava se instalando: nãomais se poderia falar de uma antiga esimples relação de dominância entrepaíses. A partir de então, passou asobressair o papel organizador, estru-turante, da empresa transnacional,que, complementando a ação imperi-alista dos grandes países, influencia-ria crescentemente a política econô-mica e a organização dos mercadosinternos e externos, tanto dos paísescentrais como dos periféricos. Nessecontexto, o desenvolvimento periféri-co deixou de ser requisito para o cres-cimento econômico dos países cen-trais. Não há interesse nem econômi-co nem estratégico (a “guerra fria” aca-bou) em promover o desenvolvimen-to periférico, que, em algumas regiões,como na África, passa a constituir um“peso morto”, áreas de pobreza queameaçam os países democráticos comseus movimentos emigratórios.

O acirramento da concorrênciamundial intercapitalista e entre asgrandes potências desencadeou a for-mação de blocos liderados pela Tríadeque polarizam vastas áreas de livrecomércio, erguendo novas barreirasprotecionistas, apesar de todo o dis-curso (neo) liberal. O Imperialismopassa a exigir, principalmente dasnações periféricas, a derrubada dosmonopólios públicos (energia, trans-portes, telecomunicações etc.), além dadesregulamentação das atividadeseconômicas, principalmente sobre osfluxos de capitais internacionais,privatização de empresas públicas,além de políticas de descentralizaçãofiscal e de serviços (CANO, 1996).

O Imperialismo, que do séculoXIX até meados dos anos 70 haviaampliado o mercado de exportações,incentivando a industrialização pe-riférica, possibilitando sua urbaniza-ção e melhoria social, hoje prescindedesses países, condenando-os à re-gressão mercantil, ao acirramento dacrise social, ao desemprego. O movi-mento do capital-dinheiro em nívelglobal vem tolhendo a capacidade deintervenção dos Estados Nacionais,

que, através dos seus Bancos Cen-trais, são bastante contingenciados asancionar as dívidas privadas e pou-co a exercer as políticas macroeco-nômicas. A capacidade de interven-ção estruturante, de imposição de pro-gramas ou planos ao capital privadoficou reduzida pela crise fiscal e pelaperda dos fundamentos de suas ins-tituições.

“O cenário do ‘cada um por si’ jáestá em ação, será provavelmente o ce-nário dominante dos próximos vinteanos.” (Nesse cenário, vê-se) “cadacompanhia, cidade, região, país e gruposocial atrelar-se à defesa e à promoçãode suas próprias vantagens comparati-vas e posição já adquirida. A competiti-vidade e a produtividade são erigidasem dogma absoluto, nos países onde opodem ser. Nos outros lugares, é lutapela sobrevivência em estado bruto”(CHESNAIS, 1996:319).

A observação da mundialização docapital suscita vários problemas dedifícil abstração teórica, vez que o es-tabelecimento de relações causais su-põe conhecimentos teóricos prévios.Todavia os instrumentos empíricos eteóricos disponíveis mostram-se insu-ficientes ou inadaptáveis à elaboraçãode respostas para as questões formu-ladas. De certo, temos que a globalizaçãoou mundialização ora em curso tem pro-longado, aprofundado e obscurecidoa discussão sobre a crise da modernidadee de seus pressupostos. Ao mesmotempo, tem suscitado interpretaçõesequivocadas do tipo “small is beaultifull“, como que para justificar o cenáriodo “cada um por si”.

Novas interpretações -automação flexível e “novageografia econômica”

O aprofundamento dos desequi-líbrios inter-regionais e da instabili-dade social e econômica tem criadocontradições entre os níveis macro emicroeconômicos, levando os agentes

produtivos a adotarem estratégias deflexibilização, que correspondem aajustes de rebaixamento dos direitosadquiridos pelos trabalhadores. Osdebates sobre o desenvolvimento dasnovas tecnologias de informação ecomunicações fizeram surgir concei-tos sobre os novos espaços industri-ais, sobre o regime de acumulação fle-xível e de novas teorias de localiza-ção industrial. Embora seja difícil es-tabelecer categorias específicas, emgeral os novos trabalhos sobre a“territorialidade” das atividades eco-nômicas, principalmente industriais,reúnem-se em quatro grupos, não ne-cessariamente excludentes e com“fronteiras” teóricas ainda pouco de-finidas: a) análise sob a ótica dos no-vos “Distritos Industriais Marshallia-nos” e “Sistemas Industriais Locali-zados” (SIL’s); b) a abordagem evolu-cionista do meio ambiente inovador -os “Distritos Tecnológicos”; c) a abor-dagem ligada à tradição da organiza-ção industrial; e d) a análise da “Es-cola Californiana de Geografia Eco-nômica”.

Uma série de trabalhos esparsos,produzidos a partir de meados dosanos 80, tentaria explicar o sucessode algumas regiões industriais a par-tir de suas dinâmicas internas, lem-brando o antigo conceito de distritoindustrial de Alfred Marshall18 , noqual pequenas firmas convivem numambiente de concorrência, cooperaçãoe rivalidade. O ponto de referênciaprincipal desses trabalhos é a expe-

18 Refiro-me a uma de suas principais obras: Elements of economics of industry. London:MacMillan, 1900. Tais distritos caracterizam-se pela observação dos principais pressupos-tos da análise neoclássica da concorrência perfeita: ausência de firma(s) dominante(s);acesso livre às informações; elevado grau de divisão do trabalho entre as firmas etc.

... pequenasfirmas convivemnum ambiente de

concorrência,cooperação erivalidade...”

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riência histórica da região conhecidapor “Terceira Itália”, enfatizandoespecificidades locais. Os SistemasIndustriais Localizados são conjun-tos de empresas concentradas numdeterminado espaço, em torno de umou de vários setores industriais, inter-agindo formal e informalmente numambiente mercantil e sócio-cultural egerando externalidades produtivaspara o conjunto19 .

De acordo com esta abordagem, arelativa autonomia e desenvolvimen-to do distrito industrial localizadodepende de sua capacidade de modi-ficar ou ajustar-se ao sistema econô-mico-social externo. Depende tambémde sua capacidade de promoveraprendizado social e introduzir for-mas específicas de regulação socialque reforcem a sua atratividade, suacompetitividade sistêmica.

Os autores que trabalham com aabordagem dos “Distritos Tecnoló-gicos” afirmam que a inovação é fru-to da inventividade do meio (millieu)ambiente inovador (innovateur). Omillieu inovateur

“(...) é um espaço geográfico quenão tem fronteira stricto sensu, masque apresenta uma certa unidade quese traduz pelos comportamentosidentificáveis e específicos. É consti-tuído por recursos materiais e imate-riais detidos e gerados por diferentesatores, empresas, instituições de pes-quisa e de formação, poderes públicoslocais, etc. (...) é um operador coletivode redução de incertezas estáticas edinâmicas ao qual são confrontadas asfirmas através da organização implíci-ta e explícita de interdependências fun-cionais e informacionais dos atores lo-cais.” (COURLET et alli, 1993:12,tradução livre).

Uma segunda característica domillieu é sua lógica de organização. O

ambiente é uma combinação (mélange)de formas de organização que estrutu-ram as estratégias das empresas se-gundo a dupla lógica de externaliza-ção e de integração orgânica, visandoreduzir as incertezas. Além do mais,a dinâmica de aprendizagem dessemillieu se caracteriza pelas capacida-des de seus atores modificarem eadaptarem seus comportamentos emfunção das transformações do próprioambiente (COURLET et alli, 1993:13).A presença ou ausência desse meioinovador, com maior ou menor inten-sidade, tem sido responsável pelasdinâmicas espaciais das metrópoles,das tecnópolis e dos próprios SIL’S.Em conseqüência, podem ser verifica-das quatro possíveis “trajetóriastecnológicas regionais” de desenvol-vimento espacial, tomando por base:a) a relação entre ciência e criação detecnologias genéricas - na cooperaçãointer-firmas e no aumento de gastospúblicos em P&D; b) as funções estra-tégicas das empresas ou grupos quecriam facilidades de informações,ampliam serviços e criam economiasde escala ligadas às funções metro-politanas; c) a difusão tecnológica quemoderniza o aparelho produtivo ediversifica as atividades regionais; ed) a tradição empresarial local basea-da em networks de cooperação inter-firmas e serviços que possibilitem oupgrading das atividades tradicionais[Ver QUEVIT e VAN DOREN (1993),GAROFOLI (1993) e PRESSER (1995)].

O novo paradigma tecnológico da“especialização flexível” estaria im-pulsionando não somente a volta dasfábricas e escritórios para as zonasurbanas como também a retomada docrescimento quantitativo das metrópo-les: forma espacial, enfim encontrada,da saída da crise do fordismo. A futu-ra hierarquia das cidades e regiõesurbanas mundiais resultaria na estra-tégia interna desses distritos ou gru-

pos de distritos (BENKO, 1996:96-7).O enfoque ligado à tradição de

organização industrial estuda o ama-durecimento e a difusão internacio-nal do novo sistema de produção de-nominado “flexível” ou “toyotismo” eas conseqüências territoriais de suaintrodução. Utilizando conceitoscomo “networks” para designar asnovas relações intra e inter-empresas,interpretam o relativo sucesso dos dis-tritos industriais como um caso par-ticular dentro de uma tendência bemmais geral: um regime de produçãofundado na especialização flexível cujaforma espacial seria o distrito, como ocircuito de ramos era uma forma es-pacial de desdobramento do fordismo(regime estruturado na produção demassa). Essa configuração, além deestar fortemente relacionada à profis-sionalização da mão-de-obra e à ino-vação descentralizada, depende dacoordenação (pelo mercado e pelasinstituições) num ambiente de recipro-cidade entre as firmas, como forma dereduzir as incertezas empresariais20 .

Finalmente, o enfoque da “novageografia econômica” de Scott, Stor-per e Walker21 , apoiando-se nas abor-dagens da divisão do trabalho e dosefeitos externos da aglomeração urba-na, traz novas interpretações acercado surgimento de pólos de crescimen-to e de patchworks de distritos. De acor-do com esta nova “geografia econô-mica”, o desenvolvimento industrialdepende essencialmente da combina-ção das relações entre capitalistas etrabalhadores, entre indústria e comu-

... a inovaçãoé fruto da

inventividade domeio ambiente

inovador...

19 Ver GARAOFOLI (1993), COURLET et alli(1993) e BENKO (1996).

20 Ver PIORE e SABEL (1984); BENKO(1996) e PRESSER (1995).

21 Ver, por exemplo, SCOTT & STORPER(1988) ou STORPER & WALKER (1983).

... o desen-volvimento indus-

trial dependeessencialmente da

combinação dasrelações entrecapitalistas e

trabalhadores...

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nidades circunvizinhas e entre indús-trias e crescimento regional. Para es-tes autores, a mudança da lógica in-dustrial, as novas tecnologias e asnovas condições econômicas reestru-turaram igualmente a organizaçãosocial dos novos complexos de pro-dução. Com efeito, hábitos e tradiçõesdesenvolvidos nas comunidades oudistritos industriais organizados deacordo com os padrões da SegundaRevolução Industrial não corres-pondem às possibilidades de desen-volvimento da indústria atual - de-pendente da capacidade de adapta-ção das empresas às novas condiçõesda produção, o que inclui mudançasdas relações políticas e sociais. As-sim, as firmas são levadas a serelocalizarem para constituirem no-vas relações de trabalho, tornandocada vez menos importantes os fato-res neoclássicos de localização base-ados em tecnologia de transportes ecomunicações.

Assim, aqueles fatores que envol-vem circulação ou markefing, orga-nização industrial atratividades sócio-espaciais, competição internacional,coerções financeiras e competição en-tre capitais - em suma, mudanças nasrelações sociais de produção - tornam-se fenômenos de segunda ordem, me-nos importantes que os dois fatoresenfatizados por Storper e Walker, poissão compostos por termos vagos como“meio ambiente setorial” e “estru-tura industrial”. (GOTTIDIENER,1985:89)

O que essa nova literatura sobrelocalização industrial tem em comumé a crítica aos pressupostos neoclás-

sicos, porém também uma tentativa deadequação da análise marxista, ricar-diana ou schumpeteriana ao mains-tream econômico. Os distritos tecnoló-gicos ou os SIL’s da “Terceira Itália”não podem ser considerados comosimples bens coletivos que favorecemtransações mercantis. Trata-se de for-mas de desenvolvimento historica-mente determinadas, extremamentedependentes de condições macro-econômicas nacionais e internacio-nais favoráveis, e não de “achados”,internacionais favoráveis, e não de“achados”, “soluções” para a saídada crise industrial, regional ou urba-na. É bom lembrar que, apesar da im-portância das pequenas e médiasempresas na geração de emprego erenda, na criação de novas formascooperativas e regulatórias da concor-rência e na democratização da infor-mação, a grande corporação aindapredomina e cada vez mais suas es-tratégias são tomadas como parâme-tros para as políticas dos Estados na-cionais. Além do mais, a tão propa-lada “qualificação” que emana dainterpretação dos novos distritos in-dustriais não se observa nos diversosespaços regionais.

(...) não é de forma nenhuma o tra-ço característico desse novo modelo.(...) Esse modelo poderá assumir dife-rentes formas e a velha hierarquia (tí-pica de multinacionais fordistas) poderetornar vitoriosamente sob a máscaramercantil das relações de subtrata-mento. A autonomia dos pequenos em-presários nos anos 70-80 não terá sidosenão breve recreio em uma fase dereadministração no seio da tendênciasecular à concentração do capital. (...)O novo modelo de desenvolvimen-to, simplesmente, ainda não existepor inteiro, sendo por isso inútil pre-tender ocultar as formas de desenvol-vimento espacial sob o leito de Procus-to, que é a “acumulação flexível”.(BENKO, 1996:61, grifos meus)

Quanto à abordagem da “novageografia econômica” de Storper eWalker, pode-se dizer que ela conse-guiu apenas complementar a teoria

convencional, ao introduzir a luta declasses na teoria da localização, iden-tificando-a com a questão da oferta eprocura de empregos. Além do mais,foram ignorados os aspectos da hege-monia capitalista que impõem, de forapara dentro, formas de organizaçãosócio-espaciais que fogem ao contro-le da relação microeconômica entrecapitalistas e trabalhadores no localde trabalho. Em outras palavras, osreferidos autores compartilham a ên-fase sobre considerações tecnológicascom a teoria tradicional, ao colocarpeso determinístico nas forças de pro-dução (isto é, na força de trabalho ena tecnologia), reduzindo o papel dasrelações de produção22 .

Conclusão - Os limitesteóricos para a análiseregional

Como o leitor já deve ter observa-do, a abordagem da questão regionalaqui considerada não aceita os pres-supostos da tradição mainstream pe-los motivos já delineados. Entretantocreio ser necessário enfatizar que, aofocalizar as necessidades do proces-so de acumulação capitalista, incluin-do os interesses antagônicos de clas-ses e vinculando seu desenvolvimen-to a crises periódicas de realização, aanálise marxista supera o simplismodas teorias de localização baseadasno equilíbrio entre grande número deprodutores e consumidores, focali-zando custos da terra e de transporte,num espaço “neutro” e homogêneo.

... mudançasnas relações

sociais de produçãotornam-se

fenômenos desegundaordem...”

22 Para uma discussão mais aprofundada sobre a análise de Storper, Walker e Scott, verGOTTIDIENER (1985:84-93 e 106-9). Ver também BENKO(1996).

... a análisemarxista supera o

simplismo dasteorias de

localização...”

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No lugar de uma rede hierárquica deintegração espacial de um sistema decidades, por exemplo, prefiro consi-derar, como alguns marxistas, que “alocalização é o sítio das relações deprodução, que no caso são integradaspor um sistema global de acumula-ção capitalista e um processo de pro-dução em escala mundial, inclusiveuma divisão internacional do traba-lho” (GOTTDIENER, 1985:112)

Assumo a interpretação marxianade que as formas espaciais de assen-tamentos humanos estão ligadas aosmodos de produção historicamentedominantes, que impõem formas eestágios específicos de urbanização ede ocupação do espaço rural23 . Nocapitalismo, as oportunidades desi-guais de acesso à terra e aos recursosnaturais assim como à habitação de-correm do processo concentrador ecentralizador do capital que implicaformas desiguais de distribuição doproduto e de renda, com efeitos nãosó do ponto de vista pessoal mas tam-bém espacial, diferenciando zonasrurais, vilas, bairros, cidades, regiõesou países. O espaço é parte integrantedas relações de produção. É produzi-do pela natureza contraditória do pro-cesso de produção capitalista e pelaação regulatória, também contraditó-ria, do Estado (aliás, minimizada ouinexistente nas análises do mainstreameconômico).

A região é aqui considerada comoum espaço geográfico dinâmico, no

sentido de que é sujeito a transforma-ções sociais, econômicas e políticas,decorrentes de múltiplas determina-ções históricas, específicas dos está-gios de desenvolvimento de suas for-ças produtivas, da natureza do capi-tal e da “luta de classes”, que deter-minam a estrutura de poder político eeconômico e que em geral são expli-cáveis não só internamente ao seu es-paço físico mas também em relação aoutros espaços “regionais”.

“Uma adequada periodização noexame de um conjunto de “regiões” edas relações estabelecidas entre elas sobo comando de uma delas forneceria ele-mentos conceituais capazes de revelara perda da especificidade das “regiões”,no que diz respeito à sua acumulaçãoou, em outras palavras, à homo-geneização. (...) Uma explicação dasalterações ocorridas em dois espaçosdiferenciados sob o domínio do modode produção capitalista pode ser obtidoconsiderando-se o ciclo do capital e,a partir dele, a natureza das relaçõesprevalecentes entre tais espaços (na-ções ou regiões). Na medida em que ofundamento de tais relações está cons-tituído com base no capital comercial,ou a partir do capital produtivo, defi-nem-se relações (internacionais ouinter-regionais) bem diferenciadas en-tre os espaços considerados.” (GUI-MARÃES NETO, 1989:15)

Isto nos mostra, por exemplo, ainsuficiência da teoria da base deexportação. O desenvolvimento regi-onal/local não só é induzido pelo rit-mo e natureza das relações externas,comerciais. Na verdade, as mudan-ças que ocorrem correspondem a“ajustes” decorrentes de pressõessurgidas na prática mercantil, coman-dados por frações do capital local einfluenciados pelo capital “forâneo”,pelas pressões da “compra-e-venda”.Porém, quando o capital produtivopassa a comandar a economia local,outro é o contexto.

(...) Neste caso, não se trata de mu-danças vinculadas à mera propagaçãode relações mercantis, mas do aprofun-damento/propagação/difusão das rela-ções de produção capitalista no interiorde cada espaço, notadamente daquelesubordinado e que se constitui no capi-tal produtivo transferido de um paraoutro espaço econômico. (...) Antes es-paços distintos, integrantes de um mes-mo sistema comercial com sua indivi-dualidade, agora partes de um únicosistema de produção situados no interi-or de uma hierarquia. Trata-se, na fasecaracterizada pela transferência do ca-pital produtivo, de um sistema produti-vo único e hierarquizado, no qual osespaços considerados tendem a homo-geneização e à perda de identidade en-quanto espaços individualizados pelasrelações de produção “ (GUIMARÃESNETO, 1989:16)

A dominação do espaço regional/local pelo capital produtivo impõe ahomogeneização de produtos e pro-cessos de trabalho, onde a acumula-ção tende a acontecer num ritmo quepouco tem a ver com os interesses ime-diatos e os limites estreitos do poten-cial de acumulação da região que re-cebe os investimentos. Mas, apesar daforça transformadora do capital in-gressante, este ainda poderá “permi-tir” diversas formas de relações deprodução, resultando especifici-dades, descontinuidades e não-linea-ridades no desenvolvimento regio-nal/local.

Existem armadilhas analíticasimpostas pela “regional science” con-vencional que podem nos levar a des-crições econômicas cada vez maisdetalhadas da sociedade, mas que, emgeral, justificam as condições da soci-edade apenas pelo inventário de suariqueza. O caráter parcial das diver-

23 “A história antiga clássica é a história das cidades, porém de cidades baseadas napropriedade da terra e na agricultura; a história asiática é uma espécie de unidadeindiferenciada de cidade e campo (a grande cidade, propriamente dita, deve ser conside-rada como um acampamento dos príncipes, superposto à verdadeira estrutura econômica);a Idade Média (período germânico) começa com o campo como cenário da história, cujoulterior desenvolvimento ocorre, então, através da oposição entre cidade e campo; a(história) moderna consiste na urbanização do campo e não, como entre os antigos,na ruralização da cidade.” (MARX, 1857-8:74-5)

... alocalização

é o sítiodas relações de

produção...

Existemarmadilhas

analíticas impostaspela “regional

science”...”

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sas teorias apresentadas, todavia, nãoinvalida por completo o alcance dosdiversos trabalhos sobre a temáticaregional. Na verdade, o aproveita-mento e a crítica dos seus resultadosé uma necessidade para o aperfeiço-amento teórico, feitas as devidas res-salvas sobre os pressupostos que asorientam. Ao estudar a temática dasdesigualdades regionais, não devo melimitar à simples descrição dos pa-drões de desenvolvimento econômi-co na sociedade, sem o exame criterio-so dos nexos de localização, depen-dência, subdesenvolvimento e desi-gualdades regionais, pois correrei orisco de compartilhar essa limitaçãoideológica do mainstream, e todo o es-forço explicativo terá sido em vão, semqualquer compromisso com a trans-formação da realidade analisada -incompatível, portanto, com uma aná-lise da tradição marxiana.

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DOUTORADO EMPLANEJAMENTO TERRITORIALE DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Componente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano daUNIFACS é realizado em convênio com a Universidade de Barcelona

Informações e inscrições na UNIFACS � Coordenação da Pós-Graduação:Tel.: (71) 340-3657 � www.unifacs.br

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67RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

OS AGENTES MODELADORES DESALVADOR NO PERÍODO COLONIAL

Pedro de Almeida VasconcelosPós Doutor em Geografia pela Universidade de Paris

e Professor do Programa de Pós-Graduação emPlanejamento Regional e Urbano da UNIFACS.

Para entender a organizaçãoe o funcionamento do espaço da cida-de de Salvador no período colonial, énecessário adaptar, ou mesmo criarnovos conceitos e noções, pois aque-les utilizados para a compreensão dascidades atuais, não correspondemsatisfatoriamente às especificidades eà complexidade das sociedades pre-téritas.

Considerando as transformaçõesocorridas em Salvador ao longo demais de três séculos, procurou-se ela-borar uma proposta de exame dosagentes que tiveram papel importan-te na conformação da cidade no perí-odo colonial, e que não poderiamcorresponder, evidentemente, aos atu-ais agentes da produção da cidadeatual. Um primeiro cuidado que sedeve ter, é lembrar que Salvador, naépoca, estava inserida num contextogeográfico mais amplo, o do ImpérioLusitano, o que leva a lembrar as pos-síveis similaridades (e diferenças)com outras cidades de criação portu-guesa, tanto na Metrópole, como nasdemais colônias da África e da Ásia.

Destacam-se no presente traba-lho, como principais agentes modela-dores das cidades: (1) a Igreja; (2) asordens leigas; (3) o Estado; (4) os agen-tes econômicos; (5) a população e osmovimentos sociais.

1. A IGREJAA Igreja Católica, é examinada por

um lado, pela estrutura hierárquicada Igreja, ligada ao Estado pelo esta-belecimento do Padroado e, por outro

lado, pelas ordens religiosas. O Pa-droado correspondia a um acordoentre o Papado e a Coroa portuguesa,em que a mesma recebia os dízimosrelativos à Igreja, e ficava responsá-vel pela manutenção das despesas daIgreja no Brasil.

1.1 - O papel do Clero Secular

O clero secular era composto, porum lado, pela alta hierarquia, os bis-pos (e arcebispos), e suas instituiçõescorrespondentes, como o Cabido e oTribunal Eclesiástico. Os bispos (ouarcebispos) instituíam normas e orga-nizavam sínodos. A outra parte doclero secular correspondia aos vigá-rios e párocos das matrizes e paróqui-as, que realizavam a administraçãocotidiana das células territoriais me-nores da Igreja. Inclui-se também, par-te do clero que se especializou, comoos capelães militares, dos engenhos edos navios negreiros.

O Bispado (ou Arcebispado) defi-nia a localização da catedral e dasigrejas matrizes, assim como delimi-tava as áreas territoriais correspon-dentes (paróquias). Essas divisões emparóquias serviram de base para adefinição das freguesias, que influen-ciaram as conseqüentes divisões ad-ministrativas da cidade. As igrejasmatrizes, correspondiam aos núcleosdas paróquias, tendo um importantefunção social, tanto no que refere-seao local de encontros e sociabilidade,como no papel de registro civil.

1.2 - O papel do Clero RegularCorresponde ao clero que vive em

comunidade, obedecendo a uma or-dem religiosa. Na Bahia suas funçõesprincipais eram de ordem missionária.Também dedicaram-se ao ensino. Asordens, porém, necessitavam de recur-sos para sobreviver. Num contextoescravagista, receberam bens de fiéisde posses: dinheiro, terras, casas, fa-zendas, engenhos, gado e escravos.

Os jesuítas possuíam em Salva-dor, cais, guindaste, seminários e umaquinta (Leite, 1965), além de 186 pré-dios em 1759. Os beneditinos possuí-am importante quantidade de terrasurbanas, além de 95 moradas em1793; os carmelitas também eram pro-prietários de 75 prédios, no mesmoano. Os carmelitas descalços viviamdos rendimentos de empréstimos; e osfranciscanos administravam missões.Apesar do voto de pobreza, realiza-ram a decoração interior da igrejamais opulenta do Brasil. As ordensfemininas foram mais tardias, em fun-ção dos interesses divergentes entreos colonos e a Coroa, devido a escas-sez de mulheres brancas. Destaca-seo convento do Desterro, que além deser proprietário de 80 imóveis de alu-guel em 1778, ficou conhecido peloimportante número de escravas emrelação aos das freiras, assim comopela discutível moral reinante no es-tabelecimento.

O que mais interessa, porém, é opapel das ordens religiosas na estru-turação da cidade de Salvador. A or-dem que se estabeleceu em primeiro

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lugar, a dos jesuítas, localizou seusestabelecimentos no núcleo central, eas que chegaram posteriormente fo-ram se instalando nas periferias ime-diatas das cidade, inclusive extra-muros, como os beneditinos e carme-litas. Porém, sendo grande consumi-doras de terrenos, tanto pelo seu por-te, como pelas suas atividades comple-mentares, os conventos tiveram umpapel de ponta na expansão urbanade Salvador: os carmelitas e ursulinas(Soledade), instalaram-se no eixo nor-te; os beneditinos e ursulinas (Mercês),no eixo sul; e os franciscanos e francis-canas (Desterro), na periferia leste deSalvador. Alguns capelas e hospícios,doados por particulares, também fo-ram elementos pioneiros da expansãoda cidade, como a dos beneditinos emMonte Serrat e na Graça e a dosfranciscanos em Boa Viagem.

Diante da precariedade da cida-de, sobretudo no início da coloniza-ção, os conventos serviram também dehospedaria; de local de depósito dedinheiro e valores (Ott, 1955), e foramtransformados em quartéis, desde oséculo XVII, com as invasões holan-desas.

Os outros cultos tiveram poucaimportância no período colonial, de-vido a situação oficial da Igreja Cató-lica, e a proibição de templos protes-tantes, salvo com restrições, para rea-lizar o culto das pequenas comuni-dades estrangeiras. Por sua vez a re-pressão aos cristãos novos só acabouno período pombalino. Inquisidoresfizeram visitas e inquéritos. Quantoao Islã, ele foi completamente erradi-

cado, após a rebelião de 1835, emboratenha ficado a lembrança da existên-cia de mesquitas, em casas particula-res, através dos nomes de ruas. Oscultos afro-brasileiros, finalmente,eram clandestinos, e no período colo-nial tem-se informação da repressãoa locais de culto em áreas periféricas.

2. AS ORDENS LEIGAS

Embora as ordens leigas estives-sem intimamente ligadas à Igreja Ca-tólica, eram, de fato, independentes.Eram associações de leigos, homens emulheres, que tinham objetivos de aju-da mútua e de caridade coletiva, e fun-cionavam também como bancos, rea-lizando empréstimos. Possuíam umgrande número de imóveis urbanospara rendimento de aluguéis. Entreaquelas de maior prestígio estava, aMisericórdia, exclusiva dos brancos.Essa ordem ocupava-se dos enfermose implantou o primeiro hospital dacidade; cuidava dos enterros; da as-sistência aos presos; do sustento demoças pobres e dos órfãos (Russell-Wood, 1981). Para tanto, vivia de doa-ções, realizava empréstimos e possuía110 imóveis em 1799. A igreja da Mi-sericórdia está localizada na área cen-tral, entre a antiga catedral e a praçado Palácio.

As Ordens Terceiras tambémeram importantes, e exigiam o paga-mento de jóias para entrada, o queimpedia o acesso de candidatos depoucas posses. Um membro de umaordem terceira podia se beneficiar deseus serviços em qualquer local doimpério português onde existisse amesma ordem (Martinez, 1979).

As igrejas das Ordens Terceirasestavam localizadas junto aos con-ventos que estavam vinculadas, comimpacto menor na expansão da cida-de. No caso da Ordem de São Domin-gos, não havia o correspondente con-vento de dominicanos, tendo a mes-ma se estabelecido numa das duaspraças principais da cidade. As cin-co ordens terceiras de Salvador pos-suíam 204 imóveis, em meados do sé-

culo XIX, já no período imperial. Asirmandades do Santíssimo Sacramen-to, vinculadas às matrizes paroquiais,também possuíam importante patri-mônio imobiliário (161 imóveis nomesmo período), embora dispersosnas diferentes freguesias.

As outras irmandades, de prestí-gio menos elevado, refletiam as divi-sões da sociedade colonial: irmanda-des que sustentavam igrejas e cape-las; irmandades especializadas se-gundo a profissão (dos clérigos, dosmilitares, dos artesãos e até dos trafi-cantes de escravos); irmandades espe-cializadas segundo os grupos sociais:de portugueses, de brasileiros; demulatos; de crioulos; de africanos (es-tes divididas por etnias); e ainda eramdivididas segundo o sexo. Essas ir-mandades também visavam a ajudamútua, e no caso dos escravos, tam-bém efetuavam empréstimos paraalforrias.

As confrarias de menor prestígiorealizavam seus cultos, inicialmentenuma capela de uma igreja ou de umconvento, em seguida estabeleciamcapelas próprias, e posteriormenteedificaram igrejas de porte. Em geral,localizavam-se nas periferias. Em Sal-vador, as igrejas do Rosário dos Pretose a da Barroquinha, de irmandades decor, estavam localizadas imediatamen-te fora dos muros da cidade.

3. O ESTADO

O Estado no período colonial ti-nha uma organização bastante com-plexa, embora tivesse funções bemmais restritas que o Estado atual.

... osconventos

tiveram umpapel de ponta

na expansãourbana deSalvador...”

O Estadono período

colonial tinha umaorganização

bastantecomplexa...”

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Destaca-se seu papel de apoio às ati-vidades econômicas, na sustentaçãodos funcionários, do clero, e sobretu-do na realização de obras defensivase a manutenção das tropas. As Câma-ras tinham um papel importante nacondução dos negócios das cidades.

3.1 - O papel da Coroa e deseus representantes

A Coroa portuguesa enviava or-dens régias diretamente a seu repre-sentante em Salvador. A partir do iní-cio do século XVII foi implantado umtribunal civil (Relação). As repartiçõesligadas às finanças sempre foram im-portantes (Alfândegas, Casas da Moe-da etc.). Ressalte-se que um dos papéismais importantes dos Governadores eVice-Reis, era a distribuição de terrasurbanas e rurais, através de sesmarias,tanto para as ordens religiosas, comopara indivíduos de posse.

O Estado também intervinha nasatividades produtivas, seja proibindodeterminadas atividades, ou incenti-vando produtos e culturas, e mesmorealizando a produção direta, comono caso da produção de naves de guer-ra nos estaleiros reais.

Os prédios governamentais demaior importância, ocupavam luga-res de destaque: a primeira praça eraformada pelo conjunto do Palácio doGovernador Geral (depois Vice-Rei),do Senado da Câmara, e no séculoXVII, pelo Tribunal da Relação. Opatrimônio do Estado, em meados doséculo XIX era de 56 prédios e 86 ter-renos.

Mas, a importância maior para odesenvolvimento da cidade, era a con-tínua construção de sistemas defen-sivos. Os governadores supervisiona-vam as construções militares: das for-tificações portuárias, dos muros, trin-cheiras, fortes, e de armazéns. Os go-vernadores contavam com engenhei-ros militares, que vinham de Portugalpara o exame das fortificações. Cur-sos de engenharia militar foram esta-belecidos na Bahia, no século XVIII.

O Estado sempre requisitavaapoio e ajuda da população, seja atra-vés de aumento de impostos tempo-

rários, seja através da colaboração emdinheiro, alimentos, gado e até no for-necimento de escravos para o levan-tamento de fortificações. Essas cons-truções serviram para definir o núcleourbano, quando a cidade tinha mu-ros e portas, como também na ocupa-ção de superfícies importantes na ci-dade, e serviam, juntamente com osconventos, como “pólos” de atraçãopara o crescimento urbano. Os fortesde Barbalho (norte) e de São Pedro(sul), foram pioneiros no desenvolvi-mento desses dois eixos de crescimen-to, ficando inclusive situados após osconventos mais distantes. As constru-ções dos diques no lado leste, por ou-tro lado, serviram como obstáculos aodesenvolvimento da cidade nessa di-reção.

Uma questão relacionada à defe-sa era a do alojamento das tropas. EmSalvador sempre foi difícil alojar osoficiais e as tropas, mesmo com a im-plantação de quartéis na Palma (Cos-ta, 1958). Para resolver a questão, osconventos serviram também de quar-téis, inclusive através do desaloja-mento dos religiosos.

Outra função importante do Es-tado era a infra-estruturação urbana:construção de portos, de armazéns, deestradas. O Estado só começou a seocupar diretamente do ensino após aexpulsão dos jesuítas, em meados doséculo XVIII.

3.2 - O papel da Câmara

A Câmara municipal tinha umpapel bastante destacado no controledas atividades urbanas: decidia so-

bre impostos, taxas, controle de pre-ços, limpeza das ruas, destino do lixo;sobre os animais nas ruas; sobre ocomportamento de escravos etc. Em1785, a Câmara definiu os arruamen-tos das diferentes atividades comer-ciais e artesanais, assim como as re-gras sobre o comércio ambulante, e otransporte de bens e pessoas peloscarregadores (Vasconcelos, 1993). Osmembros da Câmara tinham compe-tência para conceder ou aforar terras,e de definir os rossios (Marx, 1991). ACâmara também realizava obras depequena monta, como a manutençãode fontes, bicas, a conservação de pon-tes e o calçamento de ruas.

O controle da Câmara estava nasmãos dos “homens bons”, em geralproprietários de terra, que deveriamtambém residir nas cidades. Em mea-dos do século XVIII os comerciantestambém foram autorizados a partici-par da administração municipal.

4. OS AGENTESECONÔMICOSDestacamos como principais

agentes econômicos do período colo-nial, os proprietários rurais, os comer-ciantes e financistas e os artesãos.

4.1 - Os proprietários ruraisAs primeiras atividades econômi-

cas importantes foram realizadas nocampo (produção do açúcar e dofumo, criação de gado). Portanto, osproprietários rurais passavam boaparte do seu tempo longe das cida-des. Em alguns casos, os engenhoscompetiam com as cidades, pois eramquase auto-suficientes. Por outro lado,os proprietários realizavam impor-tantes investimentos no campo, tantopara o exercício das atividades eco-nômicas (engenhos, escravos), comonos magníficos solares, e em capelascom dimensões de igrejas urbanas.Mas os proprietários agrícolas, queem geral eram membros das Câmaras,assim como as irmandades de prestí-gio, também se estabeleciam nas ci-dades. E realizavam construções desolares imponentes, onde viviam com

O Estado sócomeçou a se

ocupar diretamentedo ensino após a

expulsão dosjesuítas...”

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a família, agregados e escravaria, so-bretudo nos períodos de entre-safra edas festas religiosas. As principais re-ferências que se tem de residência dosproprietários agrícolas eram na Cida-de Alta, onde se destacam solarescomo o magnífico Paço do Saldanha.

De um modo geral os grandes pro-prietários realizaram vultosas doa-ções para a construção de conventose outros estabelecimentos religiosos.No conjunto também contribuírampara as fortificações das cidades.

4.2 - Os Comerciantes eFinancistas

Os comerciantes tinham impor-tância fundamental nas cidades por-tuárias, sobretudo pelo seu papel deexportadores e importadores. Inicial-mente, tinham menos prestígio que ossenhores de engenho. Somente a par-tir de finais do século XVII eles come-çaram a poder participar como pro-vedores da Misericórdia, e apenas em1740 foram autorizadas pelo Coroa aparticipar das Câmaras municipais.

Em Salvador, os comerciantes re-sidiam, em sua maioria na CidadeBaixa, onde tinham seus negóciosjunto ao porto. Eram, sobretudo, por-tugueses, e participavam de ordensterceiras em grande número, como ade São Domingos, e tinham irmanda-des próprias. O prédio da AssociaçãoComercial em Salvador, na CidadeBaixa, do início do século XIX, é umdos melhores símbolos da importân-cia da classe comercial em Salvador.

Um reflexo da importância doscomerciantes (164 em 1799), era a deexistir, no final do século XVIII, um re-gimento independente, chamados de“Úteis”, composto por comerciantes epelos seus caixeiros (Vilhena, 1969).

Uma categoria específica de ne-gociantes, era a dos traficantes de es-cravos, que faziam o transporte dire-to entre Salvador e os portos africa-nos. Eram na sua maioria brasileiros,e chegaram a monopolizar a maiorparte do tráfico de escravos. Algumasdas famílias mais ricas de Salvador,na época, tinham seus negócios oriun-dos do comércio de escravos, e alguns

solares correspondem a essa riquezaacumulada.

4.3 - Os ArtesãosNuma sociedade escravocrata os

artesãos tinham menos prestígio quena Europa, em virtude de seu trabalhoser basicamente manual. Geralmenteos artesãos compravam escravos e en-sinavam o seu trabalho, passando asupervisionar o mesmo (Ott, 1955).

Os artesãos se organizaram emconfrarias, realizavam exames, mas oescravismo desorganizou o sistema.Eles tinham irmandades próprias, etiveram representantes, durante umperíodo, nas Câmaras municipais.Seu baixo prestígio não permitia par-ticipar da direção da Misericórdia,sendo considerados “irmãos de me-nor condição”, já que realizavam tra-balho manual (Russell-Wood, 1981),e isto pode ser mensurado pela orga-nização das tropas no final do perío-do colonial. Assim, Vilhena (1969)comenta que um dos regimentos demilicianos em Salvador, era compos-to por artífices, vendeiros, taberneirose “outras qualidades de homem bran-cos” (p.245).

Os artesãos foram os discretosresponsáveis pela construção de inú-meras igrejas nas cidades coloniaisbrasileiras, sobretudo as encomenda-das pelas irmandades. Alguns ti-nham “empresas”, compostas por es-cravos, para realizar trabalhos porempreitada.

O exame da postura de 1785 (Vas-concelos, 1993), mostrou que haviaum ordenamento espacial dos arrua-

mentos, definindo a localização espe-cífica de cada grupo de artesãos emSalvador. O referido ordenamento dei-xava os lugares mais “nobres” da ci-dade colonial para os negociantes, fi-cando outras áreas intra-urbanaspara os ofícios mecânicos.

5. A POPULAÇÃO E OSMOVIMENTOSSOCIAISAlém dos agentes econômicos,

que corresponderiam as classes soci-ais dominantes, tínhamos ainda umesboço de “classe média”, formadapor pequenos assalariados livres, emsua maioria exercendo funções públi-cas. As atividades “liberais” aindanão estavam bem consolidadas.

Boa parte das residências, quan-do não eram de propriedade das or-dens religiosas ou das ordens leigas,eram construídas por iniciativa dosmoradores, mesmo em terrenos forei-ros. Os sobrados dos habitantes maisabastados se contrapunham às sim-ples casas térreas. Alguns estabeleci-mentos comerciais ou artesanais es-tavam localizados nos térreos dos so-brados. Nas áreas centrais, as residên-cias eram coladas umas às outras.

Com a abertura dos portos (1808),os estrangeiros trouxeram novas for-mas de morar, casas com jardins emvolta, e novos bairros foram escolhi-dos, como o de Vitória.

A grande massa da população deSalvador era de origem escrava: em1775 os escravos constituíam 44% damesma (in Costa, 1965). Os escravosrealizavam todos os tipos de traba-lhos urbanos, desde o doméstico, as-sim como o artesanato, o comércioambulante, o transporte de pessoas emercadorias, a construção, e o traba-lho jornaleiro ou de ganho, que ospermitiam maior liberdade. A respon-sabilidade do alojamento dos escra-vos era dos proprietários (ou dos lo-cadores de escravos): há referênciasque mostram os possíveis alojamen-tos de escravos, sobretudo doméstico:residindo nos andares, junto com ascrianças (Kindersley, 1777), ou em lo-

Os artesãosforam os discretos

responsáveispela construção

de inúmerasigrejas...”

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jas, no térreo dos sobrados, em porões,ou nos quintais. Mas com o apareci-mento da categoria de escravos deganho, eles passaram a sobreviver porconta própria, desde que levassem suacontribuição diária ou semanal a seusproprietários. De dia, eles reuniam-seem cantos, como os de carregadores,aguardando os fregueses eventuais.Há informações de que residiam emquartos alugados, ou conjuntamentecom os libertos, conforme indicam le-vantamentos de revoltosos do iníciodo século XIX, como os efetuados porReis (1986).

Os libertos ou os descendentes deescravos nascidos livres, os mestiçosou negros (crioulos ou africanos), to-dos tinham dificuldades de se inserirnuma sociedade escravocrata. Algunsdedicavam-se ao cultivo de terras emtorno da cidade. Na cidade, elescompetiam diretamente com os escra-vos, seja em atividades de ganho, sejaem pequenas tarefas e empreitadas. Al-guns tinham um pequeno comércio.Uma outra possibilidade era a deengajar-se no serviço militar. O impor-tante é tentar esclarecer onde os liber-tos residiam: o número de agregadosde cor (129 sobre 523 famílias) nas re-sidências da freguesia de São Pedro,em Salvador em 1775, indica a possi-bilidade de viver num sistema clien-telista em plena área urbana (in Costa,1965).

Os movimentos sociais no perío-do colonial foram sobretudo rebeliões:de tropas, pelos atrasos nos pagamen-tos; da população livre, contra a ca-restia de vida; e dos escravos, sobre-tudo africanos, destacando-se oshaussás, majoritariamente islamiza-dos. Apesar de terem causado algu-mas destruições, seu impacto nas ci-dades não foi maior devido a violentarepressão. Outra forma de rebelião eraa fuga, e organização de quilombosem áreas urbanas e rurais. Mas as di-ferenças dificultavam a solidarieda-de entre os escravos, entre mulatos enegros, entre africanos e crioulos emesmo entre escravos e libertos. Oscapitães de mato, responsáveis pelabusca de escravos fugidos eram so-bretudo mulatos.

CONCLUSÃO: O PAPELDOMINANTE DA IGREJAE DO ESTADO

É possível, portanto, trabalharcom conceitos e noções atuais numcontexto de longa duração: os agen-tes tiveram diferentes papéis duranteos quase três séculos do período colo-nial. A Igreja teve um papel importan-te, porém declinante no fim do perío-do, enquanto que o Estado manteveseu papel e mesmo ampliou no finaldo período colonial.

De um modo geral o critério de-fensivo predominou na escolha dosítio para a implantação de Salvador.Apesar dos ataques indígenas, doscorsários e das potências estrangei-ras, Salvador resistiu bravamente.Essa resistência se deve muito à esco-lha de sítio defensivo, ao estabeleci-mento do sistema de fortificações, e auma busca de produtos de exporta-ção que permitissem a cobertura dasdespesas de manutenção da cidade.

Os estabelecimentos religiosos,importantes nas paisagens de Salva-dor, refletiam o papel da Igreja ao lon-go do período e a importância que apopulação dava às questões religio-sas, inclusive deixando parte da he-rança para fins religiosos. Mas, a lo-calização dos estabelecimentos reli-giosos dependia também dos terrenosdoados pelas autoridades ou pelosfiéis. O papel da Igreja tem sido pou-co destacado nos estudos urbanos. Noperíodo colonial, podemos afirmarque seu papel foi determinante naestruturação de Salvador. Em primei-ro lugar, as ordens religiosas tiveram

um papel fundamental, e dentre elasdeve-se destacar a dos jesuítas. Osseus estabelecimentos se localizaramno local de maior prestígio e visibili-dade da cidade. A imponência de seusedifícios confirma a utilização dadaaos mesmos, após a expulsão da or-dem: a sua igreja tornou-se a catedral,e a escola, foi transformada em hospi-tal militar, e posteriormente, em esco-la cirúrgica.

Os prédios das outras grandes or-dens, como a do Carmo, a de São Ben-to, e a de São Francisco, tiveram sualocalização periférica à área central,servindo como pontos de apoio à ex-pansão urbana. Compunham um arcoem torno do centro de Salvador. Suachegada posterior a dos jesuítas, e suanecessidade de amplos terrenos, tan-to para os conventos, como para ascasas de aluguel, levavam a uma lo-calização periférica. Elas chegaram apossuir mais de 400 imóveis em mea-dos do século XVIII.

Quanto a Igreja Secular, o prédiode grande porte da Sé, ficava situadona área central da cidade, ao qual veiose juntar o palácio do arcebispo, en-quanto que as matrizes das paróqui-as, mais modestas, acompanhavam odesenvolvimento dos bairros perifé-ricos ao centro.

As Ordens Leigas, por sua vez,tinham outro tipo de implantação es-pacial. Em primeiro lugar, destaca-sea ordem da Misericórdia, pelo seuprestígio, e pela importância das fun-ções exercidas, sua igreja e prédiosanexos estavam localizados na áreacentral da cidade. As ordens terceirassituavam-se, normalmente, junto aosconventos respectivos, quando osmesmos existiam. Seu impacto foimaior pela propriedade de imóveis nacidade (674 em meados do século XIX,já no período imperial). As demais ir-mandades, disputavam as outras lo-calizações urbanas, cabendo às maisricas as melhores localizações, econsequentemente às mais populares(sobretudo as de homens de cor), umalocalização periférica.

Quanto ao Estado, este teve, na-turalmente, um papel importante emSalvador colonial do ponto de vista

O papelda Igreja temsido poucodestacado

nos estudosurbanos.”

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espacial. O Palácio do Governador, eo do Senado da Câmara, se localiza-vam na área central: na primeira pra-ça construída na cidade alta.

Em relação às fortificações, elasobedeciam a uma lógica própria. Sal-vador tinha um sistema defensivo re-forçado visando a defesa do porto,complementado pelos fortes periféri-cos de grande porte e pelo dique.

Os agentes econômicos tiveramum papel secundário na estruturaçãoda cidade de Salvador, ao contráriodo seu papel dominante nas áreasrurais. Assim, os grandes proprietá-rios rurais tiveram papel indireto, naajuda da construção de prédios reli-giosos e das fortificações, mas seussolares estavam distribuídos no “te-cido” urbano, destacando-se maispelo porte que pela sua localização,não havendo ainda uma segregaçãoresidencial nítida. Os comerciantes (eem escala menor, os artesãos), tiveramum papel mais importante, devido aconsolidação dos arruamentos co-merciais e de ofícios. Mas ambas cate-gorias obedeciam as regulamentaçõesmunicipais.

O restante da população, commenor peso econômico e político queos grandes proprietários e os comer-ciantes, preenchiam os núcleos urba-nos com suas residências, segundosuas possibilidades (quando nãomoravam de aluguel), nos terrenosdisponíveis e obedecendo à regula-mentação municipal. Pode-se afirmarque boa parte da população tinha es-cravos de aluguel como fonte de ren-da no lugar dos imóveis de aluguel,

que pertenciam sobretudo às ordensreligiosas e às irmandades.

Os libertos e escravos de ganhohabitavam nos locais possíveis nointerior da cidade, inclusive de alu-guel, assim como nas primeiras peri-ferias, enquanto que os escravos do-mésticos residiam com seus proprie-tários. Os alojamentos dos escravosnão se destacavam nas partes cons-truídas das cidades, mas eles eram oselementos mais visíveis nos espaçospúblicos das cidades coloniais. Defato, as desigualdades sociais e étni-cas, extremadas no período escrava-gista, eram menos visíveis nas cons-truções urbanas do que no domínioda rua pelas populações de cor.

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... boa parteda população

tinhaescravos de

aluguelcomo fonte de

renda...”

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73RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

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74 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

A PRIVATIZAÇÃO DO WELFARE STATEE O TERCEIRO SETOR

(NOTAS DE LEITURA PARA O PLANEJAMENTO DE UMA NOVA ECONOMIA SOCIAL)

Vitor de Athayde CoutoEspecialista em formulação e análise de políticas

agrícolas pela UNICAMP.

Apresentação

Este artigo tem o objetivo de con-tribuir para o entendimento e a for-mulação de políticas sociais no Bra-sil. O planejamento de uma nova eco-nomia social requer a superação dasdistorções que limitam o processo deexecução-acompanhamento dos pro-gramas e projetos sociais. Apósidentificadas e analisadas as causasde algumas dessas distorções, comen-tam-se alguns cenários que apontamparticularmente para a privatizaçãodo welfare state brasileiro, por ondeemerge e se fortalece o terceiro setor.

Introdução

As políticas sociais, particular-mente o desenvolvimento e ação co-munitárias, são entendidas como par-te da problemática mais geral das po-líticas públicas.

Quais são as causas dos êxitos efracassos da execução das políticassociais? Que lições podem ser tiradasvisando à maior segurança na formu-lação de novas diretrizes políticas,programas e projetos sociais?

Admitindo-se a existência de al-guma racionalidade econômica, po-de-se distinguir projetos produtivos enão-produtivos. Os primeiros, tam-bém conhecidos como projetos econô-micos lucrativos, correspondem aosinvestimentos (reais ou monetários,no caso de reforço de caixa das inicia-tivas já existentes, ou financiamento

da comercialização de mercadorias)alocados em atividades mercantis,orientadas diretamente para a produ-ção, transformação e ou comerciali-zação de bens reais e serviços, atra-vés do emprego direto do trabalho dosseus participantes.

Os segundos, chamados projetossociais - o que não significa excluir olucro -, referem-se a iniciativas não-econômicas, como os serviços de or-ganização, uso de equipamentos co-letivos públicos, principalmente nasáreas de educação, saúde e transpor-tes públicos, além de iniciativas maisrecentes como os programas de ali-mentação, outras formas de subven-ções sociais, direitos dos cidadãos.

Feita essa distinção, identificam-se duas diferentes trajetórias que mo-tivam os participantes dos projetos.Balizando o planejamento, essas ló-gicas, se confirmadas, poderão con-tribuir para se compreender por quealguns projetos sociais são bem suce-didos, outros, não.

A primeira trajetória, racionalista,apóia-se no individualismo, no inte-resse imediato do indivíduo em me-lhorar o seu nível de vida através daacumulação de bens materiais, poderpolítico ou simples reconhecimentosocial local. A segunda apóia-se nogrupo, no coletivo, de acordo com oprincípio da solidariedade e ajudamútua.

Todavia, essas duas trajetóriasandam de par. De um lado, o indiví-duo, enquanto agente racional queprocura satisfazer as suas necessida-

des, é também competidor, competiti-vo; a sua integração no sistema mer-cantil força-o a acumular riqueza,movido pela concorrência. Por vezes,a acumulação de riqueza foge à lógi-ca exclusiva do mercado e passa adepender de políticas públicas, dosfavores do Estado, daí a necessidadedo indivíduo em manter “boas rela-ções” que ultrapassam os limites ma-teriais do seu território. São essas re-lações que sustentam alguma acumu-lação, a exemplo dos fornecedores debens e serviços às prefeituras locais,como materiais de escritório, alimen-tos, serviços de hospedagem, trans-porte em geral, transporte escolar etc.

De outro lado, aquele mesmo in-divíduo tem necessidade de conviverem grupo, no interior da própriacomunidade, onde ele definiu (ou tevedefinida) a sua estratégia de sobrevi-vência. Ele é movido pela necessida-de de segurança, reconhecimento so-cial, relações de vizinhança, parentes-co, enfim, identidade. Ele se identifi-ca com o território-comunidade e, emalguns casos, move-o a necessidadedo poder.

Ressalte-se que a oposição entreeconômico e social, embora inadequa-da em termos conceituais mais rigo-rosos, apenas se justifica para que se-jam formuladas duas hipóteses, comvistas ao planejamento:

a) o sucesso de um projeto produ-tivo explica-se pela gestão competen-te (e competitiva) das atividades, en-quanto negócio privado; e

b) o sucesso de um projeto social

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explica-se pela identificação prévia denecessidades coletivas e pela mobi-lização organizada dos membros dacomunidade em torno de aspiraçõesque podem vir a ser atendidas coleti-vamente (entenda-se esta hipótese poroposição àquela em que as atividadesdo projeto são definidas fora da co-munidade e a participação dos seusmembros se verifica por adesão).

Políticas dedesenvolvimentoda Região Nordeste

No caso particular do Nordeste,grande tem sido o repertório de políti-cas de desenvolvimento. Apesar dassuas transformações ao longo do tem-po, permanecem os mesmos proble-mas estruturais históricos. Os inves-timentos mais significativos não fo-ram capazes de alterar substancial-mente a estrutura social e o quadro depobreza em relação às regiões maisdinâmicas do País.

Inútil refazer diagnósticos e ava-liações de políticas desenvolvimen-tistas dos sucessivos governos, nosúltimos quarenta anos. A leitura des-ses documentos acaba se tornandorepetitiva, pelo menos no que se refe-re a dois aspectos:

a) reproduzem-se os problemasestruturais históricos de exclusão so-cial concomitante ao crescimento deempreendimentos modernos e pós-modernos, com forte pressão sobre osrecursos naturais (indústria mineral,agroindústria, loteamento do litoral,hotelaria e turismo, todos eles volta-dos para um público externo); quadrode pobreza agravado pelos efeitos dassecas; estruturas agrária e de reparti-ção da renda socialmente perversas;analfabetismo, desemprego, desnutri-ção, migrações, desestruturação dasfamílias e, no limite, desesperança;

b) no caso das políticas comuni-tárias, apresentam-se os mesmos pro-blemas de gestão como o distancia-mento entre formuladores e executo-res de políticas e os seus beneficiários;superposições de competências emuita burocracia; peso relativamente

desproporcional entre os interessesburocráticos, corporativos e privadosnas definições e dinâmica de funcio-namento da máquina social do Esta-do; desvios de alvos com pulveriza-ção dos recursos; demoras na aplica-ção destes, inclusive nas conjunturashiperinflacionárias, acarretando per-das financeiras antes mesmo da efeti-va aplicação dos recursos na pontados programas; “prefeiturização”,com ausência de mecanismos de con-trole e avaliação capazes de operarcorreções ágeis, de inibição aos usosclientelísticos ou fraudulentos dosbenefícios; e, finalmente, instabilida-de e descontinuidade dos programas.

Conquanto o chamado problemaNordeste seja uma conseqüência di-reta da opção política e do modelobrasileiro de desenvolvimento (umaaliança de elites setorial e regional-mente localizada), algumas políticassociais compensatórias têm sidoimplementadas por um “welfarestate” em permanente crise de identi-dade – o “mix” histórico.

Políticas sociais no Brasil– um caso particular deWelfare State

Ao analisar as políticas sociais,Draibe (1988 e 1990) privilegia, demodo integrado, as características dosistema brasileiro de proteção social.Nesse contexto, as políticas comuni-tárias não-contributivas são aqui con-sideradas um caso particular do Es-tado de bem-estar social que transitade um modelo meritocrático-particu-larista para o institucional-redistribu-tivista. Este último, pelo menos teori-camente, desenha-se a partir da NovaConstituição de 1988; muito emborao surgimento de novos direitos não setenha feito, necessariamente, acompa-nhar de novos recursos em meio à cri-se de um Estado financeiramente de-

ficitário – pelo menos em relação aosgastos sociais.

O percurso da política social noBrasil, de 1930 para cá, assume for-mas do Welfare State em diferentesconjunturas políticas.

“Por Welfare State estamos enten-dendo, no âmbito do Estado capitalis-ta, uma particular forma de regulaçãosocial que se expressa pela transfor-mação das relações entre o Estado e aeconomia, entre o Estado e a socieda-de, a um dado momento do desenvolvi-mento econômico. Tais transformaçõesse manifestam na emergência de siste-mas nacionais públicos ou estavelmen-te regulados de educação, saúde, pre-vidência social, integração e substitui-ção da renda, assistência social e habi-tação que, a par das políticas de salárioe emprego, regulam direta ou indire-tamente o volume, as taxas e o com-portamento do emprego e do salário daeconomia, afetando, portanto, o nívelde vida da população trabalhadora. Con-cretamente, tratam-se de processosque, uma vez transformada a própriaestrutura do Estado, expressam-se naorganização e produção de bens e ser-viços coletivos, na montagem de esque-mas de transferências sociais, na in-terferência pública sobre a estruturade oportunidades de acesso a bens eserviços públicos e privados e, final-mente, na regulação da produção e dis-tribuição de bens e serviços sociaisprivados.” Draibe (1988)

Algumas ações de políticas públi-cas comunitárias privilegiam, a um sótempo, iniciativas de cunho indivi-dual privado. Juntas, essas ações co-letivas e individuais vão ao encontrodo ideal de cidadania1 . Importa aquiobservar as lentas, embora regulares,alterações na maneira como o Estadointervém com diferentes formas depolíticas sociais, ao sabor da conjun-tura política e econômica. A maisimportante alteração tem sido no sen-tido de se estabelecerem novas rela-ções entre o Estado, o setor privado

1 “É por responder a esse ideal de cidadania que podemos perceber o sentido das políticasde Welfare de garantia de renda mínima (sob forma de cesta básica de bens e serviçossociais garantidos incondicionalmente a todos os cidadãos ou concepções, tais como ado salário mínimo, pensão social, instrução obrigatória gratuita e as recentes experiênci-as de renda mínima garantida) a par de esforços redistributivos em sentido estrito - oimposto progressivo sobre a renda, por exemplo”. Draibe (1990, p. 4)

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lucrativo e o setor privado não-lucra-tivo (identifica-se, aí, uma possívelfronteira entre instituições governa-mentais e não-governamentais) nocampo das políticas sociais.

Embora no Brasil o desenvolvi-mento futuro das políticas sociaisaponte a transição para um modeloinstitucional-redistributivista, estedificilmente deverá consolidar-se en-quanto tal, prevalecendo um novo mixhistórico com um considerável au-mento do peso relativo do terceiro se-tor, de viés privatista2 .

Durante os anos 80, conhecidoscomo década perdida, a política soci-al parece ter sido conturbada, indefi-nida e de resultado pouco significati-vo para o bem-estar da população -exceto no que se refere à abertura po-lítica e às liberdades democráticas.Tanto a crise econômica como as ca-racterísticas dessa etapa histórica con-tribuíram para tal situação. Entretan-to, Martine (1990) argumenta que osavanços e conquistas políticas daque-la década constituem a plataforma so-bre a qual avanços futuros - calcadosna negociação de uma integração ex-plícita da questão social no delinea-mento do estilo de desenvolvimento -poderão ser realizados. Essa perspec-tiva descarta soluções tecnocráticas.

Na sua análise sobre participaçãoe planejamento, Demo (1990) traz devolta a discussão da participação comocondicionante central de uma reorien-tação da política social. A participa-ção sugere uma atuação do Estado noplanejamento, de tal modo a possibili-tar o que se tem chamado de “planeja-mento participativo”. Parte da idéia deque o fracasso atual do planejamento“deve-se, em grande parte, ao fato denão ser participativo, ou seja, é feitopor técnicos distanciados, por vezesprepotentes, que impõem direciona-mentos de cima para baixo.”

As novas políticascomunitárias

Com base nas perspectivas apon-tadas pelos autores acima referidos, éprovável que o Brasil fique num meio-

termo, entre a modernidade e o arcaís-mo, ou seja, “será um País corpora-tivista com zonas de incerteza presen-tes nas relações do Estado com a soci-edade e onde o poder decorrerá do con-trole dessas zonas de incerteza porparte dos grupos e setores sociais me-lhor organizados.” Draibe (1990, p. 2)

Essa perspectiva, de já, antecipauma visão do que poderão vir a ser,no futuro, as políticas sociais polari-zadas: em lugar de se procriarem or-ganizações comunitárias, às centenas,o Estado (via políticas públicas) po-deria atuar seletivamente, através dasorganizações “que deram certo”. Es-tas constituiriam pólos, evitando-seexperiências custosas, e funcionari-am como centrais multi-comunitári-as (uma associação central, uma coo-perativa etc.). Infelizmente, nessecampo de especialização, a experiên-cia acadêmica é relativamente recen-te. As ações sociais do Governo sãoexaminadas por setores ou regiões edificilmente fazem-se referências àpolítica social global.

A intervenção polarizada, acimareferida sob a denominação de multi-comunitária, aponta na direção de umdesenvolvimento descentralizado, nomínimo municipal e auto-sustentado.No limite, não se descarta a hipótesede ampliação das ações multi-munici-palizantes.

A tipologiaDraibe, citando Flora e Heiden-

heimer (1981), admite que a edifica-ção, no Ocidente, do Estado de bem-estar social respondeu basicamente àssimultâneas demandas por maioresigualdade e segurança na economiade mercado, mas as respostas a tais

exigências variaram segundo asespecificidades históricas e políticasdos diferentes países e territórios, as-sim como distintas concepções de jus-tiça e igualdade. Em particular, osci-laram e polarizaram-se segundo adupla e contraditória dimensão doideal de igualdade: igualdade de re-sultados e igualdade de oportunida-des. Contraditoriamente, atender aoideal de igualdade de oportunidadestem o significado de respeitar as dife-renças e, no limite, legitimar a desi-gualdade social. Assim, enfatiza-se omérito.

Exatamente porque são diferentesessas possibilidades, uma tipologia3

tratou de captá-las através daquelesque parecem ser os tipos mais geraisde Welfare State:

A - Residual, segundo esta tipo-logia, é aquele padrão de Welfare noqual a política social intervém ex-post,apenas quando os canais naturais desatisfação das necessidades - o esfor-ço individual, a família, o mercado,as redes comunitárias - mostram-seinsuficientes. A intervenção do Esta-do é de corte seletivo (focalizada so-bre os grupos ou indivíduos vulnerá-veis), deve ter um caráter limitado notempo, e cessar sempre que a situaçãoemergencial houver sido superada.Esse padrão tem sido também chama-do de modelo Liberal de Welfare State.

B - O modelo Meritocrático-Parti-cularista parte também da premissade que cada um deve estar em condi-ções de resolver suas próprias neces-sidades, com base no seu próprio mé-rito, seu trabalho, nas suas diferentese particulares capacidades (profissio-nal, mas, também, de poder político).Reconhece, entretanto, a necessidadeda intervenção da política social para

2 Por terceiro setor, alguns autores têm querido chamar a atenção sobre o crescentepapel, seja do setor informal da economia, seja principalmente das instituições voluntári-as e/ou de solidariedade social, tanto as tradicionais (a família extensa, a comunidadelocal, a Igreja e a filantropia, as associações corporativas etc.) como as modernas - asformas contemporâneas de bairro, de vizinhança, as comunitárias, as ONG (Organiza-ções Não Governamentais) - todas estas formas e redes de solidariedade que se articu-lam, tanto para a demanda, quanto para a distribuição e controle de bens e serviçossociais. Draibe (1990, p. 7)

3 A tipologia aqui utilizada, citada por Draibe, foi elaborada por Ascoli, refazendo a tipologiaclássica de Titmus, exatamente para poder dar conta de uma situação como a italiana,por exemplo, onde os conteúdos particularistas de tipo clientelístico e corporativistaimpõem-se no funcionamento do Estado de bem-estar social.

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corrigir, parcialmente, as grandesdistorções que podem estar sendo ge-radas pelo mercado ou por desigual-dade de oportunidade. O sistemaWelfare, por importante que seja, devetão-somente complementar as institui-ções econômicas e sociais. Na classifi-cação de Esping-Andersen, essa con-cepção configura o padrão Conserva-dor de Estado de bem-estar social.

C - Finalmente, o terceiro modelo- o Institucional-Redistributivista -concebe o sistema Welfare como parteimportante e constitutiva das socie-dades contemporâneas, voltado paraa produção e distribuição de bens eserviços sociais “extramercado”, osquais são garantidos a todo o cida-dão. Apóia-se na premissa de que omercado é incapaz de realizar, por sipróprio, uma alocação tal de recursosque reduza a insegurança e elimine apobreza, atual ou futura. Sublinhemossuas características fundamentais. Emprimeiro lugar, é a condição de cida-dania que está na base dessa concep-ção de política social como um direi-to. Em segundo lugar, para garantirsua exeqüibilidade, os bens e servi-ços sociais básicos tendem a ser pro-duzidos pelo Estado e distribuídosgratuitamente, com base em critériosos mais universalistas. Finalmente,esses sistemas tenderam a definir umpadrão mínimo de renda considera-do o patamar básico de vida digna docidadão. Nas suas operações, essepadrão de Estado de bem-estar tendea mesclar os mecanismos de garantiade renda mínima, integração e substi-tuição da renda (a seguridade social)com aqueles típicos equipamentoscoletivos públicos gratuitos (princi-palmente em saúde e educação) oualtamente subsidiados (habitação).Internamente, concebe mecanismosredistributivos de renda e de recursos.Na classificação de Andersen, esse éo padrão Social-Democrata de WelfareState.

Como os próprios autores reco-nhecem, toda tipologia - embora pos-sa sempre contribuir para a compre-ensão dos fatos, relativamente uns aosoutros - permanece limitada, por-quanto muito esquemática. Restrin-

gem-se as variáveis, prejudicando so-bretudo o conhecimento da transiçãoentre um e outro tipo analisado. Per-dem-se as possibilidades de captar osmix históricos com diferentes combi-nações e pesos relativos do Estado, domercado e, finalmente, do terceiro se-tor. E este último tem sido bem o casodas atuais políticas sociais no Brasil.

Tendência ao ClientelismoNos últimos anos observa-se uma

certa tendência universalizante daspolíticas sociais, inclusive políticasde massa. Mas essa expansão, que severifica a partir dos anos 70, começaa apresentar indícios de esgotamentoe crise – o déficit público, além de pro-blemas concernentes à gestão do sis-tema, principalmente gestão financei-ra. As sucessivas crises cíclicas pro-duziram um movimento de aproxima-ção-afastamento-reaproximação datendência universalizante resultan-do, daí, uma política social bastarda,isto é, fora da tipologia; mais precisa-mente, ela situa-se nos intervalos detransição - o mix histórico. Espera-seainda um crescimento das políticassociais não-contributivas, cada vezmais voltado para um público comrenda familiar de até dois saláriosmínimos. Programas assistenciaisnão-contributivos passam a substituirfundos sociais e dirigem-se a gruposcarentes que já constituem a maioriada população: gestantes, nutrizes,idosos, crianças e menores sem umareferência familiar estável. Esses pro-gramas, quase nunca avaliados, ope-ram de forma descontínua e sem ne-nhuma garantia. Eles passam a cons-tituir não somente um conjunto depráticas assistencialistas e cliente-listas como apontam um caminho pre-cário para outros programas que de-veriam ser contínuos; o grande moti-

vo desse desvio passam a ser as dis-putas eleitorais requeridas pela aber-tura democrática.

Em decorrência, o Welfare Statebrasileiro encontra a sua característi-ca principal no clientelismo, emborasem perder o seu conteúdo corporati-vista (grupos de interesse)4 .

Tendência à privatizaçãoHistoricamente pode-se identifi-

car pelo menos três princípios bási-cos do Welfare State no Brasil, comseus aspectos burocrático-organiza-cionais; padrão de financiamento dogasto social; e a privatização das po-líticas sociais. É o último aspecto, ob-jeto deste artigo, que está (e provavel-mente estará) mais envolvido nas fu-turas discussões. Tendências e até re-comendações de agências internacio-nais confirmam a sua importância.

Existem diferentes formas deprivatização das ações sociais: asONG (Organizações Não-Governa-mentais); as fundações de empresascapitalistas privadas ou estatais; oprincípio do autofinanciamento,quando os usuários pagam pelos ser-viços; a transferência da lógica do cál-culo microeconômico da eficiência(custo-benefício); a abertura de espa-ço para a penetração de interessesprivados no aparelho de Estado; o fi-nanciamento público da distribuiçãoprivada de bens e serviços sociais; asreformas (com diminuição) do Esta-do nos setores sociais (previdência,educação e saúde, em particular), como correlato crescimento do setor pri-vado na oferta desses serviços.

Todavia, um processo privatizan-te não concebe, necessariamente, queas ações sociais se apliquem sem amínima regulação por parte do Esta-do. Por mais precária que ela seja, tra-ta-se da referência de garantia dos

4 “Talvez seja o caráter clientelista aquele que mais fortemente afeta sua dinâmica. E issopor várias e complexas razões. A literatura específica faz constantes referências, nopassado, às relações privilegiadas e de conteúdos corporativistas e clientelísticos. (...)Rompido esse padrão, no pós-64, outras formas de clientelismo se inseriram no sistema,afetando a alocação de recursos, o movimento de expansão e, enfim, tendendo a feudalizar(sob o domínio de grupos, personalidades e/ou cúpulas partidárias) áreas do organismoprevidenciário e principalmente a distribuição de benefícios em períodos eleitorais.” Draibe(1990, p. 11)

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mínimos sociais calcados na dignida-de e nos direitos do cidadão, porquan-to estes valores não são objeto de umaregulação mercantil, sobretudo paraum público excluído do mercado, doponto de vista do emprego, da produ-ção e do consumo de bens e serviços.Nos dias atuais têm-se verificado pro-gressivas transferências da proprie-dade e da gestão das ações sociaispara o setor privado. O grande desa-fio será a construção de um Estadoforte, mas não autoritário, capaz deregulamentar, sem burocratismo, edelegar à sociedade os meios e a or-ganização das ações sociais.

Algumas causas do maudesempenho dosprogramas

As transformações experimenta-das, acima referidas, no sentido da ten-dência à privatização das políticassociais no Brasil respondem a diver-sas razões. Dentre estas, algumas ape-nas acompanham e, ao mesmo tempo,refletem as mudanças ocorridas noplano internacional, na esteira do pro-cesso de mundialização. Outras são denatureza interna. Quais seriam, então,as suas causas principais?

A rigor, torna-se difícil encontrarrepostas seguras, porquanto as políti-cas públicas comunitárias que se apli-cam no Brasil não são dotadas de umaprática de acompanhamento e avalia-ção eficazes e regulares. No entanto,certos efeitos têm sido inegáveis, todoseles decorrentes do burocratismo. Paralá do consenso que existe a respeito daineficiência dos programas sociais emgeral, o Banco Mundial aponta trêsrazões básicas que explicam os mausresultados alcançados.

Em primeiro lugar, está o fato deque a prestação de serviços geral-mente é feita num ambiente marca-do, essencialmente, pela falta de con-corrência.

A segunda razão decorre de queos agentes encarregados de assegu-rar aqueles serviços raramente dis-põem de autonomia de gestão e do fi-nanciamento compatível para fazer

valer o seu trabalho. Impõem-se-lhescom freqüência objetivos incondizen-tes com aquilo que deveria ser a suamissão primordial - oferecer, de ma-neira eficaz, serviços de alta qualida-de. Por exemplo, exige-se dos poderespúblicos um serviço por um preçoabaixo do custo - o que ocorre freqüen-temente no caso em que os agentes nãosão autorizados a levar em conta ainflação.

A terceira e última grande razão éque os efetivos e potenciais usuáriasdos recursos não têm tido a mínimacondição de se manifestarem a respei-to do que eles realmente querem.

Tomadas separadamente, cadauma daquelas razões é importante.Juntas, elas contêm toda a forçaexplicativa para resultados tão decep-cionantes. Agentes privados concor-rentes, assim como os próprios usuá-rios, bem que poderiam ter feito me-lhor no sentido de aperfeiçoar os ser-viços. Mas eles foram impedidos. “Re-servando todos os papéis - proprie-dade, regulamentação e execução - oEstado não conseguiu assegurar umamelhor prestação de serviços.” BIRD(1994, p. 7)

No plano interno, as principaiscausas do mau desempenho das po-líticas públicas comunitárias tambémnão se afastam do burocratismo doEstado. Por que os programas sociaissão ineficientes? As causas a seguirapresentadas muitas vezes são doconhecimento dos próprios técnicosque formulam os programas e proje-tos sociais:

- superposições de competências,agências, clientela-alvo (público-meta), objetivos, mecanismos opera-dores etc.;

- desvios de alvos que tendem abeneficiar as camadas menos neces-sitadas da população (por exemplo,os projetos produtivos definidos ar-tificialmente ou mesmo sem um cor-reto e adequado estudo de mercado eque beneficiam exclusivamente osagentes mais dinâmicos da comuni-dade, sem que se produzam efeitosmultiplicadores para além das insti-tuições conveniadas);

- pulverização dos recursos;

- demoras na aplicação dos recur-sos resultando em grandes perdas,antes de sua efetiva aplicação na pon-ta dos programas, principalmente emconjunturas de inflação elevada;

- distanciamento entre formula-dores e executores de políticas e osseus beneficiárias;

- ausência de mecanismos de con-trole e avaliação, de possibilidade decorreções ágeis, de inibição aos usosclientelísticos ou fraudulentos dosbenefícios;

- instabilidade e descontinuidadedos programas, principalmente aque-les que contemplam “novas experiên-cias”;

Para concluir a respeito das cau-sas que explicam o mau desempenhodos programas, existe ainda uma úl-tima causa a considerar que é o pesorelativamente desproporcional entreos interesses burocráticos, corpora-tivos e privados nas definições e di-nâmica de funcionamento da máqui-na social do Estado.

A democratizaçãocomo indutora dastransformações

O processo de abertura política,sob o impacto da crise econômica noinício dos anos 80, encoraja iniciati-vas bastante diversificadas de reorde-namento de algumas áreas e subáreasda ação social, principalmente de go-vernos estaduais e municipais.

Logo no início da transição demo-crática, com o advento da Nova Re-pública, o biênio 1985/86 experimen-ta uma substancial alteração do per-fil da proteção social no País, emboracom resultados pouco significativos.

Mais para o final da década, aConstituição de 1988 amplia e consa-gra novos direitos sociais e, em decor-rência, novos princípios de organiza-ção de política social. Pelo menos noque concerne ao debate e ao novo en-tendimento daqueles direitos e prin-cípios, houve uma transformação domodelo anterior de Estado de bem-es-tar no Brasil.

O reforço das ações estaduais e

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municipais não foi mais do que umareação aos efeitos desastrosos da cen-tralização excessiva, herdada dos go-vernos militares. A fragmentação esuperposição de programas e cliente-las era imposta, inclusive para aten-der a pressões e demandas sociaisexperimentadas nos anos 1983 e 1984- auge da crise econômica e financei-ra, coadjuvada pelo desemprego epela omissão do Governo Federal.Alguns governos estaduais,

“principalmente de oposição, começama pôr em prática algumas medidas nocampo social na sua grande maioriamarcadas pelas seguintes característi-cas: busca de alternativas de baixo cus-to; concepções descentralizadas de de-cisão e gestão de programas sociais; ele-vação do grau de participação popular,inclusive na produção de bens e servi-ços sociais (mutirões e ajuda-mútua,por exemplo); e, finalmente, tentativasde integração de ações sociais face a cli-entelas específicas (menores, favelados,desempregados etc.). Por mais tímidas,reativas, parciais e fragmentadas queforam, tais iniciativas tiveram, entre-tanto, o mérito de indicar alguns cami-nhos alternativos que estavam sendobuscados pelos movimentos pró-demo-cratização das políticas sociais - rumosque duraram até o período constituin-te”. Draibe (1990, p. 26)

Os movimentos que se seguiram,no sentido de se reformularem as po-líticas sociais no Brasil, obedeceramaos seguintes princípios:

- descentralização, com sua fortevertente de municipalização e, even-tualmente, de prefeiturização;

- integração dos serviços e benefí-cios sociais face a clientelas dadas;

- participação popular nos pro-cessos de decisão, implementação econtrole dos programas sociais; e, fi-nalmente,

- uma concepção alternativa deproduzir, organizar e distribuir bense serviços sociais.

A via “alternativa” surgiu comoreação ao burocratismo e institucio-nalização excessivos da ação estatal.Buscar relações custo-benefício me-lhores que as vigentes (isto é, maisbaratas) era outro imperativo, como

também fazia-se necessário incorpo-rar associações comunitárias na dis-tribuição e operação dos serviços,dentre outras iniciativas.

Existe, ainda, um último aspectoa considerar nesta reconstituição deestratégias que, pelo menos em ter-mos do discurso, esteve sempre pre-sente nos documentos oficiais: a tesede que fossem retiradas, “de vez, parasempre, as políticas sociais, no mun-do do assistencialismo, da tutela emanipulação, do clientelismo e doarbítrio, afirmando a concepção dedireito social da cidadania aos bene-fícios e serviços sociais públicos.”Draibe (1990, p. 28).

A Constituição de 1988A crise econômica dos anos 80 é

provocada sobretudo pela crise dadívida: alta dos juros no mercado in-ternacional, elevação das dívidas ex-terna, interna, déficit público e infla-ção, transição programada para a ter-ceira revolução industrial, formaçãodos macro-blocos com suas conseqü-ências protecionistas. Internamente, acrise tem a cara da degradação social.Com a nova Constituição, onde se dis-cute abertamente a questão dos pata-mares mínimos sociais, encerrou-seuma década rica de novos direitos,embora pobre de novos recursos.

É inegável o grande avanço que aNova Constituição proporciona aomodelo brasileiro de proteção social.Tudo indica que o avanço se dá a par-tir de um modelo meritocrático-parti-cularista em direção ao modelo insti-tucional-redistributivista, o qual re-presenta uma forma mais univer-salista e igualitária de organização daproteção social no Brasil.

Além da universalização do aces-so a certos serviços; da extensão denovos direitos a novas categorias so-ciais; e do maior comprometimento doEstado e da sociedade no financia-mento de todo o sistema de políticassociais; convém destacar, por interes-sar mais de perto aos objetivos do pre-sente trabalho, que:

- do ponto de vista da sua organi-zação, o sistema deverá se orientarainda mais no sentido da municipa-lização das ações de assistência social;

- torna-se cada vez mais impera-tiva a participação da população naformulação e implementação das po-líticas; e

- naquilo que se refere aos benefí-cios da Previdência Social, merecedestaque a igualização entre trabalha-dores urbanos e rurais, passo maisimportante na correção das desigual-dades do modelo anterior.

Inaugura-se, também, no mode-lo institucional-redistributivista, aprática da edificação de importantesequipamentos coletivos públicos egratuitos, basicamente nas áreas deassistência social, educação e saúde.

CenáriosA prevalecer o mix histórico - que

aproxima o Estado de bem-estarmeritocrático-particularista de umtipo bastardo institucional-redistri-butivista, as ações sociais poderão terdois caminhos. No primeiro deles, oEstado transfere à sociedade a pro-priedade e a gestão das ações, res-tringindo-se apenas à sua regula-mentação (hipótese do Banco Mun-dial). No segundo, existem aindaduas possibilidades: a) o Estado re-gulamenta e, em seguida, contratajunto ao setor privado as encomen-das de bens e serviços, porém semabrir mão da gestão (leia-se: distri-buição dos bens e serviços); e b) oEstado não só regulamenta e distri-bui como também organiza - e atéexecuta - a produção daqueles bense serviços, o que irá exigir maior re-crutamento e contratação de funcio-nários. Esta última providência, em-bora historicamente defasada, nosdias atuais, tem o mérito de compen-sar parte do desemprego provocadopela reestruturação por que passamas economias mundiais industriali-zadas e capitalistas emergentes.

Metodologicamente, a tendênciageral não só oferece um balizamento,como também maior segurança ao

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planejamento de uma economia so-cial brasileira (ou mix histórico), hajavista, por exemplo, o recente cresci-mento do Não-Estado nas políticassociais5 .

Além disso, as transformaçõesrecentes experimentadas pelo welfarebrasileiro confirmam-se através deuma grande parceria em que o Estadoencomenda à sociedade, não só a pro-dução, como também novas formas dedistribuição dos serviços sociais pri-vados, inclusive no interior das pró-prias políticas sociais. Não se podenegar a proliferação - envolvendo osetor privado lucrativo e não-lucrati-vo - de um vasto repertório de tickets,cupons, transferências em dinheiro,vale-transporte, vale-gás, selo do lei-te, subvenções às associações filantró-picas, bolsas... todos eles são exem-plos de tendências privatizantes, po-rém, cumprindo objetivos heterodo-xos. Outra tendência é a de garantiruma renda mínima, um salário soci-al, a idéia de mínimos sociais... tudoisso aponta uma tendência geral deaproximação do padrão universa-lista, com reforçado papel regula-mentador do Estado.

No plano mundial, o capital pas-sou a orientar-se maciçamente em di-reção aos países ricos em novo ciclode reconcentração. “Ao mudar derumo no mundo, o capital, de novo,passou a mudar o próprio rumo domundo.” Souza (1989 p. 260)

Brum (1991, p. 44) sintetiza vári-os fatores que contribuem para favo-recer e estimular a nova estratégia dereconcentração do capital. Graças anovas conquistas científicas, tecnoló-gicas, o capital já não precisa maisdas matérias-primas e da mão-de-obra baratas dos países do TerceiroMundo. Novos materiais foram inven-

tados, a informática e as biotecnolo-gias expandem-se com extraordináriavelocidade. A automação e a robotiza-ção chegam a novos setores e ativida-des. Além de conhecer e transformara natureza, aprendeu-se também acriá-la e recriá-la. A apropriação des-sas novas conquistas e o controle de-las e do seu uso estão nas mãos docapital; e a seu serviço privilegiado.A partir delas, é possível controlar omundo nas próximas décadas.

Por outro lado, o trabalho huma-no direto teve a sua importância redu-zida e vai sendo substituído. Perma-nece nas áreas atrasadas, que perdemem competitividade. Em conseqüência,no mundo da economia moderna,cada vez mais o homem vai deixandode ser olhado como trabalhador ouprodutor - as máquinas fazem mais emelhor, com menor margem de erro eaté sem reclamar. Nesse novo mundoeconômico, o homem passa a ser vistosob uma nova ótica - menos produtore mais consumidor, embora o grandeconsumo venha se tornando progres-sivamente consumo de empresas e en-tre empresas. Todavia, os consumido-res e firmas mais eficientes estão nomundo rico. Para o capital realizar-semelhor agora é importante reduzir otempo entre a produção e o consumo.Daí as novas formas de solidariedadenas políticas sociais. Formas de ocu-pação do trabalho liberado pela novaordem econômica, inclusive nas eco-nomias capitalistas emergentes e in-dustrializadas, como é o caso do Bra-sil. Menos trabalho, maior excedenteda produção. Conseqüência: prolife-ram associações voluntárias, ONG,redes assistenciais e de solidariedade,tudo isso para ocupar o tempo livredas pessoas, inclusive com formaçãode níveis médio e superior.

O terceiro setor“Nesta definição mais ampla, o se-

tor privado pode estar sendo concebi-do em sentido muito mais geral do queaquele que o iguala tão-somente ao se-tor privado lucrativo. Entendido comoo Não-Estado, poderia estar significan-do, por exemplo, atividades informais,domésticas ou pessoais, associaçõesvoluntárias, cooperativas ou corpora-ções privadas não-lucrativas, organi-zações não-governamentais etc. (istoé, todo o setor privado não-mercantil,o terceiro setor, para alguns, ou os seg-mentos autônomos da sociedade, paraoutros).” Draibe (1990, p. 43)

Existem argumentos que defen-dem o terceiro setor, entre eles, o seucaráter privatizante e o reforço dascomunidades via integração de orga-nizações não-lucrativas nas políticassociais. Não se pode negar o papeldominante, na crise atual, das trans-formações tecnológicas com profun-das alterações no mundo do trabalho.A redundância do trabalho, princi-palmente na periferia do mundo ca-pitalista manifesta-se em desempre-go e pobreza. Ora, é exatamente o es-paço do trabalho com objetivo econô-mico que se vem encurtando; ou seja,um volume crescente de trabalho comobjetivo econômico torna-se cada vezmais desnecessário, ampliando teori-camente o espaço para as outras for-mas do trabalho social (o trabalhodoméstico e o trabalho para si). Con-cordando com Draibe, Gorz confirmaesse cenário ao admitir que, pela pri-meira vez na história moderna, o tra-balho pago pode cessar de ocupar olugar mais importante do tempo soci-al e da vida dos indivíduos6 .

Eis que cresce esse terceiro se-tor, sinalizando uma alternativa - ain-da que parcial - às transformaçõesdo mundo do trabalho, cumprindopapel de empregador antes reserva-do ao Estado. Surge até a possibili-dade da passagem de um modelocorporativo, de funcionários públi-cos, para um modelo terceirizado,prestador de serviços temporários(surgirá uma nova categoria social?),o qual passará a exigir maior flexibi-lização do trabalho. Desenvolve-se

5 “As assim chamadas formas alternativas - os mutirões e autoconstrução, as diversasexperiências de ajuda-mútua, práticas comunitárias e de vizinhança (na guarda de crian-ças, no setor de alimentação, na coleta e processamento do lixo) - estes são, no Brasil,exemplos que se multiplicam e que correspondem a tantos outros, verificados em todo omundo, de participação dos próprios beneficiárias e de envolvimento de associaçõesvoluntárias e de redes de ONG - Organização Não-Governamentais - no encaminhamen-to das políticas sociais.” Draibe (1990, p. 36)

6 “Quando a economia demanda menos e menos trabalho e, para um volume de produçãocrescente, distribui menos e menos salários, o poder de compra dos cidadãos e seudireito a uma renda não podem mais depender da quantidade de trabalho que eles reali-zam.” Gorz (1988, p. 19)

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aí mais um novo espaço para as polí-ticas sociais: empregar o tempo libe-rado. Na verdade, parte desse tempojá vem sendo ocupada pela socieda-de sob as novas formas de solidarie-dade. É esse tempo livre que faz proli-ferar as associações voluntárias,ONG, redes assistenciais e de solida-riedade, ajuda mútua, cuidados e aten-ção com crianças e idosos que se vêmdesenvolvendo nas cidades, nos mu-nicípios, nas vizinhanças...

Aí já não operam automatismos,pois a questão essencial é e será sem-pre política. Não basta privatizarem-se as políticas sociais para que elassejam justas ou igualitárias. A priva-tização se faz seletivamente, privile-giando os setores mais lucrativos, so-bretudo aqueles orientados para ascamadas médias contributivas da so-ciedade (ensino particular convenia-do, planos de saúde, tickets-refeição,previdência complementar etc.). Emdecorrência, os cenários distintos se-rão desenhados de acordo com as ori-entações políticas que lhes forem im-pressas: liberais, conservadoras, so-cial-democratas ou socialistas7 .

Para os próximos anos, a OCDEprevê uma progressão moderada docrescimento econômico com prosse-guimento do desemprego que deverácontinuar sendo o problema mais gra-ve. Soma-se a isto o crescimento dadívida pública, agravado pelos défi-cits orçamentários dos organismosque executam políticas sociais. O Ban-co Mundial, por sua vez, apresentaresultados pouco animadores nosseus programas de desenvolvimentoe localiza a causa do problema na açãodos poderes públicos, principalmen-te: falta de manutenção dos equipa-mentos coletivos de infra-estrutura,alocação inadequada dos investimen-

tos, descaso em relação às reais ne-cessidades dos usuários e incompe-tência de ordem técnica.

Todos esses problemas tornam-seum grande desafio para os planejado-res de políticas sociais - desafios quevêm agravar ainda mais a diferençaentre a demanda de serviços (que au-menta) e os recursos (que se tornamcada vez mais escassos). Assim, pro-jetam-se as seguintes opções para ofuturo: a) estender os princípios dagestão comercial aos prestadores deserviços; b) ampliar o campo da con-corrência; e c) promover maior parti-cipação dos usuários, desde que asregras do jogo e da gestão comercialbem como da concorrência não pos-sam ser aplicadas integralmente. Es-sas opções vêm confirmar a atual ten-dência verificada nas políticas soci-ais do Brasil quando se amplia a par-ticipação do “terceiro setor”. Essa ten-dência, finalmente, é compatível como atual movimento de liberação dotempo de trabalho.

Eis aí algumas das característicasgerais que devem ser entendidas, nes-ta leitura, como um quadro referencialsem o qual não se compreenderiamas recentes transformações na imple-mentação das políticas sociais e o re-forço das novas formas de coopera-ção e solidariedade. Em outras pala-vras, opera-se um processo de privati-zação do Welfare State Brasileiro.

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7 “Na ausência de reformas institucionais de monta e face às inevitáveis restrições finan-ceiras com que há de se enfrentar o Estado nos três níveis da Federação, a políticasocial (conservadora) cada vez mais passa a ser concebida, em primeiro lugar, comoresponsabilidade de uma teórica “comunidade” que, sem recursos adequados, pode, nomáximo, impulsionar programas assistencialistas junto aos pobres, num quadro de cres-cente privatização, principalmente junto à classe média, dos esquemas de proteçãosocial. A política social (conservadora) ganha, então, perfil cada vez mais seletivo eresidual, voltada crescentemente para os “grupos de risco”, individualizados, aos quaisse distribui arbitrária e descontinuamente dinheiro e benefícios in natura, fragilizando-seenquanto política que, cada vez menos, se assenta sobre direitos sociais claramentedefinidos e universalmente respeitados.” Draibe (1990, p. 60)

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Números anteriores:

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A sociedade escravista daBahia, embora pouco estudada ain-da, já conta com alguns trabalhos quepermitem formularem-se algumasanotações de grande utilidade para oentendimento das suas especifici-dades. O principal trabalho, nestesentido, remonta ao próprio séculoXVIII. Trata-se dos textos produzidospor Vilhena em cartas que escreveu,1

dirigidas à Majestade Imperial Portu-guesa, ao que parece não por enco-menda desta, mas por decisão pró-pria, na qualidade de estudioso e ob-servador da realidade social contem-porânea à Bahia de fins de séculoXVIII e começo de século XIX .

Além das cartas de Villhena, háalguns outros textos, produzidos porcontemporâneos. É o caso dos relatosde viajantes estrangeiros, que aquiestiveram no começo do século XIX,nos quais se podem colher informa-ções e observações que, embora decaráter essencialmente subjetivo, con-tribuem para o estudioso de hoje ten-tar reconstruir a complexa realidadedaquela sociedade, a sociedade escra-vista da Bahia.2

Outra categoria de estudos são asinvestigações de natureza acadêmica.Além de se utilizarem dos preciososinformes contidos nos documentos deépoca produzidos por contemporâne-os, como atrás foi referido, lançam mãode fontes documentais originais dediversa natureza, entre as quais se des-tacam os inventários “post-mortem”.3

Há determinados aspectos da

PARTICULARIDADES DA SOCIEDADEESCRAVISTA DA BAHIA: UMA LEITURA

DE JOSÉ DA SILVA LISBOA

José Alberto Bandeira RamosDoutor em História Econômica pela USP.

vida social e política da sociedadeescravista da Bahia que podem serreconstruídos, utilizando-se comofonte um documento de época, da la-vra de José da Silva Lisboa, o Viscon-de de Cairu. Nascido na Bahia em1756 e falecido no Rio de Janeiro em

1835, José da Silva Lisboa estudou naUniversidade de Coimbra, onde cur-sou Medicina e Filosofia, e foi depoisprofessor naquela Universidade, re-gressando mais tarde à Bahia, ondeexerceu funções públicas como jorna-lista e político. Foi um intelectual com

1 Luis dos Santos Vilhena, A Bahia no século XVIII. Salvador, Itapuã, 1969, 2 v.2 Entre os principais relatos de viagem ou de estrangeiros que aqui residiram por certos

períodos, devem ser citados: João Maurício Rugendas, Viagem pitoresca através doBrasil, Martins, 6. Ed. 1967; Maria Graham, Diário de uma viagem ao Brasil, ediçãoatualizada, Edusp/Itatiaia, 1990; L. F. de Tollenare, “Notas dominicaes”, Revista do InstitutoGeográfico e Histórico da Bahia, v.33, T. Lindley, Narrativa de uma Viagem ao Brasil,edição atualizada, Nacional, 1969. Outro texto de inestimável valor para um estudo dasociedade baiana do período aqui focalizado é representado por um conjunto de notas,de autor desconhecido, que tem um inusitado título: Discurso preliminar, histórico, introdutivo,com natureza de descrição econômica, da Comarca e Cidade de Salvador...”. Tal conjuntode textos foi objeto de publicação organizada por Pinto de Aguiar, e por ele prefaciada,sob o título Aspectos da economia colonial, Progresso, 1957. Além disso, cabe citar aquia carta do advogado da Bahia, José da Silva Lisboa, futuro visconde de Cairu, dirigida aoDr. Domingos Vandelli, diretor do Real Jardim Botânico de Lisboa, datada de Salvador em18 de outubro de 1781, cuja íntegra foi publicada nos Anais da Biblioteca Nacional, v. 32,1910. Embora citado como fonte por diversos estudiosos, tal documento, todavia, parecenão haver sido explorado ainda em toda a sua riqueza.

3 Entre os principais estudos desta natureza devem ser citados os seguintes: os trabalhospublicados por Katia de Queiróz Mattoso, especialmente seu artigo Os escravos na Bahiano alvorecer do século XIX: estudo de um grupo social, Revista de História, n.97, USP, 1974,e sua tese de doutorado, defendida na França, e publicada no Brasil em livro intitulado Bahiaséculo XIX: uma província no Império, Nova Fronteira, 1992; Thales de Azevedo, Povoamen-to da Cidade de Salvador, Itapuã, 1969, especialmente seu capítulo sobre Os Censos doSéculo XVIII; João José Reis, com diversos trabalhos, devendo citar-se, para os fins dapresente análise, os seguintes: Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês,Brasiliense, 2. Ed. 1987, capítulo 1, e o artigo intitulado População e Rebelião: notas sobrepopulação escrava na Bahia na Primeira Metade do Século XIX”, Revista de Ciências Huma-nas, UFBa, número 1, v.1, 1980; os trabalhos do brasilianista Stuart Schwartz, no caso, suapesquisa de doutoramento publicada originalmente por Cambridge Universty Press, 1985,traduzida para o português sob o título de Segredos internos: engenhos e escravos nasociedade colonial, Companhia das Letras, em co-edição com CNPq, 1988, e seu artigointitulado “Padrões de propriedade de escravos nas Américas: nova evidência para oBrasil”, Estudos Econômicos, Instituto de Pesquisa Econômica da USP, v.1, n. 13, jan/abr,1983(a matéria deste artigo vai tratada no capítulo 16 do livro citado); a tese de doutoramento,também defendida na França, e ainda não publicada, de Maria Inês Côrtes de Oliveira,intitulada Retrouver une identité: jeux sociaux des africains de Bahia: (vers 1750 – vers1890), Université de Paris-Sorbonne IV, 1992, e seu livro O liberto: o seu mundo e os outros(Salvador, 1790-1890), Corrupio, 1988.

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formação em economia política, res-ponsável pela primeira obra editadaem português na qual se fazia a defe-sa do liberalismo econômico. Era umapologista de Adam Smith e, ao queconsta, teria sido o inspirador da de-cisão do príncipe regente portuguêsque abriu os portos brasileiros ao co-mércio internacional, em 1808. Foideputado à Constituinte de 1823, tor-nando-se Barão em 1825 e Viscondeem 1826, chegando a senador do Im-pério na ocasião em que D. Pedro I, jáImperador do Brasil, organizou a Câ-mara Vitalícia, também em 1826. Tra-ta-se, assim, de um intelectual de am-pla visão para a época em que viveu,ao corrente do pensamento mais avan-çado entre os estratos dominantes, oque lhe permitiu uma visão crítica dosaspectos mais marcantemente retró-grados da sociedade escravista bai-ana. Visão, todavia, insuspeita quan-to a qualquer laivo de postura anties-cravista radical ou mesmo aboli-cionista.

Em uma longa carta dirigida aDomingos Vandelli, Diretor do RealJardim Botânico de Lisboa, datada de1781,4 ele procede a uma descriçãominuciosa da vida econômica e soci-al da Bahia, inclusive dos aspectos desua estrutura institucional. Os comen-tários desenvolvidos a seguir partemdo entendimento de que tal documen-to ainda não foi amplamente explora-do pela historiografia e que, por isto,a análise detida de alguns elementosde seu texto pode vir a ser útil à com-preensão de importantes particulari-dades da sociedade escravista daBahia.

Descrevendo a estrutura básicada corporação militar de então – es-trutura que foi fundamentalmentemantida após o período da Indepen-dência, nos primórdios do governoprovincial – José da Silva Lisboa fazmenção à existência de três “regimen-tos pagos”, tendo cada um setecentoshomens, e que, além desses, haviamais dois regimentos, um constituí-do de mulatos forros e outro de “pre-tos crioulos”, igualmente libertos. Re-fere-se, ainda, à existência de maisdois, um chamado dos “úteis”, que

ele identifica com o “pomposo nomede regimento da nobreza”. E aindaoutro, que seria composto dos que ti-nham “o privilégio e o nome de “fa-miliares do Santo Ofício”. Distinguetais regimentos de mais dois, destina-dos a fazer “a milícia da cidade”: umque é chamado de “dos auxiliares” eoutro “das ordenanças”.

É importante registrar a informa-ção do missivista de que os três “regi-mentos pagos” seriam bem discipli-nados e cumpriam com ligeireza asmanobras que se lhes solicitavam.Mas, assim mesmo, assinala que osseus comandantes não seriam bemversados em tática militar, como seriade exigir-se do que qualifica de “mes-tres de guerra”. E que todos os de-mais regimentos, com exceção paraaquele dos “mulatos”, estavam numa“desordem extrema”. E acrescenta,em tom de ironia, referindo-se ao con-junto dos regimentos, que “se se cos-tumasse vencer inimigos com a rique-za luzida dos uniformes, não haveriano mundo tropa mais respeitável nemmais invencível”. E por aí prossegue,desancando, em estilo vigoroso, o quecaracteriza como uma estrutura vol-tada, fundamentalmente, para a os-tentação e o abuso do privilégio.Registra ele o contraste entre o brilhodas indumentárias com o que declaraser o “grito da necessidade, mizeria econsternação publica”, vergastandoo fato de que se obrigava os milicianosa fazer à sua custa “fardas carrega-das de galão fino d’oiro, mesmo nocaso do regimento de mulatos e ne-gros” que, como ele adverte, era “com-posto de gente que não tinha pão paracomer e que servião gratuitamentepara a defeza do paiz”. E arrematasua crítica assinalando que mesmoum chefe de regimento em Portugal...“não se aprezenta tão luzido em ga-lões, como hum alferes qualquer dos

ditos regimentos”.Toda esta visão crítica de nos-

so missivista – preocupado que esta-va com a modernização da sociedade– serve ao estudioso de hoje para oaperceber-se de um traço característi-co da sociedade escravista da Bahiae, especialmente, do aparelho de Es-tado que lhe dava sustentação, com seucaráter marcadamente parasitário.

Este aspecto constituía-se nacontraface de uma outra característi-ca dessa sociedade, que tanto IstvánJanksó quanto Carlos Guilherme Motaconceituam acertadamente comoestamentária5 e que a diferencia daforma clássica das sociedades esta-mentárias, como por exemplo, as daEuropa feudal absolutista. Trata-se dainteressante circunstância de que acondição de proprietário de terras ede escravos, como a detinham os se-nhores de engenho, não era suficien-te, por si só, para assegurar que se oenquadrassem à conta de pertencen-te à “nobreza”. Para isto, constituía-se requisito indispensável o exercíciopomposo e continuado de um consu-mo ostentatório, baseado em festas desalão e distribuição de honrarias efavores a uma série de pessoas quefuncionavam como clientes de taispotentados.

É preciso, ainda, insistir-se na cons-tatação de que as longas descrições,contidas na carta do ilustre advogadoJosé da Silva Lisboa, contém elemen-tos que em sua essência confirmam oque as análises refinadas de Schwartzpontuam a respeito da estrutura com-plexa de relações existentes então en-tre os senhores de engenho e algumasmodalidades de lavradores que lhescompletavam a economia do arranjoagroindustrial estruturado em tornodos principais engenhos. É também oque já constatou Vera Ferlini em seuestudo aqui referido.6

4 José da Silva Lisboa, op. cit.5 Istvan Jancsó, Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São

Paulo, Hucitec/Edufba, 1996; Carlos Guilherme Mota, Nordeste,1817: estrururas e argu-mentos. São Paulo, Perspectiva/Editora da USP,1972.

6 Schwartz, S. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. SãoPaulo, Companhia das Letras, 1988, principalmente os capítulos 9, 10, 11 e 12. VeraFerlini, Terra, trabalho e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste colonial. São Paulo,Brasiliense, 1988, especialmente o capítulo 5.

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O trecho que a seguir se transcre-ve é, neste sentido, lapidar para in-formar de maneira compacta o essen-cial desta teia de relações da qual, poroutro lado, se infere a confirmação dasanálises de Schwartz, especificamen-te quanto ao que identificou como opadrão típico de escala dos engenhosbaianos, em comparação com o pa-drão predominante no Caribe, espe-cialmente na Jamaica.7 Descobriu eleque o padrão baiano difere do jamai-cano quanto à escala, pois, na Bahia– conforme apurou a partir do examedetalhado dos dados resultantes decenso econômico realizado no Recôn-cavo açucareiro de 1816/1817, a man-do do Conde dos Arcos, governadorda Bahia de então – o tamanho modaldos engenhos situava-se no intervaloentre cinqüenta e cem escravos, com-ponentes da força produtiva destes.Exclui-se daí o componente da escra-varia não aplicada às atividades pro-dutivas diretamente, fato que, por suavez, evidencia faceta importante docaráter parasitário da estrutura escra-vista colonial, em que havia pouco es-paço para aumentos de produtivida-de baseados em investimentos nas for-ças produtivas, conforme já assinala-do por Gorender em seu estudo catego-rial sobre as leis inerentes ao que de-nomina de escravismo colonial.8

Neste sentido, deve-se dar a pala-vra diretamente a José da Silva Lisboa:

Hum proprietario, que tem cin-quenta escravos de trabalho constantee regular pode ter sem dificuldade cemtarefas de canna, que segundo o cal-culo feito podem render5:700$000 rs.Verdade he que éste rendimento nãohe liquido, e que delle se deveria dedu-zir o valor da sustentação dos escra-vos, doenças, mortes, vestidos, restabe-lecimento da fabrica, salarios de feito-res, que administrão a lavoira; mestrede assucar, caixeiros de engenhos, etc.Comtudo esta despeza toda he bemcompensada pelas meações de assucare melaços, que recebem os senhores deengenho de seus lavradores, que levãoa sua canna para se moer no engenho.Meações estas que lhes augmenta infi-nitamente o rendimento anual. Porisso os senhores de engenho procurãoter agregados a si quantos lavradoresmais possão ter. Há 3 sortes de lavra-

dores, huns proprietarios de sua ter-ra, que lhes he livre moer as suascannas no engenho, que mais quize-rem, no que fazem muito favor aos se-nhores de engenho; outros proprietá-rios, mas cujas terras tem a servidãode serem obrigados os lavradores demoerem a sua canna em certo engenhoe não em outro, podendo por justiçaserem a isto constrangidos. Outros fi-nalmente, que lavrão terras dos senho-res de engenho, pagando-lhes fôro. Estedois últimos estão na absoluta depen-dência do senhor de engenho, que con-forme os seus caprichos os tem emhuma oppressão servil. Ao senhor deengenho pertence determinar-lhes aocasião da moagem, a qual se he tardiacauza aos laradores prejuizos irrepa-ráveis, porque passado o tempo preci-so do córte a canna deita frexa, os seussuccos com a força do calor se dissipão.

Nosso missivista esclarece a se-guir que, apesar de o sistema demeação aqui referido deixar os lavra-dores tributários aos senhores de en-genho, ainda assim permite aos lavra-dores médios dessa categoria obterem

grande lucro na sua cultura, porqueas suas despezas se reduzem à susten-tação dos escravos e seu vestiario emorte dos mesmos; precisão de infini-tamente menos fundo, para a empre-henderem, nem tem que supprir adispendiosa fabrica do engenho, quetodos os annos preciza de reparação deferros, cobre, madeira, quantidade debois, cavallos, e o importantissimo ar-tigo das lenhas, de que fazem prodigio-so consumo os engenhos beira d’agua,que não tem mattas.

Tratando de completar sua justi-ficativa a respeito da caracterizaçãodesta categoria de lavradores, compa-rando sua economicidade com a dosengenhos, ele esclarece outro aspectode primordial importância da estru-tura escravista da sociedade ruralbaiana que, no caso, tudo indica cons-tituir traço marcante de todas as ex-plorações escravistas baseadas emlavouras de exportação, pois é tam-bém prática bastante freqüente nas

lavouras de cana e café que se implan-taram a partir de meados do séculoXVIII nas capitanias do Rio de Janei-ro e de São Paulo. É por isso necessá-rio dar-lhe mais uma vez a palavra:

E ainda que o seu rendimento sejamuito menor que o do senhor de enge-nho, comtudo a desproporção do valordo engenho e das despezas a respeitodas do lavrador, faz com que o rendi-mento de ambos seja proporcionalmen-te quaze igual. He de advertir que asustentação dos escravos ordinaria-mente não está a cargo dos senhores,porque por hum costume quaze uni-versal, se lhes dá o dia do sabbado eDomingo para nelles lavrarem o quelhes fôr mister, assignando-se-lhe oterreno.

Deve-se destacar, neste ponto, aimportância desta referência de Joséda Silva Lisboa à prática, que ele ca-racteriza como corrente, de os senho-res escravistas na lavoura açucareirado Recôncavo utilizarem-se do meca-nismo de controle da escravaria base-ado na concessão de um dia da sema-na para que a sua força de trabalhopudesse prover parte, pelo menos, doseu auto-sustento. Não se vai aquidiscutir, por falta de maiores evidên-cias empíricas, o grau de universali-dade desta prática no escravismo daBahia, como de resto no escravismovigorante no Brasil colonial. O que sedeve extrair como mais importantenesta referência é o fato de que, mes-mo nas conjunturas de expansãoeconômica, como o eram os anos emque a carta foi escrita, os senhoresescravistas recorressem a uma práti-ca que contribuía, em grande medida,para amenizar os rigores da superex-ploração a que era submetida aescravaria.

Outra referência de José da SilvaLisboa que confirma aquele padrão deescala dos engenhos do Recôncavoestá no trecho de sua missiva em quecita os engenhos de administraçãodos jesuítas existentes na Bahia, ca-racterizando-os como pertencentes a

7 Schwartz, op. cit., capítulo 16.8 Jacob Gorender, O escravismo colonial, 2. ed. São Paulo, Ática, 1978, especialmente os

capítulos da parte terceira do livro.

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um modelo, tanto por sua escala quan-to por seu regime de administração,diferente do padrão prevalecente noRecôncavo açucareiro de então. Elecita especificamente o caso do quequalifica de “Engenho formidável doConde, com mais de 150 escravos eimmensidade de boas terras no recon-cavo”. Cita também o engenho Santa-na, da comarca de Ilhéus, indicandoque este possuía, à época, “270 escra-vos e hum potentado de terreno”.

A propósito do regime de admi-nistração característico desses enge-nhos, ele procede a uma comparaçãocom o regime prevalecente nos enge-nhos administrados por particulares(no ano em que escreveu a carta, essesdois engenhos, de propriedade jesuíti-ca, já haviam sido expropriados porPombal e foram vendidos pela Fazen-da Real a bom preço e “a condiçõesmui benignas”, fato que evidencia aconjuntura expansiva então vivida apartir daquela década). Em seu texto,após manifestar posicionamento fa-vorável aos senhores de engenhocomo classe, frente ao jugo a que porsua vez estavam submetidos, por viados financiamentos que recebiam degrandes comerciantes, dos quais de-pendiam para a sustentação de seusnegócios, ele procede a uma crítica doabsenteísmo senhorial; mas, ao mes-mo tempo, defendendo a importânciada presença do proprietário junto aonegócio do engenho, assinala, comgrande vigor descritivo, o cotidianocaracterístico enfrentado por estes se-nhores. Nesta caracterização, que aseguir se reproduz por exemplar,deve-se notar, por outro lado, seu en-tendimento quanto ao padrão de re-lacionamento entre os senhores deengenho e a sua força de trabalho es-crava. Dê-se-lhe a palavra:

Accresce o gravíssimo inncomododa necessidade da prezença incessan-te do proprietario à sua lavoira paraesta poder ter o seu devido rendimen-to, pois que qualquer fazenda de terravale tanto quanto a alma do seu dono;se este quer vir divertir-se à cidade, sehe indolente, está seguro de nada co-lher no fim do anno. Por mil vanta-gens de terras e de escravos que te-nha. A necessidade de se viver entre

escravos, e pôr em folegos períveis aesperança de riqueza e a alternativacruel e sempre pernicioza ao senhor,ou de os tratar com dureza ou de sermau servido, constitue outro terríveldetrimento da lavoira do Brazil. Osnegros, que apezar da sua estupidez,conhecem comtudo o preço da liberda-de e que justamente não tomão inte-resse pela fortuna de seu senhor, nacerteza de nunca ella lhes ser transce-dente, que abusão da mansidão do se-nhor para se conservarem na indolenciae fugirem do rude trabalho de lavra-rem terra, enchem de mil amarguras avida rusticana. Todos os dias se rece-bem más notícias de hum preto morto,outro doente, outro fugitivo, outro re-belde, outro que deixou corromper ospés de bichos, por preguiça e ainda paradesgostar o seu senhor.

Note-se aí a expressão nítida doponto de vista senhorial, naquilo querespeita ao entendimento das dificul-dades de gestão da escravaria, vistado ângulo dos seus proprietários. To-davia, é muito sugestivo o que eleacrescenta a respeito da diferença depadrão, nesta matéria, entre o modeloprevalecente na maioria dos enge-nhos e aquele outro, por ele defendi-do, baseado no figurino inspirado nosengenhos que tiveram administraçãojesuítica. É exemplar o que ele declaraem continuação, na sua análise:

Contudo eu attribuo grande partedestes damnos ao abuso violento, quese faz da liberdade dos escravos, dosquais huma boa parte perece às mãosda fome, da mizeria, da desesperação edos atrozes castigos, que se lhesinflinge. Os senhores moderados, masnão inertes, costumão pelo ordinarioter melhores negros e mais duraveis.E para dizer a verdade os escravos sãomui sensíveis às demonstrações debenegnidade de seus senhores. As suasalmas com pouco se contentão econduzidas com generozidade, não sãoatrozes, como ordinariamente se crê.Alguns senhores de terra facilitão hojeos cazamentos de seus escravos. Heeste um excellente meio de lhes suavi-zar o jugo e os ter com resignaçãosugeitos ao domínio em razão da mu-lher e filhos, seus caros penhores, queos retem e os consolão (...) Os jesuitas,habeis economos das suas coisas, fo-ram os que derão d’isto exemplo e mos-

trarão com successo a utilidade comeffeito aos engenhos e fazendas quedeixarão cheios de escravatura nume-roza, era raro achar negro da Costa daAfrica. Comtudo este meio não he pra-ticado com universalidade, porque pelavantagem mais decidida dos serviçosdos negros sobre os das negras, sem-pre o numero dos escravos he triplica-do a respeito das escravas: coisa esta,que perpetua o inconveniente de senão propagarem, nem se augmentaremas gerações nascentes.

Eis aí uma confirmação documen-tal inequívoca do padrão demográficopredominante da escravaria nos en-genhos do Recôncavo, padrão que éapontado consistentemente pelos es-tudos, já citados, de Kátia Mattoso eJoão Reis, em seus respectivos artigos.Colhe-se aqui, por outro lado, umavaliosa evidência empírica acerca dapreferência senhorial pelo braço mas-culino como justificativa para a não-proliferação da família escrava.

A carta de José da Silva Lisboa,em suas descrições minuciosas sobrea economia agrícola da capitania, per-mite ao estudioso aperceber-se de as-pectos fundamentais da abrangênciaterritorial da capitania na altura dasúltimas décadas do século XVIII. Umdestes aspectos refere-se à importân-cia da cultura da mandioca e da cor-respondente produção de farinhacomo elemento de base do suprimen-to das populações urbanas, tanto deSalvador quanto das vilas do Recôn-cavo. A principal fonte de abasteci-mento se localizava fora do Recônca-vo, na comarca de Ilhéus e de PortoSeguro, destacando-se na primeira aregião da foz do rio de Contas. Alémdisso, fica-se sabendo que a produ-ção de farinha, tanto a do Recôncavoquanto as das áreas extra-Recôncavolocalizadas ao sul, nas comarcas járeferidas, supria não somente o mer-cado interno, mas se destinava, tam-bém, à exportação para Angola e Cos-ta da Mina, neste caso como elementode sustentação, tanto dos escravosquanto das tripulações dos naviosnegreiros. Exportava-se ainda farinhadiretamente para Portugal, e não sópara o abastecimento urbano, mastambém para o fim de suporte ao gran-

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de comércio escravista transatlântico.Tais indicações constituem-se pis-

ta de grande valor para avaliar-se ograu de circulação mercantil que a estaaltura já se instalara no interior daeconomia escravista baiana. Apesarda principalidade do comércio expor-tador de açúcar, percebe-se aí que estasociedade não era, como as da Euro-pa feudal, uma economia de exíguosfluxos mercantis, fato que lhe dá sin-gularidade como sociedade escra-vista.

Sobre a natureza da escravidãourbana em Salvador e sobre a exten-são das relações escravistas na socie-dade baiana, é precioso conhecer oque informa José da Silva Lisboa emseu rico relato, no qual se evidencia aconfirmação das análises que a esterespeito já fizeram Katia Mattoso,Stuart Schwartz e Maria Inês Olivei-ra. É também altamente ilustrativa, notexto do insigne missivista, a caracte-rização a que procede do tipo de men-talidade escravista que era corrente,inclusive entre os pequenos senhores.Impõe-se citá-lo diretamente:

A cidade da Bahia tem quasi 50.000(pessoas) de que só a quarta será com-posta de brancos. Esta população nãose augmenta, porque o numero decazamentos he muito diminuto. A dosescravos he impraticavel e contra a

decencia das familias: porém os senho-res tolerão facilmente o commercioilegitimo pelo fructo do augmento dosescravos, que d’isso lhe rezulta. Amaior parte he bem inutil ao publico esó destinada para servir aos caprichose voluptuosas satisfações de seus se-nhores. He prova de mendicidade ex-trema o não ter um escravo: ter-se-hãotodos os incommodos domesticos, mashum escravo a toda a lei. He indispen-savel ter ao menos dois negros paracarregarem huma cadeira ricamenteornada, hum creado para acompanhareste trem. Quem sahisse à rua sem estacôrte de africanos, está seguro de pas-sar por hum homem abjecto e de econo-mia sordida. E quem fosse tão impru-dente que fizesse a menor reflexão so-bre a ridicularia deste apparato roma-nesco ou a deshumanidade de se fazerpor deleite puro carregar por homensseus semelhantes, estava na certeza deser apedrejado como hum vizionario einnovador. Assim todos aspirão a ter asua cadeira, com o apparelho compe-tente, ainda que a tenuidade da suafortuna não os ponha em estado semlezão esta despeza, correndo o risco dosseus escravos.

Deve-se aqui chamar a atençãoparticularmente para o fato de que,tanto na escravidão urbana, quantona escravidão rural, boa parte daescravaria não era aplicada direta-mente na atividade produtiva. Tal se

constitui, como já se assinalou atrás,num traço marcante do chamadoescravismo colonial, em particular dasociedade escravista da Bahia – quetem sua correspondência no parasi-tismo imperante no aparelho de Esta-do, tal como com tanta ironia é relata-do no documento de nosso ilustreadvogado. Esta ironia, na pena de umcontemporâneo que não chegava aquestionar a escravidão em si, deixaevidente uma outra faceta do escravis-mo na Bahia: o escravo como elemen-to de ostentação, mesmo em camadaspobres da população. Mas note-se queaí se trata, especificamente, de escra-vo urbano.

Como já se assinalou neste traba-lho, à época em que José da Silva Lis-boa escreveu tal documento, iniciava-se na Bahia um período caracteriza-do como de expansão econômica,marcado por abertura de novos enge-nhos, intensificação do tráfico tran-satlântico de escravos, e um revigo-ramento, ainda que tardio, das rela-ções escravistas de produção. Não secolocavam ainda, no horizonte davida cotidiana, sinais perceptíveis dainsurgência escrava que, menos deuma década depois, despontou naBahia em toda a vastidão da capita-nia, e que permaneceu por mais de 40anos.

ObjetivosContribuir para soluções de problemas econômicos-sociais, ambientais e organizacionais, anível local e regional. Contribuir para formar e atualizar professores, capacitando-os paraum desempenho adequado, na graduação e pós-graduação. Formar uma massa crítica capazde desenvolver trabalhos científicos que contribuam para o desenvolvimento local, regionale nacional.

Prédio de Aulas 08 - Campus Iguatemi – Alameda das Espatódias, 915 – Caminho das Árvores, Salvador-BACEP. 41.820-460 – Tel. (071) 340-3600/3628 – Fax. (071) 340-3697

e-mail: [email protected]

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS 2Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e UrbanoMestrado em Análise Regional(Recomendado pela CAPES)

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O PROCESSO RECENTE DE FAVELIZAÇÃO EMSALVADOR: O EXEMPLO DO CALABAR

Dante Severo GiudiceMestre em Geografia pela UFB.

Regina Celeste de almeidaSouza

Doutora em Geografia pela Universidade de Rowen – França.Professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento

Regional e Urbano da UNIFACS.INTRODUÇÃO

Salvador, uma metrópole regio-nal, consolidada particularmente apartir da segunda metade do séculoXX, graças ao processo de industria-lização que acelerou o seu crescimen-to populacional. Por questões históri-cas de propriedade de terra e falta deum programa habitacional, este cres-cimento acarretou no processo defavelização, objeto de nosso trabalho,através de um estudo de caso – oCalabar.

O PROCESSO DEFAVELIZAÇÃO

As modificações estruturais queviriam desencadear o processo defavelização em Salvador, tiveram iní-cio no começo do século XX, quando,segundo Alban Suarez (1995), com aproclamação da República, o regimede enfiteuse, entra em contradiçãocom as relações sociais que pretendi-am os brasileiros em seu novo momen-to histórico. O sistema teve de ser al-terado pelo da propriedade absoluta,em que se somavam o domínio útil e apropriedade em um só proprietário -o proprietário privado - que passou aser amplamente protegido, a partir de1917, pelo Código Civil. Desta formaa cidade se privatizou, fazendo entãosurgir a dualidade urbana, o espaçopúblico e o privado.

O Estado passou a atuar cada vezmais no espaço urbano dividido en-tre bairros “nobres” e pobres, dotan-do seus recursos somente para os pri-meiros, acelerando a estratificaçãoespacial que havia começado nas ci-dades brasileiras desde o século XIX,e que se consolidou no século XX, re-sultando numa estrutura núcleo-pe-riferia. Este processo foi iniciado coma República, quando os municípioscomeçaram a ser ordenados pelassuas próprias leis, mas deixando acargo da União, o ônus de prover amoradia. Entretanto as invasões ocor-reram em terras municipais, levandoo município a incorporar o problema,sem ter competência nem recursospara solucioná-lo, evidenciando aimpotência do poder público para or-denar o solo urbano. O planejamentoda cidade se tornou algo impossível.O golpe militar de 1964 privilegiouáreas ricas do país, dentre elas, as ci-dades, onde é marcante a concentra-ção de renda, e a especulação imobili-ária promoveu a remoção da popula-ção carente para áreas periféricas(Alban Suarez, op. cit.).

Ainda na primeira metade do sé-culo, como fruto da Semana de Urba-nismo de 1935, a Prefeitura contratouvários estudos, visando o planeja-mento para o futuro desenvolvimen-to urbano, através da elaboração doprimeiro plano sistemático, com dire-trizes para localização e construção dehabitações populares em Salvador,

denominado - o Escritório do PlanoUrbano da Cidade de Salvador - EPUCS(1943 - 1947) que era um planejamen-to de vanguarda, embora nunca con-cluído. Neste período, as relações so-ciais já configuravam dois espaços ur-banos bem distintos. De um lado o es-paço formal, a parte da cidade regidapelas normativas urbanas que até hojese diferencia por seu caráter de legali-dade e de outro, o espaço informal demorfologia própria, e de respostas es-truturais independentes do planonormativo (Alban Suarez, op. cit.).

A pobreza já começa a aparecercomo característica de Salvador; e oCenso de 1940, já detecta 57% dasconstruções em madeira ou materialsemelhante (Vasconcelos, 1995). Apopulação continuou a crescer devi-do ao fluxo migratório do interior,principalmente depois que a regiãocacaueira deixou de absorver essaleva migratória, o que vem a contri-buir para que ocorram as primeirasgrandes invasões de terra (Pero Vaz,por exemplo), e o avanço para o marno interior da península itapagipana,onde as águas calmas permitiram aconstrução de palafitas (Alagados) .

As invasões em Salvador, na suaorigem, constituíram-se num movi-mento social urbano que se compõede práticas sociais contraditórias, quepõem em cheque a ordem estabeleci-da, a partir de contradições específi-cas da própria problemática urbana.Segundo diagnóstico de José Álvaro

Estudo de Caso

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Moisés, citado por Neves (1985), so-bre movimentos sociais urbanos ocor-ridos no Brasil, a partir de 1930, elessão todos resultantes, basicamente,dos mecanismos de super-exploraçãoda força de trabalho, e da minimi-zação da participação privada e, emparticular, do Estado, no custo da suareprodução, isto é, no fundamental àsobrevivência dos trabalhadores esuas famílias, tais como alojamento,saúde e educação.

Segundo Souza (1990) a crisehabitacional da década de 1940 pro-vocou as primeiras grandes mudan-ças espaciais na estrutura urbana,causadas pelo fluxo migratório queincrementou a procura de novas ha-bitações, causando interferência nosistema habitacional e forte pressãonas áreas populares, pela transforma-ção do centro, com a transferência dasfamílias abastadas para arredoresimediatos e a expulsão da populaçãode renda mais baixa, com o fim das“avenidas” e “cortiços”, dando ori-gem às ocupações espontâneas e de-gradando ainda mais a qualidade devida. Assim, começaram a ocorrer asocupações espontâneas com consen-timento dos proprietários que aguar-davam a valorização com a chegadada infra-estrutura. Por outro lado, asglebas vazias, segundo Souza (op.cit.), surgidas com a expansão da ci-dade, tornaram-se áreas de “engor-da” que posteriormente viriam desen-cadear o processo de “escassez deli-berada”, que iria se acentuar progres-sivamente.

No final da década de 40, segun-do Mattedi (1979), surgiram os primei-ros grandes conflitos abertos entreproprietários e poder público, de umlado, e favelados do outro, surgindo acategoria de “invasor” como indica-dor de ocupação de áreas ociosas, tor-nando-se este tipo de ocupação,gradativamente comum para umagrande parte da população pobre, quena impossibilidade de outra alterna-tiva, encontra a solução de moradia,na ocupação coletiva de terrenos oci-osos, de propriedade alheia, públicaou privada, ou em terras devolutas.

Para Brandão (1978) as ocupa-

ções espontâneas dos anos 40, refle-tem as condições específicas daquelemomento. Eram uma forma primáriade ocupação, responsável pela dinâ-mica do seu crescimento e naturezados grupos que a promoviam, tradu-zindo uma iniciativa revolucionáriaque representava a superação dosentraves decorrentes da ampla desi-gualdade econômica e política entreas camadas sócio-econômicas da ci-dade e da inércia do seu sistemafundiário e administrativo.

A intervenção do Estado no espa-ço urbano, até então pouco abran-gente, tornou-se mais efetiva a partirdos anos 50, com as rápidas transfor-mações ocorridas na estrutura produ-tiva de Salvador, que esboçavam umnovo ciclo de dinamização econômi-ca. A partir da década de 60, as ocu-pações espontâneas passaram a re-presentar, entre outros fatores, umempecilho cada vez maior ao livrecomércio do solo urbano. Para Matte-di (op. cit.), o poder público adotoupolítica contraditória e ambígua comrelação às ocupações, que deram umatrégua, incentivando/consentindonuma determinada área, e coagindo/destruindo em outras, o que leva asupor que deviam existir interessespolíticos/econômicos das oligarqui-as por trás dessa atitude. Na décadade 70, a área ocupada pela cidade foiexpandida pela continuação da mo-dernização do sistema viário, novasvias periféricas, e pela implantação doCOMPLEXO PETROQUIMICO DECAMAÇARI. Iniciou-se então, segun-do Souza (op. cit.) uma transforma-ção na qual os diferentes agentes pro-dutores do espaço passaram a inter-agir sob a lógica primordial da valo-rização do capital e do solo urbano.Em relação às ocupações espontâne-as, que continuaram sendo uma cons-tante e voltaram a crescer, as atitudesdos poderes públicos eram, quasesempre, de repressão e controle, masa partir da metade desta década, se-gundo Mattedi (op. cit.), com as cala-midades que atingiram principalmen-te as áreas de habitações muito precá-rias, e a remoção das ocupações es-pontâneas, começou a surgir uma aju-

da efetiva do Estado. Entretanto, asdiversas tentativas de implementaçãode programas habitacionais para ca-madas de baixa renda, frustravam-se,seja porque quase sempre estavambaseados na perspectiva de retorno docapital investido, seja por insuficien-te apoio político, ou mesmo, por pro-blemas técnico-administrativos, osprogramas e projetos eram arquiva-dos. Ainda segundo Mattedi (op. cit.),nesta década, as invasões acontece-ram mais afastadas do centro, em ter-renos menos valorizados, e por isso,sem interesse para especulação imo-biliária. Esta camada da populaçãonão podia competir no mercado dealuguéis, o que tornou a casa própriao único meio de acesso à habitação, eessa não poderia deixar de ser senãoa casa de construção clandestina, viade regra, em terrenos de terceiros(Brandão, op. cit.).

A década de 80 se caracterizoupela aceleração do processo de urba-nização que passou a ocorrer sob con-dições de extrema carência para gran-de parte das populações empobre-cidas devido ao ciclo de crises queatingiram a população brasileira.Nesta época a imprensa noticiava,freqüentemente, grandes movimentoscoletivos de ocupações espontâneas,numa retomada do processo que ha-via arrefecido na década anterior. Des-ta forma, as condições de habitaçãoque já eram difíceis, tornaram-se maisprecárias ainda, com moradas inade-quadas, em áreas de risco, deficiênciade infra-estrutura, dificuldades deacesso à terra, altíssimas densidadesde ocupação, perifização e segregaçãodo espaço, que segundo Corrêa (1997),é um processo que origina a tendên-cia a uma organização espacial emáreas que tendem a apresentar estru-turas sociais que podem ser marcadaspela uniformidade da população emtermos de renda, instrução, etnia, etc..

As novas ocupações coletivas nadécada de 90, representaram, entreoutros fatores, um claro reflexo da cri-se econômica da chamada “décadaperdida”, camuflada com a falsa me-lhora do Plano Real, acarretando prin-cipalmente um rebaixamento do va-

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lor da força de trabalho, o que é agra-vado pelo aumento das necessidadesde consumo, seja decorrente do pro-cesso de metropolização, seja do pró-prio processo de modernização eavanço tecnológico. Por outro lado, oestágio atual de desenvolvimento ca-pitalista e o processo de urbanização,para Souza (op. cit.), não mais permi-tem esse tipo de ocupação do espaço,afirmando ainda que a produção doespaço urbano habitacional atravésda ocupação informal, aleatória e nãomercantil, contrapõe-se à lógica do-minante da produção capitalista doespaço. Neste momento, quando apolítica urbana se transformou, asocupações espontâneas surgem comoforma de garantir o acesso à terra, numclima político, claramente mais favo-rável que nas décadas de 60 e 70, mes-mo porque, por falta de áreas dispo-níveis, essas ocupações se dão em áre-as periféricas, e no chamado “Miolo”,entre os espaços deixados pelos con-juntos habitacionais da Urbis, porexemplo. Na Fig. 1, podemos obser-var a distribuição espacial das ocu-pações em Salvador.

Segundo Santos (1978), à medidaque a estrutura econômica das socie-dades vai se modificando com a pre-ponderância dos setores secundáriose terciários sobre o primário, a distri-buição demográfica modifica-se nosentido do adensamento e das con-centrações urbanas. Os centros urba-nos passam a ser uma criação consci-ente, atendendo ao imperativo da con-centração industrial, básico ao desen-volvimento capitalista, o que aumen-ta as pressões, sem que, simultanea-mente, haja uma preocupação quan-to ao processo específico do cresci-mento urbano. A cidade passa a serregida pelo mecanismo industrial,com a mão- de-obra desumanizada, eassumindo papel de mero fator físicode “insumo”. Deforma-se aquelasintonia de tempo e espaço, que é subs-tituída por desequilíbrios de toda or-dem. Os componentes culturais per-dem toda significação hierárquica,inspira a subordinação de toda a vidada comunidade ao determinismo eco-nômico da produção. Na base de tudo

isso está todo um complexo de desa-justamentos, que vão dos aspectosinfra-humanos dos cortiços e favelas,às carências alimentares, sobretudoqualitativas, ao congestionamentodos transportes resultantes da coin-cidência dos horários de trabalho, àsdeficiências de toda aparelhagem dossistemas de distribuição de serviços.Aliado a isso, a incapacidade paraorganizar um novo tipo de vida, aquebra nos padrões de vida das clas-ses abastadas, vem contribuir paraampliar um quadro social crítico.

O CASO DO CALABAR

No caso do CALABAR, cuja ocu-pação foi lenta e sem violência, não seconstituiu inicialmente por processode invasão, e sim, por outras formastais como, arrendamentos, parcela-mentos e doações, e incluída por Sou-za (op. cit.), na segunda fase do pro-cesso de favelização brasileira, carac-terizada por um processo de resistên-cia e de conquista palmo a palmo.Era uma área de ocupação já consoli-dada, que teve seus problemas agra-vados com a chegada de novas levasde moradores, entre as décadas de1970 e 1980, que provocaram adensa-mento, fragmentando o espaço ao lon-go das encostas, como mostram as fi-guras 2 e 3. Este período de maiordensificação, onde várias famíliaspassaram a ocupar as áreas livres re-manescentes, gerando a freqüentesubdivisão dos lotes originais dasantigas ocupações, coincidiu com pe-ríodo de maior fiscalização e repres-são às invasões (1968-1979). Estaspequenas parcelas passaram a sercomercializadas com outras famíliaspobres, como forma de obtenção derenda extra, ou ainda, foram cedidaspara outros membros da família semcondição de acesso ao mercado for-mal de habitação. Na década de 1980o processo de ocupação se intensifi-cou, e começou ocorrer a verticaliza-ção, onde dois a três pavimentos, nasua maioria plurifamiliares foramacrescidos ao pavimento térreo.

Na década de 1970, iniciaram-se

as primeiras manifestações da comu-nidade, marcando o início do proces-so da luta por uma política urbana. Apartir desta década, as páginas dosjornais, os noticiários policiais e aimprensa em geral, abriram espaçopara a comunidade do Calabar e suaslideranças, enfocando os maiores pro-blemas, tais como marginalidade, pre-cariedade das habitações, saneamen-to etc. Porém, em 1977, a violênciapolicial, fez o Calabar se levantarnuma luta incansável contra o desca-so do poder público. Esta luta consis-tiu em pressionar a Prefeitura Muni-cipal de Salvador, para realização deobras de habitação, saneamento bási-co, contenção de encostas, drenagempluvial, mas a prioridade era a legali-zação das terras, sem as quais todasaquelas conquistas de nada valeriam,pois os moradores poderiam ser ex-pulsos a qualquer momento.

A expansão do Calabar se deuatravés de muita luta de seus mora-dores, primeiro com o JUC (JovensUnidos do Calabar), e depois com aAssociação de Moradores, que podeser considerada originária daquelegrupo. Neste processo reivindicatóriode melhorias para a área, se conse-guiu despertar a atenção da Prefeitu-ra, que culminou, em 1979 com a visi-ta do então prefeito Mário Kértesz.Desta visita, segundo Conceição(1986), surgiu a possibilidade detransferência da população para ou-tra área, o que era uma questão polê-mica: lutar para continuar no mesmolugar, ou sair para terreno cedido gra-tuitamente pela Prefeitura. No debatecom a comunidade, optou-se, a prin-cípio, por permanecer no local, casohouvesse possibilidade de realizarmelhoramentos; porém a grande mai-oria achava isso impossível de serrealizado, optando pela mudançade local previamente negociado coma Prefeitura. Depois, porém, de ama-durecer a questão, a população acre-ditou no direito de não somente per-manecer onde estava, mas também deexigir melhorias definitivas para olugar, sem fazer nenhuma concessão.Neste período, apesar de reivindicarmelhorias infra-estruturais, os esfor-

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Fig. 3

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ços da comunidade continuavamconcentrados na luta pelo título daterra. O que só viria acontecer com odecreto no 6.037, de 11/11/80, decla-rando de utilidade pública para finsde desapropriação, uma área de79.354 m2, onde se situa o Calabar. Aprimeira intervenção da Prefeituraocorreu só a partir daí, tendo sido ini-ciada em agosto de 1981, com traba-lhos realizados pela RENURB e seprolongou até setembro de 1982,quando foi considerado cumprido oprograma de obras de urbanizaçãoprevisto para a área, que contempla-va a construção de rampas e escada-rias drenantes, que deveriam se espa-lhar em um modelo tipo espinha depeixe, a partir da rua principal, ruaNova do Calabar, que foi pavimenta-da e drenada, permitindo o acesso deveículos, serviços de água, esgoto eenergia elétrica, bem como a coleta delixo, extensiva para toda a área. Po-rém, nem tudo foi cumprido.

A segunda intervenção, se deu apartir de 1990, quando a FundaçãoJosé Silveira, em parceria com a co-munidade do Calabar, elaborou o Pla-no Integrado do Calabar, cujas metaseram tornar a ocupação valorizada eintegrada à cidade de Salvador. Estaparceria objetivava a melhoria na qua-lidade de vida da população, atravésde ações nas áreas de saneamento,educação, saúde e habitação.

A última intervenção só veio a ocor-rer em fins de 1998, quando um projetoda Prefeitura - Viver Melhor - em convê-nio com o Estado, retirou a populaçãoda área mais carente (Jardim das Man-gueiras), e construiu casas do tipo apar-tamentos geminados, com toda a infra-estrutura. Esta intervenção, entretantoainda não foi concluída.

CONCLUSÃOO problema das ocupações espon-

tâneas, como o Calabar é, hoje em dia,mais um conflito de urbanização doque uma questão exclusiva de habita-ção, que por sua vez era um problemamais antigo, da época dos cortiçosexistentes na área degradada da ci-dade velha. Para Souza (op. cit.), emnível teórico, as invasões, enquanto“questão de habitação”, constituem-se dessa forma, uma evidência exa-cerbada de que sendo um problemade ordem estrutural, intrínseco à es-trutura de classes e à distribuição darenda, a sua solução, que seria o detornar o trabalhador proprietário dasua habitação, não pode ser encon-trada no livre mercado. Além disso, arelação entre precariedade habitacio-nal e exploração do trabalho não édireta e sim, mediatizada pelos mer-cados de terras e imobiliário, ou seja,além do baixo salário ou do desem-prego, há o obstáculo ao pleno desen-volvimento do setor de produção demoradias decorrente da propriedadeprivada da terra. Segundo Mattedi(1979), as ocupações espontâneas fo-ram pioneiras no sentido de iniciar arachadura numa estrutura de propri-edade territorial enrijecida, erguidasobre a instituição da enfiteuse, cujodesmoronamento oficial se daria coma promulgação do Código Civil, e seconsolidaria no final dos anos 60, coma lei da reforma urbana.

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A abordagem de Roncayolo emAs funções da cidade inscreve-se nocontexto de uma análise abrangentede cidade, em que o autor identificasete blocos temáticos considerados deforma segmentada, mas segundo umavisão interrelacionada, isto é, comogalerias que se interpenetram e comu-nicam-se, expressando a complexida-de do tema e dos processos que inter-ferem na formação, composição eespecificidades das cidades, no tem-po e no espaço.

Para expressar a importância dasfunções, a cidade é enfocada comouma unidade de um sistema em queestruturas internas e relações externasarticulam-se, na medida em que estas“...parecem determinar o conteúdosocial, o modo de vida da cidade e,por outro lado, delimitam zonas deinfluência e explicam a localização dacidade na organização espacial”(p.411).

Na análise que se desenrola emcinco tópicos, Roncayolo desenvolveo conceito de funções e traz à tona osmodelos e teorias que buscam expli-car a organização espacial através doestudo da funcionalidade das cida-des, mostrando que o arcabouço teó-rico disponível apresenta limitaçõestais que não permitem relacionar aforma como o espaço urbano se estru-tura com os processos econômicos,políticos e sociais que se desdobramnas cidades.

Desde o primeiro tópico, Funçõese atividades, o autor busca explicitaro conceito de funções, evidenciandoque seu conteúdo tem sido interpre-tado de forma parcial e simplificadae, destacando as associações corren-tes entre funções e atividades, questi-ona: “Concorrerão as atividades - eda mesma maneira - para o exercíciodas funções urbanas e, sobretudo,para o papel externo a desempenharpela cidade?” (p.411). Além disso, le-vanta uma outra questão: “E que exis-te, enfim, de especificamente urbanoem certas atividades, ao ponto de quea sua presença baste para qualificar acidade?” (p.411).

O debate que se segue deixa claroque a mera classificação das funçõesnão leva a uma tipologia de cidade eque nem mesmo algumas das funçõestradicionalmente identificadas no es-paço urbano (política, religiosa, cul-tural, industrial, comercial, turísticae residencial) seriam exclusivas às ci-dades, querendo demonstrar, comisso, que a atividade, de per si, nãoseria requisito suficiente para carac-terizar o espaço urbano. Exemplifi-cando, ressalta que, em determinadoscontextos, sua presença pode, inclu-sive, resultar no esvaziamento dasconcentrações urbanas, como ocorreucom a localização industrial disper-sa na Europa do século XVIII.

Afirmando que “...a prova funda-mental é a transição para a estabili-

dade, a permanência das funções notempo e no espaço, a sua íntima radi-cação ao ambiente” (p.412), o autorrelativiza o papel das funções toma-das de forma isolada como elementode caracterização do espaço urbano ede formação das cidades e, retoman-do a discussão sob outro ângulo, re-força as teses de Camille Jullian, nosentido de distinguir os elementos deformação dos de desenvolvimento dascidades, mas ressalta, também, a im-portância de conjugar a análise dosprocessos à análise separada das fun-ções, “....enquanto construção contí-nua, em relação à simples considera-ção estática das relações” (p.413).

Criticando o determinismo geo-gráfico implícito ao conceito de locaisprivilegiados na formação de cidades,cita Lucien Febvre, destacando o apro-veitamento aleatório desses lugares naescolha dos sítios, e a resistência tem-poral das cidades estabelecidas, “en-quanto as técnicas de produção e per-muta, de engenharia militar e civil, orumo das correntes comerciais, as es-truturas políticas mudam” (p.413).

Na essência, a abordagem mos-tra que as cidades caracterizam-se poruma combinação de funções, aindaque em níveis diferenciados, desde asua formação, e que a experiência his-tórica não permite destacar, de formageneralizada, a primazia de determi-nada função primária (política, reli-giosa, militar, comercial) nem padro-

RONCAYOLO, Marcel. As funções da cidade. In:ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Na-cional / Casa da Moeda, 1986. V.8. p. 411-421

Lídia SantanaMestranda em Análise

Regional pela UNIFACS

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nizar a descrição da gênese das cida-des.

Reconhece, entretanto, que as ci-dades do século XIX tiveram uma for-te componente econômica no seu pro-cesso de desenvolvimento, sendo pro-fundamente afetadas pela produção,pelos transportes pesados e pela aglo-meração desses fatores e que, no sé-culo XX, esta componente passa a seressencialmente política e não “sim-ples reflexos do mercado”.

Respondendo à questão inicial-mente formulada sobre a característi-ca da cidade e suas funções e, justifi-cando a afirmação de que a função é arazão de ser da cidade, Roncayoloesboça a seguinte conceituação:

As funções são apenas categoriascujo conteúdo real se transforma notempo e, mais do que a sua históriafragmentada, é o posto relativo por elasocupado, é a sua combinação específi-ca, característica duma sociedade,duma civilização ou duma formação his-tórica que conviria definir (p.414).

Em O problema da base: tipolo-gias funcionais, o autor evidencia afragilidade teórico-metodológica dosestudos que tentaram estabelecer asrelações entre as funções e, a partirdelas, definir uma tipologia de base,criticando os métodos empregados,dada sua incapacidade em proporci-onar uma visualização dinâmica daposição da cidade em seus contextosinterespaciais.

A questão de “como definir rigo-rosamente os fluxos territoriais a par-

tir de atividades industriais descen-tradas, definidas como entidades nãoespaciais”, (p.415) ou de como anali-sar os fluxos virtuais e reais e suasimplicações para o espaço urbano emum contexto de globalização e telemá-tica, traz um novo espectro à análiseregional, tornando ainda mais limi-tados os instrumentos teóricos tradi-cionais. Segundo Pedrão (1999),“...sua base conceitual ficou paralisa-da antes dos avanços da ciência des-de a década de 1960, mantendo-secomo uma construção cartesianatransferida ao meio social, incapaz deabsorver as revoluções do pensamen-to científico”, tornando-se, assim,“mero exercício de análise formal,destituída de capacidade crítica.”

Com isso, o problema de base pa-rece esbarrar na questão da escala eda complexidade acrescidas no con-texto contemporâneo e na necessida-de, ainda maior, de pesquisas e parâ-metros mais atualizados para enten-der a estrutura da organização espa-cial que se desenha em torno de umanova ordem econômica e institucional,com seus reflexos sobre as funções eos espaços urbanos.

Em Hierarquias e zonas urbanas,o autor ressalta as limitações dos mo-delos teóricos baseados na análisefuncional e na ênfase da organizaçãoespacial, questionando os pressupos-tos teóricos implícitos à idéia de umsistema ordenadamente hierarqui-zado, e na escolha a priori das variá-veis na sua construção.

Considera que o princípio de lo-calização e hierarquia de cidades ba-seado no comportamento de consu-midores e na distribuição de bens eserviços não contempla a dinâmicafuncional, na medida em que não re-fletem os processos e os modos comoeles criam, absorvem e modificam oespaço, nem explicam a gênese dasestruturas urbanas no tempo.

A crítica é, portanto, da mesmanatureza que a anterior, prendendo-se basicamente à linearidade do ins-trumental e à interpretação acrítica eestática da organização espacial de-rivada de sua aplicação. Esses mode-los parecem, assim, expressar uma

determinada concepção do perfil de-sigual da reprodução da economia noespaço, próxima à teoria dos pólos decrescimento, cujos desdobramentosem termos espaciais tenderiam à for-mação de centros dinâmicos (decor-rentes da presença de unidades fabris)em torno do qual se estruturariam, porgravitação, cidades-satélites depen-dentes.

Reforçando essas análises, emLimites do modelo dos lugares cen-trais o autor aponta a descontinui-dade e a heterogeneidade da estrutu-ra urbana verificadas na Europa Oci-dental no século XVIII, observandoque essa mesma estrutura sofreriamodificações em sua hierarquia como processo de industrialização do sé-culo XIX, dando lugar a uma novaorganização espacial, na qual a uni-dade é transferida da cidade para arede regional, e questiona, também aí,até que ponto se poderiam considerarhomogêneas essas redes.

Na seqüência, apresenta exem-plos de mudanças em determinadosistema funcional para uma organi-zação estruturada em torno de uma“metrópole polivalente” e, focalizan-do as metrópoles dos Estados Unidos,ressalta a limitação da análise clássi-ca das redes urbanas implícita aomodelo dos lugares centrais, na me-dida em que a divisão funcional, nes-ses espaços, não obedece aos princí-pios exclusivamente hierárquicos,mas “....antes combinam a especiali-zação, complementaridade e concor-rência” (p.419).

O autor mostra, ainda, que a clas-sificação das funções está tambémpermanentemente sujeita a alteraçõesem termos de sua importância na or-ganização espacial, citando de Mi-lão, como exemplo de como uma mes-ma cidade pode assumir níveis dis-tintos de organização, sem que os es-paços deles decorrentes estejam rigo-rosamente interligados. Nesse senti-do, o autor recorre às constatações deDugrand que já alertava, nos finaisdos 50, para o enfraquecimento dasrelações entre as redes regionais naFrança, dado o peso e à influênciahegemônica da região de Paris sobre

... as cidadesdo século XIX

tiveram uma fortecomponente

econômica no seuprocesso dedesenvol-vimento...”

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o território francês, em detrimento doesquema funcional das redes regio-nais, até então predominante.

O caso de Paris, citado pelo autor,guarda suas origens na forma como omodelo fordista de produção se deusobre o seu território, em particularsobre a divisão espacial e social dotrabalho, visto que as tarefas de dire-ção ali se concentraram maciçamen-te, enquanto a produção ao nível dafábrica se interiorizava. O papel daregião de Paris é hoje, em relação àsdemais regiões da França, de certa for-ma condicionado por essa herançahistórica, que também foi determi-nante na conformação de sua escala enível de complexidade na economiaglobal.

Em a Gênese das redes urbanas,o autor demonstra a multiplicidadede fatores que interferem na organi-zação territorial, levando à relativiza-ção da procura por bens e serviçoscomo elemento determinante ouprioritário em sua constituição. Alémda tendência à continuidade históri-ca da cidade, ressalta a relação entreestrutura urbana e instituição políti-ca, como condicionante à esquemati-zação territorial envolvendo as cida-des e suas zonas de influência.

Destacando que as tradições po-líticas sempre tiveram influência naorganização urbana e em suas hierar-quias, assim como certos fatores his-tóricos, como a densidade, a prospe-ridade do núcleo urbano, entre outros,pesaram sobre as instituições políti-cas e o desenvolvimento dos estadosnacionais, crê Roncayolo que os fun-damentos econômicos das hierarqui-as urbanas poderiam estar associa-dos, não à clientela de um produto,como tradicionalmente sugerem osmodelos teóricos, mas à produção ouao seu controle, à iniciativa dos em-presários ou ao domínio financeiro e,nesse sentido, considera que as estra-tégias de investimentos, entre outrosaspectos, poderiam ser determinantesna formação/transformação das re-des urbanas e “...dos espaços econô-micos comandados ou servidos pelascidades” (p.420).

Tomando-se a estrutura social

como base da organização territorialem seu processo histórico, “...desde aacumulação da renda da terra à cons-tituição dos sistemas bancários e fi-nanceiros” (p.420), a gênese das re-des urbanas estaria, de acordo comas análises precedentes, na “estrutu-ra social das cidades, mais do que nasoma de suas funções” (p.420). Assim,é que se estabeleceriam as desigual-dades na hierarquia urbana, ou seja,as discriminações consideradasseriam as de natureza social.

Saltando para a realidade do cha-mado terceiro mundo, mais especifi-camente da América Latina, o autorconsidera ainda mais inaplicável, oprincípio de uma rede hierarquizadade cidades, face os profundos dese-quilíbrios verificados nesses territóri-os fortemente marcados pela coloni-zação espanhola, que teria geradouma organização espacial pulveriza-da em pequenos centros de serviços,comandados pelas metrópoles nacio-nais que concentrariam nelas “...todasas alavancas econômicas, sociais etécnicas” (p. 421).

Conclusões

O tema é dos mais fascinantes, porvariadas razões, entre elas, a comple-xidade implícita ao conceito de fun-ções, o caráter estruturador de seupapel, tanto em termos de um siste-ma, uma região, como em termos intra-urbanos, de sorte que se pode dizerque todos os demais “fenômenos” -em que pesem as disparidades de ta-manho, forma, cultura e outras especi-ficidades que caracterizam cada cida-de e lhe imprimem identidade - rela-cionam-se em maior ou menor grau,às suas funções.

Por outro lado, as funções sãofundamentalmente afetadas pelasdemais componentes consideradasno processo histórico em que se de-senvolvem as cidades, de modo que arelação pode ser entendida comodialética, em um panorama em cons-tante transformação.

Compreendidas as funções dascidades conforme conceituação do

texto, ou seja, como “...categorias cujoconteúdo real se transforma no tem-po..” (p. 414), a abordagem de Ron-cayolo leva a considerar que os mo-delos teóricos para explicar a organi-zação do espaço resultam em partitu-ras estáticas das relações funcionais,não se prestando a uma análise dinâ-mica do espaço.

A análise dinâmica do espaço es-taria relacionada à estrutura social, oque implica, de um lado, analisarcomo, numa sociedade historicamen-te determinada, o espaço urbano é ela-borado, ou seja, como os processos quetêm lugar nas cidades determinamuma forma espacial. De outro lado,implica em analisar a essência dasformas, ou seja, o papel por elas de-sempenhado nos diversos momentospor que passa a sociedade no tempo.

Nesse sentido, a formação social,entendida como uma totalidadesocial concreta historicamente deter-minada (Harnecker, 1972) que se ex-prime, a cada momento, através deprocessos que, por sua vez, se desdo-bram através de funções, enquantoestas se realizam através de formas(Santos, 1979), seria o ponto de parti-da e de chegada para o entendimentoda gênese das redes urbanas.

Da abordagem, depreende-se aexistência de uma grande lacunaquanto à teorização do processo deestruturação do espaço urbano notempo, em particular, a ausência deum corpo teórico que permita relacio-nar a forma como o espaço urbano seestratifica ou se relativiza em decor-rência dos processos econômicos, po-líticos e sociais que nele se desenro-lam ou que lhe afetam.

Talvez esta lacuna derive, comosugere o autor, da própria complexi-dade e dinâmica com que se reveste ofenômeno urbano, tornando-se assimimperativas abordagens mais quali-tativas e menos “funcionalistas”, ba-seadas em variáveis meramente quan-titativas.

Considerando que as cidades nãosão entes estanques e sim unidadesde um conjunto - de uma região - suaposição na organização espacialcorresponderia aos nós de uma rede

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que se alimenta através de fluxos deintensidade e extensão variadas, esegundo uma determinada dinâmicaque estabelece sua configuração etambém modifica-a, amplificando asfunções das cidades ou, contraria-mente, marginalizando-as do proces-so de crescimento.

Vista sob este ângulo, a análisedas redes de cidades em determinadaorganização territorial implica, neces-sariamente, na consideração da di-mensão regional do processo. Nessesentido, Pedrão (1999) também ressal-ta que a análise regional não pode sermera aplicação de um instrumentalnão questionado e que, em sua atuali-dade, a questão regional remete àregionalidade do processo econômi-co, isto é, no modo como ele cria e ab-sorve espaço, levando em conta comoele está escorado nas transformaçõesdo meio físico e nas do meio social.

Com tal entendimento, é possívelexplicar como certas regiões perdemsua hegemonia e importância em ter-mos de participação na sociedadeeconômica, a exemplo do Nordeste do

Brasil, enquanto outras se credenciama partir de sua maior mobilidade emtermos de participação no processo demudança.

Um olhar sobre a geografia eco-nômica mundial permite visualizarque o fenômeno das chamadas cida-des globais, ou seja, daquelas cidadesque detêm o centro de comando docapital mundial, decorre justamentedo fenômeno da acumulação no tem-po e da sua capacidade de atualiza-ção tecnológica. Essas megacidadessaíram ainda mais fortalecidas com aglobalização, concentrando hoje aprodução pós-industrial que envolve,além de uma gama variada de servi-ços ao produtor, a produção de tecno-logia de ponta. Formam uma redemundial poderosa e de certa formaarticulada com as cidades que nãorepresentam os nós desse sistema, masintegram-no em níveis diferenciados.

Embora semelhantes, essas cida-des mundiais não podem ser consi-deradas funcionalmente homogêne-as, mesmo quando situadas em umúnico contexto nacional, como por

exemplo, Nova York e Washingtonque possuem especialidades distin-tas embora mantenham relações decomplementaridade, além de outrasfunções paralelas em escala planetá-ria. Entretanto, a repercussão dos no-vos espaços econômicos produzidospor essas cidades sobre o meio físicoe social, embora cada vez mais evi-denciados, ainda são pouco avalia-dos e, aí talvez, mais do que em ou-tros contextos, as bases teóricas doestudo de funções mostrem-se aindamais absoletas.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

HARNECKER, Marta. Conceitos Elemen-tais do Materialismo Histórico. Méxi-co, Siglo Veintiuno Editores, 1972.

PEDRÃO, Fernando. A dimensão regionalda sociedade econômica. Revista deDesenvolvimento Econômico, UNIFACS,1999.

SANTOS, Milton. Espaço e sociedade.Petrópolis, Vozes, 1979.

A UNIFACS reponde por uma considerável produção científicana área do desenvolvimento sócio-econômico regional, operandoatravés do seu IPA – Instituto de Pesquisas Aplicadas que viabilizaos estudos e pesquisas concebidos no Departamento de CiênciasSociais Aplicadas 2. Até a edição desta Revista, a UNIFACS/IPAproduziu os seguintes trabalhos:

PRODUÇÃO CIENTÍFICA EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Laje São Gabriel UauáMutuípe Xique – Xique AmargosaJiquiriçá Jeremoabo AratuípeUbaíra Paulo Afonso CachoeiraSanta Inês Itiruçu Conceição do AlmeidaCravolândia Jaquaquara Cruz das AlmasJacobina Jequié Elísio MedradoMiguel Calmon Maracás JaquaripeMirangaba Buerarema MaragojipeMorro do Chapéu Camacan Muniz FerreiraOurolândia Canavieiras MuritibaVárzea Nova Mascote NazaréSaúde Una Santo AmaroCamamu Campo Formoso São FélixItuberá Itiúba São Miguel das MatasValença Jaquarari SapeaçúIgrapiúna Pindobaçu VarzedoNilo Peçanha Senhor do Bonfim CoaraciTaperoá Iaçu IlhéusAmérica Dourada Ipirá ItabunaBarra do Mendes Itaberaba ItajuípeCanarana Mundo Novo UruçucaCentral Rui Barbosa BrejõesGentio do Ouro Casa Nova Cabaceiras do ParaguaçúIbipeba Curaçá Castro AlvesIbititá Juazeiro Dom Macêdo CostaIrecê Pilão Arcado ItatimJoão Dourado Remanso Santo Antônio de JesusLapão Sento Sé Livramento de Nossa SenhoraPresidente Dutra Sobradinho Feira de SantanaConceição do Jacuípe

• Bahia – Oportunidades de Investimentos em Negócios• Estudo Econômico da Bahia para Investidores Estrangeiros e

Organizações Internacionais de Fomento• História dos 30 anos da Indústria, Comércio e Turismo na

Bahia• Políticas e Estratégias para o Desenvolvimento Industrial e

Comercial da Bahia no Século XXI• Manufatura Informal – Pesquisa na RMS• Geração de Emprego e Renda em Salvador – Relatório de Pes-

quisa nos Bairros da Boca do Rio e do Imbuí• Regionalização do Estado da Bahia – Proposta de Ação Arti-

culada para a política de fomento às micro e pequenas empre-sas – Agências de Desenvolvimento Municipal

• Diagnósticos dos Distritos Industriais mantidos pelo Gover-no/Ba (Ilhéus, Vitória da Conquista, Jequié e Juazeiro )

• Planejamento Estratégico da SUDIC• Perfil do Estudante Universitário Baiano• Anais do Seminário Internacional sobre a Inserção do Semi-

Árido Latino-Americano no processo de Globalização da Eco-nomia Mundial

• Bases para uma política de Comércio para a Bahia• Indicadores de Desempenho Municipal

• Distribuição de Renda na cidade de Salvador. Quadro atuale perspectivas.

• Estudos de Desenvolvimento Municipal (Relatórios de Pes-quisa de Campo – Diagnósticos Sócio-Econômicos) em 91municípios do Estado da Bahia:

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98 RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICOAno II • Nº 3 • Janeiro de 2000 • Salvador, BA

PÓS-GRADUAÇÃOUNIFACS

LATO SENSOl Administraçãol Análise e Intervenção Sociall Clínica de Dorl Design Gráfico e de interfacesl Direito do Trabalhol Direito Públicol E-Businessl Finanças Corporativasl Gestão da Produção Culturall Gestão de Empreendimentos Turísticosl Gestão do Comércio Internacionall Marketingl Novas Abordagens para o Ensino da

Língua Portuguesa: Gramática e Textol Planejamento Ambientall Processol Psicologia Organizacionall Psicopatologia - Modelos e Métodos:

Novas Abordagens em Saúde Mentall Redes de Computadoresl Sistemas Distribuídosl Sistemas e Aplicações WEB

MESTRADOSl Mestrado em Análise Regionall Mestrado em Redes de Computadoresl Mestrado em Administraçãol Mestrado em Regulação da Indústria

de Energia

DOUTORADOSl Doutorado em Planejamento

Territorial e DesenvolvimentoRegional

l Doutorado em AdministraçãoPública

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