demanda efetiva no longo prazo e no processo de acumulaÇÃo: origem e desenvolvimento do debate...
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DEMANDA EFETIVA NO LONGO PRAZO E NO PROCESSO DE
ACUMULAÇÃO: ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO DEBATE
SRAFFIANO A PARTIR DO PROJETO DE GAREGNANI (1962)
Área 3 – História do Pensamento Econômico e Método
Vivian Garrido Moreira*
Franklin Serrano**
ABSTRACT
We discuss the evolution of the sraffian project, initiated in 1962 by Garegnani, of developing a long
period theory of effective demand, dealing with its methodological and analytical aspects. Starting
with the question concerning the compatibility between the principle of effective demand and the
classical surplus approach, we then deal with the relationship between the actual and normal degrees
of capacity utilization and the problem of the dual character of investment. These concepts are then
related to the notion of long period positions and the analysis of the adjustment of capacity to demand
in the process of capital accumulation.
RESUMO
O artigo discute a evolução do projeto sraffiano, iniciado em 1962 por Garegnani, de desenvolver
uma teoria da demanda efetiva de longo prazo. Tratamos tanto dos aspectos metodológicos quanto
analíticos, começando com a questão da compatibilidade entre o princípio da demanda efetiva e a
abordagem clássica do excedente. Discutimos as relações entre os graus efetivo e normal da
utilização da capacidade e o problema do caráter dual do investimento. A seguir relacionamos estes
conceitos com a noção de posições de longo prazo e a análise do processo de ajustamento da
capacidade à demanda no processo de acumulação de capital.
* Pós-doutoranda do departamento de economia da Universidade Estadual de Londrina ** Professor associado do Instituto de Economia da UFRJ
DEMANDA EFETIVA NO LONGO PRAZO E NO PROCESSO DE
ACUMULAÇÃO: ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DO DEBATE
SRAFFIANO A PARTIR DO PROJETO DE GAREGNANI (1962)
Vivian Garrido Moreira*
Franklin Serrano**
I. Introdução: o relatório SVIMEZ de 1962
O programa de pesquisa sraffiano, no seu conteúdo mais amplo, vem evoluindo
através de alguns polos, ditos “separados”, pois, a teorização de cada um destes pode ser
feita de modo parcialmente independente dos outros (Garegnani, 2007). A obra de Sraffa
(1960) é o ponto de partida e o centro de referência para uma retomada das teorias que se
baseiam no conceito de excedente. Sraffa reconstruiu a teoria da distribuição e dos preços
relativos baseado na economia política clássica (e Marx) de onde se origina a atual
abordagem do excedente e retomou de modo ampliado essa antiga abordagem. Essas
teorias separadas, que são o núcleo da teoria da distribuição e dos preços relativos, têm
como objeto de estudo as variáveis tomadas como exógenas no livro de Sraffa, quais
sejam: uma das variáveis distributivas (o salário real ou a taxa de lucro), dada por fatores
político-institucionais, sendo a outra variável determinada residualmente com base no
excedente; as técnicas disponíveis e os níveis setoriais e agregado do produto, bem como
sua taxa de crescimento.
O presente trabalho diz respeito a teoria da determinação do produto agregado e
de sua evolução no tempo, o que o conecta com a teoria da acumulação, dentro da
abordagem sraffiana. Vamos examinar criticamente a evolução do programa de pesquisa
iniciado por Garegnani (1962), na qual, tanto o nível do produto agregado quanto o
processo de acumulação são liderados pela demanda, sustentados a partir da teoria da
demanda efetiva de Keynes e Kalecki, em um contexto de longo prazo. Neste caso, os
preços de produção relativos e a distribuição funcional da renda são determinados de
acordo com a abordagem do excedente. Para orientar esta pesquisa, tomaremos como
referência fundamental o trabalho pioneiro de Garegnani (1962), cuja publicação nos
meios científicos se fragmentou em várias etapas.
Este trabalho se constitui num relatório de pesquisa encomendado pela fundação
SVIMEZ1 para estudos sobre o desenvolvimento do sul da Itália, intitulado “O problema
da demanda efetiva no desenvolvimento italiano”. Tal relatório estava divido em duas
* Pós-doutoranda do departamento de economia da Universidade Estadual de Londrina ** Professor associado do Instituto de Economia da UFRJ
1 A SVIMEZ ( Associazione per lo SVIluppo dell'industria nel MEZzogiorno, associação para o
desenvolvimento da indústria na região do Mezzogiorno, sul da Italia) é uma associação sem fins lucrativos
fundada em 1946 com o objetivo de realizar estudos econômicos com o objetivo de promover a
industrialização na região sul da Itália, região tradicionalmente menos desenvolvida em termos econômicos
e sociais que o norte do pais.
partes: uma teórica e uma aplicada. Na parte teórica, Garegnani se debruça sobre as então
recentes contribuições de Sraffa (1960) e Garegnani (1960) acerca dos fundamentos da
abordagem do excedente e da crítica à abordagem marginalista, para argumentar que o
crescimento da economia e do emprego a longo prazo, mesmo na região mais atrasada da
Itália, era basicamente restrito pela demanda e não por fatores de oferta. E,
adicionalmente, argumenta que o aumento do investimento seria beneficiado por uma
política de aumento (e não redução) dos salários reais e do consumo em geral, ao contrário
da visão dominante tanto entre os marginalistas quanto nas análises da chamada economia
do desenvolvimento. Além do interesse especifico da pesquisa e sua proposta, o que
tornou este relatório bastante influente entre sraffianos foi o grau de detalhamento e rigor
da parte de fundamentos teóricos, assim como a originalidade da visão de crescimento
liderado pela demanda efetiva a longo prazo e compatível com a abordagem clássica do
excedente proposta por Garegnani.
Porém, embora inovadora, a publicação desta análise teórica dentro de um
relatório de pesquisa em edição limitada e escrito em italiano certamente restringiu o seu
impacto inicial. Aos poucos e ao longo dos anos, capítulos isolados da parte teórica do
relatório, em versões substancialmente revisadas, foram sendo publicados nos meios
acadêmicos. Esta parte teórica também se dividia em duas partes2: uma mais crítica, onde
se examinava a relação entre as diferentes abordagens para a teoria da distribuição e
preços relativos e as teorias do produto e emprego; e uma parte mais construtiva, onde se
delineavam aspectos da visão de crescimento liderado pela demanda proposta. Esta parte
construtiva, por sua vez, também se compunha de duas partes: uma onde se examinavam
as consequências mais gerais da independência, mesmo a longo prazo, do investimento
em relação à poupança de plena capacidade; e outra onde se discutiam os principais
determinantes do investimento privado produtivo nesta visão.
A parte crítica foi revisada e publicada em revista na Itália em 1964/65 e em inglês
apenas em 1978/79 (Garegnani 1978/79). Este se tornou provavelmente o artigo mais
influente de Garegnani. Já a parte construtiva foi publicada de forma mais fragmentada.
Inicialmente circulou, e só parcialmente, em cópias mimeografadas a partir de um paper
apresentado numa conferencia (Garegnani, 1982). A versão definitiva só foi publicada
num livro em 1992 (Garegnani, 1992), mas ainda era parcial. Finalmente, o restante desta
parte construtiva (não revista pelo autor) só foi traduzida para o inglês e publicada
postumamente em 2015 (Garegnani, 2015). Dado nosso interesse no debate internacional
da literatura sraffiana, estes trabalhos serão discutidos aqui na ordem em que foram
publicados em inglês.
Serão tratados tanto aspectos metodológicos quanto analíticos, começando com a
questão mais geral da compatibilidade entre o princípio da demanda efetiva e a
abordagem clássica do excedente (Garegnani, 1962[1978-79]) (seção II). Prosseguiremos
com seção III, dividida entre a discussão da independência do investimento em relação a
poupança de plena capacidade, isto é, da negativa da lei de Say no trabalho de Garegnani
(subseção III.1), tratando também de algumas implicações teóricas deste tema. Segue-se
daí a incorporação deliberada do princípio da demanda efetiva no longo prazo, com base
em aspectos relacionados ao processo de ajustamento da capacidade à tendência da
demanda (subseção III.2). Essas duas últimas subseções são construídas com base em
Garegnani (1962[1992]). A partir deste ponto, apresentaremos os problemas e discussões
característicos de um debate interno na literatura sraffiana, que, afinal, surgiram como
resultado da incorporação do princípio da demanda efetiva à esta literatura, passando,
2 Ver Cesarato & Mongiovi, 2015 e Petri, 2000
respectivamente, pela caracterização das posições de longo prazo, o dimensionamento do
grau de utilização normal e finalizando com o ajustamento da capacidade à demanda entre
vários autores (seção IV). Finalmente, elencaremos os elementos presentes em Garegnani
(1962[2015]), que trazem, essencialmente, a intuição para a resolução das próprias
críticas e controvérsias apresentadas na seção IV, fechando o artigo (seção V).
II. Conexão do princípio da demanda efetiva com a abordagem clássica do excedente:
Garegnani (1978/79)
A análise que aqui faremos do trabalho de Garegnani se sustentará em três eixos
fundamentais que compõem esta e as próximas duas seções.
O objetivo principal do artigo seminal de Garegnani Notes on consumption,
investment and effective demand era mostrar a compatibilidade do princípio da demanda
efetiva com a abordagem clássica do excedente, a partir da constatação de um dispensável
uso da lei de Say por D. Ricardo, que, em resumo, poderia ser removida sem qualquer
prejuízo estrutural para toda a construção teórica erigida por esse último para determinar
a taxa de lucro. Assim, os fundamentos da estrutura analítica clássica, como geração de
um excedente, relação inversa entre taxa de lucro natural (normal) e salário real, processo
de escolha das técnicas etc., poderiam dispensar a hipótese de lei de Say para validarem-
se. A sequência do texto mostra que não apenas a lei de Say, mas também o pleno-
emprego3 surgem enquanto necessidade teórica, apenas a partir das incursões da teoria
neoclássica, cuja estrutura fundamental, ao basear-se no princípio da substituição4 gera
mecanismos endógenos, tanto garantindo a existência de demanda correspondente a
qualquer nível de oferta (lei de Say), quanto fazendo com que esse nível corresponda ao
de pleno-emprego, caso não haja nenhum elemento de perturbação do mecanismo de
mercado. Daí toda teoria econômica fundamentada nos princípios marginalistas acaba por
impor logicamente, mesmo que ressalvando imperfeições de curto prazo, o mecanismo
de adaptação da demanda à oferta (lei de Say), via substituição, e a tendência ao pleno-
emprego. O rompimento com esses dois conceitos junto com a tentativa de estabelecer
3 Lembremos que a lei de Say não implica em pleno-emprego (são dois conceitos independentes).
Implica somente no fato de que, para todo volume de oferta haverá sempre uma demanda correspondente.
Apenas dentro dos mecanismos teóricos da abordagem neoclássica é que ocorre a coincidência entre esses
dois conceitos, pois nesta abordagem o produto potencial da economia corresponde ao pleno emprego de
todos os fatores, inclusive o trabalho, enquanto na visão clássica a mão de obra não é escassa. 4 Mecanismo primordial no estabelecimento da inclinação negativa de curva de demanda por um
bem ou fator de produção. A substituição se baseia no preço relativo dos bens ou fatores em questão. Pode
haver substituição no consumo (bens finais) ou na produção (fatores produtivos), sendo que este último
tipo, pode ser de origem direta, quando a substituição é feita diretamente devido ao barateamento relativo
de um fator, ou indireta, quando a substituição de fatores se origina de uma anterior substituição no consumo
em favor do bem mais intensivo no fator que ficou relativamente mais barato. Com base nos mecanismos
de substituição, e, garantida a flexibilidade de preços, a teoria neoclássica é capaz de não somente garantir
a existência de demanda para qualquer nível prévio de produção dado exogenamente (via substituição no
consumo) no caso de troca pura, como também garantir a tendência da produção para o nível de pleno-
emprego (via substituição na produção), assegurada a neutralidade da moeda a longo prazo (Garegnani
(1978/79), Serrano (2001)). Como a abordagem clássica do excedente não utiliza os mecanismos de
substituição presentes na abordagem neoclássica, também não possui nenhum mecanismo de convergência
para o pleno-emprego. Mesmo a lei de Say, conforme mostra o texto, só foi utilizada por Ricardo de modo
arbitrário, pois não existe nenhum mecanismo na teoria clássica que torne a lei de Say uma necessidade
lógica ou analítica.
papel ativo para demanda efetiva no longo prazo implicaria, portanto, no rompimento
com os fundamentos teóricos marginalistas, mas não com os fundamentos clássicos
(embora Keynes não distinguisse corretamente as duas abordagens). Portanto, o projeto
de pesquisa proposto por Sraffa, e fundamentalmente divulgado a partir deste trabalho de
Garegnani, se abriu em três frentes: 1) a crítica e derrubada da estrutura interna da
abordagem neoclássica; 2) a retomada da abordagem clássica original (ou abordagem do
excedente) como alternativa para continuidade da pesquisa econômica; e 3) a conexão do
princípio da demanda efetiva com a abordagem clássica.
A primeira frente mencionada acima, inicia-se, portanto, com a crítica ao
mecanismo neoclássico de substituição de fatores. Essa crítica possui uma diferença
essencial em relação a grande maioria das críticas à teoria neoclássica. O problema com
a maioria das críticas é que elas se dão na construção de obstáculos ou imperfeições que
atuam como barreiras ao pleno-emprego. A natureza desses obstáculos é sempre exógena
à lógica central dos mecanismos neoclássicos de equilíbrio. Mesmo a obra de Keynes
(1936), sofre deste problema5. Construindo uma crítica interna (e não externa como
ocorre à maioria dos críticos à teoria neoclássica), Garegnani mostra que,
independentemente de incerteza ou rigidez de preços ou da taxa de juros, ou qualquer
fator exógeno, o funcionamento dos mecanismos de condução ao pleno-emprego não
pode ser assegurado numa economia, a menos que o capital seja homogêneo6, hipótese
imprescindível para a lógica do argumento marginalista. Ao derrubar a lógica do
mecanismo de substituição entre os fatores de produção, a crítica de Sraffa e Garegnani
implica na quebra da relação inversa entre investimento e taxa de juros, bem como entre
demanda por trabalho e salário real,7 esta última, nada mais sendo do que o primeiro
postulado sobre o mercado de trabalho, aceito por Keynes (1936).
Dessa forma, a determinação do nível de atividade pela demanda, como propõe
Keynes (1936), não se reduz ao caso em que a última aparece impedida por fatores
exógenos, geralmente relacionados ao curto-prazo (na ausência dos quais chega-se
necessariamente ao pleno-emprego), mas sim num caso bem mais geral, onde, nem sob
as hipóteses mais favoráveis, a demanda possui qualquer mecanismo para se enquadrar à
oferta. Dito de outra forma, através da crítica, depois conhecida por controvérsia do
capital, chega-se à conclusão de que não é possível estabelecer uma resposta do
investimento às decisões de poupança (sejam de pleno-emprego ou não), não havendo
5 Garegnani (1978/79) mostra que quando Keynes enxerga a possibilidade de interrupção da
tendência de equilíbrio (e pleno-emprego) neoclássica, via paralisação da demanda, busca a explicação
deste fato em fatores exógenos a estrutura neoclássica, através fundamentalmente da incerteza, dos
episódios de preferência por liquidez e da determinação da taxa de juros fora do mercado de poupança e
investimento. Tal sugestão, ao continuar admitindo a validade geral do mecanismo marginalista, deixou
aberto o caminho para as propostas de “correção” das imperfeições de Keynes, materializadas sobretudo
na síntese neoclássica e, mais modernamente, adicionando-se a hipótese de expectativas racionais. Esses
novos elementos de análise deram conta de reparar os empecilhos de curto prazo da análise de Keynes, ao
retirar os fatores de perturbação, mantendo os fatores de tendência, como a relação inversa a longo prazo
entre taxa de investimento e taxa de juros, através da curva de eficiência marginal do capital fazendo com
que os investimentos atinjam o nível dado pela poupança de pleno-emprego. 6 A percepção do “capital” como um fator de produção genérico e homogêneo é um dos elementos
centrais utilizados pela abordagem neoclássica para garantir o mecanismo de substituição que conduz ao
pleno-emprego. Sempre que o capital for heterogêneo, o que pode ser sintetizado sempre que a relação
capital/trabalho não for a mesma para todos os bens produzidos numa economia, os mecanismos
neoclássicos de equilíbrio não mais se sustentam. O caso geral, portanto, é aquele no qual o capital é
heterogêneo, sendo o homogêneo extremamente particular (possivelmente só útil para a construção de
modelos abstratos). Em se tratando de economias reais então, é simplesmente inconcebível a possibilidade
de capital homogêneo. Ver Garegnani (2012). 7 Ver Eatwell e Milgate (1983).
qualquer mecanismo endógeno nesse sentido. Assim, a taxa de juros que para os
neoclássicos exerceria o papel equilibrador entre as decisões de poupar e investir até que
se chegue ao pleno-emprego, se torna irrelevante para este fim.
Uma vez que a lógica econômica não implique na ocorrência dos mecanismos
neoclássicos de equilíbrio de mercado, a demanda deixa de limitar a produção apenas
devido a fenômenos de curto-prazo (ou seja, perturbadores do equilíbrio), permitindo a
extensão do princípio da demanda efetiva para uma análise do crescimento/longo prazo
das economias. Para atingir esse objetivo, Garegnani procura retomar a abordagem
própria da teoria clássica, apresentando uma proposta de continuidade daquela estrutura
analítica logicamente compatível com o princípio da demanda efetiva. A retomada desse
caminho já se origina em Sraffa (1960), onde fica redescoberta e desenvolvida a teoria do
valor dos economistas clássicos e coube a Garegnani lançar as primeiras ideias de
conexão da teoria sraffiana com o princípio da demanda efetiva.
Este programa de pesquisa tornará o nível de investimentos completamente
independente da poupança de pleno-emprego e mesmo de plena capacidade (do capital já
instalado), simplesmente porque o mesmo não tem qualquer necessidade teórica para essa
convergência. A explicação para o volume do produto social agregado dependerá agora
da demanda também no longo prazo, através de uma nova teoria para o volume de
investimentos. Por outro lado, o volume de poupança será também dado pelo volume de
investimentos. A não necessidade teórica do pleno-emprego leva, por sua vez, à retomada
do conceito de desemprego estrutural dos clássicos, hipótese, inclusive, empiricamente
mais plausível. Diferentemente da lógica neoclássica, não mais será necessária a rigidez
do salário para “garantir” o desemprego estrutural; ele existirá simplesmente porque a
capacidade produtiva é que se ajustará à demanda no longo prazo e não o contrário
(quando, na teoria neoclássica, era necessária a queda do salário para ajustar o produto
potencial ao tamanho da força de trabalho e a flexibilidade da taxa de juros real garantiria
que este produto de pleno emprego seria todo vendido). Não apenas a determinação do
produto, mas também a da distribuição será alterada para a retomada do paradigma
clássico pois a ruptura com a abordagem marginalista rompe também com a lógica de
determinação de salários e taxas de juros de forma simultânea e endógena, feita com base
na otimização do uso de trabalho e capital, respectivamente.8
Enfim, ao romper com a abordagem neoclássica e recuperar o caminho para a
retomada da abordagem clássica do excedente, Garegnani libera também o caminho para
que a demanda agregada seja independente da oferta, num sentido amplo (determina a
produção no presente e posteriormente induz investimento), e este é o primeiro passo para
a ligação entre demanda efetiva e abordagem do excedente, sendo o primeiro eixo
fundamental de Garegnani que gostaríamos de destacar neste trabalho.
8 Supondo-se apenas a existência desses dois fatores de produção, mas a crítica pode ser estendida
para modelos neoclássicos mais complexos.
III. Independência do investimento em relação a poupança de plena capacidade e o ajuste
da capacidade à tendência da demanda no processo de acumulação: Garegnani
(1992)
III.1. A ausência de trade-off entre consumo e investimento em Garegnani (1992)
O artigo de Garegnani (1992) entra mais diretamente na questão da demanda
efetiva concentrando a maior parte da crítica no fechamento teórico da equação de
Cambridge via distribuição, como ficou muito conhecido a partir das contribuições de
Joan Robinson (1956, 1962). Nesta subseção, vamos nos concentrar em mostrar a crítica
à equação de Cambridge, por objetivo didático de melhor organizar as ideias do autor e,
no próximo, focaremos propriamente na defesa da demanda efetiva por parte de
Garegnani.
O principal argumento deste artigo está na elasticidade que a economia capitalista
possui, reagindo aos incentivos para um crescimento mais rápido ou mais lento, levado a
cabo através de variações endógenas na capacidade produtiva. Isso torna meramente
temporária a natureza de grandes excessos ou deficiências de capacidade, não planejados
em relação à demanda. Assim, o ajuste da poupança ao investimento se faria com o
consumo variando na mesma direção do investimento, levando à variação da renda total
e do produto potencial e não a uma alternativa entre os componentes de consumo e
investimento, através do mecanismo de “poupança forçada” como na visão de Joan
Robinson, que só faria sentido se houvesse uma implausível restrição de oferta de longo
prazo. Ao contrário, no longo prazo o processo seria de alargamento das margens para
expansão do produto em resposta à demanda ao invés do estreitamento sugerido pelos
teóricos de Cambridge. Isso acontece porque, potencialmente, qualquer resposta de
aumento do investimento, permitiria, no período seguinte, um nível adicional de
investimento resultante do uso da capacidade adicional gerada. Portanto, em geral, não
há necessidade de mudanças no salário real e conseqüentemente na taxa de lucro a fim de
gerar ou eliminar a poupança correspondente à uma variação do investimento e, pelo
contrário, as margens para expansão do produto (e da capacidade) só tendem a aumentar
com o tempo e o aumento dos investimentos. Assim, Garegnani argumenta que o ajuste
de Cambridge não parece factível diante da elasticidade da renda e da capacidade
produtiva.
Outro ponto são as diferentes concepções possíveis para a taxa de lucro em
conexão com o grau de utilização. Sobre isso, existem considerações não apenas sobre a
abordagem de Cambridge, mas também sobre a dos (neo)kaleckianos em relação aos
sraffianos.9 Garegnani destaca que o conceito clássico de taxa de lucro normal está
associado à rentabilidade associada ao grau de utilização normal da capacidade, enquanto
os autores de Cambridge e kaleckianos utilizam também o conceito de taxa de lucro
realizada, que mede a razão entre a massa de lucro realizada e o estoque de capital já
instalado. Evidentemente, apenas no caso da taxa de lucro normal clássica existe
necessariamente uma relação inversa entre o nível do salário real e a taxa de lucro. No
caso da taxa de lucro realizada, a maior ou menor utilização efetiva do capital já instalado
elimina a necessidade desta relação inversa. No caso do fechamento cambridgeano ocorre
9 Sobre esse assunto, ver também Vianello (1989)
uma conexão direta entre acumulação e distribuição, de modo que a mudança na taxa de
acumulação implica na mudança da taxa de lucro efetiva, que será a nova taxa de lucro
“normal”; esta figurará no longo prazo com um grau de utilização que é mantido
constante, pois a capacidade produtiva não se ajusta a demanda e sim a demanda agregada
é que se ajusta a capacidade existente através de mudanças na distribuição.
Para o fechamento dos kaleckianos, uma mudança na taxa de acumulação se
reflete diretamente numa mudança do nível de utilização da capacidade, o que não altera
a distribuição funcional da renda ou a taxa de lucro normal mas altera, permanentemente,
a taxa de lucro realizada ou efetiva, pois nesta visão o grau de utilização da capacidade
pode ficar indefinidamente diferente do nível normal, possibilitando que a produção
atenda à demanda para um estoque de capital dado. Por isso, os proponentes dessa
corrente de ideias alegam, por exemplo, que um aumento exógeno dos salários reais10 não
necessariamente afetará a taxa de lucros (questionando a validade da clássica relação
inversa lucro-salários), desde que os capitalistas continuem injetando o mesmo volume
de gastos no sistema, mantendo assim o volume total de demanda que será atendido pelas
variações diretas na produção, bastando-se utilizar mais a capacidade produtiva existente.
Ou seja, no caso kaleckiano, não existe exatamente uma conexão entre distribuição
normal e acumulação e o conceito de taxa de lucro normal não é fundamental à sua análise
de longo prazo.
O fechamento propriamente sraffiano, proposto por Garegnani, uma vez que toma
como variável de ajuste o próprio nível da capacidade produtiva (e não a distribuição ou
o grau de utilização efetivo), implica que a concorrência (efetiva e potencial) imponha
que a taxa de lucro contida na determinação dos preços normais seja a que é tomada como
referência para os novos investimentos, ou seja, a taxa de lucro normal (obtida tendo
como referência o grau de utilização normal). Isto ocorre porque os montantes de novos
investimentos sempre serão efetuados com o objetivo de tentar criar capacidade para
atender a demanda esperada ao grau de utilização normal, pois, ao mesmo tempo que não
é nada lucrativo criar capacidade além do necessário, a concorrência impõe que as firmas
não subdimensionem a capacidade em relação às suas concorrentes. Além disso, nesta
visão é a taxa de lucro realizada que tende a se ajustar ao nível da taxa de lucro normal,
através do processo de ajuste do estoque de capital à tendência da demanda. Por exemplo,
um aumento exógeno do salário real, dadas as técnicas em uso, reduziria a taxa de lucro
normal e, supondo inalterada a tendência dos gastos capitalistas totais que não criam
capacidade e que os trabalhadores não poupam, tenderia a manter inalterada a taxa de
lucro realizada, pois nem a massa de lucros nem o estoque de capital inicialmente se
modificaram. Mas como o aumento do salário aumenta o multiplicador, o consumo e o
grau efetivo de utilização aumentam. No fechamento kaleckiano a história pode parar por
aí, mas, para os sraffianos, há uma tendência do investimento de seguir o princípio de
ajuste do estoque de capital e, assim, o investimento induzido por este maior grau de
utilização tenderá a ampliar o estoque de capital até que a massa de lucros realizados em
relação ao último (a taxa de lucro realizada) se iguale a taxa de lucro normal, agora menor.
Assim, na abordagem sraffiana, apesar da relação inversa entre salário real e taxa de lucro
normal e da tendência da taxa de lucro realizada se aproximar da taxa de lucro normal,
não há conexão necessária entre acumulação e distribuição, mesmo com o grau de
utilização tendendo a seu nível normal. Tanto que no exemplo acima, ocorrem aumento
do salário real e queda na taxa normal de lucro e, apesar disso, o estoque de capital é, ao
10 Estamos mantendo a suposição simplificadora de que os salários são inteiramente gastos em
consumo.
final, permanentemente maior do que antes11, o que enfim significa que a relação inversa
entre as variáveis distributivas não se opera da mesma forma que na versão de Cambridge
(e a expansão da capacidade evidencia que não há restrição de oferta), não devendo ser
confundida com a última.
Portanto, concluímos esta seção mostrando que o princípio do ajuste do estoque
de capital garante um resultado efetivo de relação inversa entre as variáveis distributivas
e de tendência à normalidade do grau de utilização e, mesmo que aparentemente
enganoso, isso é justamente o oposto tanto do ajuste de Cambridge quanto da lei de Say,
e é decorrente de uma versão consideravelmente mais “forte” do princípio da demanda
efetiva, levada de fato para o longo prazo. Com isso chegamos ao segundo eixo
fundamental de Garegnani para os fins deste trabalho: tanto a lei de Say quanto o ajuste
de Cambridge, ou seja, as duas principais versões explicativas para um trade-off entre
consumo e investimento, são inadequadas como instrumento analítico da abordagem
sraffiana.
III.2. A afirmação do princípio da demanda efetiva em Garegnani (1992)
Nesta subseção, conforme adiantado, nos concentraremos nos esforços de
evidenciação do princípio da demanda efetiva em Garegnani (1992). Inicialmente, o autor
se baseia num esquema analítico muito simples, no qual a taxa de crescimento do
investimento (e, portanto, do estoque de capital) é dada exogenamente e todo o consumo
é induzido. Formalmente o esquema se reduz a algo como:
𝐼
𝐾=
𝐼
𝑌.𝑌
𝑌∗.𝑌∗
𝐾
Onde I/K é a taxa de crescimento do estoque de capital I/Y é a parcela do
investimento no produto Y/Y* é o grau efetivo de utilização da capacidade e Y*/K é a
relação técnica capacidade normal/capital (a inversa da relação normal capital-produto,
v). Dada a hipótese de consumo totalmente induzido e uma propensão média e marginal
a consumir igual a (1-s), esta equação pode ser rescrita como:
𝑔 = 𝑠/𝑣. 𝑢
Garegnani (1992) usa uma equação deste tipo para mostrar que a taxa garantida
s/v não é a taxa de crescimento, nem do produto, nem do produto potencial e sim a taxa
máxima que o produto potencial poderia crescer se a utilização da capacidade fosse
mantida em seu nível normal continuamente sem interrupções. Assim, demonstra que
mesmo um desvio temporário da utilização normal (aqui u=1), no qual ocorre uma
11 Note que existem duas formas de pensar a tendência ao grau de utilização normal na abordagem
clássica: a “Lei de Say” onde a demanda se ajusta à capacidade existente (Ricardo) e o princípio do ajuste
do estoque de capital onde é a capacidade produtiva da economia que tende a se ajustar à tendência da
demanda (Garegnani e seus seguidores). Note também que que a versão de Joan Robinson/Cambridge não
se enquadra exatamente em nenhuma das duas anteriores, apesar de manter a tendência ao grau de utilização
normal. Neste caso, ela preserva a característica essencial da lei de Say de um trade-off entre consumo e
investimento no longo prazo, o que remete, inevitavelmente, a algum tipo de restrição de oferta, mas o
investimento não é determinado pela poupança potencial, e sim autônomo. Com a limitação na oferta, a
expansão do investimento, só pode se “realizar” com redução do consumo, o que é gerado através da
poupança forçada.
subutilização por apenas um período e depois a taxa de crescimento do investimento volta
ao valor da taxa garantida por hipótese, implicaria numa grande diferença cumulativa nos
níveis futuros da capacidade produtiva da economia, por conta dos investimentos futuros
que deixariam de ocorrer pois a capacidade produtiva que os acomodaria deixou de ser
criada a partir da subutilização da capacidade corrente. Com base neste ponto, nota-se
que o autor postula que uma redução do crescimento do investimento que cause uma
determinada subutilização no presente implica na redução do ritmo de criação de
capacidade produtiva, reduzindo seu tamanho potencial futuro, e, logo, o potencial de
novos potenciais produtivos, independentemente da possibilidade de que, no futuro,
sejam restabelecidas as condições de crescimento equilibrado com u =1. Porém, aqui fica
aberta uma lacuna, pois, se de um lado o autor inicialmente supõe o investimento
exógeno, de outro está assumindo (a exemplo do que já foi discutido na seção anterior
dentro do próprio trabalho de Garegnani) que o mesmo é (no mínimo parcialmente)
induzido pelas variações do grau de utilização. A imprecisão sobre isso torna ainda mais
difícil entender em que condições seria possível o próprio restabelecimento das condições
futuras de crescimento equilibrado, sugerida por hipótese. Garegnani (1992) mostra
também, simetricamente, o grande efeito cumulativo positivo para os níveis de
capacidade produtiva no futuro de uma utilização da capacidade acima da normal, mesmo
que temporária.
A partir daí, tenta argumentar que essa analise demonstraria que é possível que a
capacidade produtiva da economia e o produto cresçam em linha com a demanda a taxas
muito variadas e independentes da taxa garantida determinada pela propensão a poupar a
plena capacidade. E que isso seria plenamente possível por meio de pequenos desvios no
grau de utilização médio da capacidade em relação ao normal ao longo do tempo (u ≠1).
Percebamos como Garegnani, neste ponto, procura evidenciar que a demanda determina
a oferta, no seu sentido amplo (determina a produção corrente e induz o investimento),
pois os desvios mencionados só aparecem na medida em que a demanda efetiva se
diferencia da capacidade instalada e são eles que motivam, por sua vez (quando
persistentes), a variação dos investimentos. Em outras palavras, aqui fica intuído o
princípio da demanda efetiva como instrumento analítico adequado para a abordagem do
excedente no longo prazo (e não apenas a inadequação da lei de Say ou do mecanismo de
poupança forçada). Este é o terceiro eixo fundamental de Garegnani que gostaríamos de
aqui evidenciar.
A ideia de destaque do artigo de Garegnani (1992) é a constatação de que a
variabilidade do grau de utilização, a partir de uma capacidade produtiva inicial dada,
surge como principal indício de que a demanda efetiva realmente possui papel ativo (e é
a variável independente) na condução do crescimento. Esse argumento básico aparece,
dinamicamente, da seguinte maneira: dada uma capacidade produtiva inicial, se vale o
princípio da demanda efetiva, ou devemos supor que essa capacidade não será
normalmente utilizada no primeiro período, ou, caso ela seja normalmente utilizada no
primeiro período, então não o será em algum dos períodos seguintes. Mas, note-se que,
para que a variação do grau de utilização fosse observada na análise, foi necessário, antes,
garantir que a capacidade instalada permanecesse constante. E, apenas num segundo
momento, por meio da variação induzida no investimento, a capacidade, antes dada, pôde
se modificar.
Through comparatively small increases (decreases) in the degrre of utilization
of existing capacity, changes in the level of investment can bring about those
faster (slower) increases of productive capacity itself, which will then result
in that rough correspondence between productive capacity and output which
can be observed historically. (GAREGNANI, 1992, p. 62, grifo nosso)
Estamos fazendo questão de apresentar essa distinção na análise, para deixar claro
que, a partir do momento em que a capacidade começa a se modificar, e enquanto isso
estiver acontecendo, não é possível, a rigor, estabelecer conclusões precisas sobre o grau
de utilização. Diante de uma análise de mudança da capacidade, o próprio conceito de
“utilização” não pode ser adotado, a menos que se especifique a qual capacidade se refere.
No caso de Garegnani, foi tomada como referência a capacidade inicial, posto que as
variações de seu uso forneciam os meios capazes de sustentar o principal argumento do
autor: a mudança da própria capacidade, como resposta à demanda no longo prazo.
Assim, a afirmação de que o desvio da utilização normal da capacidade seria
uma evidência do princípio da demanda efetiva, obviamente não contradiz a tendência à
normalidade do grau de utilização oriunda do ajuste do estoque de capital, discutido na
seção anterior (apesar da imprecisão que ainda envolvia a forma como isso se processa)12
e que, afinal, é o fundamento básico para explicar de que forma a demanda agregada
esperada (e não a poupança potencial) determina o investimento.
Antes de finalizar esta seção, vamos retomar a imprecisão discutida acima, pois,
de certa forma, ela está na base de boa parte dos desentendimentos analíticos que veremos
a seguir. Notemos que, embora o argumento de Garegnani esteja correto a respeito dos
possíveis efeitos sobre os níveis de capacidade produtiva futura de pequenos desvios
temporários do grau de utilização, basta examinar a equação da taxa garantida acima para
notar que o mesmo não pode ser dito sobre a taxa de crescimento médio do investimento,
da economia e da capacidade produtiva. Por exemplo, uma redução permanente da taxa
de crescimento do investimento (e do capital) digamos de 3% para 1,5% ao ano implicaria
numa enorme redução do grau médio efetivo de utilização da capacidade no esquema
acima que cairia para 50% da utilização normal permanentemente (se a queda fosse de
3% para um, u cairia para 0,33). Neste mesmo esquema, partindo de uma situação de
utilização normal, uma aceleração do crescimento da mesma magnitude levaria a um grau
de sobreutilização da capacidade permanente de 100%, o que é ainda mais implausível.
Essas variações enormes e permanentes são totalmente implausíveis e evidentemente
incompatíveis com o que Garegnani queria demonstrar. Mas isso é claramente causado
pela impossibilidade de supor uma taxa de investimento exógena, que não reage às
variações do grau de utilização, ao mesmo tempo em que é suposto um balanceamento
entre capacidade e demanda no longo prazo. Por outro lado, se a taxa de crescimento do
investimento for tornada endógena, ou seja, o investimento se tornar induzido, vai
aparecer imediatamente o problema da instabilidade harrodiana, pois menores (maiores)
valores de u induziriam menores (maiores) valores de g, que levariam a menores
(maiores) valores de u e assim sucessivamente. Vemos aqui que, embora tendo intuições
na direção da solução do problema do caráter dual do investimento, Garegnani (1992)
ainda mantém a dificuldade analítica básica que se reproduzirá de formas variadas pela
literatura.
Atente-se para a dualidade da ideia de que os pequenos desvios do grau de
utilização, apesar de servirem de evidência de que o produto é determinado pela demanda,
é justamente por serem pequenos o que quer dizer que não se distanciam
12 Sobre o que é e como se determina o grau de utilização normal da capacidade, ver a seção IV.2
deste artigo.
sistematicamente de sua gravitação para o nível normal que eles evidenciam,
simultaneamente, a existência de um movimento da capacidade produtiva total no sentido
de se ajustar à demanda agregada. Caso contrário, isto é, se os desvios fossem se
expandindo sistematicamente, estaríamos presenciando apenas que a demanda determina
o nível efetivo de produto, mas não a capacidade. Embora seja bastante claro que a
intenção do autor era provar ambos, é justamente neste último ponto que o problema do
ajuste da capacidade fica tão malparado por tantos anos entre os sraffianos. A seguir,
discutiremos parte dessas controvérsias.
IV. Rumo a esclarecimentos para o projeto de Garegnani: controvérsias sraffianas sobre
a definição de longo prazo, de grau de utilização normal e sobre o ajuste da
capacidade.
Nas seções anteriores, o texto foi organizado com vistas a expor os argumentos de
Garegnani a partir de três eixos fundamentais: 1 – a crítica e descarte do caminho
marginalista de teorização do crescimento econômico, reabrindo o caminho para a
retomada da abordagem clássica do excedente; 2 – a inadequação da lei de Say (e também
do ajuste de Cambridge) dentro desta abordagem do excedente; 3 – a adequação do
princípio da demanda efetiva à estrutura analítica desta mesma abordagem. No final da
última seção, vimos que, embora a intenção de Garegnani hoje nos pareça muito clara
sobre o acolhimento teórico do princípio do ajuste do estoque de capital, o fato é que
diversas controvérsias na literatura se levantaram sobre este ponto. Elencaremos aqui, três
importantes discussões entre autores sraffianos: a concepção de longo prazo, a concepção
de normalidade do grau de utilização e, a partir desses duas primeiras, a própria (e
polêmica) concepção do princípio de ajustamento do estoque de capital no longo prazo.
IV. 1. A caracterização da posição de longo prazo
A caracterização da posição de longo prazo da economia já gerou bastante
ambiguidade na literatura sraffiana. Todos os autores envolvidos concordam que nesta
posição prevalecem os valores normais da taxa geral de lucros e dos preços relativos e
pode existir amplo desemprego do trabalho. A problemática começa no questionamento
sobre se o estoque de capital deve necessariamente estar plenamente ajustado (com o grau
de utilização normal) ao nível (e composição) da demanda efetiva numa posição de longo
prazo.
Segundo Eatwell (1979, 1983), Milgate (1982) e Eatwell & Milgate (1983), a
resposta seria sim. Para Vianello (1985) também, a posição de longo prazo seria uma
posição de “pleno ajustamento” da capacidade à demanda.13 Ciccone (1986, 2011) e
Garegnani (1992) argumentam que uma posição de longo prazo não necessita ser
caracterizada desta forma e é compatível com situações onde o grau efetivo da utilização
da capacidade produtiva (tanto agregado quanto setorial) pode ser bem diferente do seu
nível normal ou planejado. Esta visão aparece inicialmente no trabalho de Ciccone
(1986). Ali se reconhece que, num sistema de livre concorrência, o cálculo dos preços
normais deve ser realizado tendo como referência o nível normal de utilização da
13 Eatwell (2012) mantem sua posição a este respeito. Vianello (1989) muda de ideia a partir da
aceitação da crítica de Ciccone (1986).
capacidade (custo fixo por unidade de produto ao nível da utilização normal da planta).
Porém, isso não significa que o nível efetivo de utilização também precise ser normal para
que sejam realizados os preços normais. Para a gravitação dos preços de mercado aos
preços normais, é suficientemente que a produção em cada setor (e não necessariamente
a capacidade produtiva) se ajuste plenamente à demanda efetiva. Como a produção, em
geral, possui suficiente margem para se alterar através dos diferentes níveis de utilização
da capacidade, não há necessidade de que a própria capacidade (ou seja, o estoque de
capital total) esteja em sintonia fina com a demanda no conceito de longo prazo
considerado pelo autor. Portanto, a princípio, é bastante provável, sobretudo devido a
indivisibilidades e a longa vida útil de vários itens do estoque de capital fixo, que a
produção e os preços se ajustem às suas posições de longo prazo com níveis de utilização
ainda diferentes do normal.
Nesta situação, embora a taxa de lucro realizada sobre o capital já instalado possa
diferir entre os setores, a taxa de lucro que se pode esperar nos novos investimentos é
uniforme e igual a taxa de lucro normal14. Segundo Ciccone (1986) essa uniformidade da
taxa de lucros nos novos investimentos requereria apenas, para um dado nível de
demanda, que o tamanho relativo das indústrias seja tal que não torne mais lucrativo o
investimento em qualquer delas em detrimento das outras. E isso, prescinde da hipótese
de que o tamanho total do estoque de capital já existente deva manter alguma relação fixa
com a demanda. Enfim, o que importa é que as quantidades produzidas estejam em
consonância com a demanda efetiva, o que não implica que a capacidade produtiva
também esteja e o grau de utilização seja normal. Entretanto, isso não nega que haja uma
tendência de ajuste da capacidade à demanda. Mas afirma que as causas que deste
processo diferem daquelas concernentes ao ajuste de longo prazo dos preços, pois são
causas relacionadas ao, bem mais prolongado e complexo, processo de acumulação de
capital.
Ciccone (1986) deixa claro que o ajuste de preços de mercado aos preços normais
e das quantidades produzidas e trazidas ao mercado à demanda efetiva são suficientes
para caracterizar a tendência as posições normais de longo prazo da economia dentro da
abordagem do excedente, e que isso nada implica sobre um possível estudo acerca do
ajuste da capacidade:
What has just been said does not exclude the possibility that a tendency of
capacity to assume a particular size relative to demand is constantly at work.
There is no evident reason, however, for thinking that an adjustment of this
type must take place ‘simultaneously’ with the gravitation of prices towards
their long-period values; that tendency seems rather to give rise to a slower
and more complex , which implies net accumulation (positive or negative) for
the economy as a whole ... in any case , a general accumulation or
decumulation of capital cannot fail to have a wide-reaching effect on
aggregate demand itself , and the achievement of a particular size of capacity
relative to that of demand appears in itself to be a process liable to be
frustrated for long periods of time… these periods may be longer than those
required for normal prices to show themselves as the central positions for
actual prices –longer that is ,than the “long period” itself. (CICCONE,
1986, p.10).
14 Determinada por uma variável distributiva exógena e os custos das técnicas dominantes operadas
ao grau de utilização normal
É importante deixar claro que, apesar do grau de utilização normal não ser uma
condição necessária para o ajuste à posição de longo prazo, ainda assim, é a referência
utilizada para o cálculo dos preços normais que deverão prevalecer no longo prazo. Isso
significa que, independente da capacidade instalada efetiva num dado momento, para
cada novo processo de instalação de capacidade, a intenção de operá-la ao nível normal
será sempre uma baliza para as decisões de investimento, na medida em que, para um
dado nível de demanda, é, ao grau de utilização normal que será obtida a taxa de lucro
normal (através dos preços normais).
Nesta concepção (utilizada também por Garegnani, 1992 e Ciccone, 2011) num
contexto de longo prazo tanto o produto quanto a capacidade variam e a demanda efetiva
normal seria atendida tanto pela maior utilização da capacidade já instalada
anteriormente quanto pela nova capacidade produtiva resultante de investimento mais
recente. Este conceito de longo prazo mantém a ideia de que o longo prazo é longo o
suficiente para que algum efeito capacidade do investimento tenha que ser levado em
conta, mas, ao mesmo tempo, não impõe que o prazo seja tão longo que o ajustamento
da capacidade à tendência da demanda seja completo, pois assim que a produção se
ajustar à demanda os preços de mercado não terão como se sustentar em níveis diferentes
dos preços normais.
Uma implicação da distinção entre as velocidades de ajuste de preços e produção
versus o ajuste da capacidade produtiva é que nesta concepção faz sentido falar em preços
normais e produto setorial e agregado normais mas, para evitar confusão terminológica
e conceitual, não é recomendável o uso da expressão “capacidade produtiva normal” ou
de longo prazo, já que a tendência a esta última se daria num prazo “mais longo que o
longo prazo”.
Apesar de Ciccone (1986, 2011) e Garegnani (1992) argumentarem em termos de
que o ajuste da composição dos investimentos é suficiente para que a taxa de lucro
esperada seja a taxa de lucro normal, a questão pode ser talvez melhor colocada a partir
da observação de Garegnani (1979b) sobre o fato de que a taxa de lucro normal é aquela
que estaria sendo realizada no presente por produtores que estiverem utilizando a
capacidade ao grau de utilização normal. Pois o ponto central da questão da definição de
uma posição de longo prazo com preços normais, apesar do grau de utilização realizado
efetivamente no capital instalado não ser necessariamente o normal, parece estar ligada
ao processo de concorrência entre as empresas. Numa concepção clássica, quando os
custos estiverem acima do normal, seja porque o grau de utilização está abaixo, seja
porque está muito acima do grau normal de utilização,15 a concorrência, de qualquer
forma, não permitiria que os preços fossem elevados acima do normal. A preços mais
altos que os normais, outras firmas já no mercado podem estar operando mais próximas
ao grau de utilização normal e poderiam aumentar suas parcelas de mercado às custas das
firmas que aumentaram seus preços. Além disso, estes preços mais altos podem atrair
novos entrantes no mercado que instalariam capacidade de tamanho mais adequado a
demanda e obteriam lucros anormais às custas das firmas que aumentaram os preços.
Assim, tanto a concorrência dos rivais no mercado, quanto a dos concorrentes potenciais
garantem uma tendência de a demanda ser atendida aos preços normais, mesmo quando
o grau médio efetivo de utilização da capacidade em um mercado estiver bem diferente
15 Se o grau de utilização estiver abaixo do nível normal, o custo fixo por unidade de produto será
maior que o normal. Se o grau de utilização estiver um pouco acima do grau normal os custos médios
estariam caindo (o que leva aos preços normais a lucros extras) até o ponto em que o grau de utilização se
torna tão elevado que os custos médios começam a aumentar devido aos custos de se operar a capacidade
muito acima do trecho minimizador de custos (ver seção IV.3 abaixo e Ciccone (1987)).
do nível normal. Toda esta discussão implica, por seu turno, numa outra controvérsia,
envolvendo a própria definição de grau de utilização normal, que é o que vamos discutir
a seguir.
IV.2. A definição do grau de utilização normal ou planejado
Uma outra discussão importante diz respeito a própria caracterização dos
determinantes do que seria o grau de utilização “normal” da capacidade produtiva em
termos de capital fixo. Para Ciccone (1986), na linha aberta por Steindl (1952) a
concorrência impõe que as empresas invistam em capacidade grande o suficiente para
atender os picos esperados de demanda durante a vida útil dos equipamentos. Dessa
forma, o padrão usual (ou convencional) da razão entre média e pico da demanda em cada
setor determinaria o grau de capacidade ociosa planejada. Esta relação pico/média
refletiria o padrão sazonal e de outras oscilações da demanda observados ao longo de
muitos ciclos econômicos e portanto, o grau de utilização normal de cada setor é tomado
basicamente como um parâmetro exógeno na análise da determinação do produto e da
acumulação de capital. Kurz (1986) critica esta visão, chamando a atenção para o fato de
que o próprio modo de operação do capital fixo, por si só, constitui um típico problema
de escolha de técnicas e que mudanças na distribuição de renda e nos preços relativos
podem alterar de maneira complexa a técnica escolhida.
Dessa maneira, segundo Kurz (1986), frequentemente pode não valer a pena
aumentar o grau de utilização para atender aumentos de demanda, porque, mediante a
necessidade de mudança para um regime mais intenso de operação da planta, os custos
de produção aumentariam16 e, mediante uma dada configuração da distribuição e preços
relativos, não haveria vantagem em efetuar este aumento no grau de utilização. Só valeria
a pena alterar o regime de operação da planta se houver mudanças nos preços mais que
compensando o aumento dos custos. Finalmente vale notar que, nessa análise, a economia
só “escapa” do grau de utilização normal quando migra para “outro” grau de utilização
normal, ou melhor, o próprio grau de utilização normal é redimensionado para cada
mudança nos preços / distribuição e, desde que os empresários estejam minimizando os
custos, a economia sempre estará operando sob o grau de utilização normal.
Ciccone (1987) responde ao artigo de Kurz (1986) reafirmando as ideias de
Ciccone (1986). O trabalho se pauta na consideração central das flutuações de demanda
para determinação do grau de utilização normal. Exatamente pelo fato de os empresários
saberem que a demanda tende a flutuar significativamente, e serem obrigados a atender
os picos de demanda, procuram, sistematicamente, calcular a dimensão da capacidade
com alguma folga de ociosidade já planejada. A técnica minimizadora de custos não deixa
de ser escolhida na tomada de decisão de investimentos mas, ao contrário de Kurz, a
minimização se daria para uma capacidade produtiva máxima, suficiente para atender os
picos, não a média, de demanda esperada. Com isso fica determinado o grau de
capacidade ociosa já planejada no equipamento. Neste caso, ao contrário do que ocorre
na análise de Kurz, o desvio do grau de utilização efetivo em relação ao nível normal,
usualmente não deve implicar em maiores custos, uma vez que o estoque de capital não
será sobrecarregado e sim a quantidade de capital utilizada aumentará paralelamente ao
16 A ideia de aumento de custos está relacionada à remuneração de horas extras ao trabalho, cujo
valor tende a ser maior do que o das horas ordinárias, ou, analogamente, o aumento da remuneração por
hora da mão-de-obra mais produtiva ou qualificada, ou ainda, o aumento dos custos com depreciação do
capital fixo por unidade de tempo.
aumento das horas trabalhadas. Como a planta é calculada com alguma margem ociosa,
o aumento do grau de utilização acima do normal, deve gerar ganhos de escala, reduzindo
os custos unitários, até o limite da capacidade máxima, naquele regime de operação.
IV.3. Ajustamento da capacidade à demanda
IV.3.1. Condições necessárias para o ajustamento
Finalmente, chegamos a controvérsia elementar deste debate. Antes de entrar na
literatura, é importante apontar que duas condições lógicas são estritamente necessárias
(mas não suficientes) para que se postule uma tendência da capacidade produtiva se
ajustar a demanda. A primeira, um tanto óbvia, é que, no contexto do processo de
acumulação, o investimento que cria capacidade produtiva para o setor privado seja
endógeno (portanto, torna-se impraticável que seja unicamente determinado tanto por
animal spirits quanto por qualquer fator que previamente o associe à poupança potencial)
e o seu total tenda ao valor requerido que gere o estoque de capital necessário para atender
a demanda efetiva agregada e sua evolução no tempo. Chamaremos esta condição de
condição 1.
A segunda condição necessária é que seja possível que na economia em questão o
investimento cresça mais ou menos que o consumo (ou os gastos que não criam
capacidade para o setor privado, em termos mais gerais). Somente no caso de o
investimento poder variar mais ou menos do que o consumo será possível que
posteriormente o estoque de capital cresça mais ou menos rápido do que a demanda
agregada e o ajustamento da capacidade à demanda seja logicamente possível. No caso
de uma empresa ou mesmo de um setor da economia essa condição lógica é sempre
facilmente atendida, pois o investimento de uma firma ou setor isolado terá efeitos muito
limitados em termos de aumento induzido da demanda por produtos desta firma ou deste
setor. Assim, no caso de subutilização da capacidade basta apenas que o investimento da
firma ou do setor aumente menos do que a sua demanda para que haja uma tendência à
utilização normal. Da mesma forma, no caso de uma utilização da capacidade acima do
nível normal, basta que o investimento da empresa ou setor cresça mais do que sua
demanda, para que o desequilíbrio tenda a ser corrigido. Logo, no nível de uma firma ou
setor essa condição necessária para o ajustamento ir na direção certa é facilmente atendida
(embora não impeça em si a possibilidade de overshooting e, logo, não é uma condição
suficiente).
Em nível macroeconômico no entanto, a questão não é tão simples. O
investimento agregado tem, naturalmente, um forte efeito no consumo agregado através
do mecanismo do multiplicador. E se não houver outros gastos autônomos que não criam
capacidade, variações do investimento não vão mudar a taxa de investimento, isto é, o
investimento e o consumo sempre vão aumentar na mesma proporção. Neste caso o
ajustamento da capacidade à demanda é logicamente impossível, pois qualquer aumento
ou queda do investimento levará a um aumento ou queda proporcional do consumo. Como
o investimento primeiro gera demanda (tanto diretamente quanto via multiplicador), e só
posteriormente altera a capacidade produtiva, tentativas de, por exemplo, corrigir um grau
de utilização da capacidade inicial inferior ao normal, através da redução do crescimento
do investimento, vão primeiro reduzir ainda mais o crescimento da demanda agregada e
o grau de utilização efetivo e só posteriormente reduzir o crescimento da capacidade
produtiva. Se a partir daí o investimento for reduzido novamente, o processo cumulativo
se agrava e temos a conhecida “instabilidade fundamental” de Harrod (1939) (o mesmo
processo funciona simetricamente no caso de um grau de utilização acima do normal).
Assim, a segunda condição necessária para que haja a possibilidade lógica do ajustamento
da capacidade à demanda é a existência de gastos autônomos que não criam capacidade
para o setor privado. Chamaremos esta condição de condição 2. No restante desta seção
veremos as dificuldades analíticas encontradas por autores sraffianos ligadas a essas duas
condições.
IV.3.2. A abordagem de Eatwell & Milgate
Eatwell (1979, reproduzido em Eatwell & Milgate, 1983) propõe que na posição
normal da economia, onde os preços normais prevalecem, a capacidade produtiva esteja
ajustada ao nível e a composição do produto e da demanda efetiva. E trata os níveis
setoriais e agregado de investimento das empresas como exógenos. Já vimos que tal
procedimento não criaria problema se o autor tivesse suposto que apenas a produção
corrente estivesse ajustada a demanda pois o grau de utilização efetivo da capacidade
existente acomodaria essa demanda. Mas se estamos num contexto onde a capacidade
está ajustada à demanda, não faz sentido lógico tratar o investimento como exógeno.
Logo, já vemos aqui que Eatwell acaba por infringir a condição 1 da seção anterior. O
mesmo tipo de tratamento se encontra no livro de Milgate (1982, cap. 6, especialmente
seção B), baseado em tese de doutorado orientada por Eatwell, onde é proposta uma
releitura da teoria da demanda efetiva de Keynes como sendo fundamentalmente uma
teoria de longo prazo. Milgate (1982) chega a reconhecer que tal interpretação não é
consistente com a suposição explícita de Keynes que toma o estoque de capital total como
um dado, mas baseia sua interpretação na ideia de que Keynes achava, e com razão, que
a determinação do produto pela demanda efetiva era uma proposição válida bem além de
equilíbrios de curto prazo marshallianos, onde a composição do estoque de capital não
está adequada à estrutura da demanda da economia.17 O que nos interessa aqui é ressaltar
que Milgate (1982) também não menciona a possível incoerência de falar de ajustamento
da capacidade à demanda e supor o investimento exógeno, portanto, igualmente
infringindo a condição 1. Na introdução dos editores da coletânea Eatwell & Milgate
(1983) mais uma vez este problema aparece.
Eatwell & Milgate (1983) estão corretos em afirmar que o equilibrio do produto
em Keynes refletiria forças persistentes. E de fato, em Keynes não há grande mudança na
passagem de um equlibrio marshalliano de curto para um de longo prazo. Ocorre apenas
uma gravitação dos preços dos seus níveis de equilíbrio de curto prazo iguais aos custos
marginais para seus níveis de longo prazo iguais aos custos médios de longo prazo,
conforme a composição do estoque de capital se ajusta à estrutura da demanda. No
entanto, o próprio Garegnani, em carta endereçada a Eatwell & Milgate e reproduzida
como nota de rodapé no prefácio do livro Eatwell & Milgate (1983), chama a atenção de
que a análise de Keynes não pode ser utilizada para uma análise satisfatória do processo
de acumulação, por conta dos seus elementos marginalistas (i.e. baseados no princípio de
substituição de fatores de produção) na função investimento, na determinação do produto
17 É interessante notar que ao longo do livro Milgate (1982) se refere ao equilíbrio de longo prazo,
tanto clássico quanto neoclássico, como incorporando a condição de que a composição do estoque de
capital está ajustada a demanda. Já Ciccone (1986) fala composição do investimento bruto.
potencial com pleno emprego de todos os fatores, etc. Assim, para que haja ajustamento
da capacidade à demanda, é preciso partir de outro arcabouço.
Não deixa de ser irônico constatar que a cobrança de algo sobre a endogeneidade
do investimento seria desnecessária se Eatwell e Milgate não estivessem supondo
posições de pleno ajustamento e caracterizassem a posição de longo prazo como faz
Ciccone (1986). Somente em Eatwell (1983) aparece a discussão sobre a inconsistência
do seu próprio tratamento anterior do investimento. O problema é colocado com bastante
clareza:
The process is one of the adjustment of capacity to demand. Here the analysis
encounters a difficulty. Demand has been supposed to be the independent
variable, yet the process of adjustment of sectoral capacity to demand must
involve changes in investment, one of the components of autonomous demand.
At the aggregate level this difficulty is manifest in the instability of Harrod's
warranted rate of growth. The 'two-sided' character of investment—that it
creates capacity and determines demand—results in a cumulative process of
expansion or decline, with no tendency for the mutual adjustment of capacity
and demand, quite the contrary. The origin of the problem is that on the one
hand investment is assumed to be the inde pendent variable, whilst on the other
hand variation in the composition and perhaps the overall size of investment is
the mechanism by which capacity is adjusted to demand. (EATWELL, 1983
p.15)
E a seguir, propõe que a solução pode ser encontrada na própria análise de
emprego de longo prazo de Keynes, referindo-se ao capítulo 5 da Teoria Geral, onde tal
conceito é definido como o nível de emprego que corresponde a um dado estado de
expectativas de longo prazo. Este nível de emprego supostamente corresponde a uma
determinada capacidade de produção de longo prazo18 e vai depender do montante de
investimento efetuado a partir de tais expectativas, da função consumo e do efeito
multiplicador. Seria este estado de expectativa a verdadeira variável independente a
considerar e não o próprio investimento. O motivo pelo qual esse processo seria
consistente pode ser melhor ilustrado pelo próprio autor:
The process may be overshoot ... but so long as the state of expectation may
be supposed to be given then competition will tend to push the level of
capacity toward that which is appropriate to sustain the long-term level of
employment ... There is no reason to suppose that this will be a smooth
process, but the usual oscillations and instabilities of multiplier-accelerator
models will be damped by the fixed level of demand associated with the state
of long-term expectation. (EATWELL, 1983, p.283, grifo original).
O autor argumenta que o estado de expectativas está alicerçado numa complexa
estrutura de instituições, financeiras e industriais, nacionais e internacionais, públicas e
privadas. Portanto, a estabilidade do estado de expectativas seria proveniente da
estabilidade do quadro institucional. Entende também que as principais condições
institucionais que entram na formação de expectativas apresentariam mudanças
relativamente lentas, de modo que as expectativas, mesmo sendo revistas com alguma
18 Eatwell (1983) não dá base textual para sua suposição central de que estados de expectativas
diferentes correspondem a estoques de capital fixo diferentes no capitulo 5 de Keynes (1936) e não parece
haver referências a isto neste capítulo. Como Keynes aceita o princípio de substituição neoclássico, em
Keynes um maior nível de emprego e produto de longo prazo pode e será atendido pelo mesmo estoque de
capital dado, pois o maior nível de emprego, que em sua teoria vem junto com uma redução do salário real
que induz a escolha de técnicas mais intensivas em trabalho.
base nas flutuações cíclicas de demanda, devem ser revistas de modo bem moderado, o
que lhes confere estabilidade e confiabilidade. Os investidores, por exemplo, não
reveriam seus níveis de investimentos em face a claros booms temporários de consumo.
O problema é: como, concretamente, seria possível se realizar essa intuição de
Eatwell? Se os investimentos forem induzidos, as expectativas teriam de ser endógenas,
baseadas na variação do nível de atividade, o que não se enquadra na proposta do autor,
mas concilia a variação do estoque de capital com a taxa efetiva de crescimento da
demanda; se autônomos, as expectativas seriam exógenas, determinadas por um “estado
de confiança” de longo prazo, para onde se aproxima a sugestão do autor, mas deixando
em aberto a questão: como seria racional para os empresários manter um determinado
estado de confiança, criando, deliberadamente, capacidade ociosa não lucrativa, diante de
um sistema concorrencial? Se o estado de expectativas é dado, as firmas não poderiam
reagir neste caso. Mas se os investimentos reagem (algo aparentemente inevitável quando
há concorrência), então as expectativas não podem ser consideradas dadas. Isto parece
tornar a sugestão de Eatwell inconsistente estruturalmente.19
IV.3.3. A abordagem de Vianello
Vianello (1985) se propôs explicitamente a discutir o processo de ajuste da
capacidade à demanda. Embora posteriormente Vianello (1989) tenha adotado a visão de
longo prazo de Ciccone (1986), não requerendo que tal ajustamento seja completo, ele
utiliza basicamente o esquema de análise do artigo de 1985 em diversas contribuições
posteriores. Tais contribuições têm como objetivo central, criticar as análises da relação
entre distribuição de renda, taxa de lucro e acumulação de capital respectivamente de
Kalecki (Vianello (1989)), Joan Robinson (Vianello,1996) e dos neokaleckianos
(Vianello e Ciampalini (2000)). O que nos interessa aqui é apenas a forma especifica
como é tratado o investimento em todos estes trabalhos. Em seu esquema analítico
simplificado, a taxa de crescimento agregado do nível de investimentos em geral é
exógena. Boa parte da discussão consiste apenas em mostrar corretamente que não há
motivo algum para que o investimento cresça continuamente à taxa garantida de Harrod
(que implicaria que em todos os períodos o investimento se ajustaria inteiramente à
poupança de plena capacidade). E apontar que isto significa que a taxa de acumulação
correspondente a esta taxa garantida não nos dá nenhuma informação relevante sobre
ritmo em que a economia está de fato acumulando capital em média ao longo do tempo
(seguindo de perto as ideias de Garegnani, 1992, 2015).
Ao mesmo tempo, Vianello (1985) afirma que existe uma tendência de
ajustamento da capacidade à demanda e diz que os desvios deste ajustamento são de
natureza temporária. E completa dizendo que “a difference must be recognized, in long
run analysis between two kinds of investment decisions, those intended to restore or
preserve the normal degree of utilization, and those intended for other purposes, such as
the introduction of new products or new processes. It is the latter decisions that determine
the pace of accumulation;” (VIANELLO, 1985, p.86). Adicionalmente, em Vianello
(1989b) e Vianello e Ciampalini (2000), acrescenta que o investimento pode ser afetado
diretamente pela taxa normal de lucro. Por exemplo, pode se reduzir como reação direta
a uma queda da taxa normal de lucro advinda de um aumento do salário real.
19 O mesmo tipo de crítica se aplica à formalização deste tipo de ideia apresentada por Park (2011).
Nenhuma dessas ideias sobre como se determinam os investimentos a longo prazo
são integradas com o esquema analítico formal utilizado por Vianello. E não fica nada
claro como os investimentos induzidos cujo objetivo seria restabelecer a utilização
normal da capacidade podem ser independentes do montante de investimentos efetuados
“por outros motivos”. Investimentos em “novos produtos” podem simplesmente reduzir
a demanda por produtos antigos se não houver uma adicional injeção autônoma de poder
de compra monetário para permitir o aumento do consumo agregado (ou uma redução na
propensão marginal a poupar da economia). Por outro lado, investimentos que criam
“novos processos” roubam parcelas de mercado dos que ainda operam processos antigos
e é bem provável que, cedo ou tarde, estes últimos reduzam seus investimentos para
restabelecer a utilização normal de suas capacidades, tornando, no mínimo pouco
persistente, o resultado agregado expansionista.20 Com base neste tipo de insight verifica-
se que, não havendo a injeção de poder de compra adicional, que não cria mais capacidade
produtiva, não há como equacionar coerentemente a sugestão de Vianello, pois,
essencialmente, está-se infringindo a condição 2 da seção acima e, portanto, não é
possível que a capacidade se ajuste à demanda no longo prazo.
No caso de maior investimento devido ao estímulo de uma maior taxa normal de
lucro é bastante implausível que, motivadas apenas por isso, as empresas criem
capacidade produtiva para qual não há perspectiva de demanda, já que estariam criando
capacidade ociosa não desejada e nada lucrativa. Já no caso em que investidores reduzem
seus investimentos, desestimulados pela queda da taxa normal de lucro, fica o
questionamento sobre se o menor crescimento da capacidade produtiva resultante disso,
combinado com o crescimento do consumo agregado advindo da maior parcela salarial e
do multiplicador, não aumentaria o grau efetivo de utilização da capacidade existente e
estimularia novamente os investimentos induzidos de outras empresas.21 A rigor, em
nenhum destes trabalhos, Vianello (1985, 1989b, 1996) e Vianello e Ciampalini (2000),
o autor nos dá alguma indicação de como se efetuaria o ajustamento da capacidade à
demanda, levando em conta os efeitos capacidade destes vários determinantes possíveis
do investimento.
Além desta ambiguidade sobre o caráter autônomo/exógeno ou
induzido/endógeno do investimento total, Vianello usa, em todos estes trabalhos, um
esquema analítico onde todo o consumo é induzido e, portanto, para uma dada
distribuição de renda, proporcional ao produto. Assim, o investimento e o consumo
sempre variam na mesma proporção, como se admite em: “entrepreneurs do not choose
the proportion of income which is devoted to investment” (Vianello,1985, p.19). Neste
caso, no entanto, como vimos acima, o ajustamento da capacidade à demanda é
logicamente impossível e acaba infringindo, em diferentes momentos, as condições 1 e
2.
20 Note que investimentos em inovações podem reduzir a vida útil do estoque de capital existente
e/ou levar à frustração das expectativas de demanda dos não inovadores. Ambos os efeitos podem aumentar
o nível agregado de investimento, mas é improvável que tais efeitos possam persistir o suficiente para que
gerem uma taxa de crescimento permanentemente mais alta, o que requereria supor uma implausível
redução continua da vida útil do equipamento e/ou uma redução continua da parcela de mercado dos não
inovadores e, portanto, uma queda continua do grau de utilização efetivo das capacidades produtivas destas,
sem efeitos negativos sobre seus investimentos. Para estas (e outras) críticas a noção de crescimento
liderado por investimentos autônomos em inovações ver Cesaratto, Serrano & Stirati (2003). 21 Para as críticas de autores sraffianos a ideia de que o investimento pode ser função direta do
nível da taxa de lucro normal ver Cesaratto (2015).
V. Resgatando os elementos originais de 1962: a solução de Garegnani (2015)
Com base no que vimos até aqui, podemos afirmar que as principais controvérsias
da literatura discutida giraram, basicamente em torno de: i) a confusão entre a afirmação
de Garegnani (1992) de que o grau de utilização não tem porque se igualar ao normal,
nem em média, no longo prazo com a ideia subsequente de balanceamento entre demanda
e capacidade gerando uma tendência à sua normalidade; essa confusão está fortemente
alicerçada na discussão sobre inclusão ou não da capacidade produtiva inicial à análise,
mencionada na seção III.2; ii) a distorcida interpretação da independência do
investimento no longo prazo como prova da proeminência da demanda no processo de
crescimento; o investimento em Garegnani é totalmente independente apenas da
poupança potencial, mas isto não implica diretamente em investimentos estritamente
autônomos, tampouco implica na completa lógica inversa de que, se os investimentos
forem induzidos, necessariamente se recai na instabilidade de Harrod (salvo se economia
se mantiver, por coincidência, continuamente ajustada, com grau de utilização sempre
normal). Essa dificuldade na interpretação da função investimento, bem como de seu
caráter dual, decorrem do quão pouco esclarecida esteve a condição necessária de
existência de consumo autônomo na demanda final (condição necessária número 2 da
seção IV.3.1)
No entanto, a base para o tratamento analítico satisfatório desta questão já se
encontra no relatório de 1962, no capítulo IV da parte teórica que acabou só sendo
publicado (postumamente) em 2015. Neste texto Garegnani argumenta que os
determinantes do investimento podem ser reduzidos a apenas dois: a evolução (esperada
e posteriormente efetiva) do que chama de “demanda final” e o progresso técnico.
“Demanda final” é definida como a demanda cujo objetivo não é a produção adicional de
bens dentro da economia, ou seja, os gastos que não criam capacidade para as empresas
do setor privado da economia. Essa “demanda final” exclui o investimento privado não
residencial e inclui consumo, gastos públicos em geral, investimento residencial e as
exportações líquidas.
Garegnani argumenta que o investimento é fundamentalmente induzido pela
expansão da “demanda final” a partir do “princípio do acelerador” e reconhece que parte
do consumo é induzido pelo próprio aumento da produção, mas deixa claro que são os
elementos autônomos da “demanda final” que têm um papel central na sustentação do
investimento a longo prazo. Argumenta também que o investimento não depende da taxa
de lucros realizada nos novos investimentos pois, como o investimento é induzido pela
demanda, é a taxa de lucro realizada que tende a se ajustar a taxa normal (dada) de lucros22
uma vez que o estoque de capital é que se ajusta à demanda, fazendo o grau de utilização
efetivo se aproximar do normal.
Quanto ao progresso técnico, Garegnani considera que, em geral, no caso de
inovações de processo, “the effect of innovations must generally be to increase the level
of aggregate investment through an accelerated obsolescence of existing plants” Este
efeito, isoladamente, mesmo aumentando o nível de investimento não parece ser capaz
de gerar uma tendência de crescimento de longo prazo do investimento. No caso de
22 Como a taxa normal de lucros se move no longo prazo na mesma direção que a taxa de juros,
Garegnani considera que a taxa de juros também não tem efeito relevante sobre o investimento das
empresas, somente afetando o investimento residencial. Garegnani aponta que lucros retidos também não
são determinantes do investimento e sim, no agregado, determinados pela massa de lucro realizada que é
resultado dos investimentos e outros gastos.
inovações de produto, Garegnani afirma que existe a possibilidade de que um mercado
possa se desenvolver sem, simultaneamente, diminuir o mercado de outros bens, mas não
apresenta uma análise dos elementos que transformariam esta possibilidade em realidade
(ver Cesaratto, Serrano & Stirati, 2003 e Caminati, 1987). De qualquer forma, argumenta
em seguida que é acima de tudo da expansão da demanda final que podermos esperar o
aumento do estoque de capital. De fato, em um outro trabalho Garegnani afirma que:
I believe that a satisfactory long-period theory of output does not require much
more than (a) an analysis of how investment determines saving through
changes in the level of productive capacity (and not only through changes in
the level of utilization of productive capacity); (b) a study of the factors
affecting the long-run levels of investment; and (c) a study of the relation
between consumption expenditure and aggregate income. Theoretical and
applied studies have already prepared much material in the last two fields.
(GAREGNANI, 1983, p.75)
Nesta lista de Garegnani (1983), as hipóteses de Garegnani (2015) de que o
investimento é basicamente induzido pela demanda se referem ao item (b) e a de que
existem componentes autônomos na demanda final se refere ao item (c). E as duas
hipóteses conjuntamente provêm as condições lógicas 1 e 2, necessárias, como vimos
acima, para que a capacidade possa se ajustar a tendência da demanda, o que,
essencialmente, resolve o cerne de toda a dificuldade analítica entre os autores aqui
trabalhados.23
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23 Além da recente publicação de Garegnani (2015), tal questão só tem ficado mais clara nos
debates que começaram a partir de meados dos anos 1990 e não discutidos aqui sobre o modelo do
supermultiplicador sraffiano (ou clássico-keynesiano). Um apanhado deste debate específico pode ser
encontrado em Garrido Moreira & Serrano (2016). Sobre o supermultiplicador de gastos autônomos
improdutivos com distribuição exógena ver as diferentes versões de Bortis (1979, 1997), e Serrano (1995a,
1995b) e De Juan (2005). Para uma ideia das contribuições mais recentes a este debate dentro da abordagem
Sraffiana ver o próprio simpósio organizado por Cesaratto & Mongiovi (2015) na Review of Political
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