delma josefa da silva - ufpe...s586r silva, delma josefa da. curriculares em uma escola localizada...

237
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO CURSO DE DOUTORADO DELMA JOSEFA DA SILVA REFERENCIAIS EPISTÊMICOS QUE ORIENTAM E SUBSTANCIAM PRÁTICAS CURRICULARES EM UMA ESCOLA LOCALIZADA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS Recife 2017

Upload: others

Post on 12-Oct-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CURSO DE DOUTORADO

DELMA JOSEFA DA SILVA

REFERENCIAIS EPISTÊMICOS QUE ORIENTAM E SUBSTANCIAM PRÁTICAS

CURRICULARES EM UMA ESCOLA LOCALIZADA NA COMUNIDADE

QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Recife

2017

Page 2: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

DELMA JOSEFA DA SILVA

REFERENCIAIS EPISTÊMICOS QUE ORIENTAM E SUBSTANCIAM PRÁTICAS

CURRICULARES EM UMA ESCOLA LOCALIZADA NA COMUNIDADE

QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Janssen Felipe da Silva

Recife

2017

Page 3: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

Catalogação na fonte

Bibliotecária Andréia Alcântara, CRB-4/1460

S586r Silva, Delma Josefa da.

Referenciais Epistêmicos que Orientam e Substanciam Práticas

Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de

Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. – Recife, 2017.

236 f. : il.

Orientador: Janssen Felipe da Silva.

Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CE.

Programa de Pós-graduação em Educação, 2017.

Inclui Referências, Apêndices e Anexo.

1. Educação - Quilombola. 2. Epistemologia africana. 3. Currículo -

Ancestralidade. 4. História-Afro-brasileira. 5. Africanidades.

6. Memória. 7. UFPE - Pós-graduação. I. Silva, Janssen Felipe da. II.

Título.

371.974 CDD (22. ed.) UFPE (CE2018-53)

Page 4: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

DELMA JOSEFA DA SILVA

REFERENCIAIS EPISTÊMICOS QUE ORIENTAM E SUBSTANCIAM PRÁTICAS

CURRICULARES EM UMA ESCOLA LOCALIZADA NA COMUNIDADE

QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Tese apresentada ao Programade Pós-Graduação em Educação da UFPE, como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Educação.

Aprovada em 24 de Fevereiro de 2017

COMISSÃO EXAMINADORA

_________________________________________________________________

Prof. Dr. Janssen Felipe da Silva/ UFPE-Presidente

__________________________________________________________________

Profª. Dra. Maria Fernanda dos Santos Alencar/UFPE-CAA Examinadora Externa

__________________________________________________________________ Profª. Dra. Conceição Gislane/UFPE/CAA- Examinadora Externa

__________________________________________________________________

Prof. Dr.José Batista Neto/UFPE- Examinador Interno

_________________________________________________________________

Profª. Dra. Maria Eliete Santiago/UFPE- Examinadora Interna

Page 5: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

A minha ancestralidade, que me trouxe até aqui e me permitiu existir, resistir e insurgir

para Ser, junto!

A meus pais:

Auta Josefa da Silva, minha mãe (in memoriam) incentivadora de todas as horas,

exemplo ético de ser na vida.

José Firmino da Silva, meu pai (in memoriam), migrante de Nazaré da Mata e ativista

do movimento Terras de Ninguém, em Casa Amarela, que me ajudou a perceber a

luta de classe existente na sociedade.

A meu filho: Ravi Tsakile, meu Sol de Alegria, meu filho desejado e amado, luz da minha vida,

alegria no meu coração. Inspiração para eu retornar à pesquisa no entardecer de

minha existência. E que me acompanhou por duas vezes ao campo de pesquisa.

A todas as gentes que atuam na luta antirracista e por humanidade.

Page 6: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

AGRADECIMENTOS

A tessitura de uma tese é um trabalho dedicado de muitas mãos e mentes. Nem

sempre as mãos acompanham o ritmo que a mente imprime. Há momentos intensos,

acelerados. Há momentos de hibernação, e há até momentos de quase desistência.

Sim! Quase. Porque nessa tessitura nos ocorre desistir do processo. Eu não fui a

única, muitas e muitos vieram antes de mim, alguns conseguiram retomar o ritmo e a

rigorosidade para fechar a tese, outros não.

Eu tive faroleiros ao meu lado e a minha frente a dizer: Estou contigo! E estou

aqui para agradecer a esses seres que colocaram luz diante de mim e, exercendo a

solidariedade, cuidaram para me dar ritmo para fechar um ciclo e concluir a tese! No

exercício da generosidade há também o cuidar da vida, do ser que produz, que tem

um corpo e uma mente. E a mente adoecida faz o corpo adoecer. Agradeço aos

amigos e profissionais que também cuidaram desse corpo e dessa mente, não só da

mente que pensa, mas da mente que sente.

Às mãos e às mentes que estão ao meu lado e que também vieram antes de

mim, fazendo a resistência para poder existir. São mãos e mentes que se puseram a

tecer o enfrentamento ao racismo, na busca por caminhos de humanidade.

Aos mestres e maestrinas faroleiros de experiência que iluminam a minha

aprendizagem e de tantos companheiros e companheiras nestas trilhas do

conhecimento: Fanon, Cesàire, Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Petronilha

Silva, Henrique Antunes Cunha Junior, Kabenguele Munanga, Nilma Lino Gomes,

Neusa Santos Souza, Eliete Santiago, essas, e tantas outras mãos pretas, de ontem

e de hoje, são referências da necessidade de permanecer na luta anti-racista por

humanização.

Ao PPGE-UFPE, pela seleção e aprendizados desde a entrevista com a Profª

Dra. Eliete Santiago e o Prof. Dr. José Batista Neto. Uma hora e alguns minutos de

conversa, um diálogo respeitoso, humanizador.

Ao Fundo de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco-FACEPE pela

bolsa de fomento, que contribuiu com o meu desempenho acadêmico. Graças à

FACEPE, ampliei significativamente o meu acervo de livros, porque livro na minha

casa mora. Há um quarto reservado a eles. A bolsa contribuiu também com as

inscrições, deslocamentos e estadias em eventos locais, nacionais e até

internacionais. Em 2013, o grupo de pesquisa participou do Congresso ALAS em

Page 7: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

Santiago, no Chile. No final da apresentação do nosso trabalho, aplausos. Gracias!!!

Ao longo do curso, todos os trabalhos submetidos aos eventos acadêmicos foram

aprovados e, em 2016, no VI EPEPE, fomos agraciadas com o prêmio de um dos

melhores trabalhos do Eixo 4. Formação de Professores e Práticas Pedagógicas.

Aos colegas da Turma 11, especialmente pelos diálogos compartilhados em

sala e percurso Recife-Caruaru, com Maria do Carmo e Ezir George. Agradeço a

Jacinto dos Santos, pela troca no campo linguístico, o olhar atento e os detalhes, que

não lhe escapavam.

À Enivalda Resende, querida amiga, companheira e colaboradora nos diálogos

sobre a pesquisa. Disponibilidade ímpar em pensar e repensar junto, incentivando e

contribuindo para que o mais significativo da pesquisa ganhasse visibilidade, exerceu

um amparo singular na reta finalíssima.

À Claudilene Silva, sua presença na minha vida chegou dez anos antes do

doutorado. Quando fui Professora substituta no Centro de Educação, da Disciplina

Didática. Claudilene me inspirou a trazer Paulo Freire para a sala de aula e trabalhar

Pedagogia da Autonomia. Descobri a substantividade da afirmativa “não há docência

sem discência” com essa experiência docente. No Doutorado fomos companheiras

nas atividades acadêmicas no Brasil e fora dele. Mais do que reencontrá-la em sala

de aula, nos encontramos na vida. Estivemos juntas no NEAB-UFRPE por dois anos,

trabalhando a implementação da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no

Currículo Escolar, estivemos juntas com a Profª Dra. Eliete Santiago na organização

do Livro Educação, Escolarização e Identidade Negra: 10 anos de Pesquisa no PPGE-

UFPE. Grata Claudilene por fazer parte da nossa vida!

Aos professores do PPGE-UFPE que no retorno à casa pude rever com outras

lentes alguns referenciais do mestrado e entrar em contato com outros pelas mãos do

Prof. Dr. Janssen Felipe, Profª Dra. Rosângela Tenório e Prof. Dr. José Batista Neto.

Agradeço, em especial, ao Prof. Dr. Alfredo Gomes que, na Coordenação do

Programa de Pós-Graduação, recepcionou grandes eventos de envergadura nacional,

ANPEd, e Regional EPENN, promoveu significativos debates sobre pesquisa nas

aulas inaugurais com pesquisadoras como Bernadete Gatti e Marli André com quem

aprendi muitíssimo.

A convivência e troca estabelecida no Grupo de Estudo Teoria da

Complexidade e Estudos Pós-Coloniais Latino-Americanos, coordenado pelo Prof. Dr.

Janssen. A convivência no Grupo foi de uma experiência elevada epistemológica e

Page 8: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

humanamente. Agradeço, em particular, a disponibilidade de Felipe Gervásio, sua

dedicação, leveza e apropriação com que apresentava e articula com vigor os teóricos

desse pensamento. À Denise Xavier, meu agradecimento pelos convites para trocas

no exercício da docência e minhas desculpas por não ter tido disponibilidade nos

momentos solicitados.

A Everaldo Fernandes e Delma Evaneide, pela oportunidade de ter sido

acolhida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru-FAFICA, como

minha primeira casa de docência. Iniciei com orientação de monografia lá, em 2004,

depois professora na pós-graduação e, em 2011, passei a integrar o quadro de

professores à convite dessas pessoas que são referência para mim de saber cuidar,

de pensar e fazer a educação com sentido, com humanidade.

A Itacir Marques Luz, amigo que, junto com Martha Rosa, pensava estratégias

para que nós, negros e negras no Recife, ingressássemos na Pós-Graduação,

inspirados na Frente Negra Brasileira, no Henrique Antunes Cunha e em nossas

referências para ser e estar no mundo.

Ao Prof. Dr. Henrique Antunes Cunha Junior, herdeiro do ativismo político de

Henrique Antunes Cunha, referência de liderança no Movimento Social Negro do

Brasil, um intelectual à frente de seu tempo. Grata por nos ter apresentado as

africanidades desde nosso processo de mestrado no final dos anos 1990. Grata pela

disponibilidade do diálogo e do acompanhamento de minhas produções acadêmicas.

Grata por ter aceito o convite de realizar, em 2003, o primeiro curso de História da

África na comunidade de Conceição das Criuoulas.

A Alexandre Freitas, pelas escutas atentas e trocas significativas. Trocas que

nos inspiram e nos fazem descobrir nas redes interligadas do conhecimento pontos

de intersecção tão significativos, e centrado no humano “demasiado humano.”

Gratíssima, Alexandre.

A Sergio Abranches, pelos diálogos sobre o projeto, a escuta de minhas

inquietações e os caminhos. Grata pelas revisões dos artigos para submeter aos

eventos acadêmicos e, também, pela recuperação da formatação do texto da tese

quando o arquivo foi corrompido. Salvou o máximo.

À Conceição Reis, pelo acolhimento no Centro de Educação da UFPE com

convites para atividades voltadas ao fortalecimento da identidade étnico-racial na

educação e no combate ao racismo. Em especial, por pautar constantemente

seminários que não só discutem o tema, mas discutem-no a partir dos sujeitos de

Page 9: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

direito, pois são os africanos que são convidados a falar sobre África, são os

quilombolas que ocupam o espaço do protagonismo da conquista da Educação

Escolar Quilombola. São os negros que ocupam a centralidade dos lugares de

discussão sobre os negros. Uma atitude acadêmica necessária.

À Banca de Qualificação do Projeto de Pesquisa, composta pela Profª. Dra.

Auxiliadora Gonçalves e pela Profª Dra. Conceição Gislane, examinadoras externas,

pelas considerações apresentadas com profundidade e delicadeza, bem como ao

Prof. Dr. José Batista Neto e à Profª. Dra. Maria Eliete Santiago, pelo rigor amoroso

com que apresentaram suas leituras que reorientaram o campo do trabalho em busca

de experiência que trouxesse uma contribuição ao campo da educação frente ao

objeto de pesquisa.

À Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas, em especial à

Associação do Sítio Paula, que nos acolheu e tornou possível o desenvolvimento da

pesquisa. À dona Rita, pela sua disponibilidade e cuidado para com a nossa estadia.

A merendeira, Dona Maria do Carmo que hospedou a mim e ao Ravi quando lá

estivemos em fevereiro de 2016.

À Marinalva Rita Bezerra, pelo acolhimento, dedicação, disponibilidade,

colaboração e confiança. Sempre cuidadosa em nos acolher da melhor maneira

possível, o deslocamento de Salgueiro para Conceição, do lugar onde pousar e

dormir, os lanches e as refeições saudáveis. Esta tese só foi possível pelo trabalho

que você e as professoras tornam real no dia a dia. Vocês são coautoras dessa tese.

O meu trabalho não existiria sem o relevante sentido do trabalho educativo que vocês

realizam com tanta beleza no Sítio Paula e na Vila Centro. Muito grata!

Às Professoras Josemeiry, Eliane, Joselma, Fabiana, Josicleide, por ter

compartilhado de suas práticas, alegrias, desafios, satisfação e encantamento com o

ensinar e aprender existente em Conceição das Crioulas. Às professoras que

possibilitaram a ampliação do olhar na participação do Grupo Focal: Penha, Loudinha,

Lena, Marinalva, Keka e Evânia.

A Valdeci Oliveira, Presidente da AQCC, pelo diálogo e acolhimento em sua

casa, bem como na casa de sua filha Lena, quando das minhas estadias em

Conceição. Pelo sabor e saber das conversas e das refeições que compartilhamos

com muito gosto.

A Antônio Mendes, pelo convite para participar e colaborar no IV Encontro de

Comunidades Quilombolas de Pernambuco, realizado em agosto de 2015 em Moreno-

Page 10: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

PE, onde iniciamos o retorno à Conceição das Crioulas, agora como campo de

pesquisa. Encontro esse que pavimentou as bases para o Plano Estadual Quilombola

de Pernambuco, lançado em 2016.

A André Araripe, colega de trabalho no Centro de Cultura Luiz Freire, quem me

falou da experiência pedagógica desenvolvida na Escola do Sitio Paula, e

compartilhou o processo da Gestão do Território em outubro de 2015. Grata pelo

reencontro.

A João Batista, amigo desde os anos 1980, que dialogou sobre os três projetos

que elaborei para ingressar no doutorado. Interage com uma clareza teórica

impressionante. Amigo que, mesmo distante, se faz presente. Amigo que exerce, na

radicalidade de ser, um abrigo seguro.

A Almir Basio, que tem compartilhado reflexões acadêmicas nas itinerâncias

por esse estado, no compromisso de fazer avançar os direitos das múltiplas infâncias

e adolescências em Pernambuco e no Brasil. À Escola de Conselhos de

Pernambuco/UFRPE, meu agradecimento pela oportunidade de levar para o âmbito

da formação de conselheiros e conselheiras o direito humano das infâncias e

adolescências, com especial atenção às invisibilizadas e silenciadas, à exemplo da

infância quilombola.

À Rachel Rangel, pela sua escuta atenta, que contribuiu para o meu

fortalecimento de alma. Alma fortalecida se revela e assume, na dor, a delícia de ser

o que é.

À Antonieta Ramos Costa, por cuidar pelo meu bem estar físico e emocional.

Ao finalizar a tese, sou muito grata por ter conseguido cuidar também de mim, e

manter a saúde.

A Rogério Manjate, pelo encontro possível e pela existência do nosso filho, Ravi

Tsakile, que é o maior tesouro que tenho em minha vida.

À Carmem Lúcia Bandeira, pela oportunidade de, através da Literatura, poder

descobrir caminhos possíveis de humanidades, alargamento cultural e fortalecimento

de identidades.

À Maria Inácio, amiga na maturidade, com quem dialogo sobre a vida, sobre a

educação consciente de nossas crianças e sobre o nosso desenvolvimento enquanto

seres aprendentes e conscientes, com quem busco conselhos, choro e sorrio,

descobrindo a beleza da vida. Porque a vida é bonita e vale a pena sempre!

Page 11: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

A Hugo Lopes, Eliane e Edna, meu sobrinho-filho e minhas irmãs. Vocês me

ensinaram a radicalidade da generosidade que humaniza. O diálogo profundo e

necessário para que tomemos conta de nossas vidas com sensibilidade. Hugo que

revisa e traduz para o inglês meus textos acadêmicos. Eliane e Edna, que,

amorosamente, cuidam do Ravi quando das ausências necessárias das minhas

responsabilidades de mãe e profissional.

A Reginaldo Silva, irmão que migrou para o Norte do país, para buscar

melhores condições de vida, mas que de longe acompanhou e foi solidário em

momentos diversos e de diversas formas.

À Escola Waldorf Recife-Rosarinho, pelo acolhimento, quando lá precisei

montar acampamento para estudar e escrever, na sala do Conselho de Pais, da qual

fui integrante. À Adriana Cipriano e Inocência Wanderley, pessoas com as quais

aprendo sempre que gentileza gera gentileza e é possível sempre buscar o melhor

em nossa condição humana.

Ao Prof. Dr. Janssen Felipe da Silva, orientador. Grata pela caminhada que me

possibilitou estar de pé, pela relação de confiança que me permitiu construir com

liberdade um caminho, pela paciência na retomada do percurso em busca de achados

significativos para o objeto de pesquisa e não ser mais uma pesquisa sobre o mesmo.

Às forças superiores por terem me impulsionado a chegar até o final. Por

momentos andei devagar. Muito devagar. Mas... “de onde vem essa força tão crua?

Que me acorda e me põe no meio da rua? É um lamento, um canto mais puro. Que

me ilumina a casa escura. É minha força é nossa energia. Que vem de longe prá nos

fazer companhia. É Clementina cantando bonito as aventuras do seu povo aflito. É

seu Francisco, boné e cachimbo. Me ensinando que a luta é mesmo comigo.”

Porque

Cada um de nós compõe a sua história

E cada ser em si, carrega o dom de ser capaz

E ser feliz.

Penso que cumprir a vida seja simplesmente...

Page 12: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

Dizer a sua palavra equivale a assumir conscientemente, como trabalhador, a função de sujeito de sua história, em colaboração com os demais trabalhadores - o povo. Ao Povo cabe dizer a palavra de comando no processo histórico-cultural. Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer têm condições para trabalhar, os dominadores mantêm o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detêm e a recusam aos demais, é um difícil, mas imprescindível, aprendizado - é “a pedagogia do oprimido.” FIORI (1967, p. 29-30).

Page 13: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

RESUMO

A Educação Escolar Quilombola é uma conquista histórica da experiência dos

quilombolas na sociedade brasileira, construída gradativamente pela organização dos

movimentos sociais negros, em especial do movimento quilombola no contexto da

redemocratização do Estado brasileiro. Conceber quilombismo como práxis afro-

brasileira de libertação e de assunção do comando de sua própria história é uma

contribuição epistêmica de Abdias do Nascimento (2009). A pesquisa objetivou

compreender os Referenciais Epistêmicos que Orientam e Substanciam as Práticas

Curriculares em uma Escola Localizada na Comunidade Quilombola de Conceição

das Crioulas. Nossas lentes teóricas-metodológicas focam o pensamento afrocêntrico

em Assante (2009), Ki-Zerbo (2011), as africanidades brasileiras em Cunha Junior

(1998, 2008) e Silva (2003, 2005) em diálogo com o pensamento decolonial latino

americano a partir de Dussel (2010), Quijano (2005), Mignolo (2005, 2008),

Maldonado-Torres (2007), Escobar (2005), Grosfoguel (2013, 2010, 2017) e Walsh

(2005,2009,2010), que questiona a hegemonia do pensamento eurocêntrico,

constroem e visibilizam a produção de conhecimento a partir da experiência histórica

dos movimentos sociais. É uma pesquisa qualitativa, um estudo de caso. O trabalho

de campo foi realizado no período de setembro de 2015 a abril de 2016.

Metodologicamente, a pesquisa se fundamenta nos princípios apresentados por Ki-

Zerbo (2011): interdisciplinaridade, a história vista de seu interior, a partir da trajetória

própria dos quilombolas, a trajetória histórica no continente e da diáspora. No campo

curricular, nos referenciamos na metodologia da história africana de Ki-Zerbo e Bâ

(2010), dialogando com a compreensão da relação entre educação e experiência

posta por Dewey (2010) e Arroyo (2013). A análise de conteúdo, referenciada em

Bardin (2011) serviu de lentes para a organização e análise dos dados. Os

Referenciais Epistêmicos que Orientam e Substanciam as Práticas Curriculares de

Professoras em Comunidade Quilombola foram analisados a partir da categorização

de três grandes eixos: formação, currículo e relação professor-aluno. A categorização

foi feita a partir do instrumento de entrevista semi-estruturada. Nossas categorias de

análise foram a ancestralidade enquanto experiência histórica; os espaços-tempos da

formação e da prática pedagógica; história e memória como referenciais centrais da

prática curricular, e a relação família-comunidade como eixo vivificador da experiência

e significado da educação escolar quilombola. Os resultados da pesquisa indicam que

Page 14: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

a consciência e organização política dos quilombolas possibilitaram a conquista da

educação específica dialogada com as Bases da Educação Nacional; A formação

inicial de professores responde incipientemente às necessidades da qualificação do

professor quilombola. É a formação continuada, conduzida pela gestão escolar junto

com professores e comunidade que tem cumprido com a função social da escola no

sentido de proporcionar emancipação e identificação de estudantes e suas famílias

com a escola e com o seu pertencimento identitário; as práticas curriculares

desenvolvidas estão centradas na História e Cultura Afro-brasileira, referenciada na

tradição oral, história e memória, considerando os quilombos como uma experiência

continental da Diáspora africana.

Palavras-chave: Educação. Afrocêntrica. Currículo. Quilombola. Ancestralidade.

Memória.

Page 15: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

ABSTRACT

Quilombola School Education is a historical achievement of the quilombolas

experience in Brazilian society, it was built gradually by the organization of black social

movements, especially the quilombola movement in the context of the

redemocratization of the Brazilian State. It is an epistemic contribution of Abdias do

Nascimento (2009) to conceive quilombismo as a release Afro-Brazilian praxis and to

assume its own history. The research aimed to understand the epistemic references

that guide and substantiate the curricular practices in a school located in the

quilombola community of Conceição das Crioulas-PE. Our theoretical-methodological

lenses focus on the afrocentric thinking based on Assante (2009), Ki-Zerbo (2011),

and in the Brazilian africanities based on Cunha Junior (1998, 2008) and Silva (2003,

2005) in dialogue with the Latin American decolonial thinking based on Dussel (2010),

Quijano (2005), Mignolo (2005, 2008), Maldonado-Torres (2007), Escobar (2005),

Grosfoguel (2013, 2010, 2017) and Walsh (2005,2009,2010), which question the

hegemony of Eurocentric thinking and build and make it viable the knowledge

production from the historical experience of social movements. It is a qualitative

research, a case study. The fieldwork was carried out from September 2015 to April

2016. Methodologically the research is based on the principles presented by Ki-Zerbo

(2011): interdisciplinarity, history seen from inside, from the own trajectory of the

quilombolas, the historical trajectory on the continent and the diaspora. In the curricular

field we refer to the methodology of the African history of Ki-Zerbo and Bâ (2010) in

dialogue with the understanding of the relationship between education and experience

proposed by Dewey (2010) e Arroyo (2013). The content analysis, referenced in Bardin

(2011), served as lenses for the organization and analysis of the data. The epistemic

references that guide and substantiate the curricular practices of teachers in

quilombola community were analyzed from the categorization of three main axes:

formation, curriculum and teacher-student relationship. The categorization was made

using as instrument the semi-structured interview. Our categories of analysis were

ancestry as historical experience; the space-time of formation and pedagogical

practice; history and memory as central curricular practice references; and the family-

community relationship as the vivifying axis of the experience and meaning of

quilombola school education. The results of the research indicate that the conscience

and political organization of the quilombolas enabled the conquest of the specific

Page 16: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

education in dialogue with the Bases of National Education. The initial teachers

formation responds incipiently to the needs of the quilombola teacher qualification. It

is the continued formation, conducted by the school management with the teachers

and community that has fulfilled the social function of the school in the sense of

providing emancipation and identification of the children and their families with the

school and with its identity belonging; the curricular practices developed are centered

on Afro-Brazilian History and Culture referenced in orality, history and memory

considering the quilombos as a continental experience of the African Diaspora.

Keywords: Education. Afrocentric. Curiculum. Quilombola. Ancestry. Memory.

Page 17: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

RÉSUMÉ

L'éducation scolaire quilombola est une réalisation historique de l'expérience des

quilombolas dans la société brésilienne construit progressivement par l'organisation et

l'engagement des mouvements sociaux noirs, en particulier du mouvement quilombola

dans le contexte de la démocratisation de l'État brésilien. Concevant quilombismo

comme praxis afro-brésilienne de libération et de prendre en charge leur propre

histoire est une contribution épistémique de Abdias do Nascimento (2009). La

recherche visait à comprendre les références épistémiques de guidage et

consolidation des pratiques pédagogiques dans les écoles situées dans la

communauté quilombola de Conceição das Crioulas-PE. Nos objectifs théoriques et

méthodologiques concentrent sur la pensée afrocentrique selon Assante (2009) et Ki-

Zerbo (2011), les africanités brésiliennes selon Cunha Junior (1998, 2008) e Silva

(2003, 2005), dans le dialogue avec la pensée décolonial latino-américaine selon

Dussel (2010), Quijano (2005), Mignolo (2005, 2008), Maldonado-Torres (2007),

Escobar (2005), Grosfoguel (2013, 2010, 2017) e Walsh (2005,2009,2010), contestant

l'hégémonie de la pensée eurocentrique et créant des possibilités de produire des

connaissances à partir de l'expérience historique des mouvements sociaux. Il s'agit

d'une recherche recherche qualitative, d’une étude de cas. Le travail sur le terrain a

été réalisée à partir de Septembre de 2015 à Avril de 2016. Sur le plan

méthodologique, la recherche s'appuie sur les principes présentés par Ki-Zerbo

(2011): l'interdisciplinarité, l'histoire vue de l'intérieur, la trajectoire des quilombolas, la

trajectoire historique sur le continent et la diaspora. Dans le domaine curriculaire, nous

avons travaillé avec la méthodologie de l'histoire africaine de Ki-Zerbo et Bâ (2010),

mise en dialogue avec la compréhension de la relation entre éducation et expérience

posée par Dewey (2010) et Arroyo (2013). L'analyse du contenu, référencée dans

Bardin (2011), a été servi comme approche pour l'organisation et l'analyse des

données. Les cadres épistémiques qui guident et justifient les pratiques pédagogiques

des enseignants dans les communautés quilombolas ont été analysés à partir de la

catégorisation des trois domaines principaux: formation, programmes et relations

enseignant-élève. La catégorisation a été faite à partir de l'outil d'entrevue semi-

structurée. Nos activités d'analyse étaient l'ancestralité comme l'expérience historique;

les espaces-temps de la formation et de la pratique de l'enseignement; histoire et la

mémoire comme référence centrale de la pratique du programme; et la relation famille-

Page 18: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

communauté comme axe qui donne la vie de l'expérience et le sens de l'éducation

scolaire quilombola. Les résultats du sondage indiquent que la conscience et

l'organisation politique des quilombolas ont rendu possible la réalisation de l'éducation

spécifique dialoguée avec les Bases de l'Éducation Nationale. La formation initiale des

enseignants répond d'une façon naissante aux besoins de qualification de l'enseignant

quilombola. C'est la formation continuée, menée par la direction d'école en

collaboration avec les enseignants et la communauté qui a respecté la fonction sociale

de l'école afin de fournir l'autonomisation et l'identification des enfants et de leurs

familles avec l'école et avec leur identité de membre; les pratiques pédagogiques

développées se concentrent sur l'histoire et la culture afro-brésilienne, référencé dans

la tradition orale, l'histoire et la mémoire en tenant compte des quilombos comme une

expérience continentale de la diaspora africaine.

Mots-clés: Éducation. Afrocentrique. Programme. Quilombola. Ancestralité. Mémoire.

Page 19: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

RESUMEN

La educación escolar Quilombola es una conquista histórica de la experiencia de los

quilombolas en la sociedad brasileña construida gradualmente por la organización de

los movimientos sociales negros, especialmente del movimiento quilombola en el

contexto de redemocratización del estado brasileño. Concebir quilombismo como

práctica afro-brasileña de liberación y de asumir el control de su propia historia es una

contribución epistémica de Abdias do Nascimento (2009). Esta investigación tuvo

como objetivo comprender las referencias epistémicas que orientan y alimentan las

prácticas curriculares en una escuela localizada en la comunidad quilombola de

Conceição das Crioulas-PE. Nuestras lentes teorico-metodológicas enfocaron el

pensamiento afrocentrico en Assante (2009), Ki-Zerbo (2011), las africanidades

brasileñas en Cunha Junior (1998, 2008) e Silva (2003, 2005) en dialogo con el

pensamiento descolonial latinoamericano a partir de Dussel (2010), Quijano (2005),

Mignolo (2005, 2008), Maldonado-Torres (2007), Escobar (2005), Grosfoguel (2013,

2010, 2017) e Walsh (2005, 2009, 2010), que cuestiona la hegemonía del

pensamiento eurocéntrico, construyen y hacen visible la producción de conocimiento

a partir de la experiencia histórica de los movimientos sociales. Esta es una

investigación cualitativa, un estudio de caso. El trabajo en campo fue realizado entre

los meses de Septiembre de 2015 e Abril de 2016. La metodologia de esta

investigación se fundamenta en los principios presentados por Ki-Zerbo (2011):

interdiciplinariedad, la historia vista de su interior, a partir de la trayectoria propia de

los quilombolas, la trayectoria histórica en el continente y de la diáspora. En el campo

curricular nos basamos en la metodología de la historia africana de Ki-Zerbo e Bâ

(2010), dialogando con la comprensión de la relación entre educación y experiencia

citada por Dewey (2010) y Arroyo (2013). El análisis del contenido citado por Bardin

(2011) sirvió de lentes para la organización y análisis de los datos. Las referencias

epistémicas que orientan y alimentan las prácticas curriculares de profesoras en la

comunidad quilombola fueron analizadas a partir de la caracterización de tres grandes

ejes: formación, currículo y relación profesor-alumno. Para la caracterización se utilizó

como instrumento la entrevista semi-estructurada. Nuestras categorías de análisis

fueron la ascendencia como experiencia histórica; los espacios-tiempos de formación

y de práctica pedagógica; historia y memoria como referencias principales de la

práctica curricular; y la relación familia-comunidad como eje estimulante de la

Page 20: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

experiencia y significado de la educación escolar quilombola. Los resultados del

estudio indican que la consecuencia y organización política de los quilombolas

posibilitó la conquista de la educación específica dialogada con las Bases de la

Educación Nacional. La formación inicial de profesores responde incipientemente a

las necesidades de la calificación del profesor quilombola. La formación continua,

conducida por la gestión escolar junto con los profesores y la comunidad ha cumplido

con la función social de la escuela en el sentido de proporcionar emancipación

identificación de estudiantes y sus familiares con la escuela y con su pertenencia de

identidad; las prácticas curriculares desarrolladas están entradas en la Historia y

Cultura Afro-brasileña, con referencia en la tradición oral, historia y memoria

considerando los quilombos como una experiencia continental de la Diáspora africana.

Palabras claves: Educación. Afrocéntrica. Curriculo. Quilombola. Ascendencia.

Memoria.

Page 21: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

LISTA DE FOTOS

Foto 01 - Subida na Pedra do Matame (A pesquisadora, Liderança e

Professoras) ........................................................................................... 125

Foto 02 - Associação de Moradores do Sítio Paula, Conceição das Crioulas-PE . 126

Foto 03 - Jornal Crioulas: a voz da resistência 2009 ............................................ 127

Foto 04 - Escola Municipal Bevenuto Simão ......................................................... 130

Foto 05 - Criança escrevendo com graveto .......................................................... 131

Foto 06 - Escola Bevenuto Simão em 2015 .......................................................... 132

Foto 07 - Escola Bevenuto Simão em 2015 - Visão ampla .................................... 133

Foto 08 - Crianças em atividade de incentivo à leitura: “se achando nas

histórias” ................................................................................................. 149

Foto 09 - Aula passeio: atividade de reconhecimento do território com as

crianças .................................................................................................. 156

Foto 10 - Assembleia da comunidade: professora apresentando a atividade de

reconhecimento do território ................................................................... 157

Foto 11 - Projeto Águas: “Caldeirão” ..................................................................... 161

Foto 12 - Intercâmbio intercultural com Povo Indígena Atikum .............................. 165

Foto 13 - Projeto Arte em Toda Parte: as atividades desenvolvidas na

comunidade ............................................................................................ 169

Foto 14 - Projeto Arte em toda Parte: crianças sob a copa da Noz de Cola .......... 176

Foto 15 - Família participando do currículo: pai e artesão ensina sobre os tipos de

solo ......................................................................................................... 179

Page 22: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

LISTA DE QUADROS

Quadro 01 - Quantitativo anual GT 21-EPENN-2001 a 2011 ................................... 51

Quadro 02 - Levantamento dos GTs DA BASE EPENN (2001-2011) ..................... 52

Quadro 03 - Trabalhos EPENN-2001-2011 (GT 21) ............................................... 53

Quadro 04 - Resultados de pesquisas com foco no currículo .................................. 54

Quadro 05 - Quantitativo de trabalhos-GT 21 – 2002-2012 –ANPEd ....................... 56

Quadro 06 - Modalidades de políticas ...................................................................... 75

Quadro 07 - Conquista de direitos sociais Brasil (1930-1940) ................................ 78

Quadro 08 - Grupos étnicos africanos ...................................................................... 91

Quadro 09 - Plano nacional de implementação das DCNERER ............................ 101

Quadro 10 - Quantitativo de escolas e alunos Quilombolas - NE .......................... 111

Quadro 11 - Quantitativo de escolas e alunos Quilombolas - NO .......................... 111

Quadro 12 - Teses e Dissertações sobre Conceição das Crioulas ........................ 129

Quadro 13 - Caracterização da Escola .................................................................. 131

Quadro 14 - Caracterização dos sujeitos ............................................................... 136

Quadro 15 - Situação funcional docente em área de Quilombo ............................. 137

Quadro 16 - Avaliação - SAEPE, 5º ano - ciclo II ................................................... 158

Quadro 17 - Avaliação - SAEPE, 3º ano - ciclo I .................................................... 159

Quadro 18 - Referências para a educação escolar Quilombola ............................. 164

Quadro 19 - Conteúdos indispensáveis da prática ................................................. 168

Page 23: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - Número de funções docentes em área de Quilombo por raça/cor ......... 44

Tabela 02 - 100 anos de bibliografia sobre o negro no Brasil e a produção sobre

Quilombola ............................................................................................. 66

Tabela 03 - Número de africanos transportados para as Américas ........................... 67

Page 24: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ABPN Associação Brasileira de Pesquisadores Negros

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

AGNU Assembleia Geral das Nações Unidas

ANPEd Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

AQCC Associação Quilombola de Conceição das Crioulas

CBIA Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência

CCLF Centro de Cultura Luiz Freire

CE Centro de Educação

CEB Câmara de Educação Básica

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CEDAPP Centro Diocesano de Apoio ao Pequeno Produtor

CEPIR Comitê Estadual de Política de Igualdade Racial

CF Constituição Federal

CF Campanhada Fraternidade

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CNE Conselho Nacional de Educação

CNPIR Conselho Nacional de Promoção de Igualdade Racial

CONAE Conferência Nacional de Educação

CONAPIR Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial

CONAQ Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras

Rurais Quilombolas

CONEB Conferência Nacional da Educação Básica

COPENE Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros

CPLP Comunidades dos Países de Língua Portuguesa

DCN Diretrizes Curriculares Nacionais

DCNEEQ Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola

DCNERER Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Étnico-Raciais

DOU Diário Oficial da União

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

EI Educação Infantil

Page 25: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

EF Ensino Fundamental

EB Educação Básica

EM Ensino Médio

EPENN Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste

EPEPE Encontro de Pesquisa Educacional em Pernambuco

FAFICA Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Caruaru

FAUP Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

FCP Fundação Cultural Palmares

FEACA Federação das Associações e Conselhos de Moradores de Casa

Amarela

FIES Fundo de Financiamento Estudantil

FNB Frente Negra Brasileira

FUNASA Fundação Nacional de Saúde

FUNDAJ Fundação Joaquim Nabuco

FUNDEB Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica

FUNDEF Fundo de Desenvolvimento da Educação Fundamental

GT Grupo de Trabalho

IAF Inter-American Fundation

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IDH-M Índice de Desenvolvimento Humano–Municipal

IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

LDBEN Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional

MAC Movimento de Adolescentes e Crianças

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

MEC Ministério da Educação

MJMP Movimento de Jovens do Meio Popular

MNU Movimento Negro Unificado

MOPs Movimento Popular de Saúde

MSN Movimento Social Negro

Page 26: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

MTN Movimento Terras de Ninguém

NEAB Núcleo de Estudos Afro-brasileiros

NUPESQ Núcleo de Estudos e Pesquisas

OIT Organização Internacional do Trabalho

ONG Organização Não Governamental

ONU Organização das Nações Unidas

OXFAM-GB Oxford Committee for Famine Relief-Grã-Bretanha

PBQ Programa Brasil Quilombola

PDDE Programa Dinheiro Direto na Escola

PNAD Pesquisa Nacional Domiciliar

PPGE Programa de Pós-Graduação em Educação

PPP Projeto Político Pedagógico

PPQ Plano Pernambuco Quilombola

PROUNI Programa Universidade para Todos

SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade

SECADI Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e

Inclusão

SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

UEPA Universidade Estadual do Pará

UFAL Universidade Federal de Alagoas

UFBA Universidade Federal da Bahia

UFC Universidade Federal do Ceará

UFPE Universidade Federal de Pernambuco

UFPI Universidade Federal do Piauí

UFPR Universidade Federal do Paraná

UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco

UFS Universidade Federal de Sergipe

UNB Universidade de Brasília

UNEB Universidade do Estado da Bahia

UNICAP Universidade Católica de Pernambuco

UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância

UNILAB Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira

UP Universidade do Porto

UNIVASF Universidade do Vale do São Francisco

Page 27: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 30

2 UM ENCONTRO ENTRE EXPERIÊNCIAS DE VIDAS, DE ATUAÇÃO

SOCIAL, PRÁTICAS CURRICULARES E POLÍTICAS PÚBLICAS: OU DA

CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA ............................................... 42

3 AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO: UM TERRITÓRIO

DECOLONIAL POSSÍVEL ............................................................................. 61

3.1 Africanidades brasileiras, quilombismo e pensamento decolonial: uma

experiência histórico-cultural ...................................................................... 62

3.2 Políticas Públicas e Cidadania no Brasil: entre afirmações, tensões e

desafios para o exercício dos direitos quilombolas .................................. 74

3.3 Ancestralidade, memória e experiência: estruturantes para uma educação

escolar quilombola ....................................................................................... 88

4 EDUCAÇÃO E CURRÍCULO ESCOLAR QUILOMBOLA: UM

RECONHECIMENTO HISTÓRICO NA EDUCAÇÃO NACIONAL ................. 98

5 ENTRELAÇANDO OS FIOS NO TEAR PARA A CONSTRUÇÃO DO TECIDO

QUE VESTE A PESQUISA: OU DO FAZER METODOLÓGICO ................. 119

5.1 Os critérios da escolha do campo da pesquisa ....................................... 123

5.1.1 O campo da pesquisa ................................................................................... 124

5.1.2 A Escola campo de pesquisa ........................................................................ 130

5.1.3 A origem do nome e caracterização da Escola ............................................. 131

5.2 Os critérios de escolha dos sujeitos e procedimento de coleta de dados

...................................................................................................................... 133

5.2.1 Os sujeitos da pesquisa: lideranças, professoras, familiares, gestora .......... 134

5.2.2 As lideranças ................................................................................................ 134

5.2.3 As professoras .............................................................................................. 135

5.2.4 Os familiares ................................................................................................. 137

5.2.5 A gestora ...................................................................................................... 138

Page 28: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

5.3 A coleta e a organização dos dados ......................................................... 140

6 FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORAS

QUILOMBOLAS: AFRICANIDADES COMO REFERENCIAL EPISTÊMICO

QUE ORIENTAM E SUBSTANCIAM AS PRÁTICAS .................................. 144

6.1 O contexto da formação inicial para professores quilombolas .............. 144

6.1.2 Desafios na formação inicial e pós-graduação para professores quilombolas

...................................................................................................................... 150

6.1.3 A exigência das professoras em sua formação inicial: africanidades,

quilombismo e decolonialidade ..................................................................... 152

6.1.4 Os espaços e os tempos da formação continuada e do aprender e ensinar: “a

ação pedagógica ocorre nos sete dias da semana” ..................................... 154

6.1.5 Quando a comunidade toma de conta, a gestão e o PPP lhes representam 159

6.2 As referências de Educação Escolar Quilombola e o Currículo como

Experiência: o que dizem as professoras ................................................ 162

6.2.1 As lideranças e a experiência político-social: o ancestral está integrado com o

organizativo .................................................................................................. 162

6.2.2 História e memória: conteúdos indispensáveis da prática ............................ 167

6.2.3 O menino que queria aprender a ler: uma experiência de alfabetização

modelando a argila ....................................................................................... 170

6.2.4 Do visível e indizível nas práticas curriculares: o sagrado africano presente na

natureza que ambienta e alimenta a relação inter-geracional quilombola .... 173

6.3 Gestão escolar e relação de pertencimento: o lugar da família na

experiência do currículo quilombola ........................................................ 177

6.3.1 A participação da família na escola quilombola contribui para positivar a

autoestima da criança e da comunidade e o sentimento de ser capaz ........ 179

6.3.2 Gestão do currículo quilombola: a experiência africana resignificada na escola

...................................................................................................................... 182

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 188

REFERÊNCIAS ............................................................................................ 193

Page 29: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

APÊNDICE A - ROTEIRO PARA A ENTRADA EM CAMPO ...................... 205

APÊNDICE B - FICHA DE IDENTIFICAÇÃO DA ESCOLA ......................... 206

APÊNDICE C - FICHA DE IDENTIFICAÇÃO DO(A) PROFESSOR(A) ....... 207

APÊNDICE D - ROTEIRO PARA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA ..... 208

APÊNDICE E - ENTREVISTA COM A COORDENADORA DA ESCOLA ... 209

APÊNDICE F - ENTREVISTA COM UMA PROFESSORA............................219

ANEXO A - PORTARIA NORMATIVA N. 21, DE 28 DE AGOSTO DE 2013

...................................................................................................................... 235

Page 30: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

“Eu creio na virtude formadora das experiências seculares acumuladas e do

vivido veiculado pelas culturas.” (CÉSAIRE, 2010, p. 109).

Page 31: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

30

1 INTRODUÇÃO

A Pesquisa Referenciais Epistêmicos que Orientam e Substanciam Práticas

Curriculares em uma Escola Localizada na Comunidade Quilombola de Conceição

das Crioulas foi desenvolvida na Linha de Pesquisa Formação de Professores e

Prática Pedagógica do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade

Federal de Pernambuco - PPGE-UFPE, no período 2012-2016.

Consideramos por Referenciais Epistêmicos o conhecimento que é vivido,

desenvolvido e difundido a partir da experiência histórica de afrodescendentes da

Diáspora Africana no Brasil, que, através de múltiplas formas de insurgências,

resistência e afirmações, conquistaram alteridade num saber viver e saber fazer.

Nesta perspectiva, nos referenciamos no pensamento afrocêntrico de Assante (2009,

p. 93), onde referenciais epistêmicos são pensamentos, práticas e perspectivas,

construídas pelos afrodescendentes, assumindo o lugar de sujeito e agente de

fenômenos, atuando sobre a sua própria imagem cultural e de acordo com os seus

próprios interesses humanos. Uma trilogia fundamenta a afrocentricidade de Assante:

Afrocentricidade (1980), Ideia Afrocêntrica (1987) e Kamet, Afrocentricidade e

Conhecimento (1990).

O pensamento afrocêntrico, que tem seu marco de referência na década de

1980, analisou a violência histórica instituída pela supremacia branca enquanto

práticas e relações estabelecidas no campo sócio-econômico-político e cultural e seus

reflexos no campo da produção de conhecimento. Na perspectiva do pensamento

decolonial, os autores farão referência ao sistema mundo moderno colonial, onde

destacam que falamos a partir de um lugar situado nas estruturas de poder. A crítica

de Assante no campo da violência vai destacar o uso da violência como forma de

subordinação e no extremo de extermínio que produziu: escravização por séculos,

extermínio de povos indígenas, e morte e aprisionamento durante longos processos

de colonização.

No processo de domínio social e econômico, milhões perdem a soberania em

seus territórios e perdem também as condições de trabalho. No processo de

dominação mental, o processo é desenvolvido pelo domínio psicológico e intelectual

dos que devem ser submetidos, o meio pelo qual se torna eficaz é no campo das

ideias, teorias e conceitos difundidos como universais, normais e naturais. Para

Assante (2009), a difusão de que “todos são étnicos”, menos os europeus, seria uma

Page 32: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

31

forma colonialista classificatória de povos e culturas. Na perspectiva afrocêntrica, todo

conhecimento é situado e deve ser emancipador.

Essa perspectiva, como veremos no capítulo em que desenvolvemos o

referencial teórico, não implica numa substituição do eurocentrismo pelo

afrocentrismo, no sentido de substituição pela hegemonia, mas parte do lugar do

sujeito e de suas capacidades ontológica, relações como produção dos sujeitos

africanos e afro-brasileiros.

Compreenderemos que, numa perspectiva afrocêntrica, não há hierarquias de

saber mais ou saber menos. O conhecimento como emancipador está

georeferenciado e dialoga a partir do lugar cultural sem subordinar as culturas.

Os quilombolas estão presentes no Brasil desde o século XVI com o tráfico de

africanos transportados para fins de escravização, processo esse ocorrido um pouco

antes em outros países do Continente Latino Americano. No Brasil, a escravização

tem início no século XVI, por volta de 1530, atravessando três séculos até o ano de

1888 do século XIX, quando tornou-se insustentável, por um conjunto de fatores, a

saber, uma ação libertária interna com o protagonismo de negros forros, livres,

abolicionistas brancos e pela pressão externa, a exemplo da atuação da Inglaterra

contra o tráfico. Esse conjunto de fatores levou a abolição em 13 de maio de 1888,

fazendo do Brasil o país que mais recebeu africanos para fins de escravização nas

Américas, 2∕3 do total; o país onde a escravização perpetuou por mais tempo, mais

de três séculos; e o último país das Américas a aboli-la.

Esse processo de fundação do Brasil vai marcá-lo profundamente no que se

refere a sua identidade e às relações étnico-raciais vivenciadas no país, o Estado,

através de dois decretos imperiais: o Decreto nº 1331, de 17 de fevereiro de 1854,

que determinava que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos e

a previsão de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de

professores, e o Decreto 7031-A, de 06 de setembro de 1878. Portanto, dez anos

antes da abolição, estava estabelecido que os negros só podiam estudar no período

noturno. Esse fato foi determinante no sentido de negar o acesso à educação a essa

população e essa correção, ou ação de reparação, só vai efetivamente acontecer de

fato e de direito no final do século XX com a Constituição Federal de 1988 e as

Políticas de Ações Afirmativas que serão implementadas no século XXI, das quais os

quilombolas também serão protagonistas.

Page 33: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

32

A Constituição de 1988 reconhece o Quilombola como sujeito de direito na

sociedade brasileira e abrirá caminho para um novo marco referencial legal na

educação. Em 2003, com a alteração da LDB com a Lei 10.639∕03, ampliada pela

11.645/08 e, em 2012, com a homologação pelo MEC das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Escolar Quilombola.

Considerando a trajetória histórica da experiência organizativa dos quilombolas

como sujeito político que exerce um protagonismo tanto na denúncia do racismo como

realizando ações educacionais e culturais, como, por exemplo, a proposta de Abdias

do Nascimento referente ao Quilombismo ou Cunha Junior e Petronilha Beatriz sobre

Africanidades é que nos interrogamos sobre os Referenciais Epistêmicos que

Orientam e Substanciam as Práticas de Professoras em Escolas situadas na

Comunidades Quilombola de Conceição das Crioulas.

É uma pesquisa qualitativa, onde realizamos um estudo de caso etnográfico

baseado em André (2013, 2005) e Stake (1983) cujo objetivo geral é compreender os

referenciais epistêmicos das práticas curriculares de professoras quilombolas em

escola situada no território de Conceição das Crioulas, a escola do Sítio Paula.

Instigamo-nos a investigar em que medida, as africanidades, os princípios

metodológicos afrocêntricos e as diretrizes curriculares nacionais para a educação

escolar quilombola estabelecidas na Resolução Nº 08 de 20 de novembro de 2012,

constituem-se em fundamentos teóricos-metodológicos das práticas das professoras.

Para Stake (1983) a decisão para realizar um estudo de caso etnográfico é

muito mais epistemológica, do que metodológica. O autor argumenta que se o

pesquisador quer entender um caso particular levando em conta seu contexto e sua

complexidade, o estudo de caso se faz ideal. Daí resulta nossa escolha pelo estudo

de caso etnográfico, considerando nosso objeto de pesquisa e nossos objetivos. Para

André (2013, p. 53) os estudos de caso são valorizados pela sua capacidade

heurística, isto é, por oferecer insights e conhecimentos que clarifiquem ao leitor os

vários sentidos do fenômeno estudado. Esses insights podem vir a se tornar hipóteses

que sirvam para estruturar futuras pesquisas, o que torna o estudo de caso

especialmente relevante na construção de novas teorias e no avanço do

conhecimento na área.

Enquanto objetivos específicos interessa-nos: a) analisar em que medida a

formação inicial e continuada das professoras substanciam a sua prática curricular; b)

compreender as epistemologias que fundamentam e substanciam as práticas das

Page 34: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

33

professoras; c) compreender os princípios da Educação Quilombola e as Diretrizes

Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola postos em prática; d)

Compreender a relação escola-professor-aluno-família-comunidade à luz das

africanidades e do referencial legal.

O corpus teórico da pesquisa está fundamentado nos princípios afrocêntricos,

expressos na experiência histórica dos quilombolas no Brasil e nas Américas, as

experiências culturais, materiais e imateriais, sociopolíticas e econômicas desses

sujeitos que, na educação e nas relações no contexto do território, ganham concretude

na prática educativa, constituindo e resignificando o ser quilombola desde África no

Brasil. O referencial teórico, portanto, toma como centralidade o pensamento

afrocêntrico e as africanidades e a experiência insurgente histórica dos quilombolas

enquanto sujeitos subalternizados em diálogo com o pensamento decolonial. Ele

também dialoga com as Epistemologias do Sul, uma perspectiva georeferencial do

conhecimento compreendida por Santos (2010) como uma iniciativa, uma intervenção

epistemológica para criar e partilhar conhecimento, para criar partilhadamente e para

partilhar criativamente o conhecimento.

Antes da epistemologia proposta por Santos (2010), Freire (2011), na

Pedagogia da Esperança, utiliza o termo “Suleá-los”- uma crítica que faz a si mesmo

sobre o ponto de partida e referência ao uso de sua própria linguagem na relação

formativa, onde “eu ainda quase sempre partia do meu mundo, sem mais explicação,

como ele devesse ser o “sul” que os orientasse” (FREIRE, 2011, p. 33). Nas notas

explicativas da obra (FREIRE, 2011, p. 294), diz que “Paulo Freire usou esse termo,

chamando a atenção dos leitores para a conotação ideológica dos termos nortear,

norteá-lo, nortear-se.” E continua. “Norte é primeiro mundo. Norte está em cima, na

parte superior, assim Norte deixa “escorrer” o conhecimento que nós do hemisfério

Sul ‘engolimos sem conferir com o contexto local.” (FREIRE, 2011, p. 295).

A linguagem é um dos elementos-chave, pelo qual opera a colonialidade do

Ser, um conceito central do pensamento decolonial. A linguagem é também objeto de

estudo de Fanon (FANON, 2008), onde o autor afirma categoricamente o peso que

exerce a sintaxe, a morfologia de tal ou qual língua colonial. Para este autor, em

contexto colonizador, falar é existir absolutamente para o outro.

Para descolonizar corpos e mentes há que insurgir-se e construir referenciais

próprios: “sulear-se”, para Paulo Freire, e “aquilombar-se” para Abdias do Nascimento,

são termos que falam de um posicionamento conscientemente contextualizado.

Page 35: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

34

Nessa perspectiva, nosso locus de enunciação é a comunidade quilombola de

Conceição das Crioulas, especificamente o Sítio Paula, no Sertão Pernambucano,

situado no Nordeste do Brasil. Assumimos um lócus de enunciado epistêmico que

dialoga com as teorias hegemônicas, entretanto as questiona como único

conhecimento válido para explicar a história dos povos do sul, em especial a história

dos quilombolas, enquanto sujeitos políticos e epistêmicos.

No caminho das epistemologias do sul, buscamos nos aproximar de uma

prática que leve em consideração a ecologia de saberes compreendida

na promoção de diálogos entre o saber científico ou humanístico, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem africana, oriental etc.) que circulam na sociedade (SANTOS, 2004, p. 76).

Atentos ao que afirma Grosfóguel (2010) no que se refere à crítica

epistemológica aos paradigmas eurocêntricos hegemônicos, quando este autor

distingue o ‘lugar epistêmico’ e o ‘lugar social.’

O fato de alguém se situar socialmente no lado oprimido das relações de poder não significa automaticamente que pense epistemicamente a partir de um lugar epistêmico subalterno. Justamente, o êxito do sistema-mundo colonial/moderno reside em levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido da diferença colonial a pensar epistemologicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes. As perspectivas epistémicas subalternas são uma forma de conhecimento que, vindo de baixo, origina uma perspectiva crítica do conhecimento hegemônico nas relações de poder envolvidas (GROSFÓGUEL, 2010, p. 459).

Uma das críticas que autores desse campo têm apresentado é a de que o

conhecimento-científico, que é apenas um tipo de conhecimento, ao conquistar a

hegemonia no campo do conhecimento científico-acadêmico, assumiu para si o poder

de validar o que é ciência como sinônimo de conhecimento e verdade. Ora, como

afirma Nascimento (2009), a ideia de uma ciência histórica pura e universal está

ultrapassada. O conhecimento científico de que os afrodescendentes necessitam é

aquele que os ajude a formular teoricamente - de forma sistemática e consistente- sua

experiência de quase quinhentos anos de opressão. Portanto, é neste contexto de

quebra do paradigma anglo-saxão que estão se firmando em diversos campos de

Page 36: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

35

conhecimento epistemologias africanas, indígenas, feministas, dentre outras, que

rompem a subalternidade geopolítica do conhecimento.

Para Ki-Zerbo (2011), a história é a memória dos povos e a história da África,

como a de toda a humanidade, é a história de uma tomada de consciência. Nesse

sentido, a história da África deve ser reescrita. Nesta pespectiva, os quilombos

enquanto expressão africana diaspórica foi resignificada e está sendo reescrita.

O conhecimento africano existe há milhares de anos. Neste continente foi

criada, anterior ao século XII, a primeira Universidade do mundo, a Universidade de

Timbuktu, no Mali. O conhecimento iluminista, cartesiano, originário no século XVII

imprimiu no pensamento ocidental a ideia de universalidade, quando o que ocorreu

foi o desenvolvimento de uma hegemonia. No que se refere ao conhecimento

científico ocidental, ao analisar a hegemonia do Ocidente sobre o Oriente, Lopes e

Macedo (2012, p. 162) afirmam que fica claro que a cultura científica se construiu

como possibilidade de explicar o mundo, deslegitimando possibilidades já existentes

e dificultando o aparecimento de tantas outras. Esta referência ajuda a entender

porque as teses de Diop e Fanon foram inicialmente recusadas. Diop comprovou na

Sorbone a origem africana da humanidade num contexto científico adverso sobre a

capacidade intelectual do africano. Fanon, na Martinica, colônia francesa, estudou as

formas de dominação mental que levam homens negros a projetar serem brancos na

sociedade colonizada. De acordo com Fanon (2008), o paradigma anglo-saxão

hegemônico de conhecimento produziu epistemicídio em povos e culturas que

sofreram processos de colonização.

Assumimos a referência teórica de currículo escolar quilombola como

experiência afrocêntrica da diáspora, construída na trajetória histórica dos quilombos.

No território campo de pesquisa, os quilombolas foram se construindo professores

num contexto de formação inicial adverso à sua realidade sócio-política-econômica e

cultural, onde sua realidade não “cabia na grade curricular.” Produzindo uma formação

distanciada e mais que distanciada, sem cumprir com a função de emancipação do

ser humano e, nesse enquadramento do currículo “prescrito”, negros e quilombolas

conseguiram avançar na conquista de seu direito à educação de qualidade.

As práticas curriculares dos professores quilombolas entrevistados nos

revelaram que, em que pese as enormes lacunas na formação, eles estão em busca

de mudança. Trabalhar currículo como experiência implica no reconhecimento de que

todo conhecimento tem origem na experiência social e essa compreensão é mais do

Page 37: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

36

que uma questão epistemológica, é uma questão política e pedagógica (ARROYO,

2013, p. 121). Política, porque refere-se a uma trajetória de uma população

historicamente subalternizada por mais de três séculos e que, desde sempre, buscou

meios de fraturar o sistema sob diversas formas. Pedagógica, porque a educação

sempre foi uma bandeira de luta dos movimentos sociais, tendo no século XXI

conquistado referenciais legais que orientaram para políticas e práticas afirmativas.

No que se refere a movimentos sociais, Gohn afirma que:

movimentos sociais populares são formas renovadas de educação popular. Eles não ocorrem através de um programa previamente estabelecido, mas através dos princípios que fundamentaram programas de educação popular, formulados por agentes institucionais determinados, tais como grupos de assessoria articulados a igreja, a partidos políticos, a universidades, a instituições governamentais nacionais e internacionais, a sindicatos etc. (GOHN 2011, p. 336).

Para a autora, os movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social,

constroem propostas. Atuando em redes, constroem ações coletivas que agem como

resistência à exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem e desenvolvem o

chamado empowerment de atores da sociedade civil organizada, à medida que criam

sujeitos sociais para essa atuação em rede. Tanto os movimentos sociais dos anos

1980 como os atuais têm construído representações simbólicas afirmativas por meio

de discursos e práticas.

Nossa pesquisa, portanto, ao utilizar o referencial teórico-metodológico situado

nas africanidades brasileira e no pensamento decolonial latino-americano, assume um

posicionamento de contribuir a partir desse lugar do Sul, "sulleando-se”, com uma

produção do conhecimento crítica, que não se propõe a negar o conhecimento

hegemônico, mas afirmar que existem formas outras de produzir conhecimento. Em

outros termos:

assumimos a crítica feita por diversos autores à racionalidade científica instrumental, que nega o caráter racional das formas de conhecimento que não se pautam pelos seus princípios epistemológicos. Essa racionalidade instaura uma separação rígida entre sujeito-objeto, como se a construção do conhecimento humano fosse uma realidade independente do contexto sócio-histórico e da própria vida dos sujeitos que o elabora, acarretando a ausência de um processo que garante a discussão do papel da ciência, da cultura e da sociedade. (SILVA, 2009, p. 50).

Page 38: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

37

Nosso posicionamento no que se refere à produção de conhecimento segue na

linha posta por Ki-Zerbo (2011), Bâ (2011), Silva (2009), Santos (2010), Santos e

Gamboa (1997) Said (2001) no sentido de considerar que:

não há epistemologias neutras e as que reclamam sê-lo são as menos neutras [...] o colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual entre saberes que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade. (SANTOS, 2010, p. 11).

Assim a escolha do referencial teórico-metodológico, além de uma vinculação

com o objeto de pesquisa pela sua pertinência, implica também numa identificação e

consequentemente num posicionamento da pesquisadora. Afirmamos que nossas

escolhas refletem efetivamente um posicionamento ético-político.

Levando em consideração esse processo, partimos dos princípios das

africanidades enquanto ressignificação da cultura africana no Brasil refletidas nas

relações sociais, numa perspectiva de conhecimento que toma por base a oralidade

e que dá sentido à escola. Princípios que consideram o lugar de pertencimento dos

sujeitos que Assante (2009) chamará de Agência, e Ki-Zerbo (2011) destacará a

necessidade de considerar o princípio de que a história seja vista do interior, ou seja,

da trajetória histórica coletiva dos sujeitos, e não medida permanentemente por

padrões de valores estrangeiros.

Nos referenciamos na tradição oral enquanto expressão ancestral e uma das

fontes principais do pilar do conhecimento histórico que se mantem viva em Conceição

das Crioulas, nos termos postos por Bâ (2011) e está registrada em vários

documentos CCLF (2009), Silva (2007); e em fontes epistêmicas acadêmicas, alguns

dos cânones do pensamento negro: Ki-Zerbo (2011), Fanon (2008), King (2011),

Cunha Junior (1998), Silva (2003, 2005), Oliveira (2006), Gomes (1997, 2007), Lopes

(2008, 2006), Luz (2000), Ramose (2010), Nascimento (2009), dialogando com a

afrocentricidade em Santos Junior (2010), Asante (2009), o quilombismo em

Nascimento (2009). Do pensamento decolonial, nossas referências são Dussel

(2010), Quijano (2005), Mignolo (2005, 2008), Maldonado-Torres (2007), Escobar

(2005), Grosfoguel (2013, 2010, 2017) e Walsh (2005, 2009, 2010).

Page 39: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

38

No campo do currículo nos posicionamos no campo da teoria crítica, utilizando

a compreensão de currículo com experiência fundamentada em Arroyo (2012, 2011),

dialogamos com Gimeno Sacristán (2000), Silva (2000), Lopes e Macedo (2012,

2011), Almeida (2008), Santiago e Batista Neto (2012), Menezes e Santiago (2014).

Também utilizamos as lentes de Gatti, Barreto e André (2011), Souza (2009), Silva e

Almeida (2010) para compreendermos a formação docente das professoras. Os dados

da pesquisa foram analisados tomando por referência a análise de conteúdo em

Bardin (2011), e, em Vala (1990), a análise de contexto.

No desenvolvimento da pesquisa, foi possível verificarmos que as professoras

quilombolas compartilham com as famílias a prática curricular quilombola. Portanto,

professoras, pais, mães e lideranças tem muito a dizer no processo educativo, são

vozes que rompem o silenciamento e a condição subalterna e conquistam de forma

insurgente o fazer educativo na Escola Campo de Pesquisa no Sítio Paula-Conceição

das Crioulas. As práticas curriculares ocorrem em espaço escolar e não escolar, nas

residências, e nos espaços instituídos e lúdicos existentes na comunidade.

As formas e metodologias do desenvolvimento das práticas, assim como os

conteúdos, materiais, as fontes validadas estão apresentadas no capítulo de análise

onde detalhamos as bases epistêmicas da tradição ancestral e de fontes teóricas

modernas, onde desponta Paulo Freire.

Enquanto estruturante a pesquisa apresenta 1. Introdução; 2. Experiências de

Vida, de Atuação Social, Práticas Curriculares e Políticas Públicas: ou da construção

do objeto de pesquisa; 3. Fundamentação teórica, apresentada nas Africanidades

Brasileiras e Educação: um território decolonial possível e 4. Educação e Currículo

Escolar Quilombola: um reconhecimento histórico na educação nacional; 5.

Entrelaçando os fios do tecido que vestem a pesquisa: ou do tear metodológico,

apresenta a metodologia para o desenvolvimento do estudo; 6. Formação Inicial e

Continuada de Professores Quilombolas: Referenciais Epistêmicos que Orientam e

Substanciam as Práticas compõe os resultados, onde registeram-se: as Referências

de Educação Escolar Quilombola e o Currículo como Experiência: o que dizem as

professoras e a Gestão Escolar e Relação de Pertencimento: o lugar da família na

experiência do currículo escolar quilombola e 7. para finalizar, onde apresentamos as

considerações finais.

No segundo capítulo, apresentamos nossa relação com o campo de pesquisa,

que não é um campo desinteressado. Desde o início dos anos 2000, existe uma

Page 40: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

39

relação pessoal e profissional com a comunidade e as professoras, num convívio em

diversas esferas existentes no território e fora dele, nos processos de formação

continuada, nos vínculos construídos. Uma relação de confiança conquistada que nos

permitiu ouvir e conviver para além do desenvolvimento da pesquisa.

As professoras que compartilharam conosco suas vozes ocupam na pesquisa

a posição de co-autoria, pois sem a experiência histórica vivida e construída por elas

e a nós confiada em atentas escutas, em convivência de lazer e de trabalho,

acolhimento em suas casas e em seus ambientes de trabalho, essa pesquisa não teria

sido possível.

No terceiro capítulo, discorremos sobre os fundamentos teóricos da pesquisa.

As Africanidades e Africanidades Brasileiras que expressam as Ancestralidades de

raízes africanas e são apresentadas na perspectiva histórica e também da memória

têm dupla dimensão: material e imaterial. Desenvolvem a interdisciplinaridade e

anunciam uma perspectiva de transdisciplinaridade.

No quarto capítulo, fazemos uma discussão sobre Educação Escolar e

Currículo Quilombola, contextualizando o marco legal que a referencia num

reconhecimento da luta política dos quilombolas pelo direito humano à educação.

Discorremos sobre a metodologia no quarto capítulo, bem como situamos a

aproximação do campo e a sua caracterização, a caracterização da escola, os critérios

de escolha, onde, a partir de Bardin, apresentamos os procedimentos de organização,

tratamento e análise dos dados.

No sexto capítulo, apresentamos os resultados, com a discussão da Formação

Inicial e Continuada de Professoras Quilombolas e os Referenciais Epistêmicos que

Orientam e Substanciam as suas Práticas. Neste capítulo, é possível evidenciar que

esses referenciais estão enraizados∕referenciados na ancestralidade e antecedem a

existência da escola como espaço de saber e produção de conhecimento. A principal

referência é a tradição oral e memória enquanto lugar de resistência para continuar a

existir.

A centralidade das falas das professoras está nos princípios da educação

escolar quilombola e fundamentada no marco referencial legal, que foi uma conquista

da organização política construída historicamente enquanto movimento social rural

negro quilombola.

Um diferencial na educação desenvolvida no nosso estudo é a participação da

família na gestão do currículo escolar quilombola. A família educa e é educada na

Page 41: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

40

escola quilombola. Se aprende fazendo, com a experiência dos mais velhos, sendo

eles: pais, mães, avós das crianças e adolescentes da escola.

Para finalizar concluímos o trabalho com as considerações finais.

Nossa tese é que a experiência histórica dos quilombolas, enquanto sujeitos

políticos, integrantes do movimento social afro-diaspórico, situado no território de

Conceição das Crioulas, tomou a luta pela educação e pelo território como central

para a sua emancipação humana. Essa experiência trabalha na escola a memória

como elemento estruturador e mobilizador da causa ao mesmo tempo em que

constitui uma referência forte de identidade, no sentido em que se diz: de onde eu vim

e para onde vou. Há nessa experiência uma dimensão coletiva que está presente na

prática social da Comunidade, da AQCC e nas práticas curriculares das professoras.

Práticas que podem ser relacionadas às africanidades presentes na oralidade, na

Banda de Pífano, no Trancelim, no artesanato, na cerâmica, nos bordados e também

na interculturalidade que é estabelecida no encontro com o povo indígena Atikun,

onde eles afirmam que são um “povo irmão.” Na outra ponta, afirmamos que a

conquista política da educação específica e diferenciada em Conceição das Crioulas

se dá no contexto da Diferença Colonial e da Desobediência epistêmica desse povo

que, tendo conquistando a sua palavra, está em processo de superação da

subalternização e, com consciência, está afirmando seu lugar no mundo, afinal o

subalterno não exerce a palavra, como já nos informou Spivak (2010).

Page 42: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

41

“O crescimento das pessoas tem sentido quando representa fortalecimento

para a comunidade a que pertencem.” (SILVA, 2003, p. 181).

Page 43: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

42

2 UM ENCONTRO ENTRE EXPERIÊNCIAS DE VIDAS, DE ATUAÇÃO SOCIAL,

PRÁTICAS CURRICULARES E POLÍTICAS PÚBLICAS: OU DA CONSTRUÇÃO

DO OBJETO DE PESQUISA

A Pesquisa Referenciais Epistêmicos que orientam e Substanciam

Práticas Curriculares em uma Escola Localizada na Comunidade Quilombola de

Conceição das Crioulas, desenvolvida no Núcleo de Pesquisa Formação de

Professores e Prática Pedagógica do Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal de Pernambuco- PPGE-UFPE, tem por objetivo geral

compreender os referenciais epistêmicos das práticas curriculares de professoras

quilombolas em escolas situadas no território quilombola de conceição das Crioulas,

especialmente no Sítio Paula, onde se localiza a escola campo de pesquisa e

evidenciar as africanidades presentes nessas práticas, considerando a experiência da

luta pelo direito à educação do Movimento Social Quilombola, a Lei 9394∕96 das

Diretrizes e Bases da Educação Nacional-LDBEN e, ainda, as Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, estabelecidas na Resolução nº 08,

de 20 de novembro de 2012, pela Câmara Básica do Conselho Nacional de Educação.

A motivação para a pesquisa foi construída lentamente, pois minha primeira

aproximação com as professoras de Conceição das Crioulas se deu no final dos anos

1990 numa formação ocorrida no Recife, no Centro de Educação da UFPE, para

incentivar a formação de professores-leitores, no âmbito do Projeto Proler, da

Fundação Biblioteca Nacional.

Neste período, Conceição das Crioulas já tinha construído seu primeiro Projeto

Político Pedagógico diferenciado na Escola José Mendes, onde a quilombola Givânia

Maria da Silva era a Diretora. Em 2000, a relação foi intensificada, porque viajamos

pela primeira vez à comunidade pelo Centro de Cultura Luiz Freire - CCLF, numa

parceria com o Projeto Imaginário-UFPE. Ao longo desses anos, acompanhamos a

Comissão de Educação da Associação Quilombola de Conceição das Crioulas;

Realizamos dois Módulos de Formação de Professores Leitores: Oficinas de Leitura:

aprendendo a gostar de Ler.

A fundação da AQCC se deu no ano de 2000 e “seu papel é lutar pelo

desenvolvimento de Conceição das Crioulas, fortalecendo a organização política, a

identidade étnica e cultural e a luta pela causa quilombola” (MENDES, 2007, p. 47).

Page 44: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

43

Em 2003, junto com a AQCC, o CCLF, o Grupo Identidades, composto por

professores e estudantes da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto-

FAUP e o Balé Majê Molê de Olinda, organizamos o Primeiro Festival de Cultura de

Conceição das Crioulas, com uma programação de uma semana com oficinas de

teatro, dança, contação de histórias, pintura, e o primeiro curso sobre História da

África com o Prof. Dr., da UFC, Henrique Cunha Junior, intelectual formulador no

Brasil do conceito de africanidades e afrodescendências. As conquistas educacionais

em Conceição das Crioulas neste período do final dos anos 90 e na primeira década

dos anos 2000 eram impressionantes. Refletia um movimento forte das lideranças e

professores na luta pelo acesso e pela gestão do direito à educação. Entretanto, nos

encontros estaduais, Pernambuco já realizou quatro encontros estaduais de

comunidades quilombolas, desde 1998, em Garanhuns, quando realizou o primeiro.

Todavia, essa realidade era exceção. Os indicadores das comunidades quilombolas

refletiam negligência do poder público: falta de escolas, baixo acesso e progressão de

quilombolas no sistema educacional brasileiro, currículo urbanocêntrico e

monocultural. Estes eram alguns dos principais problemas denunciados, inclusive na

Carta de Garanhuns de 1998.

É nesta dimensão de ser coletivo que percebemos o movimento quilombola no

Brasil. A trajetória de organização política e social dos quilombolas em seus territórios

e na vida nacional brasileira reflete uma coletividade que, sendo plural, tem elementos-

chave comuns de identidade: a ancestralidade, a territorialidade. É historicamente

significativa a conquista da condição de sujeito político desse segmento, que, tendo

sido considerado transgressor da ordem vigente no século XVI e ao longo dos séculos,

afirma-se no campo político e da produção do conhecimento na virada do Século XX.

Os indicadores da Educação Básica informam que, embora a situação de

ingresso de quilombolas no sistema educacional tenha melhorado desde 2003, essa

é uma situação positiva analisada na verticalidade, pois, na horizontalidade, quando

observamos a progressão, evidenciam-se significativas intercorrências.

Inúmeras dificuldades estão postas, dentre elas a mais recorrente é a ausência

de escolas nas comunidades, que garantam o acesso de quilombolas ao Ensino

Fundamental e Ensino Médio, evitando a evasão e o abandono; uma outra é um

currículo que inclua a vida, a trajetória histórica e cultural dos quilombos, ou seja, um

currículo que contemple a Educação da Relações Étnico-Raciais e as Diretrizes

Page 45: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

44

Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Uma terceira diz

respeito ao professor que ensina na escola em comunidades quilombolas.

Tabela 01 - Número de funções docentes em área de Quilombo por raça/cor

UF TOTAL Branca % Preta % Parda % Não Declarada %

PE 222 62 28% 20 9% 96 32% 44 20%

Fonte: BRASIL (2013, p. 35).

A tabela acima ilustra a necessidade de uma atuação no sentido de

desenvolver ações de identificação docente em território quilombola. O número de

docentes que se declaram pardos é o maior em relação a outras classificações e a

tabela revela, também, um significativo número de brancos nas áreas de quilombo,

próximo de 1/3 do total dos docentes.

Em Conceição das Crioulas, todas as professoras, além de serem da

comunidade, se assumem negras, crioulas quilombolas. Esse trabalho de afirmação

de identidade a partir da educação vem sendo realizado há muitos anos de forma

articulada com a organização política.

No trabalho que realizamos de incentivo à leitura, as referências de identidades

tinham uma centralidade. Solicitávamos que as professoras trouxessem os elementos

mais característicos do seu lugar, do sítio. Perguntávamos porque cada sítio tinha

aquele nome, qual o sentido da história do lugar do Sítio Paula, do Sítio Rodeador,

Poço da Pedra, Barrinha, Jiboia, Garrote Morto, do Sítio Estrela, do Mulungu, e tantos

outros para atribuirmos sentido aos lugares. Esse foi um dos pontos altos das oficinas,

quando as professoras compartilhavam os nomes dos lugares e traziam referências

culturais do lugar. Foi nesse período que, na oficina de contação de histórias e de

teatro, os grupos montaram a história e a peça teatral das seis negras livres que

fundaram Conceição das Crioulas.

Em Conceição das Crioulas, todos os professores são da comunidade por sua

conquista histórica que se transformou em normativa educacional, conforme

estabelecido no Art. 8º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola, nos incisos IV-presença preferencial de professores e gestores

quilombolas nas escolas quilombolas e nas escolas que recebem estudantes oriundos

de territórios quilombolas; e V-garantia de formação inicial e continuada para os

docentes para atuação na Educação Escolar Quilombola (BRASIL, 2012, p. 5). Em

Page 46: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

45

Conceição, a comunidade iniciou a conquista desse direito na década de 1990, tendo

chegado em 2016 com a Educação Básica completa na comunidade.

No contexto nacional de ausências de escolas, de professores quilombolas com

formação inicial, a trajetória educacional de Edmara Gonçalves Soares (2012), a

primeira quilombola a defender tese no Brasil sobre a educação escolar quilombola,

na UFPR, é um exemplo de superação, pois, para seguir nos estudos, foi necessário

ultrapassar as dificuldades nas séries iniciais quando ela e os irmãos escreviam em

papel de embrulho à luz de vela, porque caderno era um luxo que a família não

dispunha, e viajar muitos quilômetros para chegar na cidade para cursar as séries

finais do Ensino Fundamental foi uma decisão que os irmãos não tiveram condições

de acompanhar. A trajetória de Edmara explicita um tipo de migração: a intelectual.

Para formar-se, o quilombola muito recorrentemente se retira do seu lugar de origem.

Em 2015, duas das quatro gestoras foram selecionadas no mestrado semi-presencial

na UNB e estão custeando por conta própria um professor substituto para as suas

aulas, porque o município (até a data em que realizamos a entrevista) não havia

autorizado o requerimento de afastamento para qualificação.

A fase exploratória da pesquisa nos ajudou a compreender que há muitas

estratégias sendo adotadas para que o quilombola conquiste a efetivação do direito à

educação e a efetivação da política e da prática curricular quilombola, que não está

dada no chão da escola, é um construído num cotidiano, onde se situam ações que

indicam permanências e anúncio de mudança. Este processo vem de um

protagonismo dos sujeitos quilombolas em suas organizações locais e nacionais em

diálogo com o campo educacional e de outros campos que, ao longo da última década,

provocou no Estado Brasileiro o reconhecimento da pertinência de políticas

educacionais específicas para os quilombolas.

É esta dimensão de uma experiência de um fazer coletivo que percebemos em

Conceição das Crioulas e vou desenvolvendo um vínculo com a Escola Bevenuto

Simão do Sítio Paula. A trajetória de organização política e social dos quilombolas em

seus territórios e na vida nacional brasileira reflete uma coletividade que, sendo plural,

tem elementos-chave comuns de identidade: a ancestralidade, a territorialidade. É

historicamente significativa a conquista da condição de sujeito político desse

segmento, tendo sido considerado transgressor da ordem no século XVI e, ao longo

dos séculos, afirma-se no campo político, da produção do conhecimento.

Page 47: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

46

Assim, num processo histórico, os seres em foco nesta pesquisa, os

quilombolas, atravessaram mais de meio milênio nas Américas para conquistarem a

condição de serem reconhecidos como ser humano, como pertencente a um lugar,

detentor de uma comunidade de povos e línguas, ou seja, um sujeito histórico.

Nesta direção, acolhemos do pensamento de Abdias do Nascimento (2009) a

proposição apresentada no 2º Congresso de Cultura Negra das América no Panamá,

onde apresenta a defesa do quilombismo como um conceito emergente do processo

histórico-cultural da população afro-brasileira. Soma-se a este legado de Abdias a

produção de tantos outros intelectuais negros que sedimentarão o caminho para a

afirmativa de duas questões fundamentais no Brasil: 1. A existência do racismo como

determinante na criação de obstáculos de inserção, visibilidade e participação dos

afrodescendentes na sociedade nacional, e 2. A participação e produção de negros e

negras para o pensamento educacional brasileiro. O processo da Lei 10.639∕96, que

altera a LDB e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombolas são exemplos efetivos desse processo de conquista, embora tensionado.

Neste sentido, definimos os critérios que buscaríamos no Estado de

Pernambuco para a escolha do campo da pesquisa. Identificar experiência de

Educação Escolar Quilombola que se aproximasse dos princípios da educação

quilombola e do marco referencial legal estabelecido a partir de 2003, e que, enquanto

comunidade tradicional histórica, refletisse uma experiência positiva de prática

curricular, tendo por princípios básicos a metodologia da história da África. Nessa

perpectiva histórica, faz-se necessário, também, situar a contribuição de Dewey

(2010, p. 18) ao afirmar que os temas curriculares, como todos os conhecimentos

humanos, são produto do esforço do homem para resolver os problemas que sua

experiência lhe coloca.

Tratar currículo como experiência, implica em partir da trajetória histórica

própria dos quilombolas, que está posta na história desde a África ao Brasil e que, no

estudo de caso, ficou evidenciado que desenvolveram uma prática onde articularam

a tradição oral e o conhecimento científico ocidental, ou seja, os referenciais teóricos

metodológicos existentes na atualidade ocidental e na antiguidade africana, sem

subordinar um ao outro, mas cuidando de destacar a temporalidade histórica dessa

construção de conhecimento e das influências delas decorrentes.

No Estado de Pernambuco, a Comunidade de Conceição das Crioulas, situada

no Segundo Distrito do município de Salgueiro a cerca de 600 Km do Recife é uma

Page 48: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

47

comunidade que tem se destacado no contexto educacional dos quilombolas

nacionalmente. Com 750 famílias, é uma das primeiras comunidades reconhecidas

pelo Estado Nacional, junto com Castainho situada na região Agreste de Pernambuco

no ano de 2000. Possui Educação Básica completa. Existem quatro escolas no

território e todas elas têm na gestão uma professora quilombola. A maioria dos

professores é licenciada e são quilombolas da comunidade.

As nossas indagações diante do pioneirismo de Conceição das Crioulas vão no

sentido de compreender as epistemologias que orientam as práticas curriculares de

professores em escolas situadas no território da comunidade, e evidenciar as

africanidades presentes nessas práticas, considerando a experiência sócio-política e

cultural das professoras quilombolas, a Lei 9394∕96 da Educação Nacional e das

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Nosso

pressuposto à luz do referencial teórico metodológico da pesquisa é o de que, das

ruínas da diferença colonial, a cultura da tradição oral tem seu lugar e se mantém em

alguns casos de forma tradicional e resignificada, uma vez que a cultura é expressão

de múltiplos encontros e o ser humano influencia e é influenciado.

Em Conceição das Crioulas, ingressar numa licenciatura fez a diferença na vida

das pessoas que se tornaram professoras e professores e hoje trabalham nas escolas,

inclusive na gestão. A trajetória é marcada por choques de realidade. É comum

ouvirmos que, ao longo do curso, as pessoas trabalharam para praticamente só pagar

a faculdade. Com a política do governo federal a partir do início dos anos 2000 de

democratizar o acesso ao ensino superior e, para isso, investir na interiorização das

universidades públicas e ampliação do financiamento, com o Fundo de Financiamento

Estudantil (FIES) e Programa Universidade para Todos (PROUNI), essa situação

mudou um pouco, mas ainda exige muitas renúncias pessoais.

Na década de 1980, a situação era muito diferente. A mobilização dos

quilombolas se deu fortemente no processo do movimento Pró-Constituinte e das

emendas populares. Nesse contexto, a redemocratização implicou numa Nova

Constituição Federal onde os direitos dos sujeitos políticos quilombolas são

reconhecidos formalmente pelo Estado Brasileiro.

No que se refere à condição dos quilombolas como sujeitos de direito, o

processo organizativo Pró-constituinte e a Constituição Federal de 1988 possibilitaram

que fosse instituída a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais

Quilombolas-CONAQ. Em sua origem, esta é a denominação dessa articulação

Page 49: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

48

política do movimento social quilombola que possui representação de lideranças de

comunidades quilombolas de todos os estados brasileiros.

O ano de 1988 foi marcante também pela ação da Igreja Católica, pois a

Campanha da Fraternidade (CF) adotou o lema: Ouvi o clamor deste povo! Voltada

para discutir o racismo, as condições em que os africanos foram trazidos e

vilipendiados de sua cultura, mas mostrar, também, a sua resistência. É deste ano a

Missa dos Quilombos, celebrada por Dom Hélder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga.

Esta Campanha da Fraternidade me impulsionou para uma aproximação com o

Movimento Negro em Pernambuco.

Conceição das Crioulas tem por mito fundador a história das seis negras que

buscavam um lugar. Elas carregavam consigo uma imagem de uma Santa: Nossa

Senhora da Conceição. É daí que vem o nome Conceição das Crioulas, a santa que

protegia as negras e as conduziu para aquela localidade que passou a ser chamada

Conceição das Crioulas.

A política nacional escolar quilombola é deflagrada no contexto da formulação

das propostas constituintes que culminarão no Artigo 68 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT) e da Constituição Federal de 1988, que trata da

regulamentação dos territórios de quilombo, onde afirma que: Aos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a

propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. E, também,

do Cap. 3 que trata da Educação, da Cultura e do desporto, nos artigos 2015 e 2016

da CF. Esses são os principais marcos legais conquistados na Constituição Federal,

que põem na agenda nacional a causa quilombola.

A Realização da Primeira Conferência Nacional de Política de Promoção de

Igualdade Racial inclui na agenda a discussão da situação dos quilombolas no país.

Participei do processo de mobilização e debate nacional que culminou na presença

de representação de Pernambuco na Conferência de Durban, na África do Sul, em

2001.

No mesmo dia da abertura da conferência, fizemos uma audiência pública,

promovida pelo Vereador Marcelo Santa Cruz, na Câmara Municipal de Olinda, para

discutir a questão racial no Brasil, partindo do contexto de Olinda, Recife e

Pernambuco.

Minha aproximação com as comunidades quilombolas de Pernambuco se deu

em 1995 numa atividade de pesquisa do Centro de Cultura Luiz Freire, como

Page 50: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

49

assistente da coordenação. A pesquisa tinha por objetivo investigar a representação

das camadas populares sobre a educação, o trabalho e a pobreza e contou com o

financiamento da Fundação Ford. Na distribuição do trabalho de campo, fui designada

para o Agreste do Estado, mais especificamente para a cidade de Garanhuns, para

estabelecer contato com a comunidade Quilombola de Castainho e com o sindicato

de trabalhadores rurais. Castainho foi incluída na amostra, porque, neste ano de 1995,

comemoravam-se os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares e havia uma

mobilização nacional para a marcha Zumbi em Brasília. Nessa perspectiva, a pesquisa

resultou no livro Educação, Trabalho e Pobreza: a educação do ponto de vista dos

pobres, CCLF (1996). Foi naquela comunidade que me inquietei epistemologicamente

com o seguinte questionamento: porque a escola silenciava no currículo escolar os

referenciais ancestrais africanos, mesmo numa comunidade quilombola? É

fundamentalmente essa questão que nos conduz na proposição da pesquisa do

doutorado.

A Marcha Zumbi 300 anos deu visibilidade ao movimento social negro e, dentro

dele, o movimento quilombola. Nos anos 2000, o Estado, com a força do movimento,

cria a Agenda Quilombola.

A oportunidade de conhecer a Comunidade de Conceição das Crioulas veio

através de um trabalho desenvolvido por uma equipe multidisciplinar onde minha

atribuição foi elaborar o perfil socioeconômico da comunidade. Os condutores do

projeto eram dois estudantes de design da UFPE. Dois anos após, terminado o

trabalho para o Projeto, o CCLF foi convidado pelo Programa de Populações

Tradicionais de Oxfam-GB, para desenvolver uma ação de Desenvolvimento

Institucional em Conceição das Crioulas. Uma das ações chaves era a comunicação

e o fortalecimento institucional, pois não havia recursos financeiros neste projeto para

a ação de educação. O CCLF decidiu assumir institucionalmente esta ação como

contrapartida, de modo que, no ano de 2001, passei a acompanhar a Equipe de

Educação da Associação Quilombola de Conceição das Crioulas-AQCC.

Em 2005, o CCLF, em parceria com o Instituto Sumaúma, deu início à execução

de um Projeto de Fortalecimento Institucional Quilombola, apoiado pela Secretaria

Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) para os Estados

de PE-PB-PI-CE.Viajamos para cada estado, conversando com cada articulação local

sobre os objetivos do projeto e de que forma elas poderiam colaborar com os efetivos

interesses das comunidades.

Page 51: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

50

Em Pernambuco, em diálogo com a Articulação Estadual Quilombola, que

estava em processo de organização do III Encontro Estadual das Comunidades no

estado, recursos do projeto referentes às ações para o apoio à realização do evento

e acompanhamento do GT de Educação e organização quilombola foram aportados.

No Ceará e na Paraíba, realizamos diversos momentos dentro do cronograma previsto

focado no desenvolvimento institucional.

Algumas produções desse processo foram concluídas em 2007 e, a partir das

vivências nas oficinas, sob nossa coordenação editorial e em diálogo ampliado com

algumas instituições que estão neste campo de atuação em outros estados, foram

disponibilizadas três publicações em meio eletrônico: Educação Quilombola, Território

Quilombola e Organização Quilombola.

Assim, num processo histórico, os seres em foco nesta pesquisa, os

quilombolas, atravessaram centenas de anos nas Américas para conquistarem a

condição de serem reconhecidos como um ser humano, como pertencente a um lugar,

detentor de uma comunidade de povos e línguas, ou seja, um sujeito histórico que

gradativamente começa a ser reconhecido como sujeito epistêmico.

Verificamos que a experiência social do movimento quilombola exerceu

pressão política e, junto com outros movimentos sociais, conquistou o Art. 68 do ADCT

da Constituição Federal. A partir daí, houve gradativamente uma ampliação do direito

quilombola à educação e a outras políticas sociais.

Nesta construção, entendemos ser necessário nos atualizarmos sobre a

produção no campo da educação no que se refere à produção de conhecimento por

meio de pesquisas nas bases do EPENN e da ANPEd, uma vez que esses são os

principais espaços de publicação e diálogo sobre pesquisa em educação no Brasil.

Nosso critério de busca se deu por palavras-chave no título do trabalho que trouxesse

a nominação quilombola/quilombo/comunidade rural relacionado com educação,

currículo escolar e identidade.

O levantamento de Comunicações Orais no EPENN explicitou nosso

pressuposto de silenciamento epistêmico sobre o Currículo Escolar Quilombola no

Contexto da Educação das Relações Étnico-Raciais, pois, embora tenha crescido

exponencialmente a produção, ampliou de um trabalho em 2001 para 09

comunicações em 2011.

Verificamos o crescimento do interesse pela pesquisa no período sobre a

temática e, ao participar nos anos de 2012, 2013 e 2014 de eventos acadêmicos

Page 52: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

51

organizados pela Anped e pelos Programas de Educação que organizam o EPENN,

algumas questões nos instigaram. Uma delas está relacionada aos referenciais

utilizados pelas pesquisas. É comum encontrar no conjunto dos mais variados objetos

determinados autores comuns; independentemente dos objetos de pesquisa

definidos, autores franceses aparecem de forma hegemônica nos referenciais teórico-

metodológicos, o que confirma a crítica afrocêntrica e decolonial acerca do

eurocentrismo epistêmico na produção de conhecimento.

Nesta direção, fomos verificar a produção no GT 21 Educação das Relações

Etnicorraciais do EPENN; constatamos que é neste GT que se encontra o maior

número de trabalhos com abordagem sobre quilombos/quilombolas, embora não

chegue a 10% do total publicado no período analisado, conforme dito anteriormente e

ilustrado no quadro a seguir.

Quadro 01 - Quantitativo anual GT 21-EPENN-2001 a 2011

Ano-Edição Total de Trabalhos Com Objeto Quilombo-Quilombola-Com. Rural

%

2011-20º 49 09 18,36

2009-19º 51 05 9,8

2007-18º 22 01 4,54

2005-17 19 ------------------- --------

2003-16º 21 01 4,76

2001-15º 09 01 11,11

TOTAL 171 17 9,94

Fonte: Delma Silva (2012) com base no levantamento dos Encontros de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste EPENN– 2001-2011.

Instigados pelo GT-21, fomos em busca de informações no GT-12 sobre

currículo. Porém, não encontramos nenhuma pesquisa apresentada no GT, no

período estudado. No GT-8, referente à Formação de Professores, e no GT-03

referente a Movimentos Sociais. Vale destacar que o GT que acolhe as pesquisas

sobre Educação do Campo, no período estudado esteve com variadas numerações,

conforme se vê no quando. O resultado quantitativo dessa busca, poderemos verificar

no quadro síntese do levantamento apresentado a seguir.

Page 53: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

52

Quadro 02 - Levantamento dos GTs DA BASE EPENN (2001-2011)

Grupo de Trabalho-GT

Total de Trabalho

Com abordagem

Quilombola

%

GT 03 206 02 0,97

GT 08 1.134 01 0,008

GT 12 263 ------ ------

GT 21 171 17 9,94

GT 22,23,24,25 e 26* 174 02 1,14

TOTAL 1.948 22 1,22

Fonte: Delma Silva (2012) *No período 2001-2011 no EPENN os trabalhos de Educação do Campo estiveram numerados e subsumidos em outras denominações. Apenas em 2009 ele é nomina do GT- Educação do campo.

No GT-08, referente à Formação de Professores, encontramos apenas um

trabalho, num volume de mais de mil trabalhos. Este trabalho foi publicado em 2011,

o que revela que o interesse pelo estudo no campo de pesquisa sobre Formação de

Professores está praticamente ignorado, tão silenciado quanto no GT-12 referente a

Currículo, pois um trabalho num conjunto de mais de mil, configura-se em uma

invisibilidade tão intensa quanto o silenciamento absoluto.

A pesquisa de Gusmão (2011), informa que, na comunidade quilombola onde

a autora desenvolveu a pesquisa, são ofertadas apenas as séries iniciais do Ensino

Fundamental. As séries finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio são ofertados

na sede do Município, distante cinco horas, viajando pelo Rio Capim, “o que é

determinante para que a grande maioria dos jovens desista de sua intenção de

prosseguir nos estudos. Das 83 crianças estudando, apenas 02 jovens conseguiram

continuar os estudos, estando em fase de conclusão do ensino médio” (GUSMÃO,

2011, p. 3).

Esse dado que a pesquisadora traz sobre os quilombolas no Pará ilustra um

fenômeno porque passa a maioria dos afrodescendentes. Pesquisa realizada por Silva

(1999), no final da década de 1990, já indicava algumas dificuldades de acesso e

permanência dos afrodescendentes na escolarização básica. Para a autora,

os afrodescendentes ingressam mais tardiamente no sistema de ensino, em sua maioria não tem oportunidade de acesso à Educação Infantil e chegam à escola já no Ensino Fundamental. Com poucos anos de estudo são forçados a abandonar a escola. Pressionados pela

Page 54: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

53

necessidade de sobrevivência, de forma precoce compõem o mercado de trabalho, geralmente o informal (SILVA, 1999, p. 103).

Realizada a quantificação dos trabalhos e com vistas a conhecer e

compreender as pesquisas produzidas sobre o assunto, realizamos a tematização dos

dezessete trabalhos do GT-21 da base EPENN 2001-2011 apresentados abaixo:

Quadro 03 -Trabalhos EPENN-2001-2011 (GT 21)

Tematização Objetos da pesquisa Quantidade

Ancestralidade

Importância da oralidade(2011) /Linguagem dos mitos (2011) /Tradição e Desenvolvimento (2009) /Silenciamento dos mitos no livro didático

4 trabalhos

Currículo

Valorização da Cultura Negra(2011) /Diversidade Cultural(2009) /Contexto Histórico cultural (2009) Quilombos urbanos e economia solidária(2007)

4 trabalhos

Educação do Campo

Educação quilombola e inclusão (2009) /O papel da educação e das políticas (2011)

2 trabalhos

Educação

Formal

Formação de Leitores (2011) Saberes quilombolas(2011) /Contribuições para a afro-cultura (2009)

3 trabalhos

Identidade Negra

Processo de Formação (2011) /Construção de identidade(2003)

2 trabalhos

Sentidos da Educação

Significado da educação escolar (2001) /Trajetórias linguístico-raciais (2007)

2 trabalhos

TOTAL 17 trabalhos

Fonte: Delma Silva (2014).

Neste levantamento, foi possível organizarmos seis temas: ancestralidade,

currículo, educação do campo, educação formal, identidade negra, sentidos da

educação. De acordo com Bardin, “o tema é a unidade de significação que se liberta

naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de

guia à leitura” (BARDIN. 2011, p. 105). Verificamos que ganham centralidade no

conjunto dos trabalhos as pesquisas sobre ancestralidade e currículo, seguidas da

investigação sobre a educação formal, incluindo a Educação do Campo, e pesquisas

referentes à identidade negra e sentidos da educação.

Feita essa classificação temática e as recorrências dos trabalhos, fomos em

busca das pesquisas que trabalharam com análise de conteúdo e cujos objetivos

Page 55: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

54

estabelecessem relação com nosso objeto de pesquisa. Esses trabalhos são

resultado de pesquisas de mestrado concluídas em Programas de Pós-Graduação no

Pará e na Bahia, conforme é possível verificar a seguir.

Quadro 04 - Resultados de pesquisas com foco no currículo

TEMA Objetivos Resultados IES

Educação Formal

Verificar resultados de investigações que colaboram com a compreensão dos saberes quilombolas na direção dos estudos culturais.

Os saberes tradicionais sofreram alterações ao longo do tempo, entretanto em todos os períodos históricos contribuíram para o desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil.

UEPA UFPA

As atividades sociais e econômicas permeadas pela cultura representavam a luta constante pela identidade.

Currículo

Compreender a influência do currículo escolar no processo de formação identitária dos educandos, refletindo a relação identidade e auto-estima.

A escola revela desejo e preocupação para trabalhar com a história e cultura da comunidade, porém não consegue questionar etransgrediro currículo oficial

UNEB Existem algumas práticas pontuais na escola que estão colaborando no processo de identidade étnico-racial dos educandos e na positividade de sua auto-estima.

Fonte: Delma Silva (2014).

Destacamos no objeto de pesquisa que trata dos saberes quilombolas o

anúncio da indissociabilidade entre o econômico, o político e o cultural como

elementos constitutivos dos saberes e da identidade quilombola, que, embora os

saberes tradicionais tenham sofrido alteração ao longo do tempo, em todos os

períodos históricos contribuíram para o desenvolvimento brasileiro. Essa afirmativa

reconhece a dinâmica da cultura e mais do que isso, acolhe a influência do hibridismo

existente entre as culturas.

Os resultados das pesquisas anteriormente apresentadas sobre educação e

currículo nos chamam atenção ao campo de tensão apresentado. A captação dos

pesquisadores de que nesse contexto de tensões há rupturas sendo construídas nesta

teia, onde há influências mútuas nas relações de poder entre quem se tornaria

dominate em relação aos subalternizados, à medida em que explicitam as relações

de dominação também revelam as resistências e insurgências travadas.

Page 56: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

55

As pesquisas nos ajudam a compreender que a prática curricular que está

inscrita no chão da escola, não está dada, é um construído num cotidiano onde se

situam ações que indicam permanências e anúncio de mudança. Este processo vem

de um protagonismo dos sujeitos quilombolas em suas organizações locais e

nacionais em diálogo com o campo educacional e outros campos que, ao longo da

última década, provocaram no Estado Brasileiro o reconhecimento da pertinência de

políticas educacionais específicas para os quilombolas.

Frente ao contexto do EPENN, decidimos alargar o horizonte e identificar a

situação no âmbito nacional na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação

em Educação– ANPEd, mais especificamente no GT 12–Currículo – Criado desde a

origem da ANPEd. Neste GT estão as pesquisas sobre teorias, políticas e práticas

curriculares. Como afirmado anteriormente, não há nenhum trabalho produzido no

período. O GT 21–Educação e Relações Étnico-Raciais foi criado oficialmente no

ano de 2001, e concentra as pesquisas sobre educação e relações étnico-raciais.

Convergem para este GT trabalhos sobre Currículo, Movimentos Sociais, Filosofia e

História da Educação, que fazem recorte racial.

O quadro síntese a seguir revela que no período 2002-2012, no âmbito da

ANPEd, há uma regularidade de uma comunicação por ano no GT21, sendo exceção

o ano de 2011 com cinco trabalhos aceitos. Em 2012, são dois trabalhos, o dobro da

regularidade de aceite desde 2002. Em termos de escore numérico confirma-se o

crescimento de interesse em pesquisar sobre o assunto.

Surgiu no processo uma curiosidade epistêmica sobre o perfil dos

pesquisadores no que se refere ao pertencimento étnico-racial. Ao analisar a autoria

da produção dos trabalhos foi possível verificar que é significativa a produção de

sujeitos afrodescendentes nesse grupo.

Page 57: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

56

Quadro 05 - Quantitativo de trabalhos-GT 21 – 2002-2012 –ANPEd

Ano-Reunião Total de Trabalhos Com Objeto sobre Quilombo %

2012-35ª 22 02 9,09

2011-34ª 30 05 16,66

2010-33ª 13 01 7,69

2009-32ª 09 ------ ------

2007-31ª 06 01 9,09

2006-29ª 11 01 4,16

2005-28ª 24 01 11,11

2004-27ª 09 ---- -----

2003-26ª 09 ---- -----

2002-25ª 03 ---- -----

TOTAL 147 11 7,48

Fonte: Delma Silva (2012) com base no levantamento dos Encontros de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste EPENN– 2002-2012.

Uma análise, após concluir esse levantamento, refere-se ao protagonismo

negro nesse processo: o deslocamento do negro como ser-objeto de pesquisa no

século XIX até meados do século XX para o negro ser-sujeito produtor de

conhecimento, como sujeito epistêmico no século XXI. Ratts (2010, p. 1) nesse

contexto, afirma que um paulatino aparecimento político de negros, quilombolas e

indígenas no cenário nacional marca o debate público e os estudos acadêmicos desde

os anos 1970, e levou à adoção de políticas de Ações Afirmativas no século XXI. A

luta anti-racista travada pelos quilombos, pela Frente Negra no início das primeiras

décadas do século XX e por intelectuais negros conseguiu colocar na agenda do

Estado essas ações que, no limite, são ações de reparação.

A Associação Brasileira de Pesquisadores Negros-ABPN, fundada no CE-

UFPE, quando da realização do 1º Congresso de Pesquisadores Negros-COPENE,

no período de 22 a 25 de novembro de 2000 é

um momento de apresentação e mapeamento da produção científica realizada pelos intelectuais negros, discussões políticas, construções de estratégias acadêmicas e de diálogo sobre a temática racial com intelectuais africanos, afro-americanos e latino-americanos. (GOMES, 2010, p. 500).

Page 58: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

57

E assim, tomamos emprestado a pergunta e o esclarecimento de Gomes

(1997) sobre como os negros têm contribuído para o pensamento educacional

brasileiro. A autora elenca cinco contribuições tendo por referência o ativismo negro

dos movimentos sociais para o campo de novas ênfases em pesquisa e da teorização

e proposta de intervenção no sistema educacional.

A primeira contribuição posta pela pesquisadora refere-se à denúncia de que

a escola que temos reproduz o racismo presente na sociedade:

“Se concordamos que a nossa sociedade é marcada não somente pela exploração

capitalista, como também pelo sexismo e pelo racismo, a escola enquanto instituição

social não está isenta desta realidade.” (GOMES, 1997, p. 20). E prossegue:

“enquanto a escola brasileira omitir a resistência negra, realizar equívocos e distorções

históricas, veicular falsa imagem do negro como amorfo e indolente, estará

contribuindo para a reprodução do racismo.” (GOMES, 1997, p. 21).

Os negros brasileiros submetidos à escravização, resistiram e também foram

protagonistas pelos vários enfrentamentos ao regime escravagista. Os quilombos

constituem uma dessas resistências. A luta no movimento abolicionista é outra

referência do protagonismo negro, tendo num dos expoentes o Luiz da Gama, 2015,

133 anos após a sua morte, foi reconhecido pelo Estado Brasileiro com o advogado,

e não apenas rábula.

Para as pessoas que ainda têm dúvida sobre a capacidade de isenção do

negro que pesquisa sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana, levantando

a possibilidade de implicação no sentido de haver quebra de verticalidade na relação

sujeito-objeto, nos apoiamos em Munanga (1995) quando o mesmo afirma:

Essa relação sujeito-objeto é uma relação que não defendemos mais.Não há mais objeto; até o próprio pesquisado é sujeito do conhecimento, não é objeto. Em certo momento o negro era considerado objeto de estudo; mas a partir do momento em que ele mesmo se tornou pesquisador da sua própria realidade, isso, a meu ver, desbloqueia o conhecimento, pois ele, como vítima, pode sentir certas coisas de dentro que o pesquisador de fora não pode sentir; assim, ele tem uma contribuição a dar...Lembro-me que há algum tempo algumas pessoas diziam que o negro não podia estudar a sua própria realidade, porque ele tem um envolvimento emocional, não pode tomar distância, não lhe é possível desenvolver a objetividade. Mas hoje essa questão, pelo menos na minha área, não se discute mais; são questões ultrapassadas. A emoção e a emotividade são motivos de conhecimento, e não obstáculos (MUNANGA, 1996, p. 223).

Page 59: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

58

É deste lugar de mulher negra e pesquisadora, que movi minha curiosidade

epistêmica para as epistemologias que orientam as práticas curriculares de

professoras quilombolas. “E não poderia ser diferente. Quando começa um trabalho

de pesquisa, o pesquisador não pode deixar de lado os seus valores, as suas crenças

e os seus princípios.” (ANDRÉ, 2012, p. 61). Interrogava-me como essas professoras

levantaram suas vozes e conquistaram o acesso e a permanência na educação básica

em seu território. Como decidiram institucionalizar um currículo próprio, definir

conteúdos e processos antes mesmo de uma legislação que as autorizassem, de que

forma mantém uma vigilância do conquistado e mobilizam-se para consolidar as

conquistas e em formar a quarta geração de professores e professoras no território.

Na tessitura dos variados tempos históricos aqui apresentados, há um fio que

cose nossas experiências pessoal e profissional enquanto sujeitos coletivos de um

campo político que nos instiga a formular enquanto problema de pesquisa as

epistemologias que orientam e substanciam práticas curriculares em escola

situada no Sítio Paula, em Conceição das Crioulas-Sertão Central de

Pernambuco, que tem por objetivo geral compreender as epistemologias que

orientam as práticas curriculares de professoras quilombolas em escolas situadas no

território de Conceição das Crioulas, em especial a escola do Sítio Paula, escola do

estudo de caso. Enquanto objetivos específicos: a) analisar em que medida a

formação inicial e continuadados professores substanciam a sua prática curricular; b)

compreender as epistemologias que fundamentam e substanciam as práticas das

professoras; c) compreender a aplicação dos princípios da História da África, da

Educação Quilombola e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Escolar Quilombola postos em prática; d) Compreender a relação escola-professor-

aluno-família-comunidade à luz das africanidades e do referencial legal.

Nossa hipótese é que as africanidades estão presentes nas práticas

curriculades das professoras da escola campo de pesquisa, através do cultivo da

prática da memória, fortemente presente na tradição oral da História da África, na

consciência histórica da tradição resignificada, de um saber fazer transmitido de

geração à geração, a essa tessitura no tempo e espaço as africanidades chamarão

de experiência afro-diaspórica, e o pensamento decolonial latino americano chamará

de diferença colonial. Há sinais de fraturas na obediência das epistemologias

hegemônicas, ou seja, há sinais de desobediência epistêmica nas práticas de

Page 60: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

59

professoras construídas no chão da escola como resultado da experiência enquanto

forma de viver e fazer a escola com a cara dos sujeitos que a comunidade tem,

afirmando-se Ser-Tão quilombola no nordeste brasileiro.

Page 61: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

60

“A cultura africana é um sofisticado complexo de fatores. Não poderia reduzir-

se à soma numérica desses fatores, pois eles não são meros produtores de

mercadoria que se alinha e se conta.” (KI-ZERBO, 2011, p. 399).

Page 62: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

61

3 AFRICANIDADES BRASILEIRAS E EDUCAÇÃO: UM TERRITÓRIO

DECOLONIAL POSSÍVEL

Neste capítulo, discorreremos sobre o referencial teórico que consideramos

central na nossa pesquisa: africanidades brasileiras, construídas na Diáspora

Africana. Tomamos por referência o diálogo com o pensamento afrocêntrico de

Assante (2009, p. 93), onde referenciais epistêmicos são pensamentos, práticas e

perspectivas construídas pelos afrodescendentes, assumindo o lugar de sujeitos e

agentes de fenômenos e atuando sobre a sua própria imagem cultural e de acordo

com os seus próprios interesses humanos.

O pensamento afrocêntrico tem seu marco de referências na década de 1980,

analisou a violência histórica instituída pela supremacia branca enquanto práticas e

relações estabelecidas no campo sócio-econômico-político e cultural, e seus reflexos

no campo da produção de conhecimento. Na perspectiva do pensamento decolonial,

os autores farão referência ao sistema mundo moderno colonial, onde destacam que

falamos a partir de um lugar situado nas estruturas de poder. A crítica de Assante no

campo da violência vai destacar o uso da violência como forma de subordinação e no

extremo de extermínio que produziu: escravização por séculos, extermínio de povos

indígenas, e morte e aprisionamento durante longos processos de colonização.

Na perspectiva afrocêntrica, todo conhecimento é situado e deve ser

emancipador. Essa perspectiva não implica numa substituição do eurocentrismo pelo

afrocentrismo, no sentido de substituição pela hegemonia, mas parte do lugar do

sujeito e de suas capacidades ontológicas, relações como produção dos sujeitos

africanos e afro-brasileiros.

Compreenderemos que, numa perspectiva afrocêntrica, não há hierarquias de

saber mais ou saber menos. O conhecimento como emancipador está

georeferenciado e dialoga a partir do lugar cultural, sem subordinar as culturas.

Inspirado no pensamento afrocêntrico, Nascimento (2009, p. 205) contribuiu no

pensamento afro-brasileiro com o conceito de quilombismo. Este autor, referência o

quilombismo como “reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão

existencial.” Nesta direção, a dimensão do território tem significado para além do

espaço físico, o território é identidade, ascendência e projeção de futuro.

Na perspectiva de Nascimento (2009), a educação é um direito e deve ser

universalizada e gratuita. Ele já anunciava a importância de se ministrar no currículo

Page 63: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

62

escolar a história e cultura afro-brasileira e africana e almejava, em 1980, “criar uma

Universidade Afro-Brasileira” o que é concretizado com a criação da Universidade da

Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira-UNILAB, em 2010.

Para a leitura das práticas educacionais fundamentadas nos princípios da

educação escolar quilombola e das Diretrizes curriculares, nos referenciaremos

também na Pedagogia Griô, que, centrada na tradição oral da ancestralidade, traz

para a escola os anciãos e as lideranças mais antigas, que são a memória histórica

da experiência da comunidade pesquisada.

Este capítulo, portanto, põe em diálogo o pensamento afrocêntrico, as

africanidades brasileiras e o pensamento decolonial latino americano. Uma tessitura

cujo eixo move-se na triangulação ancestralidade, memória e experiência como

estruturantes para uma educação escolar quilombola.

3.1 Africanidades brasileiras, quilombismo e pensamento decolonial: uma

experiência histórico-cultural

Iniciamos este capítulo, situando o lócus de anunciação que o trabalho se

referência. Para Santos (1995), este posicionamento assenta-se em três

orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do

Sul e, na perspectiva de Freire, sulear-se. Situar-se a partir do Sul global implica em

uma insurgência epistêmico-cultural. Esse posicionamento situado, indica que

partimos do reconhecimento da experiência histórica dos quilombos, enquanto uma

ressignificação Afro-diaspórica no Brasil, vivificada em africanidades brasileira, aqui

referidas como

Raízes da cultura brasileira que tem origem africana. Refere-se ao modo de ser, de viver, de organizar suas lutas. As africanidades brasileiras vem sendo elaboradas há quase cinco séculos na medida em que os africanos e seus descendentes ao participar da construção da nação brasileira vão deixando nos outros grupos étnicos que convivem suas influências e, ao mesmo tempo recebem e incorporam destes (SILVA, 2005, p. 156).

Os quilombolas conquistaram a condição de sujeito epistêmico, historicamente

situados e compreendemos que “toda investigação científica é contextualmente

localizada e subjetivamente produzida.” (GOMES, 2010, p. 493). Portanto, partir

Page 64: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

63

das africanidades, implica no reconhecimento da assunção dos quilombolas como

sujeitos epistêmicos a partir do lócus de enunciação do Nordeste do Brasil, onde os

sujeitos de nossa pesquisa são as professoras negras quilombolas e a gestora de

uma escola situada numa comunidade Quilombola do Sertão de Pernambuco, que

exercem no seu cotidiano e na experiência social de ser quilombola a condição

epistêmica na relação de ensino-aprendizagem e na relação de convivência na

comunidade no compartilhamento dos saberes. Esta presença histórica de ser e estar

no mundo os quilombos no Brasil e nas Américas são referências de que a

experiência social produz e reproduz conhecimento, e ao fazê-lo, pressupõe uma ou várias epistemologias. Epistemologia é toda a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível (SANTOS; MENESES, 2010, p. 15).

A experiência quilombola brasileira, iniciada no século XVI, frente ao regime

escravagista, revela uma elevada capacidade de construir estratégias de existência.

E, neste sentido, os quilombolas expressaram, no decorrer de mais de três séculos, a

capacidade de adaptação de forma insurgente. E o que viria a ser essa capacidade?

Uma delas é a capacidade de manter viva a memória aqui compreendida como

uma atualização do passado ou a presentificação do passado e registro do presente para que permaneça como lembrança. Mas não é um simples lembrar ou reconrdar, é a relação com o tempo e no tempo, com aquilo que está instável, ausente e distante, isto é, o passado. A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir espera-lo e compreendê-lo) (CHAUÍ, 1995, p. 128).

A memória tem dimensão individual e, sendo individual, reflete uma referência

coletiva, não há coletivo sem indivíduo. Para Zumthor (1993, p. 140), a memória

envolve “toda a existência, penetra o vivido e mantém o presente na continuidade dos

discursos humanos.” Assim, na comunidade quilombola campo de pesquisa há um

exercício da memória para além da subjetividade, uma vez que mulheres e homens

exercitam a memória social ou histórica, visto haver uma preocupação com o registro da história do surgimentos da comunidade, das histórias de cativeiro, com a recolha de artefatos que comprovem a ancestralidade quilombola, com o reavivamento de práticas culturais

Page 65: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

64

vividas pelos antepassados, pois como tradição, continua sendo transmitida de geração a geração (MAIA, 2012, p. 20).

A história das seis negras livres que chegaram no território que veio a ser

nominado Conceição das Crioulas é uma referência dessa memória social e histórica,

bem como o artesanato, os utilitários de argila, a dança do trancilim, a banda de

pífano. São as identidades afirmando-se. “A memória é uma forma de percepção

interna chamada introspecção, cujo objeto é interior ao sujeito do conhecimento: as

coisas passadas lembradas, o próprio passado do sujeito e o passado relatado ou

registrado por outros em narrativas orais ou escritas.” (CHAUÍ, 1995, p. 126).

Os quilombos nessa perspectiva são experiências coletivas onde a memória

social foi ressignificada desde África ao Brasil. Simultaneamente às insurgências

quilombolas ocorreram várias outras frente ao sistema político e econômico que, no

século XIX, se intensificaram, a exemplo da Revolta dos Alfaiates (Bahia, 1789-1799),

Cabanagem (Pará, 1835-1840), Sabinada (Bahia, 1837-1799), Revolta da Balaiada

(Maranhão, 1835-1841), “por reunir as massas oprimidas (pobres, negros, índios), a

Balaiada, tinha nos quilombos apoio ostensivo até o fim do combate, com destaque

para o Negro Cosme, uma importante figura nordestina da luta contra a escravidão”

(MAIA, 2012, p. 24).

No Brasil e nas Américas, quilombo é uma reinvenção da experiência africana

na diáspora. A conceituação do que seja quilombo, ao longo do tempo vai sendo

ressignificada. Na perspectiva decolonial, é processo de decolonização em territórios

de fronteira: já não são os mesmos fundados em África, são outras Áfricas

ressignificadas no Brasil.

Os estudos realizados por Munanga (1996) e Munanga e Gomes (2006)

indicam que quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de línguas

bantu (kilombo, aportuguesado: quilombo), falada pelo povo ovimbundo, se refere a

um tipo de instituição sociopolítica militar conhecida na África Central, mais

especificamente na área formada pela atual República Democrática do Congo (antigo

Zaire) e Angola. Os quilombos constituem-se em um agrupamento militar composto

pelos jaga ou imbangala (de Angola) e os lunda (do Zaire) no século XVII. Em termos

semânticos, a palavra quilombo

tem a conotação de uma associação de homens, abertas a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem, na qual os membros eram

Page 66: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

65

submetidos a dramáticos rituais de iniciação que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e os integravam com o co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis às armas de inimigos. O quilombo amadurecido é uma instituição transcultural que recebeu ontribuições de diversas culturas: lunda, imbangala, mbundo, kongo, wovimbundo etc. (MUNANGA, 1996, p. 59).

Em documento da Fundação Cultural Palmares (2000) sobre Quilombos no

Brasil há indicação de que, na historiografia brasileira, a primeira referência de

aquilombamento no país remonta ao século XVI. Esse registro foi realizado em 1552

por um missionário da Companhia de Jesus, o Pe. Pero Rodrigues. De acordo com

Alves Filho (1988), este religioso externava viva preocupação quanto à repressão

política do levante de africanos bantus na província de Pernambuco. É este

documento também que faz a primeira referência da formação do Quilombo dos

Palmares.

Em termos de produção de conhecimento em referências documentais,

Munanga (2000), em Cem anos de Bibliografia Sobre o Negro no Brasil, classificou

202 trabalhos no item sobre História, e no subitem Quilombo e Movimento Negro,

foram identificados 109 documentos, entre teses, dissertações, projetos e outros

documentos. Esses 109 documentos correspondem a 54,22% do total identificado.

Page 67: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

66

Tabela 02 - 100 anos de bibliografia sobre o negro no Brasil e a produção sobre Quilombola

Destaques de Trabalhos em Relação à Década

Ano⁄Década Quantidade Ano Quantitativo

Quilombola

%

1884 1 -------- ------

1885 1 1 100

1900-1909 3 1 30

1910-1919 ---- ------- ------

Década 1920 1 1

Década 1930 6 3

Década 1940 4 4 100

Década 1950 4 4 100

Década 1960 2 2 100

Década 1970 24 1978 e 1979 13 54

Década 1980 64 1987 e 1988 27 42

Década 1990 1995 20

91 1996 19 57

1997 13 100

Década 2000 1

TOTAL 202 109 54% Fonte: Delma Silva (2013) a partir de classificação em MUNANGA (2000) 100 anos de Bibliografia Sobre o Negro no Brasil, p. 454.

Na organização documental realizada, é possível verificar que a concentração

dos trabalhos na década de 80 se dá no ano que antecede o centenário da abolição

e, no próprio ano do centenário, verifica-se que a produção de conhecimento sobre a

temática negra está articulada com o contexto histórico no que se refere à memória e

história ancestral negra no Brasil.

Na década seguinte, 1990, a concentração se dá em 1995, data em que houve

intensa mobilização nacional pelo contexto dos 300 anos da morte de Zumbi dos

Palmares, e no pós marco referencial também, com semelhante número de produção.

A partir daí arrefece, levando-nos a confirmar que o momento conjuntural histórico

certamente influencia a curiosidade epistêmica.

Page 68: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

67

Os quilombos estão presentes nos territórios onde houve escravização dos

povos africanos e seus descendentes. Nas Américas possuem nomes diferentes. Em

países de colonização espanhola são chamados de cimarrónes; em Cuba e Colômbia

são chamados de palenques; na Venezuela, de cumbes, e marrons, na Jamaica, nas

Guianas e nos Estados Unidos. Nas Américas, a diáspora africana é um fator histórico

determinante para a constituição dos quilombos, e é possível verificar que o Brasil foi

o país que mais recebeu africanos para fins de escravização. Para ilustrar esse dado,

apresentamos a tabela que visibiliza a entrada de africanos nas Américas no período

de 1502 a 1870.

Tabela 03 - Número de africanos transportados para as Américas

País Nº % País Nº %

Barbados 364.000 3,9 Haiti 864.0 00 9,2

Brasil 3.532.315 37,6 Jamaica 748.000 7,9

Colômbia 200.000 2,1 Martinica 365.000 3,9

Cuba 702.000 7,5 México 200.000 2,1

EUA 596.000 6,3 Peru 95.000 1,2

Granada 67.000 0,7 Venezuela 121.000 1.3

Guadalupe 290.000 3,1 Destino

Desconhecido

741.000

7,9

Guianas 500.000 5,3

TOTAL GERAL Número de embarcados %

9.385.315 100,0

Fonte: (CHIAVENATO, 1987, p. 239).

Pela tabela, vê-se que o Brasil foi o país que mais recebeu africano para fins

de escravização, cerca de 40% do total. Embora o Brasil tenha recebido diversas

etnias do território africano, de Angola e do Congo foram traficados o maior número

de africanos para o país. O sistema escravagista existiu por mais de três séculos e

meio e o país foi o último a abolí-lo, permanecendo com práticas de trabalho escravo

atravessando o século XXI, o que constitui uma herança conflituosa socioeconômica,

política e cultural. No que se refere aos quilombos o conflito se dá à associação que

Page 69: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

68

se faz do quilombola como “descendentes de escravos” não fazendo referência às

pluralidades sócio-culturais existentes em África.

Numa tentativa de fazer avançar na troca continental sobre a herança comum

de ser quilombola, o governo Brasileiro lançou, em 2012, o Projeto Quilombo das

Américas, que propunha um levantamento sobre a situação de quilombolas no Brasil,

Equador e Panamá. A experiência revelou que a territorialidade é condição para a

constituição da identidade. Lugar de compartilhamento da terra e seus frutos: roça,

horta. Verificou-se também nesse projeto questões comuns aos três países: escassez

e contaminação das águas e escassez de peixe com a pesca predatória no Panamá,

além da situação de violência física e psicológica vivenciada por mulheres.

A sociedade brasileira, no que se refere a quilombo, pouco conhece dessa

história que também lhe toca, mas que ora é ocultada, silenciada ou posta

exclusivamente no passado. Uma das estratégias de sobrevivência dos quilombos foi

a interiorização, viver em territórios afastados, muitas vezes encravados nas serras,

de modo a sobreviver e tentar assegurar a alteridade, continuidade de sua existência,

pondo em prática os saberes relacionados à terra, à vida, à sua relação com a

experiência da ancestralidade e com o sagrado, sua cultura.

Assim, afirmamos a experiência dos quilombos como expressão de

africanidades brasileira e estas por sua vez “referem-se às raízes da cultura brasileira

que tem origem africana” (SILVA, 2003, p. 26). A constituição dos quilombos é

expressão dessa referência, que é sócio-política, econômica e cultural. Portanto,

quilombo como experiência das africanidades no Brasil é ao mesmo tempo uma

tradução e expressão de resistência.

Constitui-se também em uma oportunidade da escola brasileira repensar os

seus referenciais numa perspectiva abrangente, inclusiva e democrática.

Nos sistemas de pensamento africanos, conforme ensina Mudimbe, as

experiências concretas não são separadas da ordem dos conceitos e discursos.

Como fazer entender que, entre os negros, nós aprendemos olhando o mais atentamente possível quem realiza trabalho em que é muito experiente e que, enquanto observamos, nossa ajuda é solicitada para a realização de alguma tarefa? Como convencer, explicar, ajudar a compreender que tal jeito de ensinar e de aprender pode ser valioso não apenas para os afrodescendentes? (SILVA, 2011, p. 145).

Page 70: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

69

Isto revela a dinamicidade histórica do fenômeno, que vai se constituindo num

território onde são vivenciadas ao menos três tipos de resistência: a cultural, a

epistemológica e a política. Tipos esses que afirmam o ser, a relação conhecer∕saber

e a organização política que está na esfera do poder. Esse tripé tem sua estrutura na

ancestralidade nas dimensões, material (o que se faz e produz culturalmente) e

imaterial, aquilo a que se dá valor e sentido, onde está resguardada e ressignificada

a memória.

Na histórica trajetória dos quilombos para afirmar e dar visibilidade à sua

existência, é indispensável a inclusão dessa história no currículo da educação

nacional, em especial a escola quilombola, uma vez que estas escolas estão em

território quilombola e a prática educativa é desenvolvida prioritariamente por

professores quilombolas e a relação ensino-aprendizagem envolve não só

professores, mas toda a comunidade. Neste sentido,

para que os conhecimentos, saberes e fazeres da comunidade quilombola possam dialogar com a escola, é preciso que a escola se reconheça quilombola e entenda que a comunidade aprende e ensina o sentido de ser quilombola no território e fora dele, constroem conhecimento em torno da resistência das práticas cotidianas afro-brasileiras numa luta social e política [...] redescobrindo a cada dia, a importância de sua história e o significado de ser quilombola no passado e na atualidade (LARCHERT, 2013, p. 14).

Essa afirmativa nos remete a Santos (2010) quando o autor, ao abordar sobre

as epistemologias do sul, indica que essas epistemologias procuram incluir o máximo

das experiências de conhecimentos do mundo. Para este autor, as epistemologias do

Sul são o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão, por

parte do conhecimento hegemônico, da pluralidade epistemológica existente no

mundo.

Essa perspectiva reconhece que há epistemologias constituídas a partir da

experiência, onde esta não é algo que se opõe à natureza. Experiência é uma fase da

natureza, é uma forma de intervenção pela qual os dois elementos que nela entram –

situação e agente – são modificados (DEWEY, 2010, p. 34).

É nesta perspectiva que compreendemos as resistências quilombolas, como

uma expressão das africanidades brasileiras no sentido conceitualmente posto pela

Ecologia de saberes, que consiste na promoção de diálogos entre o saber científico ou

humanístico, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais,

Page 71: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

70

urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem

africana, oriental etc.) que circulam na sociedade (SANTOS, 2004, p. 76).

Esse entendimento, afirma ainda o autor, inclui as tensões, os contraditórios,

os avanços e recuos inerentes a todo processo histórico-político cultural e societário.

O autor ainda alerta que, num histórico processo de hegemonia das Epistemologias

do Norte Global, a ecologia de saberes apresenta-se como um posicionamento

epistêmico inovador contra-hegemônico.

No Brasil, no século XVIII, mais precisamente em 1740, o Conselho

Ultramarino, órgão colonial responsável pelo controle central patrimonial, definia

Quilombo como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte

despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões neles”

(BRASIL, 2000, p. 11).

Por essa definição, leva-se a uma compreensão de quilombo como algo que

só existiu no século XVIII e só constituído por negros fugidos. O que não procede

historicamente, uma vez que referente às principais estruturas sócio-históricas-

territoriais de formação e origem das terras ocupadas pelos quilombolas,

pesquisadores sobre o assunto destacam para as variadas tipificações existentes de

quilombos, desde o século XVI aos dias de hoje, havendo

ao menos sete contextos distintos: 1. Ocupação de fazendas falidas e/ou abandonadas; 2. Compra de propriedades por escravos alforriados; 3. Doações de terras para ex-escravos por proprietários; 4. Pagamento por prestações de serviço sem guerras oficiais; 5.Terrenos de ordem religiosa deixados para ex- escravos; 6. Ocupações de terra sob o controle da Marinha do Brasil; 7. Extensões de terras da União não devidamente cadastradas (ANJOS, 2006, p. 351).

No caso do quilombo de Conceição das Crioulas, o mito fundante da

comunidade narrado aqui de forma breve é a história das seis negras livres, e não

alforriadas ou fugidas, que chegaram ao território e começaram fortemente a cultivar

o algodão, colher, fiar e vender no município de Flores. Economizaram e conseguiram

comprar 3 léguas em quadra das terras que arrendavam. A história conta que em

“1802 as negras receberam a escritura de posse de suas terras, concretizadas em um

cartório da localidade referenciada como Torre, com dezesseis selos, feita por José

Delgado.” (CCLF, 2008, p. 21).

Page 72: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

71

No Brasil ainda não existe uma única fonte para informar o número de

comunidades quilombolas em todo o território nacional. Os primeiros levantamentos

sistematizados foram realizados pelo movimento negro, organizações não

governamentais e por pesquisadores.

Sobre o número de quilombolas, onde estão e como vivem, não existe um

censo sobre essas comunidades. Estima-se que existam cerca de três mil

comunidades; este número é da Coordenação Nacional de Comunidades Negras

Rurais Quilombolas-CONAQ, organização que congrega nacionalmente as

representações de Associações Estaduais de quilombos no Brasil.

Um dos levantamentos quantitativo e qualitativo dos quilombos no Brasil foi

feito a partir de iniciativas de pesquisadores negros com atuação nas universidades,

nos governos e nos movimentos sociais. O professor Anjos (2006) da Universidade

de Brasília afirmou, no ano de 1997:

iniciamos uma coleta e sistematização de dados referentes ao nome da comunidade quilombola e seu município de localização, junto a três segmentos básicos: universidades públicas do país, organismos de governos estaduais e da esfera federal, e as entidades negras representativas, principalmente o MNU. Desse processo de trabalho, fechado em 1999, resultou o primeiro cadastro dos registros municipais dos territórios quilombolas do Brasil. [...] Nesse primeiro mapeamento foram sistematizados 840 registros municipais [...] Em 2003 esses dados foram atualizados a partir das seguintes referências: informações do conjunto das entidades negras representativas; dados oriundos de organismos oficiais, principalmente do INCRA (MDA) e a Fundação Cultural Palmares (MINc); e, finalmente, pesquisas realizadas pelas Redes dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) das Universidades do país. Nessa segunda configuração espacial, o mapeamento tem registrado 2.284 (duas mil, duzentas e oitenta e quatro) comunidades quilombolas informadas (ANJOS, 2006, p. 348-349).

Pelo exposto anteriormente, é notório que a iniciativa do levantamento e da

atualização existente hoje sobre os territórios quilombolas é mérito de sujeitos

vinculados historicamente às organizações negras, seja pelo perfil acadêmico, seja

pelo perfil de ativista social. Em muitos casos, esses perfis estão articulados e não

dissociados. Nesse processo, as organizações do movimento negro são vozes

privilegiadas, na indicação e no reconhecimento das comunidades.

Em Pernambuco, um dos marcos para que a Articulação de Comunidades

Quilombolas iniciasse seu processo de organização com a finalidade de identificação

Page 73: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

72

de comunidades no estado teve sua mobilização iniciada em Brasília, em 1995, na

Marcha Zumbi 300 anos.

Neste ano, as comunidades deflagram processos para as articulações

estaduais e a realização de encontros nessas esferas. O primeiro encontro em

Pernambuco foi realizado foi em 1998, em Garanhuns. Neste encontro, as

comunidades basicamente denunciaram a situação precaríssima em que viviam e

formularam seu primeiro documento denominado: Carta de Garanhuns.

O II Encontro Estadual de Comunidades Quilombolas de Pernambuco foi

sediado em Salgueiro no ano de 2002. Para este encontro, os quilombolas, em sua

articulação estadual, planejaram a elaboração de um diagnóstico sobre a sua

realidade e iniciaram um processo reflexivo dialógico sobre quais as informações a

serem levantadas.

Participaram da construção do instrumento representantes das comunidades

indicadas por elas para compor e assumir responsabilidades nesse processo. A

proposta inicial foi elaborada por uma educadora quilombola de Conceição das

Crioulas e distribuída entre as lideranças de outras comunidades para que elas

interagissem e complementassem, ouvindo a comunidade no que julgassem

necessário, a partir de suas realidades.

A devolutiva desse instrumento foi significativa, considerando o número de

comunidades articuladas neste período, e o processamento dos dados ficou sob a

nossa responsabilidade, enquanto técnica integrante da equipe do CCLF.

Neste encontro de 2002, apresentamos os resultados encontrados numas das

mesas de debate, em que estavam presentes representantes do Poder Executivo nas

esferas estadual e federal, pois o objetivo era, a partir das informações produzidas e

sistematizadas, ouvir especialistas sobre o assunto e levar o poder público a se

comprometer em reunir esforços e recursos para implementar políticas públicas nas

áreas apresentadas pelos quilombolas. Assim, foram listados os seguintes itens: i)

Educação - construção de escolas nos territórios e uma educação que respeite o

modo de ser quilombola; ii) Saúde - tratar os elevados índices de parasitoses,

anemias, cardiopatias e miomatoses; iii) Infraestrutura – elevar o baixo índice de

saneamento nas comunidades, ausência de banheiros, rodagem, as estradas em

péssimas condições. Nesse encontro em 2002, foi elaborada a Carta de Salgueiro,

que atualizou a Carta de Garanhuns de 1998 e foram articuladas e participaram cerca

de 100 comunidades neste II Encontro.

Page 74: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

73

No caso de Pernambuco, em 1995, o CCLF identificou 15 comunidades no

Agreste e no Sertão do Estado. Neste período, as únicas comunidades reconhecidas

no Estado pelo Governo Federal eram Conceição das Crioulas, em Salgueiro, e

Castainho, em Garanhuns. Em 2012, a SECADI/MEC, com base no censo escolar,

informou existir em Pernambuco mais de 93 comunidades. Em 2016, no Plano

Pernambuco Quilombola-PPQ cujos objetivos são “consolidar a política do Governo

do Estado de Pernambuco, no sentido de reduzir as desigualdades raciais, com

ênfase na população quilombola, nos âmbitos rural e urbano, por meio da elaboração

de propostas e da adoção de ações associadas às políticas universais, tornando-as

visíveis para o Triênio (2016/2019)” informou existir no Estado 150 comunidades em

territórios rurais e urbanos, dentre essas apenas Conceição das Crioulas e Castainho

estão tituladas e com seus processos de regularização fundiária avançado

(GOVERNO DE PERNAMBUCO, 2016, p. 8). Registre-se que a titulação dessas duas

comunidades ocorreu no ano de 2000.

Um dado revelado pelos estudos produzidos sobre quilombos é que existem

comunidades em quase todo o território nacional, porém de acordo com o INEP (2012)

ainda não foram reveladas a existência de quilombos em Brasília, no Acre e em

Roraima, os quilombos portanto, percorreram quatro séculos de resistência física,

mental, cosmológica, política e epistêmica, para tornar-se visível e reconhecido pela

sociedade e Estado Brasileiro. (SILVA, 2014, p. 108).

A formação de quilombos, desde a origem, tem um sentido de resistência, de

insurgência à subalternização. A formação dos Quilombos no Brasil tem uma

dimensão de emancipação no sentido apresentado por Joyce King, em 22 de outubro,

na 35ª Reunião Anual da ANPEd em Porto de Galinhas em Pernambuco, ao falar

sobre Pedagogia Emancipatória da População Negra. Os quilombos como uma

proposta emancipatória se fundam, provocam uma desestabilização no sistema, pois

nos embates cotidianos das organizações de resistência vão sendo construídas formas de relacionamento por meio de um modo específico de conhecer e por meio da regulação e da emancipação do sujeito político cultural quilombola. Isso se constitui no campo das tensões entre mudança e permanência, entre mobilidade e imobilidade, entre diferença e identidade, entre passado e futuro, entre memória e esquecimento e entre poder e resistência (LARCHERT, 2013, p. 3).

Page 75: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

74

Nessa perspectiva, um princípio central da emancipação, segundo Fanon

(2008), Césaire (2010), King (2011), Freire (1992), é a consciência crítica do sujeito

sobre o contexto em que vive. Nesse processo desconfia e desmonta os mitos que

naturalizam a exploração e o assujeitamento do ser, retirando sua condição de

existente e fazendo-o acreditar na sua não existência considerando-se coisa

nenhuma, considerando-se não ser.

Articulados à consciência crítica estão a identidade cultural posta em Césaire

(2010); Silva e Gonçalves (2003), a condição de contestar posta por King (2011),

Freire (1992, 2011) e a autodeterminação em King (2011) e Morin (2007). Na histórica

construção dos quilombos no Brasil, esses elementos estão presentes no sentido de

conquista de direitos. A seguir, abordaremos a questão das políticas públicas para

quilombolas no Estado Democrático de Direito.

3.2 Políticas Públicas e Cidadania no Brasil: entre afirmações, tensões e

desafios para o exercício dos direitos quilombolas

A Constituição de 1988 é referência de um processo participativo, onde a

sociedade mobilizada incidiu sobre diversas políticas: educacionais, saúde, idoso,

indígena, quilombola, formação profissional, assistência social, dentre outras.

Reconquistado o Estado Democrático de Direito, em 1988, o Estado e a

sociedade iniciavam um desafio de por em prática o que estava nascendo enquanto

perspectiva de uma nova relação entre sociedade e Estado. Os espaços de controle

social através da instalação dos conselhos setoriais anunciavam-se como

instrumentos que ressignificariam a forma de planejamento, monitoramento e

avaliação das Políticas Públicas.

De acordo com Nogueira e Cavalcante (2009), políticas públicas são diretrizes,

princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as

relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do

Estado. São, nesse caso, políticas explicitadas, sistematizadas ou formuladas em

documentos (leis, programas, linhas de financiamentos) que orientam ações que

normalmente envolvem aplicações de recursos públicos. Em resumo: políticas

públicas podem ser concebidas como o Estado em ação. Elaborar uma política pública

implica em definir quem decide o quê, quando, com que conseqüências e para quem.

São definições relacionadas com a natureza do regime político em que se vive, com

Page 76: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

75

o grau de organização da sociedade civil e com a cultura política vigente. A

Constituição Federal de 1988, ao instituir os espaços de controle social, pôs em

diálogo gestores públicos e sociedade civil no que se refere às políticas públicas.

Nesse sentido, cabe distinguir as políticas públicas e políticas governamentais.

Para caracterizarmos políticas como “públicas”, é preciso considerar a quem se

destinam os resultados ou benefícios, e se o seu processo de elaboração é submetido

ao debate público. A concepção de política pública implica em participação. As

políticas governamentais nem sempre são públicas, embora sejam estatais.

É necessário esclarecer, ainda, que o Estado, por definição legal tem o dever

constitucional de assegurar direitos de acesso às políticas públicas. Essa

compreensão contribui com a elevação da consciência cidadã e a desconstrução das

políticas assistencialistas, caritativas, onde o estado ou os seus agentes agem para

com o cidadão como se este fosse sujeito de favor e não sujeito de direito.

Quadro 06 - Modalidades de políticas

Quanto à natureza ou grau de intervenção

Quanto à abrangência dos possíveis benefícios

Quanto aos impactos que podem causar aos beneficiários

Estrutural - buscam interferir em relações estruturais como renda, emprego, etc

Universais – para todas as pessoas

Distributivas - visam distribuir benefícios individuais; costumam ser instrumentalizadas pelo clientelismo;

Conjuntural ou emergencial - objetivam amainar uma situação temporária.

Segmentais - para um segmento da população, caracterizado por um fator determinado (idade, raça, etnia, condição física, gênero etc.)

Redistributivas - visam redistribuir recursos entre os grupos sociais: buscando promover equidade;

Fragmentadas - destinadas a grupos sociais dentro de cada segmento.

Regulatórias - visam definir regras e procedimentos que regulem comportamento dos atores para atender interesses gerais da sociedade; não visariam benefícios imediatos para qualquer grupo.

Fonte: Delma Silva (2014), tendo por referência Nogueira e Cavalcante (2009)

Page 77: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

76

O quadro apresentado ilustra a fase em que as políticas sociais estão no campo

da concepção dos direitos, ou seja, a partir das conquistas refletidas na Constituição

de 1988.

A trajetória histórica de cidadania no Brasil é tensa. Enquanto nação cujo

processo se desenvolveu a partir de uma relação de exploração colonial, o Brasil é

um país de profundas desigualdades e a desigualdade no exercício do direito constitui

a sua história política e social, que também se reflete no campo educacional, haja

vista a discussão na sociedade sobre o advento das ações afirmativas na educação.

Ao abordarmos sobre direito à educação, faz-se mister lembrar que o acesso das

camadas populares, indígenas e quilombolas à educação superior foi uma conquista

das duas primeiras décadas do século XXI, tendo iniciado nos governos Lula, em

2003, com uma mudança significativa na legislação educacional do país,

reconhecendo inclusive a histórica organização do movimento social negro pelo direito

humano à educação. Um dado relevante divulgado pelo ENAD (2015) informa que em

2015, 35% dos formandos eram os primeiros de suas famílias a ingressar no Ensino

Superior.

Em 2003, a Lei 9394/96-Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional-LDBEN

foi ampliada, tornando obrigatório no currículo a história e culturas afro-brasileira,

africana e indígenas. Esta ampliação da LDBEN com as Leis 10.639/03 e 11.645/08

completaram, em 2017, respectivamente 14 e 9 anos.

Até o século XX, não se pode afirmar que exista efetivamente cidadania no

Brasil para negros, indígenas, quilombolas, mulheres. No que se refere ao sufrágio,

por exemplo, o direito ao voto era exercido por homens, ricos, brancos e poderosos.

Podemos observar que, no que se refere ao direito à educação, o movimento

negro no Brasil tem uma forte atuação como agente no âmbito político para garantir a

efetivação e ampliação do direito à educação, historicamente negligenciado pelo

Estado.

Na Conferência Nacional de Educação de 2010 (CONAE, 2010), oito

deliberações específicas foram tomadas para a Educação Escolar Quilombola

conforme relata documento do Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2013,

p. 10):

Page 78: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

77

1. Garantir a elaboração de uma legislação específica para a educação quilombola com a participação do movimento negro quilombola, assegurando o direito à preservação de suas manifestações culturais e à sustentabilidade de seu território tradicional; 2. Assegurar que a alimentação e a infraestrutura escolar quilombola respeitem a cultura alimentar do povo, observando o cuidado com o meio ambiente e a geografia local; 3. Promover a educação específica e diferenciada (inicial e continuada) aos/às profissionais das escolas quilombolas, propiciando a elaboração de material didático-pedagógico contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo; 4. Garantir participação de representantes quilombolas na composição dos conselhos referentes à educação nos três entes federados; 5. Instituir um programa específico de licenciatura para quilombolas, para garantir a valorização e a preservação cultural dessas comunidades étnicas; 6. Garantir aos professores quilombolas a sua formação em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a sua própria escolarização; 7. Instituir o Plano Nacional de Educação Quilombola, visando a valorização plena da culturas das comunidades quilombolas, a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica; 8. Assegurar que a atividade docente nas escolas quilombolas seja exercida preferencialmente por professores/as oriundos/as das comunidades quilombolas.

Várias dessas deliberações estão sendo postas em prática em Conceição das

Crioulas e uma das primeiras conquistas foram as Diretrizes Curriculares para a

Educação Escolar Quilombola de 2012. A partir das Diretrizes, que confirmam todas

as deliberações da CONAE (2010), está sendo possível tomar de conta da escola e

construir no território a educação que se quer. Essa conquista na primeira década do

terceiro milênio contrasta profundamente com as primeiras décadas do século XX, no

que se refere aos direitos sociais no Brasil que foram pensados desde lá para a

população urbana que, na época, era minoria. Apresentaremos esse contexto no

sentido de visibilizar a tendência urbanocêntrica e a negligência do Estado à

população campesina.

No Brasil, as décadas de 1930-1940 são marcadas por elevados índices de

analfabetismo, principalmente no meio rural e atingindo homens e mulheres negras.

Neste período, a população brasileira está majoritariamente situada no campo,

entretanto o analfabetismo atinge distintamente a população a partir do recorte racial.

Page 79: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

78

Os analfabetos se encontram em todas as regiões brasileiras. No entanto, as taxas de analbabetismo no Brasil expressam as disparidades nas camadas mais pobres, nas áreas rurais, especialmente no Nordeste, entre idosos, e, sobretudo, entre negros (GRACINDO, 2011, p. 139).

A população rural sofreu, historicamente, omissão e/ou negligência do Estado.

Vejamos algumas conquistas no campo do direito ao trabalho e do direito político no

quadro a seguir, mas que não atingiram a população rural, deixando de incluir,

portanto, os quilombolas.

Quadro 07 - Conquista de direitos sociais Brasil (1930-1940)

ANO CONQUISTA

1932 Jornada diária de 8 horas de trabalho no comércio e na indústria

1933 Regulamentação do Direito de Férias

1933 Início da organização da Previdência com a criação de institutos por categorias

profissionais (marítimos, bancários, comerciários, etc)

1934 As mulheres conquistam o direito ao voto

1934 Determinou a criação de um Salário Mínimo (calculado como capaz de

satisfazer as necessidades básicas de uma família)

1940 O salário mínimo passa a ser efetivamente adotado

Fonte: Delma Silva (2017)

Numa análise sociológica do período, Santos (1979) criou o termo cidadania

regulada. O termo refere-se a identificação de que apenas tinham acesso aos direitos

sociais os trabalhadores urbanos, integrantes das categorias reconhecidas pelo

Estado.

O quadro apresentado é ilustrativo para situar que os direitos para quilombolas

no Brasil só entrarão na agenda efetivamente na Constituição de 1988, com o Art. 68

do ADCT.

A questão fundiária no Brasil foi uma agenda de significativa mobilização

nacional no contexto da elaboração da Constituição de 1988, e esta é a questão

central para a efetivação dos direitos quilombolas.

Desde a Constituição de 1988, o Estado Brasileiro dá passos no sentido de

implementar políticas públicas que assegurem os direitos dos quilombolas, isso num

movimento permeado de tensões, avanços e ameaças que trazemos, por exemplo,

as tentativas de derrubada do Decreto 4887/03 que regulamenta o procedimento para

Page 80: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

79

identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras

ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68

do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Situaremos aqui duas Políticas o Programa Brasil Quilombola no campo do

desenvolvimento e no campo da educação as Diretrizes Nacionais Curriculares

para a Educação Escolar Quilombola, homologada em 2012.

1. O Programa Brasil Quilombola–PBQ foi um dos primeiros programas

a serem lançados após a Constituição da SEPPIR, em 12 de março de 2004. A

primeira secretaria de Estado com a finalidade de propor políticas de promoção de

igualdade racial. O programa tinha por objetivo consolidar os marcos da política de

Estado para as áreas quilombolas. Houve um desdobramento do Programa por meio

do Decreto 6261/2007, em seu Art. 2º que instituiu a Agenda Social Quilombola. Esta

agenda foi estruturada em quatro ações (BRASIL, 2007, p. 01).

Ação 1. Acesso à Terra – Voltada para a execução e acompanhamento dos trâmites para a regularização fundiária das áreas de quilombo. O processo se inicia com a certificação das comunidades e se encerra na titulação, que é a base para a implementação de alternativas de desenvolvimento para a comunidade;

Ação 2. Infraestrutura e Qualidade de vida – Esta ação foca os mecanismos para destinação de obras de infraestrutura, tais como habitação, saneamento, vias de acesso, comunicação, eletrificação, bem como a construção de equipamentos sociais para o atendimento de saúde, educação e assistência social;

Ação 3. Inclusão produtiva e desenvolvimento local – Essa ação apoia o desenvolvimento das comunidades, respeitando as identidades culturais existentes e os recursos naturais presentes no território;

Ação 4. Cidadania – Estimula a participação ativa dos quilombolas, através de representação nos diversos espaços coletivos de controle e participação social, como os Conselhos e Fóruns locais e nacionais de políticas públicas.

Essas quatro ações são estruturadoras, iniciando pelo processo da

regularização fundiária que é condição primeira para a existência e alteridade das

comunidades, pois sem terra não há vida. Acrescente-se que a terra é constitutiva da

identidade quilombola no sentido da produção da existência material, cultural e

simbólica. Neste contexto, Conceição das Crioulas possui 18 mil ha. Em 2015, o

Governo Federal emitiu e entregou o título definitivo do território. Processo

Page 81: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

80

antecedido pela desintrusão do território e início da gestão do território pelas

comunidades, coordenado pela Associação Quilombola de Conceição das Crioulas.

A segunda ação diz respeito às condições de infra-estrutura que possibilitem

acesso à tecnologia, à assistência social, dentre outras. Neste ponto, destacamos

que Conceição conta com tecnologia que possibilita o funcionamento de internet e

celulares na comunidade. Em 2016, foi iniciada a obra de pavimentação de 25,8 Km,

uma rodovia que liga a BR, situada em Salgueiro, à Comunidade de Conceição das

Crioulas a Estrada de Conceição como atualmente é chamada, será denominada de

PE-460. A rodovia faz confluência com os municípios de Mirandiba, Carnaubeira da

Penha, Flores e Belém. Está inclusa no Plano Pernambuco Quilombola, lançado em

março de 2016 pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social, Criança e

Juventude, e conta com um investimento de R$ 21,5 milhões. A estrada estava na

agenda de luta da comunidade há mais de 15 anos.

As ações 3 e 4 estão refletidas nos espaços de conquista de direitos e de

controle social. É interessante que, nesta perspectiva, tem sido comum quilombolas

assumirem assentos em Conselhos Setoriais que atuam no campo do controle das

políticas públicas. Um campo que se desenvolveu nos últimos dez anos refere-se a

criação de grupos culturais que expressam as referências identitárias locais.

2. Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação Escolar

Quilombola (DOU, CNE, 2012, p. 26) – A proposição das Diretrizes só foi possível a

partir de uma leitura histórica e de condições jurídicas favoráveis no contexto

internacional e nacional. Portanto, essas diretrizes dialogam com todo o marco legal

brasileiro do campo de educação, cultura, desenvolvimento e direitos humanos.

Art.1º Ficam estabelecidas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, na forma desta Resolução. § 1ºA Educação Escolar Quilombola na Educação Básica: I-organiza precipuamente o ensino ministrado nas instituições educacionais fundamentando-se, informando-se e alimentando-se: a) da memória coletiva; b) das línguas reminiscentes; c) dos marcos civilizatórios; d) das práticas culturais; e) das tecnologias e formas de produção do trabalho; f) dos acervos e repertórios orais; g) dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo opaís; h) da territorialidade.

Page 82: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

81

A proposição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola na Educação Básica parte de uma leitura de contexto amplo, articula o

campo da educação com outros campos do conhecimento, como a história, a

sociologia, a geografia, a linguagem, a antropologia e a filosofia. Estabelece

atribuições aos entes federados União, Estados, Municípios e os sistemas de ensino

(DOU, CNE, 2012, p. 27), no sentido de garantir: a) apoio técnico-pedagógico aos

estudantes, professores e gestores em atuação nas escolas quilombolas; b) recursos

didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários que atendam às

especificidades das comunidades quilombolas; c) a construção de propostas de

Educação Escolar Quilombola contextualizadas.

No que se refere às garantias postas nas Diretrizes a Comunidade de

Conceição, através de parcerias com Ongs, Movimentos Sociais e Universidades

como a Universidade Federal de Pernambuco-UFPE, Universidade do Porto-UP,

Universidade do Vale do São Francisco-UNIVASF, Universidade de Pernambuco-

UPE, dentre outras, a Escola Campo de pesquisa tem podido manter a sua proposta

de formação continuada e tenta influenciar a formação inicial em diálogo com a

Faculdade que forma professores na região.

Conquistas dessas relações são as produções que pudemos verificar durante

a nossa permanência em campo. Produções didáticas em vídeos, livros, cartilhas e

também as dissertações e teses produzidas, que são ferramentas utilizadas para

difundir o conhecimento e contribuir com a fundamentação da prática. Parte dessa

produção vai para a sala de aula como a publicação Nosso Território: Conceição das

Crioulas utilizada didaticamente e a publicação Olhares Cruzados e Olhares Cruzados

na Diversidade, duas publicações que foram distribuídas nas escolas e na

comunidade pela AQCC, tendo sido viabilizadas pela SEPPIR, Ministério das

Relações Exteriores em parceria com diversos organismos, e patrocínio da

Embaixada do Brasil em países como Cabo Verde, Haiti, Moçambique, Bolívia. Essas

propostas contribuem para a troca, a relação intercultural e o alargamento da

experiência de ser quilombola em diálogo com outras culturas em alguns territórios e,

portanto, outras culturas existentes no mundo.

No que se refere a Educar para a Diversidade, em especial para a afirmação

de identidades, a educação brasileira vem dando passos significativos no sentido de

assumir a pluriversalidade existente na sociedade e que, portanto, precisa ser refletida

na escola, “há cerca de 15 anos, tem sido dada no Brasil, à multiculturalidade, que

Page 83: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

82

marca, indiscutivelmente, as sociedades contemporâneas.” (MOREIRA; CARVALHO,

2014, p. 45). Esse movimento traz desafios, desestabiliza o estabelecido, enfrenta

preconceitos, discriminações e coloca em debate referências curriculares inovadoras.

Frente a este contexto “fazem-se oportunos novos currículos na escola e na formação

de professors.” (MOREIRA; CARVALHO, 2014, p. 45).

Esse é um debate que considera o histórico de tensão existente pelo controle

de quem seleciona o conteúdo, quem define a carga horária a ser ministrada, que

conteúdos são considerados válidos.

Vemos nesse debate uma indicação de controle dos conteúdos curriculares, um giro

na perspectiva de retroagir ao processo em curso de ampliar o acolhimento à

pluriversalidade cultural existente no Brasil e vê-la contemplada nas relações educativas,

em especial nos espaços escolares. Esse processo de conquista tem como legado o marco

referencial legal, que apresenta em diversas diretrizes possibilidades de construir caminhos

seja na formação inicial ou continuada.

Há tensões no debate da política curricular e em 2016, um movimento conservador

no âmbito da política pública educacional chegou ao Ministério da Educação. Com um

ministro notadamente estranho ao campo educacional, um dos seus primeiros atos foi

subordinar ao MEC a regulamentação dos territórios quilombolas e extinguir a SECADI.

Essas duas medidas articuladas retroagiram em séculos os rumos que a educação escolar

quilombola vinha trilhando. A atitude do ministro reflete, em pleno século XXI, uma forma

de exercício de poder político que descarta a cidadania enquanto conquista. Reflete o

retorno ao moderno colonialismo, sem nenhum constrangimento, ou, na perspectiva

decolonial, é uma forma de exercer a colonialidade do poder.

Para o Pensamento Decolonial de vertente Latino-Americana, o colonialismo

não foi debelado com a emancipação das colônias. Relacionadas às relações de

poder, foram geradas condições endógenas ao processo colonialista, denominado de

colonialidade. Na perspectiva do filósofo portoriquenho Maldonado-Torres (2007), a

colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do

colonialismo moderno, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a

autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado

capitalista mundial e da ideia de raça. Considerando raça como construção mental em

Fanon (2008) Cèsaire (2010) e Quijano (2005), onde está relacionada com a

dominação colonial do poder mundial, consideramos relevante, no caso brasileiro,

Page 84: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

83

apresentar a leitura de Gomes sobre a ressignificação da noção de raça a partir dos

intelectuais negros, onde a autora afirma:

Os intelectuais negros, ao elegerem a ressignificação da raça, como categoria útil de análise para entender as relações raciais, colocam-se no terreno político e epistemológico de “desconstrução mental”, ressignificação e descolonização de conceitos e categorias. Ao tematizarem raça como construção social, cultural, histórica e política, ao discutirem que a incidência do racismo sobre os negros (pretos e pardos) não se restringe à sua ascendência africana e nem à sua cultura, mas está vinculada às interpretações que recaem sobre os sinais diacríticos inscritos no corpo negro, os intelectuais negros repolitizam a raça e ressemantizam-na (GOMES, 2010, p. 504).

É neste movimento tensionado, próprio do ambiente acadêmico, onde não há

consenso, que consideramos relevante situarmos a perspectiva que assumimos ao

utilizar raça como uma categoria teórica polissêmica, tendo uma representação de

construção mental e ao mesmo tempo de uma ressemantização enquanto categoria

analítica, sociológica e política, principalmente quando está em análise essas relações

no Brasil e suas complexidades.

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão

mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação

racial/étnica da população do mundo. Origina-se e mundializa-se a partir da América

Latina. Em pouco tempo, com a América Latina o capitalismo torna-se mundial,

eurocentrado, e a colonialidade e modernidade instalam-se associadas como eixos

constitutivos do seu específico padrão de poder até hoje. Numa perspectiva

decolonial, a colonialidade é parte da modernidade.

Essa referência está fundamentada na leitura do sistema mundo moderno

colonial, que, mesmo após as independências das colônias, continuou a exercer uma

hegemonia no campo econômico, político, epistêmico. Desse modo, classificaram

povos, culturas, identidades étnicas, raciais e de gênero para se manterem

dominantes, de modo que

na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus.

Page 85: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

84

Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados (QUIJANO, 2005, p. 02).

Não por acaso, as principais medidas do Ministério da Educação atingem as

classes populares que tiveram acesso, na última década, a programas de acesso à

formação inicial ao ensino superior e ensino técnico de nível médio. Os quilombolas

foram fortemente atingidos por essas medidas.

As colonialidades se constituiriam numa representação simbólica como um

trevo articulado: Colonialidade do Poder, Colonialidade do Ser, Colonialidade do

Saber e Colonialidade da Natureza.

O conceito de colonialidade do ser foi elaborado por Walter Mignolo, semiólogo

argentino, de ascendência norte-americana, por volta dos anos 2000. Afirma

Maldonado-Torres (2007, p. 129-130):

El concepto de colonialidad del ser nació en conversaciones de la colonialidad del poder, en diferentes áreas de la sociedad. La idea era que si en adición a La colonialidad del poder, existí a la colonialidad del saber, entonces, muy ben podría haber una colonialidad del ser.

A colonialidade do ser se refere, então, à experiência vivida da colonização e

seu impacto na linguagem, bem apresentada em Fanon (2008), quando o mesmo

aborda o fenômeno do negro e a linguagem, e articula as expressões da colonialidade

em relação à experiência racial e os traumas produzidos pelo racismo colonialista.

Fanon publica Pele Negra Máscaras Brancas, em 1952, e Mignolo conceitua a

colonialidade do ser nos anos 2000, embora tenhamos uma diferença temporal de

cerca de meio século. Para Mignolo (2003, p. 669),

La ciencia (conocimiento y sabiduría) no puede separarse del lenguaje; los lenguajes no son solo fenómenos‘culturales’ en los que la gente encuentra su ‘identidad’; estos son también el lugar donde el conocimiento está inscrito. Y si los lenguajes no son cosas que los seres humanos tienen, sino algo que estos son, la colonialidade del poder y del saber engendra, pues, la colonialidade del ser.

Se as linguagens não são coisas que os seres humanos têm e sim algo que os

seres humanos são, “há que desenvolver uma nova linguagem descolonial para

representar os complexos processos do sistema-mundo moderno colonial, sem

estarmos dependentes de velha linguagem liberal destas três áreas” (GROSFOGUEL,

Page 86: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

85

2010, p. 472). O autor faz essa consideração ao referir-se aos campos da economia,

da política e sociocultural, no qual orbita a colonialidade do poder. Existe pois uma

articulação entre a colonialidade do poder, do saber, do ser e da natureza, a partir da

configuração do poder imperial do sistema mundo moderno colonial, onde institui-se

a colonialidade do poder conceituada por Quijano (2005). A ‘racialização’ das relações

de poder entre as novas identidades sociais e geoculturais foi o sustento e a referência

legitimadora fundamental do caráter eurocentrado do padrão de poder, material e

intersubjetivo, ou seja, da sua colonialidade.

Mignolo afirma que neste sentido modernidade/colonialidade não são

derivadas, e sim constituintes de um todo articulado. Pela modernidade europeia, há

uma autoafirmação cuja expansão tornou-se hegemônica, econômica, política e

epistemologica pela colonialidade, de modo que há uma negação de outras formas de

racionalidade e de história.

Sobre o debate referente à origem da modernidade, faz-se necessário

esclarecer que há referenciais distintos para temporalizá-la que a situam entre o

século XV e XVII. Dussel, no “Antidiscurso filosófico da modernidade”, utiliza Toulmin

para afirmar que algumas pessoas

datam a origem da modernidade no ano de 1436 com a adoção da imprensa por Gutenberg; outras em 1520 com a rebelião de Lutero contra a autoridade da Igreja; outras com 1648, com o fim da Guerra dos Trinta Anos; outras em 1776 ou 1789, com as Revoluções Americana e Francesa; enquanto que para algumas outras os tempos modernos só começam em 1895 (DUSSEL, 2010, p. 342).

É certo que, numa perspectiva hegemônica epistêmica, o marco referencial da

modernidade na racionalidade será determinante para compreendermos a geopolítica

de referenciamento hoje estabelecida, onde a produção na economia é determinante

para viabilizar a colonialidade do poder. É imprescindível considerar que essa

viabilidade está intrinsecamente vinculada à classificação dos povos em raças, a partir

da construção posta anteriormente por Aníbal Quijano. É esta classificação do sistema

mundo-moderno-colonial em raças - o índio (servil), o negro (escravo) e o branco

(operário) - que viabilizará a colonialidade do poder expansionista moderno para os

outros continentes, onde esta colonialidade se estabelece articuladamente às outras

três: do saber, do ser e da natureza.

Page 87: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

86

É muito significativo analisarmos essa construção no sentido de podermos

compreender, por exemplo, os processos de independência de alguns países

africanos e o papel da cultura na conquista da libertação e a educação como um ato

político. Neste processo contínuo, algumas desconstruções são imperativas, dentre

elas descolonizar as mentes. Pensar a partir do seu lugar, numa perspectiva de

afirmar a possibilidade de posicionar-se de forma georeferenciada: pensar

efetivamente a partir do Sul, em contraposição à hegemonia posta pelo Norte.

Nesta articulação encontramos em Freire (1992) um diálogo fértil que fortalece

o princípio de pensar numa perspectiva emancipatória. Ao analisar os efeitos nocivos

do colonialismo, dominando corpos e mentes que traduzimos do Pensamento

Decolonial como a operacionalidade das colonialidades do ser e do saber. Freire

afirma que os colonialistas diziam que somente eles

tinham cultura. Diziam que antes de sua chegada à África nós não tínhamos História. Que a nossa História começou com a sua vinda. Essas afirmações são falsas, são mentirosas. Eram afirmações necessárias à prática espoliadora que exerciam sobre nós. Para prolongar ao máximo a nossa exploração econômica, eles precisavam tentar a destruição da nossa identidade cultural, negando a nossa cultura, a nossa História.Todos os povos têm cultura, porque trabalham, porque transformam o mundo e, ao transformá-lo, se transformam (FREIRE, 1992, p. 75).

Ao refletirmos sobre essa afirmativa de Freire, compreendemos o que seria o

pensar certo posto por ele. Essa atitude implica em desafiar-se, a problematizar o que

foi naturalizado e que está fortemente marcado pelos mecanismos de dominação

postos pelo colonialismo. Articulamos, assim, o pensamento de Paulo Freire com

Walter Mignolo que afirma que pensar decolonialmente implica necessariamente em

aprender a desaprender para reaprender. E o que isto implica? Implica em

desaprender que negros, indígenas, mulheres, homossexuais, candomblecistas,

indianos, africanos, quilombolas não são seres inferiores, são seres de cultura,

produzem conhecimento, têm uma existência que resistiu às invisibilidades,

subalternizações e construiu um legado na história da humanidade. Em termos de

insurgências emancipatórias, há que se aprender a construir diálogos. Assim,

O diálogo, em Paulo Freire, favorece o pensar crítico-problematizador das condições existenciais e implica uma práxis social na qual a ação e reflexão estão dialeticamente construídas. [...] Para Paulo Freire, o diálogo é construção teórica, atitude e

Page 88: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

87

prática pedagógica. É relação objetividade-subjetividade, tem fundamento e conteúdo; portanto, é uma categoria teórica (MENEZES; SANTIAGO 2014, p. 52).

Abordar sobre diálogo enquanto categoria teórica, é considerar que ele é mais

do que fazer-se ouvir. É estar a disposição de exercer a escuta do outro, dar pausas,

silenciar e interagir numa relação de reciprocidade amorosa. E como afirmam as

autoras: “O diálogo requer confiança, fé no outro.” E continuam: “fé no seu poder de

fazer e refazer, de criar e recriar [...] para a relação dialógica ser estabelecida, um

clima de abertura, de participação é condição necessária.” (MENEZES; SANTIAGO,

2014, p. 53).

Articular as bases epistemológicas que dão sentido ao currículo escolar

quilombola na escola campo de pesquisa, posto em prática pelas professoras,

implica em reconhecer o significativo passo que elas deram ao tomar a decisão de

dialogar entre si sobre a situação da escola, fazer uma leitura de realidade e “tomar

de conta” da escola junto com as famílias. De questionar ao invés de esperar

indefinidamente as técnicas da Secretaria Municipal de Educação, que nunca

chegavam ou chegavam sem dialogar “com tudo pronto.” O diálogo implica em

construção, processo. Como exerceu a coordenadora da escola que, ao tomar Paulo

Freire como referência epistêmica, não abre mão de consultar as famílias

para pensar o currículo coerente com os princípios freireanos, temos como desafio a democratização da gestão das unidades escolares para construir uma escola pública de qualidade social, onde o processo de elaboração∕reformulação curricular seja uma construção coletiva, vivenciada em uma dinâmica de diálogos com a participação dos diferentes sujeitos envolvidos na ação educativa (SAUL; SILVA, 2009 apud MENEZES; SANTIAGO, 2014, p. 55).

Este processo de aprender a desaprender e reaprender implica inclusive em

nos colocarmos referenciais de pertencimento ao mundo como nos convida Morin

(2007), no que se refere a ensinar a condição humana em suas esferas de unidade e

coletividade na convivência social; ensinar a identidade terrena, considerando a morte

da modernidade, essa modernidade que se fez uma, que propagou apenas uma

versão da história cuja marca é eurocêntrica, falocêntrica, cujos alicerces

fundamentam-se principalmente no capitalismo, cristianismo ocidental, colonialismo

que influenciaram, principalmente, a condição de não ser e inferiorização dos povos.

Page 89: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

88

Autores do campo do pensamento decolonial e do pensamento africano

também têm instigado a necessidade de se estabelecer interseções entre o tradicional

e o moderno. Para esses autores, é na interseção dialogada, híbridas e transculturais,

que formas de conhecimentos outros emergem.

Neste contexto, o desafio da construção do que virá não está dado. É

necessário edificá-lo num chão de incertezas e, neste contexto de incertezas,

confrontar-se com a própria incerteza do conhecimento numa perspectiva de

provisoriedade. E ao acolher esse desafio de enfrentar as incertezas, ensinar a

compreensão, a ética da compreensão e do “bem pensar.” Aqui, novamente,

percebemos diálogos entre o pensamento construído por Mignolo (2005, 2008) Freire

(1992, 2011) e Morin (2007) referente a aprender a desaprender para reaprender e a

desobediência epistêmica; referente aos saberes necessários à prática educativa em

“Pedagogia da Autonomia” e “A importância do Ato de Ler” e os “Sete Saberes

Necessários à Educação do Futuro”, afinal

Os problemas que Fanon observou e diagnosticou nas colônias nunca foram relevantes somente nelas. [...] forjou-se na colônia, no barco com escravos, nas plantações, no espaço íntimo da casa, no Estado, na relação entre império e colônia, e entre centro e periferia. Dali se expandiu de múltiplas formas, de modo que hoje em dia está por todos os lados e nos afeta a todos. Ao mesmo tempo, não é estranho que a colonialidade se mostre de forma particularmente viciosa em relação a sujeitos racializado se aqueles provenientes de colônias atuais e antigas (MALDONADO-TORRES, 2014, p. 1).

Assim, nossa pesquisa estabelece um diálogo entre as Africanidadese o

Pensamento Decolonial, desde o pensamento ancestral africano. Essa perspectiva

teórico-epistemológica dialoga com categorias do marxismo como Classe, mas vai

além. Introduz e reconhece a raça como categoria-chave de análise, articulada aos

racismos como múltiplas faces do colonialismo.

3.3 Ancestralidade, memória e experiência: estruturantes para uma educação

escolar quilombola

Na sessão anterior, nossa abordagem estabeleceu um diálogo entre as

Africanidades e o Pensamento Decolonial de vertente latino americana. Referimo-

nos ao pensamento de Fanon (2008, 2010) como base para a construção de alguns

Page 90: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

89

conceitos desse pensamento de vertentelatino-americana, a exemplo da colonialidade

do ser.

Nesta sessão, focaremos a ancestralidade, compreendendo-a como

estruturante para refletir sobre o Brasil em suas perspectivas histórica, econômica,

política, filosófica e sociocultural. E, nessa compreensão, iremos situar como, a partir

do pensamento afro-brasileiro e quilombola, a ancestralidade traz historicamente a

experiência de existência articulada como resistência.

Compreender a ancestralidade africana como categoria de análise implica na

leitura das relações de poder estabelecidas pelo sistema mundo moderno colonial,

onde neste sistema, os africanos, afro-latino-americanos e os afro-brasileiros foram

postos completamente à margem de qualquer acesso à riqueza e ao poder ou a

usufruir de políticas sociais como a política educacional. Pensar a ancestralidade afro-

brasileira nesta perspectiva implica compreender que os africanos são detentores de

uma cosmovisão de mundo e de conhecimentos que têm sido sistematicamente ora

silenciados, ora capturados pelo pensamento hegemônico.

No caso brasileiro, os africanos e os afro-brasileiros foram historicamente

classificados como não-ser, inumanos até. Esta foi a base para a classificação social

que perpetuou no imaginário nacional a condição do negro como o ser inferior, posto

na historiografia por diversos autores, que defenderam o racismo científico, desde

Nina Rodrigues (1899), que atribui ao negro uma tendência inata à marginalidade em

sua obra Mestiçagem, Degenerescência e Crime, procurando provar sua tese sobre a

degenerescência e as tendências ao crime dos negros e mestiços à Gobineau, um

dos representantes das teorias racistas, tanto quanto Agassiz (1868), pesquisador

suíço.

No campo científico acadêmico, teremos essas construções adesistas às

teorias racistas do século XIX, sendo questionadas por Schwarcz (1993) numa leitura

crítica desse período, além da necessidade de se inventar um Brasil, interesse do

Imperador Pedro II, quando o mesmo cria o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro–

IHGB,“com a responsabilidade de criar uma história para a nação, inventar uma

memória para um país que deveria separar, a partir de então, seus destinos dos da

antiga metrópole européia.” (SCHWARCZ, 1993, p. 33). Nessa missão, entretanto, o

IHGB deixou de fora a história e memória dos povos indígenas, negros e quilombolas.

A história a ser escrita privilegiaria a perspectiva das classes dominantes.

Page 91: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

90

Ao trazer a ancestralidade para o nosso debate, nossa abordagem inicia,

portanto, pela crítica ao racismo em todas as suas dimensões, inclusive ao científico,

e foca a dimensão histórica da formação dos quilombos como experiências africanas

adaptadas à realidade do africano em território brasileiro e às ressignificações dos

afro-brasileiros no território nacional. Para essa construção a experiência vivida em

África pela memória ancestral das relações, tomando por referência a

“cosmovisão africana, onde o passado tem papel chave. Não no sentido idealizado,

nem de uma África mítica. Se trata de aprender com as gerações antigas e entender

que o presente só é possível pelo passado que o antecede.” (SANTOS JUNIOR, 2010,

p. 6). Ao colocar a ancestralidade como estruturante da identidade no mesmo patamar

do sentido territorial, os quilombolas afirmam-se, nos tempos de hoje, orientando-se

também pelo tempo passado, posto que neste passado estão fincadas as raízes da

existência e sentido de ser hoje.

Expressão de africanidades, os quilombos no Brasil foram formados

inicialmente por povos africanos de diversas etnias (BARBOSA, 2005, p. 5), do Congo

e de Angola foram transportados o maior número de etnias. Observemos no quadro a

seguir, os países, a partir da nominação dos dias de hoje, e as etnias que mais

contribuíram em número para a formação do Brasil.

O quadro amplia a territorialidade dos africanos transportados. Foram trazidos

africanos de diversas regiões do continente, vários grupos étnicos compuseram o

povo brasileiro. De acordo com Munanga e Gomes (2006, p. 20), as diversas etnias

foram transportadas de três grandes regiões geográficas

África Ocidental - Senegal, Mali, Níger, Gana, Togo, Benin, Costa do Marfim, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné, Camarões;

África Centro Ocidental–Envolvendo povos do Gabão, Angola, República do Congo, República Democrática do Congo (AntigoZaire), República Centro-Africana;

África Austral–Envolvendo povos de Moçambique, da África do Sul e da Namíbia.

Page 92: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

91

Quadro 08 - Grupos étnicos africanos

País Grupo

Étnico

País Grupo

Étnico

País Grupo

Étnico

País Grupo

Étnico

Angola

Ngola

Mbunda

Benguela

Rebolo

Kassenje

Quibundo

Bacongo

Dahomé

Mahil

Sombas

Guiné

Bissau

Fula

Mandnga

Serra

Leoa

Mende

Congo Cambindas Gabão Mossi Níger Fulani Togo Mina

Costa

do

Marfim

Senufo

Baule

Dagon

Yaouré

Ghana

Ashanti

Nigéria

Ijeshá

Haussá

Zaire

Bakuka

Fonte: Delma Silva (2016) a partir de Barbosa (2005, p. 7).

Essa identificação amplia a diversidade de povos presente no contingente de

africanos que compuseram a nação brasileira. Os africanos transportados são de

regiões diversas, para além das regiões de colonização portuguesa. Essa amplitude

contribui para que consideremos que, ao estudar a diversidade de povos e culturas

africanas e afro-brasileiras presente no território nacional, sejamos cautelosos e

evitemos as generalizações, principalmente no que se refere às memórias e

identidades. Logo,

[...] não podemos nos dar ao luxo de esquecer, perder de vista a nossa memória, por mais pequenina ou insignificante que seja, pois nossa memória será sempre uma forma de costurar nossa história. E sabem porquê? Porque destituíram dos negros sua própria identidade, torturaram o seu corpo e aniquilaram o patrimônio de sua cultura sagrada nos templos da Bahia, Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro. Esse enorme acervo religioso foi parar nos museus de polícia, onde deveriam ser objeto de estudos para provar, à luz da antropologia, a nossa inferioridade, medindo-se tamanhos de crânios e tipos faciais para comparar diferentes etnias entre si...E não foi só aqui que essas chagas foram abertas para marcar definitivamente o lugar do negro. A Europa propagou, no século XIX, uma imagem perversa da África, dividida ao sabor da política neo-colonial, criando museus como verdadeiros depósitos de exotismo estabelecido pela mentalidade colonialista (ARAÚJO, 2004, p. 243-244).

Page 93: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

92

O autor destaca a memória como uma forma de costurar a história. Não se faz

história, sem memória. E um dos lugares de se fazer história foi no território sagrado.

No sagrado, enraizou-se a resistência para existir. No Brasil, o cultivo da

ancestralidade africana, por intermédio da religião, desde o início, se contrapôs à

religião cristã, utilizada para abençoar o tráfico transatlântico, e não só abençoar, mas

assegurar, neste comércio, o seu percentual de ganho por cada africano transportado

para fins de escravização.

Desde o embarque nos Negreiros ou tumbeiros, a Igreja Católica se fazia

presente para batizar o ser que seria trazido para as Américas, dando-lhe “um nome

cristão como forma de esvaziar o africano da sua cultura, como uma tentativa de

fragmentar a sua identidade” (MUNANGA; GOMES, 2006, p. 85). Geralmente esse

ato fazia parte de um ritual, onde antes de embarcar, a mulher dava sete voltas e o

homem dava nove voltas ao redor de uma adansônia digitata, embondeiro (na África

de língua portuguesa) e baobá (no Brasil), nomes diferentes para a mesma árvore

presente em todo o território africano e símbolo da África, que é considerada a árvore

da palavra. Pernambuco é o Estado no Brasil com maior número de baobás, inclusive

na UFPE há vários plantados em diversos centros.

Esses primeiros movimentos a que eram submetidos homens e mulheres

tinham por objetivo gerar um transe, afetar a memória, apartar o ser de sua história

de sua identidade individual e coletiva, esquecer seu nome, sua cultura. O segundo

passo seria o embarque, tendo antes que passar pelo batismo católico.

O nome é um dos primeiros elementos constitutivos da identidade, um nome

tem significado, tem territorialidade, pode ser atribuído por homenagem a uma pessoa

da família, uma pessoa que se admira, as vezes por devoção religiosa, por

ascendência, por característica da criança. No contexto dos povos indígenas no Brasil,

o nome é dado depois de um tempo que se observa a criança. No contexto de alguns

povos africanos, é a comunidade que escolhe o nome. No caso dos negros que

nasciam no Brasil e se aquilombavam, rejeitavam o nome cristão e passavam a adotar

um apelido quimbundo, jeje, iorubano.

Recuperar o nome africano constituía uma retomada de identidade. Zumbi por

exemplo, ainda recém-nascido, foi dado dado em presente ao padre português

Antônio Melo, do distrito Porto Calvo. O padre o batizou e pôs seu nome Francisco.

Aos 15 anos, em 1670, Francisco foge de Porto Calvo para Palmares. Foi nesse

regresso à Palmares, seu território de ancestralidade identitária, que Zumbi se

Page 94: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

93

reintegra, sendo acolhido por Ganga Zumba, como seu sobrinho, na concepção

africana de família. De modo que não é estranho a um quilombola (ou indígena) ter a

experiência de passar períodos longos ou curtos fora de seu território. Um dos motivos

do afastamento nos dias de hoje é a busca por escolarização, principalmente nos

níveis das séries finais do Ensino Fundamental da Educação Básica, do Ensino Médio

e para cursar uma formação universitária.

A configuração da família negra nucleada em pai, mãe e filhos no Brasil era

impossibilitada pelo regime escravocrata, embora fossem se constituindo aos poucos

no interior das senzalas; não “havia tranquilidade a qualquer momento, o senhor podia

vendê-los, matá-los ou separar pai, mãe e filhos.” (MUNANGA; GOMES, 2006, p. 85).

O ser em questão era propriedade de alguém que procurava ao máximo aumentar o

seu poder econômico, através do número de “peças”, que, em alguns casos, ele

mesmo era o reprodutor.

Ao considerar o africano e o afro-brasileiro como peça e propriedade, o sistema

colonial português exercia uma interferência na ancestralidade da relação parental e,

também, tentou aniquilar a força vital que alimenta a ancestralidade na dimensão do

sagrado.

Havia pouca possibilidade dos africanos e afro-brasileiros no período colonial

e escravagista, sob a condição de escravos, viverem juntos a partir do primeiro grau

de parentesco: mãe, pai, filhos e filhas. Africanos e afro-brasileiros, apesar de serem

proibidos de cultuar suas divindades, insurgiam-se de forma sábia. Se contra a venda

e a separação dos parentes eles pouco puderam fazer, através da língua, driblaram o

que foi arbitrado e, neste sentido, conseguiram manter o ontológico ancestral de suas

experiências sagradas de vida e morte. A forma como a cultura dominante passou a

chamar, num primeiro momento, essa resistência foi de sincretismo religioso. Através

desse fato, podemos perceber que os mecanismos de resistência criados pelos

africanos e afro-brasileiros no Brasil foram e têm sido variados no campo da cultura.

Partindo da experiência africana, da diáspora e das múltiplas e diversas

resistências, que foram e são constitutivas das identidades afro-brasileiras, neste

trabalho, ancestralidade

é uma categoria analítica que se alimenta da experiência de africanos e afrodescendentes para compreender essa experiência múltipla sob um conceito que lhe dá unidade compreensiva,sem reduzir a multiplicidade da experiência a uma verdade, mas, pelo contrário,abre para uma polivalência dos sentidos (OLIVEIRA, 2000, p. 5).

Page 95: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

94

A ancestralidade, portanto, é uma produção humana, presente na relação de

parentesco, no território da cultura, nos signos e significados produzidos e vivenciados

pelos afro-brasileiros quilombolas, sujeitos da pesquisa, suas experiências, com essa

dimensão ancestral polissêmica, presente na vida e nas relações estabelecidas nas

comunidades quilombolas e na relação com sujeitos exteriores à comunidade.

Compreendemos que a polissemia está posta, uma vez que nossa pesquisa

estabelece uma relação de mão dupla entre África-Brasil. Nesse movimento, o Brasil

é constituinte da América Latina, continente com quem compartilha, no que se refere

aos quilombos, processo econômico, político e cultural muito semelhante, se não

derivado do que se constituíram os quilombos na África, conforme nos apresentou

Munanga (1996), mas também é um Brasil que, embora colonizado, vem construindo

um sotaque e significado próprio de sua identidade cultural e de sua relação com o

continente africano, à exemplo da introdução da Pedagogia Griô nas práticas

educativas, onde são princípios “a identidade, a ancestralidade e a celebração da vida

como centro do saber e fortalecimento do continente afetivo dos grupos no universo

da educação e tradição oral.” (PACHECO, 2015, p. 68). Os princípios da pedagogia

Griô dialogam com os princípios da tradição viva de Bâ (2011), contemplados nos

princípios da educação escolar quilombola. Desse modo,

A Pedagogia Griô facilita a transformação do lugar cultural que se ocupa no diálogo entre a tradição oral e a tradição escrita. E se trilha as emoções do caminhar da expressão da identidade e do vínculo com a ancestralidade. Aprende-se o encantamento de reconhecer o lugar social e político da pessoa de tradição oral como sujeito, autor, educador (PACHECO, 2015, p. 42).

Nos princípios da educação escolar quilombola, a centralidade está na história

da comunidade enquanto um território de conquista e de direito. Partem dessa

construção para dialogar com a escola oficial. Essa conquista vem dos anos 2000, aos

dias atuais. Embora a comunidade exista desde 1802, as condições concretas no

campo educacional só foram conquistadas há pouco menos de duas décadas.

O Brasil, que se reconhece também africano, iniciou no final da primeira década

do século XXI, uma relação colaborativa no campo do desenvolvimento científico e

tecnológico. Em 2010, o governo brasileiro por forma da Lei 12.289∕10, atendendo a

uma pauta histórica posta pelo Movimento Social Negro, criou a UNILAB - autarquia

vinculada ao Ministério da Educação, que tem por objetivo ministrar ensino superior,

Page 96: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

95

desenvolver pesquisas nas diversas áreas de conhecimento e promover a extensão

universitária, tendo como missão institucional específica formar recursos humanos

para contribuir com a integração entre o Brasil e os países membros da Comunidades

dos Países de Língua Portuguesa-CPLP, especialmente os países africanos, bem

como promover o desenvolvimento regional e o intercâmbio cultura, científico e

educacional.

Com a criação da UNILAB, o Brasil, depois de 500 anos, começa de fato a

voltar a sua face naquilo que, neste continente, lhe é constituinte: a diversidade, a

pluralidade, o conhecimento existentente e que ainda estamos por descobrir e

compartilhar.

Uma das dimensões da ancestralidade afro-brasileira, na polissemia que lhe

comporta, é a resistência vivificada pelo sagrado, conforme apresenta Munanga (1996,

p. 63):

As religiões de todos os povos bantu são semelhantes. Todos acreditam num criador único ou divindade suprema: Zambi, Kalunga, Lessa, Mvidie, etc. É uma divindade longínqua, que criou o mundo e distanciou-se dele, deixando a administração a seus filhos divinizados que são ancestrais fundadores de linhagens. Por isso, essa divindade ou deus único é raramente objeto de culto coletivo, geralmente reservado às divindades secundárias (espíritos ancestrais). [...] Essas forças mais desenvolvidas são o próprio deus, os antepassados, os defuntos da linhagem, da família; são os pais, feiticeiros, bruxos, etc.

A ancestralidade também se faz presente quando os quilombolas afirmam que

existe no território, expressões da herança sagrada africana como uma forma de

afirmação e resistência. A afirmação da identidade étnica, através dos princípios da

educação escolar quilombola, situa a experiência ancestral e afirmam que eles

conquistaram o direito de desenvolver na escola um jeito próprio de ensinar e de

aprender “onde nossa história é nossa riqueza e é importante que os nossos filhos e

netos saibam dela. Queremos uma escola em que nós, pais, possamos dar as nossas

opiniões na educação dos nossos filhos, para que eles não esqueçam nossas origens,

nossa identidade” (CCLF, 2009, p. 9). A história como riqueza é uma tradução da

afirmativa de que os passos da ancestralidade vêm de longe e se materializam no

tempo presente na relação família-escola. Uma riqueza que acolhe a família como

lugar de saber e de ser, e esse lugar tem uma incidência na escola, tem o que dizer à

escola.

Page 97: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

96

A ancestralidade é um conceito chave na educação escolar quilombola, é

estruturante para a elaboração dos princípios dessa educação que emerge no contexto

da educação para as relações étnico-raciais. À medida em que os movimentos sociais

negros conquistaram a ampliação de direitos na sociedade brasileira, novos marcos

legais foram postos em vigor. Gradativamente ampliou-se a visibilidade e a pertinência

de políticas públicas específicas que incluíam direitos em diversos campos das

políticas públicas para negros e quilombolas.

Na atualidade, quando as escolas se preparam para trabalhar a implementação da

História e Cultura Afro-brasileira e Africana e tocam na ancestralidade como dimensão

histórica estruturante da cultura existente no país, os quilombolas afirmam que

só quando nós próprios discutimos e refletimos sobre a nossa especificidade é que podemos garantir que a nossa história, nossa organização, nosso modo de ser, nossa ancestralidade, se reflita nos currículos. A escola deve estar preparada para desenvolver processos alfabetizadores múltiplos e criativos, respeitando a autonomia do sujeito para construir seus saberes, ou seja, para que possam alfabecantar, alfabedançar, alfabebrincar, alfabepesquisar” (CCLF, 2009, p. 15).

A referência de ser humano completo em corporeidade, sensibilidade e

consciência está posta nesta afirmativa. Não basta ensinar, é necessário ensinar

considerando que existe um corpo que aprende num ritmo e que se expressa de

diversas formas e não basta produzir conhecimento alheio ao corpo às múltiplas

dimensões desse corpo, é necessário produzir um conhecimento que respeite a

especificidade de ser quilombola, porque todo mundo não é igual.

Com essa referência aos princípios da educação escolar quilombola situadas

na dimensão da ancestralidade, destacamos que a metodologia da história africana,

ou metodologia afrocêntrica, está presente na experiência educativa desenvolvida em

Conceição das Crioulas. Na próxima sessão, abordaremos a emergência da educação

e o currículo escolar quilombola no contexto da educação da educação das relações

étnico-raciais.

Page 98: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

97

Procuro trazer também dentro dessas expectativas de aprendizagem que o nosso currículo traz, de procurar esses povos da África, também fazendo esse paralelo, porque mesmo na distância que a gente vive hoje daqui do quilombo de Conceição das Crioulas pra África, a gente percebe que a gente tem muitas coisas em comum ainda nesse mundo contemporâneo que a gente tem hoje. (OLIVEIRA, 2015).1

1 Extrato da Entrevista de Professora entrevistada nesta Pesquisa em setembro de 2015

Page 99: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

98

4 EDUCAÇÃO E CURRÍCULO ESCOLAR QUILOMBOLA: UM

RECONHECIMENTO HISTÓRICO NA EDUCAÇÃO NACIONAL

Na sessão anterior, abordamos sobre a ancestralidade, essa é uma dimensão

que se faz necessária no debate, pois o conhecimento produzido pelos

afrodescendentes ao longo de séculos no Brasil e nas Américas não teria sido

possível sem essa herança de resistência, insistência e, em alguma medida,

insubordinação. Podemos afirmar que a ancestralidade é o que põe de pé, ergue a

causa quilombola no contexto das lutas sociais no Brasil e nas Américas. Como

situamos anteriormente, não se trata de essencialismo, mas de afirmar que a memória

histórica, transmitida de geração em geração, por meio da oralidade, estabeleceu-se

como uma das principais referências de identidade afrodescendente. A identidade

para o quilombola é constituída na relação com outros povos a partir de si, de sua

cultura, das relações construídas em seu território. E estas relações envolvem

pessoas, grupos e instituições de dentro e de fora do território com outros grupos e

instituições. Nesse movimento dinâmico, o individual e o coletivo comunitário e

institucional, representado pela Associação Quilombola de Conceição das Crioulas-

AQCC, estão articulados aos modos de ser e de viver, e às teias vivas de articulação

com o continente africano, que envolvem as lutas políticas, organizativas local e

nacionalmente e sinalizam para consolidação de afirmações de identidades,

conquistas de direitos e construção de conhecimento a partir do que se vivencia

enquanto experiência desenvolvida na comunidade e que é refletida na escola.

Embora a discussão sobre a educação escolar e currículo quilombola seja

recente no Brasil e se inscreva num marco referencial legal apenas no início do século

XXI, no ano de 2003, e, ainda, que a produção de conhecimento seja ainda incipiente

como vimos anteriormentenos levantamentos nos Grupos de Trabalho da Anped e

EPENN, a validação desses povos pelo Estado Nacional, ocorreu tardiamente, uma

vez que os quilombos são uma realidade brasileira desde 1540 e o conhecimento

produzido no continente africano sobre os princípios africanos para educar estão

postos há muitos séculos atrás.

Este debate está posto no Brasil e também em países de colonização

portuguesa que, nas últimas décadas, vêm promovendo reformas curriculares a

exemplo de Moçambique, Angola, Cabo Verde, Buiné-Bissau, de modo que a

Page 100: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

99

“educação em África é chamada a enfrentar complexidades das questões pós-

modernas e pós-guerra em que a incerteza, o desprendimento, a desmotivação e a

dificuldade de criar consensos fazem parte do nosso quotidiano.” (DIAS, 2015, p. 211).

A autora nos informa que, na África Subsaariana, os problemas educacionais são mais

semelhantes, a expectativa de vida não vai além dos 47 anos, o índice de

analfabetismo ronda os 37%, apenas 9 países dessa região possuem IDH médio

(Botswana, Gabão, África do Sul, Cabo Verde, Namíbia, Gana, República do Congo,

São Tomé e Príncipe e Guiné Equatorial). Neste contexto, podemos nos perguntar:

Que relação esta realidade estabelece com Conceição das Crioulas? Em comum está

o tensionamento produzido pelo sistema educacional, principalmente no que se refere

à produção de resultados de aproveitamento, referenciados nos resultados reduzidos

a exames∕provas de conhecimento que produzem os indicadores. Esse é um dos

aspectos que mais afetam o cotidiano da escola, porque, a partir dele, se atribui o

sucesso ou fracasso ao professor e ao gestor. Reduzindo o olhar do processo

educativo, desconsiderando as condições da formação inicial e continuada de

qualidade, relação escola família e o sentido do que é ensinado.

Esses questionamentos focados no resultado têm exigido das professoras e

gestoras de escola um esforço no sentido de avançar na implementação da

“flexibilização e a contextualização do currículo”, como propõe (TAVARES, 2015, p.

219), ilustrando o processo em curso, desde 2002, em Angola, no sentido de que as

condições de participação sejam de fato criadas como forma de viabilizar a presença

viva dos demais agentes da comunidade educativa na vida das escolas e que deem

sentido às aprendizagens, ultrapassando a abordagem difundida principalmente pela

história oficial de relacionar negro a escravo, sem problematizar o processo do tráfico

transatlântico, sem situar as resistências e o protagonismo negro por sua libertade,

pelo republicanismo como o movimento da Revolta dos Alfaiates na Bahia, onde já

propugnavam o republicanismo ou mesmo a perspectiva societária dos quilombos.

No Brasil, com o afastamento da Presidenta Eleita em 2014 e instauração de

um governo que ascendeu por meio de um golpe jurídico-parlamentar-midiático,

desde agosto de 2016, há uma “reorientação” de produzir mudanças curriculares sem

consultar professores e seus órgãos de classe. Assim, as “mudanças” estão sendo

feitas por meio de Medida Provisória, que desconsidera o segundo Plano Nacional de

Educação (2014-2024) que reafirmou o princípio democrático da educação brasileira.

Esse contexto implica, por um lado, num potencial recuo na perspectiva em curso de

Page 101: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

100

efetivar no currículo escolar a educação das relações étnico-raciais e para se instituir

um currículo escolar quilombola. Entretanto, não mexeu no Art.3º da LDBEN, a

9394/96 no que se refere aos princípios da educação nacional, alterados pela Lei

12.796/13, onde neles está posto que a educação deve levar em consideração a

diversidade étnico-racial (BRASIL, 2013, p. 9).

No currículo escolar da educação nacional, o ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana na comunidade campo de pesquisa, apoiado na Lei Federal que

ampliou a Lei 9394∕96, bem como na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,

vem sendo praticado desde meados da década de 1990. E, na escola campo de

pesquisa, essa é uma conquista cujo marco data de 2007, com a conquista da gestão

da escola, gestão esta que se instituiu com o protagonismo das professoras

envolvendo as famílias e, com vistas ao seu fortalecimento, assumiu, também, a sua

formação continuada de forma autogestionada.

É importante destacar que as professoras tomam por referência a Resolução

Nº 1∕2004, que, em seu Art. 1º, “institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnio-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana, a serem observadas pelas Instituições de Ensino, que atuam nos

níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que

desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores” (BRASIL,

2004, p. 31). Pelo Exposto, existe um chamamento especial para a formação inicial e

continuada de professores, o que remete para as Instituições de Ensino Superior

adotarem medidas para a efetividade das Diretrizes na Formação de Professores, mas

não apenas isso. A Portaria nº 21, de 28 de agosto de 2013, orienta que as IEs nos

cursos de graduação, adotem o que desde 2004 está posto na Resolução nº 1.

O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para

a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana, que inclui a Educação Escolar Quilombola tem por objetivo

“colaborar para que todos os sistemas de ensino cumpram as determinações legais

com vistas a enfrentar as diferentes formas de preconceito racial, racismo e

discriminação racial para garantir o direito a aprender a equidade educacional.”

(BRASIL, 2013, p. 19). No que se refere à Educação Escolar Quilombola, o referido

plano define que esta educação “é desenvolvida em unidades educacionais inscritas

em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade

étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente,

Page 102: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

101

observando os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que

orientam a Educação Básica Brasileira” (BRASIL, 2013, p. 59).

Considerando as orientações do Plano, destacamos as metas, relacionadas

aos eixos e os períodos de execução que foram definidos a curto (2009-2010), médio

(2009-2012) e longo prazo (2009-2015) no que se refere às IEs enquanto atores

fundamentais no cumprimento de sua função formativa.

Quadro 09 - Plano nacional de implementação das DCNERER

Eixo 1: Fortalecimento do Marco Legal

Meta Atores Per. de Execução

Atualizar e inserir nos manuais, diretrizes e demais documentos norteadores dos currículos da educação básica e superior, as alterações necessárias para o ensino dos conteúdos previstos nas DCNERER e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

MEC, CNE, CEE, CME, SEE, SME,

IES e Instituições de Ensino da Educação Básica (Educação

Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio)

Curto Prazo

Eixo 2. Políticas de Formação de Gestores(as) e Profissionais da Educação

Meta Atores Per. de Execução

Incluir nas Licenciaturas, com destaque para o curso de Pedagogia, temas relacionados à diversidade étnico-raciail em seus currículos

MEC, IES, CAPES, INEP

Curto Prazo

Eixo.3 Política de Material Didático e Paradidático

Meta Atores Per. de Execução

Incluir disciplinas e atividades curriculares relacionadas à Educação para as Relações Étnico-Raciais nos cursos de Ensino Superior, conforme expresso no §1º do Artigo 1º da ResoluçãoCNE∕CP nº 1∕2004.

IES

Curto prazo

Fonte: Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. (BRASIL, 2013.

Estudos sobre o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, por

exemplo, têm indicado que a formação de professores passa por significativo desafio

para formar um professor crítico reflexivo, que trabalhe no currículo escolar a história

e cultura afro-brasileira, africana e indígena, de forma afirmativa. A dimensão das

Page 103: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

102

múltiplas resistências e afirmações resignifica o processo, que é deslocado das lentes

da história oficial e foca nos múltiplos olhares insurgentes. Nesta perspectiva, e mais

gravemente no cenário educacional imposto a partir do segundo semestre de 2016 no

Brasil, nós pesquisadores, professores e demais profissionais do campo educacional

que atuamos numa perspectiva crítica-reflexiva, estamos mergulhados num desafio

significativo de desenvolver experiências positivas compreendendo que

O sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas [...] dependem necessariamente de condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favoráveis para o ensino e para a aprendizagem. [..] Depende ainda de trabalho conjunto, de articulações entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais não se limitam à escola (BRASIL, 2004, p. 13).

A conquista da educação escolar quilombola, só foi possível pelo protagonismo

dos sujeitos políticos diretamente envolvidos e por um governo que reconheceu a

experiência histórica e uma legislação que tornou possível a conquista do direito. O

parecer das Diretrizes Curriculares e a Resolução nº 1 deixam claro que os quilombos

no Brasil e nas Américas refletem experiências organizadas de enfrentamentos ao

racismo institucional colonialista que se reverberam em outros racismos, o racismo

epistêmico. No sentido de produzir outras epistemologias, fundamentadas em práticas

curriculares outras, as Diretrizes Curriculares Quilombola trazem o entendimento de

que a educação escolar quilombola

organiza precipuamente o ensino ministrado em instituições educacionais fundamentando-se, informando-se e alimentando-se da memória coletiva, das práticas culturais,da territorialidade, das tecnologias e formas de produção do trabalho, dos acervos e repertórios orais, dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas (BRASIL, 2012, p. 3).

Para cumprir na prática de sala de aula, com o estabelecido nas diretrizes, a

escola quilombola se depara, no contexto atual, ao menos com três desafios:

formação inicial e continuada de professores, sistematização de suas experiências e

produção de conhecimento.

Page 104: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

103

No que se refere à formação inicial de professores, pesquisa de Cunha (1989)

indica que as experiências de práticas docentes inovadoras sofrem uma certa

resistência por parte de docentes e estudantes. Há uma convivência tensa no ensino

superior no que se refere à iniciativas de práticas inovadoras que levem em

consideração a história sócio-econômica e cultural dos estudantes, práticas

curriculares pouco atentas à pluralidade cultural existente na sala de aula,

principalmente nas licenciaturas.

No que se refere à formação inicial a que as(os) estudantes quilombolas do

ensino superior têm tido acesso, é a cursos de licenciatura em diversos campos:

História, Geografia, Letras, Pedagogia. O currículo vivido na Instituição de Ensino

Superior tem sido predominantemente monocultural, todavia é tensionado pelos

estudantes, uma vez que compreendendo o currículo como território em disputa, nos

termos postos por Arroyo (2013), tem conquistado algumas aberturas nos diálogos

intra-institucional.

A formação inicial de professores, portanto, transita entre práticas docentes que

sugerem e implementam experiências inovadoras e práticas arcaicas, que reforçam

um currículo monocultural, desterritorializado e que tem invisibilizado os quilombolas

como sujeitos históricos presentes no Brasil desde o século XVI. Nesta pesquisa,

ouvimos professores que, a partir da reflexão da prática, começaram a construir

caminhos próprios e, em alguns casos, com uma certa inovação - como afirma a

gestora da escola-, “sem a dependência dos técnicos da secretaria municipal de

educação que chegavam com tudo pronto.” Essa afirmativa já diz muito. Chegar com

tudo pronto para trabalhar com professor é desconsiderar a sua capacidade interativa

e propositiva. Mais do que isso, no caso da educação quilombola, é desconsiderar a

prerrogativa estabelecida no Art. 1º e 3º da Lei de Diretrizes e Base da Educação

Nacional, no que está compreendido por educação e seus princípios, que

consequentemente deveriam orientar a prática curricular do professor. Nossa

abordagem da pratica curricular do professor quilombola tem por referência o

concebido por Souza (2009, p. 38) que afirma que:

a noção de práxis pedagógica supõe uma teoria social, nomeadamente uma teoria da ação coletiva, para compreendê-la e realizá-la na medida em que é constitutiva da própria sociedade, assim como o são a práxis econômica e a práxis política, entre outras.

Page 105: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

104

A experiência pedagógica da formação continuada no chão da escola campo

de pesquisa tem articulado as famílias e os saberes que elas vivenciam na vida

econômico-produtiva-educativa. Consultam as crianças sobre os problemas que

vivenciam na comunidade e se perguntam sobre o papel que a escola pode ter frente

a esta realidade, pois “a formação continuada possibilita o encontro sistemático entre

professores para fomentar diálogos em torno de suas práticas pedagógicas, dos

problemas que enfrentam e das soluções que tecem” (SILVA; ALMEIDA, 2010, p. 17).

Dessa aproximação sistemática, nasceu a decisão de enfrentar a cultura do “trazer

tudo pronto” e trabalhar o princípio do Projeto Pedagógico da Escola a partir de

projetos com temas específicos, inspirado na referência de tema gerador posto por

Freire.

Ao optar trabalhar por projeto, a escola criou uma dinâmica intensa de

acompanhamento da prática educativa e também da formação continuada dos

professores. Eles têm encontros regulares para acompanhar o desenvolvimento da

relação de aprendizagem, do envolvimento das famílias e, também, a dinâmica das

necessidades de aprofundamento na formação continuada para ter foco no projeto,

tendo consciência que o mesmo tem uma temporalidade referenciada, mas

compreendem que não se encerra meramente pela cronologia. Assim, há sempre a

possibilidade de um projeto ser desdobrado ou aprofundado.

O projeto está ligado à experiência concreta, está situado num contexto, e é

refletido nas políticas curriculares onde

o direito à diferença vem sendo fortemente afirmado por diferentes movimentos na sociedade contemporânea. Esses movimentos trazem impactos na educação, especialmente nas disputas relativas aos currículos escolares, portanto, na formação de professores (GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011, p. 24).

Em 2016, a Lei 10.639/03, que torna obrigatório o Ensino da História e cultura

Afro- Brasileira e Africana no currículo escolar completou 13 anos, e verificou-se neste

período uma produção com uma intensidade na crítica ao que vem sendo produzido

do que registros de experiências positivas no interior da escola no que se refere às

relações etnicorraciais, à convivência respeitosa e à valorização da identidade das

crianças negras em relação às crianças de outras origens.

Nestes trabalhos de análise de mais de uma década de implementação da Lei,

as(os) pesquisadoras(es) reconhecem que o racismo na sociedade brasileira ainda

Page 106: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

105

não está superado. Avaliam que, embora existam fraturas nas epistemologias

eurocêntricas, estas têm sido mantidas como hegemônicas. Enquanto uma questão

central para a implementação da educação das relações etnicorraciais é necessário

reconhecer para poder enfrentar os racismos presentes na sociedade, no interior da

escola e na produção e validação do conhecimento, uma vez que esses racismos

coexistem, embora o racismo em nível

social, político e econômico é muito mais reconhecido e visível que o racismo epistemológico. Este último opera privilegiando as políticas identitárias (identity politics) dos brancos ocidentais, ou seja, a tradição de pensamento e pensadores dos homens ocidentais (que quase nunca inclui as mulheres) é considerada como a única e legítima para a produção de conhecimentos e como a única com capacidade de acesso à“universidade” e à ‘verdade’. O racismo epistêmico considera os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais. Se observarmos o conjunto de pensadores que se valem das disciplinas acadêmicas, vemos que todas as disciplinas, sem exceção, privilegiam os pensadores e teorias ocidentais, sobretudo aquelas dos homens europeus e/ou euro-norte-americanos (GROSFOGUEL, 2007, p. 32).

A colonialidade do saber pode ser evidenciada nos referenciais epistêmicos

dos trabalhos de conclusão de curso, monografias, dissertações e teses. Não teremos

dificuldade de visualizar que as referências euro-norte-americanas predominam,

mesmo em trabalhos que afirmam-se no campo contra-hegemônico, e mais do que

predominar há um sutil campo de hierarquização em qualificar o produzido: o

conhecimento é euro-norte-americano, o saber é afro-latino-americano. Esse

campo∕debate se intensifica quando a abordagem foca na produção local “muitos

estudos curriculares centram seu foco nas questões do senso comum e nesse âmbito

assistimos ao desenvolvimento de estudos sobre os saberes locais (conhecimento

indígena) e a inclusão destes nos currículos oficiais nas escolas (DIAS, 2015, p. 212).

A autora do texto problematizou o seu escrito em debate internacional sobre currículo

na UFPE, em 01 de setembro de 2016, onde de forma muito apropriada instigou: o

pensamento hegemônico continua a tratar o conhecimento da cultura local produzido

em África como ‘saberes’ e não como conhecimento, esse é um debate que ainda

levaremos um tempo, posto que está hierarquizado epistemologicamente.” Essa

análise corrobora ao que disse Grosfoguel sobre a geopolítica do conhecimento, onde

o racismo epistêmico classifica os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos

conhecimentos ocidentais.

Page 107: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

106

No campo da educação das relações etnicorraciais, as conquistas que existem

são frutos do empenho e da produção de conhecimento de pesquisadores e

professores, muitos desses, negros. É necessário que se reconheça que, em que

pese a existência dos diversos racismos, o protagonismo dos afro-brasileiros por sua

libertação, emancipação, ação política e conquista da condição epistêmica na

sociedade brasileira é fato.

A assunção da condição de sujeito epistêmico do negro brasileiro, no que se

refere à produção de conhecimento, tem na Frente Negra Brasileira, no início do

século XX, uma das muitas referências. A denúncia do racismo está presente na

atuação da Frente Negra Brasileira, na década de 1930, e no Teatro Experimental do

Negro, na década seguinte.

No século XVI, o africano e o afro-brasileiro praticavam, o que séculos depois,

foi conceituado por epistemologias de saberes, na vida cotidiana, nas tecnologias

introduzidas pelos negros nos Engenhos de Açúcar, na utilização das ervas para

cuidar da saúde do corpo e da alma, nas elaborações gastronômicas, nas técnicas de

construção de habitações, utilizando o barro, dentre tantas outras formas de

conhecimento africanos e afro-brasileiros. Faz-se ainda necessário destacar nesse

conjunto a prática da capoeira - uma criação brasileira de origem africana que ganha

significação no Brasil e no mundo, e o maracatu - expressão cultural das cortes de

Reis e Rainhas africanas que constituem fortemente uma marca da identidade de

Pernambuco. Em Conceição das Crioulas é o trancilim a dança que expressa a cultura

quilombola da comunidade, com seu passo articulado, a banda de pífano e seus

tambores.

Essas epistemologias inclusive são sugestões para trabalhar as africanidades

brasileiras no referencial curricular de campos de conhecimento relacionados à

matemática, artes, cultura, história, saúde, dentre outros. Neste sentido, amplia-se a

efetiva presença africana e afro-brasileira nesse campo.

Pensar em profundidade a articulação entre educação e cultura é um desafio

posto na percepção do currículo escolar nacional e, em especial, nas escolas

quilombolas.

Os quilombos são experiências de povos africanos, expandidas para as

Américas, ampliam-se a partir do século XVI. As resistências ao regime escravagista

se deram de diversas formas, dentre elas rebeliões, insurreições e movimentos de

escravizados que “jamais abriram mão de serem agentes e senhores de suas vidas”

Page 108: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

107

(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 97). Para as autoras, “é possível que a

experiência dos quilombos tenha construído um lugar radicalmente novo no panorama

político, capaz de conciliar, em igual medida, resistência e negociação, rejeição e

convivência.” Portanto, qualificar∕definir quilombo é um exercício de compreensão que

se expande para além da fuga e de um tempo pretérito encapsulado nos séculos XVI

ao XVII. Os quilombos existem e resistem até os dias de hoje.

Historicamente, o Quilombo dos Palmares foi a maior manifestação de rebeldia

contra o escravismo na América Latina. Para José Jorge de Carvalho, citado em

Brasil/FCP (2000) na apresentação do Quilombo do Rio das Rãs, tanto na história do

cativeiro negro nas Américas quanto na história desses movimentos rebeldes contra

a ordem imposta pelos brancos colonizadores

moldaram, profunda e definitivamente, até os dias atuais, o perfil ideológico, cultural e psicossocial de todos os países das Américas Negras. E em cada um deles, se foi construindo uma saga das lutas dos escravos, com seus sucessos, fracassos, perseguições, retratações, armistícios, traições e atos de heroísmo (BRASIL, 2000, p. 11).

Neste contexto, é imperativo voltarmos a perguntar: o que compreendemos por

educação? E retomar as leituras de Brandão (1989, p. 10), para lembrarmos, enquanto

sociedade, que “existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela

existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que

submetem outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua

dominância.” A conquista dos quilombolas de uma educação que os signifique em

termos de sujeito histórico na sociedade brasileira adquire uma dimensão política no

cenário da educação nacional.

Educação Escolar Quilombola de acordo com as Diretrizes Curriculares em seu

Art. 9º é compreendida como as escolas quilombolas; escolas que atendem a

estudantes oriundos de territórios quilombolas, escola em territórios quilombolas.

Identifica-se um currículo escolar quilombola em suas práticas e ações político-

pedagógicas, tanto mais esteja desenvolvendo os princípios das Diretrizes

Curriculares para a Educação Escolar Quilombola na prática da sala de aula,

conforme estabelecido no Art.7º das referidas DCNEEQ.

A educação dos povos nativos do Brasil e dos afro-brasileiros “participa do

processo de produção de crenças e ideias, de qualificações e especificidades que

Page 109: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

108

envolvem trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto constroem tipos de

sociedade” (BRANDÃO,1989 p. 11). É no território como espaço sócio-cultural que se

forja a luta por educação e por escola, nesse mesmo território há conquistas e também

tensionamentos quando o assunto é currículo.

No caso dos afro-brasileiros, a educação advinda do pensamento hegemônico

e implementada no currículo escolar numa perspectiva colonialista tentou destituir dos

afro-brasileiros sua história e memória, estruturadoras de identidades. A subtração da

condição de ser e saber intentou o silenciamento das vozes, da cultura material e

imaterial.

Sobre a relação entre educação e cultura e as significações que a educação

tem em diferentes povos e culturas, a partir de sua estreita relação com povos

africanos, Silva (2003, p. 181) afirma que o termo “educação” é utilizado para referir-

se a conhecimentos, valores, posturas ensinadas em estabelecimentos de ensino.

Entre esses povos, o termo já vem associado a uma exterioridade institucionalizada

pelos povos estrangeiros, colonizadores.

Verificamos, assim, que, no processo de colonização, existe uma relação entre

a educação e a institucionalização da mesma por parte dos colonizadores em África

e nas Américas. Transferiu-se para as colônias a institucionalização de como

processar o saber de forma padronizada, a partir dos valores e símbolos da cultura

que se fazia dominante. É neste sentido que Fanon abordará sobre os efeitos do

colonialismo nas mentes do colonizado através da escola, indagando-se da seguinte

forma:

Às vezes me pergunto se os inspetores do ensino e os chefes da administração estão conscientes do seu papel nas colônias. Durante vinte anos insistem, com seus programas, em fazer do negro um branco. Por fim desistem e dizem: indiscutivelmente vocês têm um complexo de dependência diante do branco (FANON, 2008, p. 180).

Sobre esse efeito de transformar o negro num branco através da educação,

discordamos de Fanon quanto à dúvida sobre a consciência na atuação dos

inspetores e chefes de administração escolar. No caso brasileiro, a história da

educação e os diversos estudos já produzidos informam que nossa escola foi

pensada, projetada para as classes dominantes: masculina, branca, católica e

heterossexual. E ao adotar sua cultura como referência e silenciar a cultura nativa e

afro-brasileira produzem nestes sujeitos, indígenas e negros, uma desumanização,

Page 110: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

109

conforme já sinalizamos anteriormente ao trazer os estudos de Schwarcz (1993).

Sobre a condição de desumanização, o estudo de Walsh (2009, p. 144) aproxima

Fanon e Freire e afirma:

La deshumanización- entendida como‘el resultado de un orden injusto que genera la violencia de los opresores, lo que, en cambio, deshumaniza a los oprimidos’- es, para Freire, una distorsión de La vocación de hacerse más plenamente humano. Enfrentar este problema hacien do que el hombre llegue a tener consciencia de esta condición y que reconozca La necesidad de luchar por La restauración de su humanidad, son pasos necesarios–pero no únicos- en su pedagogía y praxis humanistas y liberatoria hacia la emancipación.

Como condição de enfrentamento a esta desumanização não há outro caminho

que não seja o de se insurgir: desobedecer ao imposto pela ordem. É neste intercurso

que entendemos o currículo como território de tensões, assim como também o

território escolar. Nestas insurgências, alguns intelectuais brasileiros abriram caminho

em diversas épocas da educação no Brasil.

Com a atuação pela democratização do acesso à educação vindo de alguns

intelectuais e pelos movimentos sociais, conquistou-se o acesso, mantendo-se, ainda,

alguns gargalos, uma vez que a educação básica não atingiu ainda cem por cento da

população em idade escolar e o currículo, neste contexto, permaneceu direcionado

aos interesses formativos das classes dirigentes, levando ao que Gimeno Sacristán

(2000, p. 10) atesta:

não será fácil melhorar a qualidade do ensino se não se mudam os conteúdos, os procedimentos e os contextos de realização dos currículos. Pouco adiantará fazer reformas curriculares se estas não forem ligadas à formação dos professores. Não existe política mais eficaz de aperfeiçoamento do professorado que aquela que conecta a nova formação àquele que motiva sua atividade diária.

Ao trazer para o debate a questão da formação do professor para a mudança

curricular, destacamos neste aspecto a relevância posta nas Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Escolar Quilombola de o professor ser prioritariamente da

comunidade, compartilhar da identidade de ser quilombola. Isto fortalece a cultura, a

ancestralidade e dá sentido ao projeto que se pretende com o currículo: educar para

quê?

Page 111: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

110

Compreendendo que a educação é um processo amplo, inesgotável,

desenvolve-se articuladamente com a cultura, a escola não tem a primazia da

educação. Ela é o espaço privilegiado na cultura ocidental cristã, onde a criança

passará por um processo de escolarização que, via de regra, está situado num

referencial padrão validado historicamente. Padrão esse que vem sendo questionado

quando assume uma perspectiva etnocêntrica.

No que se refere à educação escolar quilombola, uma referência a ser

considerada é a diversidade cultural dos povos que estão situados em quase todos

os estados brasileiros. Esses povos, que possuem e estabelecem relações

educativas, éticas, de respeito e trocas entre si, estão organizados nacionalmente.

Nesse princípio da diversidade, eles mantêm suas referências ancestrais

específicas, mas compartilham entre si experiências significativas que podem

contribuir com a sua permanência no lugar. Inferimos que esse pode ser um dos traços

da interculturalidade entre os quilombolas. A relação com a terra como território

ancestral e de projeção de futuro é um elemento que consideram como referencial de

patrimônio histórico imaterial e constitui-se também em dimensão educativa.

Por essas diversidades é que se pensam e se vivenciam educações

quilombolas no Brasil, compreendendo as relações existentes no dia a dia das

pessoas, e entre as gerações: a relação entre homens, mulheres, crianças,

adolescentes, jovens e idosos e a relação deles com a terra, com o sagrado, com a

cultura.

No caso do acesso à educação escolar de alunos quilombolas, o censo escolar

de 2009, divulgado pelo Ministério da Educação em 2010, informa que são 1.696

escolas atendendo a 200.525 alunos, conforme verificamos nos quadros a seguir,

distribuídas por Estados da Federação nas Regiões Nordeste e Norte, que

concentram o maior número de escolas.

Em sua maioria, falta o direito ao acesso. Isto significa que, na maioria das

comunidades, não existem escolas. Quando está assegurado o direito ao acesso,

faltam condições para permanecer e progredir na escolarização, ou seja, geralmente

são asseguradas apenas as séries iniciais do Ensino Fundamental. Esta é a

realidade básica do funcionamento da educação formal na maioria das comunidades

quilombolas neste início de século XXI e houve pouca mudança ao final do ano de

2016.

Page 112: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

111

A região Nordeste concentra o maior número de comunidades quilombolas do

Brasil. O quadro a seguir, detalha por Estado da Região o número de escolas e o

número correspondente de estudantes.

Quadro 10 - Quantitativo de escolas e alunos Quilombolas – NE

REGIÃO NORDESTE

ESTADO NÚMERO DE ESCOLAS NÚMERO DE ESTUDANTES

Alagoas 16 4.137

Bahia 295 52.955

Ceará 22 3.707

Maranhão 501 40.997

Paraíba 21 2.693

Pernambuco 82 10.508

Piauí 44 6663

Rio Grande do Norte 17 1456

Sergipe 23 4.215

TOTAL 1.021 127.331

Fonte: (INEP, 2010).

Nestas regiões, os quilombos foram constituídos originalmente de floresta a

dentro e caatinga para dificultar o acesso a possíveis perseguições. Quando

relacionamos os indicadores educacionais destas regiões, eles revelam os mais

baixos aproveitamentos de IDH e IDEB.

Quadro 11 - Quantitativo de escolas e alunos Quilombolas - NO

REGIÃO NORTE

ESTADO NÚMERO DE ESCOLAS NÚMERO DE ESTUDANTES

Amapá 19 2.215

Pará 275 23.497

Rondônia 7 2.130

Tocantins 15 1.925

Total 316 29.767

Fonte: (INEP, 2010).

Page 113: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

112

A Região Sudeste possui 205 escolas e atende a 23.620 alunos(as), e a

Região Sul possui 75 escolas e atende a 13.539 alunos(as). A região Centro-Oeste

tem 80 escolas e atende a 10.232 alunos(as).

O Censo Escolar de 2010 amplia os números anteriores e revela que existem

no Brasil 1.912 escolas localizadas em áreas quilombolas. Desse total, 1.889 são

públicas e 23 privadas. Das públicas, 109 são estaduais, 1.779 municipais, e apenas

uma é federal. Em relação ao número de atendimento na educação básica, ampliou

de 200.579 alunos(as) no censo escolar de 2009, para 210.485 no censo de 2010.

Ao analisar os gráficos do Censo Escolar 2010, verificamos que, em que pese

a elevação no ingresso no período 2007 a 2010, há declínio na passagem do Ensino

Fundamental anos iniciais, para o Ensino Fundamental anos finais e do Ensino

Fundamental para o Ensino Médio.

No que se refere à educação escolar quilombola, a Secretaria de Educação de

Pernambuco realizou em 2006 o Primeiro Seminário Estadual de Construção de

Política Educacional Quilombola, uma parceria com a Articulação Estadual das

Comunidades Quilombolas de Pernambuco. Neste seminário, constatou-se que o

direito humano à educação para essas comunidades ainda está incipientemente

contemplado seja nas práticas curriculares do(a) professor(a) que não é quilombola,

seja até na ausência de escolas.

Este seminário ocorreu quando já estava em vigor há três anos a Lei 10.639/03.

No movimento quilombola essa Lei era referência para discutir a educação e pensar

o currículo; também subsidiava algumas discussões sobre a educação escolar

quilombola junto com a Resolução nº 1 de 2004 do Conselho Nacional de Educação.

Neste período, germinava o debate que fundamentava a necessidade de uma

educação específica para os quilombolas; o debate desenvolveu-se e aprofundou-se

no âmbito das organizações quilombolas em suas esferas nacional e locais, com

representações da sociedade e do poder público.

A Comunidade de Conceição das Crioulas é pioneira no Brasil a ter em seu

território Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, algumas inclusive

adotam práticas que o marco legal veio corroborar, de modo que

a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro- brasileira na educação básica...implica em se adotar novas posturas em relação aos elementos que compõem a história oficial do Brasil. A conexão deve ser feita tendo como referência a Lei 10.639/2003.

Page 114: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

113

Porém mesmo antes das mudanças aqui apontadas, comunidades quilombolas em vários lugares do país já desenvolviam processos educativos que podem servir de base para pensar a educação escolar

nesses territórios (SILVA, 2012, p. 2).

Esse processo envolve todas as pessoas que estão no território quilombola,

dando-lhes sentido de territorialidade na acepção de pertencer à quilo que nos

pertence. No sentido posto por Milton Santos (2001, p. 19),

a ideia de territorialidade se estende aos próprios animais, como sinônimo da área de vivencia e de reprodução. Mas a territorialidade humana pressupõe também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que, entre os seres vivos, é privilégio do homem.

Em Conceição das Crioulas, por exemplo, uma das formas da comunidade

permanecer com as pessoas presentes depois que morrem, é batizar os umbuzeiros,

atribuindo-lhes seus nomes, dessa forma os mantém integrados à natureza e à

comunidade por meio da memória, revelando um dos princípios da cosmovisão

africana onde

a crença na imortalidade do homem explica, em grande parte, a

grande importância que a morte e os ritos funerários tem na cosmovisão africana. Os ritos funerários fazem ver aos africanosos elementos que extrapolam a própria morte, ou seja, a participação do indivíduo morto no plano do sagrado no seio dos ancestrais. A vitalidade da pessoa morta é transferida para os elementos naturais que vão contribuir para a vida da comunidade (OLIVEIRA, 2006, p. 26).

Vemos que, na relação com a natureza existente no território, tudo está

integrado num ciclo de vida, onde a morte faz parte desse ciclo. A ancestralidade é

uma das dimensões que dão sentido a essa relação vida-morte. A existência material

e imaterial possui sentido simbólico, as árvores, os umbuzeiros guardam almas e por

isso têm nome.

Em esfera federal, considerando a relevância de garantir o direito à educação

às Comunidades Quilombolas, a partir de seus processos próprios e suas instâncias

organizativas nos Estados da Federação, a Câmara Básica de Educação do MEC

disponibilizou em 2011, com fins de Consulta Pública, texto referência para a

Page 115: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

114

elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola, onde afirma que, ao construir

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, o Conselho Nacional de Educação precisa ouvir atentamente o que os próprios quilombolas (comunidade, professores e gestores), o Movimento Negro, os Movimentos dos trabalhadores do campo têm a dizer (BRASIL, 2011, p. 27).

De acordo com o texto referência, no que se refere à gestão e à organização

da escola, “a Educação Escolar Quilombola deverá atentar aos princípios

constitucionais da gestão democrática que se aplicam a todo o sistema de ensino

brasileiro”, de modo que a gestão deverá ser “realizada em diálogo, parceria e escuta

atenta às comunidades quilombolas por elas atendida. Dessa forma, a gestão deverá

considerar os aspectos históricos, políticos, sociais, culturais e econômicos do

universo sócio cultural quilombola no qual está inserida” (BRASIL, 2011, p. 33).

Na organização da Educação Escolar Quilombola, deve ser considerada a

participação da comunidade quilombola na definição do modelo de organização e

gestão, bem como:

I. suas estruturas sociais;

II. suas práticas socioculturais e religiosas;

III. suas formas de produção de conhecimento, processos próprios e métodos de

ensino-aprendizagem;

IV. suas atividades econômicas;

V. critérios de edificação de escolas produzidos em diálogo com as comunidades

quilombolas e que atendem aos seus interesses;

VI. a produção e o uso de material didático-pedagógico em parceria com os

quilombos e de acordo com o contexto sociocultural de cada comunidade;

VII. a organização do transporte escolar;

VIII. a definição da alimentação escolar.

Quando numa relação com uma comunidade quilombola, percebemos a

preocupação com o cuidado com as águas, muitas vezes onde eles cultivam peixes

e de onde tiram o barro dos arredores para produzir a cerâmica decorativa ou

utilitária.

Page 116: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

115

A trajetória de escolarização dos quilombolas e o seu direito a uma educação

específica dentro do território nacional é um processo marcado por negação,

interdição e também por ruptura e fratura. De sujeito negado, violado, os quilombolas

se colocaram como sujeitos de direito e sujeitos políticos, e vêm conquistando o lugar

de sujeitos epistêmicos.

No ano de 2012, duas quilombolas defenderam dissertação e tese em

Educação: uma em Brasília, na UNB, e a outra em Curitiba, na Universidade Federal

do Paraná.

O MEC anunciou, em maio de 2013, ações afirmativas referentes a bolsas de

estudo no sentido de garantir a permanência e a progressão de alunos quilombolas

e indígenas no ensino superior. Essas são medidas de um reconhecimento explícito

de que cabe efetivamente ao Estado envidar esforços no sentido de reparar

distorções históricas da violação, fazendo jus ao Programa de Ação de Durban (2002,

p. 41), quando insta os

Estados, em seus esforços nacionais e em cooperação com outros Estados e com instituições financeiras regionais e internacionais, a promoverem o uso de investimentos públicos e privados com consulta às comunidades atingidas, a fim de erradicar a pobreza, particularmente naquelas áreas em que as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerâncias correlatas vivem predominantemente.

A medida do MEC converge com os marcos internacionais referenciais de

enfrentamento ao racismo no mundo e, no Brasil, um caminho começa a ser

compartilhado na trajetória histórica dos quilombolas por visibilidade e

reconhecimento. Esse processo rompe com o construído cientificamente,

subordinando e equiparando a condição dos negros à condição de animais,

destituindo-lhes da condição de existir humanamente.

O caminho central trilhado para desconstruir essa situação foi, no caso

brasileiro, a denúncia e o enfrentamento do racismo arraigado na sociedade,

sedimentado inclusive na produção científica do final do século XIX, ganhando

pujança num ciclo que vai dos anos 30 aos anos 70 do século XX. Como afirma

Schwarcz (1993, p. 28), “Era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se

determinavam inferioridades.” E, no caso

Page 117: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

116

brasileiro, a ciência que chega ao país no finaldo século não é tanto uma ciência de tipo experimental, ou a sociologia de Durkheim ou de Weber. O que aqui se consome são modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente popularizados enquanto justificativas teóricas de práticas imperialistas de dominação (SCHWARCZ,1993, p. 30).

Nesta década de 1930, respira-se no ambiente acadêmico brasileiro a

hegemonia das teses raciais construídas na Europa, com diversos seguidores no

Brasil, a exemplo de Nina Rodrigues, Pontes de Miranda, Tristão de Ataíde, Gilberto

Freyre, Artur Ramos, dentre outros.

A linguagem no ambiente acadêmico e em nossas escolas tem um peso

determinante, porque é o discurso hegemonicamente legítimo e válido, e aquele(a)

que não se aproxima e domina esse discurso/linguagem não é reconhecido e validado

academicamente. Nesse sentido, a leitura de Fanon (2008) sobre o peso da

linguagem nos sistemas coloniais é imprescindível para compreendermos quão

inusitado é propor uma educação escolar quilombola na política nacional de

educação, porque nos sistemas coloniais e no ambiente acadêmico atribui-se uma

importância fundamental ao fenômeno da linguagem, onde

falar é existir absolutamente para o outro...Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização (FANON, 2008, p. 33).

Ao analisarmos a relação entre a linguagem utilizada em nossas escolas e a

crítica de Fanon, ele está falando de um poder de dominação, que também é um poder

de destruição a partir da linguagem/discurso. Como falar é existir para o outro? Falar

a partir do código do outro é assumir uma cultura como peso, ou seja, a cultura que

não está em mim, mas de quem se considera ser o Ser: o colonizador, o ser superior.

Penso que essa é uma chave para compreender o que Mignolo (2008) chama

de desobediência epistêmica. Conhecer e visibilizar o que os povos silenciados

produziram e continuam a produzir a partir do seu lugar, mas que é ocultado,

invisibilizado num padrão que se impõe epistemologicamente hegemônico. Mas a

história revela que, embora silenciados e num primeiro momento recusados por causa

do seu ineditismo e ousadia, Diop, Fanon e, também, Guerreiro Ramos, tornaram-se

referências chave de epistemologias comprometidas com seu povo e sua gente, assim

como Paulo Freire, que ao tomar conhecimento da produção de Fanon, no exílio,

Page 118: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

117

sente a necessidade de reescrever a Pedagogia do Oprimido. Sobre descolonizar as

mentes num movimento de conscientização, esse movimento Mignolo chamará de

aprender a desaprender. Assumir

este tarea implica un trabajo de orientación de-colonial dirigido a quitar las cadenas que aún están en las mentes,como decía el intelectual afro colombiano Manuel Zapata Olivella, desenclavizar las mentes,como decía MalcolmX, y desaprender lo aprendido para volver a aprender, com o argumento elabuelo del movimiento afro ecuatoriano Juan García. Un trabajo que procura desafiar y derribar las estructuras sociales, políticas y epistémicas de la colonialidad, y alentar nuevos procesos, prácticas y estrategias de intervención para críticamente leer el mundo, como decía Freire, y para comprender, (re)aprender y actuar en el presente (WALSH, 2010, p. 92).

Reaprender e atuar no presente. Ao ler Fanon e Freire, vamos dialogando com

eles e percebendo intersecções; o colonialismo domina as mentes, na mesma medida

que controla os corpos. Quando Freire fala de conscientização como um passo para

ler e intervir na realidade, entendemos que o autor busca na relação com o sujeito

produzir uma ação-reflexão-ação, e esse processo, que se dá em relação com outros

sujeitos, configura-se numa ação coletiva de libertação. Aprender que é capaz,

quando numa relação de dominação, de superar a imposição da inferioridade. É

necessário frustar a ação colonial que consumia e aniquilava seu próprio objeto,

conforme indica Ki-Zerbo (2011, p. 46). “Tomar de conta e planejar”, como fizeram as

professoras, quando a técnica da gestão municipal não se fazia presente no

planejamento da formação continuada. E, desse modo, os descendentes de africanos,

decidiram iniciar, eles próprios, um discurso autônomo na qualidade de sujeitos da

história (KI-ZERBO, 2011, p. 46).

Assim, num processo histórico, os seres em foco nesta pesquisa, os

quilombolas, atravessaram mais de meio milênio nas Américas para conquistarem a

condição de serem reconhecidos como um ser humano, como pertencente a um lugar,

detentor de uma comunidade de povos e línguas, ou seja, um sujeito histórico que,

gradativamente, começa a ingressar também na condição de sujeito epistêmico.

Page 119: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

118

O intelectual negro é também aquele que indaga a ciência por dentro e problematiza conceitos, categorias, teorias e metodologias clássicas que, na sua produção, esvaziam a riqueza e a problemática racial ou transformam raça em mera categoria analítica retirando-lhe o seu caráter de construção social, cultural e política. E ainda, é aquele que coloca em diálogo com a ciência moderna os conhecimentos produzidos na vivência étnico-racial da comunidade negra. (GOMES, 2010). [...] mas quando a gente pegou autonomia de fazer, a gente já fazia do nosso jeito. (BEZERRA, 2015).2

2 Entrevista com a Coordenadora da Escola em 2015.

Page 120: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

119

5 ENTRELAÇANDO OS FIOS NO TEAR PARA A CONSTRUÇÃO DO TECIDO

QUE VESTE A PESQUISA: OU DO FAZER METODOLÓGICO

Neste capítulo, discorreremos sobre o tecer metodológico, os entrelaçamentos

realizados em Conceição das Crioulas, situada à 600 km do Recife, capital do estado

de Pernambuco. O trabalho de campo transcorreu durante o período de oito meses,

de setembro de 2015 a abril de 2016.

A pesquisa Referenciais Epistêmicos que orientam e substantcial práticas

curriculares em uma Escola Localizada na Comunidade Quilombola de

Conceição das Crioulas é um estudo de caso, fundamentado em André (2013, p.

52). Quanto à sua pertinência,

estudo de caso etnográfico deve ser usado quando se está partir do interessado numa instância em particular, isto é, numa determinada instituição, numa pessoa ou num específico programa ou currículo; quando se deseja conhecer essa instância particular em sua complexidade e em sua totalidade; quando se estiver mais interessado naquilo que está ocorrendo e no como está ocorrendo do que nos seus resultados; quando se busca descobrir novas hipóteses teóricas, novas relações, novos conceitos sobre determinado fenômeno e quando se quer tratar o dinamismo de uma situação numa forma muito próxima do seu acontecer natural.

A pesquisa foi sendo tecida entendendo, a partir de Santos Filho e Gamboa

(1997), que a pesquisa qualitativa está mais preocupada com a compreensão ou

interpretação do fenômeno social com base nas perspectivas dos atores por meio da

participação em suas vidas. Seu propósito fundamental é a compreensão, explanação

e especificação do fenômeno. Desse modo, o pesquisador precisa tentar

compreender o significado que os outros dão às suas próprias situações. A pesquisa

qualitativa trabalha com os significados que os seres humanos atribuem às suas

atitudes, trabalham as suas crenças, seus valores, suas práticas. Desse modo, nossos

entrevistados são participantes ativos no processo de pesquisa. No diálogo,

percebemos a necessidade de ampliar a escuta. O fenômeno educativo que

estávamos em busca de compreender não se podia reduzir. Ao contrário, ele se

potencializava, nos permitia fazer relações entre as coisas. Aprender a ver o que está

entre as coisas.

Na pesquisa qualitativa não há dissociação entre sujeito e objeto, pois

“nenhuma produção de conhecimento nas ciências sociais pode ignorar ou alienar o

Page 121: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

120

envolvimento do seu autor como sujeito humano imerso nas circunstâncias.” (SAID,

2001, p. 21).

Consideramos na nossa pesquisa uma concepção de conhecimento

“concebido como espaço conceitual, no qual alunos e professores constroem um

saber novo, produto sempre contraditório de processos sociais, históricos, culturais e

psicológicos.” (CUNHA, 1987, p. 24). Neste sentido, considerando os sujeitos da

pesquisa, torna-se imperativo trabalhar com o conceito de currículo como experiência,

tendo por referência a metodologia da história africana e seus princípios postos por

Ki-Zerbo (2011) e Rabaka (2009, p. 129), para quem a afrocentricidade é uma

orientação metodológica que advoga a análise da história e cultura africanas (isto é,

do continente e da diáspora) e, de maneira geral, da história e cultura mundiais por

meio de uma perspectiva africana.

Observar e ouvir o que os professores têm a dizer sobre a sua prática curricular,

quando os mesmos vem assumindo, enquanto quilombolas, uma nova postura diante

do conhecimento e da função sócio-cultural da escola, como nos diz Arroyo (2011),

nos ajudou a identificar que as experiências das práticas curriculares dos professores

quilombolas estão sendo alargadas na comunidade, envolvendo as famílias. As

crianças estão sendo preparadas para apropriarem-se do seu território numa relação

de aprendizagem onde o fazer é anterior ao conceito.

Partimos da experiência ancestral africana centrada na tradição oral e no fazer

reflexivo. Especialistas no campo têm produzido análises que indicam a

desestabilização, no século XX, do que se tornou hegemônico até então como ciência

ou conhecimento científico. As bases em que foi concebida a produção de

conhecimento científico, em termos de critérios epistemológicos, estão fraturadas e já

não encontram fértil território no campo das ciências humanas neste início de século

XXI. Ao tomarmos o currículo quilombola como experiência, construído na luta sócio-

política dos sujeitos por direito ao território, à educação, à saúde, o direito a ser em

sua plenitude, dialogamos com Kaplan (2005) no que se refere aos processos sociais

e ao desenvolvimento, quando o mesmo afirma que

Todo processo é dinâmico, um rio de ritmo e forma. É um movimento pulsante, ao mesmo tempo progresso e oscilação, um fluxo em espiral. O processo é o todo no qual momentos individuais ocorrem. Ele está subjacente, ao mesmo tempo que emerge das partes, e é invisível. Mais do que aquilo que é simplesmente visto, ele é o que é sentido,

Page 122: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

121

vivido, compreendido, intuído daquilo que se vê (KAPLAN, 2005, p. 21).

Deste modo, o estudo de caso de tipo etnográfico permite uma aproximação do

pesquisador com o campo estudado. Viver a pesquisa em sua intensidade,

compreendendo as relações construídas e os sentidos apreendidos no processo. Isto

implica em mudar o modo de olhar, observar. Na perspectiva do autor citado, “para

apreender o processo, temos de mudar o nosso modo de ser-optar por um modo que

é simultaneamente, dentro e fora, participante e observador, analista e artista.”

(KAPLAN, 2005, p. 21). Observamos que nas práticas desenvolvidas pelas

professoras a escola está situada no contexto da comunidade. O “dentro” integra o

todo, no sentido planetário, não há o “dentro-fora”, estamos todos inseridos, o que

diferencia é a forma como olhamos, sentimos, fazemos as condições em que somos

nessa relação em que a escola também está inserida, refletindo a metodologia de

história da África.

Os cadernos “Conceição das Crioulas: nosso território” e os “Princípios da

Educação Escolar Quilombola”, produzidos pelas professoras e estudantes da

comunidade, são referências de como a comunidade avançou na sua conquista do

direito a ser sujeito epistêmico e ser mais no sentido freireano de humanização.

No estudo de caso etnográfico, o tempo de permanência que o pesquisador

mantém com a situação estudada varia muito, indo de algumas semanas até vários

meses ou anos. Uma característica que determinou a utilização desse tipo de

pesquisa foi o objeto estudado e a relação da pesquisadora com os sujeitos-objeto da

pesquisa, a relação compartilhada com o campo. Neste tipo de pesquisa, o

pesquisador é o instrumento principal na coleta e na análise dos dados. A rigor, os

objetivos da pesquisa e o campo definiram o tipo de pesquisa. Trabalhamos com a

concepção de currículo como experiência utilizada por Arroyo (2013) e, nesta

perspectiva, interessam-nos os referenciais utilizados para o desenvolvimento da

prática e os significados que são dados à prática. Interessam-nos, também, o campo

de tensão e as realizações satisfatórias com as aprendizagens desenvolvidas.

Nosso referencial metodológico busca ser coerente com nosso referencial

teórico no sentido de estabelecer as pertinências do tipo de pesquisa que realizamos,

onde um princípio básico é não hierarquizar o conhecimento, e sim estabelecer um

diálogo horizontal entre eles, principalmente evidenciar referenciais que estão

silenciados há décadas.

Page 123: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

122

Nossa metodologia está tecida numa teia que articula as Africanidades e

Afrocentricidade ao Pensamento Decolonial de vertente Latino-Americana. O lócus

do enunciado é o Nordeste do Brasil, enquanto lugar epistêmico que dialoga com as

teorias hegemônicas, entretanto as questiona como único conhecimento válido para

explicar a história dos povos do sul, em especial a história dos negros e dos

quilombolas.

Nossa pesquisa, ao utilizar também o referencial teórico-metodológico situado

no pensamento africano, assume um alinhamento com a produção do conhecimento

crítica, que não se propõe a negar o conhecimento hegemônico, mas afirma que

existem formas outras de produzir conhecimento.

Neste contexto e abordando sobre o debate entre pesquisa qualitativa e

pesquisa quantitativa, André (2013, p. 11) afirma que “essa dicotomia deve ser

superada para dar lugar a importantes questões sobre a natureza do conhecimento

científico e sua função social.”

Entendemos que essa afirmativa nos convida a uma reflexão que, enquanto

conhecimento situado e contextualizado, nenhuma teoria, paradigma, comporta em si

uma realidade, pois esta última será sempre multifacetada, dinâmica. O conhecimento

humano, enquanto contextualizado e histórico, não se constrói apenas do novo; o

velho está no campo e pode ser tensionado. É do conflito, da tensão entre o novo e o

velho que as possibilidades de mudanças podem ser refletidas, construídas. Por isso,

a segunda afirmativa de André (2013) no sentido de nos interrogar sobre a função

social da pesquisa faz sentido: Pesquisar para que? ou, como interroga Grosfoguel

(2007, p. 34),

Conhecimento para que e para quem? É possível produzir conhecimentos neutros em uma sociedade dividida em termos raciais, sexuais, espirituais e de classe? Se a epistemologia não apenas tem cor mas também tem sexualidade, gênero, espiritualidade cosmológica, classe etc., não é possível assumir o mito ou a falsa premissa da neutralidade e objetividade epistemológica (o “ponto zero” da “egopolíticado conhecimento”) como pretendem as ciências ocidentais.

Pesquisar sobre quilombolas, sujeitos políticos constituintes como afro-

brasileiros, situados em territórios do campo e nas periferias urbanas, implica num

reconhecimento de sua experiência histórico-cultural e política, numa capacidade de

ter percorrido quatro séculos de resistência física, mental, cultural, econômica,

Page 124: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

123

cosmológica e epistêmica, para tornar-se visível e reconhecido pela sociedade e

Estado Brasileiro.

A diferença colonial é um dos conceitos que nos ajuda a compreender que os

quilombolas, mesmo sendo afetados historicamente pelas colonialidades,

conseguiram criar por dentro do sistema-mundo moderno capitalista formas de

enfrentamento e, ao mesmo tempo, de perspectiva de autodeterminação.

Nessa perspectiva, um princípio central da emancipação conquistada pelos

quilombolas em Fanon (2008) Cézaire (2008), King (2011) e Freire (1992) é a

consciência crítica do sujeito sobre o contexto em que vive. Nesse processo,

desconfia e desmonta os mitos que naturalizam a exploração e o assujeitamento do

ser, retirando sua condição de existente.

Articulados à consciência critica estão a identidade cultural, sob a qual

discorrem Cézaire (2008), Silva e Gonçalves (2003); a condição de contestar é objeto

das considerações de King (2011) e Freire (1992, 2011). Já a autodeterminação é

discutida por King (2011) e Morrin (2007). Na histórica construção dos quilombos no

Brasil, essas referências estão também presentes.

Verificaremos como iniciativas no campo educacional, produzidas pelos

afrodescendentes quilombolas, proporcionaram nas últimas décadas uma

regulamentação por parte do Estado Brasileiro de toda uma legislação e políticas

afirmativas voltadas para instituir o direito à educação dos quilombolas. Nesse

contexto, a ampliação da conquista educacional em Conceição das Crioulas é reflexo

desse processo.

5.1 Os critérios da escolha do campo da pesquisa

Considerando os nossos objetivos e nosso problema de pesquisa, buscamos

um campo que desenvolvesse na prática a educação escolar quilombola, posta nas

Diretrizes Curriculares Nacionais. Os critérios que nos levaram à Conceição das

Crioulas relacionam-se à inovação da prática curricular e gestão educacional

quilombola, antes de terem sido promulgadas as Diretrizes Curriculares Nacional para

a Educação Escolar Quilombolas em 2012. A partir da experiência educacional em

Conceição das Crioulas, as professoras e gestoras das escolas na comunidade

participaram do processo de elaboração das Diretrizes Curriculares. Interessava-nos

Page 125: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

124

saber como e por quais meios a comunidade conseguiu fazer efetivar direitos que

ainda não estavam postos na educação nacional.

Um outro critério referiu-se à temporalidade, pois buscávamos uma

comunidade pioneira e das mais antigas que expressasse a memória ancestral em

sua identidade territorial, e que esse processo refletisse nas práticas educativas.

Conceição das Crioulas existe desde 1802, essa data consta do laudo antropológico,

e é uma das comunidades mais antigas em Pernambuco.

É pela capacidade de ser vanguarda na organização local e nacional dos

quilombolas, pela experiência conquistada no campo da educação que em 1995,

antes mesmo de serem reconhecidos pelo Governo Federal como quilombos, que

Conceição já tinha conquistado a construção da primeira Escola do 6º ao 9º ano em

seu território, a Escola Professor José Mendes. O nome da escola se refere ao

primeiro professor negro da comunidade.

A escola Professor José Mendes, além da oferta do ensino a partir do 6º ao 9º ano, abrigou, desde 2003, o ensino médio por meio de extensão da Escola Estadual Carlos Pena Filho, localizada na sede do município de Salgueiro. A conquista do ensino médio se deu por uma forte mobilização da comunidade e pelo fato de ter aumentado muito o número de alunos(as) a ser deslocado para a sede do município em condições precárias das estradas de difícil acesso, transporte escolar inadequado e falta de segurança, entre outros fatores que prejudicavam a aprendizagem dos alunos(as), como o tempo de deslocamento das comunidades até a sede (SILVA, 2012, p. 19-20).

Conceição das Crioulas tem em seu território, além da Escola Professor José

Mendes, a Escola José Néu, Bevenuto Simão, no Sítio Paula, e a Escola Estadual de

Ensino Médio, Professora Rosa Doralina Mendes, inaugurada em 2012. Como se vê,

Conceição conquistou, em 2003, o direito de ter no seu território a educação básica

com estrutura e currículo próprio, antes mesmo da legislação de 2012.

5.1.1 O campo da pesquisa

Nosso campo de pesquisa foi a Comunidade Quilombola de Conceição das

Crioulas-Sítio Paula, distante 6 km da Vila Centro de Conceição, localizada no II

Distrito de Salgueiro, Sertão Central de Pernambuco. Distante do Recife, cerca de 600

km. De Salgueiro para Conceição são 42 km, dos quais 27 km são de estradas de

terra batida, com muito pedregulho. O território tem uma extensão de

Page 126: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

125

aproximadamente 18 mil hectares e está localizado próximo aos municípios de

Mirandiba, Carnaubeira da Penha e Belém do São Francisco. Possui, de acordo com

o censo de 2010, uma população de 56.629 mil habitantes.

Ao longo do período de campo, nosso tempo de permanência na comunidade

variou de dois a três dias em cada viagem. Ao total foram 6 viagens, onde fomos

acolhidos tanto em residências de lideranças, como de moradores comuns que nos

convidavam.

Na primeira viagem, no dia 10 de setembro de 2015, passamos dois dias na

comunidade. Viajamos na sexta-feira à noite, às 23:00h, e chegamos em Salgueiro no

dia 11, às 07:00h da manhã. Na rodoviária, uma pessoa da comunidade nos esperava

para viajarmos os 42 Km de Salgueiro até Conceição das Crioulas. No sábado, depois

do café da manhã na casa de uma professora, onde a mesma nos ofereceu café, leite,

pão, mortadela, bolacha, nos dirigimos para a AQCC. De lá, sairíamos para um

reconhecimento de área: fomos à Pedra do Matame, uma pequena serra, de onde se

pode enxergar do alto uma área do território, onde, naquele período, a escola junto

com a comunidade estava realizando um conhecimento da extensão da área com

vistas a desenvolver o processo de gestão do território.

Foto 01 - Subida na Pedra do Matame (A pesquisadora, Liderança e Professoras)

Fonte: André Araripe (2015).

Page 127: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

126

A gestão do território envolve as escolas, a Associação do Sítio Paula e a

AQCC como guardiã do território e organização política que exerce a representação

dele. No domingo, participamos da Assembleia da Comunidade no Sitio Paula, onde

apresentamos o nosso interesse de pesquisa e solicitamos autorização para

desenvolvermos nosso trabalho na comunidade e na escola. A assembleia nos

aceitou por aclamação, permitindo que desenvolvêssemos nosso trabalho no tempo

que fosse necessário.

Foto 02 - Associação de Moradores do Sítio Paula, Conceição das Crioulas-PE

Fonte: Ravi Tsakile (2016).

Para realizar a entrevista com a coordenadora da escola, entregamos o ofício

de encaminhamento do PPGE-UFPE que nos apresenta e apresenta nosso interesse

de pesquisa. Ela foi bastante receptiva e, neste mesmo dia, realizamos a primeira

entrevista no dia 11 de setembro de 2015, que durou 40 minutos. Depois que

entrevistamos a coordenadora, realizamos no dia seguinte, 12 de setembro,

entrevistas com três professoras da escola campo de pesquisa situada no Sítio Paula.

Viajamos mensalmente durante o período de coleta. Ao regressar ao Recife,

transcrevíamos as entrevistas, organizávamos as informações, anotávamos questões

a serem perguntadas, esclarecidas para o retorno ao campo no mês seguinte. Assim

procedemos até concluir o trabalho de campo em abril de 2016.

As pesquisas referentes a quilombos no Estado de Pernambuco têm uma

centralidade na Região do Sertão, onde estão localizadas, até 2016 a maior parte das

152 comunidades quilombolas existentes no estado. Esse número está divulgado no

Page 128: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

127

Plano Pernambuco Quilombola-PPQ (2016-2019), que contou com lançamento

público pela Secretaria de Desenvolvimento Social Criança e Juventude-SDSCJ, em

21 de março de 2016. Em termos gerais, a CONAQ informa que existem no Brasil

cerca de três mil comunidades quilombolas. Em que pese essa estimativa de números

gerais, o Brasil ainda não produziu um censo quilombola. Não se sabe com segurança

quantas comunidades existem no território Nacional.

Conceição das Crioulas é uma comunidade que tem contribuído

significativamente com a produção de conhecimento sobre educação e outros campos

de conhecimento relacionados à sua trajetória histórica como a questão do campo

jurídico, do direito ao território, à questão da arte e intercâmbios que articulam

educação, cultura e comunicação.

No início dos anos 2000, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas-

AQCC, numa parceria institucional com o Centro de Cultura Luiz Freire - CCLF,

produziu um jornal chamado “Crioulas: A Voz da Resistência”, jornal da comunidade

que divulgava a luta quilombola de Conceição e de outros quilombos e que tinha

utilização nas escolas como material didático e também em toda comunidade, por

causa de suas sessões com palavras cruzadas cujo conteúdo era centrado na história

da comunidade e informava sobre as lideranças, sua experiência na comunidade,

informava sobre os eventos, trazia receitas.

Foto 03 - Jornal Crioulas: a voz da resistência 2009

Fonte: (CCLF, 2009).

Page 129: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

128

Na sessão “Você Sabia?”, o jornal trazia informações relevantes para que a

comunidade tivesse conhecimento. Na Sessão “Agenda”, informava da ação política

local, regional e nacional. Esse jornal refletia a estrutura organizacional da AQCC e

difundia o conhecimento produzido no campo da educação, cultura, organização e

patrimônio. Neste número, está em pauta a luta pelo território e a discussão do Projeto

Político Pedagógico.

A produção de conhecimento em Conceição das Crioulas gera interesse na

produção de conhecimento. Esse movimento acontece de dentro da comunidade para

o exterior, e chega do exterior através do interesse que tem produzido além-mar.

Page 130: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

129

Quadro 12 - Teses e Dissertações sobre Conceição das Crioulas

AUTOR(A)

TÍTULO

TIPO DE PRODUÇÃO

INSTITUIÇÃO

ANO

SILVA, Delma Josefa

Referenciais Epistêmicos que

orientam e substanciam práticas curriculares em uma

Escola localizada na Comunidade Quilombola de

Conceição das Crioulas

Tese

UFPE Doutorado em

Educação

2017

NASCIMENTO,

Marcia Juscineide

Protagonismo na Pedagogia

Crioula

Dissertação

Universidade de

Brasília-UNB

2017

FARIA, Elisabete

Mónica Moreira

Educação Artística Diferenciada: contando e

recontando a história. Aprender a fazer com∕para∕na Comunidade quilombola de

Conceição das Crioulas

Tese

FBAUP-

Faculdade de Belas Artes da

Universidade do Porto

2016

SILVA, Maria

Diva da

Seis Mulheres Negras, três léguas em quadra de terra: uma história eternizada em

nossas memórias

Dissertação

Universidade de

Brasília-UNB

2017

SILVA, Givania Maria

Educação como processode Luta política: a experiênciade “educação diferenciada” do

território quilombola de Conceição das Crioulas.

Dissertação

Universidade de Brasília-UNB

2012

PAIVA, J.Carlos

Arte/

Desenvolvimento

Tese

FBAUP- Faculdade de Belas Artes da

Universidade do Porto

2009

ARAÚJO, Eduardo F.

Agostinha Cabocla: por três

Léguas em quadra – a temática quilombola na perspectiva global-local.

Dissertação

UFPB - Mestrado em Ciências

Jurídicas

2008

Fonte: Delma Silva (2017).

No que se refere a formação inicial de professores, dos anos 2000 aos dias

atuais, o número de professoras licenciadas foi ampliado significativamente na

comunidade. A produção de conhecimento a partir das práticas desenvolvidas foi

Page 131: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

130

aprovada em TCCs, se transformou em Projetos de Pesquisa de Especialização,

Mestrado e Doutorado. Somente em 2016, mais de oito professores e professoras

concluíram a monografia do Curso em Educação Intercultura no Pensamento

Decolonial chancelado pelo IFPE de Floresta.

As informações no quadro da página anterior, ilustram as produções

acadêmicas no Brasil e em Portugal de teses e dissertações. A relação com a

Universidade do Porto e o Grupo Identidades, que iniciou em 2003, continua até os

dias de hoje.

5.1.2 A Escola campo de pesquisa

Em que pese todas as conquistas no território de Conceição das Crioulas até

2007, uma das quatro escolas, situada no Sítio Paula, estava numa situação de

extrema precariedade no que se refere ao espaço físico e na definição do Projeto

Pedagógico e Planejamento: a Escola Bevenuto Simão. Tivemos a curiosidade

epistêmica de conhecer o processo de conquista pela comunidade desta escola, pois,

em 2007, quando a comunidade assumiu a gestão, a escola não tinha porta, nem

muro.

Foto 04 - Escola Municipal Bevenuto Simão

Fonte: Marinalva Rita Bezerra (2007)

Era muito comum o material escolar atrasar. Diante de tal fato, as professoras

iam com as crianças para o ar livre, escolher gravetos no campo e utilizavam os

mesmos para escrever na terra batida.

Page 132: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

131

Foto 05 - Criança escrevendo com graveto

Fonte: Marinalva Rita Bezerra (2016).

5.1.3 A origem do nome e caracterização da Escola

O nome Bevenuto Simão de Oliveira foi dado à escola em homenagem ao

senhor que era parteiro e tocador de pífano na comunidade, morador do Sítio Paula.

A Escola tem quatro turmas, 89 estudantes, três funcionários efetivos, uma auxiliar de

serviços gerais, uma merendeira e uma professora e quatro funcionários contratados,

sendo três professoras e a coordenadora da escola.

Quadro 13 - Caracterização da Escola

CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA CAMPO DE PESQUISA

TURMAS

ESTUDANTES

PROFESSORES

FUNCIONÁRIOS

ADMINISTRATIVOS

COORDENAÇÃO

4 89 4 3 1

Fonte: Delma Silva (2016).

A escola possui duas salas de aula, funcionando nos horários da manhã e da

tarde. Um laboratório de informática com cinco computadores conectados à internet

de alta velocidade. Um depósito para merenda, com freezer para armazenar o que é

necessário, como carne e peixe, por exemplo, e um depósito para material de limpeza.

Na sala onde funciona a Educação Infantil, há um parque no seu interior, com um

escorrego e um girador que as crianças chamam de “cuscuz” ou “pião.” Elas sobem

no brinquedo e ele é girado.

Page 133: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

132

Depois que a comunidade passou a assumir a gestão da escola em 2007, com

os recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola, elas conseguiram fazer uma

reforma, onde pintaram toda a escola, construíram um muro e realizaram atividades

didáticas para pintá-lo. O processo, conta a coordenadora, foi feito com a comunidade

através de uma atividade de incentivo à leitura.

Fizeram um concurso de leitura na escola. Cada turma escolhia um livro e, a

partir dessa leitura, da identificação com a leitura, eles contavam a história para a

comunidade. Depois de contar a história para a comunidade, procederam a escolha

da obra que seria desenhada no muro da escola.

O resultado nós vemos na foto a seguir, com imagens alusivas ao livro de Ana

Maria Machado, intitulado Menina Bonita do Laço de Fita, escolhido pela comunidade

para ilustrar o muro externo da escola.

Foto 06 - Escola Bevenuto Simão em 2015

Fonte: Marinalva Rita Bezerra (2015).

Page 134: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

133

Foto 07 - Escola Bevenuto Simão em 2015 - Visão ampla

Fonte: Marinalva Rita Bezerra (2015).

5.2 Os critérios de escolha dos sujeitos e procedimento de coleta de dados

O primeiro critério de escolha dos sujeitos da pesquisa foi referenciado na

característica do sujeito político quilombola, ou seja, a referência de identidade

organizativa institucionalizada. Chegamos ao território de Conceição das Crioulas

pelas vias institucionais.

Contactamos a Comissão da Educação da AQCC e enviamos o documento de

apresentação do PPGE-UFPE, onde nos apresentava, informava o título e os

objetivos da pesquisa.

Na Assembleia da Associação do Sítio Paula, na presença da comunidade nos

apresentamos e recebemos o consentimento para iniciarmos a pesquisa. Informamos

que queríamos ouvir os professores da escola. Na escola campo de pesquisa, o único

Page 135: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

134

homem era um substituto e estava há pouco tempo. Ele não fez parte das entrevistas

por esse motivo.

As entrevistas foram gravadas e realizadas com todas as professoras da escola

do nosso estudo de caso, e alargada para outras professoras das outras escolas. Por

isso, ao longo do texto nos referenciamos às professoras, flexionando o gênero, pois

todas as entrevistadas que nos relataram suas experiências foram mulheres.

5.2.1 Os sujeitos da pesquisa: lideranças, professoras, familiares, gestora

Considerando que a ancestralidade está na base das Africanidades, os

primeiros sujeitos de saberes com os quais buscamos contato na comunidade foram

as lideranças: os mais velhos, as professoras. Através delas, buscamos indicações

para chegar às famílias. Antes disso, porém, tivemos um encontro com uma liderança

da comunidade no contexto da realização do IV Encontro de Comunidades

Quilombolas de Pernambuco, realizado em agosto de 2015, no município de Moreno.

As lideranças e as professoras são agentes primordiais para compreendermos

como se processam a reprodução, a transgressão e a inovação da prática curricular

do professor quilombola. Selecionamos esses dois sujeitos, e ampliamos a escuta

incluindo familiares e a gestão.

5.2.2 As lideranças

As lideranças reconhecidas pela comunidade são as pessoas de experiência,

que viveram, sabem e contam as histórias mais antigas. São essas lideranças que

recebem as crianças em suas casas, e também vão à escola contar histórias vividas

na comunidade. Há nesse processo formação da segunda geração de líderes de uma

nova geração, netos ou filhos desses mais antigos que começam a desenvolver

trabalhos no âmbito da cultura tradicional. Recentemente, por exemplo, um jovem

realizou uma oficina para aprender a confeccionar tambor para a banda de pífano,

envolvendo os jovens da comunidade. É a tradição se renovando.

Participamos da Assembleia da Comunidade do Sítio Paula na manhã do

domingo 12 de setembro de 2015. Ali fomos apresentadas pela líder da comunidade,

Presidente da Associação, Dona Rita, uma senhora evangélica que abre a assembleia

com uma mensagem da bíblia. Dona Rita afirma nessa abertura que a fé tem tudo a

Page 136: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

135

ver com o que eles estão fazendo, porque eles estão procurando melhoras para a

vida, e isso agrada a Deus.

Logo após essa abertura, houve a apresentação de quem não era conhecido

da comunidade. Apesar de eu ter uma relação com a Vila Centro desde o ano de

2000, eu nunca tinha estado no Sítio Paula. Para algumas pessoas da comunidade,

eu era desconhecida e fui convidada a dizer o que estava fazendo ali. Nos

apresentamos, informamos que era uma satisfação estar ali, agradecemos pelo

acolhimento, pela maravilha que foi poder ter subido na Serra do Matame no dia

anterior com André Lino, André Araripe, Fabiana Vecezlau, Evânia e Loudinha.

Apresentamos, então, os objetivos da nossa pesquisa e perguntamos se a

comunidade consentia o desenvolvimento da mesma, se era do interesse deles que

o trabalho fosse desenvolvido.

A comunidade presente na assembleia aprovou o desenvolvimento do trabalho.

Estavam familiarizados com pesquisadores de diversos campos do conhecimento os

procurarem para desenvolverem pesquisa. Fui acolhida e me disponibilizei para

colaborar naquilo que a comunidade refletisse que seria possível interagirmos.

5.2.3 As professoras

As professoras são reconhecidas pela comunidade como agentes que valorizam as

crianças, suas famílias e o conhecimento produzido na comunidade. Elas conquistaram a

referência de seres de autoridade. No sentido original do termo no latim “auctus”, particípio

passado de “augere” que significa aumentar, fazer crescer. Autoridade no sentido de fazer

crescer, de elevar. As professoras na escola campo de pesquisa fizeram crescer a

participação, a presença e a atuação das famílias na escola. Elevaram com sua práxis a

autoestima de ambos e também a sua, como seres capazes de fazer a diferença.

Quando iniciamos as entrevistas com as professoras, percebemos que a

prática curricular delas inclui familiares, envolve pessoas da comunidade, envolve

pais e mães das crianças da escola. Acrescente-se que chegamos até essas pessoas,

pois elas foram identificadas e referenciadas pelas professoras e pela coordenadora

como sujeito de saber e que tem dado uma contribuição efetiva à escola e ao processo

de aprendizagem das crianças.

Estabelecemos um diálogo com as professoras, mas não exclusivamente,

conversamos com responsáveis e com a coordenadora da escola. Através das

Page 137: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

136

professoras do Sítio Paula, alargamos a escuta para ouvir outras professoras no

território. As professoras que compartilham o saber e fazer a partir da comissão de

educação da AQCC. Assim, nossa escuta expandiu-se para mais duas professoras,

citadas como referência de diálogo das professoras da escola.

Ao final, ouvimos cinco professoras, todas com formação superior: as três da

escola campo de pesquisa, e as duas das escolas da Vila Centro, sendo que uma é

licenciada em História e a outra é licenciada em Letras. Todas elas são quilombolas

nascidas em Conceição das Crioulas, casadas e com filhos.

Quadro 14 - Caracterização dos sujeitos

Professora

Idade em

anos

Formação

Estado Civil

Tempo de Serviço em anos

Turma que

Ensina

Contrato em horas

P1 43 Magistério e Pedagogia

Casada 8 3º 150

P2

38

Magistério e Especialista em Psicopedagogia

Casada

4

150

P3

26

Magistério Cursando

Licenciatura

Casada

4

150

P4

32

Magistério, Licenciatura em

Letras, Cursando

Especialização

Casada

8

8º e 9º

200

P5

30

Magistério, Licenciatura em

História

Casada

8

200

C 46 Magistério e Especialista

Casada 18 --------

150

Fonte: Delma Silva (2016)

As professoras são graduadas, são quilombolas e também são vulneráveis pela

situação que afeta significativamente os professores no país: o tipo de contrato

assinado. A maioria é contratada e não concursada, embora o município seja pioneiro

no Brasil na realização para concurso para professores quilombolas. No quadro

informado pelo INEP (2013), trouxemos os números referentes à realidade no país e

em Pernambuco apresentados no quadro abaixo:

Page 138: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

137

Quadro 15 - Situação funcional docentes em áreas de Quilombo

REGIÃO

GEOGRÁFICA

e UF

Concursado/

Efetivo/

Estável

Contrato

Temporário

Contrato

Terceirizado

Contrato

CLT

Não

Informado

TOTAL

Brasil 7.184 555 67 80 110 13.196

Pernambuco 238 222 4 ---- 29 493

Fonte: (INEP, 2013, p. 40).

A situação em Pernambuco, de acordo com os números do INEP, é

diferenciada: a maioria é concursada, ao contrário do que se verificou na comunidade.

Isso se deve ao fato de que a maioria dos profissionais que estão lotados nas escolas

quilombolas não são quilombolas e, nesse aspecto, Conceição das Crioulas tem o

diferencial: todos os professores são quilombolas.

5.2.4 Os familiares

Na comunidade quilombola, escola e família estabelecem diálogo e troca. A

escola educa as crianças, as famílias também ensinam professores com seus

exemplos práticos no trabalho e na relação estabelecida com as próprias crianças.

Portanto, não há uma dissociação entre escola-comunidade. Existe uma

complementação nessa relação, de modo que “a comunidade escolar participa da

gestão da escola, participa da construção do calendário e de outras propostas

curriculares, adaptando à nossa realidade” (CCLF, 2009, p. 19). Essa prática

corresponde ao que está posto nas Diretrizes Curriculares da Educação Escolar

Quilombola e também nos princípios da história da África.

Ao desenvolver práticas que incluem o fazer do cotidiano, as crianças e as

famílias atribuem sentido à escola, sentido de pertencer, sentido de ser no fazer do

cotidiano. Nesta perspectiva, a escola não é um espaço de colonização. A escola é

um espaço de troca, compartilhamento e aprendizagem. Escola assim é encontro, é

ponte, é relação que mantem viva a ancestralidade em sua dinâmica própria de

ressignificar-se.

A ancestralidade dialoga com a contemporaneidade na construção de

caminhos para efetivação de conhecimento novo, nas idas e vindas ao campo de

pesquisa, pois “cada vez que o cientista social retorna às fontes vivas de seu saber,

àquilo que nele opera como meio de compreender as formações culturais mais

Page 139: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

138

afastadas de si, faz filosofia espontaneamente” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 222). O

que pretendemos dimensionar aqui é o rigor utilizado na pesquisa e que não prescinde

de leveza e atenção. Numa comunidade onde as pessoas já foram exploradas há

séculos, que foram levadas a desacreditarem das boas intenções na chegada de

pesquisadores, pois, muitas vezes, o retorno do trabalho nunca foi feito. Nosso

primeiro e principal exercício na chegada, ou retorno, à Conceição das Crioulas foi

estarmos disponíveis para exercitar a escuta atenciosa e colaborar com o que

estivesse ao nosso alcance.

5.2.5 A gestora

A gestora da escola campo de pesquisa está nessa função desde 2007.

Quando a comunidade se libertou das escolas classificadas pela gestão municipal

como “isoladas”

afinal nenhum grupo social encontra-se em isolamento geográfico ou se constituiu numa unidade cultural homogênea. Trata-se, sim, de uma dinâmica mais ampla envolvendo confrontos, conflitos, negociações e silenciamento (CARRIL, 2017, p. 546).

A comunidade assumiu a condução de sua emancipação e deu início ao seu

currículo diferenciado. A gestora é casada, mãe de quatro filhos. Em 2016, conquistou

o grau de Especialista em Educação Intercultural no Pensamento Decolonial, no IFPE-

Floresta.

Nossa primeira entrevista com a gestora foi sem roteiro prévio. Começamos

pedindo para que ela falasse da formação que teve e de como elas conseguiram

assumir a gestão da escola e em qual contexto isso aconteceu. Conversamos mais

de quarenta minutos, sentadas numa das salas da Escola José Mendes, na noite do

dia onze de setembro de 2015. Ao nosso lado, o filho de Loudinha, Alysson exercendo

assistência na gravação. Nesse envolvimento, se aprende e se ensina. Nesse primeiro

exercício de escuta, percebemos que a Coordenadora da escola lista vários passos

que elas deram desde 2006-2007 no sentido de fazer a educação. O primeiro foi

“desagarrar do Planejamento Pedagógico das ‘Escolas Isoladas’.” Explicaremos e

aprofundaremos essa situação mais adiante, aqui vamos pontuar estruturalmente o

que elas conseguiram do ponto de vista do planejamento pedagógico: Reunião para

Page 140: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

139

elaboração do calendário letivo; Elaboração do Plano de Ação da Escola;

Planejamento e aula atividade.

No que se refere ao Currículo da Escola, elas refletiram que precisavam de um

currículo que atendesse às especificidades da escola. Refletiram em conjunto que a

técnica da secretaria, quando chegava, trazia tudo pronto, as pastas com tudo dentro,

dizendo até como fazer. “Dói a imagem de professor que carregamos, a imagem de

professor que a mídia e os governantes projetam sobre os mestres da Escola Básica”

(ARROYO, 2000, p. 13). Chegar com tudo pronto é o descrédito na capacidade do

professor. E enfrentar essa imagem foi um marco para a conquista da gestão e

construção do projeto político da escola.

As professoras decidiram “tomar de conta” e se organizar para planejar o fazer,

dando um significativo passo na opressão pedagógica à qual vinham sendo

submetidas e

quem melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela (FREIRE, 2013, p. 42-43).

As professoras compreenderam que os métodos, até então dominantes,

conduziam a dominação de consciência e que essa “pedagogia dominante é a

pedagogia das classes dominantes e os métodos da opressão não podem servir à

libertação do oprimido” (FIORI, 2013, p. 11). E decidiram começar pensando e

discutindo sobre os problemas que a comunidade estava enfrentando naquele

momento. Foram produzir um diagnóstico da realidade e identificaram: o problema era

a escassez de água. Foi um ano de uma seca extrema. A partir desse diagnóstico,

fizeram o Projeto Águas, o primeiro projeto elaborado, sem a interferência das técnicas

da gestão municipal.

Até hoje trabalham por projeto de acordo com a necessidade escolar e da

comunidade. A pesquisa na comunidade é constante. Elas sistematizam o que

estudam e fazem uma devolução para a comunidade nas reuniões da Assembleia da

Associação do Sítio Paula, a mesma que eu consultei para obter a autorização para

o desenvolvimento da pesquisa.

Page 141: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

140

A gestão da escola tem uma visão educativa que articula os marcos

referenciais legais em favor do desenvolvimento da comunidade. Faz parte do

cotidiano da escola estudarem tanto a LDB, quanto as Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e os Princípios da Educação

Escolar Quilombola.

Reconhecer a importância da família no envolvimento com a escola é um

diferencial que envolve e mobiliza a relação da comunidade com a escola.

A coordenadora é uma autoridade para as professoras. Todas elas

reconheceram o compromisso com a educação que vem produzindo mudanças

positivas. Reconheceram que ela é uma incentivadora pela busca de uma educação

de qualidade para as crianças da escola. Para isso, ela não mede esforços. É

mobilizadora, estudiosa, organizada. Ao longo desses anos, ela tem todos os projetos

digitados e com o material guardado à espera de ser sistematizado, organizado num

livro talvez? Ela conjectura.

5.3 A coleta e a organização dos dados

Anunciamos anteriormente como se deu nosso primeiro contato com os sujeitos

da nossa pesquisa. Em termos de procedimento para a coleta dos dados, fizemos

contato com as professoras e lideranças da comunidade e aguardamos que

autorizasse nossa entrada em campo.

Considerando o contexto da comunidade e em especial das gestoras que

contatamos, que estavam em processo formativo fora do território, nossa entrada em

campo, embora tenha sido iniciada em termos de diálogo em junho de 2015, nossa

primeira viagem à Comunidade aconteceu no dia 10 de setembro, permanecendo na

comunidade dias 11 e 12 de setembro.

Em nossa entrada no campo de pesquisa, fizemos registros em nosso diário de

campo. Esse registro nos auxiliou no momento da escrita, onde pudemos também

utilizar elementos do vivenciado nas relações cotidianas para nossa análise.

Participamos de reuniões e de atividade de campo no território, com a finalidade

de definir a gestão do mesmo. Nesse momento em que fomos à Serra do Matame,

guiados por Andrelino, as fotografias tiradas foram precedidas de autorização, pois as

mesmas poderiam vir a ser utilizadas na tese.

Page 142: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

141

A fotografia aqui utilizada tem o objetivo de captar o momento de um fato

ocorrido na comunidade, de uma ação desenvolvida, ou para ilustrar o lugar. Além da

subida na Serra do Matame, fotografamos na Assembleia do Sítio Paula no dia 12

desetembro, onde fomos convidados a nos apresentar e falar do nosso trabalho, e

perguntar se eles concordavam que eu desenvolvesse a pesquisa. Utilizamos também

a entrevista semiestruturada, compreendendo que na utilização da mesma é preciso

que o entrevistador(a) não interfira nas respostas do(a)entrevistado(a), limitando-se a ouvir e gravar a fala dele(a).Quando não entender uma determinada frase, deve solicitar que o(a) entrevistado(a) repita o que foi dito anteriormente. Jamais deve direcionar as respostas, ou suscitar dúvidas, como você quis dizer que...? (OLIVEIRA, 2008, p. 86).

A entrevista semiestruturada nos possibilitou a compreensão das

especificidades culturais mais profundas de nossos entrevistados em comunidades

quilombolas. Entendemos que esta é uma das ferramentas que nos possibiilitou

atribuir núcleos de sentido à fala do(a) entrevistado(a).

Significar é sempre significar algo a respeito do mundo, para alguém ou com alguém. [...] o sentido é produzido por estabelecimento de relações, dentro de um sistema, ou nas relações com o mundo ou com os outros. (CHARLOT, 2000, p. 56).

Neste ponto, o exercício de escuta permite que as subjetividades sejam

expressadas; as memórias, as experiências, estão bem presentes nas falas e nas

práticas das entrevistadas.

Para a organização e análise dos dados, utilizamos a técnica de análise de

conteúdo de Bardin (2011) onde iniciamos pelo agrupamento das respostas, tendo

por referencia nosso roteiro de entrevista. Após esse agrupamento, procedemos a

identificação dos núcleos de sentido. Nessa fase, emergiram os temas e procedemos

uma segunda organização dos dados, realizando a análise à luz do referencial teórico.

Em termos ilustrativos, a pesquisa teve o fluxo da figura a seguir no que se refere aos

instrumentos utilizados.

Page 143: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

142

Figura 01 - Fluxograma da pesquisa

Fonte: Delma Silva (2016).

Em todos os momentos de nossa estada no campo, estamos em estado de

observação. Essa atitude é chave para perceber o que acontece ao redor, as

motivações de algumas pausas, o que fica também nas entrelinhas. A observação é

um diferencial no estudo de caso. André (2013) afirma que, segundo Stake (1995), as

observações dirigem o pesquisador para a compreensão do caso. Deve ser dada

atenção especial ao contexto, a observação deve incluir mapas, desenhos, fotos. Não

só o contexto físico deve ser descrito, mas o familiar, o econômico, o cultural o social,

o político, todos aqueles que ajudam a entender o caso (ANDRÉ, 2013, p. 100). É

preciso portanto que

o pesquisador vá além, ultrapasse a mera descrição, buscando realmente acrescentar algo ao que já se conhece sobre o assunto. Para isso terá de recorrer aos fundamentos teóricos do estudo e às pesquisas correlacionadas, estabelecer conexões e relações que lhe permitam apontar as descobertas, os achados do estudo (ANDRÉ, 2013, p. 101).

Essa organização e análise dos dados nos possibilitou percorrer os objetivos e

apresentar os resultados da tese que discorremos a seguir.

Entrevistassemiestruturadas

OBSERVAÇÃO

Entrevistas intensiva

Page 144: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

143

Qualquer adjetivo seria fraco para qualificar a importância que a tradição oral tem nas civilizações africanas. Nelas, é a palavra falada que se transmite, de geração em geração, o patrimônio cultural de um povo [...] Tudo isso é guardado pela memória coletiva, arquivo de sua história. (BÁ, 2010, p. 168).

O autor que a gente mais se identifica é Paulo Freire, a gente se acha muito nos textos dele. Principalmente com relação ao que valoriza o conhecimento prévio dos estudantes. O que eles já trazem de casa e a partir do que eles já trazem de casa, a gente faz as nossas atividades diárias. (BEZERRA, 2015).3

3 Entrevista com a Coordenadora da Escola em 2015.

Page 145: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

144

6 FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORAS QUILOMBOLAS:

AFRICANIDADES COMO REFERENCIAL EPISTÊMICO QUE ORIENTAM E

SUBSTANCIAM AS PRÁTICAS

Nesta sessão, contextualizaremos a formação inicial das professoras, levando

em conta o acesso ao ensino superior para quilombolas na região e as condições de

permanência, incluindo neste aspecto o financiamento, uma vez que o acesso a esse

nível de ensino tem sido, com regularidade, pela via de IES privada. A formação inicial

das professoras ocorre na Sede do Munícipio de Salgueiro. Sobre a formação

continuada, situaremos os tempos e espaços dessa formação, bem como os sujeitos

envolvidos tanto local quanto nacionalmente.

Inclui-se no processo de formação continuada algumas relações significativas

reconhecidas pelas professoras e pela comunidade com o Centro de Cultura Luiz

Freire-CCLF, iniciado no início dos anos de 1990, a UFPE, iniciada no início dos anos

2000, e a Universidade do Porto, especificamente a Faculdade de Belas Artes,

iniciada em 2003 numa parceria estabelecida entre o CCLF e a Associação

Quilombola de Conceição das Crioulas-AQCC. Destaca-se que, da relação com a

FAUP, contam-se ao menos duas teses, defendidas no período de 2009 a 2016.

6.1 O contexto da formação inicial para professores quilombolas

O acesso ao Ensino Superior para estudantes quilombolas está em processo

de crescimento e Conceição das Crioulas contribuiu nesse alavancar, principalmente

na última década. Entretanto, essa realidade ainda carece de ampliação no território

nacional. Esse fato decorre de alguns fatores estruturais da educação brasileira:

urbanocentrismo na educação do campo; incipiente número de escolas nos territórios

quilombolas ou a não existência de escolas; condições de acesso à escola,

geralmente na sede do município, que fica distante das comunidades que geralmente

se localizam em sítios. Esses fatores também fizeram parte da realidade de Conceição

das Crioulas, e foram ultrapassados com muita organização e luta ao ponto de, nos

anos 2000, Conceição das Crioulas ser a comunidade no Brasil que tinha conquistado

uma educação de fato diferenciada na quantidade e qualidade da formação de seus

professores. Todos quilombolas, o que se reflete na educação das crianças

quilombolas e não quilombolas, uma vez que as escolas da comunidade recebem

Page 146: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

145

estudantes de outras localidades de Salgueiro e até de municípios vizinhos e que não

são quilombolas. E isso é tratado com consciência e tranquilidade, conforme afirma

uma professora

Os alunos vêm das mais variadas localidades. A gente recebe meninos de outras cidades vizinhas, de Belém de São Francisco, de Carnaubeira da Penha, já fazem parte do município de Mirandiba. Eu enquanto professora tenho comigo que eles precisam saber que a escola é quilombola. A escola está pronta para acolher a todos, a gente tenta acolher a diversidade que a gente recebe. Agora eu deixo bem explícito para eles que não é por estudar numa escola quilombola que você é quilombola. A gente tem que ter o conhecimento e a pedagogia necessária para lidar com essa situação (P4).

Ter “o conhecimento e a pedagogia necessária” para lidar com as mais diversas

situações. Essa fala revela diversas apropriações. Saber que sabe, e saber fazer

aquilo que sabe, do domínio do conhecimento para ser aplicado na prática educativa.

Esse saber é práxis nos termos postos por Souza (2009). Reflete também a formação

de professores no que se refere ao debate da política curricular posto por Gatti,

Barreto e André (2011) e dá concretude a um dos Princípios da Educação Quilombola

no que diz respeito aos saberes e jeito próprio de ensinar e aprender, onde

“além de aprender a ler e a contar, aprender a viver em sua comunidade através da

valorização dos saberes locais como conhecimento que se aplique a sua realidade e

o ajude a solucionar problemas do seu dia-a-dia.” (CCLF, 2009, p. 8).

A educação como um direito em Conceição das Crioulas é uma conquista que

emerge em meados da década de 1990, e que gradativamente imprimiu uma

mudança no território. Todas as professoras são graduadas. Deslocam-se

diariamente para a sede do município, viajando 42 Km para ir e 42 Km para retornar.

Em 2012, a comunidade teve sua primeira Mestra em Educação formada pela UNB.

Em 2015, duas professoras gestoras ingressaram num Mestrado em

Desenvolvimento Intercultural na mesma Universidade. Em 2016, seis professores,

cinco mulheres e um homem concluem uma Especialização em Educação Intercultural

no Instituto Federal de Educação de Floresta-IF Floresta. Esses são passos

significativos na formação inicial e pós-graduação que as professoras da comunidade

anunciam com muita satisfação. Afinal, educação específica é um princípio da

educação quilombola e muito importante

Page 147: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

146

É melhor para aplicar as matérias onde os alunos quilombolas saibam de sua origem, história e que todos os outros alunos fiquem conscientes, valorizem e respeitem as diversidades. Porque nossos filhos e filhas aprendem na escola, aprendem no campo, na roça, em casa e no convívio com seus familiares (CCLF, 2009, p. 11).

Os Referenciais Epistêmicos que Orientam e Substanciam as Práticas das

Professoras Quilombolas estão enraizados∕referenciados na ancestralidade da

História da África, e antecede a existência da escola como espaço de saber e

produção de conhecimento. Antes da escola, se aprendia

quando os filhos dos fazendeiros vinham passar férias. Os que tinham mais facilidade ensinavam para os outros. Não tinha um lugar certo para ensinar, podia ser numa casa ou embaixo de um pé de árvore, [...] os lugares de aprendizado para crianças era a casa dos pais, a conversa com os mais velhos e outras coisas. (CCLF, 2009, p. 11).

Nesta passagem, observamos o que nos diz Silva (2003) no que se refere às

africanidades, a autora nos informa que a instituição escola em alguns países

africanos é relacionada com os processos da colonização do continente, ou seja,

quando não tinha escola em Conceição das Crioulas, se aprendia com os mais velhos,

embaixo de um pé de árvore, no campo, na roça, no convívio com seus familiares e

hoje essa ainda é uma referência que está presente na escola, porque dela faz parte.

A dimensão de ancestralidade está nessa relação que se mantem. A relação escola-

família é uma relação de aprendizagem mútua. A escola na comunidade quilombola

é conquista de um direito humano e ao mesmo tempo um instrumento de luta por

reconhecimento enquanto sujeito histórico e epistêmico.

A Formação Continuada está assegurada na LDBEN, está prevista nas metas

do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana, que inclui a Educação Escolar Quilombola que em suas ações

fundamentais consta em sua alínea “e) Promover formação continuada de professores

(as) da educação básica que atuam em escolas localizadas em comunidades

remanescentes de quilombos” (BRASIL, 2013, p. 61). Esta ação atende o que está

previsto no parecer CNE∕CP nº 03∕2004 e na Resolução nº 1∕2004, bem como no

Parecer CNE∕CP nº 16∕2012 e na Resolução nº CNE∕CP nº8∕2012. O eixo referente a

política de formação para gestores(as) e profissionais de educação constitui ação

operacional principal do Plano e está articulado a revisão da política curricular.

Page 148: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

147

No que se refere a Formação Continuada, o município tem feito o que se

costuma chamar de “obrigatório”: antes de iniciar cada semestre letivo há uma

“formação geral”, para as professoras da Educação Básica. Essas formações gerais,

tem sido objeto de estudo de autores como Arroyo. Para esse autor,

Nas últimas décadas, a discussão sobre as funções da escola, sobre a educação que nos convém e sobre a quem convém a educação, sobre o controle do saber e sobre que saber selecionar, vem-se tornando mais explicita e tensa, pois as questões sobre o poder, a inserção social e a consciência dos direitos tornam-se também mais tensas e explícitas (ARROYO, 2011, p. 142).

A obrigatoriedade da Educação para as Relações Étno-Raciais, desde 2003, e

a conquista das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola, desde 2012, são exemplos desse processo de conquista, reflexo de um

histórico de lutas e organização social dos movimentos sociais negros, que produziu

novos marcos legais fundamentados nos princípios constitucionais e nos princípios da

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/96, em seu Art. 3º, onde

destacamos:

I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; VII – valorização do profissional da educação escolar; X – valorização da experiência extra-escolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; XII - consideração com a diversidade étnico-racial. (BRASIL, 1996, sem paginação).

Estes princípios são perseguidos para se tornarem efetivos em Conceição das

Crioulas. No que se refere à igualdade de condições para o acesso e permanência na

escola, a comunidade, além de conquistar as escolas enquanto estrutura física e

equipe pedagógica e administrativa, conquistou também o transporte por meio da Lei

10.880 de 9 de junho de 2004, em seu Art. 2º, onde afirma-se que:

Fica instituído o Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar - PNATE, no âmbito do Ministério da Educação, a ser executado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, com o objetivo de oferecer transporte escolar aos alunos da educação básica

Page 149: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

148

pública, residentes em área rural, por meio de assistência financeira, em caráter suplementar, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, observadas as disposições desta Lei (BRASIL, 2004, sem paginação).

Antes da Lei que assegura o transporte de estudantes em área rural, o

transporte era o chamado “pau de arara”, um caminhão, ou caminhonete, com bancos

de madeira que serviam de assento, e em muitos casos sem lona, que protegesse do

sol na cabeça.

Entre as condições de permanência, destacamos a merenda de qualidade.

Para muitas crianças, a única refeição que elas fazem é na escola. E o diferencial na

merenda para as comunidades quilombolas também foi assegurado em forma da Lei

11.947/09, que alterou a Lei 10.880/04 e dispõe sobre o atendimento da alimentação

escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica.

Todos os princípios da educação citados anteriormente estão sendo postos em

prática na comunidade de Conceição das Crioulas. Na valorização profissional,

Conceição das Crioulas realizou o Primeiro Concurso Público para Professores

Quilombolas nos termos das Diretrizes Curriculares da Educação Escolar Quilombola.

A formação continuada é dever do Estado. A comunidade e as professoras têm

a iniciativa de estabelecer parcerias para também realizar formação continuada a

partir dos seus interesses emancipatórios e afirmam na carta de princípios “queremos

que os professores e as professoras sejam quilombolas, da própria comunidade,

engajados na luta e pesquisadores da sua própria história e que seja garantida

formação específica e diferenciada para as professoras e professores quilombolas.”

(CCLF, 2009, p. 13). As parcerias estabelecidas contribuíram com essa conquista. Os

ciclos de Oficinas de Leitura: aprendendo a gostar de ler (BANDEIRA; ROSA; MELO,

1992, p. 1), onde busca-se desenvolver o hábito da leitura, de modo a ser incorporado

naturalmente ao cotidiano como o andar, o falar, o respirar. Busca-se, também,

estimular outras formas de expressão a partir da leitura, desenvolver o senso estético

e o exercício da crítica.

As oficinas realizadas na Comunidade pelo CCLF - e posteriormente ampliadas

com o Projeto Imaginário da UFPE e com o Grupo Identidades do Porto e da FAUP –

exploraram a literatura, a história oral, a arte, a comunicação. Então, várias

expressões artísticas estão sendo desenvolvidas até os dias atuais. Na fotografia

abaixo uma atividade de incentivo à leitura. As professoras disponibilizam os livros e

Page 150: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

149

as crianças vão explorar, depois escolhem o livro e vão desenvolver a expressão

artística que será proposta.

Foto 08 - Crianças em atividade de incentivo à leitura: “se achando nas histórias”

Fonte: Marinalva Rita (2016).

A atividade com a leitura possibilita o reconhecimento da identidade, a

valorização da cultura, a relação entre gerações e tantas outras nesse caldeirão

cultural. Essas experiências em diálogo foram contribuindo com o fortalecimento das

professoras e sua ação para o desenvolvimento do Projeto Político Pedagógico da

Escola, “foi a partir das formações que a gente já tinha, inclusive que o Centro de

Cultura Luiz Freire fez na Escola José Néu, em 2000, 2001, até 2002, a gente teve

essas formações.” (Caderno de campo, p. 3, entrevista C). As professoras colocaram

em prática as vivências formativas das Oficinas de Leitura, proposta que compreende

a utilização da leitura no processo de alfabetização e de formação de professores, pode contribuir para o desenvolvimento do senso crítico, a ampliação do universo cultural e o domínio da língua escrita (BANDEIRA; SOUZA; MELO, 1992, p. 16).

Reconhecer-se sujeito do processo é referência chave da atuação das

professoras e da comunidade ao mesmo tempo em que se reconhece no sentido de

contribuir com o fortalecimento da consciência de que é possível mudar, é possível

“tomar de conta.”

Page 151: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

150

6.1.2 Desafios na formação inicial e pós-graduação para professores quilombolas

Em que pese o quadro positivo conquistado em Conceição das Crioulas, há

que se registrar algumas dificuldades. Uma delas refere-se às condições materiais

para frequentar o curso superior. As professoras relatam que durante a graduação, o

salário praticamente é voltado para pagar as mensalidades da faculdade privada. Em

decorrência dessa realidade, o suporte com a manutenção da casa, dos filhos, era

suprido por um familiar, geralmente a mãe.

Eu consegui uma bolsa de 50% já no final do curso, no último período. Até então a faculdade não tinha nenhuma bolsa do governo. A minha bolsa foi a partir da sobra das bolsas dos alunos de matemática, que tinha bolsa para todos os alunos. A gente trabalhava para praticamente pagar a faculdade, as vezes atrasava e a gente ficava aperreado e ficava um bocado pesado. Eu consegui terminar o último ano sem ficar aperreada por causa dessa bolsa (P5).

As condições de acesso das professoras à graduação são por meio de

vestibular. Após as despesas com inscrição e a alegria do resultado positivo na

aprovação, as dificuldades de permanecer são uma realidade, diante da ausência de

uma política de incentivo ao acesso ao ensino superior mediante o financiamento.

Apenas no governo Lula e Dilma essa situação foi melhorada para as estudantes

quilombolas. Observem que a Professora (P5) nos informa que, mesmo nesse período

de financiamento público para as IEs privadas, a Instituição que os quilombolas de

Conceição tinham acesso não tinha financiamento para licenciatura em História.

Entretanto, no final do curso, houve “sobra dos alunos matemática.”

A professora (P1) afirma: “tive muita dificuldade, eu sempre fui o peso para

sustentar os filhos. Meu marido bebia tanto que eu o deixei, não tinha

responsabilidade, às vezes tirava da boca para pagar os estudos e dar conta de tudo

que precisava em casa.” São decisões fortes que essas professoras tiveram que

tomar ao longo de sua construção profissional, onde cortar na própria carne é mais do

que uma metáfora.

Em 2015, oito professores foram aprovados por meio do Edital nº 50∕2015 no

processo seletivo de especialização em Educação Intercultural no Pensamento

Decolonial, IF Sertão, Campi Floresta. Na viagem que fizeram para efetivar a

matrícula, sofreram um assalto na estrada, o que produziu trauma em alguns, gerando

Page 152: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

151

a desistência. Outros continuaram e, em 2016, obtiveram o título de Especialistas em

Educação Intercultural Decolonial. O curso que teve duração de 15 meses e o Projeto

Pedagógico respeitava as experiências pedagógicas vivenciadas na escolas

indígenas e quilombolas. Com o intuito de estimular a permanência e progressão no

curso, os alunos com 75% de frequência da carga horária, em cada etapa do curso,

que foram duas, uma presencial e outra nas suas comunidades, receberam uma ajuda

de custo de R$ 250,00 para custeio de deslocamento, hospedagem e alimentação.

No que se refere ao acesso ao Mestrado em 2012, a comunidade teve a

primeira professora quilombola com título de Mestre em Educação pela UNB. Em

2015, duas professoras em cargo de gestão foram aprovadas no Mestrado

Profissional em Sustentabilidade junto a povos e Territórios Tradicionais – MESPT.

Esse mestrado articula o saber científico ao saber tradicional. As professoras, até o

término do trabalho de campo em abril de 2016, não haviam sido liberadas pelo

município para cursar o Mestrado na UNB e já estavam no período de qualificação do

projeto. Essa situação implicou em elas assumirem, por conta própria, uma professora

substituta para garantir que as crianças não ficassem sem aula, no período em que

cursavam as aulas presenciais. Em Brasília, essas professoras eram acolhidas na

casa de uma irmã de uma das professoras.

Os relatos indicam que, para se qualificar, as professoras quilombolas têm

ultrapassado obstáculos, de ordem material, física, financeira, emocional e também

na perspectiva do racismo epistêmico, nos termos postos por Grosfoguel (2007),

quando este autor afirma que “o racismo epistêmico considera os conhecimentos não-

ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais.” Neste aspecto,

consideramos relevante trazer à análise algumas experiências que as professoras

relataram sobre o viés colonialista em sua formação inicial e também na especialização,

que, embora anunciada “Intercultural indígena-quilombola”, a abordagem teórica estava

centralizada na trajetória da luta dos povos indígenas, silenciando a luta e trajetória

histórica dos quilombolas. A maioria dos cursistas eram quilombolas e interpelaram a

coordenação do curso pelo referencial teórico afro-brasileiro e quilombola, tendo por

fundamentação na argumentação a proposta do curso e o marco referencial legal

referente à Educação Escolar Quilombola e a produção de intelectuais negros que, no

contexto brasileiro, há mais de um século produz conhecimento sobre o assunto. Assim

é oportuno pensar que

Page 153: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

152

precisamos, no sentido de que Freire falava, de uma ‘arqueologia da consciência’, de um trabalho de arqueologia pedagógica a fim de reconstruir a memória pedagógica. Outra tarefa consiste em recuperar as pedagogias silenciadas durante séculos de dominação. A ‘cultura do silencio’ denunciada por Freire nas classes populares também se manifesta nos silenciamentos de práticas educativas transformadoras (STRECK, 2010, p. 331).

A citação nos chama a atenção para com o cuidado de não reproduzirmos a

opressão, através do silenciamento. Esse exercício utiliza-se da memória histórica

enraizada na realidade dos sujeitos e do reconhecimento de suas lutas. Neste sentido,

as insurgências são resultado da ação consciente dos quilombolas enquanto sujeito

histórico que conquistaram o direito a existir, o direito a viver num território e imprimiram

mudanças na forma de se relacionar com a sociedade, não mais como subalternizado.

A frequência a licenciatura no período noturno, após um dia de trabalho, tendo

que viajar 42 km diariamente para ir e 42 km para voltar, num transporte que há dez

anos, nem tinha janelas e as faziam chegar na Faculdade banhadas de poeira

vermelha, diz muito da disposição das professoras em atribuir qualidade e sentido à sua

formação inicial, vivenciada com muito esforço e superação. Esse aspecto da formação

foi uma das questões levantadas nas entrevistas e as respostas dadas indicam que

houve fratura produzida na formação marcadamente eurocentrada. É sobre esse

aspecto que trabalharemos adiante.

6.1.3 A exigência das professoras em sua formação inicial: africanidades,

quilombismo e decolonialidade

Na subseção anterior, abordamos sobre os desafios da formação inicial, com

destaque para as condições de acesso e permanência na graduação e pós-

graduação. Apresentamos algumas formas de superação para manter a determinação

de qualificar-se, a exemplo do enfrentamento do transporte inadequado, a segurança

precária e até mesmo a burocracia estatal.

A exigência por parte de professoras e professores do direito ao acesso à

Educação das Relações Étnico-Raciais, assegurada na LDBEN no que se refere aos

princípios da Educação Nacional em seu inciso XII do Art. 3.º e a educação

diferenciada nos termos postos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Escolar Quilombola, tem sido uma constante nos cursos que frequentam, seja de

Page 154: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

153

graduação ou pós-graduação. Elas exigem o direito a aprender a sua história, essa é

uma conquista histórica consciente. Essa exigibilidade está referenciada nos marcos

legais e, mais do que isto, é próprio da condição humana consciente. Sobre isso,

Freire afirma “não há docência, sem discência. Quem ensina aprende ao ensinar e

quem aprende ensina ao aprender. “[...] Aprender precedeu a ensinar ou, em outras

palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender” (FREIRE,

1998, p. 25-26). A experiência de ‘ser mais’, construída em Conceição das Crioulas,

nas comissões da associação, na formação continuada da escola, na organização

nacional de quilombolas, fortalece essas professoras para atuarem no enfrentamento

a opressão e ao eurocentrismo epistêmico.

Conseguimos compreender, ao ouvir as professoras, que, ao decidirem fazer a

formação, ingressar na licenciatura, na pós-graduação, onde quer que seja, elas têm

referência do que esperam em termos de qualidade dessa formação. A experiência

construída e alimentada na comunidade é a referência, e essa referência é fortaleza

para a postura discente. E novamente dão vida ao pensamento de Freire “quanto mais

criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e desenvolve

o que venho chamando ‘curiosidade epistemológica’, sem a qual não alcançamos o

conhecimento cabal do objeto (FREIRE, 1998, p. 27). A referência principal das

professoras é a história oral, é a identidade territorial, sistematizada na produção de

conhecimento como africanidades. Essas referências estão claramente apresentadas

nos princípios da História da Àfrica de que fala Ki-Zerbo (2011)

“A gente tem percebido que pode trabalhar a partir daqui. A gente faz um trabalho com

pesquisa que é muito intenso. A escola hoje consegue trabalhar integrada com a

comunidade, está diretamente vinculada com os acontecimentos da comunidade.”

(P5).

Essa referência é uma conquista. Diz-se do princípio de Agência do

pensamento afrocêntrico de Assante (2009), ou seja, fazer a produção do

conhecimento a partir do seu lugar. E por ter essa referência, quando cursaram a

disciplina História e Cultura Africana e Afro-brasileira e Africana e o programa ‘nunca’

chegava no protagonismo afro-brasileiro, a coordenadora (C) perguntou a professora

da disciplina: “professora, quando é que nós iremos chegar em Conceição? Porque

nós já vimos muita gente falar sobre os negros, os historiadores, os sociólogos, mas

ainda não vimos a história dos quilombos pelos quilombolas e nem vimos o nosso

quilombo daqui de Salgueiro que tem mais de duzentos anos.”

Page 155: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

154

Após essa interpelação, a professora da Disciplina abriu o diálogo com a turma.

Assumiu que não sabia profundamente da história dos quilombos e convidou as

professoras quilombolas de Conceição das Crioulas a realizarem um seminário na

disciplina e promoveu um seminário na Faculdade, tendo por referência o mês da

consciência negra, que está posto nos princípios da LDBEN.

Na esfera nacional, Conceição das Crioulas teve participação efetiva no

processo de discussão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola e contribuiu também para algumas metas no Plano Nacional de

Implementação das Diretrizes Curriculares Nacional para a Educação das Relações

Étnico-Raciais e para a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Esse movimento

articulado entre o local e o nacional possibilita a troca, o intercâmbio de conhecimento,

e este fato é uma referência da assunção da condição de sujeito epistêmico, instalado

nas professoras como ser de consciência, numa busca de ser mais, construir

humanização, em relação com, sem perder suas próprias referências que estão

fincadas na tradição oral, na memória, e que gradativamente também vão ocupando

as estantes em espaços institucionais com as produções dos TCCs, Monografias e

Dissertações, e também em livrarias com publicação das pesquisas onde elas são,

quando não autoras, co-autoras desse conhecimento produzido.

6.1.4 Os espaços e os tempos da formação continuada e do aprender e ensinar: “a

ação pedagógica ocorre nos sete dias da semana”

Apresentamos anteriormente como as professoras vêm conquistando a sua

condição epistêmica, construído num processo consciente, envolvendo o conjunto de

professores e a comunidade para refletir a prática e intervir nas políticas formativas

local e nacionalmente. As professoras vêm assumindo a condição de sujeito em

formação e também sujeito da formação e da política educacional quilombola. Aqui

nos deteremos aos espaços-tempo de formação. Começamos por afirmar que todo

espaço do território é espaço de formação. E veremos isso detalhadamente quando

(C) descrever o processo de mapeamento do território e de como quilombolas do Sitio

Paula, na sua atividade, foram contribuindo para a formação das professoras e

também de sua autoformação ao compreender que sua experiência no território

integra o currículo da escola.

Page 156: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

155

Ao falar sobre a formação as professoras, todas elas nos informaram que a

formação continuada se dá na escola, na associação de moradores, nas reuniões

conjuntas das escolas, nos encontros de associações quilombolas seja ele estadual

ou nacional. “Os espaços também tem de ser entendidos como os recursos

disponíveis da comunidade.” (AMARAL, 2012, p. 262). Quando as professoras vão à

Serra do Matame com seus alunos e ali dão aula de geografia, geologia e biologia,

pondo em prática o princípio da interdisciplinaridade da História Africana, “apoiando-

se em todos os elementos disponíveis para retratar a própria cultura no seu

desenvolvimento dinâmico, numa perspectiva onde o método interdisciplinar deveria

finalmente conduzir a um projeto transdisciplinar.” (Ki-ZERBO 2011, p. 399).

As professoras estão incorporando o que existe disponível no território para ser

conhecido e explorado do ponto de vista do conhecimento, para então ser aprendido.

É indo lá, onde está o fenômeno e, depois em sala, processando o aprendido, que o

processo de aprendizagem tem sido desenvolvido. “Quando a gente faz aula de

campo, aula diferente, no espaço de campo, atividade fora de sala, onde a gente faz

essas experiências...Ah! Eles adoram!” (P4).

Todos esses espaços são espaços de aprendizagem, uma vez que o que se

aprende de alguma forma retorna para o crescimento enquanto sujeito e para a

comunidade e associação, enquanto sujeito político. “Tempos e espaços, nos dizeres

de Libâneo, dizem respeito à organização da escola, respeito ao desenvolvimento do

aluno, aos ritmos individuais, aos fatores socioculturais, à subjetividade, às relações,

a convivência etc.” (AMARAL, 2012, p. 246.). No território de Conceição das Crioulas,

esse tem sido um esforço que vem contribuindo para a humanização da educação e

as crianças menores das séries iniciais tem participado ativamente desse processo,

tem feito leituras através dos desenhos e levado para as assembleias da associação,

apresentando nas culminâncias dos projetos, como no Projeto Gestão do Território,

onde fizeram o reconhecimento do território, produziram cartografia e maquete na

ação pedagógica.

Agora em Agosto (2015) a gente recebeu as terras aqui da Comunidade Paula. E estamos indo amanhã (12 de setembro de 2015) para conhecer o território com a AQCC com o GT. E na prática, a gente já trabalhou com os estudantes. Porque antes da comunidade ir reconhecer essas terras da fazenda, nós já fomos. Nós professores, nós estudantes. Como é amplo o espaço, pegamos os meninos do terceiro, quarto e quinto anos e fomos até a Serra lá. Subimos, identificamos os umbuzeiros, contamos quantos tinham, as ervas

Page 157: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

156

medicinais, os lajeiros, as capoeiras. Os pequenininhos da Educação Infantil, ficaram na parte baixa da Serra e fizeram o mesmo trabalho também. E isso estamos trabalhando pedagogicamente. Os meninos trabalharam arte e matemática quando fizeram a maquete. A gente tirou a palavra geradora como Paulo Freire dizia, de dentro do T E R R I T Ó R I O, trabalhamos o que é território, quantas letras tem a palavra território, quantas sílabas tem. Isso com os pequenininhos (C).

Foto 09 - Aula passeio: atividade de reconhecimento do território com as crianças

Fonte: Marinalva Rita (2016).

Diante da amplitude e da necessidade de dar foco, priorizaremos aqui a

dinâmica da formação continuada relacionada à relação escola-comunidade. As

professoras da Escola Campo de Pesquisa têm regularmente uma reunião mensal

que acontece no último sábado do mês, o dia inteiro, encerrando por volta das 16h.

Nessas reuniões, elas compartilham a prática que vem sendo desenvolvida,

apresentando desafios e necessidades que necessitam serem acompanhados pelo

conjunto, como planejar alguma atividade ou participar de alguma atividade em outra

escola ou numa programação mais ampla do território, estudam juntas assuntos

atinentes à prática de sala de aula e definem encaminhamentos para cada questão

que foi tratada na reunião.

Page 158: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

157

Foto 10 - Assembleia da comunidade: professora apresentando a atividade de reconhecimento do território

Fonte: Marinalva Rita (2016).

A formação continuada nessa perspectiva é planejada nos tempos intra e extra-

escolar. No planejamento intra-escolar, elas acompanham minunciosamente o

calendário, as agendas com a Secretaria Municipal, a visita da secretaria à escola, as

idas à administração municipal. De modo que,

todo ano no primeiro dia letivo, nós professores sentamos e fazemos um plano de ação que o município pede e um diferencial também é esse. O sistema tem o que se pede, mas a gente adequa, a gente não se prende a ele. No nosso plano de ação a gente bota que vamos trabalhar o Projeto: As histórias contadas pelo povo da comunidade, por exemplo. Quando chega no final do ano, a partir do acompanhamento que a gente faz, a gente vê o que avançou, o que precisa voltar, o que precisa continuar fazendo. E assim vai (C).

A ação de planejar para a secretaria e adequar internamente exige uma

capacidade de monitoramento que as professoras se organizam bastante para dar

conta e até mesmo evitar o desperdício do tempo. “O desperdício ocorre, muitas

vezes, no atendimento às diretrizes e as exigências da administração do ensino nas

suas diferentes instâncias; nas solicitações internas da própria escola e, ainda no

modo próprio da escola funcionar.” (SANTIAGO, 1990, p. 50). Por lidarem com essas

exigências, as professoras trabalham a administração dos tempos e reservam tempo

aos sábados, que a rigor não estariam no tempo pedagógico regular de sua função

Page 159: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

158

social, mas que consideram necessário para dar efetividade ao acompanhamento e

compartilhamento da prática. Esse fazer, esse compromisso, inclusive com

participação aos domingos nas assembleias da associação, onde dialogam sobre as

culminâncias dos projetos que estão em andamento na escola. Isto nos permite

afirmar que a ação pedagógica em Conceição das Crioulas ocorre nos tempo-espaços

existentes no território e que funcionam nos sete dias da semana.

Um dos resultados da dedicação do planejar e acompanhar os tempo-espaço

de aprendizagem é a avaliação do SAEPE, no período 2009-2014 conforme se vê no

quando abaixo

Quadro 16 - Avaliação da Bevenuto - SAEPE, 5º ano - Ciclo II

Ano 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Língua

Portuguesa

128,93 142,93 184,37 156,2 157,2 185,30

Matemática 133,08 143,46 181,1 184,1 162,2 201,93

Fonte: Marinalva Rita (2015).

Os resultados para o terceiro ano do Ciclo I apresentam uma elevação no

desempenho. É neste ciclo que se encontra a escola campo de pesquisa, obtendo o

primeiro lugar em matemática e segundo lugar em português no município de

Salgueiro na avaliação SAEPE, 2014. Como diz a professora (P3) “em questão de

aprendizagem eu vejo resultado, de 2007 para cá a escola vem melhorando mesmo.

As crianças saem da educação infantil já com um começo de leitura mesmo.”

Na garantia do direito à Educação Infantil, o Brasil só conseguiu integrá-la como

primeira etapa na Educação Básica em 2009, com a Emenda Constitucional 59,

sancionada como a Lei 12.796 em 04 de abril de 2013. Foi uma longa caminhada para

retirar creches e pré-escolas da pasta da Assistência Social e colocá-la na educação.

Isso foi possível graças ao movimento organizado nacional em defesa da educação

infantil como um direito da infância, articulado com parlamentares progressistas,

principalmente do campo da educação.

Em Conceição das crioulas, é importante registrar que a Educação Infantil é

uma realidade bem antes da determinação legal em 2009.

Page 160: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

159

Quadro 17 - Avaliação da Bevenuto - SAEPE, 3º ano - Ciclo I

Ano 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Língua

Portuguesa

438,3

422,7

484,7

501,6

588,8

595,24

Matemática -------------- -------------- 483,7 506,8 478,7 612,71

Fonte: Marinalva Rita (2015).

Estudos indicam que

o professor tem uma concepção de mundo que se corporifica -mantida ou modificada - nas relações dadas entre educador e educando, em um contexto determinado. Seu atuar é um esforço para atingir o projeto idealizado de homem e de sociedade. (SANTIAGO, 1990, p. 24).

Desse modo, “há que se pensar o currículo como fundamento e ação educativa,

uma vez que ele é instrumento da formação e da prática dos professores que atuam

nas séries iniciais.” (SANTIAGO, 1990, p. 25).

A compreensão do currículo escolar quilombola como experiência,

fundamenta-se numa concepção que reconhece e valoriza a trajetória histórica dos

sujeitos, a sua assunção enquanto sujeitos epistêmicos e os referenciais das

africanidades construídas no Brasil há mais de quinhentos anos, que passa a

representá-los no Projeto Político Pedagógico da Escola. É sobre esses aspectos que

trataremos a seguir.

6.1.5 Quando a comunidade toma de conta, a gestão e o PPP lhes representam

As professoras ouvidas na pesquisa explicam que, a partir da reflexão,

começaram a construir caminhos próprios, sem “a interferência dos técnicos da

educação”, para utilizar a expressão de Arroyo (2013), que “chegam com tudo pronto”,

como afirma a gestora da escola campo de pesquisa. A experiência da escola campo

de pesquisa vem fazendo um esforço de “criar espaços de trabalho e reservar tempo

de estudo e pesquisa para os professores, de modo que lhes seja possível inventar

novas práticas.” (ARROYO, 2011, p. 140-141). Esse é o Projeto Político Pedagógico-

PPP que a escola vem se esforçando em construir, compreendendo que o PPP é

construído e vivenciado em todos os momentos, por todos os envolvidos com o

Page 161: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

160

processo educativo da escola, conforme afirma Veiga (2010, p. 13). E, como diz a

coordenadora, “demorou um tempo para a comunidade acreditar”, porque antes as

reuniões com as famílias eram para cobrar o que de mal feito estava acontecendo.

“Hoje a gente chama os pais para fazer prova também, as mesmas que os meninos

fazem. Para eles perceberem que é difícil, que eles precisam ajudar os meninos em

casa e não cobrar aquilo que eles ainda não sabem.”

Nesta experiência de gestão, a escola tem articulado as famílias e os saberes

que elas vivenciam na vida econômico-produtiva-educativa. Consultam as crianças

sobre os problemas que vivenciam na comunidade e que papel a escola poderia ter

frente a esta realidade. Dessa aproximação, nasceu a proposta de utilizar o Projeto

Pedagógico da Escola, desenvolvido por projeto. O projeto está ligado à experiência

concreta, está situado num contexto, e é refletido no coletivo. Nessa direção, o

primeiro projeto

a gente fez um projeto que era o Projeto Águas. A gente foi logo dizendo o que era que ia fazer com esse projeto e nesse mesmo dia a gente disse: o quinto ano vai pesquisar os caldeirões (reserva de água nas pedra); o terceiro ano vai pesquisar as cacimbas. E foi o primeiro projeto e foi muito bom. Até hoje a gente tem os registros, fotos, vídeos que a gente fez com um celularzinho pequeno que a gente tinha e conseguimos ainda guardar. No mês seguinte a coordenadora chegou na escola a gente disse: a gente já planejou. E ela se surpreendeu: já planejaram? Como foi que vocês planejaram? E logo ela viu a diferença. A gente começou a fazer exposição nas salas. Porque ela não nos orientava a fazer as exposições nas paredes, mas quando a gente pegou autonomia de fazer, a gente já fazia do nosso jeito: a gente colocava nas cartolinas com desenhos dos caldeirões, das cisternas, fotos das pessoas da comunidade na distribuição de água (C) (APÊNDICE E).

A citação da coordenadora da escola ilustra como de forma coletiva a

comunidade “tomou de conta da escola.” Elas costumavam esperar pela técnica da

secretaria municipal responsável pelo planejamento, porém, nem sempre essa

pessoa chegava. De modo que, em um determinado dia, elas decidiram iniciar.

Iniciaram compartilhando as perguntas: o que vamos trabalhar? O que está nos

incomodando? E nesse contexto, era o ano de 2007, em meio a uma seca intensa,

elas decidiram iniciar por discutir a situação da água: sua escassez, as reservas, como

cuidar para armazenar, manter limpa, dentre outros cuidados. E ela destaca: “quando

a gente pegou autonomia de fazer, a gente já fazia do nosso jeito.” É uma referência

do sujeito tomar para si a responsabilidade num contexto de ausências e omissões. E

Page 162: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

161

nesse processo vão avançando, registrando os processos, produzindo os registros

com os recursos disponíveis: inicialmente com papel e aos poucos introduzem outros

equipamentos tecnológicos como celular e câmera fotográfica, a exemplo do registro

que fizeram da ida ao campo no Projeto Águas. A foto a seguir ilustra a fenda na rocha

que possibilita o armazenamento de água, e são chamados de “caldeirões.”

Foto 11 - Projeto Águas: “Caldeirão”

Fonte: Marinalva Rita Bezerra (2014).

A comunidade determina para qual finalidade as águas dos caldeirões serão

destinadas. A depender da localização, da qualidade da água, elas serão utilizadas

para o consumo humano, para lavar roupa, para tomar banho, para oferecer ao

animal, dentre outras funções. Existem alguns caldeirões próximos das vilas que são

lavados, protegidos para que a água armazenada seja de boa qualidade e não tenham

que andar muitos quilômetros em busca de água.

A escassez de água em regiões áridas é um fato e tem sido enfrentada com a

experiência dos mais antigos frente à realidade. O problema de abastecimento e

acesso à água no Brasil tem sido bastante grave em que pese as reservas naturais

existentes no país. Em 2016, no Estado de Pernambuco, houve óbitos em muitas

famílias nas regiões do agreste e sertão, decorrente da baixa qualidade da água

consumida e distribuída pelo governo do estado nessas regiões, mas em Conceição

das Crioulas não tivemos notificação dessa natureza.

Page 163: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

162

6.2 As referências de Educação Escolar Quilombola e o Currículo como

Experiência: o que dizem as professoras

No nosso referencial teórico, fazemos uma discussão sobre os marcos

referenciais legais que fundamentam a Educação Escolar Quilombola. Esses marcos

foram construídos ao longo da existência do movimento social quilombola que tem na

Constituição de 1988 forte referência e a legislação que foi promulgada nas décadas

seguintes, culminando em 2012 com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação Escolar Quilombola, mas não só. A conquista de uma legislação específica

integra faz parte de uma histórica mobilização nacional integrante de uma trajetória

internacional no contexto do Pan africanismo.

Essa construção tem a contribuição fundamental de Abdias do Nascimento com

o conceito de quilombismo, que vai contribuir com os novos marcos referenciais da

educação. Abdias conceitua o quilombismo como “genuínos focos de resistência física

e cultural.” Estruturado em diversas formas associativas, o “quilombismo podia

assumir modelos de organizações permitidas ou toleradas, frequentemente com

ostensivas finalidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, esportivas,

culturais ou de auxílio mútuo.” (NASCIMENTO, 2009, p. 203). Para Nascimento, o

quilombismo é uma práxis afro-brasileira, onde os sujeitos quilombolas assumem o

desenvolvimento de uma prática de libertação, comandando a sua própria história.

Na definição do autor acima citado, nos chama a atenção a dimensão do

sagrado na perspectiva católica. Do nome da comunidade ao número de igrejas

cristãs hoje presentes no território, é interessante observar que a insurgência se

instala: é Conceição, mas é das Crioulas. A diferença colonial está colocada.

6.2.1 As lideranças e a experiência político-social: o ancestral está integrado com o

organizativo

Nesta sessão, trabalharemos os referenciais de educação escolar quilombola

que as professoras expressam em suas reflexões.

Na tradição oral, referência central das africanidades no Brasil, o poder da

palavra é experiência viva da cultura e orienta todos os processos de criação humana.

Como nos afirma BÂ (2011, p. 169),

Page 164: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

163

A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segrego e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. [...]. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial.

O registro das falas das professoras indicam três referências articuladas entre

si, não são verticais e sim aspirais, são circulares, entrelaçando o antigo ao novo. Uma

questão central é a memória e quem tem transmite o que aconteceu antes ao tempo

de hoje, são os mais velhos, são eles a quem as professoras se reportam para saber

e recontar, para também trazer esses mais velhos para a escola e, desse modo,

institucionalizam também essa ancestralidade.

Os mais velhos contam a história do lugar, que muitas vezes não estão

contadas nos livros de história, pois esses livros, na perspectiva hegemônica da

história, partem de um lugar de opressão, onde os africanos nem tinham história,

como afirmaram alguns historiadores e filósofos.

As professoras aprenderam que existe o contra-hegemônico, que o

conhecimento não é monolítico, mas sim permeado de tensões e nesses

tensionamentos elas também produziram os seus livros de princípios, o seu livro sobre

o território e que é trabalhado em sala de aula.

É sobre esse movimento posto no campo das aprendizagens que entendemos

a fala das professoras e disponibilizamos no quadro a seguir.

Page 165: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

164

Quadro 18 - Referências para educação escolar Quilombola

As reflexões transformadas em ação

P1

A principal referência é a AQCC, que ela é quem vai atrás mesmo dessas coisas todas que precisa do território. A gente tem livros que conta a história, que é o Nosso Território, ele fala muito da história de Conceição das Crioulas e a gente trabalha em parceria com a AQCC e as pessoas da comunidade também, os mais velhos, que contam também de como era a história antigamente aqui.

P4

O que eu compreendo por referência são as pessoas mais velhas com a história vivida e contada pelas pessoas mais velhas. Eu costumo dizer que um professor que atua numa comunidade quilombola ele não pode ser apenas um professor que trabalhe com livros. Ele tem que beber da fonte das pessoas mais velhas. Tem as referências pessoas e tem as referências instituição. Através da AQCC, dos encontros organizados aqui ou que a gente participa fora, eu aprendi demais.

P5

Nossa principal referência é a carta de princípios da Educação Escolar Quilombola. A criança aprende brincando, a criança aprende conversando com os mais velhos. A criança aprende nas reuniões da comunidade. A gente vive uma pedagogia própria pelos quilombos, a criança não tem que aprender só com o livro didático, mas ela tem que aprender também com o conhecimento que a sua comunidade oferece.

Fonte: Delma Silva (2016).

Podemos observar que nas três falas são expressas como referências: a

ancestralidade: “os mais antigos”, “os mais velhos,” a organização política, a AQCC e

o “conhecimento” expresso no livro como conquista. Existe o “Nosso Território” e a

“Carta de Princípios.” O poder de dizer a sua palavra, nos termos postos em Freire

(2013), a palavra e sua força especial para Barros e Teixeira (2008), e o poder da

palavra da professora (P5), que possibilita-lhe não tratar as aprendizagens das

crianças com a comunidade como “saber e sim como conhecimento.” Há, nesta

perspectiva, elementos do conhecimento afrocentrado concebido por Mazama (2009,

p. 123), quando a autora destaca que “o conhecimento afrocentrado é validado por

uma combinação de compreensão histórica e intuição, ou seja, que o conhecimento

é ao mesmo tempo racional e suprarracional.” Conhecimento conquistado

historicamente, “uma vez que se liga ao comportamento do homem e da comunidade,

a cultura africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela

envolve uma presença particular no mundo, um mundo concebido como um Todo

onde todas as coisas se religam e interagem.” (BÂ, 2011, p. 169). Incluída nesta

concepção está a interculturalidade com o povo indígena Atikum, que os quilombolas

chamam de “povo irmão.” Abaixo vemos uma fotografia de uma atividade

desenvolvida entre a escola campo de pesquisa e a escola indígena.

Page 166: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

165

Foto 12 - Intercâmbio intercultural com Povo Indígena Atikum

Fonte: Marinalva Rita Bezerra (2015).

Nos ensinamentos quilombolas, Moura (2000) afirma a importância de se

acolher as crianças em todos os espaços existentes na comunidade. Nesse

acolhimento,

as crianças aprendem, porque participam de todas as atividades [...] todo o processo é participativo. E as crianças e os jovens querem tomar parte, porque eles fazem parte da sua vivência e reafirmam a noção de pertencimento àquela comunidade. (MOURA, 2000, p. 261).

O vínculo identitário no território quilombola produz as aprendizagens, que são

desenvolvidas com base no diálogo com os mais velhos, com o conhecimento que a

sua comunidade lhe oferece, e também com povos que têm trajetória histórica

semelhante como os povos indígenas, ou seja, nos princípios que fortalecem a raiz

de sua experiência histórica.

A consciência de ter uma pedagogia própria também está presente na fala da

professora (P5). E essa pedagogia pode ser entendida como práxis, nos termos

postos por Souza (2009) enquanto uma teoria da ação coletiva.

Para as professoras, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas -

AQCC é o lugar do encontro das gerações: as pessoas mais antigas e as pessoas

mais novas. A experiência centrada na oralidade das histórias dos saberes e fazeres

na comunidade pelos mais antigos hoje, faz parte do currículo e está nos materiais

didáticos utilizados nas escolas. A comunidade é pesquisada nacional e

Page 167: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

166

internacionalmente e as produções voltam para a comunidade. As professoras

também viajam, estabelecendo trocas significativas das práticas desenvolvidas. A

viagem ao Porto e Cabo Verde foram experiências proporcionadas pelo intercâmbio

com o Grupo Identidades do Porto. Várias publicações didáticas que abordam

intercâmbios entre culturas e juventude integram o currículo, dentre esses materiais

estão também os vídeos-documentários, o Olhares Cruzados é um exemplo dessa

troca.

A porta de entrada para essas parcerias é a AQCC. As experiências de troca

iniciam pela construção da relação de confiança, dialogando com a comunidade. A

comunidade interage sobre os objetivos e os processos, define quem vai acompanhar

e, ao ser concluído o trabalho, compartilham o resultado final. Essa é uma experiência

fundamentada em princípios africanos. Desse modo, as professoras reconhecem que

a AQCC lhes representa.

É através da AQCC que a comunidade acompanha o movimento quilombola a

nível nacional, e local. As discussões sobre território, sobre educação em Brasília. A

comunidade é chamada a participar, se articula e define quem acompanha

determinada agenda.

Considerando que “tanto o pesquisador como os atores, sujeitos-objeto da

pesquisa interferem dinamicamente no conhecimento da realidade.” (MINAYO, 1996,

p. 107), fomos convidados a dialogar com as professoras na formação continuada

delas sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Étnico-raciais. Neste encontro, pudemos verificar que, embora as Diretrizes sejam de

2004, havia no grupo entendimento de que as Diretrizes Curriculares Nacionais para

a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana tinha deixado de fora o nível superior de ensino. Lembramos

sobre esse ponto, que essa concepção não é rara de se encontrar entre os

professores. Diante da dúvida, sugeri que fôssemos ler a Resolução Nº 1 do CNE

(BRASIL, 2004, p. 31), que, no seu Art. 1º, diz que as Diretrizes devem ser

observadas, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação

inicial e continuada de professores, ou seja, as IES, as Secretarias Estaduais e

Municipais de Educação, dentre outras. Portanto, as Diretrizes não deixaram fora o

Ensino Superior e, para além do já estabelecido legalmente, o Movimento Negro vem

fazendo um esforço no sentido de atuar para que se ampliem os cumprimentos legais

para que seja cumprida a formação na educação das relações étnico-raciais, exemplo

Page 168: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

167

disso é a Portaria Nº 21 de 28 de agosto de 2013, sobre a qual já nos referimos

anteriormente, que orienta para que as IES nos cursos de graduação adotem o que,

desde 2004, está posto na Resolução Nº 1, ou seja, incluam no currículo dos cursos

a história e cultura afro-brasileira e africana. Acrescente-se que as instituições tem

autonomia para definir a forma de incluir, mas devem cumprir. Isto está posto.

6.2.2 História e memória: conteúdos indispensáveis da prática

A escuta das professoras sobre os referenciais epistêmicos indica uma

articulação entre a oralidade presente na trajetória da comunidade e referenciais que

contribuam para o fortalecimento identitário. A experiência dos mais velhos que detém

a história do lugar é uma referência central da memória, que confere sentido ao

passado como diferente do presente, como nos apresenta Chauí (1995).

Para as professoras, o desenvolvimento de práticas significativas está

relacionado à história da comunidade. Essa é uma referência-chave: história. Mas não

a história dos vencedores. A história validada em Conceição das Crioulas é a história

que, a partir das raízes quilombolas, nascidas em África, ressignificadas no Brasil, são

alimentadas pela memória da História Africana e alguns de seus princípios básicos: a

interdisciplinaridade, o conhecimento - que não é visto separado em campos, mas

está integrado fazendo interconexões; o lugar de fala - que a história seja vista,

narrada do seu interior; compreender a história do povo africano em seu conjunto,

antes da chegada dos colonizadores e antes da partilha; evitar excessivamente a

descrição do fato. Alimentar as afrografias da memória.

Identidade na interculturalidade é outro tema que se articula com o tema

história. Enquanto povos que têm uma experiência de viver de forma relacional, a

interculturalidade está presente enquanto prática intra-território, como vimos nas

relações estabelecidas entre as escolas, entre as gerações, as experiências do mais

velho para o mais novo e o diálogo estabelecido entre eles são práticas que

presenciamos no cotidiano da vida na comunidade. Está presente entre as

comunidades local e nacionalmente e, até, continentalmente, uma vez que os

quilombos se constituíram num fenômeno nas Américas. Mas a interculturalidade de

que estamos falando é a crítica, a interculturalidade que analisa os contextos

históricos, a partir das relações de poder, identifica as contradições dos processos e

os mecanismos de manipulação.

Page 169: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

168

Quadro 19 - Conteúdos indispensáveis da prática

P1 Território. Território é um espaço onde a gente pode plantar, pode cuidar, pode fazer casa.Tem direito de fazer o que a pessoa tem vontade. Pode usar a terra com inteligência. Um lugar de todos, onde todo mundo valoriza.

P3 A biografia das pessoas que fizeram história na comunidade. Se a gente não tem a história, a gente vai atrás e pesquisa mesmo, faz pesquisa, faz entrevista e depois trabalha em sala com os alunos.

P5

Eu queria falar da minha paixão por História. Eu escolhi o curso de história para fazer, eu sou integrante da Equipe do Crioulas Vídeo, que é uma comissão da AQCC. E, dentro dessa atividade, a gente foi trabalhado a trabalhar primeiro as questões políticas. Antes de fazer o vídeo pelo vídeo. Então, dentro da comunidade, a gente trabalha o vídeo que traga a história, que fortaleça identidade negra, que fortaleça a história das comunidades quilombolas, não só daqui de conceição, mas de outras comunidades aqui em Pernambuco.

P5

História. A Lei 10.639∕03 ela faz obrigatório o ensino da África e dos Afro-brasileiros, então a gente trabalha a história do negro no Brasil, do negro da África, mas a gente também trabalha a história do negro em Conceição das Crioulas, suas vivências, suas práticas e hoje, um dos trabalhos que mais acontece - que a gente tem muita vivência e muita prática e não tem registrado-, é o trabalho da oralidade. A gente pode trabalhar a partir daqui. A gente faz um trabalho de pesquisa que é muito intensa. A escola hoje consegue trabalhar integrada com a comunidade. Está diretamente vinculada com os acontecimentos da comunidade.

P5

A gente toma por referência a luta dos povos indígenas, a forma de organização. E, na educação, a gente tem trazido a interculturalidade. É um desafio ainda. A gente tem muita coisa ainda a melhorar, mas a gente não tem deixado de fora não.

Fonte: Delma Silva (2016).

Para Walsh (2009), a interculturalidade funcional assume a diversidade cultural,

sem mexer nas estruturas da desiqualdade, por exemplo. A interculturalidade crítica,

ao contrário, parte da leitura dos mecanismos de poder estruturadores, seu padrão de

racialização da sociedade e da diferença que se constrói a partir desse padrão de

poder e racialização. A interculturalidade crítica movimenta-se no sentido de

transformar as estruturas de dominação. A exemplo dos povos indígenas em

Pernambuco, conforme vimos ilustrada anteriormente numa relação de intercâmbio e

no quadro, a ilustração dos conteúdos que as professoras consideram indispensáveis

no currículo de modo que seja possível fortalecer a luta quilombola, a identidade de

pertencimento a essa trajetória histórica e as potencialidades com outros povos.

Os referenciais curriculares desenvolvidos no conteúdo das disciplinas não se

prendem às grades dos planos de ensino, se desenvolvem na relação do território

como espaço de todos e com outros espaços existentes na comunidade, além da

escola. Dentre os espaços, estão as residências das crianças, onde também se

Page 170: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

169

aprende a arte de saber fazer peças artesanais, como jogos americanos, ou se

aprende a pilar o milho. Na AQCC, aprende-se a organizar para lutar por direitos. Na

comunidade, é feita a exposição da biografia das pessoas que fazem história, no

passado e na atualidade. A história é um tear, onde são tecidas nas linhas, as tramas

e as conexões existentes no território e que produzem conhecimento.

A luta por direitos envolve as aprendizagens com os povos indígenas, porque

são povos historicamente irmãos na subordinação e no enfrentamento ao racismo, e

também porque são povos que compartilham identidades na interculturalidade crítica,

onde se aprende a fazer a história de uma outra forma. A história da escola, por

exemplo, produziu mobilização na comunidade e possibilitou reconhecimentos de

valorização e identificação de cada atividade produtiva que os familiares realizavam

socialmente.

A História de Bevenuto Simão. Ele era um parteiro, tocador de Pífano, dá nome a escola e pouca gente sabia da história dele. E a gente foi pesquisar essa história. E a comunidade foi vendo que a gente estava realmente interessado em contar essas histórias. Hoje eles já recebem a gente nas casas, que antes eles não queriam falar, dar entrevista pra gente. Tinham vergonha em relação a todos os temas, porque sofriam. Iam para a serra buscar lenha. Achavam essa história feia, mas quando eles chegavam na escola e se viam no muro desenhado, tirando lenha e palha, eles se sentiam valorizados.A gente pesquisou a história dos Movimentos Sociais, do esporte, das religiões e depois cada um botou na parede, contou essa história. Quando foi um dia a gente chamou a comunidade para vir ver. E aí, eles se achavam ali (C).

Foto 13 - Projeto Arte em Toda Parte: as atividades desenvolvidas na comunidade

Fonte: Marinalva Bezerra (2011).

Page 171: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

170

Conseguir fazer a leitura da realidade, compartilhar a sua história comum

fortalece e valoriza a comunidade individual e coletivamente. A vergonha da pobreza

que gera culpa e produz sofrimento instiga Freire (1998) ao afirmar que

“a alfabetização, por exemplo, numa área de miséria só ganha sentido na dimensão

humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de

que vá resultando a extrojeção da culpa indevida.” (FREIRE, 1998, p. 93). Pois o

oprimido não é responsável pela sua opressão, mas a sua libertação dependerá da

compreensão que ele fará dela e neste processo a conscientização é uma referência

chave porque “não pode haver desenvolvimento sócioeconômico em nenhuma

sociedade dual, reflexa e invadida.” (FREIRE, 2013, p. 217). Para os quilombolas

retomarem seu território que foi invadido e a educação que foi colonizada, realizaram

o processo de desintrusão a partir da consciência de si enquanto sujeito histórico.

A seguir, apresentaremos uma prática de alfabetização que não seria exitosa

se permanecesse em sala de aula da escola. A experiência positiva foi possível pelo

vínculo estabelecido da professora com a criança. A responsabilidade e sensibilidade

para perceber formas concretas que possibilitassem a criança a materializar as letras,

dando-lhe forma concreta, materializando-a em objeto. A criança modelou as letras

na argila, para que as letras ganhassem representação e significado para si.

6.2.3 O menino que queria aprender a ler: uma experiência de alfabetização

modelando a argila

A experiência do desenvolvimento da educação em Conceição das Crioulas,

em especial na escola do estudo de caso situada no Sítio Paula, faz parte das lutas

empreendidas desde a redemocratização do país e ganha vulto a partir de 2007.

A educação desenvolvida tem uma característica forte na perspectiva africana

e freiriana, que é o diálogo. Não é sem sentido a experiência de Freire em África. Essa

experiência do autor o marcou profundamente. O diálogo pela exigibilidade de direitos

a partir das organizações em forma de associação local, estadual e nacional e o

exercício do diálogo no campo educacional, objeto desse trabalho. O diálogo produz

um movimento que imprime nos processos sociopolíticos, movimentos de fluxos e

refluxos, avanços e recuos. No exercício da dialogicidade não há linearidade, ou seja,

na perspectiva africana, o diálogo é espiralado.

Page 172: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

171

Nesta sessão, focaremos o diálogo cujas lentes focam a aprendizagem de uma

criança e o seu direito a alfabetizar-se, lendo o mundo e construindo as condições

para dizer a sua palavra neste mundo. Diz a coordenadora que

já estava no meio do ano e Caio (nome fictício) não estava lendo. Os coleguinhas já sabiam formar sílabas e algumas palavrinhas e Caio ainda não. A professora começou a pensar como trabalhar para que a criança lesse. Foi quando ela teve a ideia de ir com ele no barreiro, e começou a fazer um trabalho de modelar no barro as letras. Começou fazendo as vogais. Em maiúscula: A- E- I- O –U. Depois foi a vez das consoantes. E, assim, a cada dia, mais letrinhas eram formadas com barro e trazidas à escola para secar. Quando foi um dia, Caio, falando o nome dele... Começou a juntar a consoante C, com as vogais... aio e pronunciou C A I O. Muito feliz disse pra a professora: olha, meu nome! E com muito cuidado tratou de levar juntas as letrinhas do seu nome para a escola e expor no pátio no sol para secar (Registro do Caderno de campo, conversa com a coordenadora da escola em 11 de setembro de 2015).

Trouxemos essa história que nos foi contada para ilustrar a sensibilidade da

professora ao lidar com o processo de alfabetização da criança, lembrando que

Carmem Bandeira, Ester Souza e Maria Melo (1992) argumentam que

a partir da experiência com a alfabetização de crianças, a eficiência e rapidez desse processo deve-se à naturalidade com que ele ocorre, à semelhança de outras aprendizagens como, o falar, o andar ereto,et. Assim aprende-se a ler, lendo e convivendo com situações de leitura, anteriores mesmo ao esforço escolar com a alfabetização, daí cabendo ao professor o papel de fomentador de experiências naturais de leitura dentro e fora da sala de aula (BANDEIRA, SOUZA; MELO, 1992, p. 18)

Essa experiência nos lembrou da iniciativa social, e a educação é iniciativa social, “o

desenvolvimento humano tem que ver com quebrar limites, não em restringir o potencial.”

(KAPLAN, 2002, p. 212). O autor afirma, ainda, que “quando começamos a pensar como

participantes e aplicar o pensamento holístico, aprendemos a ler de modo completamente

diferente, e toda nuance do mundo nos afeta e é afetada por nós. Ao avaliar a relação,

estamos na relação” (KAPLAN, 2002, p. 212). Observamos que, ao estar na relação ensino-

aprendizagem, num determinado contexto, a professora observa que existe uma criança cujo

ritmo e condições de aprendizagem pedem uma ação pedagógica diferenciada. E ela cria

essa ação inovadora, como nos convida Arroyo (2011), quando trata do pensamento crítico e

inovação educativa.

Page 173: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

172

Para esse autor “inovar é fazer com que todos entendam que o saber escolar não é

neutro, não obedece a lógica científica, é sim, selecionado e organizado intencionalmente.

“[...] Inovar a escola e o currículo é desvelar os critérios de seleção e organização do

conhecimento escolar.” (ARROYO, 2011, p. 142). Há uma dialogicidade no que diz o autor e

o que diz a professora quilombola “a criança não tem que aprender só com o livro

didático, mas ela tem que aprender também com o conhecimento que a sua

comunidade oferece” (P5). A professora de Caio, na relação com a criança, ficou

afetada com a situação dela e buscou alternativas que estavam acessíveis no território

para criar uma possibilidade de aprendizagem.

A inovação não é uma ação apriorística, é uma ação contextualizada,

envolvente, relacional. “Somente ao estabelecer uma relação íntima com a situação

(e portanto se tornando parte da situação) nos será permitido dialogar” (KAPLAN,

2002, p. 213). É esse diálogo que cria intimidade no processo de desenvolvimento e

ensino-aprendizagem que humaniza. A isso se pode chamar de qualidade.

Na experiência inovadora que a professora exerceu, dialogamos também com

Freire (1998, p. 23), que entende que “não há docência sem discência.” A relação

professor aluno é uma relação carregada de sentido na boniteza da relação ensino-

aprendizagem. Uma relação envolvente que não se encerra intra-muros da escola. A

escola é o campo, enquanto amplas possibilidades de aprendizagens no território. A

escola é relação intensa na comunidade que está atenta em sua organização

sóciopolítica e cultural. Ela é, portanto,

um dos fatores indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. Quem forma se forma e reforma-se ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado (FREIRE, 1998, p. 25).

Nessa experiência envolvendo professor-aluno, ambos aprenderam, e

aprendemos nós, das possibilidades que a cultura de raiz afrodescendente é capaz

de fazer florir. Para Rabaka (2009, p. 131), “a cultura é elemento crucial e decisivo

para os esforços que visam à emancipação física e mental das pessoas de origem e

ascendência africanas, em particular, e da humanidade, de maneira geral.” Há uma

indissociabilidade entre educação-cultura pelo potencial transformador dessa

conjungação.

Page 174: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

173

6.2.4 Do visível e indizível nas práticas curriculares: o sagrado africano presente na

natureza que ambienta e alimenta a relação inter-geracional quilombola

Nesta subseção, nosso foco é o sagrado na perspectiva ancestral africana. Ao

longo do período de permanência no território, na escola, em conversas com pessoas,

nas entrevistas, no grupo focal, nos chamou a atenção que o sagrado africano

enquanto religião afro-brasileira, não aparecia nos discursos dos sujeitos

entrevistados.

Em abril de 2016, em nossa última estada em campo, perguntamos diretamente

à coordenadora se havia no território a presença de um espaço sagrado de culto de

Matriz Africana. Ela nos informou que não. Haviam pessoas que eram da religião, mas

que não existia um espaço territorial onde a vivência da religião fosse praticada.

Registramos a informação e voltamos aos diálogos sobre as práticas

curriculares. Quando da seleção das fotografias e leitura dos registros de campo,

observamos que uma das fotos no pátio interno da escola tem uma árvore chamada

Noz de Cola. A semente dessa árvore foi presenteada à coordenadora por um africano

de Moçambique que passou um período na comunidade como cooperante para

assuntos técnicos em agricultura. Embaixo da copa dessa árvore, eles fizeram um

assento circular de madeira, onde é comum as professoras e familiares sentarem com

os alunos, para alguma atividade escolar.

Nossa curiosidade nos instigou a conhecer a árvore, saber de suas

propriedades e seu fruto, uma vez que desconhecíamos. O fruto da Noz de Cola,

chama-se Obì. O Obì é uma amêndoa presente nos rituais de Candomblé. Para Mãe

Beata de Yemonjá (2009, p. 22), o Candomblé foi e é o responsável pela manutenção

de vários aspectos da cultura, da religiosidade e do pensar coletivo negro. Para Barros

e Teixeira (2008, p. 201),

Os Terreiros de Candomblé, Roças ou Casas de Santo, denominações correntes utilizadas para nomear os espaços e grupos do culto aos deuses africanos Orixás (inquices e voduns), representam historicamente uma forma de resistência cultural e coesão social.[...] Axé, conceito fundamental da religião dos Orixás, pode ser definido como força invisível, mágica e sagrada de toda divindade, de todo ser e de todas as coisas ou como energia vital de todas as coisas e seres.

Page 175: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

174

A palavra é referência-chave do fazer africano e da diáspora. A palavra religa

e dá sentido aos fazeres. Nas culturas de tradição oral, a palavra é o elo que conecta

os seres entre si, com a natureza, com o sagrado. A palavra na tradição oral educa.

E sobre a árvore Noz de Cola, existe um conto tradicional sobre essa árvore.

Consideramos relevante trazer esse conto, porque o mesmo diz da existência

da ancestralidade africana presente na escola e que simplesmente está lá. É uma

árvore que faz sombra e acolhe sob a sua copa adultos, jovens e crianças. As pessoas

estabelecem vários tipos de relação: realizam contação de história, brincam,

conversam, fazem refeições, aprendem mutuamente e também constroem

conhecimento.

Page 176: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

175

Figura 02 - Lenda do Obì

Fonte: Disponível em: <https://toluaye.wordpress.com/2007/02/16/lenda-do-obi/>. Acesso: 23 out.

2016.

Lenda do Obì

Olófin, O Senhor das Leis, um dos títulos de Olódùmaré, decidiu um dia visitar a Terra e ver de perto como

as coisas andavam. Em sua caminhada, conheceu um homem que se chamava Obì, e que lhe impressionou

muito por ser ele uma pessoa muito justa, sem orgulho e pretensões, e sem nenhuma vaidade.

Então Olófin decidiu que Obì deveria viver muito alto, vestido de branco por fora e por dentro, que sua alma

seria imortal e que trabalharia para ele. Em seguida, Olófin lhe apresentou Èsù, e entre ambos surgiu grande

amizade, sendo que os amigos de um passaram a ser amigos do outro. Os pobre, os ricos, os corretos, os

desajustados, todos eram amigos de Èsù.

Com o correr do tempo, Obì, começou a se tornar vaidoso e cheio de si. O orgulho tomou conta dele, que

passou a evitar as pessoas que lhe eram inferiores; até Ésù ele evitava, devido as suas amizades que não

agradavam Obi.

Desejando celebrar uma festa, Obì convidou Èsù e pediu-lhe que evitasse convidar suas amizades. Èsù, que

havia notado a mudança de comportamento de Obì, convidou os poderosos e ricos, mas também convidou os

vagabundos e miseráveis da cidade. Quando Obì chegou em casa e viu aquela gente estranha, ficou irado e

perguntou: “quem convidou essa gente à minha casa?” Todos responderam: “foi Èsù.” Obì se enfureceu e

expulsou a todos, dizendo que não admitia vagabundos em sua casa. Èsù chegou no momento em que todos

saíam, dizendo que Obì era vaidoso e ingrato. Em seguida, saiu acompanhando seus amigos.

Compreendendo o que havia feito, Obì tentou reconsiderar, dizendo que havia se equivocado ao tratar daquela

forma os amigos pobres de Ésù. Ésù, porém, não lhe fez caso, seguindo seu caminho.

Certo dia, Olófin, convocou Ésù à sua presença e pediu-lhe que levasse um recado para Obì, porém Èsù se

recusou, e, ao ser inquirido sobre a razão da recusa de ir à casa de seu amigo, respondeu-lhe que Obì havia

mudado de comportamento, tornara-se muito vaidoso e se recusava a receber em sua casa os pobres e os

humildes.

Olòfin escutou em silêncio o relato de Èsù, e, quando este terminou lhe disse: “vou ensinar uma lição a Obì.”

Usando de um disfarce, Olófin foi até a casa de Obì. Tocando a porta, foi recebido por Obì, que não lhe

reconheceu, e foi dizendo para se afastar dali, que ele não dava esmolas a ninguém. Olófin ao ouvir aquilo

firmou a voz e lhe disse: “olhe para mim! Veja quem sou eu!!”

Obì, diante da presença de Olófin, tratou de corrigir-se, alegando engano. Olófin então lhe falou: “Eu lhe

acreditava um homem honesto, íntegro e bom, sem falso orgulho ou vaidade, por isso o fiz branco por todos

os lados e com espírito imortal. Parece que de viver tão alto, sua cabeça chegou às nuvens. Mas vou corrigir

tudo isso. Você, a partir de agora, viverá no alto, mas só que no alto das árvores, porém cairás e rolarás por

terra, para que aprendas que por mais elevado que uma pessoa esteja, também poderá cair por terra. Você se

vestirá de verde por fora e branco por dentro, mas algumas vezes será negro. Quando aprender a corrigir seus

erros, eu o perdoarei. Até lá, você deverá servir a todos os Òrisà e ajudará a predizer o futuro a todos que

desejarem saber, tanto os ricos como os pobres e necessitados sem distinção social ou de cor.”

Olódùmaré também proclamou que, como um símbolo da prece, a árvore somente cresceria em lugares onde

as pessoas respeitassem os mais velhos.

Naquela reunião do Conselho Divino, a primeira Noz de Cola foi partida pelo próprio Olodunmare e tinha

duas peças.

Ele pegou uma e deu a outra para Elenini, a mais antiga divindade presente.

A próxima Noz de Cola tinha três peças, as quais representavam as três divindades masculinas que disseram

as orações que fizeram nascer a árvore da Noz de Cola.

Page 177: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

176

Nos chamou a atenção que a semente do fruto foi um presente de um africano

de Moçambique que desenvolveu um trabalho na comunidade. A Noz de Cola é

considerada uma árvore sagrada. De origem africana mais especificamente da África

Ocidental e Central, a semente se expandiu para a América Latina no tráfico negreiro.

Os escravizados costumavam mastigar as amêndoas para suportar os trabalhos

pesados. As sementes têm ação estimulante, regularizadora da circulação. As

sementes contém teobromina e cafeína, que atuam como revigorantes do sistema

nervoso e muscular. É antidiarreica e também usada para tratar anemias, problemas

estomacais e enxaquecas.

A copa da árvore protege para a realização de atividades, conforme se vê

discretamente à direita na parte superior da foto abaixo.

Foto 14 - Projeto Arte em toda Parte: crianças sob a copa da Noz de Cola

Fonte: Marinalva Rita (2011).

A árvore só cresce em lugares onde as pessoas respeitam os mais velhos.

Esse outro elemento articula os princípios da educação escolar quilombola, a tradição

oral, o respeito aos mais velhos, princípios presentes também na Pedagogia Griô, que

utiliza a palavra do ansião, dos mais velhos, das lideranças na relação inter-

geracional, usando a palavra como o fio que tece a partir da memória, a história, a

articulação entre passado e presente, entre os vivos e os mortos.

Page 178: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

177

Essa referência do aprender observando, do aprender a partir da

palavra, está presente na pedagogia iniciática do Candomblé, pautada na observação

contínua.

Vários autores (Verger, 1972; Santos, 1976, Barros, 1983) tem mencionado a importância do som e da palavra falada [...] a palavra possui uma força especial que, ativada nos momentos adequados, é responsável pela dinamização do Axé (BARROS; TEIXEIRA, 2008, p. 203).

Entendemos que o espaço reservado na escola para a árvore de Noz de Cola,

como um lugar de exercício de encontro e diálogo, de contar histórias é uma forte

expressão do Axé presente no território e cultivado na escola, enquanto “energia vital

de todas as coisas e seres.”

6.3 Gestão escolar e relação de pertencimento: o lugar da família na experiência

do currículo quilombola

Na construção do nosso referencial trouxemos a conceituação de quilombos

desde o século XV. Pudemos observar que a construção desse sujeito político é

histórica e modificou-se ao longo dos séculos. Aqui vamos trazer a discussão

contemporânea do debate na academia. O quilombo dos Palmares é a grande

referência dessa produção, “Clóvis Moura, Edison Carneiro, Roger Bastide e Décio

Freitas são autores que tratam o tema como fenômeno do passado nas décadas de

1930 e 1960.” (LARCHERT; OLIVEIRA, 2013, p. 45). As autoras informam que os

intelectuais negros que vão atualizar o debate na academia sobre quilombos são

Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Joel Rufino dos Santos

(LARCHERT; OLIVEIRA, 2013, p. 46), cujo significado está voltado para as

resistências política e cultural dos negros brasileiros. É na década de 1970 e 1980

que, no contexto da intensificação do Regime Militar e também processo de abertura

política, com o processo de redemocratização e a Constituição de 1988, que

a utilização do termo quilombo passa ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária, no sentido de agregação, no sentido de comunidade, no sentido de luta, como se reconhecendo homem, como se reconhecendo pessoa que realmente deve lutar por melhores condições de vida, porque merece essas melhores

Page 179: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

178

condições de vida desde o momento em que faz parte dessa sociedade (NASCIMENTO, 2009, p. 53).

Vinculado às lutas sociais, os quilombolas enquanto sujeitos políticos

produziram intensa movimentação organizativa. A participação e o movimento por

direito político cresceu no final do séc. XX e início do XXI, e os sujeitos organizados

vão imprimir a necessidade de democratização educacional, acesso, permanência,

qualidade, que são pautas que entram na agenda nacional protagonizada pelos

quilombolas.

A Constituição abriu caminho e, só depois de ultrapassada a metade da década

de 1990, foi promulgada uma nova Legislação da Educação, a Lei 9394/96. Entra na

agenda a democratização da educação, a estrutura e condições de aprendizagem, e

tantos outros fatores, como transparência e controle social das políticas públicas,

inclusive do financiamento da educação.

Dentre as mudanças e perspectivas conquistadas, queremos focar aqui a

importância do Projeto Político Pedagógico como elemento que envolve toda a

comunidade na sua elaboração. Isso implica numa perspectiva da relação entre a

gestão e a comunidade no sentido alargado do termo. Implica na concepção de

educação que “nasce do coração mesmo da pedagogia que tem o oprimido como

sujeito.” (BOFF, 2004, p. 11).

Da relevância de democratizar a escola, construir diálogos com todos e todas

faz Freire estar convencido “da importância, da urgência da democratização da escola

pública, da formação permanente de seus educadores e educadoras entre os quais

incluo vigias, merendeiras, zeladores.” (FREIRE, 2011, p. 32). Nesta formação, o autor

é enfático: “que não falte sobretudo o gosto das práticas democráticas, entre as quais

a de que resulte a ingerência crescente dos educandos e de suas famílias nos

destinos da escola.” (FREIRE, 2011, p. 32). É sobre essa relação colaborativa,

dialogada, onde a comunidade, conscientemente, “toma de conta” da escola onde

desenvolveremos os resultados que indicam o reconhecimento da família pela escola,

ilustrada na foto abaixo: um pai e artesão da argila/barro ensina seu ofício às crianças.

Então, eles vão ao campo reconhecer os vários tipos de solo existentes na região,

reconhecer o barro bom para modelar, aprendem fazendo.

Page 180: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

179

Foto 15 - Família participando do currículo: pai e artesão ensina sobre os tipos de solo

Fonte: Marinalva Rita (2015).

6.3.1 A participação da família na escola quilombola contribui para positivar a

autoestima da criança e da comunidade e o sentimento de ser capaz

Uma característica de ser quilombola no Brasil é o elevado grau de parentesco

que existe entre os seus habitantes no território. A relação de pertencimento na

relação biológica tem sido um potencial agregador na luta política e foi decisiva para

que a comunidade tomasse de conta do direito à educação como um direito humano

e promotor de qualidade de vida.

Esse “tomar de conta” alterou significativamente a realidade vivida na

comunidade nos últimos 15 anos. Os dados apresentados no relatório anual do Unicef,

no início dos anos 2000, sobre a situação da infância quilombola no Brasil, são

estarrecedores.

31,5% das crianças quilombolas de sete anos nunca frequentaram bancos escolares; as unidades educacionais estão longe das residências e as condições de estrutura são precárias, geralmente as construções são de palha ou de pau a pique; poucas possuem água potável e as instalações sanitárias são inadequadas. O acesso à escola para estas crianças é difícil, os meios de transporte são insuficientes e inadequados e o currículo escolar está longe da realidade destes meninos e meninas. Raramente os alunos quilombolas veem sua história, sua cultura e as particularidades de sua vida nos programas de aula e nos materiais pedagógicos. Os professores não são capacitados adequadamente, o seu número é insuficiente para atender a demanda e, em muitos casos, em um único espaço há apenas uma professora ministrando aulas para diferentes turmas (UNICEF, 2003, p. 15).

Page 181: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

180

Dessa realidade, parte dela estava presente em Conceição das Crioulas no

início dos anos 2000. Vamos destacar alguns aspectos que promoveram na

comunidade elevação da qualidade da educação: a relação entre saneamento e

saúde, alimentação na escola e transporte escolar.

Há 17 anos, poucas casas na Vila Centro de Conceição das Crioulas contavam

com instalações sanitárias. As necessidades fisiológicas e o banho eram feitos numa

área no quintal da casa, afastada. Essa realidade era mais rara nos sítios mais

distantes da Vila Centro. Por essa área, transitavam animais. Um dos aspectos que

afetam a aprendizagem é o problema das parasitoses nas crianças, as conhecidas

verminoses, que têm relação com as condições de saneamento e com a qualidade da

água. A água, em tempos de seca, era carregada dos barreiros, dos caldeirões. Dessa

água eles bebiam e destinavam também para cozinhar. A roupa era lavada nos

caldeirões. Hoje é rara uma residência que não tenha instalações sanitárias. Tratar

saneamento como condição de saúde que contribui para que as condições de

aprendizagem estejam providenciadas é uma realidade. Interessa saber que embora

o tipo de instalação hidráulica traga os seus limites num contexto de escassez de

água, esse é um desafio que certamente será enfrentado no seu devido tempo. Há

disponível tecnologias de banheiros secos, implementados desde 2008 em algumas

regiões do país, numa iniciativa da Fundação Nacional de Saúde-FUNASA, apoiada

pela Fundação Interamericana-IAF. Em Pernambuco, em 2010, o projeto estava

coordenado pelo Centro Diocesano de Apoio ao Pequeno Produtor- CEDAPP.

No que se refere à alimentação escolar, o município oferecia para esta escola

lanche pronto: bolacha, biscoito e enlatados: carne, sardinha. Até que a gestora, junto

com a comunidade, questionou porque outras escolas recebiam feijão, arroz,

macarrão, carne, peixe e lá não chegavam esses alimentos. Foram informados que

era porque lá não tinham condições de armazenamento e preparo. A Coordenadora

reuniu a comunidade e foi dialogar sobre o problema. Explicou a situação e disse que

dos recursos que eles tinham do Programa Dinheiro Direto na Escola- PDDE-

programa que tem por objetivo melhorar a infra-estrutura e física e pedagógica das

escolas-, eles poderiam comprar o freezer e o fogão. E assim foi feito. Hoje, eles

recebem os alimentos que decidem. A refeição na escola mudou significativamente

de qualidade, passando a cumprir o estabelecido na Lei 11.947/04, que dispõe sobre

o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola.

Page 182: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

181

No que se refere ao transporte, a maioria das pessoas andava a pés. Nas

reuniões da AQCC, alguns caminhavam até 10 km para chegar na Vila Centro, como

Sr.Vicente, que, na época, era analfabeto e, em meados da segunda década dos anos

2000, passou a frequentar a EJA e, aos 70 anos de idade, se alfabetizou. Poucos

tinham bicicleta. Carro era considerado um luxo. As crianças iam para a escola num

transporte chamado “Pau de Arara” e se deslocavam para a faculdade em ônibus com

janelas faltando. Desse modo, chegavam na Faculdade cobertas de poeira vermelha

que subia da estrada de terra.

Na atualidade, todas as gestoras têm seu automóvel próprio. Realidade que é

compartilhada com outros professores, se não é o carro é a motocicleta. Isso permite

mobilidade e o exercício do direito de ir e vir num contexto de difícil acesso. Existe o

transporte escolar que leva as crianças da educação básica de todos os sítios para

as escolas e também, no final da tarde, levam as professoras e professores à

faculdade na sede do município, em Salgueiro. Depois da Lei 10.880/04,

gradativamente, os municípios também foram se adequando.

No Plano Municipal da Educação de Salgueiro (2015-2024), por exemplo, está

posto nas estratégias do Ensino Fundamental: garantir transporte escolar de

qualidade, conforme as leis de trânsito, priorizando o transporte intracampo, reduzindo

o tempo máximo dos estudantes em deslocamentos (Lei, 1949/2015 p. 34).

Na escola, germinava, nos anos 90, o início da construção do Projeto Político

Pedagógico da Escola. Em 2000, a comunidade cria a Associação Quilombola de

Conceição das Crioulas-AQCC, que passa a trabalhar de forma integrada com os

educadores do território em suas cinco comissões: Patrimônio, grupo de lideranças e

gestoras que acompanhavam as questões atinentes à regularização do território; Na

Comissão de Saúde, a maioria era agente de saúde. Desse grupo, participavam

também as parteiras; Na Comissão de Educação, todas as educadoras integravam

essa comissão que era acompanhada pelo CCLF.

Nesse início dos anos 2000, a Comissão de Cultura teve um papel

extremamente relevante, foi responsável por dinamizar e dar visibilidade à cultura

existente na comunidade. Foi iniciativa dessa comissão a realização da primeira

semana cultural de Conceição. A Comunicação de comunicação era a articuladora,

mobilizadora de todas as comissões. Para ela, convergiam as realizações que

deveriam ganhar o mundo no “Crioulas: a voz da resistência.”

Page 183: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

182

No que se refere à formação inicial e continuada do professor, vimos na sessão

que aborda sobre o assunto como esse aspecto avançou ao longo das últimas

décadas. Os professores são licenciados e moram na comunidade, o que é raro no

Brasil, e estão investindo na Pós-Graduação.

Um aspecto que chama a atenção é a situação das classes chamadas

multissérie. Sobre esse assunto, ouvimos a coordenadora da escola que fez a

seguinte reflexão:

Eu acho que classe multisseriada todas as escolas são! Porque as experiências que a gente vê hoje na educação brasileira, é que as turmas nem sempre são todas alfabetizadas. Tem criança no quinto ano, por exemplo, que lê bem, produz bem, mas tem outras que nem lê. Então, eu acho que trabalhar classe multisseriada pra mim, não é nenhum problema. Por conta disso mesmo, de se ajudar, dos estudantes tá sempre ali perto misturado já também pra entender que em um momento ele pode estar ajudando o outro também. E a professora é a professora de todo mundo, não é professora só mais daquele. Isso também ajuda na alfabetização daquele que não está alfabetizado (C).

A classe multisseriada não aparece como um problema na experiência

educacional na escola campo de pesquisa em Conceição das Crioulas. Ao contrário,

é anunciada como uma oportunidade das crianças se ajudarem mutuamente nos seus

ritmos diferentes de aprendizagem. Afinal, “a energia de cada um e de todos vem da

comunidade e aquele que a fortalece também se torna forte” (SILVA, 2011, p. 88).

Para a autora, esse é um princípio-chave nas africanidades brasileiras, aprender junto,

aprender fazendo.

6.3.2 Gestão do currículo quilombola: a experiência africana resignificada na escola

Nesta experiência de gestão, a escola tem articulado as famílias e os saberes

que elas vivenciam na vida econômico-produtiva-educativa. Consultam as crianças

sobre os problemas que vivenciam na comunidade e que papel a escola poderia ter

frente a essa realidade. Dessa relação, nasceu a proposta de trabalhar Currículo por

Projeto, na perspectiva freiriana de tema gerador, numa relação entre projeto e

práticas sociais. “Trabalhar com os temas geradores significa possibilitar a articulação

do trabalho pedagógico com a realidade sociocultural das pessoas em aprendizagem

Page 184: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

183

curricular, seus interesses, com o conhecimento acumulado historicamente.”

(MACEDO, 2013, p. 102).

Currículo por Projetos, de acordo com Macedo (2013, p. 99), vem sendo

praticado como uma referência curricular inovadora, superando a perspectiva

prescritiva do currículo, cultivada pela tradição curricular. Currículo por Projeto

começa com a escolha do tema que constitui o ponto de partida. É importante destacar

que “em cada nível de escolaridade, essa escolha adota características diferentes.” A

escolha do tema acolhe as experiências vividas anteriormente pelos alunos, que pode

ser originárias de uma questão comum, de um fato da atualidade, podem surgir de um

problema proposto pela professora a partir de leitura de contexto. O compromisso é

com o estímulo de motivar o desenvolvimento de um processo ativo e criativo,

envolver vários campos do conhecimento e trabalhar juntos.

Hernández e Ventura (1998) afirmam que, partindo da perspectiva geral, os

projetos geram um alto grau de autoconsciência e de compreensão nos alunos com

respeito a sua própria aprendizagem. Assumindo essa perspectiva curricular, onde o

aluno, sua família e a comunidade são sujeitos propositivos do currículo em ação, a

escola está também atendendo ao marco referencial legal.

A LDBEN, no Artigo 13, diz, dentre outras coisas, que os docentes têm a

incumbência de “participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento

de ensino; [...] colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias

e a comunidade. Isto está assegurado nos termos da Lei para a educação no Brasil,

e está presente nos princípios da educação quilombola” (CCLF, 2009, p. 15) “que o

currículo seja elaborado pela própria comunidade, garantindo os conteúdos

específicos de cada quilombo e a interculturalidade.”

O projeto que a comunidade construiu e vem desenvolvendo está ligado à

experiência concreta, está situado num contexto, e é refletido, planejado no coletivo.

E ela própria explica como aconteceu, como elas “desagarraram” da proposta das 16

escolas que a Gestão Escolar do Município chamava de “escolas isoladas”:

a gente saiu, desagarramos do PPP dessas 16 escolas. Das escolas isoladas, que eles chamavam, das escolas multisseriadas. Essas escolas daqui de Conceição, Vila Centro, elas não estavam porque não eram multisseriadas. E essas 16 escolas eram chamadas de isoladas. E foi outra coisa que eu briguei muito, de chamar as escolas multisseriadas de isoladas, para desacostumarem de chamar essas escolas multisseriadas de escolas isoladas. Aí a Secretária perguntou

Page 185: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

184

se a gente ia sair do PPP: ‘vão ficar sem PPP?’ E a gente disse que não, que a gente vai tentar fazer o nosso PPP. E foi muito difícil porque nem a comunidade sabia o que era o PPP e nem a maioria dos professores também (C) (APÊNDICE E).

Aqui há uma tensão, um enfrentamento que definiu a conquista da comunidade

sobre a decisão de construir o PPP, num contexto em que a maioria dos professores

não sabia como fazer. Mas alguém sabia, alguém tinha referência de como fazer,

aprenderam nas formações continuadas e foram em busca de mais contribuições

tendo consciência de que “só quando nós próprios discutimos e refletimos sobre a

nossa especificidade é que podemos garantir que a nossa história, nossa

organização, nosso modo de sermos, nossa ancestralidade, se reflita nos nossos

currículos.” (CCLF, 2009, p. 15).

Esta é uma das bases que sustentam os princípios da educação escolar

quilombola.Está presente a dimensão de consciência que se desenvolve, tanto quanto

se desenvolve a organização do grupo que vai dar à escola a sua cara.

A gente fez um projeto que chamava Arte em Toda Parte, que era para sensibilizar mesmo todo o mundo da comunidade que a escola era deles. E a primeira coisa que a gente fez foi deixar a escola com a cara mesmo, do povo de lá. [...], onde os meninos leram e conheceram várias histórias africanas e sem ser africanas também. E aí fizemos uma eleição para ver qual era a melhor história. Para finalizar o concurso, ficaram quatro histórias. Quem ganhou foi a história da Menina Bonita do Laço de Fita. A comunidade foi quem foi eleger. Os meninos interpretaram a história, se caracterizaram. Houve o desfile da “Menina Bonita do Laço de Fita”, que até hoje todo ano a gente faz.[...] Começou por aí, que a escola tivesse a cara da comunidade. [...] E a comunidade foi vendo que a gente estava realmente mesmo interessado em contar essas histórias, em ouvir, contar e recontar. E aí, hoje, eles já recebem com muita facilidade a gente nas casas, que antes também eles não queriam falar. De dar entrevista, de contar histórias, tinham vergonha. Este projeto foi muito significativo pra gente, porque a gente melhorou muito a autoestima dos meninos e da comunidade, das famílias (C) (APÊNDICE E).

A arte contribui com os processos de criação, expressão, libertação. Educação

e cultura é um binômio indissociável. Na cultura trabalhada pela escola há

reconhecimento, identificação, abertura e acolhimento. Esse processo tem

possibilitado muitas trocas, tem possibilitado o fortalecimento na convivência e na

construção do projeto de ser humano, de ser capaz, de ser mais, na perspectiva

freiriana.

Page 186: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

185

Trabalhar por projeto foi o caminho que a gestora, em diálogo com a

comunidade escolar, propôs para iniciar a conquista da gestão da escola com efetiva

participação. Rompendo com a denominação de “isolamento”, a comunidade trilhou o

caminho do compartilhamento. “O grande diferencial do PPP da Escola é que ele é

elaborado por nós da comunidade. Da escola, os estudantes, as lideranças. A

comunidade é quem diz o que é que vai ser trabalhado na escola.” (C, em entrevista,

11 set. 2015, p. 3).

Faz todo sentido a gestora anunciar Paulo Freire como referência principal da

escola. A gestora, junto com a comunidade, explicita a insurgência frente a uma

gestão que padroniza e oprime, “trazendo tudo pronto”, ilustrada pelo termo “escolas

isoladas.” A decisão tomada em 2008, trouxe frutos ao longo do tempo. Em 2015, no

Plano Municipal de Educação de Salgueiro (SALGUEIRO, 2015, p. 35) está sinalizado

como estratégia do Ensino Fundamental “garantir a normatização da educação

quilombola e indígena, com a participação do movimento, as suas culturas,

assegurando o direito à valorização e à visibilidade e a sustentabilidade de seu

território tradicional”, ou seja, um avanço, considerando a situação posta

anteriormente de isolamento.

A gestão escolar que vem sendo desenvolvida na escola do nosso estudo de

caso segue o estabelecido no Art. 13 da LDBEN, Lei 9394/96, no que se refere à

responsabilidade docente, a saber:

I - participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II - elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III - zelar pela aprendizagem dos alunos; IV - estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V - ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; VI - colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade. (BRASIL, 1996).

Destaca-se que o cumprimento da LDBEN está plenamente articulado com as

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e os Princípios

da Educação Escolar Quilombola, estes foram elaborados tendo a contribuição das

Page 187: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

186

professoras e professores da Comunidade de Conceição das Crioulas, ou seja, a

participação das famílias, que agrega no aprender fazendo.

Page 188: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

187

Mas o que aprender dos Movimentos Sociais? A resposta mais contundente é que os coletivos populares se reconhecem sujeitos de conhecimento, de valores, culturas, sujeitos de processos de humanização/emancipação. (ARROYO, 2012, p. 25) A gente tem uma educação de qualidade. Apesar de muita gente não acreditar nisso. Tem muita gente que ainda desconfia do nosso jeito de ensinar (OLIVEIRA, 2015)4

4 Extrato da Entrevista de Professora entrevistada nesta Pesquisa em setembro de 2015

Page 189: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

188

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consciência de compreender-se enquanto sujeito histórico foi e continua

sendo condição para os quilombolas organizados manterem a vigilância sobre as

conquistas no campo da educação, no campo da regularização e desintrusão do seu

território, no caminho da humanização que sofre ameaça de retroceder nas conquistas

alcançadas há pouco mais de quinze anos. “A gente tem uma educação de qualidade.

Apesar de muita gente não acreditar nisso.” Esta frase da professora enquanto

epígrafe, ilustra essa consciência posicionada de leitura de mundo e reconhecimento

do que caminhou no esforço de dialogar até mesmo com quem lhe queria destruir.

Não foram poucos os esforços do Estado, das elites e, até mesmo, do campo da

pesquisa científica para eliminar o negro/quilombola da sociedade e

consequentemente da história, da produção de conhecimento. Afinal: Escola

quilombola para quê? Precisa mesmo de uma educação específica?

A história do negro na diáspora e, em especial a história do negro e quilombolas

no Brasil, diz que sim, precisamos que a escola brasileira tenha em suas práticas a

expressão das múltiplas identidades dos sujeitos que dela participam. Caminhar para

além do marco legal é uma necessidade. Porque, do ponto de vista legal, a LDBEN

9394/96 assegura nos seus princípios que haja uma vinculação entre a educação

escolar, o trabalho e as práticas sociais, e vai além, é princípio da educação nacional,

desde 2013, com a Lei 12.796 a consideração com a diversidade étnico-racial.

A experiência posta em prática na sala de aula e nas relações existentes na

comunidade quilombola revelou que, quando o povo “toma de conta”, a história torna-

se outra. As professoras conquistando a consciência de se saberem sujeitos de

conhecimento, questionaram a prática bancária de trazer tudo pronto e, a partir do seu

saber, se puseram a caminhar construindo processos de humanização/emancipação

não só para si, enquanto grupo situado num território, mas como um grupo

pertencente a uma comunidade de origem, a ancestralidade africana quilombola

resignificada no Brasil.

E refletimos sobre a indagação de Silva (2011, p. 145), quando informa que nós

-afrodescendentes - aprendemos olhando o mais atentamente possível quem realiza

trabalho em que é muito experiente. E continua “como convencer, explicar, ajudar a

compreender que tal jeito de ensinar e aprender pode ser valioso não apenas para os

afrodescendentes?” Entendemos que currículo como experiência é uma possibilidade

Page 190: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

189

de avançarmos nas práticas curriculares, estando os sujeitos dessa prática envolvidos

em suas histórias, memórias e perspectivas de mundo humanizado.

Os resultados sobre os referenciais que orientam e substanciam as práticas

das professoras, antes de estarem na escola e no curso superior, são cultivados nas

relações inter-geracional e inter-étnica, de quilombola com indígena. A oralidade e

memória presente na ancestralidade quilombola assumem a principal referência que

orienta as práticas. A história que o povo conta e que originou a existência da

comunidade no sertão de Pernambuco. É essa história à procura de um lugar onde

pousar a cabeça e produzir a cultura material e imaterial que fincou raíz e deu o

sentido de existir da comunidade que explicita as Africanidades Brasileiras.

Na atualidade, a produção é também intelectual e está chegando nos espaços

de produção de conhecimento, à medida que esses espaços ampliam a sua

compreensão. Porque, para o quilombola, a produção material e intelectual não são

dicotômicas. A produção intelectual relaciona-se com a produção material, é esse

diálogo que cria intimidade no processo de desenvolvimento e ensino-aprendizagem.

Aprender fazendo, onde os conceitos chegam pelo domínio do fazer, processo esse

que materializa o aprendizado, o significa e humaniza o ser aprendente.

Desenvolver um processo assim implica em múltiplos olhares e fazeres. Não

cabe a concepção de conhecimento fundamentado na ideia de “universalização”,

porque essa se fez numa perspectiva etnocêntrica.

Estamos mergulhados em tempos e espaços outros e “a epistemologia que

conferiu à ciência a exclusividade do conhecimento válido traduziu-se num grande

aparato institucional e foi ele que tornou mais difícil ou mesmo impossível o diálogo

entre ciência e os outros saberes” (ARROYO, 2012, p. 33). A radicalidade da busca

do diálogo é uma chave que abre possibilidades inovadoras. O diálogo sobre a prática

sobre a escola envolvendo a comunidade vivificou o sentido da escola e da educação

para as professoras, para as crianças e suas famílias. “Tomar de conta” da escola

corporificou o sentido de resistir para existir. Essa atitude fez ressurgir a escola em

sua materialidade enquanto espaço físico e função social.

Podemos afirmar, em diálogo com a perspectiva do pensamento decolonial,

que as práticas curriculares das professoras estão referenciadas na epistemologia

afrocêntrica, de Assante (2009) e de Donna Haraway (1988), uma vez que partem

sempre do conhecimento situado em sua trajetória histórica e cotidiana de sujeito

político.

Page 191: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

190

Podemos afirmar, também, que a formação inicial das professoras não tem

respondido satisfatoriamente ao que já está posto no marco legal já instituído em Leis,

planos e suas respectivas metas a serem implementado pelas IES. O avanço que se

verifica é na formação contínua, aquela que a gestão escolar, junto com as professas

e a associação, vêm fazendo com a colaboração de alguns parceiros. Aqui há amplas

possibilidades de se avançar, tanto no que se refere à formação inicial, quanto no

campo de especialização em nível de pós-graduação.

Consideramos que os princípios da educação escolar quilombola na prática das

professoras estão sendo trabalhados com muita propriedade. Elas têm uma prática

referenciada na identidade de ser quilombola. Portanto, a referência histórica,

ancestral, construída com base na oralidade, é uma prática forte. A relação ensino-

aprendizagem parte do conhecimento prévio dos estudantes e do conhecimento

existente na experiência da comunidade. Esta referência tem produzido identificação,

cuidado e estreitado a relação com as crianças e a comunidade. A comunidade se

percebe como sendo detentora de algum conhecimento e que interessa à escola

conhecê-lo e compartilhá-lo amplamente.

Consideramos que, no que se refere à identidade quilombola, está posto que a

consciência da luta por direito a existir com dignidade é que trouxe todas as conquistas

que estão postas no território.

As identidades que observamos são dinâmicas. Está focada na luta politica de

um ser político. Neste sentido, podemos afirmar que as identidades de uma

comunidade tradicional não estão configuradas estaticamente, sendo dinâmicas o

moderno e o tradicional dialogam permanentemente. Há jovens mantendo a tradição

da banda de pífano e há jovens integrados em projetos de comunicação, produzindo

vídeos que ganham o mundo e ganham prêmios pelo que comunicam. É comum o

mesmo jovem estar nas duas perspectivas, porque uma não elimina a outra. Nos

projetos de comunicação, eles estão georeferenciados, falam de forma situada, do

lugar de expressão de sua identidade quilombola, que sofreu influência, hibridizou,

sem perder seu foco, posto que se pôs em diálogo com outras culturas, outras

influências.

Nessa forma de entender e pôr em prática as referências identitárias está posta

a relação intercultural com os indígenas. O povo indígena Atikum é um povo irmão

dos quilombolas de Conceição das Crioulas. Ao trabalhar a interculturalidade de forma

crítica, a escola campo de pesquisa buscou a escola indígena para compreender em

Page 192: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

191

relação com eles. Neste sentido, a interculturalidade é um tema que, embora tenha

aparecido de forma tímida, pois apenas uma professora abordou o assunto, ele está

posto, uma vez que verificamos como está presente a necessidade de demarcar uma

posição existencial histórica que resiste, se insurge e persiste em que pese os

contextos que ameaçam o retorno da desumanização que subordina povos e culturas.

Contra isso a comunidade está atenta e vigilante.

Compreendemos que a relação professor-aluno, estabelecida na escola campo

de pesquisa, é uma experiência que pode contribuir para a educação nacional, não

por ser uma educação específica, mas pelo que ela pode proporcionar de satisfação

na criança e sua família, no que ela pode proporcionar de sentido e compreensão de

ser no mundo, no potencial de produzir inclusive avaliações positivas que os

indicadores avaliativos apresentam.

Verificamos que as africanidades estão presentes nas práticas das

professoras, e que esse referencial que está posto no marco legal nacional vem sendo

trabalhado com competência e segurança. As professoras afirmam que Conceição

das Crioulas tem uma educação de qualidade, apesar de ter gente que ainda

desconfia. Essa desconfiança as professoras observam, e interrogamos que é salutar

essa percepção, pois os racismos, integrantes do sistema mundo moderno colonial,

estão à espreita, sempre pondo em dúvida a capacidade dos próprios seres terem de

construir o seu caminho de autodeterminação e mudança social.

Para além do já exposto, é preciso destacar o diálogo como categoria teórica

que está presente nas práticas curriculares das professoras e também nas relações

ampliadas existentes na comunidade e com quem chega para com eles

desenvolverem projetos e ampliarem juntos a produção de conhecimento

fundamentada na solidariedade e colaboração e não exploração.

Uma contribuição que se verificou no desenvolvimento da pesquisa foi o

processo de descolonização das mentes enquanto um processo coletivo, refletido na

conquista de ser capaz de dizer e escrever uma outra história, com suas próprias

mãos pretas e do seu próprio jeito dizer a sua palavra.

Finalizamos o trabalho, confirmando nossa hipótese de que as africanidades

estão presentes nas práticas das professoras na escola campo de pesquisa, através

da memória, consciência histórica da tradição ressignificada, de um saber fazer que

foi transmitido de geração à geração. A essa tessitura no tempo e espaço, as

Page 193: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

192

africanidades chamarão de experiência afro-diaspórica, e o pensamento decolonial

chamará de diferença colonial.

As epistemologias que orientam e substanciam as práticas curriculares das

professoras têm suas raízes fincadas na experiência consciente de uma história de

superação à negação do ser. Percebemos que a colonialidade do ser no sentido posto

pelo pensamento decolonial, faz parte da leitura de mundo que as professoras

começam a compreender para trabalhar a identidade e dominar enquanto

conhecimento científico contra-hegemônio. Mas elas já tinham as lentes que traziam

a importância de sulear-se, ter por referência o seu lugar.

As professoras nos ensinaram, ao relatar as suas práticas, que faz diferença

trabalhar a relação ensino-aprendizagem de forma situada, crítica, reflexiva e não

reprodutivista. Elas também revelaram experiências significativas ao serem

perguntadas sobre as mesmas. Experiências que nos possibilitaram acreditar que é

possível uma outra educação, é possível uma educação que represente o seu povo e

onde o seu povo se reconheça.

As experiências das professoras nos levaram a pensar na pesquisa como troca-

colaboração e compromisso. O que me provocou a elaborar algumas indagações?

Qual é a relação que queremos construir quando pesquisamos? É suficiente para o

pesquisador devolver o resultado ao grupo, à comunidade? Em mim, fica a pergunta

posta no desenvolvimento do trabalho: pesquisar para quê? O que construir a partir

daqui?

As possibilidades que podem ser construídas só não podem deixar de fora o

diálogo. Um olhar que conseguimos captar com muita suavidade, tímido, refere-se à

questão religiosa. Esse poderia ser um aspecto de outras pesquisas. Na articulação

entre culturas e identidades, a interculturalidade indígena-quilombola é um tema

bastante instigante para futuros estudos quiçá?

Page 194: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

193

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Lucinalva Ataíde de. Políticas curriculares para a formação de professores e processos de reformulação curricular nas instituições de ensino superior. 2008. 139f. Tese (Doutorado em Educação). Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. ALVES FILHO, Ivan. Memorial dos Palmares. Rio de Janeiro: Xenon, 1988. ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Estudo de caso: seu potencial na educação. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 49, p. 51-54, maio 1984. ______. Etnografia da prática escolar. 18. ed. Campinas, SP: Papirus, 2013. ______. O que é um estudo de caso qualitativo em educação. Revista da FAEEBA-Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 22, n.40, p. 95-103, jul./dez. 2013. ______. Estudo de caso em pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Liber livros, 2005. (Série Pesquisa. v.13) ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Cartografia e quilombos: territórios étnicos africanos no Brasil. Africana Studia, n. 9, p. 337-355, 2006. ARAÚJO, Emanoel. Negras memórias: O imaginário luso-afro-brasileiro e a herança da escravidão. Revista Estudos Avançados, v.18, n. 50, p. 242-250, 2004. ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ______. Experiências de inovação educativa: o currículo na prática da escola. In: Currículo: políticas e práticas. 13. ed. Campinas, SP: Papirus, 2011. ______. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. 15. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ______. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa L. (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. BÂ, Hampaté. A Tradição Viva. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África. Metodologia e pré-história da África. 3. ed. Cortez. São Paulo. 2011. (Coleção História Geral da Africa, v. 1). BAIRROS, Luiza. Apresentação da SEPPIR. In: MELO, Paula Balduíno de (Coord). Quilombo das Américas: articulação de comunidades afrorrurais: documento síntese. Brasília: IPEA; SEPPIR, 2012. BANDEIRA, Carmem Lucia Bezerra; ROSA, Esther Calland de Sousa; MELO, Maria Bernadete. Oficinas de Leitura: aprendendo a gostar de ler. Revista Tópicos

Page 195: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

194

Educacionais, Recife. v. 10 n. 1/2 p. 15-26, 1992. BARROS, José Flávio Pessoa de; TEIXEIRA, Maria Lina Leão. Sassnhe: “o cantar das folhas” e a construção do ser. In: NASCIMENTO, Elisa L. (Org.). Guerreiras da natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. BATISTA NETO, José. Pedagogias que informam a formação de professores numa sociedade global e pluricultural. In: BATISTA NETO, José; SANTIAGO, Eliete (Org.). Formação de professores e prática pedagógica. Recife: Massangana, 2006. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. 24. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Coleção Primeiros Passos). BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 julho de 2010. Estatuto da igualdade racial. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nº 7.716, de 5 de janeiro de1989, 9.029, de 13 de abril de1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de2003. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2010. 33p. (Série legislação, n. 49). BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 20 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 6 jul. 2014. ______. Plano nacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília: MEC/SECADI, 2013. ______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 08, de 20 de novembro de 2012. Define diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola na educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p. 26, 21 nov. 2012. ______. Ministério da Educação. Educação básica: documento orientará discussão entre gestores e educadores sobre nova política curricular. 2014. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/component/content/211-noticias/218175739/20568-documento-orientara-discussao-entre-gestores-e-educadores-sobre-nova-politica-curricular?Itemid=3>. Acesso em: 6 jul. 2014. CARVALHO, José Jorge de. O quilombo do rio das rãs: história, tradições e lutas... Salvador: EDUFBA, 1995. CARRIL, Lourdes de Fátima Bezerra. Os desafios da educação quilombola no Brasil: o território como contexto e texto. Revista Brasileira de Educação. v. 22. n. 69. abr./jun., 2017.

Page 196: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

195

CENTRO CULTURA LUIZ FREIRE. Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas de Pernambuco. Princípios da educação quilombola. Olinda: J. Vasconcelos, 2009. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobrea negritude. In: MOORE, Carlos (Org.). Aimé Césaire. Belo Horizonte: Nandyala, 2010. CHARLOT, Bernard. Da relação como saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995. CHIAVENATO, Júlio José. O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. CHIZZOTTI, Antônio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2003. CONFERÊNCIA MUNDIAL DE COMBATE AO RACISMO, 3., 2002, Brasília. Anais... Brasília: Ministério da Cultura; Fundação Cultural Palmares, 2002. CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO – CNE. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola: algumas informações.Brasília: CNE, 2011. CUNHA JUNIOR, Henrique. Afrodescendência, pluralismo e educação. Pátio, ano 2, n. 6, ago./out. 1998. CUNHA JUNIOR, Henrique; GOMES, Ana Beatriz Souza (Org.). Educação e Afrodescendência no Brasil. Fortaleza: Edições UFC, 2008. DEWEY, John. Experiência e Educação. Petrópolis: Vozes, 2010. DUSSEL, Henrique. Mediações anticartesianas sobre a origem do antidiscurso filosófico da modernidade. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 342-395. ELIA, Luciano. O Conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. ESCOBAR, Arturo. O Lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós- desenvolvimento? In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: CLACSO, 2005. p. 133-168. (Colection Sur Sur). EXAME NACIONAL DE DESEMPENHO DOS ESTUDANTES – ENADE. 35% dos formandos são os primeiros na família a chegar à universidade. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/editoria/educacao-e-ciencia/2015/12/35-dos-formandos-sao-os-primeiros-na-familia-a-chegar-a-universidade>. Acesso em: 10 jan. 2016. FANON, Frantz. Os Condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010.

Page 197: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

196

______. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. FAUSTINO, Deivison Mendes. Por que Fanon?: por que agora?: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. 2015. 261 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015. FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes, 1980. ______. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. 29. ed. São Paulo: Cortez, 1992. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43.ed.São Paulo: Paz e Terra, 1998. ______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 17. ed. São Paulo: Paz e Terra. 2011. ______. Pedagogia do oprimido. 54. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

GHIGGI, Gomercindo; KAVAYA, Marinho. Frantz Fanon e a Pedagogia da “colaboração muscular.” In: STRECK, Danilo R.(Org.). Fontes da pedagogia latino-americana: uma antologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. GIMENO SACRISTÁN, José. O Currículo: uma reflexão sobre a prática. Tradução Ernani F. da F. Rosa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000. GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, v. 16. n.47. maio-ago. 2011. GOMES, Nilma Lino. A contribuição dos negros para o pensamento educacional brasileiro. In: SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; BARBOSA, Lucia Maria de Assunção (Org.). O Pensamento negro em educação no Brasil. São Carlos: EdUFSCar,1997. ______. Intelectuais Negros e Produção do Conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. P. 419-441. ______. Sem perdera raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. De preto a afro-descendente: da cor da pele à categoria científica. In: BARBOSA, Lúcia Maria de Assunção; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). De Preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2003. GOODSON, Ivor F. As Políticas de currículo e de escolarização. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

Page 198: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

197

GRACINDO, Regina Vinhas. Educação de Jovens e Adultos e o PNE 2011-20200: avaliações e perspectivas. In: DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). Plano Nacional de Educação (2011-2020): avaliação e perspectivas. Belo Horizonte: Ed. UFG; Autêntica, 2011. GROSFOGUEL, Ramón. Dilemas dos estudos étnicos norte-americanos: multiculturalismo identitário, colonização disciplinar e epistemologias descoloniais. Ciência e Cultura, São Paulo, v. 59, n. 2, 2007, p. 32-35. (Tradução: Flávia Gouveia). GROSFOGUEL, Ramón. Ramón Grosfoguel: Hay que tomarse enserio el pensamiento crítico de los colonizados en toda a su complejidad. Entrevistador: Luis Martínez Andra. Entrevista realizada em International Summer School “Decolonizing Knowledge and Power: Postcolonial Studies, Decolonial Horizons Metapolítica, 2013. Entrevista realizada en la ciudad de Barcelona el 9 de julio de 2013. HASENBALD, Carlos. Desigualdades sociais e oportunidades educacionais: a produção do fracasso. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 63, p. 24-26, nov.1987. HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 2. ed. São Paulo: Selo Negro, 2008. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA - IPEA. Educação escolar Quilombola no censo da educação básica: texto para discussão 2081. Brasília: Rio de Janeiro, 2015. ______. Quilombos das Américas: articulação de comunidades afrorrurais: documento síntese. Brasília: SEPPIR, 2012. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA - INEP. Censo escolar da educação básica 2010: caderno de instruções. Brasilia:Inep, 2010. ______. Censo escolar da educação básica 2012: caderno de instruções. Brasilia: Inep, 2012. ______. Censo escolar da educação básica, 2013: cadernos de instruções. Brasília: Inep, 2013. KAPLAN, Allan. O processo social e o profissional de desenvolvimento: artistas do invisível. São Paulo: Instituto Fonte para o Desenvolvimento Social, 2005. KING, Joyce E. Usando o pensamento africano e o conhecimento nativo da comunidade. In: GOMES, Nilma Lino; SILVA, Petronilha Gonçalves e. Experiências étnico-culturais para a formação de professores. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. (Coleção Cultura Negra e Identidade).

Page 199: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

198

KI-ZERBO, Joseph. História geral da África: metodologia e pré-história da África. 3. ed. Cortez. São Paulo. 2011. (Coleção História Geral da África, v. 1) LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. LARCHERT, Jeanes Martins. Epistemologia da resistência quilombola em diálogo com o currículo escolar. In: REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 10., 2013, Goiâna. Anais... Goiâna: ANPED, 2013. LÉVI-STRAUSS, Claude. Aula inaugural: desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. LOPES, Alice Cassimiro; MACEDO, Elizabeth. Currículo e cultura: o lugar da ciência. In: LIBÂNIO, José Carlos; ALVES, Nilda (Org.). Temas de pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012. LOPES, Laura. Negros en el país: censan cuántos ha y como viven. Jornal O CLARÍN, 2 abr. 2005. Disponível em: <http:www.clarin.com/diario/2005/04/02/sociedade>. Acesso em: 08 jul. 2014. LOPES, Nei. Bantos, índios, ancestralidade e meio ambiente. In: NASCIMENTO. Elisa; LARKIN (Org.). Guerreiras da natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008. (Série: Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira, 3). ______. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2. ed. Salvador: EdUFBA, 2000. MACEDO, Roberto Sidnei. Currículo, campo, conceito e pesquisa. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. MACHADO, Vanda. Ilê Axè: vivências e invenção pedagógica das crianças do Opô Afonjá. Salvador: EDUFBA, 1999.

MAIA, Joseane. Herança Quilombola Maranhense: histórias e estórias. São Paulo: Paulinas, 2012. MALDONADO-TORRES, Nelson. Com Fanon, ontem e hoje. Tradução: Grupo Descolonial. Disponível em: <http://www.decolonialtranslation.com/portugues/com-fanon-ontem-e-hoje.html>. Acesso em: 27 jan. 2014. ______. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar; Universidad Central-IESCO; Siglo del Hombre Editores, 2007. p. 127-167.

Page 200: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

199

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. (Coleção Perspectiva). MARTINS, Cléo; MARINHO, Roberval. Iroco: orixá da árvore e a árvore orixá. Rio de Janeiro: Pallas, 2010. MENDES, Aparecida. Associação Quilombola de Conceição das Crioulas. In: GESTO Cooperativa Cultural. ID10. Greca, artes gráficas. Porto, 2007. MENEZES, Marília Gabriela de; SANTIAGO, Maria Eliete. Contribuição de Paulo Freire para o paradigma curricular crítico-emancipatório. Proposições, v. 25, n. 3, p. 45-62, set./dez. 2014. MIGNOLO, Walter. Cambiando las éticas y las políticas del conocimiento: lógica de la colonialidade y poscolonialidad imperial. Tabula Rasa, n. 3, p. 47-72, enero/dic. 2005. ______. Desobediência epistêmica opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: literatura, língua e identidade, Rio de Janeiro, n. 34, p. 287-324, 2008. ______. Os esplendores e a miséria da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobreas ‘ciências’ revisitado. Lisboa: Afrontamento, 2003. p. 663-671. ______. Histórias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid: Ediciones Akal, 2011. MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Ucitec-Abrasco, 1996. MONTEIRO, Anita Maria de Queiroz. Castainho: etnografia de um bairro rural de negros. Recife: Massangana, 1985. MOREIRA, Antonio Flávio e CARVALHO, Marlene. Construção de Identidades no currículo de uma Escola de Ensino Fundamental. In: MOREIRA, Antonio Flávio, CANDAU, Vera Maria (Org.). Currículos, disciplinas escolares e culturas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. MORIN, Edgar. Os Sete saberes necessários à educação do futuro. 12. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: Unesco, 2007. MUNANGA, Kabengele. 100 Anos de bibliografia sobre o negro no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares. 2000. v. 1. ______. 100 Anos de bibliografia sobre o negro no Brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2000b. v. 2.

Page 201: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

200

______. As facetas deum racismo silenciado. In: SCHWARTCZ, Lília; QUEIROZ, Renato da Silva (Org.). Raça e diversidade. São Paulo: Edusp, 1996. ______. Origem e histórico do quilombo na África. Revista de Antropologia da USP, n. 28, p. 56-63, dec./fev. 1995/1996. NASCIMENTO, Abdias do. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico- cultural da população afro-brasileira. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da culturabrasileira, 4). NOGUEIRA, Ronaldo Alves; CAVALCANTE, Pedro Luiz. Avaliação e monitoramento: duas experiências de institucionalização na gestão das políticas no poder executivo federal brasileiro. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DEL CLAD SOBRA LA REFORNA DEL ESTADO Y DE LA ADMINISTRACIÓN PÚBLICA, 29., 2009, Salvador. Anais... Salvador, 2009. OLIVEIRA, Eduardo David. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. 3.ed. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006. ______. Epistemologia da ancestralidade. Salvador: EdUFBA, 2000. ______. Filosofia da ancestralidade como filosofia africana: educação e cultura afro-brasileira. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, n. 18, p. 28-47, maio/out. 2012. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Sociologia do guerreiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. OLIVEIRA, Maria Marly. Como fazer pesquisa qualitativa. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,2008. PAULA, Benjamim Xavier de. A educação das relações étnico-raciais, a pedagogia das africanidades e a Pedagogia Griô. Revista Diversitas: Dossiê Pedagogia Griô, São Paulo, ano 2, n. 3, p. 176-215. set. 2014/mar. 2015. PINTO, Júlio Roberto de Souza; MIGNOLO, Walter D. A modernidade é de fato universal?: reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Civitas: Dossiê: América Latina como lugar de enunciação, Porto Alegre, v. 15, n. 3, p. 381-402, jul./set. 2015. QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, p. 227-278, 2005. (Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina). ______. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 84-127.

Page 202: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

201

REVISTA Palmares: quilombos no Brasil. Brasília: Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, n. 5, 2000. RABAKA, Reiland. Teoria Crítica Africana. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira, 4). RATTS, Alex. Geografia, relações étnico-raciais e educação: a dimensão espacial das Políticas de Ações Afirmativas no Ensino. Terra Livre, São Paulo ano 26, v. 1, n. 34, p. 125-140, jan.-jun./2010. SAID, Edward. Orientalismo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SALGUEIRO. Lei Municipal 1.949 de 23/06/2015: Plano Municipal de Educação 2015-2025. Salgueiro: Prefeitura Municipal de Salgueiro, 2015. SANTIAGO, Eliete; SILVA, Delma; SILVA, Claudilene (Org.). Educação, escolarização e identidade negra: 10 anos de pesquisa no PPGE-UFPE. Recife: Editora Universitária, 2010. SANTIAGO, Maria Eliete. Escola pública de primeiro grau: da compreensão à intervenção. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. São Paulo:Cortez,2011. ______. A universidade no século XXI. São Paulo: Cortez, 2004. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979. SANTOS, Milton. O professor como intelectual na sociedade contemporânea. ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 9., 1998, Águas de Lindóia, SP. Anais... Águas de Lindóia, SP, 1998. SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. SANTOS FILHO, José Camilo dos; GAMBOA, Silvio Sánchez (Org.). Pesquisa educacional: quantidade-qualidade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1997. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Page 203: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

202

SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2004. SILVA, Delma Josefa da. Afrodescendência e educação: a concepção identitária do alunado. 2000. 130 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2000. ______. Afrodescendência e educação: cultura, identidade e as perspectivas do aluno afrodescendente com a escola pública. In: LIMA, Ivan Costa; ROMÃO, Jeruse; SILVEIRA, Sônia (Org.). Os Negros e a escola brasileira. Florianópolis, SC: Núcleo de Estudos Negros, 1999. p. 99-117. ______. Educação escolar quilombola: um direito a ser efetivado. Olinda: Instituto Sumaúma; Centro de Cultura Luiz Freire, 2007. Disponível em: <http://www.institutosumauma.org.br/imagem/arquivo/Cartilha_Educao_Quilombolaum_di reito_a_ser_efetivado.pdf>. Acesso em: 21 de março de 2015. ______. A Emergência da Educação Escolar Quilombola no Contexto da Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil. In: Revista Tópicos Educacionais, Centro de Educação, UFPE, Recife, 2014, v.20, n.1 n.1, jan/jun.2014. p. 99-132. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/topicoseducacionais/issue/view/1649>. Acesso em: 08 set. 2015. SILVA, Givânia Maria da. Educação como processo de luta política: a experiência de “educação diferenciada” do território quilombola de Conceição das Crioulas. 2012. 223 f. Dissertação (Mestrado Educação) - Universidade de Brasília, Brasília, 2012. SILVA, Janssen Felipe da. Sentidos da educação na perspectiva dos estudos pós-coloniais latino-americanos. In: MARTINS, Paulo Henrique et al (Org.). Guia de pós-desenvolvimento e novos horizontes Utópicos. Recife: Editora Universitária, 2015. SILVA, José Carlos de Paiva e. Arte/desenvolvimento. 2009. 238 f. Tese (Doutorado em Pintura) - Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, Porto, 2009. SILVA, Maria do Socorro. A Prática pedagógica nas escolas do campo: a escola na vida e a vida como escola. 2009. 464 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender a conduzir a própria vida: dimensões do educar-se entre afro-descendentes e africanos. In: BARBOSA, Lúcia Maria de Assunção; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e: SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2003.

Page 204: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

203

______. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação/SECAD, 2005. ______. Entre Brasil e África: construindo conhecimento e militância. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. SOUZA, João Francisco de. Prática pedagógica e formação de professores. BATISTA NETO, José. SANTIAGO, Maria Eliete. (Org.). Recife: Editora Universitaria da UFPE, 2009. SOUZA, Maria Cecília Minayo. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ, Vozes, 1993. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. STAKE, Robert. Estudo de caso e avaliação educacional. Educação e Seleção, n.7, jun./jul. 1983. STRECK, Danilo R. (Org.). Fontes da pedagogia Latino-Americana: uma antologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. THEODORO, Helena. Religiões afro-brasileiras. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Guerreiras da natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008. (Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira, 3). VALA, Jorge. A Análise de conteúdo. In: SILVA, Augusto Santos; PINTO, José Madureira (Org.). Metodologia das ciências sociais. 4. ed. Porto: Edições Afrontamento, 1990. WALSH, Catherine. Interculturalidad critica y educación intercultural. In: VIAÑA, J.; TAPIA, L. Construyendo interculturalidade crítica. La Paz, Bolivia: Instituto Internacional de Integración Del Convenio Andrés Bello, 2010. p. 75-96. ______. Interculturalidad critica y pedagogía de-colonial: in-surgir, re-existir y revivir. In: CANDAU, V. (Ed.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009, Brasil: en prensa, 2009. ______. La interculturalidad en la educación. Lima: Ministerio de Educación, 2005.

Page 205: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

204

APÊNDICES

Page 206: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

205

APÊNDICE A - ROTEIRO PARA A ENTRADA EM CAMPO

Título: REFERENCIAIS EPISTÊMICOS QUE ORIENTAM E SUBSTANCIAM PRÁTICAS CURRICULARES EM UMA ESCOLA LOCALIZADA NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Doutoranda: Delma Josefa da Silva

Orientador: Prof. Dr. Janssen Felipe da Silva

Sobre o Campo

-Situar a localização (Distrito, distância do Centro Administrativo, Perfil sócio-

econômico, dentre outros)

-Identificar as lideranças, os mais antigos e as pessoas que exercem e são

reconhecidas pelo ato de ensinar.

-Identificar o referencial cultural, as estruturas e equipamentos existentes na

comunidade (Grupo Cultural, Igrejas, Referenciais Sagrados de Matriz Africana,

Escola, Posto de Saúde, Centro Comunitário, Associação de Moradores, dentre

outros)

Sobre a Escola

Como surgiu? Qual história da escola?

Caracterização: quantidade de alunos, número de salas, biblioteca, refeitório,

instalações sanitárias, níveis de ensino, quadro de gestores e de professores:

quantidade, qualificação para a função, regime de contratação, local de moradia.

Page 207: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

206

APÊNDICE B - FICHA DE IDENTIFICAÇÃO DA ESCOLA

Nome da Escola:

Data da Fundação:

Endereço completo:

Telefone: Distrito: Gestor(a):

Quantitativo de salas de aula:

Tem Biblioteca: ( ) sim ( ) Não

Tem quadra: ( )Sim ( ) Não

Número de Professores(as):

Homens Mulheres

Número total de Estudantes matriculados:

Número Total de Estudantes por Turno:

Matutino Vespertino Noturno

Número total de Estudantes no Ensino Fundamental:

Número de Estudantes nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental:

Número de Estudantes nas Séries Iniciais por Turno

Matutino Vespertino Noturno

Número de Estudantes nas Séries Finais do Ensino Fundamental:

Número de Estudantes nas séries Finais por turno

Matutino Vespertino Noturno

Número Total de Estudantes no Ensino Médio:

Número de Estudantes no Ensino Médio por turno

Matutino Vespertino Noturno

Número total de Estudantes de EJA:

Número de Estudantes de EJA por Turno

Matutino Vespertino Noturno

Page 208: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

207

APÊNDICE C - FICHA DE IDENTIFICAÇÃO DO(A) PROFESSOR(A)

ESCOLA:

Nome do Professor(a):

Sexo: ( ) Masculino ( ) Feminino

Data de Nascimento: Escolarização:

Instituição de Ensino em que se formou:

Curso:

Onde cursou o Ensino Fundamental:

Onde cursou o Ensino Médio:

Endereço Residencial: ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ ( ) Área urbana ( ) Área Rural

Tempo de atuação docente:

Categoria Funcional: ( ) concursado ( ) contratado ( ) outro. QUAL?____________

Trabalha na escola em quais turnos:

( ) Matutino

( ) Vespertino

( ) Noturno

Tempo de Docência

( ) Recén-Formada(o) –menos de um ano ( ) Entre 10 e 12 anos

( ) Entre 1 e 2 anos ( ) Entre 12 e 14 anos

( ) Entre 2 e 4 anos ( ) Entre 14 e 16 anos

( ) Entre 4 e 6 anos ( ) Entre 16 e 18 anos

( ) Entre 6 e 8 anos ( ) Entre 18 e 20 anos

( ) Entre 8 e 10 anos ( ) Mais de 20 anos

Page 209: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

208

APÊNDICE D - ROTEIRO PARA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

F

OR

MA

ÇÃ

O

1. Fale sobre a sua formação.

2.Como se tornou professora numa comunidade quilombola?

3. Fale sobre a Educação Escolar Quilombola.

4.Quais são as suas referências para essa educação? (Liderança,

experiência, livros, dentre outros) 5. Qual a história da comunidade?

R

EL

ÃO

PR

OF

ES

SO

R A

LU

NO

6. Você conhece cada um de seus alunos e alunas? Sabe de suas

famílias, suas história e seus hábitos na escola e fora da escola,

suas experiências? 7. Como você percebe a relação dos alunos com a escola? Você

considera que os alunos e alunas gostam de estar na escola?

Porque sim, e porque não (no caso de uma resposta negativa)? 8. Conte uma experiência significativa que você vivenciou em sua

prática.

C

UR

RÍC

UL

O

09.Como se dá o processo de escolha do que você ensina? 10.Quais os sujeitos envolvidos nessa seleção de conteúdos?

11.Quais conteúdos são selecionados?

12.Como estava estruturado e se desenvolvia a educação escolar

quilombola quando você começou a ensinar aqui? Houve

Mudança? Se houve, quais foram e quem esteve envolvido nesse

processo? 13.A Educação das Relações Étnico-raciais, contida na LDBEN e

nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Quilombola são referenciais utilizados para organizar o currículo

escolar?

Page 210: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

209

APÊNDICE E - ENTREVISTA COM A COORDENADORA DA ESCOLA

Linha de Pesquisa: Formação de Professores e Prática Pedagógica PESQUISA: Referenciais Epistêmicos que Orientam e Substanciam Práticas Curriculares de Professores em uma Escola Localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas. Doutoranda: Delma Josefa da Silva Orientador: Prof. Dr. Janssen Felipe da Silva Escola Municipal Bevenuto Simão de Oliveira- Sítio Paula-Conceição das Crioulas. Data: 11 de setembro de 2015 e 16 de Fevereiro de 2016. Entrevista com a Coordenadora da Escola Campo de Pesquisa Delma Silva-Fala um pouco da sua formação e de como vocês conquistaram essa escola? Qual a história da escola? C- A história da escola, a gente conta mais ela de 2007 até hoje. Quando nós da comunidade passamos a assumir a escola, nós educadores e nós comunidade também. Porque, antes, a comunidade não tinha muito uma participação dentro da escola. A partir daí, a gente deixou de planejar junto com as pessoas da Secretaria, que tinha uma pessoa dentro da Secretaria de Educação até 2006. Essa pessoa era uma pessoa da cidade, mas que trabalhava dentro da Secretaria de Educação e que cuidava das escolas isoladas, que eles chamam. As escolas multisseriadas do município, que totalizava 16 escolas. Essas escolas, algumas eram aqui no segundo distrito, algumas eram no primeiro, eram escolas espalhadas no Município. E uma pessoa cuidava dessas escolas. O agendamento era feito para essa pessoa vir visitar essas escolas e, muitas vezes, quando essa pessoa chegava na escola da gente para planejar às vezes era 10 horas do dia, era 11 horas. Outras vezes, não tinha telefone, não ligava, a gente esperava, esperava e ia para casa. Os cinco professores. E aí a Coordenadora, depois, mandava recado: olha não deu certo não ir fazer o planejamento com vocês. Quando dava certo de a pessoa chegar, ela já trazia as pastas, com todo o material. Dizer o que a gente ia trabalhar. A atividade já mimiografada na época, porque também na escola não tinha mimeógrafo e já vinha tudo pronto, montado, e cada professor pegava o seu pacote de atividades. Isso aconteceu várias vezes. A gente ficava lá, deitada esperando, não aparecia ninguém. A gente voltava pra casa. Então minha turma, na época, a minha turma era um quinto ano, a gente esperou até umas 9 horas. E, aí, a gente disse: a gente mesmo vai planejar hoje. E aí o grupo disse: mas como é que a gente vai planejar se a coordenadora não veio? Vamos planejar. Eu já tinha um pouco de experiência, porque eu já tinha trabalhado em outras escolas do município que não eram quilombolas. E aí a gente planejou. Foi o primeiro projeto que a gente fez da escola. Até hoje, a gente trabalha por projeto.

Page 211: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

210

Delma - Quando foi isso? C: Em 2007. C- E aí a gente disse: como a gente vai planejar? Essa metodologia, a gente pegou em 2007. Até hoje, a gente vem vivendo ela. Primeiro a gente disse: o que é que a gente vai trabalhar? E aí eu fui puxando, dizendo como era trabalhar por projeto, dizendo como fazia. E a gente fez um projeto nesse dia. Foi o primeiro, a gente fez um projeto que era o Projeto Águas. A gente foi logo dizendo o que era que ia fazer com esse projeto e nesse mesmo dia a gente disse: O quinto ano vai pesquisar os caldeirões (reserva de água nas pedras); O terceiro ano vai pesquisar as cacimbas. E foi o primeiro projeto e foi muito bom. Até hoje, nós temos registros, fotos, vídeos que a gente fez com um celularzinho pequeno que a gente tinha e conseguimos ainda guardar. No mês seguinte, quando a coordenadora chegou na escola, a gente disse: a gente já planejou. E ela se surpreendeu: já planejaram? Como foi que vocês planejaram? E logo ela viu a diferença. A gente começou a fazer exposição nas salas. Porque ela não nos orientava a fazer as exposições nas paredes, mas quando a gente pegou autonomia de fazer, a gente já fazia do nosso jeito: a gente colocava cartolinas com desenhos dos caldeirões, das cisternas, fotos das pessoas da comunidade na distribuição de águia. E o segundo projeto foi sobre a agricultura - também voltado para a necessidade da escola. E, daí, fomos embora, não falta problema para a gente tá tentando resolver. Cada mês, a gente senta e diz qual é o problema da comunidade hoje: Então, a gente sempre esta dizendo: é a chuva, é a falta de água, é a higienização da escola? Então, tem vez que tem três projetos que é importante, que a gente acha que tem que ter. Às vezes, tem debate: não é melhor esse, é melhor o outro. Agora, este mês, a gente tá trabalhando o projeto de esporte na escola, mas tinha outro que é muito importante também: a valorização das histórias contadas pelo povo da comunidade. Mas a gente terminou trabalhando o esporte por impulso dos meninos, porque a maioria deles gosta muito do esporte, futebol. E terminou que a gente já tinha essa dívida com eles desde agosto. E a gente até pensou em trabalhar o projeto... Mas já estava com tudo comprado: bola, rede, tudo, e pessoas para ensinar. Os estudantes também participam. Isso não foi só uma necessidade por conta própria, foi a partir das formações que a gente já tinha, inclusive com o Centro de Cultura Luiz Freire, que a gente teve na Escola José Neu, em 2000, 2001... até 2002. A gente teve essas formações. Delma- Foi aquele que foi com Carol, Joselito e comigo também? C- Foi. Que era ensinar a aprender a ler e a escrever. A gente já tinha muita coisa na cabeça, só que não tinha como colocar na prática, porque já recebia os projetos prontos. Quando a gente passou... E eu fiquei o quinto ano o ano inteiro com os meninos. E, em 2008, a Secretaria me convidou para estar coordenando a escola que eu estou até hoje. Delma- Então vocês tiveram a iniciativa de assumir a escola em 2007. Começaram a trabalhar os projetos e, em 2008, você recebeu a atribuição formal da Secretaria como coordenadora da escola?

Page 212: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

211

C – Foi. E essa indicação já foi por conta disso mesmo. Por não foi só por causa dessa coisa do planejamento. Teve várias outras coisas. E era coisa muito forte que fazia a diferença, quando a gente desagarrava disso. Uma das coisas era o Projeto Político Pedagógico, que era um PPP para essas 16 escolas, que não tinha nada a ver. Delma- E você teve alguma participação nesse processo? C- Tive. Porque a gente saiu, desagarramos do PPP dessas 16 escolas. Das escolas isoladas, que eles chamavam, das escolas multisseriadas. Essas escolas daqui de Conceição, Vila Centro, elas não estavam, porque eram escolas que não eram multisseriadas. E essas escolas, eram 16 escolas que eles chamavam de isoladas. E foi outra coisa que eu briguei muito, de chamar as escolas multisseriadas de isoladas, para desacostumarem de chamar essas escolas multisseriadas de ESCOLAS isoladas. Aí, a Secretária perguntou se a gente ia sair do PPP, vão ficar sem PPP? E a gente disse que não, que a gente vai tentar fazer o nosso PPP. E FOI MUITO DIFÍCIL, porque nem a comunidade sabia o que era o PPP e nem a maioria dos professores, também. E foi muito difícil. Primeiro, a gente saiu e ficamos sem PPP, até, em outras discussões aqui em Conceição, a gente resolver fazer o PPP de Território. Que aí é diferente. Delma- Sim. É bem diferente! C- É bem diferente. Esse PPP me agoniava muito. Porque esse projeto falava do artesanato, por exemplo, falava do artesanato de palha de bananeira tava dizendo. E a gente lá não tem. Nossa realidade não é essa. Palha de bananeira era outro sítio também dessas 16 escolas que trabalhava com a folha de bananeira no artesanato de lá. E tinha outro também que era o couro, que era lá na Alagoinha, que a atividade lá era o couro, mas não tinha a ver com a nossa realidade. Delma- Você faz uma reflexão de que é diferente o processo do PPP do território e o PPP da escola. Quais são as especificidades que você identifica? Até onde vai o PPP do território e até onde vai o PPP da Escola? C- O PPP da Escola, o grande diferencial é que ele é elaborado por nós da comunidade. Da escola, os estudantes, as lideranças. A comunidade é quem diz o que É QUE vai ser trabalhado na escola. Delma- Vocês vivenciam isso? C- SIM! Na escola, a gente vivencia. Quando a gente tá indo amanhã (12-09-2015) para conhecer o território, com a associação quilombola e com o GT, é porque a gente já trabalhou na prática com os estudantes. Porque, antes da comunidade ir reconhecer essas terras da fazenda, nós já fomos. Nós professores, nós estudantes.Quando André foi lá no mês passado, a gente já estava com a exposição montada. Já tinha foto, já tinha vídeo. Como é amplo o espaço, pegamos os meninos do terceiro, quarto e quinto ano e fomos até na serra lá. Subimos, identificamos os umbuzeiros, contamos quantos tinham, as ervas medicinais, os lajeiros, as capoeiras... a gente já tinha feito tudo isso, já tinha feito maquete. E os pequenininhos da educação infantil ficaram na parte mais baixa. E fizeram o mesmo trabalho também. E isso estamos trabalhando pedagogicamente. Porque os meninos trabalharam arte quando fizeram a maquete.

Page 213: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

212

A gente tirou a palavra geradora como Paulo Freire dizia, de dentro do T E R R I T Ó R I O. Trabalhamos o que é território, quantas letras tem a palavra território, quantas sílabas tem. Isso com os pequenos. Delma- Quando você fala dos pequenos, são os que tem que idade? C- De três a cinco anos. Então eles estão sendo alfabetizados, usando as letras da palavra território, que é o que a gente está discutindo hoje na comunidade. E o que a gente faz no início do ano é o Plano de Ação, que é dizer o ano todo o que vamos trabalhar. Todo ano, no primeiro dia letivo, nós professores sentamos e fazemos um plano de ação que o município pede, e um diferencial também é esse. O sistema tem o que se pede, mas a gente adequa, a gente não se prende a ele. No nosso plano de ação, a gente bota que vamos trabalhar o Projeto: As histórias contadas pelo povo da comunidade, por exemplo. Outra escola pode fazer outro, mas o nosso é esse. Então, a gente tem essa liberdade de já fazer o plano e dizer que, esse mês, a gente vai flexibilizar esse plano. Ele foi entregue no início do ano ao Município, mas agora, em agosto, a gente recebeu as terras aqui da Comunidade Paula e a gente não vai viver o Projeto que a gente colocou no Plano, que seria artes, mas a gente vai viver o Projeto GT (Gestão do Território), é o que está necessitando discutir na comunidade é isso. A gente flexibiliza esse plano de ação. Quando chega o final do ano, ele tá todo bagunçado. Teve coisa que a gente trabalhou, teve coisa que a gente substituiu, mas a gente não tem que seguir aquele plano mais, a gente vai discutir. Agora, nesse mês de setembro, é discutido um tema que é o dia 7 de Setembro que o Município todo trabalha, mas a gente sentou e viu o plano, e acha interessante ainda continuar com esse projeto, porque não terminou ainda e ainda tem muita coisa pra ser feita e a gente acredita que vai ainda esse mês de setembro todo. E pra ficar mais maneiro para os meninos, a gente pegou dois projetos que é esse de esporte e vai colocar dentro do projeto de GT ainda pra gente trabalhar junto com eles. Fazer o que eles gostam mais, que a gente tem essa dívida com eles, que eles cobravam muito e a gente tem um trabalho todo delicado de fazer essa adequação desses projetos: como é que eu vou trabalhar território e esporte. Então eu vou pegar: Quem são as pessoas da comunidade que jogam futebol, o nome dessas pessoas? E pra trabalhar a história, o que é que eu vou fazer? Entrevistar as pessoas do território. Como era que eles jogavam antes? Se eles tinham terno, se recebiam medalhas, como eram os torneios. Eu estou trabalhando a história também da comunidade. E hoje, como é que eles se sentem jogando nesse campo de terra. É isso mesmo o que a gente quer? Porque a gente não tem uma quadra na Paula, nem quadra coberta, nem de cimento, nem nada. Não temos uma quadra coberta nem nada. Mas isso não impede que a gente jogue. Porque o campo é bem grande. Mas, quando é para atividade de quadra, a gente divide, bota uma cinza no meio e joga. Delma- Marinalva quantas crianças estudam na Bevenuto? E quantas famílias? C- 97 crianças e 218 famílias. Porque as famílias são agregadas, mas não tem esse tanto de casas não. Delma – São as primeiras séries do Fundamental? C- Como a escola é multisseriada é numa turma só crianças de 3, 4 e 5 anos. Aí, tem outra turma com o primeiro e segundo; a outra tem o terceiro e o quarto e a outra fica

Page 214: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

213

só com o quinto ano. São duas salas e quatro turnos. Funciona duas de manhã e duas à tarde. Delma- Você teve alguma formação ao longo de tua experiência para trabalhar a Educação das Relações Étnico-Raciais? C- Só aqui em Conceição com os parceiros. Delma- É formação da comunidade com os parceiros. Mas a Prefeitura, a Secretaria de Educação promoveram alguma coisa? C- Fez uns dois seminários puxados por aqui pela AQCC, mas formação mesmo não. Delma- E a participação das famílias, fala um pouquinho. C- Ainda, em 2008, quando a gente chegou lá na escola. As famílias não tinham muito o hábito de participar de reuniões na escola...Primeiro, porque só quem fazia reuniões na escola eram as pessoas da Secretaria de Educação. Quando eles marcavam, todo mundo vinha. Quando eles chegavam na escola, as famílias, às vezes, ficavam com receio, porque eles só vinham resolver problemas. Tipo: estão levando merenda da escola, não está tendo água, tá entendendo? Aí, a secretaria vinha para agredir mesmo a comunidade. Aí, as pessoas ficavam com receio de vir. De colocar uns contra os outros. Tipo: A merendeira, a professora que não dava aula. E a Secretaria vinha para delegar isso. Para dizer como era que ia ser feito, que ia ser punido, porque não estava dando aula. Não era muito para ter essa conversa. Mas, mesmo assim, quando a gente foi para assumir a escola, nós... demorou um tempo para a comunidade acreditar. Tanto é que a gente assumiu em fevereiro e, quando foi no mês dos pais, em agosto, a gente fez almoço pros pais e tudo e não foi nenhum pai. Porque eles perguntavam: vem gente de fora? Não, não vem não. Então, eu não vou não. Tem reunião na escola. Quem é que vai conduzir a reunião, vem gente da secretaria? Vem não! Então eu não vou não, só vai ter o povo daqui. Então, a gente teve que mudar a metodologia dessas reuniões. Tipo: Hoje, a gente não chama os pais para dizer: ah, teu filho pulou o muro, ou furou a bola. A gente não faz mais isso. A gente chama os pais para fazerem provas também, as mesmas que os meninos fazem. A gente chama as famílias para se verem lá nas fotos, nos slides. Pra ver os filhos deles produzindo. Então, a gente mudou isso aí. Delma – E qual é o retorno que as famílias dizem? C- Hoje elas já fazem a comparação, de como era a escola antes e como é a escola hoje. E melhor, eles já dizem fora da comunidade. Lá na Escola Bevenuto é assim. A gente discutia sobre a volta dos estudantes para essa escola aqui (José Mendes) numa reunião há poucos dias e os pais são os mesmos, e as mães diziam: lá Escola Bevenuto, a escola entra o ano e termina o ano a escola limpa. Os meninos não sujam muito a parede. A gente demorou muito para educar eles nesse sentido, porque eles riscavam muito. Eles diziam que era do governo que podia riscar, que podia derrubar o muro, que podia levar as panelas para casa, que podia não sei o quê. Então, a gente hoje já conseguiu dizer: essa escola é da gente, a gente é quem cuida. E eles têm cuidado nas coisas. E, aí, foi um trabalho todo que teve que ter um projeto mesmo pra gente poder orientar. A gente fez um projeto que chamava Arte em Toda Parte, que

Page 215: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

214

era para sensibilizar mesmo todo o mundo da comunidade, que a escola era deles. E a primeira coisa que a gente fez foi deixar a escola com a cara mesmo, do povo de lá. Porque a Secretaria de Educação contava uma história que todas as escolas eram padrão. Na frente da escola, a história da Bela e a Fera ou a história dos três porquinhos ou não sei de que mais lá. E, aí, a gente fez o projeto Arte em Toda a Parte, onde os meninos leram e conheceram várias histórias africanas e sem serem africanas também. E, aí, fizemos uma eleição por turma para ver qual era a melhor história, e eles se apropriaram. Para finalizar o concurso, ficaram quatro histórias para ver qual era que iria abrir a fachada da escola. Que era a história de Kiriku, que eram os meninos do terceiro e quarto ano, e, com essa história, eles estudaram o mês todo: a geografia, as ciências, dramatizaram. E, assim, todas as outras turmas, cada uma com a sua história. E aí, quem ganhou foi a história da Menina Bonita do Laço de Fita. Que quem ficou com esse livro foram as professoras da Educação Infantil e, aí, como a comunidade foi quem foi eleger, os meninos interpretaram a história, se caracterizaram. Houve o desfile da Menina Bonita do Laço de Fita, que até hoje, todo ano, a gente faz, elas mudam de faixa para a próxima. Teve gincana e tudo. Teve um ponto na Gincana que eles precisavam ir buscar pessoas que parecessem com O Cabelo de Lelê e foram buscar pessoas na comunidade que parecesse com O Cabelo de Lelê, e não ficou ninguém em casa, porque todo mundo era O Cabelo de Lelê. Quem ganhou essa gincana foi o grupo que trabalhou O Cabelo de Lelê. Mas houve os outros critérios que Menina Bonita do Laço de Fita foi quem levou, porque dramatizaram melhor, teve desfile. A gente levou jurado, convidamos Alisson, filho de Loudinha, para ensinar como eles ampliarem os desenhos nas cartolinas. Começou por aí que a escola tivesse a cara da comunidade. Depois, fomos para dentro da escola contar as histórias das pessoas mais velhas. E tudo isso a gente tem hoje na escola restaurado. A gente fez em cartolina a História de Bevenuto Simão, que dá o nome da escola e ninguém sabia nem quem era. Tem uma história muito bonita. Ele era um parteiro, tocador de Pífano. E a gente foi pesquisar essa história. E a comunidade foi vendo que a gente estava realmente interessada em contar essas histórias. Em ouvir, contar e recontar. E, aí, hoje eles já recebem com muita facilidade a gente nas casas, que antes também eles não queriam falar. De dar entrevista, de contar histórias. Tinham vergonha em relação a todos os temas, porque sofriam. Iam para a Serra buscar lenha. Achavam essa história feia, mas, quando eles chegavam na escola e viam no muro desenhado, você ali, tirando lenha e palha, eles se sentiam valorizados. A gente fez esse trabalho também na parte interna do muro. A gente pesquisou a história dos Movimentos Sociais, do esporte, das religiões e, depois, cada turma botou na parede, contou essa história. Quando foi um dia, a gente chamou a comunidade para vir ver. E, aí, eles se achavam ali. Oxente! É eu ali. Falou João, um agricultor que deu uma entrevista para falar da agricultura. E continuou: Olha! O menino me fez ali, do jeito que eu tava lá, com a carroça. Olha o menino me desenhou do mesmo jeito que eu tava. Até a toalha que eu botei no colo, me desenharam do mesmo jeito. Oxente! Olha como é que eu tô ali com a bíblia na mão, que é falando de religião. Então, até hoje essas histórias estão ali no muro, no interior da escola. Foi muito trabalho de fazer projeto para eles aprenderem a desenhar com tinta. Trabalhar as tintas que não faziam mal para eles. Tudo isso foi trabalhado. A química das tintas. As tintas que tem na comunidade mesmo, nas Serras, que poderiam ser utilizadas, e “hoje a comunidade já se vê.” Toda vez que a gente vai para uma reunião, a gente sempre está mostrando alguma coisa que foi feita na comunidade. A gente pergunta: quando é que a gente vai devolver o projeto para a comunidade. A secretaria usava culminância. Muito ela. E a gente dizia não: Se o projeto é para a comunidade, quando

Page 216: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

215

é que a gente vai devolver pra comunidade e de que jeito vamos devolver? Então, a cada fim de projeto, a gente procura um jeito de devolver. Delma- E qual é o ciclo do projeto? Qual é o tempo? C- O projeto no Plano, a gente coloca mensal, mas a gente nunca fica só um mês. Ele sempre passa. A arte em toda parte foi pra viver um mês, e a gente viveu seis. Delma- Então vocês têm a cada mês, regularmente, encontro com as famílias, com a comunidade. Então, se cria uma relação bem próxima das famílias dentro da escola? C- Procurar não só, por exemplo, no dia das mães, trazer as mães só para comer um pedaço de bolo, a gente não tem mais essa intenção. Tem vezes que a gente nem dá mais lanche: não tem lanche não, vão comer em casa. Então, esse dia das Mães, agora, a gente pediu aos meninos para fazer uma entrevista com a mãe deles. E aí a gente se organizou, deu um trabalho danado, porque só tinha uma filmadora. Mas eles ficaram ansiosos para todo dia levar essa filmadora para casa. E eles filmaram a mãe deles contando a história. E do jeito delas, natural. Eles elaboraram as perguntas junto com as professoras: o que você quer saber de sua mãe? E eles fizeram. E em casa eles filmaram. E elas tiveram uma surpresa muito grande no dia das mães, porque a gente mostrou esses vídeos, elas falando do jeito delas. E a gente foi fazer uma reflexão do que elas diziam. E elas choraram e se abraçaram com os filhos. Elas estavam contando as histórias para os filhos e, aí, tinha coisa que elas diziam: Eu nunca falei isso pra ninguém, eu vou dizer hoje! E tinha menino que enganava e dizia pra mãe: não mãe não tá gravando não. E tudo isso saiu na gravação. Ele não é profissional, mas a gente ensinou. A gente ensinou como era que fazia. E, no dia das mães, elas passaram o dia todinho assistindo vídeos delas mesmas, elas contando as histórias, algumas fazendo alguns afazeres, eles filmando. E, no dia das mães, elas receberam essa homenagem deles também. Porque depois a gente pediu para cada um deles dizer alguma coisa em relação ao que elas disseram. Delma- E esses vídeos estão disponíveis? C- Estão. A gente têm todos os vídeos, todas as fotos. Inclusive, a gente pegou todo esse material: cartolina, porque a gente aprendeu também no projeto a ensinar eles a ampliar fotos para não desenhar só no papelzinho pequeno. Todo final de projeto, a gente restaura esse material pra ficar guardado. A gente aprendeu com Mônica, que é de Portugal (do Grupo Identidades). Ela ensinou a passar um cola por cima, e ele fica, tipo um plástico mesmo. Ele não quebra e, sempre que precisa, a gente já está com o material pronto. Delma- Marinalva, a gente escuta falar que classe multisseriada é um problema. Eu queria ouvir a tua opinião sobre isso. O que você acha de classe multisseriada, vivendo essa realidade? C- Eu acho que classe multisseriada todas as escolas são! Porque as experiências que a gente vê hoje na educação brasileira é que as turmas nem sempre são todas alfabetizadas. Tem criança no quinto ano, por exemplo, que lê bem, produz bem, mas tem outras que nem leem. Então, eu acho que trabalhar classe multisseriada, pra mim, não é nenhum problema. Por conta disso mesmo, de se ajudar, dos estudantes tá

Page 217: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

216

sempre ali perto misturado, já também pra entender que em um momento ele pode estar ajudando o outro também. E a professora é a professora de todo mundo, não é professora só mais daquele. Isso também ajuda na alfabetização daquele que não está alfabetizado. Mas eu digo que, na realidade hoje, na educação brasileira, todas turmas são multisseriadas, porque nem todos estão alfabetizados.Aqui na Neo (José Neo) tem quinto ano, mas não é todas as crianças que são alfabetizadas não. Tem criança que não lê nada. Isso é a realidade do município. Delma- E do ponto de vista do Currículo. Queria que você falasse do currículo que você pratica aqui na sua escola. C- O currículo, a gente também já saiu desse currículo que era para as 16 escolas, que era padrão. A gente fazia o currículo sem nem saber o que era. Quando eu digo que vou fazer um projeto e vou trabalhar no momento aqui a necessidade é de discutir a água, que a comunidade está sem água. O que é que eu vou trabalhar aqui. Eu vou fazer uma pesquisa, vou fazer uma entrevista. A gente já fazia isso, mas nem sabia que tava fazendo currículo. Criando nosso próprio currículo. E aí, dentro do currículo, quando a gente diz que um dos eixos do nosso currículo é o território, terra né? E quando você se apropria de trabalhar território, é porque eu já estou entendendo que é um dos eixos, são cinco, e ele é um dos que está dentro do nosso currículo. Delma- E quais são os outros? C- O primeiro eixo é a Educação. Vem o Cidadania, o Saúde, o Educação e o Território. A terra pra gente já é muita coisa. A gente já diria: tudo. Porque é uma alegria quando a gente recebe uma terra que a gente não tinha acesso a ela, e você agora chegar e entrar e ver e dizer: oxem! Aqui tem esse caldeirão e ninguém sabia. Porque as pessoas só podiam ir escondido. Delma- O que é um caldeirão? C- Um caldeirão é uma pedra que guarda água. Quando chove, a água não tem para onde correr. O currículo é dizer o que vai fazer, diagnosticar o problema e a partir dali, trabalhar. E o interessante é que trabalhando a realidade da gente, da comunidade, você tem muita coisa para trabalhar, porque uma coisa vai puxando a outra. Aí você pensa que você trabalha tudo no decorrer de um mês, mas quando termina, aí surgem mais coisas. E, aí, você precisa voltar de novo, porque você fica com vontade de trabalhar, de mostrar, de pesquisar de descobrir. Delma- E os meninos, com essa forma de trabalhar o conhecimento, o acesso ao conhecimento, como isso foi recebido pelas crianças? Por que vocês inverteram uma forma de trabalhar, vocês criaram uma metodologia própria. C- Um dos pontos que mais demonstram um bom resultado pra gente é quando você vê a autoestima deles elevada. Porque a gente sempre começa os projetos pelo conhecimento prévio deles (Paulo Freire). O projeto esporte: você gosta de jogar bola, qual o esporte que você joga? Então, eu começo por ele. Ele se sente com a autoestima elevada. Porque você está valorizando ele. Menina bonita do laço de fita parece com quem aqui na sala? Toda menina parece com a Menina bonita do laço de fita. Então, o que é mais gratificante é eles se acharem nessa metodologia. E as

Page 218: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

217

famílias também, vim e ver que você valorizou aquela história que eles contaram, e você olhar... Eles dizem: só com essa entrevista vocês fizeram esse tanto de coisas? Fizeram desenho, fizeram texto. A gente tem na escola, todo final do ano, a gente faz um manual. A gente deu esse nome de manual, mas a gente vai procurar um nome quando a gente for publicar um dia. A gente faz um manual de todas as atividades que a gente fez. Delma - Vocês tem isso organizado por ano? C- Tem. Inclusive a gente vai sentar esses dias, para sistematizar 2015. Porque dá muito trabalho. A gente escreve o texto desde o projeto até a receita das brincadeiras com eles. É gratificante também, porque todos os parágrafos ou está falando de um pai, uma mãe, de uma avó, de um neto. Porque são coisas que foram feitas lá, junto com a associação, com as lideranças, com as pessoas mais velhas, com os estudantes. Esse manual é outra coisa que a gente resolveu fazer, para guardar e servir pra pesquisa de outras pessoas quando estiverem lá, como foi que a gente começou. A gente conta tudo isso nesse manual, que está ficando pronto. Agora a parte da publicação, a gente não tem muito esse domínio de estrutura para publicação. A gente não tem. Delma- Bom... A gente vai ficar por aqui por hoje, mas a gente vai continuar outra hora essa conversa. Eu vou transcrever e enviar para você. Para você ler, ver como ficou, complementar, ampliar se for necessário. Muito obrigada. Tempo total da Entrevista em 11 de Setembro de 2015: 41:02 Entrevista com a Coordenadora, em 16 de Fevereiro de 2016, para aprofundamento da primeira entrevista Delma: Quais são os autores que ajudam vocês a refletirem a prática aqui, na Paula? C: O autor que a gente mais se identifica é Paulo Freire, a gente se acha muito nos textos dele, no que ele diz. Principalmente com relação ao que valoriza o conhecimento prévio dos estudantes, o que eles já trazem de casa. Então, a partir do que eles já trazem de casa, a gente faz as nossas atividades diárias. E, há uns três anos atrás, a gente também começou a se referenciar pela Escola da Ponte de Jose Pacheco, e o Referencial maior são as famílias, as histórias contadas por elas, pelos estudantes também, pelo que eles trazem de casa no seu conhecimento prévio. Delma: Você falou também dos textos escritos por pessoas da própria comunidade. Eu queria que você falasse sobre isso, quem são essas pessoas que vocês tem utilizado? C: É porque a gente trabalha por projeto, e os projetos são feitos para atingir metas, para solucionar problemas, tanto na escola quanto na comunidade. Então, se o problema, a gente observa que é dentro da escola, como por exemplo, a indisciplina, a higiene, é mais um projeto que vai ser vivido dentro da escola. Mas, quando o problema é a violência doméstica, vamos dizer, a falta d’água, o cuidado com a água, por exemplo, ou de agricultura, então, o projeto a gente vai viver para a comunidade.

Page 219: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

218

Então, pode ser também um projeto maior que esteja preocupando a comunidade como, o exemplo agora, o projeto dengue, que está prejudicando o mundo. Então, a gente faz um projeto também na escola, mas que tem a ver com as famílias. Então, essas histórias, essas entrevistas, essas pesquisas são feitas na comunidade, mas trazidas para a escola. Delma: Quando você falou dos referenciais da comunidade, você falou de pessoas que saíram da comunidade, que estão produzindo e que vocês também estão estudando essas pessoas, você falou de Cida, Givânia... C: E outras pessoas também, a gente aqui da comunidade, desde texto formal, ou não formal, que tem o mesmo peso. E a gente não tem como escrever um documento, um artigo para não ler a tese de Givânia, que pra gente hoje é um referencial muito importante. E tem muitas pessoas escrevendo também, tese, artigo, que também, às vezes, não são da comunidade, mas escrevem falando da especificidade, da diversidade, e que a gente encontra nesse texto referência que contribui pra gente também. Delma: Que experiência significativa você conta? C: É O PROJETO ARTE EM TODA PARTE, que é um projeto, como a gente acabou de ver mais um resultado desse projeto, que a gente ainda não concluiu, e que ele foi muito significativo pra gente, porque a gente melhorou muito a autoestima dos meninos e da comunidade, das famílias. Delma: E como começou o Projeto? C-: O Projeto, ele começou desde quando a gente ganhou um recurso do PDDE-Campo, que foi um valor de R$ 13.000,00 e o FNDS, e esse recurso vinha para as escolas do campo. Esse investimento era para ser reforma de escola, e, aí, reformamos as escolas com esse recurso. Também conversando com as famílias, elas disseram: isso! vamos fazer isso, pintar a escola fazer o retelhamento. Como reformamos a escola, ela foi pintada no padrão azul e branco. A escola ficou pintadinha e a gente pensou: e que cara a gente vai dar essa escola? Então, a gente pensou em fazer um projeto de arte para pintar a escola. Só que, nesse mesmo período, ocorreu que estava em discussão o desentrosamento das fazendas da comunidade, e eu não estava aqui no primeiro dia, foram três dias de formação com André Araripe. Então, quando eu cheguei no segundo dia, já tinham montado o cronograma.

Page 220: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

219

APÊNDICE F - ENTREVISTA COM UMA PROFESSORA

Doutoranda: Delma Josefa da Silva Orientador: Prof. Dr. Janssen Felipe da Silva Conceição das Crioulas-Salgueiro Data: 02 de Outubro de 2015 e 17 de Fevereiro de 2016 Entrevista com a Professora de História do Ensino Fundamental: (P5) Delma: Professora, gostaria que você falasse sobre a sua formação. (P5): A minha formação acadêmica? Delma: Sim. (P5): Eu vou começar do Magistério, porque para nós isso é uma conquista dentro do Território. Por conta que eu sou da Primeira turma de Magistério que se formou dentro do Quilombo de Conceição das Crioulas. A gente pode cursar aqui dentro do quilombo, a gente concluiu em 2008. Essa foi a primeira turma de magistério que a gente pode sair até começar a ser professora mesmo dentro da lei, que o magistério nos habilita a trabalhar do primeiro ao quinto ano. Aconteceu aqui em Conceição. Era uma extensão da Escola Carlos Pena Filho, mas é conquista. Delma: Da formação no Magistério você foi estudar história? (P5): Foi. E aí eu tive que ir estudar em Salgueiro, a semana inteira, um curso presencial. Em 2012, eu conclui a formação na Licenciatura em História. Delma: Me fala dessa formação, dessa rotina de ir todos os dias para Salgueiro. (P5):Olhe, pra falar a verdade a Faculdade hoje, e até no meu tempo, ela não tinha assim... A gente fazia o curso na Faculdade, porque era a faculdade mais próxima que a gente tinha, mas não era assim....O que se falava, não se falava muito bem da faculdade lá. A gente tinha falas de que os professores eram um pouco preguiçosos, não ensinavam bem, deixavam de todo jeito. Acabava sendo bem cansativo. Mas para mim foi bom, porque eu descentralizei esse pensamento de que não era bom, de que os professores não trabalhavam legal. Tive professores um pouco preguiçosos nas suas metodologias, mas tive muitos professores bons lá. E foi o que me fez chegar até o fim. Porque era muito cansativo pra mim sair daqui de Conceição todos os dias. Delma: Quantos quilômetros? (P5): 42 Km. Mais de 42, a gente conta 42, até aquela chegada. Então, a gente saia daqui umas cinco e meia e só voltava depois de dez e, quando chegava aqui, muitas vezes, era onze e quarenta, meia noite. Nosso transporte não era de boa qualidade. Muitas vezes, a gente ficava no prego, ou na ida ou na volta. Delma: O que é ficar no prego?

Page 221: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

220

(P5): (risos) Ele quebrava, quebrava e a gente ficava... (Continuação após uma pausa, porque ela foi amamentar a criança). Delma: Você estava falando da dificuldade do transporte. (P5): A gente muitas vezes ficava na estrada por conta disso. Foi um período muito difícil, muito difícil mesmo, já chegou mesmo de o carro parecer que ia pegar fogo. Tipo, meia noite, e a gente na estrada e a gente ter que sair às pressas do ônibus com medo dele se incendiar. No outro dia, deixava a gente um pouco desmotivado de voltar, não tanto pela faculdade, mas pelo percurso. De sair daqui e ir para lá, e principalmente a volta, por Conceição ser um local de difícil acesso, acaba ficando um pouco isolado. E, pra mim, uma coisa difícil também era que Moisés era pequenininho. Ele tinha quase dois anos, foi um momento difícil para eu deixar ele. Tive muito apoio da minha mãe, das minhas irmãs e da minha sogra. Com quem ele ficar não era o problema, era problema para mim, como mãe, deixar meu filho pequeno. Mas, era um percurso muito difícil. E, quando foi em 2010, aconteceu o acidente, que deixou a gente traumatizado também de estar pegando transporte. Tudo isso foi dificuldade de enfrentar. Teve um tempo que eu tive que tomar calmante. O médico passou uns calmantes para mim, porque eu fiquei com medo de sair de casa mesmo e de pegar qualquer tipo de transporte. E estava no meio de minha faculdade. Quase perdi o período, porque eu passei mais de um mês sem ir para a Faculdade, com medo de transporte mesmo. O ACIDENTE Delma: Fala um pouquinho do acidente, que acidente foi esse em 2010? (P5): Um grupo de professoras que acompanhavam o Projeto da Save The Children, o nome do Programa Criança com Todos os Seus Direitos. Eles acompanhavam tanto os professores, quanto os pais, as famílias de todas as crianças da primeira infância. Então, nesse momento, era a conclusão dessa primeira etapa. Então, o grupo ia para Salgueiro acompanhar essa última etapa. Nesse dia, depois que eles saíram da estrada de chão, eles não pegaram 2 Km de pista, parte da pista estava interditada, porque estava sendo reformada. A gente não sabe o que aconteceu, a gente só sabe que o carro capotou e, na hora, morreram três pessoas. Delma: Você estava? (P5): Não. Quem estava era minha mãe, minha irmã e minha mãe e minha família estava lá. Todo mundo ali é família. As três mulheres morreram na hora, duas lideranças e uma professora. E meu tio, que também era liderança ficou acidentado, ficou um tempo em coma, não conseguia abrir o olho.Teve uma melhora e veio para a comunidade e morreu aqui. Mainha ficou três meses no hospital, quebrou parte da coluna e hoje está na cadeira de rodas, até hoje fazendo tratamento. Foi um baque muito grande naquele ano. A gente estava se preparando para fazer o 20 de novembro. A comunidade toda parou. A gente não conseguiu fazer mais nada, no resto daquele ano não aconteceu mais nada em relação às atividades que eram desenvolvidas. E a comunidade toda ficou com esse trauma, com esse medo de pegar transporte, de sentir a falta das pessoas que se foram. Hoje, a gente convive com

Page 222: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

221

esse acidente muito presente na nossa vida por causa da nossa mãe. A nossa rotina, como filha, mudou completamente. É outra hoje. Até para ela sair de casa, não pode sair todo mundo. Tem que ter alguém perto. Ela faz muita coisa só, mas muita coisa ela precisa da gente. É muita dificuldade que hoje a gente ainda passa. 2010 foi um ano muito negativo para Conceição das Crioulas, é um marco de perda, de tristeza mesmo. Delma: Na sua formação, esse acidente lhe afetou diretamente e você ficou um tempo sendo medicada. Você lembra de quanto tempo você ficou usando medicação? (P5): Eu passei... Eu ficava perguntando ao médico, eu vou ficar dependente? E o médico dizia que não, que era só para eu me acalmar e poder voltar. Eu passei uns quatro, cinco meses tomando medicação. Depois eu parei por conta própria, porque eu me sentia melhor. Mainha me estimulava a trabalhar a mente. A buscar superar o medo e desconstruir aquilo de sempre trabalhar a mente. Eu perdi a concentração no estudo. Eu chegava na faculdade e o meu pensamento era de imaginar como seria a volta, se eu iria chegar em casa, se não iria, em relação a esse percurso. Depois disso, eu parei por conta própria. Hoje, eu me sinto melhor, eu convivo com esse medo. E isso me afeta agora para fazer a Pós-Graduação em Floresta. E aí veio o assalto, quando os professores foram fazer a matrícula. E a gente fica pensando: será que tem alguém esperando? E a gente aprende a conviver com o medo para não deixar que ele domine a gente, não pare a nossa vida. A comunidade toda passa a sentir essa coisa. COMO SE TORNOU PROFESSORA Delma: Como você se tornou professora numa comunidade quilombola? (P5):Quando eu terminei a oitava série e, nesse tempo, a comunidade, principalmente a comissão de educação, estava buscando outra formação, que a gente tinha ensino médio, e a comissão estava buscando trazer o magistério para cá. Só que eles disseram logo lá em Salgueiro: só abririam uma turma aqui se tivesse um número considerável. E fomos fazendo a campanha aqui com quem estava terminando a oitava séria. Eu queria conhecer a experiência, não sabia se iria seguir a profissão ou não, mas eu queria passar pela experiência. Passei a me identificar com o Magistério. Nossa turma eram quase 40 pessoas. Quase todos se formaram. Hoje, eu acho que sou apaixonada pela educação e acredito que a educação ela é transformadora. Eu comecei a conhecer quando eu comecei a estagiar. Aqui, a gente começou cedo a estagiar. Eu comecei a lidar com as crianças, ver a dificuldade que é estar em sala de aula. A professora lidar com as crianças. Das crianças terem diversos comportamentos num único ambiente. Então, eu vi que era desafiador, mas vi também que era gratificante. Foi ali que eu vi essa vontade de ser professora. Aí, estagiei o restante dos anos e, depois, antes de terminar o magistério, tirava licença de uma professora que faltava. Sempre me chamavam para ficar com a turma. Mas a minha primeira experiência mesmo, eu ainda estava estagiando, foi uma turma de educação infantil. E eu fiquei dois meses com essas crianças nessa turma. E, depois dessa turma, abriu-se uma vaga no PET-Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Era uma turma na Paula, a turma era daqui, mas como tinham muitas crianças, resolveram abrir uma turma logo lá. A professora teve que sair de licença maternidade e as lideranças me indicaram e indicaram outra professora para ficar as duas lá na Paula. O trabalho com o PET era mais desafiador ainda, porque era trabalhar reforço e

Page 223: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

222

tinham crianças com muitas dificuldades lá, eram um bocado rebeldes e foi um desafio ficar na Paula. Mas acredito que consegui passar, porque eu fiquei até o final do ano. Depois disso, fui indicada mais uma vez pela comunidade para pegar umas aulas de reforço numa turma da escola José Néu, eu estava quase terminando o Magistério, quando eu peguei essa turma e, cada vez, eu fui pegando mais gosto ainda. No ano seguinte, houve uma seleção em 2012, e aí eu já tinha terminado. E a seleção me habilitava a concorrer para o primeiro e o quinto ano aqui na Escola José Néu. E a gente conseguiu, dentro de muita luta, dentro da comissão de educação, uma seleção específica, só para o território quilombola. Porque tinha pessoas de outras localidades de Salgueiro, que vinham concorrer e, depois, abandonavam a sala, pelo difícil acesso, por todas as dificuldades que a gente tem aqui. Então, por tudo isso, esse era o argumento utilizado também. A gente conseguiu fazer uma seleção fechada só para as pessoas que moravam dentro do território. E eu fui selecionada. Isso foi em 2009. Eu fiquei 2009, 2010, porque a seleção era de um ano, renovada por mais um ano. E, aí, conseguimos renovar sem fazer nova seleção e eu fiquei. O concurso, as três pessoas que passaram assumiram no final do ano. E, no ano seguinte, houve seleção de novo, em 2012. E eu tinha terminado a faculdade. Em 2013, teve nova seleção e eu podia concorrer à Escola José Mendes, que é do sexto ao nono ano. Abandonei a Néu com meu coração muito triste, porque me apeguei às crianças, ao desafio de trabalhar com as criancinhas. Eu tinha ficado também com uma turma de EJA e foi uma experiência muito boa. E, até hoje, eu estou lá. Agora está para ter concurso pelo município e a gente não sabe como vai ser ainda. A gente está brigando pela categoria de Professor Quilombola do sexto ao nono ano também. É outro desafio, porque as pessoas que vem pra cá que não são quilombolas, não ficam, elas voltam, não acontece como deveria acontecer. Eu queria falar da minha paixão por História. Eu escolhi o curso de história para fazer. Eu sou integrante da Equipe do Crioulas Vídeo, que é uma comissão da AQCC, e, dentro dessa atividade, a gente foi trabalhado a trabalhar primeiro as questões políticas. Antes de fazer o vídeo pelo vídeo. Então, dentro da comunidade, a gente trabalha o vídeo que traga a história, que fortaleça identidade negra, que fortaleça a história das comunidades quilombolas, não só daqui de conceição, mas de outras comunidades aqui em Pernambuco. Além de produtor de vídeo, a gente foi educador de audiovisual. Para isso, a gente recebeu oficinas com alguns historiadores, algumas pessoas que trabalhavam nessa linha, pra gente trabalhar esse processo histórico do povo negro, a questão do patrimônio material e imaterial, tombamento. Tudo isso me trouxe uma série de coisas que me fez interessar para eu trabalhar na minha comunidade e me fez interessar pelo estudo da história. E eu vi que poderia aprofundar isso, esses estudos numa faculdade. Como eu estava terminando o magistério, eu ainda estava em dúvida sobre o que eu ia fazer e se ia fazer uma faculdade. E o curso me incentivou muito a fazer história e aprender mais coisas e contribuir de alguma maneira com o resgate da história e da memória. E, por conta disso, eu fiz a graduação em história. Delma: A faculdade é privada não é? Você tinha alguma bolsa? (P5): Eu consegui uma bolsa de 50% já no final do curso, no último período. Até então, a faculdade não tinha nenhuma bolsa do governo. A minha bolsa foi a partir da sobra das bolsas dos alunos de matemática, que tinha bolsa para todos os alunos. A gente trabalhava para praticamente pagar a faculdade. Às vezes, atrasava e a gente ficava

Page 224: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

223

aperreada, e ficava um bocado pesado. Eu consegui terminar o último ano, sem ficar aperreada por causa dessa bolsa. EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA Delma: Fala um pouco sobre a Educação Escolar quilombola. (P5): A gente vê que é um desafio pra gente trabalhar a educação escolar, por muito tempo. A história de luta da educação ela começa em 1995, com a construção da Escola Professor José Mendes e, naquele tempo, alguns professores eram da comunidade, mas, por questões políticas partidárias, nos outros anos, já mudaram totalmente o quadro. Trouxeram muitas pessoas de fora e a comunidade via a necessidade de ter alguém que ficasse aqui, que fosse daqui. A própria comunidade sentia a necessidade de trabalhar a história da comunidade, de fortalecer a questão do negro mesmo, porque a gente sofreu muito preconceito. As pessoas de Conceição sofreram muito preconceito. Então, a gente viu na escola um local de começar a trabalhar para que esse preconceito fosse desconstruído das mentes, tanto das pessoas que sofriam, porque muitos tinham vergonha de se assumir e, também, saber lidar com as pessoas que sofrem o preconceito de fora. Então, depois de 1995, já em 2000, 2001, quando a escola passa a ter professores da comunidade, boa parte dos professores era da comunidade. Aí, começa a trabalhar de forma mais sistematizada o ensino da educação escolar quilombola aqui dentro de Conceição das Crioulas. A gente pôde brigar pelo currículo diferenciado, onde a gente pudesse trazer a nossa própria história. Delma: Quando é que vocês conquistam o currículo? (P5): Eu acho que depois de 2003. Não tenho bem certeza. Antes da Lei, a gente já trabalhava. Em 2001, 2002, a gente já começou a trabalhar dessa maneira. Eu era estudante e percebo isso na prática dos professores que estavam me dando aula e que a maioria eram professores da comunidade. A gente começava a trabalhar a temática voltada para a história, fazer pesquisas dentro da comunidade, a gente começava a valorizar os saberes da comunidade, essas práticas começam a ser fortalecidas nesse tempo e a gente começa a perceber que a gente tinha elementos suficientes de pesquisa, de estudo aqui na comunidade, não deixando que outros saberes, os técnicos, os acadêmicos ficassem de lado, pois também eram praticados. Mas a gente começava a perceber justamente, que se a gente pode trabalhar a história, conhecer a história de outras comunidades, a partir do livro didático, a gente também pode trabalhar também a partir da realidade da gente, das comunidades, porque a gente tem coisas aqui dentro que dá esse subsídio para a gente trabalhar a partir daqui. E eu via que era dificuldade, mas eu via a vontade das pessoas que estavam ministrando as aulas que trabalhavam aqui, de trabalhar já dessa forma diferenciada. E, com o passar do tempo, essas práticas só vem a melhorar. Delma: E hoje como você trabalha, qual a sua experiência? (P5): A minha experiência hoje, como professora de história, eu me sinto agraciada, por ser professora de história de Conceição das Crioulas. Eu tenho uma série de

Page 225: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

224

elementos que eu posso trabalhar. Antigamente, a gente trabalhava a história lá de fora e vinha pra aqui pra dentro, e então eu posso trabalhar assim, mas posso também trabalhar daqui pra fora. Então, a gente pega a história, um exemplo que a própria Lei 10.639/03 traz, ela torna obrigatório o ensino da África e dos Afro-brasileiros, então a gente trabalha a história do negro no Brasil, do negro da África, mas a gente também trabalha a história do negro de Conceição das Crioulas, suas vivências, suas práticas. E é hoje um dos trabalhos que mais acontece, porque a gente tem muito e a gente não tem registrado é o trabalho de oralidade. Então, a gente sai da sala de aula e vai para as pessoas mais velhas. A gente conversa com essas pessoas. Essas pessoas falam de suas vivências, de suas práticas, de como era. A gente vê que a história trazida pelo livro didático não é diferente do que acontecia aqui. Então, a gente tem percebido que pode trabalhar a partir daqui. A gente faz um trabalho com pesquisa que é muito intenso. A escola, hoje, consegue trabalhar integrada com a comunidade. Está diretamente vinculada com os acontecimentos da comunidade. A gente faz um trabalho de pesquisa com as pessoas mais velhas, com lideranças da comunidade. A gente tem muitos sítios históricos, pontos culturais históricos também na comunidade, e a gente está trabalhando a valorização desses pontos, a relevância desses pontos com foco em Conceição das Crioulas. Então, antes de sair de licença, essa era uma das atividades que eu estava trabalhando no nono ano. Eu estava trabalhando os dois anos na mesma temática. Mas um eu consegui trabalhar melhor. Porque a gente tem muita dificuldade de trabalhar preconceito, temos uma série de dificuldade de trabalhar a interculturalidade, mas as pessoas pensam que, por ser de Conceição, a gente não tem dificuldade de trabalhar, mas a gente tem, mas nem por isso a gente não deixa de trabalhar. Então, a gente foi trabalhar a Primeira Guerra Mundial e a Segunda-Guerra Mundial e a gente foi trabalhar uma das guerras mais importantes para a permanência do povo aqui em Conceição: a Guerra dos Urias e dos Farias. Ela acontece mais ou menos em meados da Primeira Guerra Mundial. Convidamos Andrelino para falar para os estudantes. Ele disse que foi mais ou menos em 1920-1924, por aí assim. E, naquele tempo, as pessoas estavam saindo de suas localidades, as pessoas que vinham de Floresta. Esse povo que veio para cá, foi principalmente de Floresta, trouxeram seu gado e foi ficando, foi invadindo terra e foi ficando. E a guerra explode por causa de uma criação que foi morta. E as pessoas dos Urias acreditam que teria sido um negro de Conceição das Crioulas e foram tomar satisfação para matar. E eles chegaram lá. Esse homem estava doente numa rede e levanta ligeiro e consegue se defender. E começou a guerra. Por causa dessa morte que eles acreditaram que tenha sido um negro daqui. Delma: Porque chama Guerra dos Urias e dos Farias? Eles lutaram entre eles? (P5): Essas duas famílias vieram para cá. Aqui são as famílias Oliveiras. Eles lutavam contra os negros. Os mais intensos eram os Urias. A família dos Oliveiras, que era praticamente todo mundo. E eles se reuniram e era bala mesmo. Essas munições eram financiadas pelo coronel Pedro da Luz que, teoricamente, não estava do lado de ninguém. Ele dava bala para todo mundo. Ele também queria que as famílias dos Urias fossem embora daqui. E ele ficava alí. Depois da guerra conquistada, eles tiveram que vender as casas que eles se apoderaram. E venderam muito barato e foram embora. Para muitos negros daquela época, o Coronel era bonzinho, porque financiava. O Coronel ficou sendo “dono” de todas as terras. Ele era o todo poderoso daquela época dessa região. Os negros faziam reverência, porque ele era “bonzinho”, porque tinha dado munição, porque tinha ajudado a expulsar os Urias daqui de dentro.

Page 226: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

225

E ele ganhou a confiança das pessoas daqui da comunidade e passou a ser o dominador de tudo, e mais terra vai sendo conquistada, mais terra vai sendo perdida ao longo dos anos. A gente trabalha a questão territorial, que não está desvinculada de jeito nenhum dos movimentos sociais. O que o livro e os Parâmetros Curriculares trazem pra gente trabalhar, a gente trabalha. Só que a gente vem trazendo também essa realidade que a gente vive aqui. Delma: Os jovens estão se apropriando dessa história? (P5): Estamos nos apropriando. A gente fez um trabalho de pesquisa, logo depois, foi quando eu e Marinalva, a gente precisou sair e a gente vai continuar na sistematização dessas pesquisas e aprofundar com outras pessoas. A gente tem trabalhado dessa maneira também aqui na comunidade. A gente entende, porque os quilombos perderam as suas terras que foram compradas com muito suor do seu trabalho, a partir do plantio do algodão no nosso caso das seis negras que chegaram aqui. Depois chega Francisco José com a Santa que dá origem ao nome da Comunidade. Então, hoje, desde os pequenininhos da educação infantil, a gente já trabalha nesse pensamento de reconquista pra que eles não tenham o pensamento de pessoas da comunidade de meia idade, que ainda dão muito valor ao fazendeiro, que ainda diz que os quilombolas querem tomar as terras dos fazendeiros. Os pequenininhos já tem um pensamento diferente. Eles já conseguem compreender que, essa terra, o fazendeiro, uma vez indenizado, saiu da comunidade. E a comunidade passa a ter posse dela e passa a ter acesso a todas as áreas do seu território. Então, a comunidade passa a ser de fato objeto de estudo da escola. E os estudantes passam a fazer parte desse processo e se apropriar de tudo isso. Delma: Quais são as suas referências de conteúdo? (P5): Nossa principal referência é a Carta de Princípios da Educação Escolar Quilombola. Que é um documento que diz como que tem que acontecer a educação dentro dos territórios quilombolas de Pernambuco. Que a criança não aprende só em sala de aula. A criança aprende brincando, a criança aprende conversando com os mais velhos. A criança aprende nas reuniões da comunidade. A gente vive uma pedagogia própria pelos quilombos, a criança não tem que aprender só com o livro didático, mas ela tem que aprender também com o conhecimento que sua comunidade oferece. Então, a referência legal que eu tenho é essa. E agora, desde 2012, a gente tem também as Diretrizes Nacionais da Educação Escolar Quilombola, que é também um documento oficial. Ele também diz isso e também foi construído com pessoas de Conceição das Crioulas. Essas são as nossas principais referências. A Lei 10.639/03, a Carta de Princípios e as Diretrizes. E tudo isso faz com que a gente tenha uma base legal para trabalhar essa educação diferenciada aqui em Conceição das Crioulas. Delma: O que é uma educação diferenciada? (P5): (risos) Eu volto lá naquela questão no que a carta de princípio diz, que é uma educação que tem que ser de nosso jeito, que corresponda às nossas expectativas de conhecer a história local, de valorização do que a gente tem na escola, na comunidade. Então, uma educação diferenciada não tem que ser só aquela que é

Page 227: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

226

imposta, e a gente diz que é imposta, porque, muitas vezes, não nos escutam. Não escutam as comunidades, e trazem uma educação que, muitas vezes, não contempla a realidade do aluno, não contempla o anseio das famílias da comunidade. Então, trabalhar uma educação diferenciada é trabalhar a partir da realidade dos alunos, e a partir da realidade da escola que está dentro do quilombo. Não sei se respondi.... Delma: Quando você falou das referências você falou das referências do marco legal. Fora essa tem outras referências que você se orienta? (P5): Eu digo assim, pra gente as pessoas mais velhas são essas referências legais que a gente tem. Então, por isso, que a gente vai até essas pessoas, que são as informais. A gente se assegura na lei, mas não está diretamente a Lei dizendo que é isso. Então, para a gente escutar as pessoas mais velhas, é uma aprendizagem que não tem preço. Por isso que, hoje, a gente tem que de alguma maneira sistematizar o que essas pessoas mais velhas dizem, porque, daqui a um tempo, a gente não vai conhecer a comunidade como de fato é pra gente conhecer, porque essas pessoas infelizmente morrem, vão simbora e, junto com elas, nossa história também. Então, a gente busca essas referências, como Tia Anabel, que tem um ano que ela se foi. Tia Toinha, que morreu há pouco tempo. Então, a gente tem que trabalhar no sentido. Tio João Preto, que morreu mês passado. E, hoje, a gente tem Tia Marina, que ela gosta de falar que nem tudo é do jeito que se a gente tem e que, se a gente não for atrás, a gente vai perder. Delma: Qual é a história da comunidade de Conceição das Crioulas. (P5): Então, através dessa referência dos mais velhos, conta a história que seis mulheres negras chegaram aqui, nesse território que hoje é Conceição das Crioulas, e passaram a plantar e a fiar algodão. A história não diz se Francisco José chegou junto. Ele aparece muito forte na história por conta das Santas que ele trazia. Ainda não pesquisei direito para saber quais eram as guerras que aconteciam naquela época, mas dizem que ele vinha fugido de uma guerra. A referência da guerra a gente não sabe ainda que guerra era essa, e trazia consigo uma Santa: Nossa Senhora da Conceição. A comunidade recebe o nome Conceição, por causa da Santa e Crioulas, por causa das negras que estavam aqui. Por muito tempo plantaram, fiaram, faziam artesanatos e vendiam na cidade de Flores, que, até então, era a cidade mais próxima daqui. Elas conseguiram arrendar essas terras do Rei, que, naquele tempo, o período Brasil Império pela data, então era o Rei o dono das terras. E elas conseguiram comprar aproximadamente 17 mil hectares de terra. Foi feita essa escritura na cidade de Flores. O escrivão era José Delgado e foi emitido o título de compra desse território. E aí, fazendo o meu trabalho de conclusão de curso da faculdade, eu fui procurar saber como é que essas negras, plantando algodão, conseguiram comprar esse tanto de terra, porque a gente viu que o território era muito grande e a gente não conseguiu explorar quase nada dele, não é? E, naquela época, eu comecei a ouvir falar das Sesmarias, e eu pensava que era Seis Marias. E era como se fosse um aluguel e elas foram pagando, pagando, que era como se elas estivessem pagando um aluguel de terra para o uso. Essa é a história que a gente escuta. Depois de tudo isso, o título de posse é de 1802. E a gente percebe que todo esse trabalho ocorre muito tempo antes. Em 1802, é quando elas estariam recebendo o título oficial, que, durante muito tempo, foi cassado, foi escondido a sete chaves, porque muitas pessoas, por tentativa de destruir, muitos posseiros, muitos fazendeiros, tentaram se apropriar desse

Page 228: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

227

documento e, por muito tempo, ele foi escondido. E muitas pessoas da comunidade não têm acesso a esse documento. E, com o passar do tempo, as terras foram invadidas por posseiros, por fazendeiros que se apropriaram, e a comunidade foi perdendo praticamente todo o seu território. Teve uma época que as pessoas da comunidade tiveram acesso a, aproximadamente, apenas 30% do seu total, o restante estava com posseiros e fazendeiros. É essa a história da comunidade. Então, hoje, a gente se organiza junto com o governo, junto com o INCRA, junto com a Fundação Cultural Palmares, para que, principalmente o INCRA possa indenizar os posseiros, para que nós, os herdeiros dessas mulheres e desses homens, para que a gente possa ter de volta esse território de forma legal. Tempo da entrevista: 44 minutos Continuação da Entrevista em 17 de fevereiro de 2016, na casa da professora, em Vila Centro-Conceição Delma: A pergunta é sobre os seus alunos. Como você se situa frente a essas suas experiências? Eu quero saber da sua experiência se você procura desenvolver uma prática que permita conhecer seus alunos e saber das experiências deles envolvendo as famílias. (P5): Eu não vou dizer que conheço todos eles e a realidade deles. Até mesmo porque o território é muito grande e, como eu estou trabalhando com alunos do sexto até o nono ano, eles vêm de quase toda parte desse território. Então, o território é grande e não tem como a gente acompanhar casa a casa e eles ali, mas a gente conhece todas as famílias. Sempre, nas reuniões, quando a gente chama e se a gente precisa, a gente tem como acionar essa família na escola e, se tem algum problema, e dependendo da localidade a gente vai à casa desse aluno. Eu posso dizer que no fundo, no fundo, naquele íntimo não! Mas a gente tem essa relação próxima a gente tem! A gente conhece, a gente sabe a realidade deles. Se a gente não sabe a fundo, a gente tem noção como esse aluno é na comunidade, como ele é com a família e como ele se desenvolve em relação a tudo isso. Então, a gente consegue ter uma convivência próxima. A gente tira pela nossa experiência aqui, em relação à cidade de Salgueiro, a gente tem essa proximidade mais do que os alunos da cidade com os seus professores. Delma: Em que situação você visita seus alunos? (P5): A gente tem acionado essas famílias, esses alunos, porque a maioria são de menor, então a gente precisa acionar primeiro a família. A gente tem conversado com eles na escola, quando a gente não tem conseguido resolver alguns probleminhas tipo assim, as questões de aprendizagem, que é quando mais a gente aciona as famílias. Para evitar deixar tudo para o final do ano, porque a gente sabe que, quando chega no final de ano, não tem mais nada a fazer. Tem recuperação e tudo mais, mas a gente fica atento quando percebe que o aluno não está mostrando desempenho nas aulas. E, quando a gente encontra a mãe, encontra o pai, ou o tio, a gente chama pra conversar. Eu acredito que eu e outros professores temos feito esse trabalho. A gente consegue conversar com as famílias para nos ajudar a tomar um posicionamento.

Page 229: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

228

Delma: Existe alguma atividade que vocês fazem com as famílias em que elas são convidadas a desenvolverem alguma atividade educativa com a escola? (P5): A gente tem sim. Durante as aulas normais, fica até difícil a gente, assim, chamar e envolver a mãe para vir para a escola. Eu faço isso, dentro da minha disciplina de história, no meu caso é fácil, principalmente nos trabalhos de pesquisa. Eu sempre estou acionando as famílias. Eu faço atividades, principalmente quando estou trabalhando sobre a história da comunidade, sobre a identidade. A gente está sempre pedindo: procure o pai, procure a mãe, peça ajuda, pesquise, converse. Na disciplina de história, no meu ponto de vista, fica fácil fazer isso, mas de um modo geral, na escola a gente tem feito isso. Tem trazido a família para estar colaborando junto com a gente, principalmente nos projetos que a escola desenvolve. Um exemplo que a gente vai vivenciar no mês que vem, que é o 8 de março, a gente tem feito um trabalho em relação a mulher e trabalha na sala de aula esse processo todo de formação, de desenvolvimento, do empoderamento da mulher. E, quando chega no dia 8, ou não, porque nem sempre o dia 8 caí num dia que dá para chamar a família, tipo sexta ou sábado, a gente sempre tem uma culminância. Nessa culminância, a gente traz a família para a escola para que ela venha ouvir, para que elas venha participar, para que ela venha ensinar também, não só as mulheres, mas os homens. Esse é um dos exemplos para estar trazendo a comunidade, as famílias para dentro da escola e, até agora, tem funcionado bem. Delma: Keka, conta uma experiência significativa que você tenha vivenciado em sua prática. (P5): A gente sempre tem alguma coisa a contar em relação a isso. Eu tento não ser apenas uma professora, mas uma amiga dos nossos alunos, não é? Para facilitar a nossa vivência em sala de aula, não é? E uma das atividades que a gente estava trabalhando o ano passado era EJA, e é sempre um desafio. São pessoas já adultas, pessoas que deixam de fazer seus afazeres em casa para vir para a escola. Então, a gente sempre tinha dificuldade nas atividades para eles fazerem em casa. E, muitas vezes, a gente não conseguia ter retorno deles. Então, fizemos uma atividade, foi um projeto, de Quintais Produtivos, foi um projeto. E, dentro desses quintais produtivos, a gente falava, a gente queria fazer uma visita. Mas nunca dava, porque a gente ensinava à noite. Então, a gente se organizou na escola, o grupo gestor, e foi fazer uma visita. Eram pessoas com idade de 15 a 40 ou mais. Juntamos todos os alunos e fomos de manhã. Uma dessas alunas, que era líder comunitária, tinha mais de 40 anos, hoje ela já é avó. Fomos visitar o quintal dela e de mais dois alunos lá. A gente conseguiu fazer o que gostaria de trabalhar, dar o retorno a eles em sala de aula. E lá foi muito bom! A gente juntou os dois EJAs. E depois veio a surpresa que ela disse que aquele momento ajudou com que ela pudesse, com que as pessoas da comunidade se sentissem motivadas a vir participar. Que ela já tinha chamado tantas vezes a ajudar, que já tinha chamado tanto as pessoas da comunidade e, depois que o grupo foi lá, as pessoas era, tipo assim, não acreditavam muito no trabalho comunitário, na vida em associação. E, depois desse momento, a comunidade ficou mais perto. As pessoas que não acreditavam passaram a acreditar. E, nesse dia, muitos se aproximaram e vieram para querer saber. E, assim, o jeito que ela falava emocionava a gente. Dela dizer que a gente motivou ela a não desistir, que ela dizia que era muito difícil. Dela não ficar só. E, depois desse momento, as pessoas ficaram mais perto. Nesse dia, a gente fez um mutirão lá. Foram cinco professores, a gestora

Page 230: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

229

da escola e as duas turmas de EJA. E ela agradecia tanto, e eu dizia que não: a recompensa é para mim, e isso me deixou muito feliz. São alunos que nunca me esqueceram e eu nunca esqueci deles. Ela concluiu. Ela é do Rodeador. O marido trabalha em Salgueiro. Essas são experiências significativas pra gente. CURRÍCULO Delma: Como se dá o processo de escolha do que você ensina? (P5): A gente ainda está, infelizmente, agarrado às “grades” curriculares. Delma: Porque você diz infelizmente? (P5): Porque a gente estava vendo uma das metas do governo para agora é ter o mesmo currículo, você já viu a propaganda? Muitas dessas coisas que vem naquela base (Nacional Comum), a gente já avaliou no final do ano passado, muitas coisas nos contempla, mas tem muita coisa que não tem nada a ver com a nossa realidade. Mas como a gente tem que assumir essa responsabilidade, a gente acaba ficando muito preso, e se a gente fica muito preso, muito apegado à tudo aquilo que o governo traz pra gente, muitas vezes ela não vai surtir efeito nenhum na nossa comunidade. PORQUE ESTÁ MUITO DISTANTE DA REALIDADE DOS NOSSOS ALUNOS. E a gente não está se sentindo na desobrigação de trabalhar, não é isso. Não é que a gente não tem a obrigação, mas se a gente acaba fazendo tudo do jeito que o governo tá (impondo) querendo que a gente faça, a gente acaba desconstruindo aquilo que a gente vem construindo. Que é fortalecer a identidade, trabalhar uma educação diferenciada, porque a gente percebe que muitas vezes eles não estão preocupados em fortalecer as comunidades, em fortalecer a identidade da população, de reafirmação. Delma: Vocês fizeram um estudo da base nacional curricular aqui na comunidade. Quando foi e quem esteve envolvido? (P5): Fizemos, foi, de novembro pra dezembro. Fizemos, as quatro escolas fizeram. Não lembro se a Néu fez. Mas a Rosa Doralina e a Mendes fez. Então, a gente conversou, todo mundo junto, sobre o Plano que o governo estava mandado. E eles mandam para a gente avaliar, se concordamos, se discordamos, se discordamos muito. Depois, a gente se dividiu por disciplina e a gente fez essa análise. Tem coisa que dá para a gente trabalhar, mas tem coisa que está muito aquém...Muito distante daquilo que a gente acredita muitas vezes. E a gente sabe que as realidades não são iguais no Brasil todo. Então, acaba, de alguma maneira, dificultando ainda mais. O currículo que eles trazem é muita coisa para ser cumprido e acaba que, se a gente for seguir à risca, a gente acaba se distanciando, saindo fora daquilo que a gente acredita. Delma: E o que vocês decidiram fazer? (P5): A gente decidiu fazer aquilo que a gente já vem fazendo. A gente vai trabalhar, mas trabalhando, também, aquilo que nos interessa, que é fortalecer a identidade. A gente não vai deixar de trabalhar. Infelizmente foi uma coisa que já veio pronta. Apesar de dizer que estão abertos, mas não estão tão abertos assim não, porque já veio com

Page 231: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

230

tudo pronto, só para concordar ou discordar e para fazer sugestão, mas nem pediram tanto sugestão não. Em algumas, a gente fez uma alteração de que discordava muito, mas a gente vai trabalhar, mas vai trabalhar aquilo que a gente vem trabalhando. Delma: Quais são os conteúdos que você seleciona para trabalhar a identidade? Quais os autores que você trabalha, quem está ajudando vocês, do ponto de vista do referencial teórico, a caminharem na prática? (P5): Eu não tenho muita referência, assim, teóricas não. Eu preciso ler mais ainda, mas eu tento fazer da seguinte maneira: eu tento buscar algumas coisas na internet que tenha a ver, e, também, das coisas que já foram escritas por pessoas daqui ou que alguém escreveu sobre nós. E algumas coisas também que o livro didático traz. A gente também trabalha algumas coisas que o livro didático traz, porque senão não ia surtir nenhum efeito e, se o MEC manda, ele tem utilidade. A gente não despreza o livro didático não. E, algumas coisas que têm no livro, a gente consegue aproveitar dentro daquilo que a gente acredita. Trabalha a realidade que o livro traz e depois a gente faz esse paralelo com a nossa realidade, ou igual ou diferente. Eu procuro trabalhar nesse sentido. Delma: E quais são os conteúdos que você trabalha? (P5): (tu queres ver o livro) Eles trazem as expectativas de aprendizagem dentro do livro, tem algumas expectativas que dão essa brecha. Que é a área de pesquisa local, eles têm identidade também e contribuição individual para a formação da comunidade e contribuição coletiva. Aí, nesses aspectos, eu tento transferir aquilo que essas expectativas da comunidade trazem pra dentro da comunidade. Eu procuro trabalhar alguns povos da África para que eles tenham essa noção de onde viemos, sabe? Procuro trazer também dentro dessas expectativas de aprendizagem que o nosso currículo traz, de procurar esses povos da África, também fazendo esse paralelo. Porque, mesmo na distância que a gente vive hoje daqui do quilombo de Conceição das Crioulas pra África, a gente percebe que a gente tem muitas coisas em comum ainda nesse mundo contemporâneo que a gente tem hoje. Então, eu procuro trazer essas coisas para que eles possam fazer essa ligação, pra fazer eles se interessarem na sua identidade. Então, as expectativas da aprendizagem trazem algumas coisas nesse sentido, e eu vou tentando trazer pra dentro da sala de aula, pra realidade, transmitindo mais ou menos desse jeito o conhecimento. EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA Delma: Eu queria que você dissesse a sua compreensão de Educação Escolar Quilombola. (P5): Eu acho que eu disse lá na formação, no Primeiro Bloco, que, até o ano 2000, a gente não tinha muito disso. Quando a gestão da escola muda em 2001, a gente já passa a ter. Passa a valorizar mais. Então, essa educação escolar quilombola vem se dar justamente na nossa forma de fazer diferente na sala de aula, a nossa prática diária. Porque a Educação Escolar Quilombola não tem que ser vivenciada apenas no mês de novembro, porque as outras escolas do município e fora do município veem na gente essa referência. A gente não tem que trabalhar só o mês novembro. Então,

Page 232: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

231

a gente já começa a trabalhar dentro dos nossos conteúdos. A gente sempre procura, inserir a nossa história, a história do nosso povo essa diversidade que a gente tem aqui, que também existem outros quilombos. Eu vejo mais ou menos dessa maneira. Delma: Ao lembrar do seu tempo de estudante, seu tempo agora de professora, e a sua experiência aqui enquanto quilombola, consegue perceber se houve mudança nesse processo? (P5): Quando eu entrei no quinto ano na José Mendes, era totalmente diferente do que a gente vê hoje. Depois que mudou a gestão em 2001, em 2002, as pessoas da comunidade começam a vir fazer parte desse processo. Muda de verdade, a partir do momento em que as pessoas da comunidade passam a ser agentes ativos dessa educação. Porque enquanto a gente tinha professores que eram de outras comunidades, da cidade, eram pessoas totalmente alheias à nossa realidade, à nossa história, a nossa própria forma de viver. Não tinham a preocupação de trazer a comunidade para dentro da escola. Então, quando eu comecei a estudar...A partir da quinta série, isso não era tão forte. E, ao longo desses anos, isso começa a mudar. E, quando eu passo a fazer o magistério, isso já é mais forte. O que há quatro anos atrás não era. Esses próximos quatro anos já começa a haver essa mudança. Eu começo a aprender coisas que são significativas na minha vida. (Delma: Que coisas, por exemplo?) Quando eu fiz quinta, sexta série, em momento nenhum da minha vida, eu ia pensar em ser professora de história. Pra falar a verdade, eu olhava assim... Meus alunos não gostavam de jeito nenhum de história, porque eu não gostava. Porque era uma coisa muito, muito teórica. Era uma coisa muito distante de nossa realidade. Hoje, eu compreendo a importância daqueles conteúdos, mas, de verdade, eu não aprendi nada! Depois, quando eu passo a fazer o magistério, eu começo a ver a mudança. Porque as pessoas, eu olho assim para os meus colegas de trabalho, boa parte deles foram meus professores. Eu aprendi com fulano de tal, fulano de tal me ajudou, fulano de tal me ensinou assim, eu aprendi a gostar disso, porque fulano de tal me motivou a gostar disso. Então, essa mudança começa a ser mais forte. Quando eu estou fazendo o terceiro ano, quando eu fui para o quarto ano do normal médio, eu já começo a despertar esse interesse pelo estudo da história, eu começo a descobrir coisas maravilhosas que até então eram totalmente esquisitas e confusas para mim. Eu começo a enxergar esse mundo. Delma: O que é que esses professores tinham de diferente dos outros? (P5): Menina, eram coisas que eu olhava assim e eram coisas tão simples. Com esses professores era muito simples compreender não só as coisas da comunidade, mas coisas também que iam me ajudar a fazer o meu vestibular para que eu passasse. A forma como eles ensinavam, a dinâmica em sala de aula que eles usavam para facilitar. Nem tudo era um mar de rosas, tinha aula que era cansativa, tinha aula também que era chata, mas, na maioria, a gente não sentia aquela vontade de desistir, de parar. Então, a forma que eles ensinavam era uma forma simples e a gente tinha uma coisa que a gente vê que faz o diferencial ainda que é a dedicação. Isso foi o que fez mais a diferença. A dedicação desses professores da comunidade em oferecer à comunidade uma educação de qualidade. Porque a gente tem uma educação de qualidade, apesar de muita gente não acreditar nisso.Tem muita gente que ainda desconfia do nosso jeito de ensinar, porque a gente foca muito na questão da nossa comunidade. E eu digo que a gente ensina bem... Claro que tem que melhorar, tem,

Page 233: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

232

sem dúvida. Porque os nossos alunos estão saindo do terceiro ano, estão fazendo vestibular, estão fazendo ENEM, estão passando no ENEM. E, se a gente não tivesse uma educação de qualidade, a gente não estava com esses alunos sendo aprovados dessa forma não. Estão escrevendo para Universidades em diversos cantos aí do Brasil. Então, se a gente não tivesse uma educação de qualidade, a gente não tinha esses alunos sendo aprovados assim não. Então, a dedicação dos professores da comunidade é que faz a diferença. OS CONTEÚDOS CURRICULARES Delma: Como vocês trabalham o conteúdo do referencial da Educação das Relações Étnico-racial na escola, como ela é vivenciada dentro da sala de aula? (P5): A gente tem procurado buscar a própria lei como base e as experiências que a gente têm visto de outras pessoas. Então, a gente tem trazido muito as próprias pessoas pra vir fortalecer essa questão da identidade. Temos pessoas na comunidade que fazem esse trabalho e fazem bem, trabalham essa relação de identidade de acordo com o conteúdo que eles pedem nas expectativas de aprendizagem. E a gente vê a melhor maneira daquele conteúdo ser inserido dentro da sala de aula. Eu procuro algumas coisas, vou confiar desconfiando de algumas coisas que têm na internet. Procuro textos, trechos de livros. Procuro trazer isso, faço muito recorte e entrego para eles fazerem análise daquele texto e o que é que aquilo que eles leram tem a ver com a gente. Delma: Conceição das Crioulas, recebe alunos de diversas regiões, tem aluno que vem de regiões que não são quilombolas. Tinha crianças indígenas que vinham ou vêm ainda. Então, é uma escola quilombola, que trabalha a educação quilombola, que na escola tem aluno quilombola, alunos não quilombolas e tem também aluno indígena, não é? Então, eu queria que você comentasse a questão da interculturalidade. (P5): Eu não sei se hoje está mais fácil, nem sei se algum dia vai ser fácil, mas não é fácil. A gente se propôs a trabalhar educação e a gente quer trabalhar uma educação de qualidade e, por muito tempo, a gente foi excluída da História do Brasil. Então, eu não acho justo que a gente agora queira excluir. E a Lei 10.639/3, que foi alterada pela 11.645/08, traz os povos africanos e os povos indígenas para o currículo da educação escolar brasileira. Então, a gente tem trabalhado a questão dos povos indígenas, até mesmo porque é o que fica mais forte, até mesmo por causa dessa miscigenação que existe aqui dentro do território dos indígenas e dos quilombolas. Vou me referenciar a esses dois povos, mas não significa que a gente trabalhe só eles. A gente têm trabalhado outras culturas dentro do território. A gente também têm ajudado a fortalecer a cultura indígena dentro da escola. A cultura dos indígenas, a forma de organização, até porque a gente têm como referência para a nossa luta muitas coisas que a gente aprendeu, muitas formas de se organizar, muitas coisas que a gente ainda quer conquistar, a gente toma por referência a luta dos povos indígenas. Então, de alguma maneira, é fácil trabalhar, mas não é toda vez fácil não. A gente tem muita coisa a melhorar, tem muita coisa a se resolver. Mas a gente tem trazido essa interculturalidade sim. Eu penso assim, posso estar errada, mas o aluno tem que se adequar à escola, não a escola se adequar ao aluno. Porque a gente não

Page 234: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

233

vai dar conta de cada aluno na sua especificidade. Mas a escola tenta abraçar os alunos não quilombolas, os alunos indígenas, para que eles não se sintam excluídos e, também, massacrados como a gente foi por muito tempo na história do Brasil. É um desafio ainda, a gente sabe que tem muita coisa a melhorar, temos muita coisa a aprender em relação à história dos povos indígenas, mas a gente tem se esforçado. A gente não tem desmerecido de forma nenhuma. Sempre que possível, a gente traz algumas dessas pessoas dos indígenas para dar formação para nós professores, mas também para os alunos. É uma luta a ser vencida, tem muita coisa ainda a melhorar, eu sei que tem. Mas a gente não tem deixado de fora não. A gente não tem focado só na história da comunidade, por isso que a nossa escola é diferenciada, porque a gente está brigando para trazer para o currículo a nossa história, sem deixar de trabalhar as outras histórias que são sempre apresentadas: a asiática, a norte-americana. A gente quer trazer também essa cultura, que está próxima da gente, que é a dos povos indígenas e a nossa própria história, e tudo isso dentro de uma única escola. Por isso que a cada ano é uma continuidade, por isso que a gente quer permanecer na escola e é onde entra a nossa luta para ter a efetivação dos professores, que é uma luta constante, é uma luta contínua. E, se esse ciclo é quebrado, se o menino entra na escola no sexto ano, eu vou começar a conhecer e a traçar o perfil e, nos próximos anos, eu vou saber como lidar, como trabalhar para que ele possa avançar dentro dessa escola. Se os professores são mudados, trocados constantemente, não tem como a gente dar sequência aquilo. É por isso que a gente luta para que tenha a efetivação dos professores, para que eles sejam efetivos e, de preferência, sejam da própria comunidade. Porque, se vem alguém de fora, talvez, ao invés de ajudar a resolver esse conflito de identidade aqui dentro a gente, vai é fazer com que essa diferença cresça ainda mais. (pausa) Delma: Pois bem é isso, concluímos a nossa entrevista, muito obrigada! Tempo da segunda entrevista: 41:40 minutos Tempo total: 44 + 41:40= Uma hora, 25 minutos e 40 segundos

Page 235: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

234

ANEXO

Page 236: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

235

ANEXO A - PORTARIA NORMATIVA N. 21, DE 28 DE AGOSTO DE 2013

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

GABINETE DO MINISTRO

DOU de 30/08/2013 (nº 168, Seção 1, pág. 9)

Dispõe sobre a inclusão da educação para as relações étnico-raciais, do ensino de História e

Cultura Afro-Brasileira e Africana, promoção da igualdade racial e enfrentamento ao racismo

nos programas e ações do Ministério da Educação, e dá outras providências.

O MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO, no uso das atribuições que lhe foram

conferidas pelo art. 87, parágrafo único, inciso IV, da Constituição; e pelo art. 9º, II, do Decreto

nº 7.824, de 11 de outubro de 2012, e considerando o estabelecido na Lei nº 10.639, de 9 de

janeiro de 2003, que tornou obrigatório a inclusão do ensino sobre a História da África e dos

Afro-Brasileiros nos currículos escolares; considerando o estabelecido na Lei nº 12.288, de 20

de julho de 2010, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial; considerando os propósitos

expressos no Parecer CNE/CP nº 3/2004, de 10 de março de 2004, e na Resolução CNE/CP nº

1, de 17 de julho de 2004, homologada pelo Ministro da Educação em 17 de junho de 2004,

que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais

e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, e orienta as instituições de

ensino superior sobre a inclusão de referidas temáticas nos cursos de graduação; considerando

o conteúdo do Aviso-Circular Conjunto nº 1, de 28 de dezembro de 2012, que determinou a

inclusão do quesito raça/cor nos registros administrativos do governo federal; considerando a

necessidade de promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade

multicultural e pluriétnica do Brasil, resolve:

Art. 1º - Os programas e ações do Ministério da Educação incluirão na formulação e na

produção dos materiais didáticos e paradidáticos, bem como nas linhas de ação e eixos

temáticos a educação para as relações étnico-raciais, o ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana e promoção da igualdade racial e enfrentamento ao racismo.

Parágrafo único - A exigência disposta no caput não se aplica às ações e programas que

abordem especificidades que não contemplem a abordagem desta temática.

Art. 2º - O Ministério da Educação instituirá a coleta do quesito raça/cor nos instrumentos de

avaliação, coleta de dados do censo, bem como em suas ações e programas quando couber.

Parágrafo único - O preenchimento do campo denominado raça/cor deverá respeitar o critério

da autodeclaração, dentro dos padrões utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) e que constam nos formulários dos sistemas de informações da saúde

(branca, preta, amarela, parda ou indígena).

Art. 3º - As instituições federais vinculadas ao Ministério da Educação, secretarias e autarquias

terão o prazo de 90 (noventa) dias para propor as medidas necessárias à incorporação dos

requisitos definidos na forma desta Portaria.

Page 237: DELMA JOSEFA DA SILVA - UFPE...S586r Silva, Delma Josefa da. Curriculares em uma Escola localizada na Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas / Delma Josefa da Silva. –

236

§ 1º - A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi)

coordenará a organização das propostas em articulação com as secretarias e autarquias

vinculadas ao Ministério da Educação.

§ 2º - Poderão ser convidados para a formulação das propostas representantes de órgãos e

entidades públicas e privadas, bem como especialistas sobre a temática étnico-racial.

Art. 4º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

ALOIZIO MERCADANTE OLIVA