teresa torres eça ( 2009) josefa de ayala

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«Estética» e sentir feminino na obra de Josefa de Ayala TeresaTorres Eça Copyright : Attribution Non-commercial Sempre me perguntei, como muitas outras pessoas, porque é que as pintoras Portuguesas não eram tão referenciadas na literatura sobre história da arte em Portugal como os pintores. Tinha algumas hipóteses sobre o assunto que se prendiam com o facto de que a partir do século XIX e durante quase todo o século vinte as mulheres foram discriminadas no mundo da arte, mundo masculino por excelência. Até agora nunca busquei muitas respostas sobre o assunto, não porque as questões de género me não interessassem mas porque nunca tive grande tempo e disponibilidade intelectual para reflectir sobre o assunto. Tenho lido muitas teorias sobre o papel das mulheres nas artes e tenho simpatizado com algumas interpretações feministas ou pós feministas sobre a questão. Devo confessar que sinto muito embaraço sobre esta questão porque como qualquer outra artista da minha geração treinada numa escola de Belas Artes de Portugal fui muito marcada por concepções modernistas e machistas da arte. E por isso de vez em quando sinto necessidade de repensar algumas pintoras portuguesas e de tentar entender porque foram tão mal tratadas pela memória colectiva registada nos textos sobre arte, que nunca é reflexo de nenhuma colectividade cultural representativa de um povo mas apenas uma visão elitista, representando a opinião subjectiva de um pequeno grupo de pessoas consideradas peritas em apreciação artística por um punhado de gente.

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texto sobre Josefa de Ayala, pintora portuguesa

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Page 1: Teresa Torres Eça ( 2009)  Josefa de Ayala

«Estética» e sentir feminino na obra de Josefa de Ayala Teresa Torres Eça

Copyright : Attribution Non-commercial

Sempre me perguntei, como muitas outras pessoas, porque é que as pintorasPortuguesas não eram tão referenciadas na literatura sobre história da arte em Portugal como os pintores. Tinha algumas hipóteses sobre o assunto que se prendiam com o facto de que a partir do século XIX e durante quase todo o século vinte as mulheres foram discriminadas no mundo da arte, mundo masculino por excelência. Até agora nunca busquei muitas respostas sobre o assunto, não porque as questões de género me não interessassem mas porque nunca tive grande tempo e disponibilidade intelectual parareflectir sobre o assunto. Tenho lido muitas teorias sobre o papel das mulheres nas artes e tenho simpatizado com algumas interpretações feministas ou pós feministas sobre a questão.

Devo confessar que sinto muito embaraço sobre esta questão porque como qualquer outra artista da minha geração treinada numa escola de Belas Artes de Portugal fui muito marcada por concepções modernistas e machistas da arte. E por isso de vez em quando sinto necessidade de repensar algumas pintoras portuguesas e de tentar entender porque foram tão mal tratadas pela memória colectiva registada nos textos sobre arte, que nunca é reflexo de nenhuma colectividade cultural representativa de um povo mas apenas uma visão elitista, representando a opinião subjectiva de um pequeno grupo de pessoas consideradas peritas em apreciação artística por um punhado de gente.

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Transverberação de Santa Teresa c.1672, óleo sobre tela

108 x 140 cm Igreja Matriz

Cascais, Portugal

Josefa de Ayala é para mim uma personagem fascinante. Os meus encontros com algumas das suas obras têm sido sempre um encantamento. Sobretudo as naturezas mortas e os meninos Jesus. Tanta frescura, tanta transparência singela, sensualidade nas texturas e cores, dramatismo na sábia distribuição da luz e da sombra sem nunca chegar aos excessos tenebrosos de alguns dos seus contemporâneos. Encanta-me a maneira como repete um determinado tipo de rosto, olhos desmesuradamente grandes, bochechas rosadas, bocas carnudas como se fossem um belo fruto maduro. Vagamente fazem-me lembrar outros rostos vistos em outras pinturas renascentistas e barrocas portuguesas e espanholas, mas têm um não sei quê que as torna únicas.

Nunca encontrei grandes estudos sobre esta pintora, o mais completo que eu conheça é a publicação do catálogo da exposição Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco apresentada na Galeria de Pintura do Rei D. Luis em Lisboa em 1991. O catálogo coordenado por Vítor Serrão1 foi patrocinado pelos Telefones de Lisboa e do Porto. Neste livro afirma-se mais uma vez que Josefa foi no seu tempo hiper valorizada, que afinal ela não era nenhuma pintora de grande calibre, que muito do que se escreveu sobre ela antes dachegada do grande ‘ connoisseur’ o conde Atanasio Raczynski era ‘ um acervofantasista de registos responsáveis pela legendária fortuna crítica de Josefa deAyala’ (Serrão, 1993, p. 15).

Tenho muitas dúvidas sobre a peritagem deste ‘connoisseur’ o tal conde Raczynski e parece-me que o que de facto aconteceu foi que a mulher valorizada pela sociedade barroca foi nos períodos seguintes vítima de discriminação, e que no século XIX e XX era impossível pensar que uma mulher possa ter sido uma pintora de qualidade e ainda mais grave, uma mulher que não vivia nos grandes centros da arte barroca, nem sequerem Lisboa, uma mulher e ainda por cima periférica!!!

Entendamo-nos bem: uma pintora que limita a suaexistência à austeridade freirática de um recolhimento de

agostinhas, em Coimbra, e à tranquilidade bucólica das ruasde Óbidos e dos campos vizinhos não pode ser explicadaartisticamente com artificiosos e deslocamentos cotejosinternacionais. A realidade artística de Josefa, mesmo

tomando em conta os anos da meninice passados em Sevilhaà sombra da oficina de Francisco de Herrera e olhos postosna violenta modernidade naturalista dos quadros da catedral

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sevilhana, esgota-se numa formação plástica seguramentemenos dilatada do que a de qualquer pintor lisboeta do seu

tempo’ ( Serrão, 1993, p. 25)1.

Discordo desta afirmação de Vítor Serrão, que apesar de ser para mim um dos maiores conhecedores da obra de Josefa de Ayala deixa transparecer preconceitos de valor de centro e periferia que nada têm a ver com a investigação plástica séria, embora solitária, que a pintora efectuou durante a sua vida. Talvez porque não estivesse condicionada por um vida social intensa tivesse mais tempo para pensar e praticar, talvez porque não estivesse perto dos ditos ‘ grandes artistas’ ela tivesse conseguido criar uma linguagemplástica única e tão válida como a dos seus contemporâneos habitantes de Sevilha ou de Lisboa.

Este preconceito da centralidade geográfica infelizmente ainda hoje existe e não são raros os artistas que vão viver para Amesterdão ou Nova York porque para eles é a única maneira de poder ser artista. Confundir comercialização de produtos artísticos ou de um nome com qualidades artísticas é um erro comum, a própria Paula Rego numa entrevista à televisão portuguesa confessou que se não fossem os pais a terem mandado para o estrangeiro ela não seria quem era. Sergio Mah2 numa conferência sobre arte Honolulu (Julho de2004) intitulada ‘Cultural (In) Difference: The Portuguese Contemporary Art Scene’2

referiu este complexo tão castrador da arte portuguesa, se um artista não vive e trabalha nos grandes centros não é reconhecido pela crítica.

Claro que também acredito que a mudança da sociedade possa ter causado uma mudança mais radical de valores como diz Vítor Serrão:

‘ O grosso dos valores caracterizadores do Seiscentismoportuguês, de que Josefa è um espelho particularmente clarificador,com as suas composições feitas de trevas e de gula, de fumosinquisitoriais e de prados tranquilos, de ingénua graciosidade e deexaltante misticismo, de objectos singelos e de floresemblemáticas, de uma reprimida carga sensorial e de umareligiosidade veemente, passaram deste modo a sersecundarizados’( Serrão, 1985, pp 17-183).

1 Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: TLP

2 [http://www.apexart.org/conference/mah.htm] 2007-02-15

3 Serrão, (1985). O essencial sobre Josefa de Óbidos. Lisboa: Col. Essencial da Imprensa Nacional/ Casada Moeda.

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De facto estes valores ou para ser mais precisa estas maneiras de estar no mundo foram desaparecendo com o racionalismo típico da sociedade criada pelos iluministas. Mas isso por si só não justifica o desprezo a que foi votada a obra de Josefa de Óbidos. Outros pintores barrocos que viam o mundo deste modo sensual e místico não foram desvalorizados e não me parece que tenham tido melhor perícia técnica que Josefa , mas eram homens numa história contada por homens.

Preconceitos contra a mulher que para mim justificaram a marginalização da sua obra, apelidada como ‘ medíocre’ pelo tal ‘connoissseur’ estrangeiro, ‘uma pintora menor’ , sem o talento de seu pai ou dos seus contemporâneos ‘ ingénua ’ , ‘ gulosa’ , ‘devota’, ‘donzela’ , ‘ patética inocência’… São inúmeros os nomes com que a sua obra e a sua pessoa é desprezada. Só para dar um exemplo de crueldade e de crítica discriminadora vejamos:

‘Pintava com devoção, sem dúvida: uma devoção ternurenta,xaroposa… O universo mental e cultural de Josefa, dado a ver nasua pintura, é pois anódino, dissolvido em açúcar, confirmando oepíteto por que foi celebrada ‘ molher donzela que nuncacazou’ ( José Fernandes Pereira, 1989, p.69)

Como poderá este senhor julgar o universo mental de uma pintora utilizando tais metáforas? Reduzindo a pintora a xaropes, açúcar e virgindade. De todos os comentários que li sobre a pintora este foi talvez o mais cruel e revoltante. Será que o facto de ter sido apelidada de ‘ donzela’ é relevante nas suas obras? Será que Josefa quis ser donzela por exemplo porque poderia não ser heterossexual ou será que Josefa foi obrigada a ser donzela porque precisava de tomar conta dos pais? Terá alguma importância o facto de Josefa não ter sido casada? Teria sido virgem? Será que isso teve influência na sua pintura?

Talvez que sendo solteira tenha tido mais tempo e liberdade para pintar. Mas sabemos que Josefa era empreendedora, geria negócios com mão de ferro , tomava conta de toda a família, vendia, emprestava, pedia emprestado, comprava propriedades e géneros além de vender o produto do seu trabalho artístico como barrista, gravadora, miniaturista, pintora de retratos, naturezas mortas e de cenas religiosas. Pintar para Josefa era uma profissão, não um passatempo de dona de casa .

“Josefa de Ayala e Cabrera, , além de pintora de quadros sacros, naturezas mortas, miniaturas e retratos, além de gravadora e de barrista, também ilustradora de livros, pintora de fresco, talhante de imaginária avulsa e, ainda, autora de cartões para azulejo, facetas essas que, como se sabe, persistem desconhecidas” ( Serrão, V., 1993, pág.42)4

Josefa era uma profissional da pintura. Ela tinha uma oficina, tinha assistentes, era parceira do pai Baltasar Gomes Figueira em grandes encomendas. Se fosse hoje diria que Josefa era uma ‘empresária de sucesso’.

4 Serrão, Vítor (1993): “Josefa de Óbidos e o tempo Barroco” Catalogo da exposição subsidiado pelos TLP, Lisboa, pág.42.

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Dirigia a sua vida e a vida da sua família com mãos de ferro, comprava e alugava terrenos, as suas obras eram muito procuradas e bem pagas.

“Josefa d´Óbidos, foi uma artista de merecimento, evidenciando-se não apenas como pintora ilustre, mas também como miniaturista, gravadora a água forte, debuxadora, calígrafa e lavrante de prata de martelo, no género de que chamavam –de pontinho….

É vasta e dispersa a obra desta artista: retratos, imagens de santos, naturezas mortas, frutos, flores, etc.,” Joaquim Silveira Botelho, “Óbidos Vila Museu”,Câmara Municipal de Óbidos, pág.85-86

A vida em Óbidos não deveria ser fácil, uma cidade pequena cheia de mexericos e cheia de preconceitos. Josefa vivia recatada, porventura em ‘ intimismos de gula e rendas’ como sugere Serrão ( In: Pereira, José Fernandes ,1989, p.69).5

Não acredito muito numa Josefa anafada, comedora de doces conventuais e fazedora de licores, acredito mais numa Josefa decidida, persistente no trabalho, passando horas e horas tentando descobrir soluções plásticas, fabricando as tintas preciosas com rigor de laboratório, ensinando os seus discípulos e assistentes de ambos os sexos , ao que parece teria uma assistente negra , rabiscando esboços compositivos, copiando gravuras, observando as formas reais com olhos de pintar, aquela observação que sistematiza: ao mesmo tempo que olha está a ver como vai representar a textura, como está situada a luz, como deveria estar, etc. Vejo Josefa de Ayala como uma boa profissional, sabedora da sua arte aprendida em Sevilha com o padrinho, no convento em Coimbra, com o pai, através de gravuras de outros artistas que na altura circulavam por toda a Europa e através da sua experiência com o seu quotidiano. Vejo-a artista e mestre terrivelmente independente. Ela não se sujeitaria à autoridade de um marido ou às restrições da corte de Lisboa, que afinal de contas era tão provinciana como a de Óbidos só que mais castradora.

“…na Capeleira, Josefa ganhava, notoriamente, a feição de uma patriarca rural de província. Rejeitou uma inserção na corte de D. Pedro II, receando talvez o ambiente e as exigências que não deixariam de lhe ser feitas” Fernandes Pereira, José (1988): “Óbidos”, Editorial Presença, Lisboa, pág.69

“Josefa era visitada por senhoras que lhe apreciavam a destreza em captar, pela semelhança, a realidade, e se deixavam muitas vezes retratar. Este público que a demandava seria provavelmente gente da capital em trânsito para as Caldas; sabemos ter retratado a princesa D. Isabel, filha de D. Pedro II”….“Josefa teria também retratado a rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia” Fernandes Pereira, José (1988): “Óbidos”, Editorial Presença, Lisboa, pág.69.

5 Pereira, José Fernandes ( 1989).‘Óbidos’, colecção Cidades e vilas de Portugal. Editorial Presença,Lisboa, p.69.

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Pergunto-me muitas vezes se Josefa fazia naturezas mortas porque gostava do género ou porque tinha encomendas certas e nunca cheguei a conclusão nenhuma. Existem nas suas frutas, nas suas flores uma verdadeira alegria de contemplação, de fruição da natureza, será possível que Josefa pensasse as suas naturezas mortas como odes religiosas, um imaginário piedoso como os poemas de Sóror Maria do Céu ? Tal como Ana Hatherly nos chama a atenção pondo em paralelo os poemas de Sóror Maria do Céu e as pinturas de Josefa de Ayala :

Na verdade, ambos são texto(s), ambos são imagem(s) ambospintam, ambos mostram, ambos falam, mas não obstante o seunotável realismo, falam de algo neles ausente: a dimensão invisíveldo real que ambos querem dar ver. Ambos querem dar a ver esobretudo ambos querem dar a pensar, porque ambos apelam para oinvisível, para esse outro real que só pode ser apercebido pelos olhos da alma ( Hatherly, 1993)6

O texto de Ana Hatherly para o catálogo da exposição Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco é muito interessante porque nos recorda como a contra reforma foi importante na valorização dos sentidos e da natureza como celebração divina, e de como o aparente naturalismo dramático do barroco e de Josefa não é um discurso mimético sobre a natureza mas sim um discurso sobre os símbolos da natureza e sobre a divindade, trata-se de facto de um meta discurso visual que Josefa invoca em cada uma das suas naturezas mortas, na sua procura pela simetria, pela organização formal na colocaçãodas formas, por exemplo das açucenas ou dos lírios sobre a mesa ou em redor nas cercaduras.

6 Hatherly, Ana ( 1993) In : Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: TLP,p. 84.

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Outra coisa que me fascina na obra de Josefa são os meninos, meninos rosados, bem penteados, com vestes transparentes, com mãos rechonchudas e impecáveis unhas bem aparadas. Josefa nunca foi mãe, pelo menos que se saiba, mas a sua casa em Óbidos deveria estar repleta de sobrinhos e sobrinhas, de filhos da criadagem, dos assistentes da oficina. Josefa pinta os meninos como pinta porque viveu com eles, pegou-lhes ao colo, sentiu-lhes o peso e o cheiro.

Mas os meninos de Josefa não são meninos de verdade , são figuras religiosas, meninos de talha barroca, meninos de altar e de procissões. Não têm talvez a sensualidade de um menino de Juan de Ruelas , oscilam entre a carnosidade brincalhona dos sobrinhos e a divindade que os estereotipa e eu os legitima num cena religiosa. São meninos de rosto esquemático certamente tal como todos os rostos da pintora com aqueles olhos esbugalhados desmesuradamente grandes que convidam o espectador a entrar para dentro deles. Olhos por vezes adormecidos, que fixam o espectador, o infinito ou algum personagem no espaço da pintura, os olhares na obra figurativa de Josefa são extremamente ricos na medida em que por um lado eles revelam ou sublinham trajectórias essenciais da composição e que por outro lado eles revelam dimensões para além do tempo, de espiritualidade absoluta.

Os olhares das personagens nas cenas religiosas são típicos olhares barrocos, em rostos barrocos tão barrocos como os dos seus contemporâneos, mas existe algo de

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extremamente feminino neles, A Santa Face, O senhor da Cana verde são impressionantes de uma delicadeza quase envergonhada . Nos esquemas dos rostos femininos Josefa usa um olhar que meigo quase maternal tal como o olhar de Maria na visitação de Peniche, bem diferente dos arrebatados olhares em transe de Francisco de Herrera ou André Reinoso. E não é só o olhar dos personagens que torna Josefa única , é o esquema plástico que ela criou para representar a figura humana, quase sem diferenciar masculino de feminino , exceptuando a roupa, santos e santas, virgens e Cristos todos comungam de um esquema particular , andrógino . Todos salvo os personagens secundários, mais característicos , bem ao modo do renascimento.

Josefa de Óbidos, natureza morta, s/data. Barros e cesto, queijo e cerejas. Este quadro pertence a uma colecção particular e foi exposto na exposição da Galeria do Rei D. Luís em 1991.

Existe uma natureza morta de Josefa que me encanta de sobremaneira, representa um prato com queijos, tipo queijo saloio, um pote de barro, uma taça de barro, dois figos, um cesto de cerejas e um prato de esmalte branco florido também com cerejas, tudo muito bem disposto em cima de uma mesa. A luz é tenebrista bem ao espírito da época, o branco dos queijos e a transparência das cerejas são fontes de luz mas não irradiam,pelo contrário parecem mais ‘atractores’ no sentido matemático, dois pólos geradores de tensão. A composição em banda mostra quietude. Parece que o tempo parou e aquelas coisas simples congelaram na memória. Entro numa dimensão espiritual, talvez para Josefa os figos, as cerejas e o queijo tenham tido um significado místico, os figos talvez conotados como na antiguidade a figueira com erotismo e fertilidade (a figueira era dedicada a Mercúrio), nas Escrituras o figo aparece várias vezes com várias conotações.

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Mas eu desconheço esses códigos e não consigo ler nesta obra um elogio ao divino, mas consigo ver outras coisas, o queijo das refeições sóbrias mediterrâneas, das merendas dos trabalhadores do campo, os figos que se apanham da figueira e se deixam esquecidos em cima da mesa da cozinha numa tarde de verão. As cerejas colhidas pela manhã, a água fresca, uma mesa posta para quem passar, uma mesa expectante , cheia de iguarias para alguém que há-de vir, se vier. Penso no quadro das cerejas de Chardinque me dá a mesma sensação de espera, de intemporalidade e de devir como as caixas e as garrafas do Morandi no século vinte . As naturezas mortas, pelo menos algumas têm para mim esse sentido de congelamento do tempo, como na fotografia. Há qualquer coisa de falso, de ilusão de mensagem escondida, aquela fruta deveria apodrecer como as cebolas greladas de Cezanne, os queijos deveriam cheirar mal, os figos deveriam em breve apanhar bolor. Mas não eles estão lá e estarão contrariando a efemeridade contrariando o poema de Ronsard

‘ Mignonne allons voir si la roseQue ce matin sa robe avait décloseN’a point perdu de son éclat ….‘ Ronsard (1524-1585) Sonnets pour Hélène.

É verdadeiramente um desafio à natureza, não tem nada de inocência ou de singeleza, esta negação do tempo é a afirmação duma dimensão diferente, dum outro estado, o estado da memória ou da alma e é por isso que este quadro me encanta tanto.

O período barroco foi um período onde algumas mulheres europeias7 puderam trabalhar sem grandes entraves sociais. Outras pintoras, contemporâneas de Josefa foram e são apreciadas pela crítica da arte europeia, embora poucas façam parte da história oficial por razões de discriminação sexual e não por serem menos aptas, as suas obras tinham imensa qualidade por exemplo:

Giovanna Garzoni (1600-1670) uma das primeiras a pintar naturezas mortas, trabalhou na corte do Duique de Alcalá , do Duque de Savoia e em Florença para membros da família Medici, foi pintora oficial do Grão Duque Ferdinando II. Judith Leyster (1609-1660) a alemã cuja obra foi tantas vezes confundida com os irmãos Franz e Dick Hals . A Francesa Louise Moillon (1610-1696), a grasvadora alemã Geertruydt Roghman , a holandesa Maria van Oosterwyck (1630-1693) que nunca foi aceite na guilda dos pintores , a inglesa Mary Beale (1632-1697) que acabou por ser o único sustento da sua família , A precoce e multifacetada Elisabetta Sirani (1638-1665) ou Maria Sibylla Merian (1647-1717) a primeira dos grandes da ilustração científica que 7 Ver em [http://womenshistory.about.com/library/weekly/aa021230a.htm] 2007-09-04

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em pleno século dezassete se aventurou com a filha até Suriname para desenhar o seu livro Metamorphosis.

Josefa faz parte desta lista de artistas notáveis. Josefa de Ayala foi uma importante pintora portuguesa, tão meritória de fama e sucesso como os seus contemporâneos machos André Reinoso, João de Avelar Rebelo ou Domingos Vieira. Ela legou-nos uma visão única sobre o seu tempo, sobre os valores e crenças religiosas com que viveu e sobre si própria. Deixou-nos um testemunho riquíssimo de grande qualidade pictórica que seria bom não esquecer ou menosprezar através de preconceitos sexistas e de periferia. Com este texto muito pessoal, visto que não sou crítica de arte, tentei mostrar porque é que a obra de Josefa de Ayala, também conhecida por Josefa de Óbidos me encanta tão profundamente.

Viseu, 2009-02-03Teresa Torres Eça

Notas: biografia de Josefa de Ayala por Vítor Serrão em: http://www.esec-josefaobidos.rcts.pt/josefa_ayala/vidobra.htm, acedido em 2007-09-04

Imagens reproduzidas a partir de : Serrão, Vítor ( 1993). Josefa de Óbidos e o tempo do Barroco. Lisboa: TLP.