decisão de gilmar mendes sobre remedios

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  • R E L A T R I O

    O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Presidente):

    Trata-se de agravo regimental interposto pela Unio (fls. 193-229) contra a deciso da Presidncia do STF (fls. 169-184), na qual indeferi o pedido de suspenso de tutela antecipada n. 175, formulado pela Unio, (que contm apensa a Suspenso de Tutela Antecipada n. 178, de idntico contedo, formulada pelo Municpio de Fortaleza), contra acrdo proferido pela 1 Turma do Tribunal Regional Federal da 5 Regio, nos autos da Apelao Cvel no

    408729/CE (2006.81.00.003148-1).

    A deciso agravada indeferiu o pedido de

    suspenso de tutela antecipada, em consonncia com prvio parecer da Procuradoria-Geral da Repblica (fls. 135-149 e 162-163) por no se constatar, no caso, grave leso ordem, economia e sade pblicas, ressaltando-se os seguintes fundamentos, no que aqui interessa:

    [...] No caso dos autos, ressalto os seguintes dados

    fticos como imprescindveis para a anlise do pleito:

    a) a interessada, jovem de 21 anos de idade, portadora da patologia denominada NIEMANN-PICK TIPO C, doena neurodegenerativa rara, comprovada clinicamente e por exame laboratorial, que causa uma srie de distrbios neuropsiquitricos, tais como, movimentos involuntrios, ataxia da marcha e dos membros, disartria e limitaes de progresso escolar e paralisias progressivas (fl. 29); b) os sintomas da doena teriam se manifestado quando a paciente contava com cinco anos de idade, sob a forma de dificuldades com a marcha, movimentos anormais dos membros, mudanas na fala e ocasional disfagia (fl. 29); c) os relatrios mdicos emitidos pela Rede Sarah de Hospitais de Reabilitao relatam que o uso do ZAVESCA (miglustat) poderia possibilitar um aumento de sobrevida e a melhora da qualidade de vida dos portadores de Niemann-Pick Tipo C (fl. 30);

  • d) a famlia da paciente declarou no possuir condies financeiras para custear o tratamento da doena, orada em R$ 52.000,00 por ms; e e) segundo o acrdo impugnado, h prova pr-constituda de que o medicamento buscado considerado pela clnica mdica como nico capaz de deter o avano da doena ou de, pelo menos, aumentar as chances de vida da paciente com uma certa qualidade (fl. 108).

    A deciso impugnada, ao deferir a antecipao de tutela postulada, aponta a existncia de provas quanto ao estado de sade da paciente e a necessidade do medicamento indicado, nos seguintes termos:

    (...) No caso concreto, a verossimilhana da alegao demonstrada pelos documentos mdicos que restaram coligidos aos autos. No de fl. 24, consta que o miglustato (Zavesca) o nico medicamento capaz de deter a progresso da Doena de Niemann-Pick Tipo C, aliviando, assim, os sintomas e sofrimentos neuropsiquitricos da paciente. A afirmao seguida de indicao das bases nas quais se assentou a concluso: estudos que remontam ao ano 2000. Alm dele, convm apontar para o parecer exarado pela Rede Sarah de Hospitais de Reabilitao Associao das Pioneiras Sociais, sendo essa instituio de referncia nacional. Nessa manifestao (fl. 28) consta: Atualmente o tratamento , preponderantemente, de suporte, mas j h trabalhos relatando o uso do Zavesca (miglustat), anteriormente usado para outras doenas de depsito, com o objetivo de diminuir a taxa de biossntese de glicolipdios e, portanto, a diminuio do acmulo lisossomol destes glicolpidios que esto em quantidades aumentadas pelo defeito do transporte de lipdios dentro das clulas; o que poderia possibilitar um aumento de sobrevida e/ou melhora da qualidade de vida dos pacientes acometidos pela patologia citada. Acrescente-se que o medicamento pretendido tem sido ministrado em casos idnticos. (...) Esse quadro mostra que h prova pr-constituda de que a jovem CLARICE portadora da doena Niemann-Pick Tipo C; de que a medicao buscada (miglustat) considerada pela clnica mdica como nico capaz de deter o avano da doena ou de, ao menos, aumentar as chances de vida do paciente com uma certa qualidade; de que tem sido ministrado em outros pacientes, tambm em decorrncia de decises judiciais. (fls. 107-108)

    O argumento central apontado pela Unio reside na falta de registro do medicamento Zavesca (miglustat) na Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria e, consequentemente, na proibio de sua comercializao no Brasil.

    No caso, poca da interposio da ao pelo Ministrio Pblico Federal, o medicamento ZAVESCA ainda no se encontrava registrado na ANVISA (fl. 31).

  • No entanto, em consulta ao stio da ANVISA na internet, verifiquei que o medicamento ZAVESCA (princpio ativo miglustate), produzido pela empresa ACTELION, possui registro (n. 155380002) vlido at 01/2012.

    O medicamento Zavesca, ademais, no consta dos Protocolos e Diretrizes Teraputicas do SUS, sendo medicamento de alto custo no contemplado pela Poltica Farmacutica da rede pblica.

    Apesar de a Unio e de o Municpio de Fortaleza alegarem a ineficcia do uso de Zavesca para o tratamento da doena de Niemann-Pick Tipo C, no comprovaram a impropriedade do frmaco, limitando-se a inferir a inexistncia de Protocolo Clnico do SUS.

    Por outro lado, os documentos juntados pelo Ministrio Pblico Federal atestam que o medicamento foi prescrito por mdico habilitado, sendo recomendado pela Agncia Europia de Medicamentos (fl. 166).

    Ressalte-se, ainda, que o alto custo do medicamento no , por si s, motivo para o seu no fornecimento, visto que a Poltica de Dispensao de Medicamentos excepcionais visa a contemplar justamente o acesso da populao acometida por enfermidades raras aos tratamentos disponveis.

    A anlise da ilegitimidade ativa do Ministrio Pblico Federal e da ilegitimidade passiva da Unio e do Municpio refoge ao alcance da suspenso de tutela antecipada, matria a ser debatida no exame do recurso cabvel contra o provimento jurisdicional que ensejou a presente medida.

    [...] (fls. 180-183)

    Manteve-se, por conseguinte, a antecipao de

    tutela recursal deferida pelo TRF da 5 Regio para

    determinar Unio, ao Estado do Cear e ao Municpio de Fortaleza o fornecimento do medicamento denominado Zavesca

    (Miglustat), em favor de CLARICE ABREU DE CASTRO NEVES.

    O agravante requer a reforma da deciso (fls. 193-229), renovando os argumentos antes apresentados para buscar demonstrar a ocorrncia de grave leso ordem, economia e sade pblicas (fls. 193-229).

    Alega que a deciso objeto do pedido de suspenso viola o princpio da separao de poderes e as normas e

    regulamentos do SUS, bem como desconsidera a funo

  • exclusiva da Administrao em definir polticas pblicas, caracterizando-se, nestes casos, indevida interferncia do

    Poder Judicirio nas diretrizes de polticas pblicas (fls. 199- 204).

    Sustenta tanto a ilegitimidade passiva da Unio e

    ofensa ao sistema de repartio de competncias (fls. 204-205), como a inexistncia de responsabilidade solidria entre os integrantes do SUS, ante a ausncia de previso

    normativa (fls. 205-218).

    Por fim, argumenta que s deve figurar no plo passivo da ao principal o ente responsvel pela dispensao do medicamento pleiteado e que causa grave

    leso s finanas e sade pblicas a determinao de desembolso de considervel quantia para a aquisio do medicamento de alto custo pela Unio, pois isto implicar: deslocamento de esforos e recursos estatais,

    descontinuidade da prestao dos servios de sade ao restante da populao e possibilidade de efeito

    multiplicador (fls. 223-229).

    o relatrio.

    V O T O

    O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (Presidente): Trata-se de agravo regimental contra deciso da Presidncia do STF (fls. 169-184) por meio da qual indeferi o pedido de Suspenso de Tutela Antecipada n. 175,

    formulado pela Unio (que contm apensa a Suspenso de Tutela Antecipada n. 178, de idntico contedo, formulada pelo Municpio de Fortaleza), contra acrdo proferido pela 1 Turma do Tribunal Regional Federal da 5 Regio, nos

    autos da Apelao Cvel no 408729/CE (2006.81.00.003148-1).

  • O presente recurso tempestivo, conforme se depreende das fls. 189-193.

    A deciso agravada indeferiu o pedido de

    suspenso de tutela antecipada, por no haver constatado

    grave leso ordem, economia e sade pblicas.

    Assim, saliento que, ao analisar o pedido de

    suspenso, entendi inexistirem os elementos fticos e normativos que comprovassem grave leso ordem, economia, sade e segurana pblicas.

    Na ocasio, destaquei que, segundo consta dos

    autos, a deciso que a Unio buscava suspender determinou-

    lhe fornecer o medicamento ZAVESCA (princpio ativo miglustate) paciente portadora da patologia denominada NIEMANN-PICK TIPO C, doena neurodegenerativa rara,

    comprovada clinicamente e por exame laboratorial, que causa

    uma srie de distrbios neuropsiquitricos, tais como: movimentos involuntrios, ataxia da marcha e dos membros, disartria e limitaes de progresso escolar e paralisias

    progressivas.

    Consignei, ainda, que havia informao da

    existncia de prova pr-constituda, consistente em: laudo mdico do Hospital Sarah certificando a essencialidade do medicamento para o aumento de sobrevida e de qualidade de

    vida da paciente, na impossibilidade de a paciente custear

    o tratamento e na existncia de registro do referido

    frmaco na ANVISA.

    Por fim, constatei que existem casos na

    jurisprudncia desta Corte que afirmam a responsabilidade solidria dos entes federados em matria de sade e de que no cabe discutir, no mbito do pedido de suspenso,

    questes relacionadas ao mrito da demanda.

  • Irresignada, a Unio agravou da referida deciso,

    reforando os argumentos antes apresentados no pedido de

    suspenso.

    Diante da relevncia da concretizao do direito

    sade e da complexidade que envolve a discusso de fornecimento de tratamentos e medicamentos por parte do

    Poder Pblico, inclusive por determinao judicial, entendo necessrio, inicialmente, retomar o tema sob uma perspectiva mais ampla, o que fao a partir de um juzo mnimo de delibao a respeito das questes jurdicas presentes na ao principal, conforme tem entendido a

    jurisprudncia desta Corte, da qual se destacam os seguintes julgados: SS-AgR no 846/DF, Rel. Seplveda Pertence, DJ 8.11.1996 e SS-AgR no 1.272/RJ, Rel. Carlos Velloso, DJ 18.5.2001.

    Passo ento a analisar as questes complexas

    relacionadas concretizao do direito fundamental sade, levando em conta, para tanto, as experincias e os dados colhidos na Audincia Pblica Sade, realizada

    neste Tribunal nos dias 27, 28 e 29 de abril e 4, 6 e 7 de

    maio de 2009.

    A doutrina constitucional brasileira h muito se dedica interpretao do artigo 196 da Constituio. Teses, muitas vezes antagnicas, proliferaram-se em todas

    as instncias do Poder Judicirio e na seara acadmica. Tais teses buscam definir se, como e em que medida o

    direito constitucional sade se traduz em um direito subjetivo pblico a prestaes positivas do Estado, passvel de garantia pela via judicial.

    As divergncias doutrinrias quanto ao efetivo mbito de proteo da norma constitucional do direito sade decorrem, especialmente, da natureza prestacional

  • desse direito e da necessidade de compatibilizao do que

    se convencionou denominar mnimo existencial e reserva

    do possvel (Vorbehalt des Mglichen).

    Como tenho analisado em estudos doutrinrios, os direitos fundamentais no contm apenas uma proibio de

    interveno (Eingriffsverbote), expressando tambm um postulado de proteo (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar uma expresso de Canaris, no apenas uma proibio

    de excesso (bermassverbot), mas tambm uma proibio de proteo insuficiente (Untermassverbot) (Claus-Wilhelm Canaris, Grundrechtswirkungen um

    Verhltnismssigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung

    und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989, p. 161.).

    Nessa dimenso objetiva, tambm assume relevo a perspectiva dos direitos organizao e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren), que so aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realizao, de

    providncias estatais com vistas criao e conformao de rgos e procedimentos indispensveis sua efetivao.

    Ressalto, nessa perspectiva, as contribuies de

    Stephen Holmes e Cass Sunstein para o reconhecimento de que

    todas as dimenses dos direitos fundamentais tm custos

    pblicos, dando significativo relevo ao tema da reserva do possvel, especialmente ao evidenciar a escassez dos

    recursos e a necessidade de se fazerem escolhas

    alocativas, concluindo, a partir da perspectiva das

    finanas pblicas, que levar a srio os direitos significa levar a srio a escassez (HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. W. W.

    Norton & Company: Nova Iorque, 1999).

    Embora os direitos sociais, assim como os

    direitos e liberdades individuais, impliquem tanto

  • direitos a prestaes em sentido estrito (positivos), quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimenses demandem o emprego de recursos pblicos para a sua garantia, a dimenso prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal argumento contrrio sua judicializao.

    A dependncia de recursos econmicos para a

    efetivao dos direitos de carter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais

    direitos assumem a feio de normas programticas, dependentes, portanto, da formulao de polticas pblicas para se tornarem exigveis. Nesse sentido, tambm se defende que a interveno do Poder Judicirio, ante a omisso estatal quanto construo satisfatria dessas polticas, violaria o princpio da separao dos Poderes e

    o princpio da reserva do financeiramente possvel.

    Em relao aos direitos sociais, preciso levar em considerao que a prestao devida pelo Estado varia de

    acordo com a necessidade especfica de cada cidado. Assim,

    enquanto o Estado tem que dispor de um determinado valor

    para arcar com o aparato capaz de garantir a liberdade dos

    cidados universalmente, no caso de um direito social como

    a sade, por outro lado, deve dispor de valores variveis em funo das necessidades individuais de cada cidado.

    Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve,

    portanto, a adoo de critrios distributivos para esses recursos.

    Dessa forma, em razo da inexistncia de suportes

    financeiros suficientes para a satisfao de todas as

    necessidades sociais, enfatiza-se que a formulao das

    polticas sociais e econmicas voltadas implementao dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas

  • alocativas. Essas escolhas seguiriam critrios de justia distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como tpicas opes polticas, as quais

    pressupem escolhas trgicas pautadas por critrios de macrojustia. dizer, a escolha da destinao de recursos para uma poltica e no para outra leva em considerao

    fatores como o nmero de cidados atingidos pela poltica eleita, a efetividade e a eficcia do servio a ser prestado, a maximizao dos resultados etc.

    Nessa linha de anlise, argumenta-se que o Poder Judicirio, o qual estaria vocacionado a concretizar a justia do caso concreto (microjustia), muitas vezes no teria condies de, ao examinar determinada pretenso prestao de um direito social, analisar as consequncias

    globais da destinao de recursos pblicos em benefcio da parte, com invarivel prejuzo para o todo (AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e Escolha. Renovar: Rio de

    Janeiro, 2001).

    Por outro lado, defensores da atuao do Poder

    Judicirio na concretizao dos direitos sociais, em especial do direito sade, argumentam que tais direitos so indispensveis para a realizao da dignidade da pessoa humana. Assim, ao menos o mnimo existencial de cada um

    dos direitos exigncia lgica do princpio da dignidade da pessoa humana no poderia deixar de ser objeto de apreciao judicial.

    O fato que o denominado problema da judicializao do direito sade ganhou tamanha importncia terica e prtica, que envolve no apenas os operadores do direito, mas tambm os gestores pblicos, os profissionais da rea de sade e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuao do Poder Judicirio

  • fundamental para o exerccio efetivo da cidadania, por

    outro, as decises judiciais tm significado um forte ponto de tenso entre os elaboradores e os executores das

    polticas pblicas, que se veem compelidos a garantir prestaes de direitos sociais das mais diversas, muitas

    vezes contrastantes com a poltica estabelecida pelos

    governos para a rea de sade e alm das possibilidades oramentrias.

    Lembro, neste ponto, a sagaz assertiva do

    professor Canotilho segundo a qual paira sobre a dogmtica e teoria jurdica dos direitos econmicos, sociais e culturais a carga metodolgica da vaguidez, indeterminao e impressionismo que a teoria da cincia vem apelidando, em

    termos caricaturais, sob a designao de fuzzismo ou

    metodologia fuzzy. Em toda a sua radicalidade

    enfatiza Canotilho a censura de fuzzysmo lanada aos

    juristas significa basicamente que eles no sabem do que esto a falar quando abordam os complexos problemas dos

    direitos econmicos, sociais e culturais (CANOTILHO, J. J. Gomes. Metodologia fuzzy e camalees normativos na

    problemtica actual dos direitos econmicos, sociais e culturais. In: Estudos sobre direitos fundamentais.

    Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 100.).

    Nesse aspecto, no surpreende o fato de que a

    problemtica dos direitos sociais tenha sido deslocada, em grande parte, para as teorias da justia, as teorias da argumentao e as teorias econmicas do direito (CANOTILHO, op. cit., p. 98).

    Enfim, como enfatiza Canotilho, havemos de

    convir que a problemtica jurdica dos direitos sociais se encontra hoje numa posio desconfortvel (CANOTILHO, op. cit., p. 99).

  • De toda forma, parece sensato concluir que, ao

    fim e ao cabo, problemas concretos devero ser resolvidos

    levando-se em considerao todas as perspectivas que a

    questo dos direitos sociais envolve. Juzos de ponderao

    so inevitveis nesse contexto prenhe de complexas relaes conflituosas entre princpios e diretrizes polticas ou, em

    outros termos, entre direitos individuais e bens coletivos.

    Alexy segue linha semelhante de concluso, ao

    constatar a necessidade de um modelo que leve em conta

    todos os argumentos favorveis e contrrios aos direitos sociais, da seguinte forma:

    Considerando os argumentos contrrios e favorveis aos direitos fundamentais sociais, fica claro que ambos os lados dispem de argumentos de peso. A soluo consiste em um modelo que leve em considerao tanto os argumentos a favor quantos os argumentos contrrios. Esse modelo a expresso da idia-guia formal apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da Constituio alem so posies que, do ponto de vista do direito constitucional, so to importantes que a deciso sobre garanti-las ou no garanti-las no pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar. (...) De acordo com essa frmula, a questo acerca de quais direitos fundamentais sociais o indivduo definitivamente tem uma questo de sopesamento entre princpios. De um lado est, sobretudo, o princpio da liberdade ftica. Do outro lado esto os princpios formais da competncia decisria do legislador democraticamente legitimado e o princpio da separao de poderes, alm de princpios materiais, que dizem respeito sobretudo liberdade jurdica de terceiros, mas tambm a outros direitos fundamentais sociais e a interesses coletivos. (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduo Virglio Afonso da Silva. So Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 511-512)

    Ressalte-se, no obstante, que a questo dos

    direitos fundamentais sociais enfrenta desafios no direito

    comparado que no se apresentam em nossa realidade. Isso

    porque a prpria existncia de direitos fundamentais sociais questionada em pases cujas Constituies no os preveem de maneira expressa ou no lhes atribuem eficcia

  • plena. o caso da Alemanha, por exemplo, cuja Constituio Federal praticamente no contm direitos fundamentais de maneira expressa (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Traduo Virglio Afonso da Silva. So Paulo:

    Malheiros Editores, 2008, p. 500), e de Portugal, que diferenciou o regime constitucional dos direitos,

    liberdades e garantias do regime constitucional dos

    direitos sociais (ANDRADE, Jos Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976.

    3 Edio. Coimbra: Almedina, 2004, p. 385).

    Ainda que essas questes tormentosas permitam

    entrever os desafios impostos ao Poder Pblico e sociedade na concretizao do direito sade, preciso destacar de que forma a nossa Constituio estabelece os

    limites e as possibilidades de implementao deste direito.

    O direito sade estabelecido pelo artigo 196 da Constituio Federal como (1) direito de todos e (2) dever do Estado, (3) garantido mediante polticas sociais e econmicas (4) que visem reduo do risco de doenas e de outros agravos, (5) regido pelo princpio do acesso universal e igualitrio (6) s aes e servios para a sua promoo, proteo e recuperao.

    Examinemos cada um desses elementos.

    (1) direito de todos:

    possvel identificar, na redao do referido artigo constitucional, tanto um direito individual quanto

    um direito coletivo sade. Dizer que a norma do artigo 196, por tratar de um direito social, consubstancia-se to

    somente em norma programtica, incapaz de produzir efeitos, apenas indicando diretrizes a serem observadas pelo poder

  • pblico, significaria negar a fora normativa da Constituio.

    A dimenso individual do direito sade foi destacada pelo Ministro Celso de Mello, relator do AgR-RE

    n. 271.286-8/RS, ao reconhecer o direito sade como um direito pblico subjetivo assegurado generalidade das pessoas, que conduz o indivduo e o Estado a uma relao

    jurdica obrigacional. Ressaltou o Ministro que a interpretao da norma programtica no pode transform-la em promessa constitucional inconseqente, impondo aos

    entes federados um dever de prestao positiva. Concluiu

    que a essencialidade do direito sade fez com que o legislador constituinte qualificasse como prestaes de

    relevncia pblica as aes e servios de sade (CF, art. 197), legitimando a atuao do Poder Judicirio nas hipteses em que a Administrao Pblica descumpra o mandamento constitucional em apreo. (AgR-RE N. 271.286-8/RS, Rel. Celso de Mello, DJ 12.09.2000).

    No obstante, esse direito subjetivo pblico assegurado mediante polticas sociais e econmicas, ou

    seja, no h um direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessrio para a proteo, promoo e recuperao da sade, independentemente da existncia de uma poltica pblica que o concretize. H um direito pblico subjetivo a polticas pblicas que promovam, protejam e recuperem a sade.

    Em deciso proferida na ADPF n. 45/DF, o Min. Celso de Mello consignou o seguinte:

    Desnecessrio acentuar-se, considerando o encargo governamental de tornar efetiva a aplicao dos direitos econmicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binmio (razoabilidade da pretenso + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situao de cumulativa ocorrncia,

  • pois, ausentes qualquer desses elementos, descaracterizar-se- a possibilidade estatal de realizao prtica de tais direitos.(ADPF-MC N. 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004).

    Assim, a garantia judicial da prestao individual de sade, prima facie, estaria condicionada ao no comprometimento do funcionamento do Sistema nico de Sade (SUS), o que, por certo, deve ser sempre demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta, caso a caso.

    (2) dever do Estado:

    O dispositivo constitucional deixa claro que,

    para alm do direito fundamental sade, h o dever fundamental de prestao de sade por parte do Estado (Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios).

    O dever de desenvolver polticas pblicas que visem reduo de doenas, promoo, proteo e recuperao da sade est expresso no artigo 196.

    A competncia comum dos entes da Federao para

    cuidar da sade consta do art. 23, II, da Constituio. Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios so

    responsveis solidrios pela sade, tanto do indivduo quanto da coletividade e, dessa forma, so legitimados

    passivos nas demandas cuja causa de pedir a negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestaes na rea de sade.

    O fato de o Sistema nico de Sade ter descentralizado os servios e conjugado os recursos financeiros dos entes da Federao, com o objetivo de aumentar a qualidade e o acesso aos servios de sade, apenas refora a obrigao solidria e subsidiria entre eles.

  • As aes e os servios de sade so de relevncia pblica, integrantes de uma rede regionalizada e hierarquizada, segundo o critrio da subsidiariedade, e constituem um sistema nico.

    Foram estabelecidas quatro diretrizes bsicas para as aes de sade: direo administrativa nica em cada nvel de governo; descentralizao poltico-

    administrativa; atendimento integral, com preferncia para

    as atividades preventivas; e participao da comunidade.

    O Sistema nico de Sade est baseado no financiamento pblico e na cobertura universal das aes de sade. Dessa forma, para que o Estado possa garantir a manuteno do sistema, necessrio que se atente para a estabilidade dos gastos com a sade e, consequentemente, para a captao de recursos.

    O financiamento do Sistema nico de Sade, nos termos do art. 195, opera-se com recursos do oramento da

    seguridade social, da Unio, dos Estados, do Distrito

    Federal e dos Municpios, alm de outras fontes. A Emenda Constitucional n. 29/2000, com vistas a dar maior estabilidade para os recursos de sade, consolidou um mecanismo de cofinanciamento das polticas de sade pelos entes da Federao.

    A Emenda acrescentou dois novos pargrafos ao artigo 198 da Constituio, assegurando percentuais mnimos

    a serem destinados pela Unio, Estados, Distrito Federal e

    Municpios para a sade, visando a um aumento e a uma maior estabilidade dos recursos. No entanto, o 3 do art. 198

    dispe que caber Lei Complementar estabelecer: os percentuais mnimos de que trata o 2 do referido artigo;

    os critrios de rateio entre os entes; as normas de fiscalizao, avaliao e controle das despesas com sade;

  • as normas de clculo do montante a ser aplicado pela Unio; alm, claro, de especificar as aes e os servios pblicos de sade.

    O art. 200 da Constituio, que estabeleceu as

    competncias do Sistema nico de Sade (SUS), regulamentado pelas Leis Federais 8.080/90 e 8.142/90.

    O SUS consiste no conjunto de aes e servios de sade, prestados por rgos e instituies pblicas federais, estaduais e municipais, da Administrao direta e

    indireta e das fundaes mantidas pelo Poder Pblico, includas as instituies pblicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produo de

    insumos e medicamentos, inclusive de sangue e

    hemoderivados, e de equipamentos para sade.

    (3) garantido mediante polticas sociais e econmicas:

    A garantia mediante polticas sociais e

    econmicas ressalva, justamente, a necessidade de formulao de polticas pblicas que concretizem o direito sade por meio de escolhas alocativas. incontestvel que, alm da necessidade de se distriburem recursos naturalmente escassos por meio de critrios distributivos, a prpria evoluo da medicina impe um vis programtico ao direito sade, pois sempre haver uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognstico ou procedimento cirrgico, uma nova doena ou a volta de uma doena supostamente erradicada.

    (4) polticas que visem reduo do risco de doena e de outros agravos:

    Tais polticas visam reduo do risco de doena e outros agravos, de forma a evidenciar sua dimenso

  • preventiva. As aes preventivas na rea da sade foram, inclusive, indicadas como prioritrias pelo artigo 198, inciso II, da Constituio.

    (5) polticas que visem ao acesso universal e igualitrio:

    O constituinte estabeleceu, ainda, um sistema

    universal de acesso aos servios pblicos de sade.

    Nesse sentido, a Ministra Ellen Gracie, na STA

    91, ressaltou que, no seu entendimento, o art. 196 da

    Constituio refere-se, em princpio, efetivao de polticas pblicas que alcancem a populao como um todo (STA 91-1/AL, Ministra Ellen Gracie, DJ 26.02.2007).

    O princpio do acesso igualitrio e universal refora a responsabilidade solidria dos entes da Federao, garantindo, inclusive, a igualdade da

    assistncia sade, sem preconceitos ou privilgios de qualquer espcie (art. 7, IV, da Lei 8.080/90).

    (6) aes e servios para promoo, proteo e recuperao da sade:

    O estudo do direito sade no Brasil leva a concluir que os problemas de eficcia social desse direito fundamental devem-se muito mais a questes ligadas implementao e manuteno das polticas pblicas de sade j existentes - o que implica tambm a composio dos oramentos dos entes da Federao - do que falta de legislao especfica. Em outros termos, o problema no de inexistncia, mas de execuo (administrativa) das polticas pblicas pelos entes federados.

    A Constituio brasileira no s prev expressamente a existncia de direitos fundamentais sociais

  • (artigo 6), especificando seu contedo e forma de prestao (artigos 196, 201, 203, 205, 215, 217, entre outros), como no faz distino entre os direitos e deveres individuais e coletivos (captulo I do Ttulo II) e os direitos sociais (captulo II do Ttulo II), ao estabelecer que os direitos e garantias fundamentais tm aplicao

    imediata (artigo 5, 1, CF/88). V-se, pois, que os direitos fundamentais sociais foram acolhidos pela

    Constituio Federal de 1988 como autnticos direitos

    fundamentais. No h dvida deixe-se claro de que as demandas que buscam a efetivao de prestaes de sade devem ser resolvidas a partir da anlise de nosso contexto constitucional e de suas peculiaridades.

    Mesmo diante do que dispem a Constituio e as

    leis relacionadas questo, o que se tem constatado, de fato, a crescente controvrsia jurdica sobre a possibilidade de decises judiciais determinarem ao Poder Pblico o fornecimento de medicamentos e tratamentos, decises estas nas quais se discute, inclusive, os

    critrios considerados para tanto.

    No mbito do Supremo Tribunal Federal, recorrente a tentativa do Poder Pblico de suspender decises judiciais nesse sentido. Na Presidncia do Tribunal existem diversos pedidos de suspenso de

    segurana, de suspenso de tutela antecipada e de suspenso

    de liminar, com vistas a suspender a execuo de medidas

    cautelares que condenam a Fazenda Pblica ao fornecimento das mais variadas prestaes de sade (fornecimento de medicamentos, suplementos alimentares, rteses e prteses; criao de vagas de UTIs e leitos hospitalares; contratao

    de servidores de sade; realizao de cirurgias e exames; custeio de tratamento fora do domiclio, inclusive no

    exterior, entre outros).

  • Assim, levando em conta a grande quantidade de

    processos e a complexidade das questes neles envolvidas,

    convoquei Audincia Pblica para ouvir os especialistas em

    matria de Sade Pblica, especialmente os gestores

    pblicos, os membros da magistratura, do Ministrio Pblico, da Defensoria Pblica, da Advocacia da Unio, Estados e Municpios, alm de acadmicos e de entidades e organismos da sociedade civil.

    Aps ouvir os depoimentos prestados pelos representantes dos diversos setores envolvidos, ficou

    constatada a necessidade de se redimensionar a questo da

    judicializao do direito sade no Brasil. Isso porque, na maioria dos casos, a interveno judicial no ocorre em razo de uma omisso absoluta em matria de polticas pblicas voltadas proteo do direito sade, mas tendo em vista uma necessria determinao judicial para o cumprimento de polticas j estabelecidas. Portanto, no se cogita do problema da interferncia judicial em mbitos de livre apreciao ou de ampla discricionariedade de outros

    Poderes quanto formulao de polticas pblicas.

    Esse foi um dos primeiros entendimentos que

    sobressaiu nos debates ocorridos na Audincia Pblica-

    Sade: no Brasil, o problema talvez no seja de judicializao ou, em termos mais simples, de interferncia do Poder Judicirio na criao e implementao de polticas

    pblicas em matria de sade, pois o que ocorre, na quase

    totalidade dos casos, apenas a determinao judicial do efetivo cumprimento de polticas pblicas j existentes.

    Esse dado pode ser importante para a construo

    de um critrio ou parmetro para a deciso em casos como

    este, no qual se discute, primordialmente, o problema da

  • interferncia do Poder Judicirio na esfera dos outros Poderes.

    Assim, tambm com base no que ficou esclarecido

    na Audincia Pblica, o primeiro dado a ser considerado a

    existncia, ou no, de poltica estatal que abranja a prestao de sade pleiteada pela parte. Ao deferir uma

    prestao de sade includa entre as polticas sociais e econmicas formuladas pelo Sistema nico de Sade (SUS), o Judicirio no est criando poltica pblica, mas apenas determinando o seu cumprimento. Nesses casos, a existncia

    de um direito subjetivo pblico a determinada poltica pblica de sade parece ser evidente.

    Se a prestao de sade pleiteada no estiver

    entre as polticas do SUS, imprescindvel distinguir se a

    no prestao decorre de (1) uma omisso legislativa ou administrativa, (2) de uma deciso administrativa de no fornec-la ou (3) de uma vedao legal a sua dispensao.

    No raro, busca-se, no Poder Judicirio, a condenao do Estado ao fornecimento de prestao de sade no registrada na Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA).

    Como ficou claro nos depoimentos prestados na

    Audincia Pblica, vedado Administrao Pblica

    fornecer frmaco que no possua registro na ANVISA.

    A Lei Federal n. 6.360/76, ao dispor sobre a vigilncia sanitria a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacuticos e correlatos,

    determina, em seu artigo 12, que nenhum dos produtos de

    que trata esta Lei, inclusive os importados, poder ser

    industrializado, exposto venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministrio da Sade. O artigo 16 da

  • referida Lei estabelece os requisitos para a obteno do

    registro, entre eles o de que o produto seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se prope. O Art. 18

    ainda determina que, em se tratando de medicamento de

    procedncia estrangeira, dever ser comprovada a existncia de registro vlido no pas de origem.

    O registro de medicamento, como ressaltado pelo

    Procurador-Geral da Repblica na Audincia Pblica, uma garantia sade pblica. E, como ressaltou o Diretor-Presidente da ANVISA na mesma ocasio, a Agncia, por fora

    da lei de sua criao, tambm realiza a regulao econmica dos frmacos. Aps verificar a eficcia, a segurana e a qualidade do produto e conceder-lhe o registro, a ANVISA

    passa a analisar a fixao do preo definido, levando em

    considerao o benefcio clnico e o custo do tratamento.

    Havendo produto assemelhado, se o novo medicamento no

    trouxer benefcio adicional, no poder custar mais caro do que o medicamento j existente com a mesma indicao.

    Por tudo isso, o registro na ANVISA configura-se

    como condio necessria para atestar a segurana e o benefcio do produto, sendo o primeiro requisito para que o

    Sistema nico de Sade possa considerar sua incorporao.

    Claro que essa no uma regra absoluta. Em casos excepcionais, a importao de medicamento no registrado

    poder ser autorizada pela ANVISA. A Lei n. 9.782/99, que criou a Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria (ANVISA), permite que ela dispense de registro medicamentos

    adquiridos por intermdio de organismos multilaterais internacionais, para uso de programas em sade pblica pelo Ministrio da Sade.

    O segundo dado a ser considerado a existncia

    de motivao para o no fornecimento de determinada ao de

  • sade pelo SUS. H casos em que se ajuza ao com o objetivo de garantir prestao de sade que o SUS decidiu no custear por entender que inexistem evidncias

    cientficas suficientes para autorizar sua incluso.

    Nessa hiptese, podem ocorrer, ainda, duas

    situaes: 1) o SUS fornece tratamento alternativo, mas no adequado a determinado paciente; 2) o SUS no tem nenhum tratamento especfico para determinada patologia.

    A princpio, pode-se inferir que a obrigao do Estado, luz do disposto no artigo 196 da Constituio, restringe-se ao fornecimento das polticas sociais e econmicas por ele formuladas para a promoo, proteo e recuperao da sade.

    Isso porque o Sistema nico de Sade filiou-se corrente da Medicina com base em evidncias. Com isso, adotaram-se os Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas, que consistem num conjunto de critrios que permitem determinar o diagnstico de doenas e o tratamento correspondente com os medicamentos disponveis e as respectivas doses. Assim, um medicamento ou tratamento em desconformidade com o Protocolo deve ser visto com cautela, pois tende a contrariar um consenso cientfico vigente.

    Ademais, no se pode esquecer de que a gesto do Sistema nico de Sade, obrigado a observar o princpio constitucional do acesso universal e igualitrio s aes e prestaes de sade, s torna-se vivel mediante a elaborao de polticas pblicas que repartam os recursos (naturalmente escassos) da forma mais eficiente possvel. Obrigar a rede pblica a financiar toda e qualquer ao e prestao de sade existente geraria grave leso ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento mdico da parcela da populao mais necessitada. Dessa forma, podemos concluir que, em geral, dever ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opo diversa escolhida

  • pelo paciente, sempre que no for comprovada a ineficcia ou a impropriedade da poltica de sade existente.

    Essa concluso no afasta, contudo, a possibilidade de o Poder Judicirio, ou de a prpria Administrao, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que, por razes especficas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido no eficaz no seu caso. Inclusive, como ressaltado pelo prprio Ministro da Sade na Audincia Pblica, h necessidade de reviso peridica dos protocolos existentes e de elaborao de novos protocolos. Assim, no se pode afirmar que os Protocolos Clnicos e Diretrizes Teraputicas do SUS so inquestionveis, o que permite sua contestao judicial.

    Situao diferente a que envolve a inexistncia de tratamento na rede pblica. Nesses casos, preciso diferenciar os tratamentos puramente experimentais dos novos tratamentos ainda no testados pelo Sistema de Sade brasileiro.

    Os tratamentos experimentais (sem comprovao cientfica de sua eficcia) so realizados por laboratrios ou centros mdicos de ponta, consubstanciando-se em pesquisas clnicas. A participao nesses tratamentos rege-se pelas normas que regulam a pesquisa mdica e, portanto, o Estado no pode ser condenado a fornec-los.

    Como esclarecido, na Audincia Pblica da Sade, pelo Mdico Paulo Hoff, Diretor Clnico do Instituto do Cncer do Estado de So Paulo, essas drogas no podem ser compradas em nenhum pas, porque nunca foram aprovadas ou avaliadas, e o acesso a elas deve ser disponibilizado apenas no mbito de estudos clnicos ou programas de acesso expandido, no sendo possvel obrigar o SUS a custe-las. No entanto, preciso que o laboratrio que realiza a pesquisa continue a fornecer o tratamento aos pacientes que participaram do estudo clnico, mesmo aps seu trmino.

  • Quanto aos novos tratamentos (ainda no incorporados pelo SUS), preciso que se tenha cuidado redobrado na apreciao da matria. Como frisado pelos especialistas ouvidos na Audincia Pblica, o conhecimento mdico no estanque, sua evoluo muito rpida e dificilmente suscetvel de acompanhamento pela burocracia administrativa.

    Se, por um lado, a elaborao dos Protocolos Clnicos e das Diretrizes Teraputicas privilegia a melhor distribuio de recursos pblicos e a segurana dos pacientes, por outro a aprovao de novas indicaes teraputicas pode ser muito lenta e, assim, acabar por excluir o acesso de pacientes do SUS a tratamento h muito prestado pela iniciativa privada.

    Parece certo que a inexistncia de Protocolo Clnico no SUS no pode significar violao ao princpio da integralidade do sistema, nem justificar a diferena entre as opes acessveis aos usurios da rede pblica e as disponveis aos usurios da rede privada. Nesses casos, a omisso administrativa no tratamento de determinada patologia poder ser objeto de impugnao judicial, tanto por aes individuais como coletivas. No entanto, imprescindvel que haja instruo processual, com ampla produo de provas, o que poder configurar-se um obstculo concesso de medida cautelar.

    Portanto, independentemente da hiptese levada considerao do Poder Judicirio, as premissas analisadas deixam clara a necessidade de instruo das demandas de sade para que no ocorra a produo padronizada de iniciais, contestaes e sentenas, peas processuais que, muitas vezes, no contemplam as especificidades do caso concreto examinado, impedindo que o julgador concilie a dimenso subjetiva (individual e coletiva) com a dimenso objetiva do direito sade. Esse mais um dado incontestvel, colhido na Audincia Pblica Sade.

  • Com fundamento nessas consideraes, que entendo essenciais para a reflexo e a discusso do presente caso pelo Plenrio desta Corte, retomo, de forma especfica, as razes apresentadas pela Unio em seu agravo regimental.

    Da anlise do presente recurso, concluo que a agravante no traz novos elementos aptos a determinar a reforma da deciso agravada.

    Em primeiro lugar, a agravante repisa a alegao genrica de violao ao princpio da separao dos Poderes, o que j havia sido afastado pela deciso impugnada, a qual assentou a possibilidade, em casos como o presente, de o Poder Judicirio vir a garantir o direito sade, por meio do fornecimento de medicamento ou de tratamento imprescindvel para o aumento de sobrevida e a melhoria da qualidade de vida da paciente. Colhe-se dos autos que a deciso impugnada informa a existncia de provas

    suficientes quanto ao estado de sade da paciente e a necessidade do medicamento indicado.

    Quanto possibilidade de interveno do Poder Judicirio, destaco a ementa da deciso proferida na ADPF-MC 45/DF, relator Celso de Mello, DJ 29.4.2004:

    EMENTA: ARGUIO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENO DO PODER JUDICIRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAO DE POLTICAS PBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSO POLTICA DA JURISDIO CONSTITUCIONAL ATRIBUDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBTRIO ESTATAL EFETIVAO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONMICOS E CULTURAIS. CARCTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAO DO LEGISLADOR. CONSIDERAES EM TORNO DA CLUSULA DA RESERVA DO POSSVEL. NECESSIDADE DE PRESERVAO, EM FAVOR DOS INDIVDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NCLEO CONSUBSTANCIADOR DO MNIMO EXISTENCIAL. VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGIO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAO).

    Nesse sentido a lio de Christian Courtis e Victor Abramovich (ABRAMOVICH, Victor; COURTS, Christian,

  • Los derechos sociales como derechos exigibles, Trotta,

    2004, p. 251): Por ello, el Poder Judicial no tiene la tarea de disear polticas pblicas, sino la de confrontar el diseo de polticas asumidas con los estndares jurdicos aplicables y en caso de hallar divergencias reenviar la cuestin a los poderes pertinentes para que ellos reaccionen ajustando su actividad en consecuencia. Cuando las normas constitucionales o legales fijen pautas para el diseo de polticas pblicas y los poderes respectivos no hayan adoptado ninguna medida, corresponder al Poder Judicial reprochar esa omisin y reenviarles la cuestin para que elaboren alguna medida. Esta dimensin de la actuacin judicial puede ser conceptualizada como la participacin en un entre los distintos poderes del Estado para la concrecin del programa jurdico-poltico establecido por la constitucin o por los pactos de derechos humanos. (sem grifo no original)

    Alm disso, a agravante, reiterando os fundamentos da inicial, aponta, de forma genrica, que a deciso objeto desta suspenso invade competncia administrativa da Unio e provoca desordem em sua esfera, ao impor-lhe deveres que so do Estado e do Municpio. Contudo, a deciso agravada deixou claro que existem casos

    na jurisprudncia desta Corte que afirmam a responsabilidade solidria dos entes federados em matria de sade.

    Aps refletir sobre as informaes colhidas na

    Audincia Pblica - Sade e sobre a jurisprudncia recente deste Tribunal, possvel afirmar que, em matria de sade

    pblica, a responsabilidade dos entes da Federao deve ser

    efetivamente solidria.

    No RE 195.192-3/RS, a 2 Turma deste Supremo Tribunal consignou o entendimento segundo o qual a

    responsabilidade pelas aes e servios de sade da Unio, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municpios.

    Nesse sentido, o acrdo restou assim ementado:

  • SADE AQUISIO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DOENA RARA. Incumbe ao Estado (gnero) proporcionar meios visando a alcanar a sade, especialmente quando envolvida criana e adolescente. O Sistema nico de Sade torna a responsabilidade linear alcanando a Unio, os Estados, o Distrito Federal e os Municpios. (RE 195.192-3/RS, 2 Turma, Ministro Marco Aurlio, DJ 22.02.2000).

    Em sentido idntico, no RE-AgR 255.627-1, o

    Ministro Nelson Jobim afastou a alegao do Municpio de

    Porto Alegre de que no seria responsvel pelos servios de sade de alto custo. O Ministro Nelson Jobim, amparado no precedente do RE 280.642, no qual a 2 Turma havia decidido

    questo idntica, negou provimento ao Agravo Regimental do

    Municpio: (...) A referncia, contida no preceito, a Estado mostra-se abrangente, a alcanar a Unio Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municpios. Tanto assim que, relativamente ao Sistema nico de Sade, diz-se do financiamento, nos termos do artigo n. 195, com recursos do oramento, da seguridade social, da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, alm de outras fontes. J o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralizao das aes e servios pblicos de sade que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direo nica em cada esfera de governo. No bastasse o parmetro constitucional de eficcia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se como fato incontroverso, porquanto registrada, no acrdo recorrido, a existncia de lei no sentido da obrigatoriedade de fornecer-se os medicamentos excepcionais, como so os concernentes Sndrome da Imunodeficincia Adquirida (SIDA/AIDS), s pessoas carentes. O municpio de Porto Alegre surge com responsabilidade prevista em diplomas especficos, ou seja, os convnios celebrados no sentido da implantao do Sistema nico de Sade, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acrdo, a falta de regulamentao municipal para o custeio da distribuio no impede fique assentada a responsabilidade do Municpio. (...) (RE-AgR 255.627-1/RS, 2 Turma, Ministro Nelson Jobim, DJ 21.11.2000)

    A responsabilidade dos entes da Federao foi

    muito enfatizada durante os debates na Audincia Pblica -

  • Sade, oportunidade em que externei os seguintes entendimentos sobre o tema:

    O Poder Judicirio, acompanhado pela doutrina majoritria, tem entendido que a competncia comum dos entes resulta na sua responsabilidade solidria para responder pelas demandas de sade.

    Muitos dos pedidos de suspenso de tutela antecipada, suspenso de segurana e suspenso de liminar fundamentam a ocorrncia de leso ordem pblica na desconsiderao, pela deciso judicial, dessa diviso de responsabilidades estabelecidas pela legislao do SUS, alegando que a ao deveria ter sido proposta contra outro ente da Federao.

    No temos dvida de que o Estado brasileiro responsvel pela prestao dos servios de sade. Importa aqui reforar o entendimento de que cabe Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios agirem em conjunto no cumprimento do mandamento constitucional.

    A Constituio incorpora o princpio da lealdade Federao por parte da Unio, dos Estados e Municpios no cumprimento de suas tarefas comuns.

    De toda forma, parece certo que, quanto ao

    desenvolvimento prtico desse tipo de responsabilidade solidria, deve ser construdo um modelo de cooperao e de coordenao de aes conjuntas por parte dos entes federativos.

    Ressalto que o tema da responsabilidade solidria dos entes federativos em matria de sade tambm poder ser apreciado pelo Tribunal no RE 566.471, Rel. Min. Marco

    Aurlio, o qual tem repercusso geral reconhecida, nos termos da seguinte ementa:

    SADE ASSISTNCIA MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO FORNECIMENTO. Possui repercusso geral controvrsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Pblico fornecer medicamento de alto custo.

    Tambm tramita nesta corte a Proposta de Smula Vinculante n. 4, que prope tornar vinculante o

    entendimento jurisprudencial a respeito da responsabilidade

  • solidria dos entes da Federao no atendimento das aes de sade. Referida PSV teve a tramitao sobrestada por deciso da Ministra Ellen Gracie, Presidente da Comisso de

    Jurisprudncia, e est no aguardo da apreciao do mrito do referido RE 566.471 (DJe 26.8.09).

    Assim, apesar da responsabilidade dos entes da

    Federao em matria de direito sade suscitar questes delicadas, a deciso impugnada pelo pedido de suspenso, ao

    determinar a responsabilidade da Unio no fornecimento do

    tratamento pretendido, segue as normas constitucionais que

    fixaram a competncia comum (art. 23, II, da CF), a Lei Federal n. 8.080/90 (art. 7, XI) e a jurisprudncia desta Corte. Entendo, pois, que a determinao para que a Unio

    arque com as despesas do tratamento no configura grave

    leso ordem pblica.

    A correo ou no deste posicionamento,

    entretanto, no passvel de ampla cognio nos estritos limites deste juzo de contracautela, como quer fazer valer a agravante.

    Da mesma forma, as alegaes referentes ilegitimidade passiva da Unio, violao do sistema de repartio de competncias, necessidade de figurar como ru na ao principal somente o ente responsvel pela dispensao do medicamento pleiteado e desconsiderao da lei do SUS, no so passveis de ampla delibao no juzo do pedido de suspenso de segurana, pois constituem o

    mrito da ao, a ser debatido de forma exaustiva no exame do recurso cabvel contra o provimento jurisdicional que ensejou a tutela antecipada. Nesse sentido: SS-AgR n. 2.932/SP, Ellen Gracie, DJ 25.4.2008 e SS-AgR n. 2.964/SP, Ellen Gracie, DJ 9.11.2007, entre outros.

  • Ademais, diante da natureza excepcional do

    pedido de contracautela, evidencia-se que a sua

    eventual concesso no presente momento teria carter nitidamente satisfativo, com efeitos deletrios subsistncia e ao regular desenvolvimento da sade da paciente, a ensejar a ocorrncia de possvel dano inverso.

    Neste ponto, o pedido formulado tem ntida

    natureza de recurso, o que contraria o entendimento

    assente desta Corte acerca da impossibilidade do pedido

    de suspenso como sucedneo recursal, do qual se

    destacam os seguintes julgados: SL 14/MG, rel. Maurcio Corra, DJ 03.10.2003; SL 80/SP, rel. Nelson Jobim, DJ 19.10.2005; 56-AgR/DF, rel. Ellen Gracie, DJ 23.6.2006.

    Melhor sorte no socorre agravante quanto aos argumentos de grave leso economia e sade pblicas, visto que a deciso agravada consignou, de forma expressa,

    que o alto custo de um tratamento ou de um medicamento que

    tem registro na ANVISA no suficiente para impedir o seu fornecimento pelo Poder Pblico.

    Alm disso, no procede a alegao de temor de que esta deciso sirva de precedente negativo ao Poder

    Pblico, com possibilidade de ensejar o denominado efeito multiplicador, pois a anlise de decises dessa natureza deve ser feita caso a caso, considerando-se todos os

    elementos normativos e fticos da questo jurdica debatida.

    Por fim, destaco que a agravante no infirma o fundamento da deciso agravada de que, em verdade, o que se constata a ocorrncia de grave leso em sentido inverso (dano inverso), caso a deciso venha a ser suspensa (fl. 183).

  • Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.

    como voto.