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DECIFRANDO AS MEDIDAS DE ESTÍMULO AO AGRONEGÓCIO, A PARTIR DO
GOLPE DE 2016: BREVE ANÁLISE DE SEUS IMPACTOS NO ESPAÇO AGRÁRIO
DE ALAGOAS
Lucas Gama Lima1 – UFAL
Flávio dos Santos2 – UFAL
GT 4 - Campesinato e Agronegócio
RESUMO A recomposição das frações da classe dominante brasileira, consignada no golpe de 2016, aprofundou
a ofensiva do capital sobre o espaço agrário. Trata-se de um movimento dialético assinalado por
continuidades e rupturas que impulsiona o agronegócio e potencializa os conflitos no campo brasileiro.
Os preliminares desdobramentos desse movimento começam a se delinear e tendem a recrudescer o
espaço de riqueza e miséria e amplificar os conflitos por terra/território e água no quadro agrário do
país e, destacadamente, em Alagoas.
PALAVRAS-CHAVE: Capital, Agronegócio, Reforma Agrária, Golpe.
1. Introdução
O artigo tem como propósito analisar a ofensiva inicial do capital no espaço agrário
brasileiro como desdobramento do golpe de 2016. Compreende-se que não obstante as
políticas macroeconômicas conservadoras vigentes no país, há mais de duas décadas, o
impedimento institucional da presidente Dilma decorreu uma recomposição das frações da
classe dominante brasileira como tentativa de resposta autocrática à crise do capital.
Desse modo, a recomposição das frações da classe dominante brasileira legitima a
ofensiva do capital, que tende a recrudescer e lançar toda sorte de expedientes em favor do
agronegócio, galvanizando um espaço de riqueza e miséria num patamar sem precedentes. Por
meio de uma análise dialética se buscará nesse pequeno ensaio analisar brevemente a
1 Professor Adjunto do Campus do Sertão/UFAL. Membro do GPECT. Coordena o Grupo de Estudos em
Geografia do Trabalho, vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Análise Regional (GEPAR/UFAL). 2 Estudante do Curso de Geografia do Campus do Sertão/UFAL. Integra o Grupo de Estudos de Geografia do
Trabalho, vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Análise Regional (GEPAR/UFAL).
formação socioespacial brasileira e seu desapreço à reforma agrária, bem como, identificar as
contradições subjacentes à ofensiva do capital no campo brasileiro – cristalizadas nas
primeiras medidas institucionais tomadas – com o golpe de 2016. Será feito igualmente um
esforço em identificar os primeiros desdobramentos sobre a estrutura agrária de Alagoas,
indicando dados e informações que apontam para um aumento das desigualdades e conflitos
no quadro agrário da segunda menor unidade da federação.
2. Breves linhas sobre (in)concretude da reforma agrária no Brasil
A estrutura agrária brasileira, alicerçada na ignominiosa concentração fundiária,
derivou das relações sociais construídas ainda no período pré-republicano. Em 1850, a
famigerada Lei de Terras, oficializou a privação do acesso às terras devolutas àqueles que não
pudessem comprar. Assim, a maior parte da população brasileira da época, formada por
negros recém-libertos e/ou na iminência da libertação e colonos empobrecidos se viram
alijados do direito à reprodução individual e familiar através da posse de uma propriedade no
campo.
O advento da república catapultou as tradicionais oligarquias do multissecular
empreendimento monocultor escravocrata à condição de classe dirigente da sociedade pós-
escravidão. Em outras palavras, não se verificou em nossa formação social, uma disputa de
grande envergadura que confrontasse projetos hegemônicos distintos no seio da classe
dominante brasileira. Como explicou, Martins (2010), a terra no Brasil substituiu a catividade
dos negros, tornando-se objeto de apropriação privada e sinônimo de riqueza e de poder
político.
A captura da maior parte da terra agrícola no país por meio de uma fração da classe
dominante, historicamente imbricada com o latifúndio e com o trabalho escravo colonial,
ensejou o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas na formação social brasileira de
modo sui generis. Não houve reforma agrária, pois a burguesia brasileira se valeu
deliberadamente da terra concentrada e do expressivo contingente de trabalhadores
disponíveis para a superexploração da força-de-trabalho assalariada. Nesse sentido, diferente
do que preconizou algumas organizações de esquerda, em meados das décadas de 1950 e
1960, a não realização da reforma agrária em nossa formação social não correspondia a uma
tarefa em atraso e/ou inconclusa, senão à própria condição particular do desenvolvimento do
capitalismo no Brasil.
[...] a Revolução Burguesa na periferia é, por excelência, um fenômeno
essencialmente político, de criação, consolidação e preservação de estruturas
de poder predominantemente políticas, submetidas ao controle da burguesia
ou por ela controláveis em quaisquer circunstâncias (FERNANDES, 2005, p.
343).
O momento mais próximo para a consecução de uma radical reforma agrária no país
ocorreu em meio às mobilizações pré-1964, quando as Ligas Camponesas e outras
organizações sociais de massa apontavam para a imprescindibilidade de transformação da
estrutura agrária no Brasil. A resposta à radicalização da luta popular desfechou-se no golpe
burgo-militar, de abril de 1964, que durou 21 anos e suplantou abruptamente qualquer
tentativa de alteração profunda na estrutura fundiária brasileira.
[...] o golpe não consistiu numa reação exclusiva aos projetos de reforma
agrária existentes no papel e nos pronunciamentos oficiais – ou oficiosos –
do governo, uma vez que, a despeito de seu radicalismo verbal, esses eram
tímidos e moderados em suas propostas de encaminhamento. [...]. De fato, a
reação foi, sobretudo, às alternativas contidas no movimento dos
trabalhadores rurais e no movimento social pelas reformas em geral, que
poderiam, eventualmente, sinalizar para uma reforma agrária “na marra”, já
que tais mobilizações sinalizavam para a possível ruptura de alianças
tradicionais que davam sustentação às formas de dominação prevalecentes
no campo, desde há muito (MENDONÇA; STEDILE, 2010, p. 36).
Nem mesmo a redemocratização do país, a partir de 1985, e o novo ordenamento
constitucional de 1988, produziram um cenário diferente no campo, haja vista que não
obstante a permanência da ignominiosa concentração de terra, a criminalização dos
movimentos sociais e dos povos tradicionais seguiu sua tônica fastidiosa.
A esperança de uma guinada à esquerda nos rumos do país, com a eleição do Partido
dos Trabalhadores (PT) à Presidência da República, em 2002, não se confirmou. O PT
manteve uma coalização que combinava uma dupla e estranha aliança com setores
reacionários do campo brasileiro, a exemplo do Partido Progressista (PP) e da União
Democrática Ruralista (UDR) e com parte dos movimentos populares de luta pela terra. Em
resumo: uma vã tentativa de firmar um pacto classista entre dois blocos antagônicos. O
resultado foi um desempenho pífio no número de desapropriações de latifúndios e novos
assentamentos. O gráfico 1 revela que, contrariando a expectativa popular, o número de
desapropriações por meio de decreto, durante os 13 anos de experiência administrativa do PT
foram, em vários momentos, inferiores aos oito anos de consistente neoliberalismo de
Fernando Henrique Cardoso (FHC). Nos últimos anos do mandato da presidente Dilma, a
desapropriação de imóveis improdutivos atingiu a infame marca de 0 (zero), alcançando um
dos piores resultados desde a Ditadura Militar. No gráfico 2 é possível observar que o número
de assentamentos criados, durante os oito anos de governo FHC, 4.308 ao total, superou em
números absolutos os assentamentos criados durante os 13 anos dos governos do PT, 4.201 ao
total.
Gráfico 1
Fonte: (INCRA, 2016) apud (OLIVEIRA; FEITOSA; BORBA, 2016)
Gráfico 2
Fonte: (INCRA, 2016) apud (OLIVEIRA; FEITOSA; BORBA, 2016)
Obviamente, os dados frios não traduzem o contexto contraditório dos períodos
analisados. Durante o governo FHC houve uma grande mobilização de massa dos
movimentos socioterritoriais, a exemplo do MST, que enfrentou com bastante altivez o
latifúndio e seu grupo paramilitar no campo. Foi essa valentia e protagonismo dos
movimentos socioterritoriais que impulsionaram a desapropriação de imóveis improdutivos e,
consequentemente, a criação de assentamentos. A frieza dos dados também não revela que
não obstante a superioridade numérica de FHC no tocante ao número de desapropriações e
novos assentamentos, não emanou de seu governo uma política de incentivo à agricultura
camponesa, que efetivamente ajudasse a afixar a família à propriedade da terra, colaborando
para a sua reprodução. Em que pese as limitações das políticas implementadas, os governos
do PT, por meio de programas como Luz Para Todos, PNAE e PAA contribuíram para
destinar uma pequena fatia do orçamento público às famílias camponesas.
Ainda que esse contexto deva ser apresentado, é cristalina a conclusão de que jamais
esteve na estratégia do PT ou de qualquer coalização partidária que experimentou a
Presidência da República no país desde a redemocratização uma incursão no campo brasileiro
distinta do script convencional. A questão agrária brasileira seguiu seu compasso quase que
absolutamente incólume. Segundo dados do Relatório DataLuta Brasil, criado pelo Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Reforma Agrária (NERA), e do Caderno Anual de Conflitos da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), ambos publicados em 2017, o quadro agrário atual revela
que: a) houve um aumento das propriedades com mais de 100 mil ha, que cresceram 372%,
entre 1988 e 2014; b) o crescimento de propriedades de até 100 ha, ou seja, propriedades
camponesas, apresentou, no mesmo período, um percentual positivo, 65%, entretanto, bem
inferior ao latifúndio e; c) o número de assassinatos de camponeses e lideranças da luta pela
reforma agrária, entre 1964 e 2016, alcançou a marca de 2.507 vítimas, sendo que desse valor
absoluto, 1.833 vítimas tombaram no período pós-ditadura (1985-2016). Em suma, na
formação social brasileira, no período que sucede a ditadura burgo-militar e nem mesmo
durante os 13 anos consecutivos de gestão do PT, não se materializou uma reforma agrária
que desmantelasse a concentração fundiária e, consequentemente, transitasse rumo à
substituição do modelo anticivilizatório do agronegócio para agricultura familiar de base
camponesa.
3. Golpe de 2016: reforço ao agronegócio e escalada da violência no campo
A assunção de Michel Temer e de seus asseclas ao executivo federal, em maio de
2016, consolidou a deliberada movimentação de frações da burguesia brasileira para a
condução direta e de maior alcance de um conjunto de contrarreformas sociais, que atacam
frontalmente os trabalhadores e camponeses. Apesar do governo da presidente Dilma Roussef
ter sustentado durante seguidos anos uma política macroeconômica de base conservadora e
uma política agrária que tornou o latifúndio incólume a possíveis mudanças, sua antiga base
aliada seguiu inconformada e avidou por um pacote de medidas regressivas sem precedentes
recentes.
Esse conjunto de contrarreformas, obstinadamente apresentado e defendido por
Temer, enquanto personificação temporária dos interesses das frações da classe dominante,
visa reduzir os preceitos presentes no ordenamento jurídico erigido no século XX, de modo a
restringir os direitos de cunho social. Entre as contrarreformas estão: a PEC 55, também
conhecida como a PEC da Morte (já aprovada em dezembro de 2016), a Reforma Trabalhista,
a Reforma da Previdência e, notadamente, as continuadas medidas de apoio e fortalecimento
do agronegócio.
Assim que o impedimento institucional contou com o beneplácito do Judiciário e dos
Militares, a burguesia lançou-se a desmontar a máquina pública e os dispositivos legais
diretamente relacionados à democratização da terra no Brasil. Sua primeira medida de cunho
material, mas, também, simbólico, foi a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA), que perdeu o status de Ministério e se transformou numa mera autarquia vinculada à
Casa Civil, ou seja, sob os olhares e ditames da Presidência da República.
Entre as medidas tomadas pós-golpe de 2016 estão: a) a Medida Provisória 759; b)
aceleração da tramitação do PL 4059/12; c) a Portaria Ministerial nº 80 e; d) a aceleração da
tramitação do PL 6299/02. Analisemos brevemente os propósitos e as possíveis
consequências de cada uma dessas medidas.
A Medida Provisória 759 aduz dois grandes golpes na luta pela terra. Em primeiro
lugar, ela prevê o pagamento em dinheiro a latifundiários pela desapropriação (uma vez que a
reforma agrária no país não tem caráter expropriador) de seus imóveis. Trata-se de um notável
estímulo à retenção especulativa da terra, haja vista que seus latifundiários não mais receberão
em títulos da dívida pública (com resgate de 2 a 20 anos), mas, em espécie. Em segundo
lugar, a medida preconiza transferir para os municípios a responsabilidade pela indicação das
famílias a serem assentadas, através de edital público. Uma clara tentativa de deslegitimar os
movimentos socioterritoriais e diminuir as ocupações de terra. Na década de 1990, FHC
tentou algo similar com a reforma agrária de mercado, recomendada pelo Banco Mundial. Em
ambos os casos, o objetivo é o mesmo: dissolver a luta pela terra em nome da barganha
política junto à escala local de representação estatal, os municípios.
O PL 4059/12 visa (des)regulamentar o controle de venda de terras a estrangeiros
(pessoas físicas e/ou jurídicas). Desde 1971, vigora a Lei 5.709 que impõe limites formais à
aquisição de terras por estrangeiros, embora a mesma jamais tenha servido como um grande
óbice para tal prática (OLIVEIRA, 2010). A Advocacia Geral da União (AGU), um ano após
a promulgação da Constituição Federal de 1988, flexibilizou o tamanho das propriedades
passíveis de serem adquiridas por investimentos estrangeiros. Recentemente, a crescente
aquisição de terras e a incapacidade estatal de controlar esse processo levaram a AGU a
declinar de sua posição da década de 1980 e a emitir novo parecer, de caráter mais restritivo3.
Nesse momento, os ruralistas querem definitivamente alterar o ordenamento jurídico,
promovendo uma liberação sem precedentes na história brasileira. Em razão da gravidade do
Projeto de Lei, que permite, inclusive, a compra de terras em região de fronteira, alguns
setores pró-mercado e ideologicamente conservadores, a exemplo de altas patentes das Forças
Armadas Brasileiras, tem se posicionado obstinadamente contrários.
O PL também representa uma ameaça aos camponeses, aos povos tradicionais das
regiões de fronteira agrícola – haja vista que serão essas as regiões que se tornarão alvos
prioritários dos investimentos de capital – e a soberania e segurança alimentar, uma vez que
os investimentos estrangeiros reforçarão a “vocação” monocultura de commodities do espaço
agrário brasileiro.
[...] os investimentos crescentes em ativos fundiários ameaçam a segurança e
a soberania alimentar, pois os mesmos concentram ainda mais a produção
agropecuária em poucas commodities, favorecendo os monopólios na
produção de alimentos e agroenergias (SAUER; LEITE, 2012, p. 522).
A Portaria Ministerial 80 retira a exclusividade da identificação e delimitação de
territórios indígenas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Os latifundiários e
representantes do agronegócio brasileiro desejam limitar a reserva de área para os indígenas,
de modo a destinar mais terras para suas propriedades. Assim, a Portaria cria uma Comissão,
da qual a FUNAI fará parte, mas, majoritariamente formada por indicações políticas do
próprio executivo para a discussão de novas reservas indígenas. Na prática, trata-se de uma
ação deliberada cercear o direito a terra/território dos povos tradicionais e contempla a pauta
reacionária da Frente Parlamentar da Agropecuária, formada por aproximadamente 200
parlamentares que não admitem “desperdiçar” terras agrícolas para povos “atrasados”.
O PL 6299/02 tem como fito acelerar a autorização de novos pacotes de agrotóxicos
junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e ao Ministério da Agricultura.
3 Segundo Ramos (2017), a quantidade de hectares em mãos estrangeiras (2,81 milhões de ha) é um pouco maior
que a área do território do estado de Alagoas.
Desde 2008, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos e logrou o maior mercado mundial de
agrotóxicos (ABRASCO, 2012). Entretanto, os signatários do agronegócio querem mais, eles
propõem a revogação de dispositivos que causem “mora” à autorização dos agrotóxicos.
Assim, o rito de apreciação técnico, por parte de especialistas da ANVISA, acerca dos riscos à
segurança alimentar da população, devem ser extirpados. Somente em 2016, segundo dados
divulgados e comemorados pelos ruralistas do Ministério de Agricultura (2017), houve um
crescimento do registro de agrotóxicos em 374%, em relação ao ano anterior. Esses dados
podem ser alavancados exponencialmente se o referido Projeto de Lei for chancelado pelo
Congresso Nacional.
Em síntese, todas essas alterações e proposituras convergem para galvanizar a
expansão do capital no campo brasileiro, através do modelo do agronegócio. Em que pese o
agronegócio já dispor de notáveis investimentos e apoio governamental nos 13 anos de
mandato do PT, seus signatários passaram a comandar integralmente a máquina do Estado –
numa articulação sincronizada no executivo, legislativo e judiciário – com o golpe de 2016,
recompondo a coalizão burguesa, numa declarada ofensiva contra o campesinato e contra os
povos tradicionais. As consequências, apesar de iniciais já podem ser constatadas: a) aumento
da violência no campo, com a atuação de grupos armados que atacam, sob a complacência do
Ministério da Justiça e do Judiciário. Vale destacar que o ano de 2016 alcançou o maior
número de mortes registradas em conflitos por terra, desde o ano de 2003 e; b)
desmantelamento da fiscalização do trabalho escravo no país, registrando-se uma pequena
diminuição no número absoluto de notificações, em razão das dificuldades operacionais de
inspeção do Ministério do Trabalho. Vale salientar que o mapa do trabalho escravo no país,
revela sua consolidação nas áreas de expansão do capital: sobre a Amazônia e nas áreas
tradicionalmente usadas pelo agronegócio da cana, da soja e do café.
Os mapas seguintes ilustram o exposto. O Mapa 1 revela a distribuição das mortes de
integrantes e lideranças de movimentos socioterritoriais em razão de conflitos por terra no
Brasil, no ano de 2016. Na região do MATOPIBA e no estado do Tocantins, ambas de
fronteira agrícola, madeireira e mineral, se concentram os maiores casos. O Mapa 2 apresenta
a espacialização do trabalho escravo no país e confirma que a supressão da dignidade no
trabalho continua a se materializar na produção de commodities. Mais uma vez, o estado do
Pará mantém sua regularidade como locus do trabalho escravo no território brasileiro, sendo a
as atividades pecuaristas e carvoeiras os setores que mais abrigam trabalho escravo.
Mapa 1
Fonte: Comissão Pastoral da Terra (2017).
Mapa 2
Fonte: Comissão Pastoral da Terra (2017).
4. A questão agrária em Alagoas
Em que pese a realidade geral agrária brasileira ter sido marcada pelo conjunto de
ordenamentos jurídicos (Lei de Terras de 1850, Estatuto da Terra, entre outros) que
afiançaram a desigual distribuição de terras e dificultaram e/ou privaram os trabalhadores do
acesso a terra, pode-se afirmar que a formação social alagoana contou com a seguinte
singularidade: a cristalização do latifúndio, como ordenador da economia, e a irresoluta
continuidade da oligarquia latifundiária da cana, fração hegemônica da classe dominante do
estado, no comando político dessa formação social durante seguidos decênios. “Os grupos
sociais liderados inicialmente pelo senhor de engenho e na atualidade pelo usineiro são
resultados de um cenário produtivo que se consolidou durante vários anos” (MACHADO;
LIMA, 2016, p. 160).
A elite agrária de Alagoas capturou definitivamente o Estado, desde a emancipação
política de 1817, cristalizando uma superestrutura política para congelar o quadro agrário em
seu favor.
[...] com a emancipação política do Estado de Alagoas, a elite agrária assume
também o poder político, pois, sendo a principal base da economia, com o
poder econômico que ostentava, determinou sua área de interesse e
dominação, o que lhe permitiu o privilégio de impor o modo de produção e
de vida à sociedade de todo o Estado, inclusive indicando os candidatos a ser
votados. Desse modo, nasce em Alagoas uma forte elite política, ligada
basicamente ao poder agrário e que objetiva defender seus interesses
imediatos (LIRA, 1997, p. 24-25).
Vale registrar que a luta pela democratização da terra sempre permeou a formação
socioterritorial de Alagoas, vide a insurgência de Palmares no final do século XVI – que além
do propósito de superação da escravidão, engendrou uma relação sui generis com a terra,
mediada pelo trabalho coletivo, produção policultora de alimentos e articulação em rede dos
mocambos – e a proeminente revolta dos Cabanos, na primeira metade do século XIX, que,
transformada em revolta popular, reuniu com destaque em suas reivindicações, o acesso a
terra.
De um modo geral, as lutas populares de base camponesa em Alagoas sempre
sofreram com a forte repressão e criminalização política da classe dominante para evitar que
os movimentos socioterritoriais interferissem no empreendimento econômico canavieiro. O
agronegócio sucro-alcooleiro cristalizou-se na Mesorregião Leste de Alagoas, expandindo-se
eventualmente em direção a Mesorregião Agreste do Estado. Sempre representou uma ameaça
à soberania alimentar do estado e uma ameaça à própria condição camponesa: em primeiro
plano, porque o agronegócio constitui-se da mais cristalina das irracionalidades ao tratar a
cana como uma mera commodity, um objeto a ser especulado e negociado no Mercado de
Futuros, sem relação direta com as necessidades reais de alimentação da população; em
segundo plano, porque o agronegócio da cana permite que o capital se territorialize no espaço
agrário alagoano, por meio da expropriação da terra camponesa, ou monopolize o território,
por meio da subordinação da produção familiar camponesa aos seus imperativos.
Dessa feita, pode-se afirmar que o espaço agrário alagoano é notadamente marcado
pelo confronto entre o modelo concentrador de riqueza e miséria, qual seja, o agronegócio
sucro-alcooleiro versus a agricultura de base camponesa.
No universo canavieiro, a terra é a principal forma de riqueza e de poder.
[...]. Do litoral ao alto sertão, a desigualdade nasce da terra e nela cria raízes.
Essa concentração de riquezas tem uma relação diretamente proporcional aos
males que enfrenta a maioria dos habitantes da região canavieira
(ALBUQUERQUE, 2009, p. 30).
Como já foi observado alhures, a redemocratização política do país, a partir de 1985,
bem como o último decênio político sob o comando do PT, mostraram-se incapazes de incidir
sobre a infame estrutura agrária concentrada. Em Alagoas muito menos. Apesar da pujante
luta dos movimentos socioterritoriais nas últimas décadas, que avançaram na territorialização
camponesa, inclusive na Mesorregião Leste, aproveitando momentos de crise eventuais do
agronegócio sucro-alcooleiro, a estrutura agrária alagoana continua a servir como suporte
material às principais frações da classe dominante e, por sua vez, oferece riscos fragorosos à
soberania alimentar do estado.
A produção quase que totalmente voltada para a exportação de uma única
mercadoria inviabiliza claramente a produção de outros gêneros,
principalmente daqueles voltados para a satisfação imediata das parcelas
mais pobres, como os alimentos, que, devido à importação, tornam-se mais
caros, reduzindo-se, assim, a cesta do consumo dos alagoanos (MACHADO;
LIMA, 2016, p. 144).
O Índice de Gini do espaço agrário alagoano, divulgado no último Censo
Agropecuário (2006), aponta uma majoração contínua da desigualdade: 1985 (0,858); 1995
(0,863); 2006 (0,871). Num intervalo de 21 anos, as assimetrias no campo alagoano somente
cresceram, se destacando negativamente por possuir o pior Índice de Gini entre todas as
unidades da federação, inclusive, acima do Índice de Gini do Brasil, qual seja, 0,854.
Esses dados, que apontam a elevação da desigualdade no campo de Alagoas, estão
diretamente relacionados a sua estrutura agrária, que se manteve, em linhas gerais, num
quadro notadamente concentrador e desigual. Ainda de acordo com o referido Censo
Agropecuário (2006), as pequenas propriedades compreendem mais de 90% dos
estabelecimentos da área rural de Alagoas, porém, possuem pouco mais de 30% do total de
hectares. Em contrapartida, a agricultura não familiar corresponde a menos de 10% dos
estabelecimentos agropecuários, concentrando 67,6% dos hectares. Igualmente contrastante é
a área média dos estabelecimentos. Enquanto a agricultura de base familiar possui
propriedades médias de 6,1 ha, a agricultura não familiar possui propriedades com área média
de 123,1 ha.
A ofensiva da classe dominante brasileira, cristalizada no impedimento institucional
da presidente Dilma, como resposta autocrática às dificuldades de reprodução do capital,
começa a impactar o espaço agrário alagoano. As ações instadas para a expansão do
agronegócio e a criminalização da luta pela terra/território se materializa no espaço agrário
alagoano, potencializando os conflitos e cristalizando sua estrutura eminentemente fundada na
desigualdade.
Os dados divulgados no Caderno de Conflitos da CPT, referentes ao ano de 2016,
apontam, em síntese, o aumento da instabilidade no espaço agrário alagoano. À luz dos
números presentes no referido caderno foi possível espacializar os conflitos e os assassinatos
decorrentes de disputas pela terra no estado.
Quanto aos conflitos no campo, os dados apontam que, em termos absolutos, houve
uma diminuição do número de conflitos, passando de 19 em 2015 para 12, em 2016.
Entretanto, o número de famílias de sem-terra e de povos tradicionais envolvidos foi quase
quatro vezes maior: em 2015 foram 940 famílias e, em 2016, 3717 famílias. No Mapa 3, é
possível observar a distribuição espacial dos conflitos agrários por município de Alagoas. Há
uma concentração na Mesorregião Leste, em função da fastidiosa presença do agronegócio
sucro-alcooleiro nessa parte do estado que, por meio da expropriação primária, da
monopolização do território e da destruição ambiental forma um catalizador de instabilidade
social no campo.
No que se refere aos assassinatos, os dados mostram que Alagoas voltou a registrar
assassinatos no campo, depois de quatro anos. Também revelam que houve aumento do
número de mortes: em 2012, 1 pessoa foi vítima de violência em decorrência da luta pela
terra; em 2016, 2 pessoas tiveram suas vidas ceifadas. O Mapa 4 espacializa os assassinatos,
revelando que houve um crime praticado na Mesorregião Agreste contra uma liderança
indígena da Tribo Xucuru/Kariri e um crime na parte norte da Mesorregião Leste praticado
contra a vida de uma liderança da luta pela terra.
Mapa 3
Fonte: Comissão Pastoral da Terra, 2017
Mapa 4
Fonte: Comissão Pastoral da Terra (2017).
Esses dados aduzem a seguinte tendência para o espaço agrário alagoano: a contenda
histórica da desigual estrutura fundiária do estado poderá ser aprofundada com a ofensiva do
capital, afiançada pela recomposição política das frações da classe dominante brasileira, após
o golpe de 2016. A piora dos indicadores de concentração de renda e riqueza no campo de
Alagoas tende a aumentar os conflitos por terra/território e água nos próximos anos. Ainda
que a ofensiva do capital se situe no campo de respostas imediatas à crise, é possível que não
cesse, não obstante uma possível recomposição de parte de seus lucros, uma vez que o modelo
de conciliação de classes, vigente no país por mais de uma década, atingiu seu limite nessa
quadra da história.
5. À guisa de conclusão
A crise econômica que mantém a economia brasileira em estado recessivo por mais de
dois anos precipitou a galvanização da ofensiva do capital sobre o espaço agrário brasileiro.
Ainda que os 13 anos do PT à frente da Presidência da República, bem como seus
antecessores, não tenham desferido um arranhão sequer a essa malfadada estrutura agrária,
pode-se concluir que o impedimento institucional da presidente Dilma permitiu uma
recomposição das frações da classe dominante brasileira para a execução um programa de
cunho reacionário, especialmente no campo.
A ofensiva do capital, salvo por uma notável resistência dos trabalhadores, não deve
cessar brevemente e está endereçada a alargar a abismal discrepância da posse da terra no
campo, pavimentando o caminho para o agronegócio. No estado de Alagoas, os efeitos da
ofensiva do capital já começam a ser identificados, e a tendência aponta para a consolidação
do empreendimento monocultor/exportador de commodities como atividade concentradora de
riqueza e miséria no campo, advindo um provável cenário de aumento da desigualdade social
e dos conflitos por terra/território e água.
6. Referências
ABRASCO. Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Dossiê Abrasco: um alerta sobre os
impactos dos agrotóxicos na saúde. Disponível em:
<https://www.abrasco.org.br/UserFiles/File/ABRASCODIVULGA/2012/DossieAGT.pdf>
Acesso em: 26/04/2017.
ALBUQUERQUE, Cícero Ferreira de. Cana, casa e poder. Maceió: EDUFAL, 2009.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 1985/2006.
BRASIL. Ministério da Agricultura. Pecuária e Abastecimento. Sistema Integrado de
Agrotóxico será lançado este ano. Disponível em:
<http://www.agricultura.gov.br/noticias/sistema-integrado-de-agrotoxicos-sera-lancado-este-
ano> Acesso em: 17 de Mai. 2017.
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