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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias Em entrevista, Tadeu Chiarelli conta os planos para a nova sede do MAC/USP no Ibirapuera, São Paulo. E mais: Conheça o colecionador de histórias Liêdo Maranhão, o Joe Gould brasileiro. Na fotorreportagem, objetos que perderam sua utilidade formam coleção relegada ao sótão das casas. O trabalho de museus para guardar e exibir coleções. Nesta edição, a Continuum adentra o universo dos colecionadores. A memória ao alcance das mãos ITAÚ CULTURAL 29 REVISTA

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Reportagem sobre os bastidores dos museus, tendo como exemplo o MoMA, a Fundação Iberê, o Malba e o Reina Sofia.

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itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias

Em entrevista, Tadeu Chiarelli conta os planos para a nova sede do MAC/USP no Ibirapuera, São Paulo.

E mais:

Conheça o colecionador de histórias Liêdo Maranhão, o Joe Gould brasileiro.

Na fotorreportagem, objetos que perderam sua utilidade formam coleção relegada ao sótão das casas.

O trabalho de museus para guardar e exibir coleções.

Nesta edição, a Continuum adentra o universo dos colecionadores.

A memória ao alcance das mãos

ITAÚ CULTURAL 29REVISTA

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A arte de unir os iguaisA primeira Continuum de 2011 traz ao leitor o universo dos colecionadores, pessoas que, por hobby, paixão, obsessão, interesse pessoal ou coletivo, se dedicam a acumular objetos, sejam eles artísticos ou não. As histó-rias que envolvem a conquista de cada item – sim, porque em muitos casos a aquisição de uma peça se parece com uma batalha a ser vencida –, as diferentes modalidades de coleção – de ciências, palavras, obras de arte, brinquedos e moda, entre tantas possibilidades – e as questões que tratam da manutenção desse ato, que

remonta à pré-história, permeiam as páginas para mostrar que colecionar é dar vida longa às coisas. Em outras pala-vras, é preservar a memória.

No ensaio fotográfico que abre a edição, objetos que um dia estiveram no centro das atenções nas residências for-mam uma estranha coleção ao ser relegados ao sótão das casas. Ser enterrado com dois dos quadros mais caros do mundo: esse foi o desejo de um colecionador, o que deixou a comunidade artística em polvorosa. Conheça na repor-

tagem “Colecionar é contar histórias” esses e outros causos, não tão excêntricos, mas que mostram que uma coleção pode ter vários destinos, a depender de seus donos. Que o diga Liêdo Maranhão, cuja história você vai conhecer em Perfil. Além dos mais variados objetos, ele é colecionador de narrativas orais, coletadas nas ruas do Recife e registradas em diários que renderam 13 livros.

Os museus, instituições que por tradição se ocupam de cuidar de coleções e exibi-las, ganham destaque tanto na matéria sobre os bastidores de grandes instituições internacionais, como MoMA, Malba e

Reina Sofía, quanto na entrevista especial com Tadeu Chiarelli, diretor do paulistano MAC/USP, que, no limiar dos 50 anos, está prestes a se tornar o maior museu do país em espaço.

E, se você coleciona a Continuum, prepare-se! A edição de março-abril virá diferente, com mais seções e um projeto gráfico renovado. Saiba qual

será o tema do próximo número e como você pode participar da revista, enviando trabalhos artísticos e textos, no site

itaucultural.org.br/continuum.

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Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Thiago Lacaz Edição Marco Aurélio Fiochi Redação André Seiti, Carlos Costa, Roberta Dezan Produção editorial Maria Clara Matos Revisão Denise Costa, Polyana Lima Colaboraram nesta edição Augusto Paim, Cynthia Gyuru, Fernanda Castello Branco, Guilherme Kramer, Leandro Lima, Luana Fischer, Marcelo Rampazzo, Mariana Lacerda, Mariana Sgarioni, Maurício Arruda Mendonça, Micheliny Verunschk, Renan Magalhães, Renata Penzani, Ricardo Labastier, Rodrigo Garcia Lopes, Sergio Crusco, Silvia Bessa, Tatiana Diniz Agradecimento Ana Farinha (MAC/USP), Empório Carol Martini (São Paulo), IEB/USP

capa foto: Luana Fischer

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007) Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

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52. Ordem no caosRegras básicas de conservação e catalogação dão ou-tro status a acervos e coleções.

56. Vestir o presente com a memória do passadoA moda como um dos mais confiáveis e importantes documentos para desvendar o espírito de cada tempo.

60. Quem dá mais?As listas de favoritos ganham força com as mídias sociais.

Perfil64. O memorialista do povãoLiêdo Maranhão, ouvinte e devoto dos costumes e expressões populares.

Fotorreportagem6. O não lugarObjetos que antes faziam parte da vida cotidiana ago-ra habitam um espaço onde nem o tempo passa.

Balaio 26. Coletânea de dicasIdeias para você se tornar um colecionador.

Ficção 32. A paixão pelos livrosEm texto inédito de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, a história de um homem que preten-dia formar a maior coleção de livros da América Latina.

Espaço do LeitorDeadline28. Acervo feito de genteO paulistano Museu da Pessoa ajuda a bordar a ema-ranhada teia da memória social.

Entrevista

20. Um museu de grandes novidades

O diretor do MAC/USP, crítico e historiador da arte Tadeu Chiarelli fala sobre as novas instalações do museu e dos aspectos simbólicos dessa mudança.

Reportagem12. Colecionar é contar históriasEntre o egoísmo e o prazer de compartilhar.

16. Debaixo da ponta do icebergHá muito mais trabalho em exposições do que os olhos do público conseguem ver.

36. Um tesouro naturalFragmentos do mundo prontos para responder per-guntas sobre o funcionamento da vida.

40. De coletores a colecionadoresDescubra por que o ato de colecionar ultrapassa o mero acúmulo de objetos.

44. Várias pessoas, a mesma maniaAlgumas coleções, de tão comuns, reúnem em gru-pos e associações pessoas com os mesmos gostos, manias e interesses.

48. Sequências e (in)consequênciasA execução seriada de obras marca a arte de todos os tempos.

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O não lugarFotos Luana Fischer [luanafischer.com]

Um toca-discos do começo do século passado, guardado com cuidado, ao lado de discos de 72 rotações sem nenhum risco. Um retrato de família, protegido da ameaça da luz, mostra às paredes escuras rostos maquiados à moda antiga. Um rolo musical – que antes se acoplava a um órgão – deitado no chão, cuidadosamente, não faz nenhum ruído. Bonecas ves-tidas, com seus óculos e chapéus, sorriem eternamente.

Debaixo da mesma camada de poeira, descansam coleções de objetos de diferentes tempos, origens e utilidades. Um dia, fizeram parte da vida cotidiana. Hoje, vivem no não lugar das casas: sótãos e porões onde o tempo não passa.

Por que tanto esmero em guardá-los? Por que ainda são importantes ou por que foram? Ao não encontrar seu papel nas salas de estar iluminadas da atualidade, eles devem subir ao não lugar, limbo da história privada no qual o que foi co-lecionável deixa de sê-lo, ainda que sem deixar de existir.

fotorreportagem

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reportagem

Colecionar é contar históriasColecionadores constroem possibilidades de convivência com a arte e narrativas sobre a história do mundo.

Por Sergio Crusco | Ilustração Marcelo Rampazzo

No começo dos anos 1980, o então fotógrafo Eduardo Brandão ouviu de uma marchande estrangeira que o principal problema da arte contemporânea brasileira era a carência de registro e de catalogação. Munido de câmera, rolos de filme e equipamento de iluminação, Brandão decidiu desbravar esse território pouco explora-do. Propôs a artistas plásticos amigos fotografar sua produção recente e, por falta de verba (antes da fotografia digital, os processos de revelação e ampliação tornavam tudo mais custoso), receber em troca obras de arte. “A preocupação dos artistas, na época, era vender uma obra e pagar o aluguel. Portanto, minha coleção começou na base do escambo”, lembra ele, hoje curador e galerista, proprietário da Galeria Vermelho, em São Paulo.

Nascia, descompromissadamente, uma das mais importantes coletâneas particulares de arte abrangendo a pro-dução nacional dos anos 1980 e 1990 – trabalhos de Leonilson, Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Geraldo de Barros, Tunga, Sandra Cinto, Lenora de Barros, Luiz Zerbini, Edgard de Souza e tantos outros. Brandão se deu conta de que o que cobria as paredes de sua casa havia tomado um vulto mais expressivo do que imaginaria nos idos em que trocava telas e esculturas por cliques, e se viu diante da necessidade de catalogar as peças e conservá-las. Mais do que uma coleção, as cerca de 300 obras que arrebanhara ao longo dos anos formavam um acervo.

Provido de um saudável desprendimento, Brandão possibilitou o acesso do público a esse acervo ceden-do, em regime de comodato, boa parte das aquisições ao MAM/SP. As novas peças ajudaram o museu a enriquecer a coleção à medida que dialogavam com obras dos mesmos artistas existentes no acervo. O galerista, que nos seus tempos de professor de fotografia na Faap, São Paulo, já possibilitava o acesso dos alunos à sua coleção, diz ter tomado uma decisão coerente com a maneira pela qual entende e vive a arte. “Colecionar não é apenas acumular objetos, mas construir um lugar onde a convivência com a arte seja importante e poderosa, e é essa relação que prezo.”

sejo de ser cremado com o Van Gogh e o Renoir tão estimados. A declaração, que colocou o mundo da arte de cabelos em pé, foi explicada mais tarde pelo próprio magnata nipônico como piada, brincadeiri-nha – e, obviamente, as telas não viraram cinza. Até hoje, porém, é desconhecido o paradeiro das duas obras. Há apenas especulações sobre quem as teria arrematado após sua morte.

A notícia, que soaria anedótica não fosse assustado-ra, ilustra a atitude egoísta de certos colecionadores: amealhar, reter, ocultar – traço de personalidade envelopado pela psicologia na categoria dos trans-tornos compulsivos. Ora, uma coleção deve con-

tar uma, ou melhor, diversas histórias – como a de Chateaubriand, que narra a evolução da arte brasilei-ra nos últimos cem anos, e a do Museu do Vaticano, que relata a da própria igreja católica. No Museu do Louvre, um dos fios que podemos perseguir é o da expansão do império napoleônico por meio das apropriações feitas pelo conquistador sobre o espó-lio dos povos subjugados. Estão lá a Vênus de Milo e a Vitória de Samotrácia como testamento desse poder. A sete chaves, essa história nunca seria lida.

Há outros exemplos fundamen-tais de coleções particulares que ga-nharam vida pública na América do Sul. Uma delas é a de Gilberto Chateaubriand, pro-prietário de cerca de 7 mil obras representativas da arte brasileira do início do século XX até o novo milênio – e que igualmente foi cedida em comoda-to ao MAM/RJ, onde ganhou espaço exclusivo. Na Argentina, a coleção de Eduardo Costantini originou o Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba) – onde residem Autorretrato com Macaco e Papagaio, de Frida Kahlo, e Abaporu, de Tarsila do Amaral, duas das obras latino-americanas mais valio-sas, arrematadas pelo empresário em leilões.

Nem todo colecionador, no entanto, tem o prazer, exercitado por Brandão, Chateaubriand e Costantini, de compartilhar. É notório o caso do empresário japo-nês Ryoei Saito, comprador de duas telas que ainda hoje figuram na lista das dez mais caras do mundo: Retrato do Dr. Gachet, de Van Gogh, e Bal du Moulin de la Galette, de Renoir – arrematados em 1990 por 82,5 milhões de dólares e 78,1 milhões de dólares, respectivamente. Saito, que morreria seis anos mais tarde, chocou a sociedade ao expressar o fúnebre de-

O empresário japonês Ryoei Saito, comprador, na década de 1990, de duas telas que ainda hoje figuram na lista das dez mais caras do mundo, chocou a sociedade ao expressar o fúnebre desejo de ser cremado com as obras.

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de admirar uma obra de arte ou um objeto sempre se faça de maneira mais satisfatória ao vivo, hoje é pos-sível percorrer o acervo de grandes instituições ou de particulares que já digitalizaram sua coleção.

O trânsito tem mão dupla: a instituição também se beneficia da ampla exposição cibernética. É o caso do Masp, que tem seu acervo digitalizado e de aces-so bem simplificado em seu site oficial. “O museu não só divulga como recebe muita informação relevante por meio da internet. Pesquisadores estrangeiros que consultam nosso acervo eletronicamente nos forne-cem dados sobre peças da coleção, o que amplia o conhecimento da própria instituição sobre determi-nadas obras”, diz Eunice Sophia, coordenadora do acervo que reúne a mais importante coleção de arte europeia do Hemisfério Sul, criada pelo empresário Assis Chateubriand e seu colaborador Pietro Maria Bardi na década de 1940.

Segundo Eunice, o que diferencia a simples coleção particular de um acervo é sua catalogação, seu registro. A coleção é meramente a reunião de objetos que se assemelham por categoria, formato, período histórico ou temática. O acervo é a coleção institucionalizada, por assim dizer, e não raro tombada pelo patrimônio

histórico, caso do acervo do Masp (que contém pin-tura, escultura, desenho, gravura, fotografia, vestu-

ário, mobiliário, tapeçaria, objetos, instrumentos musicais, design, cerâmicas). “Todo acervo é

uma coleção, mas nem toda coleção é um acervo”, esclarece.

A razão se faz como discurso

No ensaio “Epistemologias Históricas do Colecionis-mo” (publicado na revista Episteme, em 2005), o his-toriador gaúcho Francisco Marshall, da UFRGS, analisa a semântica da palavra coleção: “Colecionar, do latim collectio, possui em seu núcleo semântico a raiz leg, de alta relevância em todos os falares indo-europeus [...]. No grego clássico, em seu grau ‘o’, produz o morfema log, avizinhado, em seu grau ‘e’, de leg, ambos repletos de derivados. Nesta família linguística, aparece o nú-cleo semântico e significativo do colecionismo: uma relação entre pôr em ordem – raciocinar – (logeín) e discursar (legeín), onde o sentido de falar é derivado do de coletar: a razão se faz como discurso”.

É esse caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras possibilidades de “roteiro” – que atiça colecionadores e curadores. Segundo Brandão, o dado encantador de uma coleção é a possibilidade de criar recortes, ordenar as peças de modo a construir as tais narrati-vas. “Quando minha coleção estava em casa, um dos meus prazeres era fazer curadorias para mim, para os amigos e para os alunos”, diz.

Livros, selos, brinquedos, caixas de fósforos, revistas, cartões-postais, fotografias, mapas, roupas, discos, emba-lagens de produtos industrializados, cartazes – toda coleção, quando representativa e bem or-ganizada, pode conter essa mesma força prosódica. Para tomar um exemplo, não foi a partir dos arqui-vos das gravadoras brasileiras que o músico Charles Gavin organizou um dos mais belos compêndios so-bre a arte gráfica brasileira dos anos 1960. A fonte para a feitura do livro Bossa Nova e Outras Bossas – A Arte e o Design das Capas dos LPs (editado em 2008 pela or-ganização não governamental Viva Rio) foi a coleção do carioca Caetano Rodrigues (falecido em 2010), que garimpou todas as gravações da bossa desde os tem-pos em que frequentava o Beco das Garrafas, reduto dos músicos de samba-jazz, até o advento do CD.

A internet abre novos caminhos e perspectivas para o público interessado em “ler” as histórias conta-das pelas coleções – o áudio de diversos álbuns de Rodrigues, sobretudo os mais raros e alguns jamais reeditados, foi disponibilizado pelo blogueiro Loronix em seu site (loronix.blogspot.com). E, embora o ato

O caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras possibili-dades de “roteiro” – atiça colecionadores e curadores.

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reportagem

Debaixo da ponta do icebergAntes e depois de qualquer exposição, há sempre um imenso trabalho que não aparece ao público. Conheça os bastidores de museus como Reina Sofía, Malba e MoMA e da Fundação Iberê Camargo.

Por Augusto Paim

Diz-se que o jornalismo é a arte de sujar os sapatos. O repórter que enfrentou a chuvosa Porto Alegre de 9 de novembro de 2010 há, no entanto, de contradizer: o jornalismo é a arte de molhar os sapatos.

Na galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, do Instituto de Artes da UFRGS, o repórter encontrou abrigo contra a chuva. Enquanto a entrevistada Ana Maria Albani de Carvalho, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, resolvia algumas pendências, ele observava o ambiente ao redor. Uma exposição de gravuras seria inaugurada em dois dias; em razão disso, alunos equilibravam-se em escadas pendurando quadros, martelos martelavam – tap-tap-tap – e pregos afundavam na madeira – tum-tum-tum. Junto a uma mesa, uma estudante montava cada moldura numa colagem com espuma branca.

O repórter não sabia, mas sua reportagem começava ali.

Nas catacumbas dos museus

Todo jornalista, quando se debruça sobre um tema novo, precisa estudá-lo até estar em condições de contar uma história. Para esta reportagem, o repórter aprendeu, entre outras coisas, quais são as partes que compõem um mu-seu. Isso não aparece no texto final da reportagem, mas, para escrevê-lo, o repórter precisou desses conceitos.

Assim como nos bastidores do jornalismo, nos museus há um imenso trabalho de sustentação e infraestrutu-ra que permite o funcionamento das instituições. No Reina Sofía, de Madri, trabalham mais de 600 profis-sionais. Arianne Vellosillo, restauradora do museu, ex-plica que o departamento de conservação e restauro ocupa sozinho aproximadamente 600 m². “Somos 21 pessoas nesse setor, quase todos restauradores, mas há também o assistente do chefe do departamento, um fotógrafo, um especialista em imagens, um gestor cultural e uma química.” A dimensão dos bastidores é tão grande que ultrapassa em muito a área de expo-sição. Só a reserva técnica (espaço onde fica armaze-nado o acervo), com suas 18 mil obras, ocupa vários andares no sótão do Reina Sofía.

O Malba (Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires) tem um

acervo de apenas 500 peças, mas já enfren-ta problemas de espaço por não ter uma reser-

va técnica. Serviços como conservação e restauro são terceirizados. Jim Coddington, chefe do depar-

tamento de conservação do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), relata outro problema: “Um dos maiores desafios na conservação de arte contemporâ-nea é o grande leque de materiais que os artistas estão usando para construir seus trabalhos”. Cintia Mezza, administradora da coleção permanente do Malba, co-menta: “O que mais nos dá trabalho são as obras ciné-ticas ou as que têm mecanismos para os quais o perfil do restaurador convencional não é suficiente”. Afinal, o que fazer com uma obra de 20 anos que usava um aparelho de vídeo com fita VHS? Apenas passar o ma-terial para DVD não resolve, pois nessa transposição se perdem características importantes, como a cor. Por isso, museus que trabalham com novas mídias têm optado por conservar o suporte original, ao mesmo tempo que o convertem em outro formato. A obra, portanto, duplica-se, duplicando também o problema do espaço: onde guardar isso tudo?

A informatização dos museus – processo buscado e recomen-dado pelo Ministério da Cultura através do Sistema Nacional de Museus –, quando aplicada no caso específico do acervo, não resolve a questão da falta de espaço. Pois quem jogaria fora um original de Picasso depois de ele ter sido digitalizado?Visitantes na abertura da exposição Convivências – Fundação Iberê Camargo | foto: Cristiano Sant’Anna

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cuidado diferenciado para conservação e armazena-mento), ou com a imprevisível arte contemporânea, ou, ainda, com arte eletrônica. Se uma instituição concentra-se na obra de determinado artista ou es-tilo, diminui o problema da superlotação da reserva técnica, e a instituição tende a centrar suas ativida-des em esforços de pesquisa e catalogação, além de formas de exposição e interação com o público. Esse último caso é o que acontece na Fundação Iberê Camargo, que não é exatamente um museu, mas uma instituição que pesquisa, cataloga, armazena e expõe a obra do artista.

O trabalho da mediação com os visitantes também é fundamental. Os museus contemporâneos têm um cuidado com a pluralidade do público, propon-do mediações que satisfaçam tanto leigos quanto

especialistas. Algumas exposições prezam mais o lúdico e a interatividade, como é o caso das rea-

lizadas nos museus científicos. Outras institui-ções se preocupam mais com o trabalho

formativo, desenvolvendo programas de arte-educação.

A informatização dos museus – processo buscado e recomendado pelo Ministério da Cultura através do Sistema Nacional de Museus –, quando aplicada no caso específico do acervo, não resolve a questão da falta de espaço. Pois quem jogaria fora um original de Picasso depois de ele ter sido digitalizado? Outro pro-blema vem das novas instalações da arte contemporâ-nea, que excedem os espaços tradicionais para guardar obras. “Recentemente chegou ao Malba uma obra de 2 metros de altura por 2 metros de largura”, relata Cintia. É um problema que não existe, por exemplo, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. “O artista plástico Iberê Camargo pintou, gravou e desenhou num formato convencional”, comenta Fábio Coutinho, superintendente cultural da instituição. Em razão disso, apesar de o acervo contar com mais de 5 mil obras, uma pequena reserva técnica dá conta do recado.

Como uma obra vai parar dentro do museu?

O perfil de cada instituição revela-se no trabalho da curadoria – que tanto pode ser para uma exposição específica quanto para decidir que obras devem ser adquiridas. Um museu pode trabalhar apenas com gravuras e pinturas, ou esculturas (que já exigem um

Antes de tudo isso, no entanto, há a aquisição da obra. Em 2004, a política de aquisições do Malba focou-se em fotografia contemporânea. Nos museus, porém, assim como na vida de qualquer um de nós, o orçamento disponível é critério fundamen-tal. “Comprar obras de contemporâneos do Brasil ou da Colômbia está muito complicado no momento, pois esses artistas estão muito valorizados”, comenta Cintia. Já a Fundação Iberê Camargo dificilmente ad-quire obras. Há o setor de documentação e pesquisa, que faz a catalogação de trabalhos que não se encon-tram no acervo, mas o objetivo é apenas registrar seus atuais endereços e proprietários, não comprá-los.

Quem escreve o texto das etiquetas?

Antes e depois de cada exposição, acontece mui-to mais coisa do que se imagina. A jornalista Luísa Fedrizzi diz que, às vezes, se um dos três andares de exposição da Fundação Iberê Camargo estiver fecha-do, há pessoas que reclamam, mandando e-mails do tipo: “Por que não montam as exposições na segunda, quando o museu não abre ao público?”.

Quando uma exposição chega, as obras precisam fi-car em quarentena para não haver nenhum problema com mudanças bruscas de temperatura e umidade. Depois, as caixas de transporte são abertas e tudo é fotografado e catalogado. Só então vem a monta-gem, que muitas vezes tem desafios à parte. Depois de passar pelo MoMA e pelo Reina Sofía, a obra Ondas Paradas de Probabilidade, de Mira Schendel, chegou à Fundação Iberê Camargo. A peça tem 27.500 fios de náilon, que pendem do teto. Ok, mas pendem como? Aí é que está o problema. Para montar o trabalho, a equipe de produção teve de conseguir 27.500 peque-nos ganchos. Depois de arranjar um fornecedor, que não honrou o compromisso da entrega, o material foi comprado às pressas direto do fabricante. No fim, após cinco dias de montagem, a obra ficou pronta.

E então a exposição acaba. A exposição, não o tra-balho. Fedrizzi conta que “sempre depois de uma exposição vem uma equipe que repara o espaço, deixando-o zerado para o próximo curador”. Em se tratando de arte contemporânea, nem sempre são reparos simples. Em novembro de 2010, por exemplo, a obra Ixodidae, do artista plástico Cadu, furava sem cessar uma das paredes da Fundação como compo-nente do processo artístico.

Mesmo em obras convencionais, há de se perguntar: quem fornece as molduras? Quem escreve o texto das etiquetas? “Em geral, achamos que as obras nasceram com as etiquetas”, comenta Ana Carvalho, citada no início desta reportagem. “O que se vê, quando se visita uma exposição, é a ponta do iceberg”, diz ela. É como os estudantes da UFRGS, cujo trabalho de montar a exposição, na chuvosa Porto Alegre de 9 de novem-bro de 2010, não ficou aparente dois dias depois. Ou como o trabalho do jornalista, cujos sapatos, molha-dos no processo de fazer a reportagem, dificilmente aparecem no texto final.

Vista do pátio do Reina Sofía | foto: Joaquín Cortés Visitantes observam obra exposta no Malba | foto: divulgação Vista interna da Fundação Iberê Camargo | foto: Mathias Cramer

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Um museu de grandes novidadesPor Marco Aurélio Fiochi | Fotos André Seiti

O tempo não para, e depois de 48 anos o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC/USP), um dos mais importantes da capital paulista, está prestes a mudar de casa. Ele passa, ainda neste primeiro semestre, a ocupar o prédio do antigo Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran), integrante do conjunto arquitetônico do Parque do Ibirapuera, porém apartado deste pela Avenida 23 de Maio. A mudança é audaciosa. Para tanto, o imponente edifício de 29,9 mil m2, projetado por Oscar Niemeyer num terreno de mais de 44,3 mil m2 e inaugurado em 1954, enfrentou mais de dois anos de refor-ma, bancada pela Secretaria de Estado da Cultura. Na nova sede, segundo o diretor da instituição, o crítico e historiador da arte Tadeu Chiarelli, será possível mostrar de forma permanente quase todo o acervo, que conta com cerca de 10 mil obras, de vários formatos, dos períodos moderno e contemporâneo no Brasil e no exterior. Curador de renome na arte brasileira e professor titular da universidade, Chiarelli fala, nesta entrevis-ta, concedida no canteiro de obras, do futuro do museu e ressalta o aspecto simbólico da mudança: “Vamos devolver ao público aquilo que é público. O MAC hoje só mostra 1% de sua coleção. Serão seis andares de arte e um anexo, um espaço magnífico”.

entrevista

O edifício do antigo Detran, projetado por Oscar Niemeyer, prepara-se para receber o novo MAC

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Para sua carreira, o que representa ser nomeado diretor do MAC? Como se deu esse processo?

Existe uma norma na USP na qual só podem ser direto-res dos museus da universidade os professores titulares, profissionais que já teriam percorrido toda a trajetória universitária. Na época da nomeação [em abril de 2010, para um período de quatro anos] eu havia acabado de fazer o exame de titularidade. O profissional que segue a carreira acadêmica é fundamentalmente um servidor público e deve se preparar para assumir as atribuições que vão aparecendo. Assumir o MAC é a responsabilida-de máxima de um professor ligado à história e à crítica

da arte. Mesmo se tivesse outros planos, não poderia me furtar a aceitar. Ainda mais num momento tão crucial quanto este. Tenho a honra de ter colegas que desen-volvem seu trabalho há muitos anos, como as docentes Cristina Freire [vice-diretora], Helouise Costa [coordena-dora da Divisão de Pesquisa em Arte – Teoria e Crítica] e Ana Magalhães [membro do Conselho Deliberativo], entre outros. É uma equipe de altíssima qualidade, o que aumenta meu compromisso. Tem sido importante con-viver com esses profissionais e discutir os rumos do mu-seu. Uma experiência que vai ter frutos significativos.

O MAC está dividido em três espaços [dois na USP e um na Fundação Bienal]. Com a mudança para o novo prédio, o que significa reunir esse museu fragmentado?

Com a vinda para a nova sede, espera-se que o museu possa, em primeiro lugar, mostrar o acervo que reúne. Na sede atual, só é possível mostrar 1% da coleção [que conta com cerca de 10 mil obras]. Não é possível apresentá-lo em sua totalidade nem com o potencial que ele tem para a interpretação da arte moderna e contemporânea. Termos um espaço definitivo e tão amplo é fundamental para que a ins-tituição dê prosseguimento à sua mis-são: com foco no acervo,

produzir exposições e desenvolver um trabalho consis-tente e duradouro com o público. De fato, a fragmenta-ção prejudica muito seu cotidiano. Mas a mudança não significa que o MAC deixará a universidade. Não pode-mos perder a interlocução com o campus. Manteremos o edifício maior, em frente à reitoria, para aulas e expo-sições específicas. A outra sala no campus, de menor tamanho, será devolvida à administração, bem como o ambiente no prédio da Fundação Bienal. A sede na Cidade Universitária será o MAC acadêmico. As discipli-nas de graduação e pós-graduação [oferecidas como optativas aos alunos da USP], além das atividades nitida-mente pedagógicas, serão mantidas naquele lugar.

Como será o novo espaço?

Serão seis andares de arte [as áreas expositivas vão do se-gundo ao sétimo piso]. No primeiro andar, vai haver um auditório e a parte administrativa. No oitavo, um mirante e um restaurante. Quatro andares serão destinados à ex-posição permanente do acervo e dois a exposições tem-porárias. Uma parte, perto dos elevadores, abrigará salas especiais, para exposições monográficas de artistas bem representados na coleção, como Di Cavalcanti, Yolanda Mohalyi. Há outro edifício, o Anexo, também parte do projeto original [com 3.284 m2], um dos mais generosos que existem para a exibição de obras de arte contempo-rânea. Os artistas vão deitar e rolar! No Anexo, faremos exposições de artistas contemporâneos vivos, que vão produzir para o museu. Ou seja, o conjunto do espaço expositivo é magnífico [com mais de 11,1 mil m2].

O cronograma de exposições sofrerá alterações?

As obras do acervo ficarão no mínimo um ano expos-tas, com mudanças pontuais, devido a pesquisas dos curadores. É o que chamamos de exposição de longa duração. A ideia é que a coleção fique à disposição do público. Nos anos 1970, quando fui aluno de Walter Zanini, ele falava: “Todo cidadão de São Paulo tem o direito de entrar na Pinacoteca do Estado para ver o

Caipira Picando Fumo [pintura de Almeida Júnior, de 1893] quando quiser, pois é um patrimônio público”. O único autorretrato que Modigliani pintou é do MAC. Sei que há muitos cidadãos que adoram essa obra e a veem pouco. Quero voltar a fazer o que Zanini fazia na direção do MAC: o quadro do Modigliani tem de es-tar à disposição para que as pessoas o vejam quantas vezes desejarem. O museu tem de cumprir a função de devolver ao público o que é público. No tocante às exposições temporárias, elas não terão menos que seis meses. Não acredito que se consiga fazer um bom trabalho de formação de público em exposições que duram 40 dias. Como é um museu universitário, o foco na formação do público é visceral. A instituição não tem necessidade de acelerar exposições, não faz parte de seu perfil. Portanto, pode trabalhar a potencialida-de das obras. Não vou expor um artista porque tenho espaço, mas, sim, aquele que o conselho do museu considerar importante, sobretudo, ao acervo.

Qual é sua percepção da reação de outras institui-ções culturais da cidade à ampliação do MAC?

Os colegas na direção de outras instituições paulis-tanas, que admiro profissionalmente, além de ser meus amigos, como Jorge Schwartz (do Museu Lasar Segall), Teixeira Coelho (do Masp) e Marcelo Araújo (da

Pinacoteca), estão bastante entu-siasmados. Faz-me muito bem contar com o apoio deles, pois todos, direta ou indiretamente, estão ou estiveram ligados ao MAC. Se pensarmos no circuito como um todo, as pessoas têm muita expectativa sobre o MAC, pois nos anos 1960 e 1970, com a direção do Zanini, o museu tinha uma presença muito significativa na cena cultural e artística da cidade. Artistas e curado-res têm um grande carinho pelo museu e imaginam visitas ao acervo para rever obras que há tempos não são apresentadas. As pessoas em geral, quando são informadas de que o prédio do antigo Detran vai ser um museu, se admiram. É um espaço muito impor-tante para a cidade e foi tão malcuidado. A população sente que é uma devolução, pelo poder público, de um patrimônio que estava vilipendiado.

Fale sobre a formação do acervo do MAC.

O acervo do MAC é brilhante, um dos melhores de arte moderna e contemporânea da América Latina. O núcleo original vem da coleção doada por Ciccillo Matarazzo e Yolanda Penteado [fundadores do MAM/SP, em 1948] e dos prêmios aquisição das edições da Bienal de São Paulo que foram realizadas até 1962. Nele, há obras extremamente significativas: uma das

O único autorretrato que Modigliani pintou é do MAC. Esse quadro tem de estar à disposição para que as pessoas o vejam quantas vezes desejarem. Chiarelli: “A mudança se deve ao desejo de devolver ao público o que é público”

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maiores coleções de arte italiana do período entre-guerras, fora da Itália, está no MAC. A obra mais antiga é de Giacomo Balla, uma pintura de 1906, e há obras fundamentais de Modigliani, entre outros. A parte modernista internacional do acervo está muito bem representada, bem como a modernista nacional da pri-meira metade do século XX, com Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, que estabelecem um diálogo muito potente. Outra parte importante é a coleção de arte dos anos 1960 e 1970. Walter Zanini [diretor entre 1963 e 1978] foi fundamental ao museu, pois trabalhou as verten-tes conceituais do acervo. Ele comprava ou ganhava obras que são disputadas por museus internacionais. Mas o público não conhece aprofundadamente esse núcleo, fundamental para entender a arte contempo-rânea. Temos outro segmento muito importante, de arte dos anos 1980, que foi configurado com Aracy Amaral [membro do Conselho Administrativo de 1980 a 1982]. Cada diretor do museu cuidou de diferentes aspectos dessa grande coleção. Outras bastante sig-nificativas, como parte da Cid Collection, a coleção do extinto Banco Santos, está sob a guarda do museu.

Como você vê esse acervo no futuro?

Eu e os curadores já começamos a mapear as lacunas e a projetar a expansão da vertente contemporânea. É um museu de arte contemporânea, então tem de dia-logar intensamente com a produção atual. Na inaugu-

ração, junto com a exposição do acervo, faremos uma com artistas brasileiros muito jovens, para demonstrar que, além de trabalhar seu acervo, o museu não deixa de pensar nas obras mais recentes que quer adquirir. O museu não está aberto a ofertas. Vamos escolher aquilo que interessa para expandir e referenciar a co-leção. Essa é a política de aquisições.

O que está sendo planejado para as áreas técnicas do museu?

O MAC sempre primou pela qualidade e sofisticação do trabalho que desenvolve na conservação e no res-tauro de suas obras. Na sede do campus há um la-boratório em que trabalham especialistas. São salas projetadas para guarda, preservação, estudo e res-tauro das peças. Isso será reproduzido na nova sede. Além da reforma, está sendo construído um edifício defronte ao Anexo, para abrigar as áreas técnicas [que compreendem reservas e laboratórios de conserva-ção, em um espaço de 3.983 m²] e manter a quali-dade da sede atual. Apenas parte do mobiliário será transferida para esse prédio, pois cerca de 90% dos

equipamentos serão comprados para manter o pa-drão e para que se trabalhe com tecnologia mais

avançada. Na reserva técnica laboratorial será possível ministrar aulas, e os alunos dos

cursos do MAC terão um contato mais próximo com as obras.

Há algum estudo para facilitar a chegada do pú-blico ao museu? A entrada passará a ser cobrada?

Manteremos a gratuidade da visita. Quanto à acessibi-lidade, ela já foi pensada. Há três entradas para o edifí-cio. Quando inaugurado, o público poderá entrar pela passarela [Ciccillo Matarazzo, que atravessa a Avenida 23 de Maio, ligando o parque ao edifício], que será re-formada. Nesse caso, a pessoa que estiver passeando no Ibirapuera poderá atravessar a passarela e visitar o museu. Será possível entrar e sair do espaço como se a pessoa estivesse num parque, numa praça pública. A ideia é integrar ao máximo o MAC ao Ibirapuera. Haverá um jardim de esculturas no entorno do prédio [com cerca de 16 mil m²] em que o vi-sitante pode passear, descansar. O estacio-namento [na Rua Dante Pazzanese] será outra entrada. A terceira entrada será pela Avenida 23 de Maio.

Como você vê a inserção do MAC no circuito dos grandes museus latino-americanos?

O edifício do novo MAC não foi pensado para ser mu-seu [o Palácio da Agricultura foi construído para abrigar a secretaria estadual voltada a esse setor]. Ele está sendo adaptado. Mas não é qualquer construção. É um prédio projetado por Oscar Niemeyer no melhor momento de sua arquitetura e também da produção arquitetônica brasileira, o início da década de 1950. Isso é muito sim-bólico. A construção é um grande monumento. Esse é o primeiro diferencial do museu. Ele já vem imantado pela excelência do autor do projeto e pela qualidade do resultado. Dessa forma, uma das principais obras do MAC é o edifício em que será implantado. Acho que quando o novo MAC estiver operando se igualará a mu-seus como o Malba, o Masp e a Pinacoteca do Estado. No tocante à coleção internacional, ele ombreia o Masp, embora este tenha mais obras e peças mais antigas. O Malba tem mais artistas latino-americanos, porém o MAC não está limitado a essa região. Ele está no mesmo patamar de qualidade dos museus do continente.

O museu não está aberto a ofertas. Vamos escolher aquilo que interessa para expandir e referenciar a coleção. Essa é a política de aquisições.

A previsão é que o novo museu seja inaugurado no primeiro semestre deste ano

Homens em obras: reforma do edifício consumiu mais de dois anos de trabalho

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LITERATURA

Ficções, de Jorge Luis Borges (Companhia das Letras, 2007)Este livro reúne alguns dos mais notórios contos do escri-tor argentino falecido em 1986. Estão lá: “Pierre Menard, Autor do Quixote”, “As Ruínas Circulares”, “O Jardim de Caminhos Que Se Bifurcam”, “Funes, o Memorioso” e “A Biblioteca de Babel”. Esses dois últimos, de certa forma, assemelham-se por tratar – com dose de pessimismo – de duas espécies de coleções grandiosas: a memória e o conhecimento.

MÚSICA

Coleção Chico Buarque (Abril Coleções, 2010)A obra e a carreira do cantor e compositor Chico Buarque são revisitadas em 20 volumes que trazem 240 músicas. A coleção é acompanhada de livretos com notas de bastidores e histórias que contextualizam a produção dos discos. Vale lembrar que a coletânea conta também com álbuns raros, como Calabar, trilha sonora da peça homônima, que foi censurada durante a ditadura.

Não Contem com o Fim do Livro, de Jean-Claude Carrière e Umberto Eco (Record, 2010)Quando se discute sobre o fim do livro de papel, geral-mente se esquece de que ele é uma experiência para os sentidos. Muitos colecionadores falam do prazer de folhear, ou do perfume das páginas, ou ainda da soma dessas sensações ao sentimento de posse de um exemplar único ou raro em algum aspecto. Partindo dessa premissa, os bibliófilos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière discu-tem a perenidade desse suporte. O livro dá voltas sobre temas que vão desde a censura a escritores, passando pela preservação da memória, até a pergunta: “O que fazer da sua biblioteca depois de sua morte?”.

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Coletânea de dicasSugestões de filme, livros, site e música para colecionar na memória.

Por André Seiti | Fotos divulgação

balaio

CINEMA

Uma Vida Iluminada, de Liev Schreiber (Warner Home Video, 2005)Jonathan é um ávido colecionador de objetos que reme-tem à história de sua família: fotos, medalhas, punhados de terra, dentaduras... Mas há uma história em particular que não possui objetos suficientes para ser contada: a de seu avô. Empenhado em descobrir mais sobre ele, o personagem parte para a Ucrânia em busca de uma mulher que, supostamente, teria salvado o ancião da perseguição nazista durante a Segunda Guerra.

INTERNET

Arquivo World Press Photo (archive.worldpressphoto.org)O mais famoso prêmio de fotojornalismo do mundo disponibilizou recentemente na internet seu acervo com imagens contempladas nas diversas categorias do concurso. São mais de 10 mil fotos laureadas ao longo de 54 anos, entre elas as de nove brasileiros: André Vieira, Carlos Humberto TDC, Eraldo Peres, J. F. Diório, João Kehl, Luiz Vasconcelos, Marcos Prado, Orlando Brito e Sebastião Salgado.

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Acervo feito de genteO Museu da Pessoa coleciona histórias para contar a história.

Por Renata Penzani | Fotos André Seiti

Colecionar selos, moedas, cartas, tampinhas de garrafa. A necessidade de preservar coisas significativas é natural do ser humano. Mas nem só de numismática, filatelia e outros quiprocós semânticos é feito o cole-cionismo. Esses que são apenas nomes complicados para denominar uma mesma vontade não conseguem suprir uma necessidade mais incisiva: a construção de uma memória social. Foi dessa preocupação que surgiu, em 1991, o Museu da Pessoa – acervo virtual de narrativas – para pontuar que a vida é passageira e que é preciso reter se não a história inteira ao menos alguns pedaços importantes que a compõem.

Desde a Idade Média, quando surgiram os primeiros museus, o homem constrói sua identidade com base nas lembranças. Mais do que áreas de preservação, os museus são testemunha do que aconteceu e ancora-douro do que irá ocorrer. Nesse sentido, o que pode ser mais decisivo para a construção da grande história do que as pequenas narrativas? Histórias simples, como a de Ana Maria Pupo, de 67 anos, que tinha uma galinha chamada Miss Brasil, ou a de Mestre Alagoinha [Geraldo Prado, pesquisador do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia], que construiu a duras penas uma das maiores bibliotecas rurais do Brasil, em Paiaiá, povoado pertencente ao município de Nova Soure, no sertão da Bahia. Criada em 2004, ela abriga mais de 50 mil volumes. “Não há nada mais precioso para entender o mundo que ouvir as pessoas. É muito simples: toda história de vida é importante, desde a do porteiro até a do presidente da República”, observa a historiadora Karen Worcman, fundadora do museu e maior entusiasta de sua metodologia. Ela define a instituição em palavras simples: “Uma metáfora do mundo narrada pelas próprias pessoas”. É sob a complexa responsabilidade de resguardar anônimas narrativas sociais, no entanto, que funciona o museu; hoje, ele preserva um acervo de aproximadamente 12 mil depoimentos, 72 mil fotos e documentos e 168 projetos nas áreas de educação, comunicação, memória institucional e desenvolvimento social.

Apesar de seus arquivos serem virtuais, o Museu da Pessoa tem sede

em São Paulo. A metodologia do projeto inspirou outros países, e hoje há mais três nú-

cleos: Portugal, Canadá e Estados Unidos. O do Brasil foi o primeiro. É de um sobrado modesto da

Vila Madalena que saem certezas de que a emara-nhada teia da memória social está sendo bordada a pontos pequenos. Ao entrar lá, podemos sentir o peso da memória. Nos quadros, nas fotos, nos livros e nos documentos do acervo estão fatos que os jornais nunca noticiaram. As paredes, cheias de lembranças, poderiam contar sozinhas fragmentos da trajetória do país. O museu é aberto a todo mundo, e seu estúdio de gravação fica disponível para qualquer pessoa que queira contar algo – basta agendar um horário. Sabrina Campos, de 22 anos, que cuida da limpeza do museu, faz questão de frisar, num sorriso de orelha a orelha: “Quem sabe um dia eu também conto a minha?”.

deadline

O museu prima pelo escorregadio da vida, por aqui-lo que as lembranças têm de intangível. Afinal, o que leva as pessoas a querer contar suas histórias? Para Gustavo Ribeiro Sanchez, responsável pelo acervo há três anos e meio, um dos motivos é a “efemeridade da existência humana, a agonia de sermos passageiros”. Desejo de se eternizar, urgência de reflexão sobre o passado, nostalgia: são incontáveis os porquês e, no Museu da Pessoa, essas interrogações são reduzidas a uma certeza: todos eles são importantes.

É impossível ignorar, porém, que a história seja uma ação que se dá no presente. Por isso, os documentos, as fotos, os depoimentos em vídeo e os textos trans-critos do museu não são – ainda bem! – capazes de abarcar a memória inteira. Pedaços dela ficam elípti-cos num olhar cabisbaixo, num estalar de dedos, em toda uma conotação corporal que fala mais do que a oralidade. “Memória não é lembrar tudo, ela é muito mais esquecimento”, opina Sanchez.

O escritor Rubem Braga dizia que “os jornais noticiam tudo, mas esquecem algo fundamental que aconte-ce todos os dias: a vida”. Talvez nem todo mundo dê valor a isso, mas é desse material humano que com-põe a narrativa única da qual todos fazemos parte que é feito o museu. Histórias comuns de gente anô-nima, que não precisa de nenhuma notoriedade para integrar a memória social.

É de um sobrado modesto da Vila Madalena que saem certezas de que a emaranhada teia da memória social está sendo bordada a pontos pequenos.

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O que lembro tenho

“Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo.” Assim se de-fine Irineo Funes, personagem do conto “Funes, o Memorioso”, de Jorge Luis Borges, que narra a agonia de um homem que se lembra de absolutamente tudo. Se o esquecimento é uma defesa para que não enlou-queçamos com nossas próprias memórias, não é por esse receio que dona Neuza, depoente do museu há mais de dez anos, deixa de relembrar suas histórias.

Neuza Guerreiro de Carvalho – “Neuza-com-zê-guer-reiro-de-carvalho. Gosto que escrevam completinho. Meu nome é minha identidade” – tem 80 anos e conta coisas de sua vida ao museu desde 1997. Ela começou por causa de um presente de família: um diário do avô de seu marido, datado de 1872, fez surgir a vontade de escrever a história da família. “Fui escrevendo, es-crevendo, mas nunca me preocupei com o que aquilo iria virar. Para mim, era só um registro que queria dei-xar para os meus filhos.”

De 1997 pra cá, dona Neuza acumulou mais de 15 pas-tas – “dessas grossonas, sabe?”, ela faz questão de frisar – só sobre sua vida, sem contar a dos parentes todos, entre avós, irmãos, primos e agregados: registros de uma vida inteira passada a limpo. No Museu da Pessoa, ela tem dezenas de textos transcritos, fotos, documen-tos e um vídeo unitário sobre sua vida com duração de quatro horas. Além de banco de dados da família, esse material se transformou em documento de pesquisa histórica: “Acabei me tornando um repositório de regis-tros. Por eles, dá para perceber quanto evoluiu ou in-voluiu a sociedade”. Ela conta com os olhos brilhando de satisfação que os netos, quando arrumam nova namorada, vão fuçar as pastas para impressionar a garota. “Sinto que eles têm orgulho.” O sen-timento é perfeitamente justificável, afinal, quantas coisas durarão para além do nosso esquecimento?

Dona Neuza afirma que não é saudosista – “As pesso-as dizem que antes era melhor. Era nada!” – e quando questionada sobre o porquê de todo esse resgate ela responde: “A identidade da gente fica reparada. É uma maneira de eu me sentir enraizada”. E quando sugiro que utilize as plataformas digitais para armazenar suas histórias e livrar as tais 15 pastas do peso de uma vida inteira ela é incisiva: “Prefiro manusear”.

Pode ser por necessidade, vontade, orgulho e – por que não? – um pouquinho de medo que o homem tenha criado diferentes maneiras de guardar suas lembranças. Não importa se representadas por tam-pinhas de garrafa amontoadas numa caixa de sapatos ou por uma imensa indumentária de guerra preser-vada em um museu, o homem é feito de tudo aquilo que tem para lembrar.

Seja como for, o desejo de reter partes significativas de um período histórico ou contexto social, ao me-nos entre as paredes do Museu da Pessoa, continua-rá resguardado nas sagas dos Josés, das Marias e dos Raimundos de um Brasil que acontece todos os dias. Não é por acaso que Riobaldo Tartarana, persona-gem de Guimarães Rosa, atordoado com a urgência de possuir sua própria história, diz, em um trecho de Grande Sertão: Veredas: “O que lembro, tenho”. Essa fra-se deixa escapar a ideia de que lembrança guardada é posse e, além disso, não é melancolia de um pas-sado encerrado, mas uma memória contínua, uma vida que se recobra na lembrança e, por isso mesmo, é viva. Cada fato que compõe a história é um mundo que revela outros mundos. Esse é o movimento que faz o universo girar. Como diria dona Neuza, “a história é uma coisa progressiva; enquanto eu não morrer, ela vai continuar a ser escrita”.

Renata Penzani, 22 anos, é estudante do 3º ano do curso de jornalismo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru. Mantém o blog Furtacores em furtacores.tumblr.com.Dona Neuza conta suas histórias ao museu há 13 anos

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A paixão pelos livrosCrime e castigo na trajetória de uma coleção.

Por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça | Ilustração Renan Magalhães

Nenhuma manhã mais cinza do que esta sobre o lago de Lucerna. Estou no deque de um café e escrevo neste diário de capa florida que acabo de comprar. Pena. Em poucos minutos toda a beleza dos Alpes se apagará de meus olhos. Acabei de ingerir a última cápsula. Mesmo assim, aspirando o ar dessas montanhas cujos topos são páginas em branco gigantescas, estou em paz com minha consciência e meu sangue.

Mal posso crer que há dois dias estava em São Paulo, fugindo para o Aeroporto Internacional de Guarulhos. Mal posso crer que acertei contas com um senhor chamado Jayme de León. Agora todos sabem que, por trás da máscara de bibliófilo e benemérito, escondia-se um homem vil, ambicioso e capaz de matar para atingir seu objetivo: formar a maior coleção particular de livros raros da América Latina. Agora que minha hora se aproxima, quero registrar neste diário a verdade de como tudo aconteceu.

1.

Fui uma menina cercada por uma floresta de livros. Olhando para o alto, estantes eram montanhas de papel que ameaçavam degelar a qualquer instante. Quase não via minha mãe. Ela vivia trancada no quarto de sua melancolia. Meu jovem pai, Giorgos Xenakis, era um amante dos livros e um dos maiores colecionadores do Brasil. Depois do divórcio de meus pais, nossa biblioteca encheu-se de luz. Filha única, meus dias eram povoados por histórias fantásticas e personagens enigmáticos. Eu e papai vivíamos solitários num mundo à parte. Organizávamos os livros interminavelmente, numa tranquila rotina quebrada apenas pela visita dos compradores. Era uma legião. Eu os odiava.

O senhor Jayme de León era um dos mais assíduos fre-quentadores de nossa casa no Jardim Europa. Meu pai o admirava. Não raras vezes eu os flagrava conversando sobre livros e mulheres. Recordo-me bem de sua figu-ra esguia, seus olhos azul-Van Gogh devorando cada centímetro de meu corpo em flor. Como tudo aconte-ceu? Eu tinha apenas 13 anos. Numa noite de maio de 1990, o senhor de León veio à nossa mansão para ten-tar convencer papai – mais uma vez – a vender-lhe os 12 volumes de As Mil e Uma Noites, na célebre tradução de Antoine Galland, publicados entre 1704 e 1717.

Eu estava em meu quarto no andar superior. Ouvi vo-zes ríspidas e tive medo. De repente, silêncio. Chamei por meu pai. Não houve resposta. Então o encontrei caído com a cabeça arrebentada sobre uma poça de sangue. Na porta que dava para a rua, vi o olhar atôni-to que De León me lançou antes de fugir. Numa das estantes, um vazio. A coleção de Galland havia sido

roubada. Mas o que o criminoso não sabia era que Giorgos havia esquecido em meu quarto, quan-

do veio ler para mim na cama, o último tomo de As Mil e Uma Noites. O mesmo que aper-

tei contra meu peito quando ouvi os gritos de horror.

ficção

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Noites, e acariciou as lombadas, balançando a cabeça. Comentou que, por faltar o último volume, aquilo lhe custara uma bagatela. Quando seus olhos se voltaram para mim, empalideceram ao ver surgir, em minha mão trêmula, o último volume perdido de sua coleção. Então lhe revelei quem eu era. Sua face crispou.

E a última coisa de que me lembro, antes de entrar na-quele avião, são os sons horríveis de seus ossos sendo es-magados por uma avalanche de centenas de volumes.

* * *

Redijo estas linhas porque sei que ninguém acredita-rá em minha história. Os jornais brasileiros mataram minha reputação, dizendo que eu seria a assassina de meu próprio pai, e que o crime teria sido testemunha-do pelo livreiro Jayme de León há exatos 20 anos. Isso é completamente inverídico. Eu, Sonya Xenakis, ama-va meu pai.

Rodrigo Garcia Lopes é tradutor e autor de Nômada (Lamparina, 2004) e Visibilia (Travessa dos Editores, 2004), e mais 11 títulos.

Maurício Arruda Mendonça é poeta e dramaturgo.

A dor e o choque da perda de meu pai provocaram lacunas em mi-

nha memória. A família me enviou para um colégio interno na Suíça. Mais tarde, já mulher

feita, fui para o Rio de Janeiro e me especializei em restauração de livros na Biblioteca Nacional.

Três anos depois, quando já era uma profissional destacada em minha área, recebi um convite irre-cusável: trabalhar na restauração de um importante arquivo particular em São Paulo. O Instituto ***, um dos acervos particulares mais fascinantes do país, era um caixote cinza na Rua Monte Alegre, próximo à casa onde morou o poeta Haroldo de Campos. Por fora, face austera. Por dentro, o luxo de um palácio de-monstrava a riqueza de seu proprietário. O salário era bom. Nossa equipe era formada por seis mulheres.

Ocupávamos mesas compridas e trabalhávamos com jalecos e luvas brancas. No começo, eu me ex-tasiei com as primeiras edições que fariam a alegria de qualquer alfarrabista. A grande biblioteca era com-posta de 20 mil títulos. Edições raras de Hans Staden, Jean de Léry, Machado de Assis e Guimarães Rosa e incontáveis manuscritos. Nas horas do café, nós nos perguntávamos quando, afinal, o rico colecionador apareceria para avaliar nosso trabalho.

Certa tarde de inverno, eu preparava os livros do sé-culo XVII que iriam seguir para um leilão da Sotheby’s quando uma colega chamou minha atenção para uma descoberta que fizera ao resgatar os livros de uma es-tante que havia caído. Senti uma fria onda de arrepios quando meus olhos depararam com a familiar lom-bada azul puída de As Mil e Uma Noites, de Galland.

Uma coleção que valeria, segundo minha colega, 1 milhão de dólares. Valeria, não fosse por um detalhe, ela disse: a ausência do último volume. Abri um dos livros e corri meus dedos à página 13, onde tateei, no canto inferior esquerdo, as letras G e X em alto-relevo. Senti uma forte náusea. Foi assim que me vi dentro da biblioteca roubada de Jayme de León. Foi assim que deparei com a coleção que havia sido arrancada de meu pai, na última página de sua vida.

2.

Fomos surpreendidas num final de tarde com a che-gada de De León ao Instituto ***. Os leilões europeus haviam sido lucrativos, sobretudo a venda dos manus-critos de Stephan Zweig conseguidos junto à coleção do uruguaio Dubuffet. De León queria cumprimentar sua nova equipe. Logo no primeiro encontro seus olhos azuis folhearam meu rosto, meus cabelos cau-telosamente tingidos de negro. Convidou a todas para uma ceia. Uma vez no restaurante, evitei seus olhos colocando meus óculos de grau. Em nenhum mo-mento ele suspeitou de mim. Eu já havia mudado meu sobrenome legalmente para Brand, da parte de minha mãe suíça. Pouco tempo depois, ele me convidou para jantar num restaurante grego. Aos 60 anos, ainda era um homem atraente. Limitei ao máximo informações sobre minha vida particular e meu passado. Durante nossas conversas, tal qual uma Sherazade, eu deleitava o colecionador com minhas histórias e conhecimen-tos sobre livros antigos e o mercado livreiro, e também com minha facilidade com línguas. Ele passou a me visitar todas as tardes no Instituto ***. No 11º encontro, confessou que estava louco por mim.

3.

Foi então que iniciei a segunda parte de meu plano. Apagar da existência o senhor Jayme de León, página por página.

Não contarei como, anonimamente, destruí seu casa-mento em poucos meses, enviando fotos dele com to-das as garotas do Instituto ***, inclusive eu mesma; não contarei como, em sua embriaguez, gravei a confissão de seus muitos crimes e a enviei à polícia. Não contarei como ele teve de se desfazer de seus livros mais valio-sos para pagar a divisão dos bens, as dívidas e os advo-gados. Apenas contarei que, numa noite, eu o levei ao mais escuro dos corredores de sua biblioteca.

Foi fácil. Atraí sua cobiça contando que ele possuía um último tesouro que poderia salvar o Instituto ***. Sua salvação estava bem ali, ao alcance de suas mãos. Foi assim que o esperei ficar exatamente onde eu queria,

diante da gigantesca muralha de livros no fim do corredor. De León, agora pálida sombra decaden-

te, perguntou-me o motivo de tanto mistério. Eu me virei e apontei para uma antiga coleção.

Ele deu um sorriso, reconhecendo os volumes de As Mil e Uma

Foi fácil. Atraí sua cobiça contando que ele possuía um último tesouro que poderia salvar o Instituto ***. Foi assim que o esperei ficar exatamente onde eu queria, diante da gigantesca muralha de livros no fim do corredor.

Participe com suas ideias 3534 Continuum Itaú Cultural

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fixada em cartolina, cuja etique-ta contém informações para estudos botânicos] podem nos indicar o funciona-mento do mundo, resultando em novos fár-macos ou nos levando a entender a geografia das plantas – e, com ela, as possibilidades para a aclimatação de vegetais e, logo, a agricultura.

Nem sempre foi assim. Antes, muito antes, colecionar animais e plantas, explica Sanjad, estava relacionado a poder e status. “Quanto mais diferente e exótica pudesse ser a coleção, mais valor ela teria.” Viajantes e desbravadores de novas terras, então, ocupavam-se de trazer aos pés de seus reis e rainhas os mais encan-tadores rabos de sereia, os mais encaracolados chifres de unicórnio. Sábios, por sua vez, preenchiam com-pêndios com seres como a mandrágora, planta cuja raiz teria feições humanas e que, contam os relatos, chorava quando arrancada do solo.

Sereias e unicórnios não foram extintos da nature-za. O próprio homem, ao longo de sua existência e à custa de suas coleções, deu conta de dar senti-do ao que a imaginação tinha como inexplicável: o canto que Cristóvão Colombo, ao singrar os mares,

reportagem

Um tesouro naturalColeções de ciência, ao longo da história, ajudam o homem a entender a natureza e a preservar o passado.

Por Mariana Lacerda | Ilustração Cynthia Gyuru

Vitor Osmar Becker nasceu em Brusque, Santa Catarina, há 66 anos. Primogênito de 17 irmãos em uma famí-lia de pequenos agricultores, cursou o ensino fundamental em sua terra natal, onde também concluiu o cur-so de contabilidade. Durante os estudos, aproveitava o tempo que sobrava para ajudar seus pais na lavoura. Mais tarde, trabalhou como balconista e entregador de compras da pequena mercearia que a família havia adquirido na periferia de Brusque para, conta Becker ao se lembrar do pai, “facilitar os estudos das crianças”.

Hoje, Becker é pesquisador do Departamento de Zoologia da UnB, do Museu Nacional de História Natural em Washington, DC (Smithsonian Institution) e do Museu Carnegie, em Pittsburgh, Pensilvânia, nos Estados Unidos. Ao longo dos anos de trabalho, organizou uma das melhores coleções do mundo de mariposas e borboletas (lepidópteros) noturnas da região da América Tropical e uma das mais importantes bibliotecas sobre esses espécimes. A coleção é constituída por aproximadamente 250 mil exemplares, representando 25 mil espécies. A biblioteca dispõe de cerca de 5 mil títulos sobre lepidópteros, além de centenas de outros sobre áreas da biologia. Ao observar, coletar e analisar mariposas, Becker escreveu mais de cem trabalhos científicos sobre elas. A maior parte da sua produção foi publicada em revistas internacionais.

Coleções de animais, plantas, artefatos, sons, línguas e dialetos são fragmentos do mundo que, guardados em ambientes organizados, devem estar prontos para responder a perguntas sobre seu funcionamento.

“Para poder conhecer a vida, o homem começou a reunir em um espaço controlado fragmentos dela. Uma coleção de ciência é uma tentativa de pôr em ordem o caos que é característico do mundo natu-ral”, diz o pesquisador Nelson Sanjad, coordenador de comunicação e extensão do Museu Paraense Emílio Goeldi. Localizada em Belém, a instituição é guardiã de 4,5 milhões de itens tombados, entre os acervos zoológico, botânico e geológico – além, claro, dos registros etnológicos e arqueológicos, “esses últimos sempre de caráter único e insubstituível”, diz Sanjad.

O funcionamento do mundo

A história das ciências e das ideias encontra entre os séculos XVII e XVIII uma nova metodologia: a da ob-servação e, consequentemente, da comparação e da classificação. Vem desse período – o Renascimento – a noção de que fragmentos da natureza armazenados em vidros, gavetas e exsicatas [amostras de planta seca

Coleções de animais, plantas, artefatos, sons, línguas e dia-letos são fragmentos do mundo que, guardados em am-bientes organizados, devem estar prontos para responder a perguntas sobre seu funcionamento.

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É nessa confusão de quereres, entre moda e ciência, que se vê surgir, no século XVII, o verbete “Cabinet d´Histoire Naturelle”, escrito por Diderot em sua Enciclopédie – um dos documentos mais repre-sentativos do pensamento no período. “O que sig-nifica uma coleção de seres naturais sem o mérito da ordem? A esses naturalistas que não têm gosto nem gênio, eu vos direi, devolveis todas as suas conchas ao mar, restituais à terra suas plantas e sementes [...]. Um gabinete de história natural foi feito para instruir; [...] de-vemos encontrar detalhadamente e em ordem aquilo que o universo apresenta em bloco”, defendeu Diderot.

Agora, sim, a natureza podia ser confinada pelo ho-mem, e então se tornava possível observá-la siste-maticamente. “E, na riqueza um pouco confusa da representação, [o mundo] pode ser analisado, reco-nhecido por todos e receber, assim, um nome que cada qual poderá entender”, escreveu Michel Foucault em seu livro As Palavras e as Coisas (Martins Fontes, 2000) sobre a criação de Lineu, a taxonomia, ciência que descreve, identifica e classifica os organismos.

Testemunho sobre o passado

Hoje, uma coleção de ciência é mais do que uma tentativa de pôr em ordem e entender aquilo que pertence ao caos. Ela pode representar também um testemunho sobre o passado ao guardar espécies de animais e plantas que não existem mais e ao preservar artefatos de etnias e civilizações que estão desapare-cendo ou já se extinguiram.

Os índios caiapós, por exemplo, recorreram ao Museu Emílio Goeldi em busca de seus antigos artefatos que não são mais produzidos. O objetivo era recuperar as feições daquilo que, ao longo dos anos, ficou perdido.

Becker viajou boa parte do Brasil em busca de bor-boletas e mariposas. Ao fazê-lo, pôde testemunhar a redução, de mais a mais, de nossas matas. “De pouco adianta guardar amostras de animais e plantas, empa-lhados ou secos, se nada for feito para preservá-los, vi-vos, na natureza”, observa. Foi assim que, em 1998, ele e sua esposa, Clemira, resolveram iniciar sua mais nova coleção: um trecho de Mata Atlântica, com mais de mil hectares de área, localizado ao sul da Bahia. Comprado com todas as economias do casal, o local constitui uma Reserva Particular do Patrimônio Natural.

É lá que vivem hoje: um lugar que recebeu o nome de Instituto Uiraçu. As portas estão abertas para receber pesquisadores, que podem contar com o apoio de seis laboratórios de estudos, uma biblioteca e uma incrível coleção de mariposas e borboletas. Ela está disponível para quem desejar entender o mundo – organizado em gavetas e caixinhas nada secretas, mas também livres na mata ao redor.

relatou ser o de uma sereia era, na verdade, o rugir de um peixe-boi.

Unicórnios nunca existiram, mas sabe-se que o dente esquerdo de um macho de ba-

leia narval cresce em formato de espiral.

A partir do século XVII, nossos olhos começaram a ver o que corações e mentes resistiram por séculos a crer. O mundo, quando posto em pequenos pedaços lado a lado, não é feito de magia. Nosso olhar em re-lação ao universo não mudou de um dia para o outro, claro. Tampouco resultou, necessariamente, de um acréscimo de conhecimentos.

Aprendemos a perceber o mundo por causa de uma ruptura (que não se deu de repente) entre o que se vê, o que os outros viam ou contavam (como Colombo que acreditou ter visto uma sereia ao cruzar o Atlântico) e aquilo que se podia imaginar. Cada vez mais, os relatos sobre as coisas da natureza passaram a se aproximar do sentido da visão. As coleções de ci-ência, com seus milhares de seres postos lado a lado, contribuíram enormemente para isso.

Notícias de além-mar

Esse percurso esteve vinculado aos debates que acon-teciam dentro da própria história natural, mas contava ainda com um fato importante: o mundo já não era o mesmo, ganhara novos contornos e dimensões.

E era do outro lado do mar que chegava uma quan-tidade razoável de coisas e de notícias. Elas vinham das terras recém-alcançadas pelos navegadores euro-peus. Terras que, aos olhos dos forasteiros, se derrama-vam em flora exuberante, povo gentil e fauna diversa. Entender o mundo novo e o que de bom ele podia trazer em medicamentos, alimentos, ouro e prata se tornou tarefa imprescindível.

Bichos e plantas passaram a fazer parte do acervo de colecionadores ricos, fascinados pelas novidades. Nos textos dos primeiros cronistas que escreveram sobre o Brasil, por exemplo, é comum a menção do envio de um ou outro exemplar de bichinho, pena ou planta ao Velho Mundo. Jean de Léry, missionário francês que aqui permaneceu entre 1556 e 1558, menciona um sagui, em seu escrito intitulado Viagem à Terra do Brasil (Edusp, 1972), como “algum desses animaizinhos” que já se veem na Europa.

Por outro lado, naturalistas tentaram pôr ordem no que viam e pegavam nas mãos. Caixas e mais caixas desembarcavam na Europa para que seu conteúdo se tornasse objeto de estudo. Nesse período surgiu, por assim dizer, o “viajante de gabinete”, aquele que co-nheceu terras e mares apenas colecionando os relatos e os objetos que chegavam das expedições e, a partir deles, formulou teorias de ciência.

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reportagem

De coletores a colecionadoresConheça homens movidos pelo sentimento de preservação da memória de quem somos e do que apreciamos.

Por Micheliny Verunschk | Ilustração Guilherme Kramer

Tudo começou há cerca de 20 mil anos. Coletar para nossos antepassados mais distantes, os primeiros homi-nídeos, era sinônimo de sobreviver, pois, ao recolher sementes, moluscos, raízes e tudo o que de comestível aparecesse pela frente, os grupos nômades subsistiam, garantiam que a espécie se multiplicasse e, ao modo bíblico, povoasse o mundo. Também chamados de coletores-caçadores, seus abrigos eram fruto do trabalho de “colher” o que a natureza disponibilizava. Mal sabiam eles, aqueles avós arqueológicos, que do seu ato surgiria outro, obsessivo, dinâmico e extremamente seletivo, o ato de colecionar.

Todo museu é, de fato, um monumento erigido à cata compulsiva de objetos. Há quem colecione brinque-dos, fotografias, pedaços de vela. Há quem colecione canetas e cadernetas de viagem. Há quem colecione livros, histórias, imagens e palavras. E são esses colecionadores que nos interessam no momento. Esse re-corte, a seu modo, não deixa de ser uma espécie de coleção, pois colecionar significa também categorizar, emoldurar numa escolha pessoal as coisas que nem sempre à primeira vista se alinham.

O ato de colecionar do escritor paulistano Mário de Andrade era um exemplo de como a atividade é mul-tifacetada. Revistas, jornais, manuscritos, obras de arte, gravuras, recortes e fotografias, entre outras coisas, se configuraram num acervo afetivo que tanto fala da sensibilidade estética do escritor quanto da atuação como protagonista no cenário cultural de sua época. Os múltiplos objetos que Mário colecionou em vida parecem gritar o sentimento de infinitude que ele anunciou em poema, além de, quem sabe, traduzir a ambição de multiplicidade de todo colecionador: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta...”. [Leia mais sobre a coleção formada pelo escritor no artigo “Na mala do turista aprendiz”, publicado no site.]

certamente lhe era mais excitante do que ver o livro nas estantes de sua casa-biblioteca. Ainda assim, não ter determinado livro não era coisa que lhe tirasse o sono, de modo que essa obsessão se resume no que ele classificava de ‘loucura mansa’ ”.

Ao colecionismo se atrela quase que automaticamen-te a criação de um método. E cada colecionador tem o seu: colecionadores de livros geralmente fazem da leitura de catálogos de leilões e de livreiros uma obri-gação e muitos têm acordos com bookdealers para que estes procurem os livros que lhes interessam. Cristina Antunes sinaliza que esse não era o caso de Mindlin: “Ele mesmo procurava pelos livros que queria adquirir. Mas, pelo fato de ser mundialmente conheci-do como colecionador, recebia informações e ofertas de livreiros, outros colecionadores ou proprietários de obras raras e especiais oriundos de todos os países. Mindlin costumava dizer que ‘você procura o livro e o livro procura você’ ”, conta ela.

Homem de livros

O bibliófilo brasileiro José Mindlin, falecido no ano passado, começou a colecionar palavras ainda criança: aos 13 anos adquiriu uma edição rara do livro Discours sur L’Histoire Universelle, de Jacques-Bénigne Bossuet, um dos principais teóricos do absolutismo francês. Ao final da vida, Mindlin havia reunido um fantástico acervo de cerca de 40 mil obras, incluindo livros, ma-nuscritos, relatos e iconografia, entre outros.

Segundo Cristina Antunes, curadora da Biblioteca José e Guita Mindlin, em São Paulo, desde 1980, para o bibliófilo colecionar livros era uma paixão que de-corria do prazer e do amor à leitura. Ela relembra que “Mindlin costumava classificar a biblioteca de indisciplinada, uma vez que muitos dos livros chegaram até lá em decorrência do gosto literário de seu dono. O proces-so da busca pelo livro

Ao colecionismo se atrela a criação de um método. Cole-cionadores de livros fazem da leitura de catálogos de leilões uma obrigação, e bookdealers procuram os livros que lhes interessam.

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Colecionando o abstrato

Quem pensa que colecionar é matéria apenas para quem lida com o concreto deve se lembrar de que escritores colecionam palavras, imagens, histórias. É certo que para guardá-las, muitas vezes, colecionam cadernos, cadernetas, agendas. Mas nem sempre. Escritores colecionam outros escritores e escrever um poema ou um romance significa mergulhar de cabeça numa coleção abstrata feita de referências e escolhas adquiridas ao longo de uma vida.

O poeta, ensaísta e editor gaúcho, radicado em São Paulo, André Dick nunca colecionou objetos no senti-do estrito do termo. Autor dos livros Grafias (Instituto Estadual do Livro e Corag, 2002) e Papéis de Parede (7Letras/Funalfa Edições, 2004), ele pondera: “Nunca cheguei a exatamente colecionar ou fazer listas de imagens – no entanto, de algum modo, é uma co-leção delas que acaba sustentando qualquer poesia. Creio que, de algum modo, todos os poemas sejam fragmentos de um grande poema”.

O método de escrita do poeta, no entanto, revela or-ganização, seleção e, por que não, persistência de um franco colecionador: “Costumo escrever em cader-

nos. Por meio de diversos fragmentos e rascunhos acabo concentrando material para selecionar

o que seria interessante para algum escrito. Desse modo, os poemas ficam um tanto

híbridos: não se sabe onde cada um começa ou termina”.

Dick aproxima ainda o olhar colecionista do escritor ao do editor: “O escritor procura selecionar uma tradi-ção, ou seja busca autores que possam lhe transmitir conhecimento. Com o editor, o caminho é parecido: escolher um texto consiste justamente em abrir ca-minhos de percepção não apenas para si mas para o leitor, que está interessado em descobrir autores e escolhas. Assim, o editor pode ser considerado um colecionador de histórias. E, nesse sentido, ele acaba sendo um criador”, conclui.

Nossos antepassados certamente nunca imaginariam que ponto de refinamento a coleta de objetos alcan-çaria. No entanto, creio que aquilo que os movia e aquilo que nos move seja talvez a mesmíssima coisa: um sentimento de preservação, seja da memória das coisas e dos lugares, seja de nós mesmos, da nossa vida, de quem somos e do que apreciamos.

Objeto não sacralizado

O poeta paulistano Haroldo de Campos coleciona-va livros, bengalas e gibis do personagem Asterix. Quem conta é a pesquisadora Gênese Andrade, responsável pelo Centro de Referência Haroldo de Campos, situado na Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São Paulo: “Haroldo era acima de tudo um leitor. Então eu diria que era um leitor-colecionador. Ocorre que não reuniu livros para mantê-los como objetos into-cáveis. Ele adquiria aqueles que lhe interessavam para suas pesquisas e reflexões. Mesmo livros ra-ros, primeiras edições e obras artesanais eram tratados como material de trabalho, e car-regavam suas anotações, demonstrando ter sido manuseados como os livros mais corriqueiros”.

A biblioteca e o acervo de Campos residem na mes-ma instituição e são coordenados por Rahile Escaleira. A biblioteca caracteriza-se pela variedade e pelas mar-cas de leitura que os documentos trazem. São cerca de 20 mil volumes – a maioria deles lidos –, compos-tos de livros, periódicos, separatas, catálogos e guias, entre outros, além de coleções completas, caso de Signos, Debates e Estudos, todas da Editora Perspectiva, da qual o poeta foi colaborador.

Gênese demonstra que o valor de uma coleção ex-trapola o simples objeto físico que a constitui: “Há um sabor especial em consultar os exemplares que per-tenceram a Haroldo, ver o que destacou, como reagiu perante algumas obras. Suas marcas em papéis en-contrados dentro dessas obras constituem marcas do tempo e do espaço em que ocorreu a leitura ou em que a obra foi adquirida”.

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Várias pessoas, a mesma maniaColecionar sozinho ou em grupo? Algumas coleções têm em comum a tendência de gerar clubes e associações de colecionadores.

Por Fernanda Castello Branco | Fotos André Seiti

O homem coleciona desde a pré-história, quando começou a acumular objetos. O que era feito de forma solitária, por uma necessidade de sobrevivência, virou um hobby. E esse hobby pode unir em clubes ou associações pessoas com a mesma mania de juntar determinados objetos.

Há quem prefira nem chamar de clube os grupos mais informais aos quais pertence. “Somos apenas pessoas que têm a mesma afinidade por coleções”, explica Raquel Belchior, moradora de São Paulo, dona de 20 mil postais publicitários.

Ela integra um grupo de colecionadores de postais, que costumava se reunir a cada três meses, mas atu-almente se vê apenas uma vez por ano. “Participam de 30 a 35 pessoas, inclusive de outros estados”, conta Raquel, que organiza os eventos. “No começo, realizávamos no Centro Cultural São Paulo, mas depois fiz contato com umas lanchonetes. O mais legal é que é bem provável que se veja um garotinho de 8 anos trocando postais com um senhor de 70”, completa.

Para a psicologia, essa cena é perfeitamente entendida. “A mania de colecionar é normal, comum a deter-minadas fases de desenvolvimento. Por exemplo: crianças colecionam papéis de carta, conchinhas, tam-pinhas de garrafa, álbuns de adesivos. Ao crescer, elas mudam os interesses: figurinhas, latinhas de cerveja de diferentes países, postais, caixinhas decoradas, selos. Esse é um comportamento que pode perdurar ou modificar-se de uma hora para outra, sem problemas”, analisa Marina Vasconcellos, psicóloga formada pela PUC/SP, com especialização em psicodrama terapêutico.

O problema não é a idade e sim saber diferenciar mania de colecionar

de colecionismo. “Colecionismo ou com-pulsão por armazenamento é um dos sinto-

mas do TOC (transtorno obsessivo compulsivo), em que a pessoa guarda coisas que, para os outros,

parecem absolutamente dispensáveis e sem qual-quer utilidade”, explica Marina.

Unidos em nome da arte

Uma forma de incentivar o surgimento de coleciona-dores é proposta pelo MAM, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. Na capital paulista, seus clu-bes de colecionadores começaram nos anos 1980. Atualmente, o museu tem clubes de gravura, fotogra-fia e design. Os sócios pagam uma anuidade que vai de 3 mil reais (fotografia e design) a 3.400 reais (gravu-ra) e recebem, a cada ano, cinco obras concebidas por artistas selecionados pelos curadores. Os trabalhos saem com tiragens de cem exemplares e passam a integrar o acervo do museu.

No total, são 275 sócios: 100 de fotografia, 100 de gra-vura e 75 de design, clube criado em 2010. Como o número de sócios é limitado a cem – e eles têm pre-ferência na hora de renovar sua participação anual –, desde 2009 há uma fila de espera com 160 nomes.

Sobre o perfil dos colecionadores, Fátima Pinheiro, coordenadora dos clubes, conta que é variado. “Geralmente, as pessoas têm um nível social e cul-tural elevado ou em ascensão, mas as profissões são diversas: médicos, advogados, fotógrafos, arquitetos, jornalistas, adidos culturais etc.”, conta. “Em relação à idade, temos sócios de 23 a 70 anos. E temos homens e mulheres na mesma proporção”, completa.

Cauê Alves, curador do clube de gravura, o mais anti-go, ressalta que a confiança dos sócios nos curadores é grande. “Eles não opinam sobre os artistas a ser escolhi-dos. Sugestões sempre chegam, mas eles confiam no museu”, explica. “Nossa função é fazer com que cada integrante do clube, tendo contato com o sistema, passe a se interessar por adquirir mais obras”, afirma.

reportagem

“Colecionismo ou compulsão por armazenamento é um dos sintomas do TOC, em que a pessoa guarda coisas que, para os outros, parecem absolutamente dispensáveis e sem qualquer utilidade.” (Marina Vasconcellos)

Encontro de colecionadores de postais publicitários, em São Paulo

Rachel Belchior, com alguns de seus 20 mil postais, e Lelê Makao, segurando uma de suas 700 Hello Kitty

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Mantendo a tradição

Enquanto uns preferem definir seus grupos como algo menos formal, há clubes de colecionadores que têm eleição de diretoria e estatuto. É o caso do Clube para Colecionadores de Veículos em Miniatura (CPCVM), criado em 2007 e com eleição de presidente a cada dois anos. “Temos 380 sócios e eles não pagam anuidade”, explica Alexandre Bruno, diretor financeiro da associa-ção. “O que fazemos é apurar os custos dos encontros para poder ratear entre os participantes”, completa.

Como esses encontros não acontecem sempre, os integrantes do CPCVM têm uma chance semanal de falar sobre suas coleções. Toda terça-feira, das 19h às 23h, acontece o Autoshow, no Anhembi, em São Paulo – evento para colecionadores de veículos em tamanho normal e em miniaturas. “Esse encontro é religioso”, conta Bruno. “Mantemos um jargão, que é ‘família CPCVM´. Somos como uma família, unida pelo hobby”, define.

Quando se fala em coleção, a filatelia é quase sinôni-mo. As coleções de selo ainda fazem nascer grupos tradicionais, organizados em sociedades e federações. A Sociedade Philatélica Paulista (SPP) existe desde 1919 e conta com 500 sócios, que pagam anuidade de 60 reais a 300 reais. Eles se reúnem em uma palestra mensal, no úl-timo sábado de cada mês, e também em dois leilões por mês. “Nos sábados em que não temos evento, nós nos reunimos para o nosso bate-papo filatélico”, diz Reinaldo Basile Júnior, diretor administrativo da entidade.

Com sede no Rio de Janeiro e foro administrativo em Brasília, a Federação Brasileira de Filatelia (Febraf ) existe desde 1976 e reúne 44 clubes e associações filatélicas de todo o país. “Não podemos ser con-siderados um agrupamento de clubes, mas, sim, representantes dos interesses dos clubes e asso-ciações filiados que, por sua vez, representam os interesses dos filatelistas associados a eles”, define Marcelo Studart, presi-dente da Federação.

A empresária Lelê Nakao se apaixonou pela Hello Kitty em 1996. Foi apelando para a internet que ela começou uma busca que durou três anos: um protetor de orelha com a carinha da personagem.

Wando e sua coleção “coletiva”

Provavelmente, a coleção mais popular do Brasil seja a de Wando. Ela começou, de certa forma, de uma ideia alheia: o cantor não faz parte de um grupo, mas é um grupo de fãs que alimenta o seu tão badalado acervo de calcinhas.

As 17 mil calcinhas começaram a ser coletadas depois do disco Tenda dos Prazeres, de 1990. “Uma calcinha parece uma tenda e, no lança-mento do disco, distribuí algumas peças com meu nome gravado. Era uma ideia apenas para

promover o disco. Comecei a brincar dizendo que trocava uma nova por uma usada e passei a receber um número muito grande”, relembra.

As calcinhas ficam guardadas no escritório do cantor e ele não se deixa fotografar com o acervo completo. “Pretendo fazer um show com todas elas no cenário. Se isso for mostrado agora, per-de o encanto e a curiosidade”, justifica.

No cenário, sim. Como grife, não. “Se eu fizesse isso, perderia a fantasia”, diz o cantor que, a cada show, distribui cerca de 15 peças. Mesmo sem o projeto de montar uma grife, ele arrisca definir quanto vale disputar uma peça íntima com seu nome: “A mulher que não tem uma calcinha do Wando provavelmente não passou pela vida.”

Protetor de orelha

Muito mais que facilitar a comunicação entre colecio-nadores, a internet gera clubes virtuais, causando uma mudança significativa na forma pela qual os colecio-nadores se agrupam a pessoas com o mesmo hobby.

O professor Alfredo Manhães, de Macaé (RJ), colecio-na brinquedos antigos nacionais e estrangeiros. E os grupos dos quais faz parte são todos virtuais. “Integro vários grupos on-line, fóruns e sites nacionais e estran-geiros”, diz. Apesar de participar deles, Alfredo também gosta de trocar informações com pessoas que não são associadas. “Nem todos usam a internet”, ressalta.

A rede é tão útil para conectar colecionadores que atrai até quem optou por manter sua coleção de forma mais solitária, sem pertencer a grupo ou clube. A empresária Lelê Nakao se apaixonou pela Hello Kitty em 1996 e, de lá para cá, acumulou cerca de 700 peças relacionadas à personagem. E foi apelando para a internet que ela começou uma busca que durou três anos.

“Levei todo esse tempo para encontrar um protetor de orelha com a carinha da Hello Kitty. Nesses três anos,

envolvi várias pessoas na busca e ficava horas na internet”, lembra Lelê, que acabou achando a tão sonhada peça em uma loja em Nova York, durante uma viagem.

Fã-clube sem sede

Se há um lugar que pode ser considerado a casa dos colecionadores, ele se chama fã-clube. E até mesmo o mais renomado fã-clube brasileiro, da banda mais fa-mosa de todos os tempos, tem recorrido à internet para continuar na ativa. O Revolution, que tem um cadastro de 9 mil fãs dos Beatles, além de um mailing geral com 60 mil nomes, usa o e-mail para conectar os fãs.

“Por causa das constantes viagens que faço para a Inglaterra, o Revolution não tem mais uma sede”, ex-plica Marco Antônio Mallagoli, que criou o grupo em 1979. “É a internet que facilita o contato com os sócios.”

Mallagoli usa o e-mail para avisar os sócios sobre shows de bandas cover dos Beatles que considera boas. “O fã-clube não cobra anuidade nem mensali-dade. O que fazemos é dar descontos nesses shows e eventos para quem tem cadastro no site”, diz ele.

Parte da coleção de Lelê Nakao integrou, no ano passado, uma exposição da marca criadora da Hello Kitty

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Sequências e (in)consequênciasProdução seriada reforça vínculo entre artista e obra, além de estimular e facilitar a fruição dos trabalhos.

Por Tatiana Diniz

Quando a ilustradora Mariana Belém deu à luz, os seres em seus desenhos ganharam asas. Nasciam duas séries paralelas, Pássaros de Gente e Mulheres Aladas, com as quais, há três anos, a artista vem expressando os altos e baixos da experiência feminina. “São o reflexo da minha vida, da perda de liberdade que a maternidade me trouxe. Finquei os pés no chão, criei raízes, mas a cabeça e o desejo de liberdade voam no papel”, comenta.

Com cores quentes, luz e força, Mariana faz eco à diversidade e à intensidade dos seus sentimentos. “Em ape-nas uma obra não conseguiria sintetizar o que vem aflorando em mim durante esse processo”, diz. Até hoje são mais de 20 desenhos, expostos pela primeira vez em setembro passado na coletiva 3 Lugares Diferentes, que aconteceu no Espaço Muda, no Recife.

Sequência. Variação. Semelhança. Continuidade. Das pré-históricas cenas eróticas repetidas nas pinturas rupestres nordestinas às sete telas de girassóis pintadas pelo pós-impressionista holandês Vincent van Gogh, a execução seriada de obras marcou e marca as artes de todos os tempos. E se por um lado permite ao artista um envolvi-mento continuado com determinado estímulo criativo, por outro desperta a atenção dos colecionadores, que nas séries enxergam verdadeiros conjuntos de objetos de desejo. Mas nem tudo se resume à ideia de coleções.

“A noção de objeto ‘colecionável’ qualifica um resultado que alguns artistas rejeitam”, ressalta Luiz Guilherme Vergara, coordenador do curso de gradua-ção em produção cultural do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense, cofun-dador do Instituto Mesa e coordenador do Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM/RJ. De acordo com o especialista, a abordagem pode contri-buir para a fruição. “As séries são jogos em que o pró-prio artista está construindo e desconstruindo uma gramática estética e cognitiva”, analisa. Ele lembra, po-rém, que há vários sentidos para a produção seriada e observa que ela se tornou constante na arte contem-porânea. “Hoje, a maioria dos artistas desenvolve seus trabalhos como se fosse uma fluência criativa, com início, meio e fim. Muitas vezes, o início é bastante ex-perimental, como algo ainda não gestado, sem que eles realmente saibam o que vai surgir”, descreve.

“Entre as pulsações da criação, temos a oportunidade de ‘saltar’ de uma possibilidade a outra.” O comentá-rio do artista visual Leopold Kunrath, de Porto Alegre, sobre sua série DesAparecido dialoga com o pro-cesso descrito por Vergara. No trabalho de Kunrath,

reportagem

Das cenas eróticas repetidas nas pinturas rupestres nor-destinas às sete telas de girassóis pintadas por Van Gogh, a execução seriada de obras marcou e marca as artes de todos os tempos.

o rosto de uma criança acompanhado da palavra “DesAparecido” é o ícone empregado no projeto se-riado de ações artísticas.

Ao mesclar técnicas como estêncil, colagem, ilustração, videoarte e intervenção urbana, Kunrath leva às ruas uma produção alinhada a conceitos emprestados da física quântica: “Para existir, toda matéria deve desaparecer por milionésimos de centésimos de segundo e reaparecer reorganizada”. Como “elétrons”, explica, seus trabalhos as-sumem “espaços intermediários do universo”. As imagens levadas a espaços públicos trazem em comum o ícone descrito acima, reproduzido em aplicações diversas.

Bólides, bichos, naves

Arte em série, no entanto, não deve ser necessaria-mente encarada como sinônimo de potencial artís-tico. “A busca pode ser desenvolvida em várias obras até que o artista descubra e dê por concluída aquela ‘série’. Outros continuam reelaborando composições e novas estruturas que alimentam o vínculo criativo entre artista e produção: série, mas não produção em série”, enfatiza Vergara, para quem o risco das sequên-cias é gerar acomodação, “fórmulas de sucesso”.

Série DesAparecido, de Leopold Kunrath, técnica mista | imagens: acervo do artista

Série Encontros Inusitados, fotopinturas de Franklin Lacerda | imagens: acervo do artista

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Ainda assim, ele não tem dificuldades em apontar as séries

que mais admira na arte contemporânea: “No Brasil, os cinecromáticos e as progressões

de Abraham Palatnik; os bólides, de Oiticica; a sé-rie de bichos de Lygia Clark; os estudos sobre as

rotações do quadrado, de Almir Mavignier; as mo-notipias sobre a boca de forno, de Carlos Vergara; as

Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles; os dobráveis Des-mov-em, de Paulo Roberto Leal; a sé-rie de lonas de caminhão, de José Bechara; as naves de Ernesto Neto; e os plasmatios e sudários de José Rufino”, lista. Na cena internacional, “os autorretratos e retratos de Rembrandt; as cadeiras elétricas e as pinturas das sombras, de Andy Warhol; as diferentes variações conceituais de Sol Lewitt; e os quadrados de Joseph Albers”, completa.

Baixe as calças!

O deslocamento geográfico de uma ideia também alimenta a produção continuada. Barcelona, Berlim, Estocolmo, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Aix en Provence, Milão e Varsóvia são destinos para os quais Renata Faccenda já levou seu projeto En Bragas – performance itinerante e interativa na qual volun-tários entram em uma cabine montada em espaço público para fazer uma foto polaroide de seu corpo. O enquadramento vai do umbigo à coxa e apenas uma condição é imposta pela artista aos participan-tes: baixar as calças.

Circulando pelo mundo com a cabine desde 2001, Renata gerou uma coleção com mais de 500 fotos. A série então passou de obra a matéria-prima, e outros produtos foram gerados. O primeiro foi um jogo da memória criado a partir de uma seleção de 25 ima-gens (também disponível em renatafaccenda.com/enbragas/bajate.html).

Atualmente, a artista desenvolve a série inédita Casais Alheios: “São ampliações de pares imaginários, alheios entre si, unidos somente pela observação das fotos, por traços comuns ou totalmente díspares no tempo e no espaço”, conta. O trabalho de Renata ilustra o po-tencial de renovação implícito na produção seriada. Talvez por isso o formato chegue a ser adotado de for-ma deliberada e até conceitual por opção artística.

Encontros inusitados

No sertão do Cariri cearense, uma investi-gação realizada por Franklin Lacerda em torno da tradicional atividade de fotopintura de retra-tos desvendou ao artista um universo ainda pouco conhecido. “Percebi que existe uma forte presença do imaginário local no processo de elaboração dos retratos pintados. Muitas vezes, o produto final corres-ponde a desejos não realizados dos retratados”, conta.

Com esse mote, o artista resolveu explorar a fotopintu-ra como “magia” capaz de realizar desejos. Há dois anos, ele desenvolve uma série de “fotografias-encontros” reunindo personagens que nunca se encontrariam na realidade. Absurdos à primeira vista, os retratos do impossível fazem parte da tradição local do Cariri: “Os clientes sempre buscaram os fotopintores na tentati-va de recriar encontros com entes queridos ou com o Padre Cícero, por exemplo”, explica Franklin.

Para ele, a série não tem prazo de validade: “Ainda tem muito pano pra manga”, observa. A importância da continuidade reside em assumir que o trabalho está em constante transformação. “Técnicas tão rústicas e em processo de desaparecimento por causa das novas tecnologias se renovam por esses fatores. A semelhança entre o que faço e o que os retratistas populares fazem está exatamente nesse exercício de busca pelo aprimo-ramento da imagem. E acaba aí também”, conclui.

Para o pintor Rinaldo, esse potencial é evidente e ca-paz de otimizar os resultados. “Os desenhos e pinturas dentro do contexto seriado organizam meu potencial criador e definem melhor os objetivos da mostra”, co-menta. A partir dessa percepção, há dois anos, ele de-senvolve a série O Olhar Contorcido pela Úmida Razão. A abordagem vai bem além da prática sequencial, gerando uma espécie de “série de séries”: “A cada cin-co desenhos em técnica mista sobre papelão, realizo uma pintura de 200 cm x 150 cm”, conta. Toda série é composta de 11 pinturas e 55 desenhos e deverá ser exposta em breve.

Em alguns casos, a experimentação em torno de de-terminado suporte ou material é o fio condutor do sur-gimento de uma sequência de peças. Leda Catunda, por exemplo, concebeu obras com base em uma sé-rie de camisetas brancas, enquanto Vik Muniz dedicou parte de sua obra a uma série feita com sucata. Outras vezes, um estímulo imagético se torna a força gerado-ra de várias peças. Foi o caso de Louise Bourgeois, que espalhou pelo mundo esculturas de aranhas gigantes, a maior delas com 9 metros de altura. Os trabalhos ho-menageavam a mãe da artista, por ela descrita como inteligente e protetora, e o ofício da tapeçaria transmi-tido por gerações como negócio da família.

Séries Pássaros de Gente e Mulheres Aladas, ilustrações de Mariana Belém | imagens: acervo do artista

Série En Bragas, fotografias de Renata Faccenda | imagens: acervo do artista

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Ordem no caosPara valorizar e preservar uma coleção, seja do que for, há regras básicas como conservação e catalogação.

Por Carlos Costa | Fotos André Seiti

Uma coleção organizada adquire outro status. Seja de selos, brinquedos ou arte. Catalogação, conservação, prevenção do manuseio danoso, restauração dos itens danificados. Essas são algumas das diretrizes que o co-lecionador deve seguir se pretende que sua coleção tenha vida longa e seja valorizada. Estabelecer um recor-te, desenvolver uma curadoria, perceber similaridades e mensagens entre os componentes do acervo e primar pela estética na hora de expô-los são outras normas importantes. Mas como cumprir essas determinações?

Nos museus, equipes de profissionais desempenham essas funções. Restauradores, curadores e museólo-gos – profissionais especializados em catalogar, pesquisar, reparar e conservar – garantem que as coleções tenham valor histórico, credibilidade, consigam sobreviver à ação contínua do tempo e, por meio de publi-cações e exposições, possam chegar a novos olhos.

Atualmente, diversos desses profissionais ampliaram a área de atuação e organizam e mantêm coleções par-ticulares. São as leis de oferta e procura do mercado, que já deram até nome a esses conselheiros pessoais de coleções, os personal collectors.

Aida Cordeiro é personal collector e atua exclusivamente como conse-

lheira e mantenedora de coleções privadas há cerca de dez anos. O trabalho nasceu da

experiência em museus. Na década de 1980, ela catalogou as obras do MAC/USP. Era o momento

anterior à revolução digital. Nos anos 1990, digitali-zou o acervo do MAM/SP.

As experiências permitiram que a profissional repetisse a tarefa em outras coleções, e, enquanto pesquisava sobre o pintor Alfredo Volpi para um catálogo, surgiu seu primeiro cliente. Assim como os que se sucederam, era uma pessoa de alta condição social que, ao longo dos anos, foi acumulando obras de arte e, em um dado momento, se viu perdido em meio à coleção. Não sabia mais o que possuía, onde estava e em que condições.

Para ordenar o caos, Aida usou a fórmula dos museus e o primeiro passo foi fazer um inventário. Identificar, medir, fotografar, examinar e organizar a coleção em um catálogo. “Trato tudo como um objeto. Meço altura e largura, pesquiso sobre a obra em livros e catálogos, e confirmo informações sobre autoria, data, procedência.”

Aida voltou às grandes instituições, convidada para informatizar a Coleção Nemirovsky, da qual algumas peças têm exibição permanente na Pinacoteca do Estado de São Paulo, e a coleção de arte da Fundação Padre Anchieta. E os clientes não paravam. Assim, ficou conhecida no circuito fechado dos cole-cionadores e passou a se dedicar exclusivamente a eles. Mantém atualmente uma dezena de clientes. Trabalha apenas com uma auxiliar e uma fotógrafa e descon-versa sobre o valor do trabalho. “Os grandes colecio-nadores de arte não vivem na nossa realidade. É outro mundo. Por exemplo, os catálogos que faço para eles têm um modelo cujo álbum de couro custa 2 mil reais e cada folha impressa em papel fotográfico sai por 10 reais. Há obras que valem mais que um apartamento.”

Além de obras de arte, catalogou para seus clientes relógios, prataria, louça, tapetes, objetos de decoração antigos. Uma coleção, comenta, começa a existir a par-tir do 51º item. Mas desde o início a catalogação é im-portante. Assim como a conservação: deve-se sempre estar ciente de que os grandes inimigos dos objetos são a luz direta – natural ou artificial – e a umidade.

reportagem

Atualmente, diversos profissionais ampliaram a área de atuação e organizam e mantêm coleções particulares. São as leis de oferta e procura do mercado, que já deram até nome a esses conselheiros pessoais de coleções, os personal collectors.

Mais de 12 mil brinquedos guardados em um apartamento na Vila Mariana, em São Paulo

Para ordenar uma coleção, usa-se a mesma fórmula dos museus. O primeiro passo é um inventário

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No processo de catalogação, passa um pente-fino na coleção e avalia mol-

duras, armazenamento, exposição. Pouco a pouco, peça a peça, identifica tudo. Obras em

más condições são enviadas para restauro. As que estão em situação de risco seguem para uma melhor

condição de armazenamento. As compras passam a ser registradas, com todos os dados importantes, e a arrumação da coleção recebe atenção especial.

Assim, a personal collector ensina sobre artistas, movi-mentos e estilos e aconselha a valorização da coleção por meio de aquisição de peças importantes para o recorte do acervo, além da democratização do acesso às obras por meio de exposições, catálogos e aparições em revis-tas, livros. “A circulação da obra de arte valoriza seu preço e é muito importante. Tento mostrar isso aos coleciona-dores. Também cuido da parte de seguro, embalagem e transporte, para garantir que não ocorram danos.”

Coletânea de brinquedos

Jean Scuto coleciona brinquedos há 12 anos. Segundo a esposa, Jane, o hábito começou por prescrição médi-ca. Scuto era um publicitário estressado e com úlcera, por isso seu médico o aconselhou a encontrar um ho-bby. Ele pensou sobre o tema alguns dias, até se deparar com um carro de brinquedo, de lata, fabricação japone-sa, preto e no modelo dos carros de polícia de filmes, à venda. Era o mesmo modelo que tinha amado em sua

infância. Comprou e descobriu um mundo mágico, de lembranças e emoções; a infância não estava perdida.

Conheceu outras pessoas que colecionavam brinque-dos, que buscavam em desespero algum item antigo. Especializou-se no tema. Ensinou o hobby à esposa, alugou um apartamento para guardar as peças e dei-xou a publicidade para viver da e para a coleção.

Hoje, em um andar de um edifício na Vila Mariana, em São Paulo, guarda mais de 12 mil brinquedos. Algumas bonecas vende por mil reais. Sabe de cor ano, fabricante, modelo. Discorre sobre história con-temporânea relacionando os materiais da indústria de brinquedos, os mais vendidos, os jogos, a roupa das bonecas. Scuto aluga peças para gravações de filmes e propagandas; monta exposições e sonha, um dia, poder dar à coleção um local digno de exposição: “O museu de brinquedos que a cidade ainda não tem”.

E a manutenção do acervo consome, diariamente, ho-ras de trabalho. Lavar bonecas, refazer penteados, cui-dar dos olhos, das roupas. Consertar mecanismos de movimentos e emissão de sons. Um artesanato cons-tante. Dessa forma, a loja é também um hospital. O casal desenvolveu técnicas específicas e faz com que bonecas voltem à vida e carrinhos a andar. E, como regra para manutenção, apontam dois conselhos que todo adulto deve ter ouvido na infância: não molhe nem guarde com as pilhas.

Restauro e conservação

Sílvia Ferreira é restauradora de obras de arte. Trabalha para instituições e colecionadores privados há mais de 20 anos. Atualmente, observa que as coleções pri-vadas demandam mais trabalho. “Os colecionadores, geralmente, têm maior poder aquisitivo e podem in-vestir em mais manutenção.”

Segundo ela, o restauro implica a educação do cole-cionador. Depois de ver uma obra restaurada e receber os laudos que descrevem o processo, o colecionador abre os olhos para uma série de detalhes. “Aprende o que é abaloamento e craquelê, a olhar o verso das pinturas, a perceber as intervenções.”

Dicas de conservação não são simples de prescrever. Segundo Sílvia, cada caso merece atenção específica. “Não adianta dizer que uma tela deve ser limpa com um objeto macio, como um pincel, porque, se tem ra-nhuras, mesmo um pincel seco pode causar danos. Meu conselho é que conservem em boas condições, em local seguro, e chamem um profissional para ava-liar o estado da obra, sempre que necessário.”

Sílvia explica que estar atento ao armazenamen-to evita diversos acidentes, frequentes com

quadros que ficam atrás de uma porta ou na altura de um móvel, como uma ca-

deira, que, ao encostar-se

à obra, arranha ou mesmo rasga a tela. Outra dica é estar seguro de que o suporte na parede é apropria-do ao peso e às dimensões da tela ou a escultura não está na passagem, sujeita a trombadas dos transeun-tes. Em outras palavras, bom senso.

Uma lenda que combate é que o restauro desvaloriza a obra. Segundo ela, o restauro bem feito tem efeito contrário. Por exemplo, acaba de restaurar uma tela comprada num leilão na Inglaterra que estava cober-ta por verniz e tinha interferências que escondiam o nome do autor. Na limpeza, retirando camadas e recu-perando cores, ela resgatou a assinatura e deu à tela novo valor de mercado.

Ela traz na trajetória outras histórias de resgate arque-ológico, como um quadro de Lasar Segall em que conseguiu restabelecer a data original e uma pintura da escola cusquenha, em que percebeu uma inter-venção para cobrir um buraco na tela, interferindo na obra original. “Desenharam um crânio onde havia apenas uma parte de uma caveira. Mudaram a obra, que pude resgatar por meio de pesquisa.”

O trabalho de restauro tem duração e valor relativos, de acordo com as condições da obra. Pode durar me-ses e valer mais que o quadro ou ser breve e custar pouco em relação ao valor da obra. Por exemplo, a tela do leilão inglês, que tinha lance inicial de 50 mil libras, teve restauro de 4 mil reais.

A manutenção consome diariamente horas de trabalho: um artesanato constante Dicas de conservação não são simples. O conselho é manter objetos em boas condições

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Vestir o presente com a memória do passadoRoupas, sapatos e acessórios podem significar muito mais do que objetos colecionáveis. Eles são farto material para análise histórica.

Por Roberta Dezan

O ato de colecionar é tão velho quanto o homem. Ele atende à sua necessidade de, através do inven-tário, do registro, arquivamento, catalogação e outras práticas análogas, ordenar a realidade excessiva-mente dispersa do mundo, e, no limite desse esforço ordenador, dar um sentido à própria existência.

Frederico Morais, O Colecionismo no Sistema da Arte (Soraia Cals, 2003)

A moda mantém relações diretas e distintas com a palavra “coleção”. O termo pode ser empregado para de-terminar o conjunto de peças de vestuário e acessórios acumulados no decorrer do tempo, com a intenção de preservar a história de uma época, deixar um legado para as gerações posteriores, ou até mesmo por razões unicamente afetivas, acaso, impulso repentino ou gosto pessoal. Alguns estudiosos do colecionismo chegam a falar em obsessão, ansiedade, sublimação, compensação autogratificante e coisas do gênero.

Outra interseção entre os termos talvez soe mais interessante. Hoje, quando nos referimos ao conjunto de peças criadas por um designer para determinada estação, com variações de um mesmo tema, utilizamos a palavra “coleção” para designá-lo. Essa relação elucida a inserção de um modo coletivo de trajar e diz muito sobre a sociedade e os hábitos de consumo, como os conhecemos atualmente.

A coleção de moda é um fenômeno recente e surgiu somente com o estabelecimento dos costureiros em maisons. Com a chegada da máquina de costura, em 1870, as casas puderam produzir mais rapidamente e oferecer uma “coleção de modelos” ainda inéditos. “A função do costureiro, em sua natureza, era apresen-tar algo à elite diferente do que havia caído no gosto popular. O objetivo era distinguir os privilegiados tra-dicionais daqueles novos ricos, emergentes. Hoje em dia a coisa é mais complexa, e há estilos cuja intenção é exatamente uniformizar. Sendo assim, analisar uma coleção de moda nos dá a ideia de conflitos de classes, de costumes. Falar de moda não é falar exclusivamen-te de roupas”, explica a especialista em autonomia da moda em espaços culturais Priscila Rezende.

Instrumento de documentação

Se a moda, como pensa o jornalista especializado no assunto Ricardo Oliveros, “é um dos mais importantes e confiáveis documentos para entender o espírito de cada tempo”, ilustrações, registros fotográficos, cro-quis, vídeos, catálogos e revistas e coleções de roupa e complemento desempenham a função fundamen-tal de atuar como materiais históricos.

Esses instrumentos documentais nos permitem ana-lisar, refletir e entender melhor as rupturas sociais e estéticas que nos trouxeram até aqui. Dessa forma, podemos compreender com mais clareza e sen-so crítico o que passou, a realidade de hoje e o que ainda está por vir. “As roupas dançam nos cabides e depois envolvem os corpos humanos num balé que aproxima, afasta e se recria todos os dias para embalar nosso modo de vida em direção ao futuro”, observam Carol Garcia e Ana Paula de Miranda, em Moda É Comunicação: Experiências, Memórias, Vínculos (Anhembi Morumbi, 2005).

Colecionismo x consumismo

A consultora de moda Gloria Kalil reforça a impor-tância de diferenciar colecionismo de consumismo. “Normalmente colecionadores de moda são profis-sionais da área, pois têm como intenção primordial conservar peças representativas, símbolos de vira-das históricas, de transições, como no caso dos tailleurs de jérsei de Coco Chanel e de peças de Yves Saint Laurent. Uma mulher que com-pra cem pares de sapatos numa única temporada está mais para

reportagem

“As roupas dançam nos cabides e depois envolvem os corpos humanos num balé que aproxima, afasta e se recria todos os dias para embalar nosso modo de vida em direção ao futuro.” (Carol Garcia e Ana Paula de Miranda)

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consumista do que para colecionadora”, enfatiza. O au-tor e professor de história da moda João Braga dá outro direcionamento à questão ao dizer que “com certeza existe uma diferença entre alguém que compra diver-sos pares de sapatos para consumir numa estação e um colecionador convencional. Mas se essa pessoa guarda esses sapatos com o intuito de criar uma memória já podemos falar em colecionismo, e caso ela nem os use temos o colecionismo propriamente dito”, acredita.

Para Adolpho Leirner, que soma ao seu acervo diversas obras de arte de alto valor cultural e agregado, “todo colecionador reúne, em doses iguais, amor, paixão, des-cobertas, procura incessante, critério e racionalidade”. Colecionar é um prazer individual, uma relação de afe-tividade com determinados objetos. Prazer que se am-plia e se renova enormemente cada vez que a coleção é exposta. “O ato de colecionar está ligado a uma con-duta, a uma postura do universo do luxo, independen-temente da natureza da coleção, pois está relacionado sempre ao desejo e não à necessidade. Ele envolve também um aspecto de raridade, de escassez, pois o colecionador sai à caça e costuma gastar um dinheiro considerável por aquilo que deseja”, completa Braga.

Para além da coleção

Apesar de sua coleção não se enquadrar como algo que será fruto de estudos e análises complexas daqui a alguns anos, a mestra em ecologia e voraz consumido-ra de esmaltes Camila Zatz encontrou uma maneira de expor e tornar seu hobby relevante para outras pesso-as: começou a escrever no blog Loucas por Esmalte.

Com aproximadamente 12 mil acessos únicos por dia, o blog é escrito por Camila e mais duas colaboradoras, que testam produtos, mostram novas técnicas, discu-tem tendências e, claro, mostram suas coleções. As novas tecnologias possibilitaram às práticas individu-ais uma mudança de caráter e dimensão, tornando-as muito mais abrangentes. O veículo permitiu às cole-cionadoras, que juntas somam mais de 2 mil vidrinhos coloridos, dividir com o leitor algo, até o momento, estritamente particular.

Compartilhar suas descobertas lhes possibilitou co-nhecer diversas pessoas com os mesmos interesses e até lhes rendeu consultorias para marcas de cosméti-cos. “As empresas percebem que temos credibilidade como consumidoras e que nossas opiniões são leva-das em consideração por um grande público. Sendo assim, elas acabaram criando uma maneira de en-trar em contato direto com seus clientes. Algumas mandam produtos para avaliarmos, outras nos convocam para participar de pesquisas inter-nas ou até mesmo para bate-papos infor-mais sobre o que gostaríamos de ver no mercado”, diz Camila.

A blogueira acredita que, apesar de a moda mudar a cada estação, al-

gumas pessoas têm essa vontade de co-lecionar (ou consumir em larga escala) peças

voláteis e efêmeras, sem valor documental ex-pressivo, pois “os modismos passam mais rápido

que alguns gostos pessoais”. De fato, a moda é um poderoso instrumento de inserção humana no con-texto cultural e amplia as possibilidades corpóreas para além dessas peças, pelo uso de roupas e adornos que o vento não leva e o tempo não consegue apagar.

Moda de museu

Os museus são o desdobramento lógico das coleções de arte. À medida que crescem, elas passam a exigir espaços cada vez maiores e tecnicamente adequados e pessoal especializado, além de recursos humanos e financeiros que já não podem ser suportados e/ou administrados por seus proprietários.

As roupas podem exigir mais empenho para a conser-vação do que muitas obras de arte – com exceção de al-gumas contemporâneas criadas com materiais diversos –, pois tecidos são perecíveis e não costumam resistir tão bem à ação do tempo. “O segredo do colecionismo é ter e manter, e ainda não há técnicas adequadas para conservar algumas peças de vestuário. As feitas de elas-tano, por exemplo, muito usadas nos anos 1980, pos-suem borracha na composição. Com o tempo o tecido endurece e vira pó. Ainda não se sabe ao certo como preservar essas roupas”, observa o professor Braga.

Mesmo inspirando muitos cuidados e dividindo a opi-nião de especialistas, que divergem quanto ao fato de a moda poder ou não ser encarada como arte – devi-do à sua relação indissociável com o mercado –, esse tipo de coleção está gradualmente figurando no cen-tro de alguns museus e galerias, mesmo não havendo políticas públicas adequadas com o compromisso de preservação da memória dos vestíveis.

No mês de novembro de 2010, em São Paulo, três exposições com focos diferentes, porém complemen-tares, foram a prova de que a moda está finalmente sendo entendida como cultura. A intenção comum era demonstrar por meio de capas de revista (L’Officiel: 90 Anos de História da Moda), vídeos, croquis e figuri-nos (individual do estilista Conrado Segreto), fotogra-fias de Bob Wolfenson, Gui Paganini e Klaus Mitteldorf, e de estudos pioneiros de Flávio de Carvalho (Flávio de Carvalho Desveste a Moda Brasileira da Cabeça aos Pés) o transitório, o efêmero, o contingente capaz de gerar grandes inovações, impor novas exigências, mudar a direção do olhar coletivo.

É sempre possível reabrir algumas portas da arte de um passado recente ou remoto e, feito isso, estabe-lecer a continuidade entre o que aparentemente dei-xou de ser e o que ainda não é. A moda tem o poder de desempenhar papel semelhante, mas, “para se le-gitimar como cultura, ela precisa quebrar paradigmas, assumir uma importância, um campo cultural próprio e estabelecer suas relações com o todo, não apenas com o mercado”, conclui Priscila Rezende.

Capas da publicação francesa L’Officiel – exposição L’Officiel: 90 Anos de História da Moda – Espaço Iguatemi

Imagem da exposição Flávio de Carvalho Desveste a Moda Brasileira da Cabeça aos Pés – MuBE | foto: Thelma Vilas Boas

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Quem dá mais?As listas de favoritos ganham força e a brincadeira de hierarquizar as coi-sas cresce com as redes sociais. Tem gente que passa o dia pensando nos 5 melhores filmes, nas 10 melhores músicas e nos 15 melhores romances. De onde vem essa mania?

Por Mariana Sgarioni

Responda rápido: quais os cinco filmes que mudaram sua vida? Os cinco melhores guitarristas de todos os tempos? Os cinco principais bordões de novela que caíram na boca do povo? Os cinco livros que mais pren-deram sua atenção? E as cinco pessoas que mais fizeram você sofrer? Dá para passar o dia inteiro listando os cinco melhores e os cinco piores. Os “especialistas” na brincadeira garantem que a partir de um tempo é inevitável sair dos “top five” e passar para os 10 mais, até chegar à incrível marca dos 15. “É como um vício. De repente, você se pega listando até os cinco melhores entregadores de pizza dos últimos três meses”, brinca o publicitário carioca José Gomes Navarro, 42 anos, um listeiro convicto.

O hábito – que se tornou mania compulsiva – começou, segundo Gomes, quando leu o livro Alta Fidelidade (Rocco, 1998), do inglês Nick Hornby, lá pelos idos de 1999. O personagem principal, Rob Fleming, é dono de uma loja decadente de discos em Londres e tem obsessão por listas. Ele acaba de tomar um fora da na-morada, Laura, e logo no início do livro já despeja sua primeira lista, em que consta o nome das cinco ex-na-moradas que mais o fizeram sofrer – lembrando que Laura não significava tanto assim para ele, portanto não merecia entrar nas cinco mais. Fleming se tornou um ícone pop de uma década, tanto que sua história virou filme e, mais tarde, no Brasil, tornou-se uma peça de teatro (A Vida É Cheia de Som e Fúria, 2000). “Muita gente diz que essas escolhas, listas e tais são coisas de americano, sempre querendo competir, mas, estranhamente, o livro que mais celebra a cultura pop em geral, e listas em particular, Alta Fidelidade, foi escrito por um inglês”, lembra Marcelo Costa, editor do site de música Scream & Yell (screamyell.com.br) e fã de Fleming.

Formadores de opinião

Mais de uma década depois, os seguidores de Fleming não deixaram sua história morrer. Se ele aparecesse hoje, certamente seria blogueiro e se ocuparia de listas virtuais – embora o autor Nick Hornby já tenha declarado que seria impossível escrever esse mesmo livro ambientado nos dias atuais, uma vez que as lojas de discos como a do personagem praticamente não existem mais.

Isso porque a internet é campo fértil para a hierarqui-zação de nossos gostos e desgostos – começando pelo ícone Favoritos das páginas dos navegadores. Nas redes sociais, a todo momento aparecem cor-rentes na linha dos “mais” da temporada. Atualmente, uma corrente tomou conta do Facebook, por exem-plo. O texto é sempre o mesmo, só variam os itens, como livros, filmes, músicas etc.:

“Não demore muito para pensar sobre isso. Quinze livros que vão sempre estar com você. Liste os pri-meiros quinze que você lembra em não mais do que quinze minutos. Eles não têm que estar em ordem de importância. Marque quinze amigos, incluindo eu, porque eu estou interessado em ver quais livros meus amigos escolheram.”

Como usuária do Facebook, recebi alguns desses con-vites. Confesso que achei tão difícil que não me ani-mei. Costa, do Scream & Yell, explica essa dificuldade: “quase todo mundo se complica quando tem de re-lacionar numa ordem de importância aquilo de que mais gosta. É fácil entender. Afinal, listar os melhores

quer dizer que algo ou alguém será preterido, o que é chato e, na maioria das vezes, inaceitável.

E, principalmente, é difícil porque as coisas são diferentes umas das outras, o que nos faz

olhar cada coisa do seu jeito, e não como concorrentes”.

“É como um vício. De repente, você se pega listando até os cinco melhores entregadores de pizza dos últimos três meses.” (José Gomes Navarro)

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Frame do filme Alta Fidelidade, adaptado do livro homônimo, originalmente publicado em 1995

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No caso do convite do Facebook, eu me interessei em conferir a lis-

ta alheia, em busca de boas dicas cultu-rais, mais do que em fazer a minha própria.

Portanto, além de colocar as preferências em or-dem, os listeiros acabam, de certa maneira, agindo

como formadores de opinião. Sobretudo quando o ambiente é uma rede social – só no Brasil, as redes atraem 29 milhões de pessoas por mês, o que quer dizer que oito em cada dez brasileiros com acesso à internet estão em algum desses sites, como Facebook ou Orkut. “Tecnologicamente, um blog tem o mesmo poder comunicativo que a CNN”, lembra o sociólogo italiano Massimo di Felice, especialista em mídias digi-tais e professor da ECA/USP.

O multimídia Marcelo Tas é um desses formadores de opinião que não escondem seu gosto em elencar os acontecimentos. Muita gente aguarda com ansieda-de suas listas. No CQC, programa comandado por ele na TV Bandeirantes, sua trupe arranca gargalhadas com o quadro “Top Five”, que pinça, semanalmente, a dedo, as cinco escorregadelas mais divertidas exibi-das na televisão. Já entraram para essa disputada lista uma repórter entrevistando pombos e a apresenta-dora Hebe Camargo caindo do sofá. Recentemente, Marcelo Tas elegeu as dez piores mancadas do Twitter. Entre elas, o tweet de Sasha, filha de Xuxa, em que ela escreveu “sena”, em vez de “cena”, e as palavras da cantora Sandy dizendo que as vítimas do terremoto no Haiti podiam esperar, uma vez que em terras bra-sileiras as coisas não iam tão bem. No sentido inverso, neste ano, Tas foi incluído na lista dos cinco humoris-tas mais influentes do mundo, elaborada pela revista americana Foreign Policy, especializada em política.

Mas que mania é essa?

Muitos dos listeiros juram que esse hábito surgiu bem antes de Rob Fleming. O relações-públicas Denis Pacheco, de 27 anos, autor do blog Topismos (topismos.blogspot.com), diz que foi influenciado, sim, pelo personagem, mas que sempre teve esse hobby. “Sempre tive o hábito de fazer listas, não ne-cessariamente listas públicas. Usava-as como forma de me organizar para ver filmes e séries, ouvir discos ou hierarquizar que livros ia ler primeiro. Anotava em bloco de notas ou agendas, somente como forma de controle”, afirma. O estudante de engenharia Daniel Souza, que pretende lançar nos próximos meses um blog só com suas listas, concorda: “Desde criança eu arrumava minhas coleções numa ordem com os itens que mais gosto em cima da pilha”.

Todo listeiro que se preze tem regras para incluir (ou ex-cluir) algo de sua lista. A maioria diz que os critérios são principalmente emocionais – o item deve ter alguma ligação com sua história de vida e sua maneira de ver o mundo. “É preciso ter uma ligação emocional comigo. Nem sempre é fácil mensurar relevância, ainda mais quando se trata de cultura pop, por isso, como assino a lista, o maior critério que utilizo é mesmo minha relação

com cada um dos objetos ali mencionados. Além do critério emocional, às vezes utilizo regras mais simples como cronologia ou ordem alfabética”, explica Pacheco. Segundo o listeiro José Navarro, esses critérios são tão rígidos que, em geral, uma lista demora dias (ou meses) para ser finalizada. “Outro dia me pediram para fazer a lista das dez melhores bandas dos anos 1990, no me-lhor estilo Rob Fleming. Pior: tive só uma semana para entregar. Passei dias sem dormir, incluindo e excluindo itens”, lembra ele, um fanático por rock. “Cheguei à con-clusão de que dez era muito pouco para uma década. Quando terminei, já fui logo avisando: tenho certeza que vou querer mudar isso mais tarde.”

Os amigos dos listeiros, como esse que pediu a seleção a Navarro, já estão acostumados e acabam entendendo esse estado volúvel constante, assim como essa mania de hierarquizar tudo o tempo inteiro. “Já fui chamado de obcecado algumas (várias) vezes. Costumava andar com uma planilha de Excel no celular onde listo os fil-

mes a que assisti, os livros que queria ler e os discos que mais gostei no último ano”, resume Pacheco.

Ele acredita que depois de tantos anos passou a ser mais compreendido por amigos e familia-

res. “Ou então eles aprenderam a fingir muito bem”, diverte-se.

Marcelo Tas apresenta o quadro “Top Five” do programa CQC | foto: divulgação

Denis Pacheco, autor do blog Topismos: listas como forma de controle | foto: André Seiti

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Amostras da Revista do Rádio dos anos 1950, com Emilinha Borba e Nelson Gonçalves formosos como nun-ca, ele também tem. Calendários da folhinha dos idos de 1967, panfletos com a programação do extinto cinema Art Palácio, no Recife (PE), foto-grafias do galã Tyrone Power tem. “Esse rapaz era o ‘ai, Jesus’ das mulheres. Eu levava a namorada para o cinema e tinha de ir uma acompanhante. Chegava lá, a moça ficava com ‘ai, Jesus’ por Tyrone. Não levei mais.” E livros de receitas afrodisíacas para melhorar a potência masculina e fórmulas de remédios fitoterápi-cos para dezenas de enfermidades tem também.

De tudo, a mais original: a coleção da história oral do povo nordestino. Registrada pelo ainda pesquisador, fotógrafo, escultor e antropólogo formado pela rotina da persistência, Liêdo Maranhão, em 31 diários. Foram escritos a próprio punho, com relatos garimpados de-pois de praticar a ouvidoria nas ruas durante dez anos. A história oral do Nordeste só Liêdo tem.

Joe Gould brasileiro

Com essa coletânea de diários, ele concretizou o so-nho que o americano Joe Gould não conseguiu reali-zar. Conhecido boêmio de Nova York dos anos 1930 e 1940, foi personagem do livro O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell (Cia. das Letras, 2003). Joe passou a vida tentando colher fragmentos do cotidiano – “a maior e mais importante história oral da humanidade”, prometia, orgulhoso.

Liêdo perambulou diariamente pelo bairro de São José, no Recife, entre os anos 1960 e 1970. Tornou-se amigo de camelôs, prostitutas, cantadores, ambulantes ven-dedores de remédios, de ervas. Prestava atenção nas frases, decorava-as, corria para um lugar reservado, a Igreja da Penha, ali pertinho, e as colocava no papel.

“Gosto de andar como merda na cheia, sem fazer pla-nos”, revela. “Fico observando uma coisa, outra, ouvin-do pedaços de conversas e, às vezes, faço entrevistas. Quando iniciei esse negócio, começou um boato do povo de que estava cadastrando o pessoal para mandar para as obras da Transamazônica”, lembra o homem de ouvidos e olhos indiscretos. Liêdo permanece na ativa: “Há pouco, ouvi alguém dizendo, de gozação, que o pastor estava comendo a aleluia da irmã. São expres-sões que marcam uma época. Não é uma beleza?!”

Como Gould, Liêdo andava (e ainda anda) para cima e para baixo ouvindo o povo da cidade dele. O per-nambucano escreveu à mão, com caneta, quase 4 mil linhas. A partir dos “diários de campo” – como ele os rotula – publicou 13 livros. Tudo o que colheu nas ruas, de palavras àquilo que seria quinquilharia no parecer do desinteressado, está no seu acervo. Ele guarda os diários com outras dezenas de coleções num espaço bem cuidado nos fundos da sua residência em Bairro Novo, Olinda, onde mora há 50 anos. O ambiente se

O memorialista do povãoLiêdo Maranhão: um dentista desdentado que, ao longo de 40 anos, reuniu uma coleção de mais de 30 mil peças e histórias do povo.

Por Silvia Bessa | Fotos Ricardo Labastier

Tem dezenas de missais em brochura austeros; réplicas de livros de catequese com sacanagens. Recordatórios de mais de mil pessoas mortas, centenas de cartões-postais, um sem-número de cordéis, assim como uma máquina enorme de madeira rústica e pesada para fabricar os tais folhetos. Edições do almanaque publicitá-rio Biotônico Fontoura, da década de 1940, com a deliciosa narrativa do caboclo Jeca Tatuzinho, inspirado em personagem criado por Monteiro Lobato, para prevenir a doença do amarelão. Tem. “Se você reunir todos os best-sellers do Brasil, para mim, não dá um exemplar desse”, diz o proprietário do relicário, Liêdo Maranhão – dentista por formação; colecionador de objetos, expressões e costumes populares por devoção. “É uma beleza...”, admira o senhor de 85 anos. Parece saborear o patrimônio enquanto repete a frase preferida, segui-da por uma sonora risada que mostra a boca banguela.

“Sou dentista e desdentado. É meu marketing”, explica Liêdo, o memorialista do povão. A imagem do doutor banguela ficou mais próxima daqueles que, ao longo de 40 anos, lhe ensinaram e estimularam a preservar nas estantes e nas paredes as lembranças do tempo e de quem nele esteve. Sua coleção acumula 30 mil itens, com personalidade e passado notáveis.

perfil

O “dentista e desdentado” Liêdo Maranhão

Amostras da coleção que conta com mais de 30 mil itens

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transformou em algo entre museu e galeria de arte (sim, ele possui ainda muitos quadros de pintores fa-mosos de Pernambuco, a exemplo de João Câmara, Bajado e José Cláudio). Lá, funciona o Memorial da Cultura Popular. Dos 30 mil itens, há 15 mil cópias de fotografias. A maioria clicada por Liêdo: “Fui fazendo aos poucos quando via alguém ou alguma coisa inte-ressante. Só ando a pé ou de ônibus. Encostei o carro porque ele individualiza muito as pessoas”.

“A coleção dele é única”, afirma Marcos Galindo Lima, doutor em história, professor da UFPE, bibliotecono-mista e responsável pelo projeto de digitalização do acervo de Liêdo. Ele lança uma previsão: “Ainda servirá para muitos estudos sociológicos e antropológicos”. Oitenta por cento do trabalho de digitalização já foi concluído, com recursos obtidos na Petrobras. “O que caracteriza e diferencia a coleção de Liêdo é que ele faz um registro das pessoas. Por isso, o título de ‘es-criba do povo’ é a melhor definição que deram a ele”, considera Marcos Galindo.

Para Liêdo não faltam adjetivos. “É a maior autoridade das ruas do Recife”, já disse o diretor do Centro de Pesquisa Luso-Brasileira da Universidade de Sorbonne, em Paris, Raymond Catel. “Liêdo Maranhão é um dos maiores co-nhecedores da literatura de cordel do Nordeste”, avaliza o romancista Ariano Suassuna: “Com uma particula-ridade: enquanto todos nós, estudiosos como Diéges Júnior ou simples curiosos como eu, conhecemos ou vemos os folhetos como um bando de eruditos de ga-binete, Liêdo vive e convive com todo o seu estranho, pobre, vaticinante, mágico e duro mundo”.

Assim foi o princípio

A paixão e a coletânea dos folhetos literários popula-res tiveram início em 1967, quando ele se embrenhou pelas estradas do Nordeste para conhecer mais o can-gaço. O dentista quis fazer o que considerava ainda por ser feito no Brasil, no Nordeste, em Pernambuco, no Recife. A ideia de se misturar com o povo e cole-cionar tudo o que era pouco valorizado ou excluído surgiu numa viagem à Espanha. Na década de 1960, graduado em odontologia e comunista ligado ao Movimento de Cultura Popular, resolveu viajar pela

Europa. Percorreu 11 países em três anos – de carona. Passou pelo Palácio de Alhambra, em Granada, e sou-be do impulso que o americano Washington Irving (1783-1859), visionário que escreveu a no-vela Cuentos de la Alhambra, em 1829, após uma imersão na região, havia dado para ajudar a transfor-mar o palácio numa atração turística. “Quando você volta, fica mais brasileiro. Vi que estava tudo por fa-zer”, conta. Mãos à obra. “Quando cheguei à praça do Mercado São José, vi meu Palácio de Alhambra”.

A partir daí, vieram as visitas rotineiras à região do mer-cado, os diários, o garimpo de relatos, a observação dos hábitos e a coleta de objetos: da caixa de fósforos coberta por crochê cor-de-rosa ao pedaço de ferro contorcido. Porque até ferro-velho, colhido no centro do Recife, ele resolveu colecionar. “Para preservar a memória arquitetônica”, argumenta. “Visitava tudo que era ferro-velho. Gostava muito do de seu João, na Rua das Águas Verdes. Depois ele inflacionou porque um dia levei um catálogo de um prêmio que ganhei. Seu João, sabido que só, soltou esta”, conta Liêdo com sor-riso no rosto: “Perguntei a ele quanto custava tal peça. Ele olhou para mim e disse: ‘Na mão do senhor, sei não. Não quero nem dar preço’ ”. Liêdo conta e, logo em seguida, ri de si mesmo. Ou dos outros. Ou dos dois.

Cada peça de ferro-velho, quadro afixado na parede, fotografia, postal, xilogravura, revista ou folheto de Liêdo Maranhão tem uma história para contar. E ele é bom quando as conta porque parece se divertir antes mesmo de terminar. Há um monte de relatos dos ami-gos da Praça do Sebo, onde se vendem livros usados, que ajudou a fundar no centro do Recife, em 1981. Os amigos selecionavam as preciosidades. “Uma vez fui à praça e um vendedor chamado Jaime disse pra mim: ‘Doutor, hoje não tem nada do gênero’. Olhei para ele, ri porque falar ‘nada do gênero’ é muito bom, mas in-sisti em procurar. Aí achei um livro que me interessei. Ele, então, percebeu e se adiantou: ‘Esse daí guardei para o senhor’ ”, relata Liêdo. “Não é uma beleza?”

Conversar com Liêdo é se perder nas histórias, viajar nas expressões e conhecer um mundo que correu e corre fora das janelas dos automóveis e mal se ouve.

História digitalizada

Cerca de 25 mil itens da coleção de Maranhão já podem ser consultados na internet.

As expressões e o pensamento de João Antônio de Barros – o J. Barros, poeta popular e primeiro entrevistado da coleção dos diários memorialistas de Liêdo Maranhão, em 10 de julho de 1971 –, da prostituta Maria Branquinha e do ambulante ape-lidado de Fazendeiro, e tudo o que foi guardado pelo pernambucano durante 40 anos farão parte do futuro. Internautas já podem consultar parte do acervo e terão oportunidade de vê-lo quase por completo em alguns cliques, ainda neste ano. Os 30 mil itens do acervo de Liêdo Maranhão, para o qual não é necessário direito autoral, têm sido digitalizados pelo projeto Memorial da Cultura Popular, coordenado pelo biblioteconomista e doutor em história Marcos Galindo Lima.

Galindo e equipe passaram dois anos, 2008 e 2009, debruçados sobre a recuperação, o tratamento e a organização da coleção. Estima-se que uma média

de 80% do material já foi digitalizado – algo em torno de 25 mil itens. Parte do acervo já está dis-ponível no site do projeto (memorialpopular.org). Galindo adotou um padrão internacional de catalo-gação, moderno e refinado, para tornar as consultas ágeis. Responsável pelo Laboratório de Tecnologia do Conhecimento do Departamento de Ciência da Informação da UFPE, o Liber, revela que foi o próprio Liêdo quem se movimentou para tornar público e preservar o que guardou por quatro dé-cadas. O professor espera para os próximos meses o anúncio de um novo patrocínio da Petrobras para a conclusão do projeto de digitalização.

Galindo viu relíquias no acervo de Liêdo que lhe impressionaram. “As fotografias, em particular, merecem um estudo específico.” Outra menção foi para o material relativo às prostitutas dos anos 1920. Um dos livros de Liêdo, no prelo, foi basea-do em material reunido e trata da prostituição na área portuária do Recife. Se um dia você encon-trar o colecionador, pode dar o mote da conver-sa. Ele adora falar de sexo e de tudo o que diga respeito ao assunto. Qualquer semelhança com o gosto popular não é mera coincidência.

Cordéis que integram a coleção

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A compositora pernambucana Lulina apresenta Dolores Duran, o rapper Parteum apresenta Tom Capone e o maestro Leandro Carvalho apresentaVilla-Lobos, mas a programação não para por aí.

Acesseitaucultural.org.br/estereosaci

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