viver debaixo da ponte

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92 v 28 DE NOVEMBRO DE 2013 SOCIEDADE FOTORREPORTAGEM v v VIVER DEBAIXO DA PONTE Comem, dormem, lavam-se, urinam e defecam debaixo do chão por onde passam, todos os dias, milhares de pessoas. Ninguém parece vê-los. O número exato de sem-abrigo é uma incógnita. Revelamos três casos limite em Loures, Oeiras e Lisboa, o concelho com mais registos no País. Em 2011, a Rede Social da capital contou 2 399 indivíduos nesta situação. Quem são os que deixamos chegar à condição de sub-humanos? POR PEDRO MIGUEL SANTOS TEXTO E JOSÉ CARIA FOTOS v v FOTORREPORTAGEM

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Comem, dormem, lavam-se, urinam e defecam debaixo do chão por onde passam, todos os dias, milhares de pessoas. Ninguém parece vê-los. O número exato de sem-abrigo é uma incógnita. Revelamos três casos limite em Loures, Oeiras e Lisboa, o concelho com mais registos no País. Em 2011, a Rede Social da capital contou 2 399 indivíduos nesta situação. Quem são os que deixamos chegar à condição de sub-humanos?

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92 v 28 DE NOVEMBRO DE 2013

SOCIEDADE FOTORREPORTAGEMvv

VIVER DEBAIXO DA PONTEComem, dormem, lavam-se, urinam e defecam debaixo do chão por onde passam, todos os dias, milhares de pessoas. Ninguém parece vê-los. O número exato de sem-abrigo é uma incógnita. Revelamos três casos limite em Loures, Oeiras e Lisboa, o concelho com mais registos no País. Em 2011, a Rede Social da capital contou 2 399 indivíduos nesta situação. Quem são os que deixamos chegar à condição de sub-humanos?POR PEDRO MIGUEL SANTOS TEXTO E JOSÉ CARIA FOTOS

vvF O T O R R E P O R TA G E M

28 DE NOVEMBRO DE 2013 v 93

Álvaro Fernando Torrezão nasceu e cresceu nas antigas barracas do Jamor. Cuidava dos campos de futebol, mas a vida levou-o para Setúbal, onde era ven-dedor ambulante. Feirava castanhas, algodão-doce, pipocas, pevides, tremo-ços. Deixou de ver o Sado porque as dívidas o obri-garam a vender o pouco que tinha. Mudou-se para

um apartamento, na Cruz Quebrada. O alcoolismo e as desavenças com a ex-companheira ditaram--lhe uma condenação por violência doméstica e o destino: rua. Ela ficou com a guarda dos filhos co-muns, de 8 e 17 anos, que ele não vê há meio ano. Tem mais dois, adultos, de outra relação, mas não querem saber dele. Aos 68

ESTRADA NACIONAL 6, AVENIDA MARGINAL Cruz Quebrada, Oeiras

anos, a Segurança Social nega-lhe a reforma. Com a ajuda da assistente social da Junta da Cruz Quebra-da, pediu o Rendimento Social de Inserção, mas a reposta tarda. É respigador. De figos, caracóis, lixo e sucata faz uns trocos. Será o segundo inverno aqui e tem medo que as águas do mar lhe levem os haveres. Quando encontrou este

sítio, já lá estava o cubano que com ele partilha o teto.Toma banho numa coletivi-dade local. A Misericórdia de Oeiras dá-lhe almoço e lanche, um restaurante da vila oferece-lhe o jantar. Às vezes, os vizinhos pre-senteiam-no com tainhas. Divide o que tem com o caribenho de quem se tor-nou consorte de miséria: «Afinal, é um ser humano.»

94 v 28 DE NOVEMBRO DE 2013

Debaixo deste viaduto dor-mem búlgaros, cabo-ver-dianos, romenos, turcos, ucranianos. São dezenas. Neste lado da linha férrea há apenas muçulmanos. Recusam mostrar a cara. Têm medo, não dizem de quem. Os de leste passam uns meses cá, regressam às terras, tornam a voltar. Chegam e partem em autocarros, na Estação do

Oriente. Um deles mostra o bilhete: Tulcea (na Romé-nia)-Lisboa, €122, dois dias de viagem. Só ali estão ho-mens, vários adolescentes. Pedem trabalho, dinheiro, cigarros. As mulheres, ausentes, são denunciadas pela roupa nos estendais. Compram comida no Minipreço. Vagueiam pela cidade. Mendigam, arru-mam carros, roubam.

IP7/EIXO NORTE-SUL E AVENIDA GENERAL CORREIA BARRETO Campolide, Lisboa

Ou procuram trabalho, à jorna, na Praça de Espa-nha, em Sete Rios e em Monte Abraão. Alguns fo-ram apanhar azeitona para Beja. Trabalharam um mês e mandaram-nos embora – sem um cêntimo, juram. Ao lado, sob o Eixo Norte- -Sul, o cenário repete-se há três anos. Pernoitam aqui uma centena de almas: 35 barracas de papelão e

canas desengonçam-se a cada rajada de vento. Há lixo e pó por todo o lado. Ninguém fala nem se deixa fotografar. Volta e meia, as autoridades destroem o acampamento. Depois, tudo volta a erguer-se. A polícia diz desconhecer se aqui opera uma rede de tráfico de pessoas. Umas horas de reportagem dei-xam poucas dúvidas.

28 DE NOVEMBRO DE 2013 v 95

IC17/A36 – CIRCULAR REGIONAL INTERIOR DE LISBOASacavém, Loures

«‘Tá bem, ‘tá bem. Ir traba-lhar, ir trabalhar.» É só o que diz, aos berros. Não quer fotografias. Nas ruas por onde deambula este homem, que aparenta ter 60 anos, ninguém sabe o seu nome, se tem família, onde come ou toma banho. Veem-no apenas por Sacavém, apanhando beatas e lixo, que acumula. Chama-se Virgílio Martins Pais. Viveu em Camarate mas foi despejado por não pagar a renda. É alcoólico e aparenta sofrer de alguma perturbação mental. Há 15 anos, a Segu-rança Social colocou-o numa instituição, em Coimbra. Fu-giu. Está no mesmo sítio onde então o foram buscar.

Mais fotos e histórias destes sem-abrigo em:www.visao.sapo.pt

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